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  • História Universal da Infâmia

    História Universal da Infâmia

    Abandonei as surpresas inerentes ao estilo barroco e também as surpresas que levam a um final que ninguém viu chegar. Em poucas palavras, preferi satisfazer as expectativas em vez de providenciar grandes choques: depois de fazer setenta anos, creio que encontrei a minha própria voz.

    Jorge Luís Borges

    O RELATÓRIO DE BRODY – PREFÁCIO (1970)


    A mercearia da Belinha fica na rua mais estreita que ao fundo desagua no Rossio, entre a praça da minha casa e a esplanada do Zé Russo, logo seguida pela da padaria, frente aos taxis que por sua vez param à frente do tribunal, e rumo ao grande centro de tudo isto onde todos os sábados a festa vai ao rubro com o mercado e com as famílias e grupos de amigos que se juntam para almoçaradas e jantaradas infindas, dentro e fora de horas. De onde está, ou cá fora a remexer intemporalmente nos caixotes da fruta quando não tem fregueses, ou lá dentro a corujar desalmadamente quando chega alguém com uma história nova ao mesmo tempo que espreita através dos vidros, a Belinha só não vê o que não quiser ver. Ao fim da tarde, ao à hora da sesta, quando descem sobre a calçada os períodos de maior acalmia, ela aprecia sentar-se no banco sombreado pelas árvores majestáticas do Ministério da Justiça e saborear uma pausa de repouso na companhia dos taxistas, que lhe alargam ainda mais o campo de visão. Tem por melhor amiga uma menina muito apagada, magrinha e silenciosa, e de ocupação assaz duvidosa, que passa outros tantos períodos de acalmia na zona obscura junto ao fundo da loja, e que também deve dar-lhe a ver muitas e muito boas novas perspectivas sobre a vida quotidiana de Estremoz, porque a Belinha parece adorar a sua companhia. Ontem fiquei a saber que, desta vez, a Chefe da Rua tinha visto o invisível através do meu espelho. Fui até à mercearia para comprar tangerinas e uvas, porque a fruta da Belinha é verdadeira, e enquanto tal[1], nesta terra abençoada, é verdadeiramente deliciosa. Mas aquilo foi um anúncio às massas de tal forma desagradável que saí logo dali e ainda não voltei a entrar lá. Que se lixe a fruta.


    Para contar esta parte pouco interessante depressa, só preciso de contar que andei imenso tempo a sentir-me cada vez mais doente mas sem saber de quê até que fui parar ao hospital, onde me internaram nos Cuidados Intensivos. Quando acordei disseram-me que lhes tinha pregado um grande susto e viajado até às portas da morte, enquanto a mim me parecia mais, de tão estranho que aquilo era, que tinham antes conseguido fechar-me num reality show onde eu era era a última concorrente. Entre isto e o tempo que estive a comer aquela aproximação à comida quase fria e confeccionada sem qualquer espécie de sal que existe nos hospitais, e depois o tempo em que estive a recuperar do reality show dos Cuidados Intensivos numa caminha da Medicina 1[2], passou-se cerca de um mês e meio, e depois vim recuperar ainda mais para casa. E, entre uma coisa e a outra, a verdade é que só esta semana é que comecei a sair livremente à rua, a ver os meus amigos, e a celebrar com eles o meu regresso às rotinas quotidianas.

    Uma dessas rotinas costuma ser o convívio com o espírito de festa revisteira que a Belinha transporta consigo como uma bomba-relógio.

    yellow monitor

    Quando virei rumo à mercearia para ir comprar fruta e vi a sua imagem, sempre toda decorada com requintes de  capricho, a remexer nos caixotes com grande estrilho de colares e pulseiras, fiquei tão contente que apressei o passo, lhe dei um grande abraço, disse qualquer coisa como “ai, Belinha, que bom voltar a ver-te”, e lhe espetei com dois beijinhos muito sentidos. Ela olhou para mim apanhada de surpresa, e a primeira coisa que lhe saiu pela boca fora, desta vez, e por uma vez sem exemplo sem qualquer espécie de graça, foi,

    Olha lá, vais pagar-me o que me deves, não vais?

    Eu penso logo, no piloto automático,

    Porra, que chata que é esta gaja,

    e ao mesmo tempo respondo, ainda dentro meu sorriso inicial,

    Belinha, claro que te pago, então. Eu não fugi com o dinheiro, achas? É mais que fui internada no hospital e estava inconsciente. Depois fiquei lá até à semana passada, e só agora é que consegui começar a sair de casa. E não vês que vim cá logo comprar-te fruta?

    À medida que ela me ouve, os olhos azuis da Belinha tornaram-se pensativos por baixo da maquilhagem.

    Ah, no hospital. Estás doente, não é? Estás outra vez doente, cada vez mais doente. Escuta, sabes o que é que me disse aquela minha freguesa que te conhece muito bem?

    Eu cada vez duvido mais que esta freguesa da Belinha exista mesmo na vida real. Da maneira como ela repete as suas histórias, dá-me ideia de que esta freguesa é um personagem inventado que lhe permite dizer-me, e suspeito que dizer a toda a gente que lhe dê ouvidos, o que lhe apetece dizer a meu respeito mas carece de substrato fiável. Desde que alguém lhe lhe mostrou as minhas fotografias de outros tempos na internet, juntamente com os textos que noutros tempos se postaram na internet a meu respeito, a Belinha descobriu que eu agora sou uma sexagenária mas já fui uma boazona chamada Clara Pinto Correia. Ou seja, dá ideia que descobriu que, no meu caso, envelhecer foi um grave pecado em cuja indulgência eu não tinha o direito de incorrer.

    a person in a red dress sitting on the ground under a red umbrella

    Aquela minha freguesa, sempre que te vê aqui, diz-me logo, Tsss…Meu Deus… Coitada… O que aquela mulher era!

    Ó Belinha. Que disparate. Então uma mulher não tem o direito de envelhecer? Essa tua freguesa queria o quê, queria que eu fosse uma americana cheia de plásticas?

    Ah, mas ela mostrou-me as tuas fotografias, minha filha. E deixa-me que te diga, tu apresentavas-te bem.”

    Não caias de tão baixo. Tu, naquela idade, também te apresentavas bem de certeza.”

    Desta vez, no entanto, a freguesa da Belinha teria ido à mercearia contar uma história ainda mais infame a meu respeito. Ela voltou a estudar-me com um ar pensativo, e depois atirou-me com o golpe de misericórdia.

    Sabes, assim que tu voltaste para casa eu falei com a minha freguesa que te conhece. E ela disse-me assim, Aquela mulher… Como as coisas são, aquela mulher, que já deu na televisão… aquela mulher que dantes era da televisão, olha: agora anda a comer do padre!

    Aquilo inicialmente foi um choque, porque soava mesmo a “anda a comer o padre.” A pessoa até se arrepia. A comer quem? O Padre Francisco? Um senhor tão simpático? Eu? A comer o padre? Mas pronto, o choque passou depressa porque a frase fora, inequivocamente, a comer do padre. E isso só podia ter a ver com a minha situação financeira, que se resume a sobreviver com uma reforma mensal de ordenado mínimo, juntamente com a solidariedade social de Estremoz,  que é rápida e eficaz a responder às necessidades dos doentes e indigentes, e ainda juntamente com a organização protectora das minhas três irmãs, que são uma espécie de sindicato de protecção da ovelha transviada da família[3]. Juntando esforços enquanto eu jazia na minha cama da Medicina 1, tinham-se organizado para que as voluntárias do Lar de Santo André viessem cá a casa trazer-me o almoço todos os dias da semana – e é um almoço tão caseiro, tão saboroso, e tão bem servido, que chega e sobra para também ser um jantar.

    Fiquei tão mal disposta com o pressentimento óbvio do que queria dizer aquele “comer do padre” que já nem comprei tangerinas, nem uvas, nem nada – inverti a curva, afastei-me da mercearia o mais depressa possível, e quase que corri para casa num desespero de conseguir afastar-me do mal.

    man in green robe sitting on chair

    Perguntei a uma das senhoras que cá apareceu com o almoço logo a seguir ao meu encontro imediato com a “freguesa da Belinha”, e ela confirmou o meu pressentimento.

    Uma das pessoas  que se senta no conselho de direcção do Lar de Santo André é o Padre Francisco.

    E, com base nesta informação, à partida muito límpida mas à chegada certamente já extremamente turva, onde dantes eu recebia com imenso gosto esta nova rotina de o termos com o almoço caseiro muito bem servido trazido por duas senhoras da cidade, a Belinha conseguiu instaurar um autêntico Edward Jenner.

    Edward Jenner deixou a sua marca no caminho da Europa entre 1749 e 1823. Este cirurgião britânico era um menino do campo, filho de um pastor protestante e, a partir dos cinco anos, depois da morte do pai, um fruto da educação providenciada pelo irmão mais velho, que também era um pastor protestante. Isto aconteceu tudo em pleno Iluminismo, ou seja, numa época e num lugar em que a Ciência e a Religião estavam pouco menos que sobrepostas, pelo que as respostas para os grandes mistérios da Natureza se procuravam sistematicamente na Bíblia.

    Com o tempo, Jenner tornou-se um cirurgião muito popular e respeitado, amigo lá de casa dos grandes nomes da época e chamado a leccionar em Berkeley pouco depois de ter concluído a sua própria formação, prática e teórica. Juntamente com as aulas, juntou-se a dois grupos académicos que laboravam pela promoção do conhecimento médico, escreveu os seus artigos, aprendeu a tocar o seu violino com a devida doçura, compôs os seus poemas ligeiros com o devido virtuosismo, estudou com particular interesse os hábitos parasíticos de nidificação do cuco[4], e  começou a debruçar-se cada vez mais, primeiro só na população inglesa mas depois na do mundo inteiro, sobre os segredos com que a vacina da varíola se escondia do conhecimento humano.

    Fossem aqueles tempos politicamente correctos como são hoje, e Jenner seria logo proibido de inocular pessoas à vontadinha sem saber ao certo o que é que estava a fazer. Sendo assim, é muito provável que nunca tivesse descoberto coisíssima nenhuma, embora a atitude de princípio que presidia a essa ignorância fosse muito mais decente. E a ausência desta descoberta quereria dizer que o nosso conhecimento sobre inoculações contra vírus assassinos teria evoluído muito mais devagar. Mas estávamos na fronteira entre os séculos XVIII e XIX. A varíola era especialmente odiosa para as classes dominantes porque, ao contrário de outras armas mortíferas como a sarna e a sífilis, não respeitava estratos sociais. Ainda por cima, quando não matava os atingidos, deixava-os a todos desfigurados por igual para o resto da vida. Claro que, neste cenário, os grandes médicos tinham o caminho aberto para testarem as suas teorias no mundo vivo desde que fossem devidamente discretos – e que, claro, restringissem o mais que pudessem o seu campo de acção aos pobres e aos pretos[5]. Ora acontece que, graças a Deus, cobaias dessa natureza eram o material que mais abundava no planeta[6].

    Com base nas suas observações veterinárias, no campo e no laboratório, Jenner concluiu que a melhor defesa contra o agente da varíola[7] seria a inseminação de humanos com varíola bovina, que provocava no humano uma resposta muito mais suave mas aumentava imediatamente o quociente imunitário[8].

     Só para poder ter esta certeza,  não sabemos quantas pessoas é que a grande vedeta da medicina britânica teve que inseminar com soro de vacas doentes.

     No primeiro livrinho que publicou[9], enquanto outros colegas a quem tinha dado amostras do soro começavam também a testá-lo em pessoas que nunca foram identificadas, aparece, por extenso, o nome de sete voluntários.

    two guinea pigs eating carrot

    Agora, nós sabemos que sete cobaias não representam, minimamente, um valor de confiança para um investigador que está à procura de um soro capaz de desencadear uma resposta imunitária no organismo do ser humano. Talvez Jenner tenha antes seleccionado cinquenta cobaias. Ou mesmo quinhentas, para jogar pelo seguro. Hoje em dia seriam umas cinco mil, com um punhado de post-docs estafados, sempre agarrados às micropipetas onde escreveram o seu nome com uma daquelas canetas de tinta resistente à água, o dia inteiro a micropipetar o agente da vacina tirado das vacas doentes, a passar o dia inteiro o sobrenadante dos seus eppendorfs de um lado para o outro[10], tudo isto num silêncio de cortar à faca o dia inteiro porque agora é assim que se fazem as coisas[11].

    Edward Jenner descobriu mesmo a vacina para a varíola.

     Mas, pelo caminho, nunca saberemos quantos pobres e quantos pretos é que morreram nesta escalada para a nossa salvação colectiva.

    Se a história se passasse hoje, claro que o grande cirurgião seria chamado à Justiça e submetido a um longo e penoso julgamento, que, entre outras coisas, traria a público um rol angustiante de identidades das vítimas.

    Mas naquela altura, naquelas vítimas, detalhes desses eram considerados de somenos importância.

    Da mesma forma, para a Belinha, turvar as águas de um programa muito bem organizado de solidariedade social da sua cidade chamando-lhe “comer do padre” e atirando-nos a todos para a gamela dos pobrezinhos suplicantes também é de somenos importância – a malta percebeu a ideia, foi ou não foi? E, dito assim, até é mais colorido.

    topless woman holding red apple

    Se depois de ouvir a versão da “sua freguesa” eu tenho dificuldade em voltar a entrar na mercearia, muito bem – o problema é meu.

    Há mais quem queira.

    Aliás, até deve haver mais quem queira saber que “aquela mulher, que até já andou a dar na televisão”, agora anda “a comer do padre”.

    Belo romance.

    Hm, não.

    Soares de Passos não faria melhor  com as suas estrofes do que eu consegui fazer com a minha vida[12].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] … honra lhe seja…

    [2] Aqui, evidentemente, já tinha percebido que aquilo não era nenhum reality show. Mas se o que eu vi eram mesmo as portas da morte, bem – organizem-se. Que caos.

    [3] Que sou eu, caso não se entenda bem a frase.

    [4] Um verdadeiro parasita, a merecer maior desenvolvimento metafórico um dia destes. Na Primavera vem de propósito de África para acasalar, depois do que o macho desanda para casa e a fêmea espia os passarinhos pequeninos das redondezas, escolhe os que fazem o melhor ninho, despeja lá o seu ovo, e parte também ela para África. O bebé cuco costuma sair do ovo imediatamente antes dos seus irmãos adoptivos, e a primeira coisa que faz é deitar-lhes todos os ovos ao chão para se tornar filho único. A partir daí, tudo o que faz é berrar com fome, enquanto os pais adoptivos, muito mais pequeninos que o seu filho monstruoso e completamente esfalfados, correm pelos bosques o dia inteiro para lhe trazerem alimentos ao ninho. Muitos morrem quando o gigante está quase criado, mas, como o demónio é sábio, nunca morrem os dois. Quando o jovem cuco se sente capaz de voar, estica as patas, abre as asas – e parte para África, onde ficará a crescer e a engordar atá à Primavera seguinte, quando estará pronto para vir à Europa parasitar com o seu ovo o ninho de um passarinho qualquer. Por acaso, com tudo o que vimos e ouvimos, eu e o Dick ainda nos lembrámos de que poderia ser útil para outros pais adoptivos escrevermos uma autobiografia chamada O OVO DO CUCO. Mas concluímos que era uma péssima ideia.

    [5] Pedimos desculpa, mas o pensamento da época funcionava mesmo assim.

    [6] Bem, abundava na altura assim como abunda hoje. Até podemos escolher não dizer nada, mas sabemos perfeitamente que são precisos imensos pobres para sustentar um rico e que todos os pretos são pobres. Voltamos a pedir desculpa, mas esta história é mesmo tirada da vida real.

    [7] A ideia do vírus ainda estava longe da sua consolidação científica. Esta teve por esperar pelas publicações do  microbiologista russo Dmitry I. Ivanovsky, em 1980, e do microbiologista e botânico holandês Martinus W. Beijerinok, em 1893. Ambos os cientistas estavam a estudar uma doença que afectava as folhas da planta do tabaco.

    [8] Também aumentou o nosso léxico, e de que maneiro. Em português isto não é particularmente espectacular, mas pensem no negrume em que viveram os pobres ingleses, ou nos desgraçados alemães. A palavra latina para vaca é vacca, o que faz com que a varíola bovina se chame vaccinia. Jenner decidiu chamar ao processo de inoculação com o soro da vacciniavaccination. Ou, em português, vacinação, rapidamente simplificado para vacina por sucessivos acordos ortográficos. Estão a ver como se fazem as coisas?

    [9] Note-se que a introdução desta vacina foi muito polémica, sobretudo porque a classe médica não acreditava no efeito benéfico das vacinas. Os primeiros artigos que Jenner submeteu para publicação foram todos chumbados, e o grande cirurgião acabou por optar por uma primeira publicação em livro.

    [10] Ah, desculpem. Os eppendorfs. No caso das micropipetas, os eppendorfs são aquelas pontinhas translúcidas, descartáveis e renováveis, onde se processa o material em estudo. A gente fala deles tantas vezes, por tantas razões, que acaba por esquecer-se que os leigos carecem de nota de rodapé.

    [11] Eheheh! A berraria com que eu fiz as minhas coisas, no meu tempo, já ninguém me tira. Aprendíamos os palavrões mais debochados deste mundo, contávamos histórias francamente porcas, apaixonávamo-nos, chorávamos, valeu tudo. Foi bom.

    [12] Vai alta a lua! na mansão da morte. Já meia-noite com vagar soou; etc. A “mansão da morte” é o cemitério, só podia. E estes são os dois versos de abertura do famoso poema O NOIVADO DO SEPULCRO, que no final do século XIX todas as meninas sabiam de cor (também, não é tão longo nem tão difícil como isso), e que conta a história de dois jovens apaixonados, acabados de falecer, que no final conseguem abraçar-se numa única sepultura, deixando a outra vazia, com a lápide quebrada. É um bocado picante, porque para o fim o rapaz parece insinuar que vai, por fim – e já que não o fez em vida – fazer da rapariga sua mulher. Depois parece que quebrou a lápide. Estão a ver as colegiais do século XIX? Hm-hm.


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  • Somos tão pequeninos

    Somos tão pequeninos

    A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS (1874)


    Aqui de onde estamos quem é que nos vê?


    No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].


    Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.

             Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.

             Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].

    person making dough beside brown wooden rolling pin

             E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.

             “O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.

             “Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.

             “E como é que arranjaste isso?

             “Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.

             “Epá.

             Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.

             Não se fala das desgraças.

             Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.

             Há muitas alturas em que a distância dói.

             Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.

             Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.

             Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.

             “Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?

             “Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.

             A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].

    silhouette of man during sunset

             A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.

             “Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.

             “Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.

             “Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.

             Mariazinha encolhe os ombros.

             “Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.

             “Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?

             Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:

             “Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.

    brown wooden stand with black background

             De sobrancelhas erguidas ou franzidas  em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.

             “Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”

             O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,

             “Parece um filme americano”.

             E a Mariazinha, também num sussurro,

             “Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não  trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.

    [2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.

    [3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.

    [4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?

    [5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.

    [6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.

    [7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.

    [8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.

    [9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.

    A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.

    [10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.

    [11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.

    Somos cultos.

    E vocês têm que pagar para seguir em frente.

    [12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.

    [13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!

    [14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.


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  • O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”

    Jorge de Sena

    ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)


    Então,  mas…

    …é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?

    Caraças, estes malditos detalhes.

    Dão com os escribas em doidos.


    Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoasmas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, o Natal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.


    Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.

    Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.

    Na primeira década do século XVI?

    Gaita que isto foi rápido.

    Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.

    Esse Papa adoptara o nome Gregório III.

    Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.

    rock formations during daytime

    Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.

    Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.

    Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].

    Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.

    Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.

    A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.

    green grass field during sunset

    A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.

    É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.

    Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”

    Ewh.

    Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.

    É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:

    “As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]

    silhouette of people riding on camels

    Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.

    Que esta Luz caminhe agora convosco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.

    [2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos

    [3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.

    [4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.

    [5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.

    [6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.

    [7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.

    [8] E uma vez mais.

    [9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.

    [10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.

    [11] Ver  Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.

    [12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.

    [13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.

    [14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.

    [15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.


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  • Os portugueses concordam: o Sebastião é um cabrão

    Os portugueses concordam: o Sebastião é um cabrão

    No mais espesso do mato, na borda de uma clareira redonda, numa espécie de buraco dos ramos entreaberto como uma alcova, estava sentada no musgo uma mulher, tendo ao seio uma criança a mamar e no regaço as cabeças loiras de outras duas a dormir. Era essa a emboscada.

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS 1873


    É mesmo um grandessíssimo cabrão, é. Quando era mais ingénua e jovenzinha já tinha incorrido no erro de meter em casa outros cabrões, mas nunca nenhum outro com uma cara de pau tamanha. Os protectores de cabrões como o meu[1] que se deixem estar sossegado. O Sebastião não se importa minimamente com os nomes que eu lhe chamo, porque nisso é tão bom estratega como o André Ventura[2]. O Sebastião sabe que o importante é todos os dias ter muita atenção, o que requer tê-la com bastante imaginação – e, nisso, o meu ganha de longe na competição ao vosso, uma vez que o meu, ao contrário do vosso, possui uma imaginação positivamente desalmada. É uma das razões pelas quais é tão bom termos cães, não é? Podemos chamar-lhes todos os nomes feios que nos apetecerem, até podemos fazer isso na praça pública, e aliás até podemos fazer isso na praça pública PARA MILHARES DE DESCONHECIDOS. Grande coisa. Os nossos cães amam-nos incondicionalmente à mesma.


    Ainda ontem, depois de um castigo verbal e metafórico horroroso, quando finalmente o deixei deitar-se ao pé de mim o Sebastião foi extremamente discreto e deixou-me ler à vontade, mas isso foi só até sentir-me ceder, ver-me apagar a luz, e já estar devidamente posicionado para o ataque[3]. Depois virou a sua barriguinha branca toda para o ar, encolheu a parte branca das patinhas o mais que pôde, suspirou, e deitou-me aquele seu olhar meigo de quem desejaria deveras algumas festinhas no peitinho branquinho de rola. Claro que é um cabrão. Eu fiz-lhe as festinhas que ele queria, disse-lhe imensas palavrinhas meigas, ele suspirou ainda mais, andou muito de bicicleta, e eu ainda fiquei a rir-me. Palavras levas o vento. E, para as nossas palavras de insulto, estão-se os cães bem a cagar. Verbo escolhido adequadamente.

    Para quem ainda não foi obrigado a saber deste pequeno detalhe nada despiciendo para a história que se segue, o Sebastião é um galhardo exemplar daquela nossa raça muito única de proporções colossais e polivalência desconcertante que faz tudo desde pastorear ovelhas a assumir a guarda de montes inteiros, o Rafeiro Alentejano[4].

    Talvez também já saibam que o Sebastião me entrou em casa com dois meses, como prenda de Natal. Ao fim da tarde de dia 24 tocaram-me à porta já noite fechada, fui abrir de pantufas e roupão, e era o meu amigo Bruno, ali do Zé Russo[5], com um ar muito sério e uma caixinha de vinho na mão.

    O gajo é taberneiro, é normal que ofereça destilados aos amigos pelo Natal, mas quando puxei a ráfia para trás o que realmente lá estava dentro era uma coisinha minúscula, absolutamente amorosa, que dormia a sono solto mas acordou logo e se mostrou prontamente muito festiva, e ainda teve quatro dias para andar por ali a arrastar a barriguinha branca pelo chão, a fazer-me rir às gargalhadas com as suas manifestações precoces de personalidade endemoninhada, e a chamar-se Maria Alice, até eu conseguir, finalmente, aterrar com ela no Veterinário, deixando para trás em total desalinho a minha pobre cama juncada de pulgas ferozes armadas até aos dentes.

    E foi assim que nasceu o Sebastião.

    Ah, defendeu-se logo o Bruno com a audiência toda a rir. No monte, no palheiro, a chover como na rua, a cadela a dormir e oito cãezinhos aos berros? Eh pá – isto agora já era uma história para a geral – vocês estão a ver o Este, e mais o Aquele, daquela vez em que Não Sei Quê? Nessas condições até os criadores os confundem. A audiência, pelos vistos toda ela conhecedora destas questões delicadas do sexo dos cãezinhos, desatou a partilhar informação com grande primor.

    Só depois de todo este circunlóquio, que aliás é uma das razões pelas quais eu gosto tanto de conversas com alentejanos, é que o Bruno ligou de repente à terra e me gritou, como se a culpa fosse minha,

    E a Menina Clarinha está a fazer o quê aqui dentro com um cão? Não viu o sinal ali na entrada? Quer o quê, que aqui o Senhor Parente vá dar parte de mim à ASAE?”

    Eu vim só mostrar-lhe o seu menino Sebastião, que o Bruno ainda nem conhecia.”

    Vá mas é chamar pai a outro e tire-me isso daqui.”

    “Isso tem nome.”

    “Isso nunca mais cá entra.”

    A verdade é que eu na altura tinha mais que fazer do que ensinar a um cãozinho que ainda precisava de andar dentro da mochila com a cabecinha de fora fosse o que fosse a respeito de nunca mais voltar a entrar no Zé Russo, mas, a partir daí, bastou sempre o Bruno bater uma vez a bota no chão e fazer um “ssssta” que eu mal ouvia para a carinha preta do Sebastião, com as duas orelhas irrequietas e a manchinha branca na ponta do focinho curioso, desaparecer imediatamente do canto da porta.

    Podia ter sido um acaso.

    Pois, não era.

    Este raio deste cão é demasiado inteligente para seu próprio bem.

    Aos três meses, depois de passar horas infindas a observar-me, presenteou-me uma manhã com o espectáculo de ir às lágrimas da sua própria conchinha. Estava deitado de lado, como eu durmo sempre, muito bem enroscado no lugar vazio à minha frente, com a cabeça na almofada livre e a parte branca das patas de frente muito bem arrumada diante dela. Espiou-me pelo canto do olho, e, como eu me estava a rir e a fazer-lhe festinhas, sem vontade nenhuma de me levantar, foi-se encostando a mim com muita diplomacia, até nos deixarmos ficar ali os dois numa grande preguiça que infelizmente não pôde durar muito. Mas ainda hoje, muito grande e já mais que castrado ou ninguém continha aquela força toda, com uma preferência nítida por se esticar todo e me recostar a cabeça por cima dos pés, ainda tem noites em que vem procurar uma horinha de conchinha. Ou este novo truque que aprendeu entretanto de pôr a barriguinha branca para cima a pedir festinhas.

    Achei que um cão que já fazia conchinhas bem podia aprender a fazer coisas mais úteis, mas ele aprendeu o quieto, sentado, e deitado tão depressa que eu entrei numa de circo e o ensinei a dar a pata, e depois a outra pata, e já agora as duas patas. Aos quatro meses era hábil em partilhar devagarinho a banana da noite comigo, dentada da dona, dentada do cão, e assim por diante – e sabia perfeitamente que a festa não começava enquanto ele não estivesse deitadinho e todo sossegadinho. Já quase a fazer cinco meses, aprendeu finalmente, de uma vez por todas, a respeitar as regras da Grande Batalha Naval que andava a dar-me cabo da paciência e a ir, sem falta, todos os dias pelas seis da manhã, fazer cocó e xixi ao terraço.

    Como o tempo passa, pessoal.

    green tree on brown field under white clouds and blue sky during daytime

    O Sebastião fez agora um ano. Como toda a gente lhe acha muita gracinha, eu, mesmo só pela gracinha, deixei-me ir na conversa fiada do dito olhar de mel e fiz-lhe uma festinha de aniversário cá em casa. Das 18 às 21 as pessoas que foram entrando e saindo cantaram-lhe os parabéns e bateram-lhe palmas, os com mais consideração trouxeram-lhe saquinhos de biscoitos para cão[6], o animal andou ali durante três horas com a minha linda écharpe vermelha a fazer-lhe um grande laçarote ao pescoço, e estava tão vaidoso que nunca a desmanchou, levou festas de toda a gente sem precisar de pedi-las, fez uma malha tão grande num dos meus melhores collants que passei grande parte da festividade personificando com grande pose a saudosa Natália Correia…

    … e, no dia seguinte, logo pela manhã, caiu-me a alma aos pés quando descobri que o meu cãozinho encantador, afinal, é igual aos outros.

    Bastou-lhe uma festinha de anos[7] para o convencer que tinha adquirido aqueles direitos que só assistem àqueles que atingem posições especiais.

    Percebeu, sem qualquer sombra de dúvida, que a partir de agora tinha a faca e o queijo na mão.

    E fez cocó dentro de casa.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] É o que há mais, como se sabe.

    [2] O que, nas actuais circunstâncias, ainda é mais arrepiante do que já o era em dias vagamente menos calamitosos mas de alertas vermelhos já previsíveis em todo o País.

    [3] Ele sabe que eu nunca resisto à posição de ataque, embora deva pensar que quem goste daquilo só pode não bater bem: todo encostadinho a mim, aquele mastodonte peludo é um saco de água quente fantástico. Em troca, deixei de ligar o aquecimento. E ele dorme por cima da colcha, como é evidente. Enfim, uma mão lava a outra. E poupa-se ne energia. Os nossos antepassados já deviam conhecer estes expedientes.

    [4] A raça, que se distingue bem ao longe pela sua lindíssima cauda toda encaracolada, tem outras características mais perturbantes como estabelecer com os donos uma amizade de autêntica parceria, que parece absolutamente incompreensível em animais que foram seleccionados para uma rotina constante de todos os trabalhos pesados que se executam ao longo de áreas enormes conservadas por meses junto ao zeno do Inverno e a seguir levadas ao forno junto ao quarenta do Verão. Já várias pessoas de muitos géneros diferentes pararam ao meu lado quando me sentei onde pude, saturada de passear o Sebastião (a inversa nunca foi verdadeira), e desataram a falar do seu recém-desaparecido bicho igual a ele[4]; e eu acredito em tudo o que oiço porque o Sebastião tem sido a prova viva de tudo o que me contam. E uma coisa que as pessoas dizem muito, com muita intensidade, é que o Rafeiro Alentejano “é um cão de um só dono.” Não adianta nada levarem-no para um monte muito verde cheio de pessoas muito amigas, com muito espaço, muita comida gordurosa, muita água, e muita coisa séria para fazer, onde ele possa ser muito feliz: se o dono morre, ou desaparece sem ninguém saber como nem para onde, o bicho transforma-se na ilustração por excelência do antigo livro infantil inglês onde o animal fiel se deita em cima da campa do falecido e se deixa morrer sem verter uma lágrima. Claro que o gosto extremamente discutível dessas ilustrações era obra humana, e não canina; o que as pessoas me dizem é que “eles ainda esperam, mas eles já sabem, já nem são os mesmos, eles em pouco tempo lá arranjam a sua maneira de ir também.”

    [5] O famoso tasco das melhores sandes de carne assada de todo o País.

    [6] Os outros tiveram outro tipo de consideração e trouxeram comes e bebes para pessoas.

    [7] Que, para um humano, seriam sete anos.

  • O diabo existe: antes fosse uma surpresa

    O diabo existe: antes fosse uma surpresa

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    Já ninguém sabe onde foi que a borboleta bateu as asas e onde é que foi que esse movimento desencadeou o terramoto, mas esta nova versão do Caos que já tem crises na Ucrânia, na América, na Europa, no Médio Oriente… será que sabemos que as crises eram mesmo essas? Não vamos antes acordar amanhã e descobrir o quê, que de repente a República Centro-Africana tem todas as armas e todos os homens de que precisava para massacrar toda a gente de todos os países à sua volta porque andou secretamente a ser muitíssimo bem paga para dar guarida e espaço ao partido de extrema-direita que toda a gente achava que ia ganhar as eleições na Argentina[1]? Faz lembrar um certo permanentemente ébrio Edgar Albert Ponting que vem ajudar Lawrence Durrell como segundo-secretário para a Secção de Imprensa de Belgrado nas cenas da vida de diplomática coligidas em 1957 em STIFF UPPER LIP, e depois não dura mais do que um mês no posto por indecente e má figura. “Há anos li que ele tinha sido transferido para o Ministério das Colónias, e a partir desse dia, acreditem ou não, mal abria um jornal descobria que tinha rebentado uma crise na colónia onde Ponting se encontrava colocado nesse momento. É possível que se deva à influência de Ponting a rapidez com que o império britânico se desintegrou. Nada me surpreenderia.”


    Não olhem para mim. Não estou a brincar. Sempre disse a quem aguentou ouvir-me que a globalização era uma péssima ideia, mas estar hoje a assistir à demonstração exacta disso mesmo não me faz especialmente feliz.

    Num mundo horrível em que tudo é possível, a única coisa que esta nova demonstração de que o diabo existe sugere, aqui à superfície e em termos académicos, é um estudo mais aprofundado da forma como a situação americana controla o movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo. Claro que é uma sugestão muito chata[2]. O pior é que é verdadeira, portanto temos que aprender depressa a viver com ela. A nuvem negra que paira hoje sobre a qualidade e a decência do mundo não precisou sequer da invenção dos verdadeiros Anjos Caídos. É triste, é como se até o movimento de translação da Terra em torno do Sol estivesse em risco[3], mas a verdadeira sombra que paira sobre todos nós, independentemente de quem dê a cara por ela[4], vem mesmo da Terra das Oportunidades e não vai sair de cena tão cedo. Essa sombra, de costa a costa, é projectada pelo espantalho de Donald Trump e pelas leituras que o mundo faz desse espantalho. Do seu, e do número crescente dos seus imitadores[5].

    Laurence Durrell (1912-1990)

    Em 2017 eu fiquei  calada e composta no meu lugar enquanto, mesmo na minha cara, um comentador político por quem tenho o maior respeito dizia em directo para os americanos, e em diferido para uma parte impressionante do mundo, que a melhor forma de evitar a crise do petróleo e a escalada do aquecimento global era o investimento maciço no nuclear. Respeitei o meu papel[6], fechei os olhos, respirei fundo, e retrocedi no tempo por forma a ter outra vez 27 anos e estar a ouvir o Prof. Veiga Simão a dizer-me na cara que não tinha conseguido implementar o seu programa das centrais nucleares portuguesas por causa da série de seis reportagens que eu e o Henrique Monteiro publicámos em parceria no semanário O JORNAL[7].

    Ah, isso sim.

    Isso foi muito bom.

    Mas qualquer um de nós, se vive em democracia e tenciona dizer o que pensa, antes de mais nada respeita o que dizem os seus parceiros e aceita o lugar que lhe é atribuído – ou, se não respeita nem aceita, avisa antecipadamente que não poderá comparecer.

    Já agora, quem os tiver no sítio que esclareça que não pode comparecer por uma questão de princípios.

    skyline photography of nuclear plant cooling tower blowing smokes under white and orange sky at daytime

    Eu uma vez pedi desculpa ao produtor, fiz questão de acrescentar que a recusa não tinha nada a ver com ele, e a seguir disse isso mesmo: não posso ir ao seu debate por uma questão de princípios. Recuso-me a contribuir para dar qualquer espécie de visibilidade acrescida a pessoas por quem não tenho respeito moral ou intelectual ou ambos, e nem vou dizer nomes.

    Mais tarde apareceu-me no correio uma multa da BT fundamentada numa flagra de radar. Ia a guiar a a falar ao telemóvel ao mesmo tempo. E de maneira que lá passei mais uma noite a ouvir o Dick xingar-me a paciência com a questão de nós, portugueses, sermos todos uns condutores suicidas, coisa que eu, agora que era Mãe, deveria levar muitíssimo mais a sério.

    Nem sequer te orgulhas das minhas questões de princípios?”

    “Não me orgulho nada do dia em que ninguém, no teu país, te contratar seja para o que for – e depois como é que vais pagar todas estas despesas?

    Pois foi, por uma fracção de segundo até me esqueci que todos os Founding Fathers tinham escravos para o seu próprio bem e nenhum deles queria pagar impostos para o bem comum.

    woman driving car

    O Dick também tem princípios. Também recusa embarcar em imensas minudências por uma questão de princípios. Tínhamos os dois tantos princípios, baseados em tanta cultura, que às vezes, à noite, com os putos adormecidos que nem uns anjinhos, ele me abraçava e dizia,

    Ai Clarinha por favor, vamos parar com isto, parecemos dois boxers muito velhos e muito bons que já partiram a cara toda um ao outro mas nunca mais saem do ringue,”

    e adormecíamos logo que nem uns anjinhos, nós também.

    Como nos casámos em Las Vegas, ainda considerámos ir divorciar-nos a Reno. Eu ainda andei para ali a cantar aquele clássico imorredoiro do Johnny Cash, I SHOT A MAN IN RENO JUST TO WATCH HIM DIE. Mas não dá. Um casamento é uma aventura e um divórcio é a treva, e não há nada a fazer a esse respeito.

    A seguir fomos tomar café e eu disse,

    Dickinho, se conseguirmos ter menos princípios talvez daqui a uns anos…

    Não,” disse ele, muito baixo, muito firme, muito gajo. “Clarinha, tu já viste bem a grande porcaria em que o mundo inteiro tem vindo a transformar-se? Se não forem as pessoas como nós a ter princípios, quem é que vai tê-los? Desculpa, a Hillary Clinton, com todas as suas ligações a Wall Street e à Alta Finança? Achas? Mesmo? Que essa gente, que controla a América, que por seu turno faz tudo o que pode para dominar o mundo, tem princípios? Clarinha?”

    red and blue UNKs neon light signage

    O Dick sempre teve, e continua a ter, este traço de personalidade irritante de ver claramente o passado, sumarizar o presente numa frase, e ter umas ideias sobre o futuro que nunca são desinteressantes. Antes de aparecer o Obama, andava excitadíssimo com a rapidez com que os latinos e os chicanos se reproduziam. Aquela gente estava a transformar-se na nova maioria populacional, ia toda votar, era toda católica, portanto, finalmente – tiro no porta-aviões. A Compaixão ia entrar nas prioridades do País Mais Poderoso do Mundo.

    Depois apareceu o Obama e estivemos três horas aos berros de grandes visões no Skype. Ele convenceu-me que era possível quando ainda ninguém sabia dizer Barak.

    Depois vivemos durante oito anos com um governo que agora, visto daqui, parece um franchising das Nações Unidas.

    Mas, exactamente durante esse Intervalo do Bem, fomos obrigados a aprender as lições mais amargas de todas. O Presidente do País Mais Poderoso do Mundo pode ser bonito, um grande dançarino, um grande cantor, um grande stand-up comedian, um gajo que arrepia toda a gente quando se atira mesmo à jugular, um político que detesta o Putin ainda mais explicitamente do que a Princesa Diana detestava o Príncipe Carlos, o grande herói que consegue, por fim, pôr a funcionar um Sistema Nacional de Saúde tão bem montado que Donald Trump teve quatro anos para espernear mas não conseguiu desmontá-lo[8], o ser humano que chama sonhadores[9] às pessoas que dantes eram conhecidas como imigrantes ilegais e dá mesmo tudo por tudo para regularizar as suas vidas[10].

    assorted bobblehead figurines inside the store

    Os seus discursos podem ser bestiais, a sua mulher pode ser linda, podem estar os dois indiscutivelmente apaixonados e dedicar todo o tempo que tiverem às filhas, e mais. Michelle pode abraçar a solo causas dificílimas para os americanos, como por exemplo correr as escolas dos cinquenta estados para estimular alunos e professores no sentido de comerem menos[11] e se mexerem mais. Pode não ter medo de dançar ela própria na televisão, para mostrar que fácil e que curtido que é dedicar quinze minutos de intervalo a uma cena de aeróbica. Pode fazer coros para o Bruce Springsteen com um à-vontade total, e agarrar na pandeireta para marcar o ritmo do GLORY DAYS como se nunca fizesse mais nada na vida. Pode fazer discursos de improviso. E – no total oposto do desastre pessoal de Hillary – toda a gente concorda: “she’s a sweetheart.”.

    Quando aqueles dois se retiraram era só apresentador de late night show atrás de apresentador de late night show, na rádio e na televisão, a implorar-lhe que se candidatasse ela a seguir.

    Ela ria-se, mas ria-se mesmo, e começou a dar uma resposta que acabou por transformar-se num refrão extremamente apetecível,

    Watch out, DC, here I come![12]

    E era um sonho tão lindo que foi preciso aqueles dois desaparecerem mesmo de cena para…

    … que horror, foi só nessa altura que saltaram das névoas marginais todas aquelas sombras que estavam escondidas por trás da luz.

    Essas sombras continuam a nunca se ver bem, mas desde que agarraram nas rédeas nunca mais as largaram, e é exactamente como na história do Ricardo Salgado, nós não podemos provar absolutamente nada mas sabemos que são elas que mandam em nós.

    Pessoal, vocês estão bem a ver o xadrez do inferno que agora se joga a toda a nossa volta? Estão a ver bem que trémula que já se tornou a noção da democracia, quando num total de 27 países há quatro que votam contra a continuação do apoio da União Europeia à Ucrânia e toda a gente faz disso uma grande desgraça, como se fosse obrigatório votar em bloco, ao melhor estilo ditatorial? Num mundo destes, as questões de princípios não poderiam ser mais importantes. O respeito tem que começar a ser ensinado nas escolas. Anteontem, no fim de uma explicação, disse a um miúdo de catorze anos que teve a lata de me fazer perguntas muito ordinárias sobre a minha vida amorosa[13] que, antes de mais nada, ele nunca deveria ter podido fazê-las estritamente por uma questão de respeito, e ele recuou um passo, abriu muito os olhos, respirou fundo, e acabou por perguntar,

    O que é uma questão de respeito?

    Ainda por cima, não esqueçamos que o mundo sempre foi assim desde que temos registos da actividade humana. Os jardins de Shangri-La sempre estiveram à mercê de vandalismos sacralizados no intervalo entre duas batalhas sanguinolentas travadas no âmbito de uma guerra interminável com uma tendência raivosa para rebentar em nome de um deus qualquer, ou mesmo, pura e simplesmente, em nome de formas diferentes de venerar o mesmo deus – é ver como isso abunda desde que os gregos cilindraram os troianos, desde que os vikingues invadiram a Mongólia, desde que os hunos desceram até França, desde que Hypatea de Alexandria foi lapidada por uma turbamulta de cristãos em puro estado de histeria porque preferia a Filosofia à Religião, desde que Henrique VIII mandou decapitar o seu grande amigo Thomas More apenas porque ele se recusou a tornar-se anglicano e a sua filha Maria Tudor mandou cinco mil súbditos para a fogueira apenas porque eles se mantinham protestantes em vez de se converterem ao catolicismo, enfim – é rememorar todos estes lugares-comuns, mais todas as actividades diabólicas dos condutores de seitas como a dos seiscentos americanos que o reverendo Jones levou consigo para a Guiana em pleno século XX para lhes ordenar que se suicidassem em massa depois de envenenarem em massa, ordem que a seita acatou com tanta limpeza como a das meninas apaixonadas por Charlie Mason que esfaquearam a Sharon Tate, é eu contar-vos que aos dezanove anos, ao fim de três semanas, o meu filho mais velho fugiu aterrorizado da sua primeira experiência de vida independente com mais outros três rapazes num apartamento para os lados das Amoreiras porque eles passavam a noite inteira a meter linhas de coca enquanto viam na TV-Cabo programas sobre os Illuminati e sobre as seitas Satânicas, é deixar o puto dormir uma noite na cama da Mãe para conseguir dormir mesmo, é voltar a embalá-lo como dantes, engolir em seco, e recordar, uma vez mais, que a humanidade tem uma face lunar que quanto menos a gente tiver que ver melhor.

    banknote

    O pior é que, em tempos como este, temos que vê-la todos os dias.

    E o condutor de seita diabólica mais diabólico de todos é, sem dúvida, o Donald Trump.

    Se me disserem que Putin é um ditador bastante mais aflitivo do que Trump, e que, muito provavelmente, a sua longa escola no KGB lhe permite ter hoje em dia uma boa metade do mundo na mão, eu concordo incondicionalmente. Qualquer psicanalista que proponha a tese de Putin ter passado a infância a sonhar que havia de ser um novo czar de uma nova Grande Mãe Rússia está certamente cheio de razão, e qualquer geoestratega que acrescente que ainda por cima o cabrão conseguiu mesmo alçar-se exactamente a essa posição ainda completa melhor a composição. E por aí fora, devido a várias outras palavras acabadas em mente, tais como folha, automóvel, e paraquedista. Putin é o veneno russo personificado, é possível que daqui a uns anos seja o dono de nós todos e também da TAP, e tudo isto se vê bem e se entende muitíssimo bem.

    O que torna Trump incomparavelmente mais diabólico que Putin é que ele já é o dono de nós todos e também da EDP, mas, como as suas manobras foram congeminadas nas sombras que se escondiam por trás da luz dos dois mandatos Obama, e ainda por cima o gajo é bruto que nem uma porta e um consumado bandido que se orgulha da sua esperteza que lhe permitiu não pagar um cêntimo de impostos durante vários anos seguidos e ao ser desmascarado pelos democratas transforma essa esperteza num slogan de campanha[14], nada do que lhe diz respeito se vê bem ou se entende bem.

    A única coisa que se vê muito bem é que há cada vez mais dirigentes espirituais no mundo inteiro que vêem em Trump o modelo perfeito de indecência e brutalidade a seguir por forma a capturar o entusiasmo de todo o lixo dos seus países – e levem a taça que isto até Jesus sabia, qualquer país é uma lixeira infecta à espera de ter condições para cobrir todo o terreno livre à sua volta. Depois abrirá as portas às hienas e às gaivotas, esta nova fauna mantém o lixo controlado com muito prazer, e nós umas vezes somos necessários para limpar o chão de um novo arranha-céus na Malásia e outras vezes somos absolutamente descartáveis. O que já não somos, quando chegar a hora, é donos do nosso destino. E ainda bem. Quem é que quer ter que pensar no seu destino?

    Que neura.

    man in white and blue hat

    O nosso destino, para falar bem e depressa e inequivocamente, é sempre muita mau.

    Ainda por cima – e este desastre inacreditável Trump já conseguiu semear como sizânia pelas sete partidas do mundo – já nenhum povo acredita na fiabilidade do sistema eleitoral do seu próprio país. Com este horrível presente envenenado já a extrema-direita americana conseguiu minar o chão que a humanidade ainda vai tentando pisar para sair da lixeira. Não adianta. As notícias são todas falsas e os votos foram todos manipulados, portanto a democracia nem sequer existe a não ser nos tais supracitados e muito louvados romances russos onde se aprendem todos os segredos do funcionamento do Mal.

    E nós, os discípulos, já nos tornámos melhores do que os mestres.

    Até convivemos fraternalmente com as hienas.

    Somos o futuro.

    Deixem-nos passar.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Isto agora é mesmo assim, havendo um partido de extrema-direita que concorra a qualquer eleição já nem se faz trabalho de casa: é evidente que essa eleição será falsificada, e que, consequentemente, esse partido vai ganhar.

    [2] A ter que escolher uma única explicação para o controlo do movimento de rotação da Terra, eu por mim prefiro a de Isaac Newton, que atribuiu esse controlo ao trabalho árduo, constante, e seriamente matemático dos anjos. Este controlo explicava imensas passagens estranhas das Escrituras através de diversas operações de cálculo baseadas em geometrias que devem ter feito do Pitágoras o morto mais feliz do mundo.

    [3] Sobre este, Newton preferiu nem se pronunciar. Cerca de setenta anos antes, o luterano Johannes Kepler, que estava em Praga a fazer os horóscopos diários do Imperador católico Rudolfo da Baviera, já tinha estragado a festa a toda a gente quando percebeu que as posições irregulares dos planetas enquanto giravam em torno do sol se devia ao facto de as suas órbitas não serem esféricas, como sempre se pensara, mas antes elípticas. O próprio Kepler odiou este resultado, e foi muito claro a esse respeito quando o publicou “por respeito para com Filosofia”. A esfera é o símbolo da perfeição. A elipse é o símbolo de tudo quanto é caótico e ficou para sempre inacabado.

    [4] Ou queira parecer que dá, um apetite que já não serve nem para vender jornais, mas serve sempre para aumentar ainda mais a confusão.

    [5] Nem que mais não seja, porque é bastante mais fácil berrar do que reflectir. Mas isto é só a base antiquíssima por onde começa a história de todas as tragédias humanas, incluindo aquelas que nos são relatadas minuciosamente por Diogo do Couto, João Baptista Lavanha, e Francisco Vaz d’Almada, nas HISTÓRIAS TRÁGICO-MARÍTIMAS. Muito berra toda aquela gente. Às  vezes, como no caso da Grande Nau Santo Alberto, berra e morre afogada com a terra ali mesmo à vista. Mas como chegar a terra, por muito bem que ela se visse? Lá está – haveria que reflectir. Já agora, também haveria que ter reflectido antes de desobedecer sistematicamente às ordens da Coroa e não fazer qualquer espécie de manutenção nas Grandes Naus da Carreira das Índias durante todo o tempo em que elas estavam aportadas em Goa. Enfim. Banalidades.

    [6] Estava ali para falar dos benefícios e malefícios da Reprodução Medicamente Assistida, por causa do livro escrito em co-autoria com o Scott Gilbert FEAR, WONDER, AND SCIENCE, que ia ser publicado em breve pela Columbia University Press. Por acaso estudei criteriosamente a energia nuclear durante o meu curso de Biologia, sei por razões muito sérias que é a pior solução possível para toda e qualquer crise e das energéticas quanto menos se falar melhor, e claro que me apeteceu vituperar tudo isto – mas não competia a nenhum dos convidados interromper brutalmente o moderador.

    [7] Talvez o Henrique ainda tenha essa série, ou saiba onde ela está. O tema é intemporal. Lembro-me de termos começado o primeiro artigo incitando o leitor a ler mesmo, com a seguinte promessa: “Pode ler tudo até ao fim descansado. Verá que não falaremos de passarinhos nem uma única vez.” E, se bem prometemos, melhor cumprimos.

    [8] Não sei se isto, à época, ficou suficientemente claro em Portugal, mas nunca tinha existido qualquer espécie de SNS na América. Quarenta milhões de americanos sem dinheiro para comprarem o seu próprio Seguro de Saúde bem podiam esticar o pernil diante das Urgências dos Hospitais, que todos aqueles médicos, com todos os seus Juramentos Hipocráticos, nem sequer olhavam para a porta: sem Seguro de Saúde, ninguém podia entrar num hospital americano. Antes do Obamacare entrar em efeito no Massachusetts, precisei de fazer um exame mesmo chato, uma punção espinal, e nem queria acreditar: despacharam-me sem anestesia logo ali na Urgência, para eu poder voltar para casa pelo meu pé assim que os analgésicos começassem a fazer efeito. O Seguro que a Universidade proporcionava aos Professores Estrangeiros não pagava cá mordomias tais como refeições e internamentos.

    [9] Durante oito anos, antes de Trump começar a construir a vergonha do Muro e a separar as suas famílias, aquelas pessoas foram os dreamers. Os estudantes universitários que falavam inglês conseguiram chegar ao ambicionado Cartão Verde. A prazo, há de permitir-lhes naturalizarem-se, e, a seguir, chamar pais e filhos. Desde que a Duck Dynasty fique onde está a matar patos.

    [10] Conseguiu regularizar tantas, de forma tão hábil, que ainda hoje não há percentagens. Percentagens sérias implicariam que seria fácil desencadear progroms sérios. Há coisas que os negros americanos sabem melhor do que ninguém.

    [11] E melhor. A maioria dos americanos desconhece o sabor da fruta e dos legumes. E nunca bebeu água na vida.

    [12]Cuidado, Casa Branca, aqui vou eu!”

    [13] Amorosa é como quem diz. Eu com 68 anos e o menino a fazer-me perguntas sobre a minha vida sexual. A parte mais desastrosa é que o Josué não estava, com toda a evidência, minimamente consciente da sua própria ordinarice e das razões óbvias que tornavam aquelas perguntas inaceitáveis.

    [14]Yes, America! Can you hear me! I didn’t pay taxes! THAT PROVES THAT I’M SMART!” A audiência levanta-se a aplaude-o de pé. Milhões de pessoas orgulham-se da esperteza do seu dirigente espiritual. A gente nunca viu nada assim e sente a cabeça a andar à roda.

  • Nunca acordes o gato que dorme

    Nunca acordes o gato que dorme

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    O outro grande estrago que Donald Trump legou ao seu país foi o apadrinhamento silencioso da invasão do Capitólio por fundamentalistas da supremacia branca, todos eles demasiadamente armados e todos eles igualmente parvos. Ao encorajar confrontos físicos e perigosos dentro do berço da democracia americana, o presidente recém-deposto deu a todo o seu vasto eleitorado da DUCK DINASTY uma lição inesquecível de mau perder.


    Então, e antes de mais nada, o que vem a ser a tal de DUCK DINASTY? Tenho a impressão de que todos vocês dormiriam mais descansados se não soubessem nada disto, mas aqui vai.

    A DUCK DINASTY é um reality show que já dura há uns bons vinte anos, e que aparece com frequência na capa das revistas que se interessam por reality shows, o que quer dizer que é um reality show extremamente popular, muito embora esteja restrito aos canais da televisão por cabo. Mostra-nos a história de uma família enorme, que vive em meia dúzia de trailers num pântano do Louisiana a que chamaram seu sem pedir autorização a ninguém. Claro que o governo do Louisiana já deu pela sua ocupação selvagem, mas, e sobretudo enquanto eles são os heróis de um reality show de grande audiência que apareceu em massa nas revistas a dizer que ia votar no Trump – quem é que lhes vai à cara? Quem é que dá início à Guerra Civil que tanta gente teme?

    Não, nós não.

    Deixem-nos ser um emblema tresmalhado do Louisiana e filmem bem a beleza dos nossos pântanos[1].

    E quem são, exactamente, estas pessoas tão perigosas?

    Há uns avós de cabelo muito comprido e T-shirts psicadélicas, verdadeiros DEAD HEADS[2], que dão aos mais novos uns conselhos que nos dão vontade de estraçalharmos logo ali a televisão para não termos que ouvir mais.

    Os homens têm barbas de ZZTOP[3], uma bandana à volta da testa, camuflados, armas bem à vista, e botas da tropa. Passam o dia a caçar patos[4], daí o nome da série.

    As mulheres são loiras, gordas, andam de fato de treino e botas da tropa, e passam o dia a cortar cupons de desconto no supermercado, depois do que vão ao supermercado gozar-se dos descontos a que têm direito – “viste bem aquela puta da caixa?” – “então era uma latina, como é que querias que entendesse o que é um cupon?”.

    E também há crianças que andam sem nexo por ali, e são dezenas delas, tantas que nem se percebe de quem é que são filhas, muito magrinhas, muito mal vestidas, todas de botas da tropa, as meninas com o cabelo loiro comprido demais, os miúdos com o cabelo loiro cortado com pente três; e estas crianças estão sempre a ter problemas na escola pelo que as mães têm que ir lá falar com os DTs, e a única coisa que podemos fazer é louvar a paciência de santos dos professores que as recebem.

    OK, esclareça-se o mistério e sejamos honestos: as botas da tropa devem-se ao facto de eles viverem num pântano. Mas é inegável que gostam. Existem botas melhores para lidar com a terra movediça dos pântanos.

    Quase toda esta gente vivia da Segurança Social, embora neste momento viva dos rendimentos da DUCK DINASTY.

    Pode ser por efeito de hipérbole, mas a verdade é que é toda esta gente que representa o eleitorado de Donald Trump.

    E portanto, quando Trump incitou os seus seguidores a terem o pior perder do mundo, e, em consequência, eles aprenderam a lição num instante e desembarcaram em DC prontos a fazer a democracia em estilhaços.

    Não sei se estão bem a ver, mas, para a DUCK DINASTY, aprender a ter mau perder é muito fácil.

    É uma lição muito apetecível with God on our side[5], e ainda por cima é agradável.

    O drama começa a seguir.

    Uma vez aprendida, já que não custa nada a aprender, esta lição transformou-se nas vassouras do APRENDIZ DE FEITICEIRO que se multiplicam sem intervenção humana, pelo que pode agora carregar no seu próprio replay de cada vez que se sentir ameaçada. Isto é o que faz os políticos americanos normais, tanto democratas como republicanos, serem tão cautelosos com a aprovação dos orçamentos: a curto prazo, aprova-se desde já todo o bom que seja inimigo do óptimo, porque ninguém quer acordar o gato que dorme.

    E vá lá, que enquanto for só um gato estamos nós muito bem.

    O que nenhum americano com dois dedos de testa quer, acima de tudo, é que o gato volte a transformar-se silenciosamente num tigre de dentes de sabre enquanto não está ninguém a controlá-lo.

    Toda a gente com responsabilidades políticas, incluindo os presidentes, pensava que sabia tudo sobre a longa vida das ervas daninhas, e sobre as duas cabeças da hidra que crescem onde quer que se corte apenas uma. Mas isso foi só até Trump chegar à Casa Branca, eleito por toda a massa iletrada dos supremacistas  brancos, que de formação só tinham o treino em carreiras de tiro e a frequência de uns quantos campos de sobrevivalismo, mas que nunca tinham votado antes. Feito isto, basta a presença do seu fantasma, arrastado num grande carnaval de conivências de um julgamento criminal para outro onde está sempre um microfone aberto e incondicional à sua espera, para levar quase instantaneamente a grandes crises sem precedentes da História americana, como a demissão, na passada semana, do Alto Representante da Câmara dos Representantes, onde os republicanos detêm a maioria.

    Este homem, como a maioria dos outros políticos, era um republicano bastante normal. Enquanto tal, deixou de conseguir continuar a segurar a barra[6] perante a gritaria dos republicanos minoritários, alinhados por trás do espantalho de Donald Trump exactamente como os portugueses saturados da disfuncionalidade partidária se alinham por trás do André Ventura. O homem não propõe solução nenhuma, mas ao menos está todos os dias no Parlamento a dizer que tudo isto tem de mudar e isso basta-nos. E certamente alguma razão há de ele ter, para conseguir aparecer nas notícias todos os dias, como acontece desde que o vimos aparecer pela primeira vez.

    Senhoras e senhores, façam barulho para o fundamentalismo populista que está na moda neste grande final do primeiro quarto do terceiro milénio.

    Continua.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu vi muitas vezes esses pântanos. Além de serem enormes, são de uma beleza que corta a respiração. Considerados área protegida, proíbem, obviamente, a instalação de trailers. Mas estes gajos representam o que América tem de pior. Ai é proibido? As proibições são para as ditaduras. Embora instalar os trailers, pessoal.

    [2] OS DEAD HEADS eram, inicialmente, os admiradores incondicionais dos GRATEFUL DEAD por causa de Jerry Garcia, a quem chamavam Captain Trips por causa dos seus solos incríveis de guitarra. Agora que Jerry morreu, continuam a seguir os GRATEFUL DEAD pelo prazer puro e simples de apupar furiosamente quem quer que seja que se atreva a pegar na guitarra por ele. Andam todos de cabelo comprido e de T-shirts psicadélicas. Não se lavam. Numa sala cheia de gente, reconhece-se bem o Dead Head que lá foi parar sabe Deus como.

    [3] Lembram-se, ao menos, desta banda? Capturou de tal forma o imaginário americano que até aparece nos filmes pornográficos. São três músicos de barba até ao umbigo e uma preferência estranha pelos instrumentos de sopro. Ainda mexem.

    [4] Como é evidente, não quer dizer que cacem todos os patos que tentam caçar. O falhanço no tiro proporciona-nos é minutos de palavrões e insultos como raramente se usam na vida normal. You cocksucker bastard!

    [5]Com Deus do nosso lado”: toda aquela gente diz isto quanto planeia os seus piores golpes. Depois não os executa, mas só o excitex…

    [6] Muito provavelmente, também ele estava implicado em qualquer coisa que permitia uma chantagem terrível por parte de Donald Trump, ou mesmo pelo seu chefe directo, o senhor Vladimir Putin.

  • Krakatoa

    Krakatoa

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.

    Lembram-se do Jair Bolsonaro?


    Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.

    Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.

    Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”

    Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.

    Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.

    Vamos lá, Jair, há prioridades.

    Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.

    Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.

    Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.

    a crowd of people walking down a street

    Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”

    Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.

    Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.

    Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.

    Red, Blue, and Green Parrot

    Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.

    E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?

    Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.

    BLACK LIVES MATTER?

    O que é isso?

    Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?

    Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.

    grayscale photo of rally

    Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.

    Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.

    Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”

    E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.

    Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.

    man in blue crew neck t-shirt wearing white mask

    Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?

    Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.

    Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?

    Separem as águas, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.

    [2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.

    [3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.

    [4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.

    [5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.

    [6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.

    [7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”

  • A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?

    A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?


    OK, é verdade. Não gosto de puxar nos galões, mas acredito na voz da experiência. Para o melhor e para o pior, eu passei vinte anos na América, fui casada com um cientista americano de quem ainda hoje sou muito amiga, e sei que o que eu quero contar-vos é mesmo como eu quero contar-vos. Querem voltar a dizer-me que os americanos são uns broncos ignorantes que passam todo o seu tempo livre a beber Budweiser e a comer demais usando apenas as mãos enquanto assistem aos jogos de baseball da televisão? Porreiro, podemos ir ainda mais longe. Os americanos são os cidadãos daquele país com trezentos milhões de habitantes em que 35 por cento da população é obesa e 75 por cento tem armas, e muitas dessas armas são semi-automáticas, como se alguém precisasse de uma AK47 para caçar veados. São os imbecis que nunca tiveram um passaporte na vida[1], uma vez que ninguém precisa de passaporte para ir ao Canadá comprar as suas bebidas por preços realmente competitivos, assim como não precisa dele para ir a Puerto Rico, ao Hawai passar uma semana de férias salutares pelo meio da neve dos seus Invernos. E não hesitam em dizer que preferem este tipo de férias porque “têm medo” de vir à Europa, e se nós perguntarmos porquê respondem logo, com toda a franqueza, “sei lá, toda a gente diz que aquilo é muito perigoso”.

    Tudo bem.

    Agora, querem ver-se ao espelho? Isto é tudo verdade, mas vamos lá com calma: nós podemos ter os passaportes cheios de carimbos de todos os lugares remotos do mundo que percorremos à boleia e com a mochila às costas, podemos ler muitos livros e falar muitas línguas, que isso não nos faz menos broncos ou menos ignorantes. E esta nossa nova cegueira nocturna não poderia ridicularizar-nos melhor: então agora tudo o que está a passar-se na política americana, em alguns casos pela primeira vez desde que a América existe, está a passar-se por causa da Ucrânia?

    Ai por favor, desculpem.

    Provincianos.


    Vai daqui um alerta sentido, tanto ao povo português como a toda a coorte de “comentadores”, “observadores”, “peritos”, e outras pessoas assim, que supostamente deviam explicar estas situações ao povo português. Detesto armar-me em boa e detesto fazer inimigos, mas francamente. Quando é que alguém aparece na televisão pública – ao menos – a explicar-nos com clareza que a guerra na Ucrânia é só um estrago colateral no triste contexto daquilo que está realmente a acontecer na América?

    Muito pelo contrário, e muito em concordância com o espírito importado do Halloween que vamos ter que aturar por estes dias,  até ao momento em que a Câmara dos Representantes fica sem Alto Representante, e assim sendo o governo deixa de ser governável… bem, não. Desculpem, vou repetir-me mas há que martelar bem estas sílabas. Isto a que temos assistido não tem a ver com o apoio americano à guerra na Ucrânia.

    blue and yellow striped country flag

    Tem a ver com os piores dos perigos que podem vir a ter que ser enfrentados em democracia.

    A demissão do Senador McCarthy, e tudo o que aconteceu antes que não lhe deixou outra saída, faz antes parte de uma crise da política interna americana que entrou em rota de colisão consigo própria desde que o Colégio Eleitoral deu a vitória a Donald Trump depois de Hillary Clinton ter ganho as eleições pelo voto popular.

    Aliás, aconteceu exactamente o mesmo na corrida de Al Gore contra George W. Bush, portanto já sabemos que estas vitórias por uma unha negra são perigosíssimas. Gore teve a maioria popular, Bush foi eleito pelo Colégio. Sempre que as margens de êxito são assim tão frágeis, as democracias precisam de um amor e carinho muito especiais para não irem ao fundo. Infelizmente, “amor e carinho” não é linguagem que um, republicano americano entenda. George W. decidiu invadir o Iraque, e, em consequência, deixou-nos um Mundo em que o Califato degolava as pessoas em directo e ao vivo correndo pelo deserto em tanques americanos e a Arábia Saudita usava recursos americanos para eliminar do mapa um povo inteiro no pesadelo da Guerra do Iémen.

    Depois de tudo isto, ainda houve o Afeganistão. Que ideia foi aquela, se até a todo-poderosa URSS já tinha ido antes estampar-se naquelas montanhas inexpugnáveis[2]? Foi qualquer coisa, porque até o nosso homem Obama, por muito que tenha ganho o Nobel da Paz como incentivo, não conseguiu acabar com essa guerra, assim como não conseguiu cumprir uma das suas promessas eleitorais mais importantes e acabar mesmo com a prisão política de Guantánamo, muito embora tenha assumido a clarividência de dar a ver a todos os americanos, e aos povos do mundo inteiro, a realidade sobre o que lá se passava[3].

    people walking around white concrete building during daytime

    Toda a gente sabe que Donald Trump teve uma panóplia impressionante de consequências funestas sobre a democracia. De tudo o que fez mal no seu país, o pior ainda há de ter sido transformar a corrupção no novo normal da presidência americana – razão pela qual ainda não parou de andar de tribunal em tribunal em julgamentos horrorosos de falsificação de declarações de rendimentos e outros documentos oficiais entregues quando era presidente, em tribunais que devem ser tão corruptos como ele[4], porque nunca mais o mandam prender por forma a acabar de vez com este terrível drama de Shakespeare.  E a sua péssima influência estendeu-se, como se sabe, às democracias de todo o mundo – veja-se, entre muitos que poderiam agora vir à baila, o exemplo de Jair Bolsonaro, que decalcou todos os actos mais significativos da sua presidência do que entretanto ia acontecendo em Washington DC. E estes actos incluíram não lutar contra a pandemia até já ser tardíssimo, encorajar a destruição do Amazonas[5], e ver com bons olhos a invasão selvagem do Senado em Brasília depois de perder a Presidência para Lula da Silva.

    Claro que o pior acto destrutivo de Trump, no que diz respeito ao seu próprio país, não tem nada a ver com presidentes evangélicos corruptos de terceira categoria. Tem a ver, acima de tudo, com o que foi sempre, e desde sempre, aquele seu enorme fascínio pela figura inalcançável de Conde Drácula corporizada em Vladimir Putin. Se houve algum sentimento que Trump nunca disfarçou, desde o princípio da sua campanha eleitoral, foi o sentimento do menino pequeno, imediatamente antes de começarem as aulas, que quer desesperadamente vir a ser o melhor amigo do aluno mais cool lá da escola, aquele puto que manda em tudo e em todos, que aterroriza os professores, os pais, e a direcção, e que se chama Vladimir Putin.

    A bem da frutificação dessa amizade, que ao fim de quatro anos nunca chegou a dar qualquer espécie de fruto, Trump deixou a guarda avançada de Putin invadir os computadores americanos de forma nunca antes vista, por forma a manipular dados, falsificar estatísticas, difundir notícias falsas, e passar para o exterior uma imagem lamentável do soi-disantPaís Mais Poderoso do Mundo”. As alamedas que se abriram nessa altura continuam abertas, pelo que os Estados Unidos continuam expostos ao pior que há; mas ao menos agora os americanos sabem com o que é que estão a ter que viver e contam com isso todos os dias. É um grande rombo, mas ninguém pode acusar os americanos de não serem flexíveis.

    Silhouette of Statue Near Trump Building at Daytime

    São tão flexíveis que, entre escolher a presença desagradável de Hillary[6] e a loucura levada ao rubro de Trump, os habitantes de todos os trailer parks[7] apinhados de white trash[8], completamente fartos de nunca terem ninguém que falasse por eles, reconheceram “um dos nossos”, compareceram em peso nas urnas, e votaram em Trump.

    Mas atenção, que só lhe deram quatro anos – à experiência.

    Durante o período de experiência verificaram que o indivíduo não queria saber deles para nada, não podia ser mais insultuoso para com as mulheres esquecendo-se de que existiam mais mulheres do que homens no seu eleitorado, estava casado com uma modelo de sotaque balcânico que lhe deitava olhares de puro ódio, e, tanto quanto se percebia, o que realmente lhe importava naquela presidência era poder exibir-se a comer BigMacs com talheres de prata no seu jacto privado. Como é que um gajo vai MAKE AMERICA GREAT AGAIN[9] se não tem planos e só diz disparates?

    Motherfucker.

    Ao fim de quatro anos, perante todos os estragos do gajo, voltaram a passar a bola aos democratas e elegeram Joe Biden, que por seu turno escolheu Kamala Harris, uma mulher que é mestiça[10] e isso vê-se bem, para vice-presidente.

    Vocês podem nunca mais ter ouvido falar destes dois, mas é por todas as razões certas. É porque Biden, de facto, não gosta de gastar energias desnecessariamente, e fala baixo tanto quanto lhe é possível. Se lhe tem sido possível, so much the better[11]. É um democrata sólido e um político profissional com a vida inteira dedicada à causa. Os americanos não precisam de partilhar as convicções dele para classificarem a sua prestação enquanto excelente.

    a red hat that reads make america great again

    Toda a gente sabe que, em democracia, é muito difícil fazermos seja o que for exactamente como Joe Biden tem feito: de forma excelente.

    E, em democracia, isto da excelência mede-se mesmo ao nível traiçoeiro do preso por ter cão e preso por não ter. A maioria absoluta do Partido Socialista de António Costa, e a maneira como as suas hienas têm vindo a devorar os cadáveres que as águias de cabeça branca e os leões de Sofala[12] deixam atrás de si, recorda-nos, todos os dias, que é quase impossível um partido sentar-se no poder com uma maioria absoluta e não resvalar tão depressa quanto possível para o abuso desavergonhado do poder[13].

    Por o outro lado, os confins estreitos da organização política americana, inventados há dois séculos pelos Founding Fathers para impedir todo e qualquer abuso de poder na Pátria da Livre Iniciativa, complicam a vida dos políticos até os deixarem atados de pés e mãos. O Governo está dividido entre dois órgãos separados, o Senado e a Câmara de Representantes, e ambos precisam de, simultaneamente, satisfazer o seu eleitorado e dar satisfações ao Presidente. Neste momento, o Senado está sob um controlo mínimo dos democratas, enquanto que a câmara dos representantes está sob um controlo mínimo dos republicanos. E isto quer dizer que ambas as facções têm que ser capazes de negociar compromissos uma com a outra antes de entrarem sequer em qualquer género de negociação com o Presidente.

    Isto foi tudo desenhado friamente a régua e esquadro para proteger a democracia e estimular a maturidade daqueles que a representam perante o povo americano, e muitos parabéns. Com maturidade de ambos os lados, seria um belíssimo conceito.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    O drama é que estamos a viver num Mundo em que, já de si, a maturidade não existe em lado nenhum do Planeta porque as pessoas a deixaram todas em casa, muito bem escondida por detrás da internet. E, entre os republicanos americanos, a maturidade deixou de existir desde que o white trash pôs Donald Trump no poder e exigiu – aos berros, com chapéus de Daniel Boone, e de armas na mão – que ninguém tentasse, nunca mais, mandar nele ou exigir-lhe o pagamento de impostos, ou tirar-lhe a carta de condução por violação repetida e furiosa do limite de velocidade. Estas pessoas não exigem muito mais porque nunca estudaram e não pensam assim tanto como isso, mas são extremamente raivosas em relação àquilo que exigem. Vim para esta cidadezinha criar os meus filhos, portanto – quem é que falsificou as eleições, para de repente o presidente da Câmara ser negro, quando nós já dissemos tantas vezes que não queremos cá negros?

    Adenda: nem negros em particular nem estrangeiros em geral, estão a ouvir-nos, hey, DC? Mais uma pessoa morena com um sotaque esquisito e eu puxo da minha Beretta. Sou mãe solteira de quatro filhos loiros, e todos eles vêm treinar comigo à carreira de tiro aos sábados de manhã. A Ruth só tem cinco anos? E então? Sabe abrir as pernas para se equilibrar melhor, agarrar na Magnum 38[14] com as duas mãos para não disparar para cima com o coice, e acerta nos alvos tão bem como os irmãos mais velhos. Temos que estar preparados. Holy shit, a América não é dos estrangeiros. Take a good look at us, you stranger. Somos o artigo genuíno. O say does that star-spangled banner still wave[15]

    Depois de tudo isto, e com esta base eleitoral toda ainda aos berros, os republicanos não têm grande escolha. Podem não ter nada a ver com aquilo, mas não podem ignorar que aquilo existe. Podem perder todo o seu eleitorado de um dia para o outro se escolherem olhar para o outro lado e seguir em frente como dantes, porque a fragilidade da direita americana, depois de chegar a este ponto, nunca mais desceu deste ponto – e chama-se a isto a Força da Inércia, e é uma Lei da Física, e nenhum mero mortal consegue modificar uma Lei tão abrangente como a Lei da Gravitação Universal[16]. Dá a ideia de que basta um toque e a Terra salta mesmo do seu eixo. Vive-se no medo, e as decisões de McCarthy durante esta última semana são o espelho perfeito disso mesmo. O que é que eu devo fazer para não ficar sem o poder?

    I voted #USelections2020

    É por isso que, quando Donald Trump diz aos seus fanáticos que bloqueiem a guerra na Ucrânia uma vez que tem por Putin uma idolatria sem limites[17], eles se atirem à tarefa com unhas e dentes e cheguem ao ponto de chamar “traidor” ao Presidente, até que a manutenção do financiamento à Ucrânia, já aprovada antes deste Cheque ao Rei, tenha que saltar fora até ao Thanksgiving para existir um qualquer orçamento que assegure a viabilidade dos Estados Unidos.

    Entretanto, Biden declarou, com todas as letras, que ia tratar com o financiamento à Ucrânia “separadamente”.

    Em última análise, o Presidente dos Estados Unidos tem sempre uma caneta de tinta permanente que lhe permite aprovar sozinho toda a legislação e orçamento que muito bem entender.

    E é verdade, pelo menos no que toca aos Estados Unidos a democracia é um jogo a doer.

    Consegue ser ainda mais violenta do que o Futebol Americano propriamente dito.

    E, de facto, não há grande coisa nesta triste história que tenha realmente a ver com a Ucrânia.

    Mas a história continua, uma vez que faltam aqui vários capítulos.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A estatística ainda não mudou desde que eu fui trabalhar no meu doutoramento para Buffalo, NY, em 1989: só 10% dos americanos possuem passaportes.

    [2] Ainda alguém se lembra do filme RAMBO IV, o último da série RAMBO? Passa-se no Afeganistão, onde os maus estão escondidos algures entre os ocupantes soviéticos. Depois de uma quantidade sedativa de cenas intermináveis de porrada, e de alguns beijos trocados com a heroína local, o filme acaba com Silvester Stallone a galopar sem sela no meio da tribo afegã com quem tem lutado, enquanto um lápis mágico vai escrevendo sobre a imagem, a tinta dourada, “a equipa de RAMBO IV agradece e encoraja o corajoso povo afegão que continua a lutar pela sua liberdade face ao invasor soviético.” QUE VERGONHA, não é? Mas é a História. Como está sempre a repetir-se, torna-se frequentemente uma grande vergonha.

    [3] Eu estava lá a viver nessa altura, e aqueles primeiros dias depois de aparecerem na televisão as primeiras imagens de Guantánamo são inesquecíveis. As pessoas mal olhavam umas para as outras na rua. Os americanos têm-se em tão alta estima que não suportaram ver-se a torturar um único perigoso talibã que fosse. Transformaram logo a palavra “tortura” nas duas palavras “interrogatório intensivo.” Ficaram com a consciência tão tranquila que ainda hoje me pedem, se acham que estou a fazer-lhes demasiadas perguntas, “oh, Clarinha, please, stop waterboarding me!” Claro que o Peter, do FAMILY GUY, já interrogou intensivamente o Brian através de waterboarding. Estavam à espera de quê? Não há mais ninguém como eles, em matéria de golpe de rins.

    [4] EU NÃO SEI, nem ninguém sabe. Donald Trump está a ser julgado em 34 processos-crime diferentes movidos por muitos tribunais diferentes; e, mesmo nos Estados Unidos, a Justiça não pode deixar de ser minimamente lenta para ser maioritariamente fiável. É só que já toda a gente está traumatizada e começa a ver corrupções em toda a parte – e, à custa destes processos, o senhor tem agarrado no microfone a bem dizer em todos os dias úteis do último ano.

    [5]Ora, ora! Se querem que eu proteja a Amazónia, então paguem-me para isso!” Poucas vezes ouvi uma coisa assim tão boçal e assustadora. E atenção, que eu sei o que digo. Claro que me lembro do Dr. Salazar, mas francamente. Salazar, ao menos, não era boçal – e era um ditador católico contrário ao Vaticano II, a braços com uma guerra colonial travada já fora de tempo, portanto podia ser o que muito bem lhe apetecesse sem incorrer em riscos tão estúpidos como o de perder eleições.

    [6] Mandar a Hillary Clinton para a frente depois de já ter perdido contra um negro que ninguém conhecia e que se chamava Barak Obama e isto nem sequer é um nome normal, ainda por cima numas eleições de solução tão dramática como estas, deve ter sido o maior tiro no pé alguma vez registado nos anais da democracia americana. O pessoal tem várias óptimas razões para não gostar dela. Eu também não gosto. Hei de falar mais sobre o assunto quando vier ao caso.

    [7] Parques de estacionamento de casas em atrelados, conhecidas como Recreational Vehicules, que de recreational só têm o nome.

    [8] Pessoas brancas que são autêntico lixo. Caracteristicamente gordas, mal vestidas, de cabelo oleoso e com a pele maltratada, sempre aos berros, sempre a beber cerveja, sempre a arrotar, e sempre a fumar, num país onde já mais ninguém fuma. A Kim Basinger fez o papel de uma destas pessoas no filme biográfico 8 MILE, que conta a história da subida ao estrelato do Eminem. Sempre no seu trailer a cortar cupons de desconto dos jornais, sempre a calar-se enquanto o namorado manda vir, sempre a beber cerveja, veste a pele de mãe do Eminem. ALÔ? A KIM BASINGER? A fazer de white trash? E depois quem é que explicava aos meus filhos porque é que mais de metade das rimas do Eminem são a dizer mal da mãezinha?

    [9]FAZER A AMÉRICA GRANDE OUTRA VEZ”, era o slogan da primeira corrida de Trump para a Casa Branca. Comentário dos galinheiros, onde o mexilhão é o mesmo em todo o mundo: “Ora ora, à primeira qualquer um cai.”

    [10] Tretas. “Mestiça” digo eu, tendo em conta a sua ascendência maioritariamente caribenha. Os americanos, muito mais directos, limitam-se a dizer que ela é “preta.”

    [11] Qualquer coisa como “pois então ainda bem,” mas em inglês a expressão é bastante mais enfática.

    [12] Sobre a escolha criteriosa destas águias e destes leões: para cada uma das raças, são os maiores do mundo.

    [13] José Sócrates e os seus necrófagos também nos deixaram uma memória extremamente amarga disto mesmo, mas ao menos, no tempo de Sócrates, tanto o chefe como os boys and girls se preocupavam mais com a questão de esconder o jogo. Agora mostram-nos tudo. E ainda ficam a rir depois de desligadas as câmaras.

    [14] Puro romantismo. Era a arma do Dirty Harry.

    [15] Início da última quadra do hino nacional dos Estados Unidos.

    [16] Por alguma razão raciocinou Isaac Newton que a Força da Gravidade era a face visível de Deus. E todo o Século das Luzes concordou com ele, numa euforia de optismo sem precedentes na civilização ocidental.

    [17] Claro, ou é por isto mesmo – o que já seria suficientemente grave – ou é porque Putin está de posse de documentação relativa a Donald Trump de tal forma incriminatória de Crimes Contra a Pátria, e outros, que faz dele o que muito bem lhe apetece – o que, a confirmar-se, seria deveras horrível. Em qualquer uma das duas versões da narrativa, Trump já é bastante pior do que Richard Nixon, uma vez que já é culpado de tirar todo o seu país do sério. E o seu país é muito grande e muito poderoso, mas não é a guerra na Ucrânia.

  • Agora que já não há pobres…

    Agora que já não há pobres…

    Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

                    Jorge de Sena

    ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)


    Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.


    A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.

    Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.

    A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.

    Mas são assim tão caras, essas viagens?

    Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…

    Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?

    Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.

    Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:

    Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.

    Desculpem.

    AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?

    AGORA???

    Mas esta gente vive em que mundo?

    Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.

    Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.

    O raio que os parta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.

    [2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.

    [3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.

    [4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.

    [5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.

    [6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela  – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.

    [7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?

  • A gaja interessante

    A gaja interessante

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5


    Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.


    Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.

    E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.

    Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.

    Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.

    E é tudo.

    Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].

    E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.

    Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.

    Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?

    E eu?

    E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.

    CPC descoberta pelos nossos paparazzi a frequentar um curso de bonobo.

    E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?

    É que uma fêmea farta-se.

    A sério.

    Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!

    O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.

    Eh pá, se estas escadas falassem.

    Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.

    A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”

    Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].

    No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.

    São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.         

    Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?

    Pus-me à escuta.

    E aquilo ouvia-se bem.

    Atão mas ela é uma puta?

    Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.

    Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”

    E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.

    Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.

    (fim)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.

    [2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.

    [3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…

    [4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.

    [5] As fêmeas do Pongo borneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.

    [6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.

    [7] O Desmodus rotundus é o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?

    [8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.

    [9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.

    [10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.

    [11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?