Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • Krakatoa

    Krakatoa

    A democracia é o pior dos regimes políticos

    À excepção de todos os outros.

    Winston Churchill


    Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.

    Lembram-se do Jair Bolsonaro?


    Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.

    Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.

    Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”

    Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.

    Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.

    Vamos lá, Jair, há prioridades.

    Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.

    Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.

    Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.

    a crowd of people walking down a street

    Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”

    Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.

    Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.

    Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.

    Red, Blue, and Green Parrot

    Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.

    E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?

    Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.

    BLACK LIVES MATTER?

    O que é isso?

    Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?

    Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.

    grayscale photo of rally

    Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.

    Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.

    Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”

    E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.

    Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.

    man in blue crew neck t-shirt wearing white mask

    Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?

    Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.

    Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?

    Separem as águas, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.

    [2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.

    [3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.

    [4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.

    [5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.

    [6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.

    [7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”

  • A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?

    A guerra na Ucrânia explica tudo! Será que explica mesmo?


    OK, é verdade. Não gosto de puxar nos galões, mas acredito na voz da experiência. Para o melhor e para o pior, eu passei vinte anos na América, fui casada com um cientista americano de quem ainda hoje sou muito amiga, e sei que o que eu quero contar-vos é mesmo como eu quero contar-vos. Querem voltar a dizer-me que os americanos são uns broncos ignorantes que passam todo o seu tempo livre a beber Budweiser e a comer demais usando apenas as mãos enquanto assistem aos jogos de baseball da televisão? Porreiro, podemos ir ainda mais longe. Os americanos são os cidadãos daquele país com trezentos milhões de habitantes em que 35 por cento da população é obesa e 75 por cento tem armas, e muitas dessas armas são semi-automáticas, como se alguém precisasse de uma AK47 para caçar veados. São os imbecis que nunca tiveram um passaporte na vida[1], uma vez que ninguém precisa de passaporte para ir ao Canadá comprar as suas bebidas por preços realmente competitivos, assim como não precisa dele para ir a Puerto Rico, ao Hawai passar uma semana de férias salutares pelo meio da neve dos seus Invernos. E não hesitam em dizer que preferem este tipo de férias porque “têm medo” de vir à Europa, e se nós perguntarmos porquê respondem logo, com toda a franqueza, “sei lá, toda a gente diz que aquilo é muito perigoso”.

    Tudo bem.

    Agora, querem ver-se ao espelho? Isto é tudo verdade, mas vamos lá com calma: nós podemos ter os passaportes cheios de carimbos de todos os lugares remotos do mundo que percorremos à boleia e com a mochila às costas, podemos ler muitos livros e falar muitas línguas, que isso não nos faz menos broncos ou menos ignorantes. E esta nossa nova cegueira nocturna não poderia ridicularizar-nos melhor: então agora tudo o que está a passar-se na política americana, em alguns casos pela primeira vez desde que a América existe, está a passar-se por causa da Ucrânia?

    Ai por favor, desculpem.

    Provincianos.


    Vai daqui um alerta sentido, tanto ao povo português como a toda a coorte de “comentadores”, “observadores”, “peritos”, e outras pessoas assim, que supostamente deviam explicar estas situações ao povo português. Detesto armar-me em boa e detesto fazer inimigos, mas francamente. Quando é que alguém aparece na televisão pública – ao menos – a explicar-nos com clareza que a guerra na Ucrânia é só um estrago colateral no triste contexto daquilo que está realmente a acontecer na América?

    Muito pelo contrário, e muito em concordância com o espírito importado do Halloween que vamos ter que aturar por estes dias,  até ao momento em que a Câmara dos Representantes fica sem Alto Representante, e assim sendo o governo deixa de ser governável… bem, não. Desculpem, vou repetir-me mas há que martelar bem estas sílabas. Isto a que temos assistido não tem a ver com o apoio americano à guerra na Ucrânia.

    blue and yellow striped country flag

    Tem a ver com os piores dos perigos que podem vir a ter que ser enfrentados em democracia.

    A demissão do Senador McCarthy, e tudo o que aconteceu antes que não lhe deixou outra saída, faz antes parte de uma crise da política interna americana que entrou em rota de colisão consigo própria desde que o Colégio Eleitoral deu a vitória a Donald Trump depois de Hillary Clinton ter ganho as eleições pelo voto popular.

    Aliás, aconteceu exactamente o mesmo na corrida de Al Gore contra George W. Bush, portanto já sabemos que estas vitórias por uma unha negra são perigosíssimas. Gore teve a maioria popular, Bush foi eleito pelo Colégio. Sempre que as margens de êxito são assim tão frágeis, as democracias precisam de um amor e carinho muito especiais para não irem ao fundo. Infelizmente, “amor e carinho” não é linguagem que um, republicano americano entenda. George W. decidiu invadir o Iraque, e, em consequência, deixou-nos um Mundo em que o Califato degolava as pessoas em directo e ao vivo correndo pelo deserto em tanques americanos e a Arábia Saudita usava recursos americanos para eliminar do mapa um povo inteiro no pesadelo da Guerra do Iémen.

    Depois de tudo isto, ainda houve o Afeganistão. Que ideia foi aquela, se até a todo-poderosa URSS já tinha ido antes estampar-se naquelas montanhas inexpugnáveis[2]? Foi qualquer coisa, porque até o nosso homem Obama, por muito que tenha ganho o Nobel da Paz como incentivo, não conseguiu acabar com essa guerra, assim como não conseguiu cumprir uma das suas promessas eleitorais mais importantes e acabar mesmo com a prisão política de Guantánamo, muito embora tenha assumido a clarividência de dar a ver a todos os americanos, e aos povos do mundo inteiro, a realidade sobre o que lá se passava[3].

    people walking around white concrete building during daytime

    Toda a gente sabe que Donald Trump teve uma panóplia impressionante de consequências funestas sobre a democracia. De tudo o que fez mal no seu país, o pior ainda há de ter sido transformar a corrupção no novo normal da presidência americana – razão pela qual ainda não parou de andar de tribunal em tribunal em julgamentos horrorosos de falsificação de declarações de rendimentos e outros documentos oficiais entregues quando era presidente, em tribunais que devem ser tão corruptos como ele[4], porque nunca mais o mandam prender por forma a acabar de vez com este terrível drama de Shakespeare.  E a sua péssima influência estendeu-se, como se sabe, às democracias de todo o mundo – veja-se, entre muitos que poderiam agora vir à baila, o exemplo de Jair Bolsonaro, que decalcou todos os actos mais significativos da sua presidência do que entretanto ia acontecendo em Washington DC. E estes actos incluíram não lutar contra a pandemia até já ser tardíssimo, encorajar a destruição do Amazonas[5], e ver com bons olhos a invasão selvagem do Senado em Brasília depois de perder a Presidência para Lula da Silva.

    Claro que o pior acto destrutivo de Trump, no que diz respeito ao seu próprio país, não tem nada a ver com presidentes evangélicos corruptos de terceira categoria. Tem a ver, acima de tudo, com o que foi sempre, e desde sempre, aquele seu enorme fascínio pela figura inalcançável de Conde Drácula corporizada em Vladimir Putin. Se houve algum sentimento que Trump nunca disfarçou, desde o princípio da sua campanha eleitoral, foi o sentimento do menino pequeno, imediatamente antes de começarem as aulas, que quer desesperadamente vir a ser o melhor amigo do aluno mais cool lá da escola, aquele puto que manda em tudo e em todos, que aterroriza os professores, os pais, e a direcção, e que se chama Vladimir Putin.

    A bem da frutificação dessa amizade, que ao fim de quatro anos nunca chegou a dar qualquer espécie de fruto, Trump deixou a guarda avançada de Putin invadir os computadores americanos de forma nunca antes vista, por forma a manipular dados, falsificar estatísticas, difundir notícias falsas, e passar para o exterior uma imagem lamentável do soi-disantPaís Mais Poderoso do Mundo”. As alamedas que se abriram nessa altura continuam abertas, pelo que os Estados Unidos continuam expostos ao pior que há; mas ao menos agora os americanos sabem com o que é que estão a ter que viver e contam com isso todos os dias. É um grande rombo, mas ninguém pode acusar os americanos de não serem flexíveis.

    Silhouette of Statue Near Trump Building at Daytime

    São tão flexíveis que, entre escolher a presença desagradável de Hillary[6] e a loucura levada ao rubro de Trump, os habitantes de todos os trailer parks[7] apinhados de white trash[8], completamente fartos de nunca terem ninguém que falasse por eles, reconheceram “um dos nossos”, compareceram em peso nas urnas, e votaram em Trump.

    Mas atenção, que só lhe deram quatro anos – à experiência.

    Durante o período de experiência verificaram que o indivíduo não queria saber deles para nada, não podia ser mais insultuoso para com as mulheres esquecendo-se de que existiam mais mulheres do que homens no seu eleitorado, estava casado com uma modelo de sotaque balcânico que lhe deitava olhares de puro ódio, e, tanto quanto se percebia, o que realmente lhe importava naquela presidência era poder exibir-se a comer BigMacs com talheres de prata no seu jacto privado. Como é que um gajo vai MAKE AMERICA GREAT AGAIN[9] se não tem planos e só diz disparates?

    Motherfucker.

    Ao fim de quatro anos, perante todos os estragos do gajo, voltaram a passar a bola aos democratas e elegeram Joe Biden, que por seu turno escolheu Kamala Harris, uma mulher que é mestiça[10] e isso vê-se bem, para vice-presidente.

    Vocês podem nunca mais ter ouvido falar destes dois, mas é por todas as razões certas. É porque Biden, de facto, não gosta de gastar energias desnecessariamente, e fala baixo tanto quanto lhe é possível. Se lhe tem sido possível, so much the better[11]. É um democrata sólido e um político profissional com a vida inteira dedicada à causa. Os americanos não precisam de partilhar as convicções dele para classificarem a sua prestação enquanto excelente.

    a red hat that reads make america great again

    Toda a gente sabe que, em democracia, é muito difícil fazermos seja o que for exactamente como Joe Biden tem feito: de forma excelente.

    E, em democracia, isto da excelência mede-se mesmo ao nível traiçoeiro do preso por ter cão e preso por não ter. A maioria absoluta do Partido Socialista de António Costa, e a maneira como as suas hienas têm vindo a devorar os cadáveres que as águias de cabeça branca e os leões de Sofala[12] deixam atrás de si, recorda-nos, todos os dias, que é quase impossível um partido sentar-se no poder com uma maioria absoluta e não resvalar tão depressa quanto possível para o abuso desavergonhado do poder[13].

    Por o outro lado, os confins estreitos da organização política americana, inventados há dois séculos pelos Founding Fathers para impedir todo e qualquer abuso de poder na Pátria da Livre Iniciativa, complicam a vida dos políticos até os deixarem atados de pés e mãos. O Governo está dividido entre dois órgãos separados, o Senado e a Câmara de Representantes, e ambos precisam de, simultaneamente, satisfazer o seu eleitorado e dar satisfações ao Presidente. Neste momento, o Senado está sob um controlo mínimo dos democratas, enquanto que a câmara dos representantes está sob um controlo mínimo dos republicanos. E isto quer dizer que ambas as facções têm que ser capazes de negociar compromissos uma com a outra antes de entrarem sequer em qualquer género de negociação com o Presidente.

    Isto foi tudo desenhado friamente a régua e esquadro para proteger a democracia e estimular a maturidade daqueles que a representam perante o povo americano, e muitos parabéns. Com maturidade de ambos os lados, seria um belíssimo conceito.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    O drama é que estamos a viver num Mundo em que, já de si, a maturidade não existe em lado nenhum do Planeta porque as pessoas a deixaram todas em casa, muito bem escondida por detrás da internet. E, entre os republicanos americanos, a maturidade deixou de existir desde que o white trash pôs Donald Trump no poder e exigiu – aos berros, com chapéus de Daniel Boone, e de armas na mão – que ninguém tentasse, nunca mais, mandar nele ou exigir-lhe o pagamento de impostos, ou tirar-lhe a carta de condução por violação repetida e furiosa do limite de velocidade. Estas pessoas não exigem muito mais porque nunca estudaram e não pensam assim tanto como isso, mas são extremamente raivosas em relação àquilo que exigem. Vim para esta cidadezinha criar os meus filhos, portanto – quem é que falsificou as eleições, para de repente o presidente da Câmara ser negro, quando nós já dissemos tantas vezes que não queremos cá negros?

    Adenda: nem negros em particular nem estrangeiros em geral, estão a ouvir-nos, hey, DC? Mais uma pessoa morena com um sotaque esquisito e eu puxo da minha Beretta. Sou mãe solteira de quatro filhos loiros, e todos eles vêm treinar comigo à carreira de tiro aos sábados de manhã. A Ruth só tem cinco anos? E então? Sabe abrir as pernas para se equilibrar melhor, agarrar na Magnum 38[14] com as duas mãos para não disparar para cima com o coice, e acerta nos alvos tão bem como os irmãos mais velhos. Temos que estar preparados. Holy shit, a América não é dos estrangeiros. Take a good look at us, you stranger. Somos o artigo genuíno. O say does that star-spangled banner still wave[15]

    Depois de tudo isto, e com esta base eleitoral toda ainda aos berros, os republicanos não têm grande escolha. Podem não ter nada a ver com aquilo, mas não podem ignorar que aquilo existe. Podem perder todo o seu eleitorado de um dia para o outro se escolherem olhar para o outro lado e seguir em frente como dantes, porque a fragilidade da direita americana, depois de chegar a este ponto, nunca mais desceu deste ponto – e chama-se a isto a Força da Inércia, e é uma Lei da Física, e nenhum mero mortal consegue modificar uma Lei tão abrangente como a Lei da Gravitação Universal[16]. Dá a ideia de que basta um toque e a Terra salta mesmo do seu eixo. Vive-se no medo, e as decisões de McCarthy durante esta última semana são o espelho perfeito disso mesmo. O que é que eu devo fazer para não ficar sem o poder?

    I voted #USelections2020

    É por isso que, quando Donald Trump diz aos seus fanáticos que bloqueiem a guerra na Ucrânia uma vez que tem por Putin uma idolatria sem limites[17], eles se atirem à tarefa com unhas e dentes e cheguem ao ponto de chamar “traidor” ao Presidente, até que a manutenção do financiamento à Ucrânia, já aprovada antes deste Cheque ao Rei, tenha que saltar fora até ao Thanksgiving para existir um qualquer orçamento que assegure a viabilidade dos Estados Unidos.

    Entretanto, Biden declarou, com todas as letras, que ia tratar com o financiamento à Ucrânia “separadamente”.

    Em última análise, o Presidente dos Estados Unidos tem sempre uma caneta de tinta permanente que lhe permite aprovar sozinho toda a legislação e orçamento que muito bem entender.

    E é verdade, pelo menos no que toca aos Estados Unidos a democracia é um jogo a doer.

    Consegue ser ainda mais violenta do que o Futebol Americano propriamente dito.

    E, de facto, não há grande coisa nesta triste história que tenha realmente a ver com a Ucrânia.

    Mas a história continua, uma vez que faltam aqui vários capítulos.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A estatística ainda não mudou desde que eu fui trabalhar no meu doutoramento para Buffalo, NY, em 1989: só 10% dos americanos possuem passaportes.

    [2] Ainda alguém se lembra do filme RAMBO IV, o último da série RAMBO? Passa-se no Afeganistão, onde os maus estão escondidos algures entre os ocupantes soviéticos. Depois de uma quantidade sedativa de cenas intermináveis de porrada, e de alguns beijos trocados com a heroína local, o filme acaba com Silvester Stallone a galopar sem sela no meio da tribo afegã com quem tem lutado, enquanto um lápis mágico vai escrevendo sobre a imagem, a tinta dourada, “a equipa de RAMBO IV agradece e encoraja o corajoso povo afegão que continua a lutar pela sua liberdade face ao invasor soviético.” QUE VERGONHA, não é? Mas é a História. Como está sempre a repetir-se, torna-se frequentemente uma grande vergonha.

    [3] Eu estava lá a viver nessa altura, e aqueles primeiros dias depois de aparecerem na televisão as primeiras imagens de Guantánamo são inesquecíveis. As pessoas mal olhavam umas para as outras na rua. Os americanos têm-se em tão alta estima que não suportaram ver-se a torturar um único perigoso talibã que fosse. Transformaram logo a palavra “tortura” nas duas palavras “interrogatório intensivo.” Ficaram com a consciência tão tranquila que ainda hoje me pedem, se acham que estou a fazer-lhes demasiadas perguntas, “oh, Clarinha, please, stop waterboarding me!” Claro que o Peter, do FAMILY GUY, já interrogou intensivamente o Brian através de waterboarding. Estavam à espera de quê? Não há mais ninguém como eles, em matéria de golpe de rins.

    [4] EU NÃO SEI, nem ninguém sabe. Donald Trump está a ser julgado em 34 processos-crime diferentes movidos por muitos tribunais diferentes; e, mesmo nos Estados Unidos, a Justiça não pode deixar de ser minimamente lenta para ser maioritariamente fiável. É só que já toda a gente está traumatizada e começa a ver corrupções em toda a parte – e, à custa destes processos, o senhor tem agarrado no microfone a bem dizer em todos os dias úteis do último ano.

    [5]Ora, ora! Se querem que eu proteja a Amazónia, então paguem-me para isso!” Poucas vezes ouvi uma coisa assim tão boçal e assustadora. E atenção, que eu sei o que digo. Claro que me lembro do Dr. Salazar, mas francamente. Salazar, ao menos, não era boçal – e era um ditador católico contrário ao Vaticano II, a braços com uma guerra colonial travada já fora de tempo, portanto podia ser o que muito bem lhe apetecesse sem incorrer em riscos tão estúpidos como o de perder eleições.

    [6] Mandar a Hillary Clinton para a frente depois de já ter perdido contra um negro que ninguém conhecia e que se chamava Barak Obama e isto nem sequer é um nome normal, ainda por cima numas eleições de solução tão dramática como estas, deve ter sido o maior tiro no pé alguma vez registado nos anais da democracia americana. O pessoal tem várias óptimas razões para não gostar dela. Eu também não gosto. Hei de falar mais sobre o assunto quando vier ao caso.

    [7] Parques de estacionamento de casas em atrelados, conhecidas como Recreational Vehicules, que de recreational só têm o nome.

    [8] Pessoas brancas que são autêntico lixo. Caracteristicamente gordas, mal vestidas, de cabelo oleoso e com a pele maltratada, sempre aos berros, sempre a beber cerveja, sempre a arrotar, e sempre a fumar, num país onde já mais ninguém fuma. A Kim Basinger fez o papel de uma destas pessoas no filme biográfico 8 MILE, que conta a história da subida ao estrelato do Eminem. Sempre no seu trailer a cortar cupons de desconto dos jornais, sempre a calar-se enquanto o namorado manda vir, sempre a beber cerveja, veste a pele de mãe do Eminem. ALÔ? A KIM BASINGER? A fazer de white trash? E depois quem é que explicava aos meus filhos porque é que mais de metade das rimas do Eminem são a dizer mal da mãezinha?

    [9]FAZER A AMÉRICA GRANDE OUTRA VEZ”, era o slogan da primeira corrida de Trump para a Casa Branca. Comentário dos galinheiros, onde o mexilhão é o mesmo em todo o mundo: “Ora ora, à primeira qualquer um cai.”

    [10] Tretas. “Mestiça” digo eu, tendo em conta a sua ascendência maioritariamente caribenha. Os americanos, muito mais directos, limitam-se a dizer que ela é “preta.”

    [11] Qualquer coisa como “pois então ainda bem,” mas em inglês a expressão é bastante mais enfática.

    [12] Sobre a escolha criteriosa destas águias e destes leões: para cada uma das raças, são os maiores do mundo.

    [13] José Sócrates e os seus necrófagos também nos deixaram uma memória extremamente amarga disto mesmo, mas ao menos, no tempo de Sócrates, tanto o chefe como os boys and girls se preocupavam mais com a questão de esconder o jogo. Agora mostram-nos tudo. E ainda ficam a rir depois de desligadas as câmaras.

    [14] Puro romantismo. Era a arma do Dirty Harry.

    [15] Início da última quadra do hino nacional dos Estados Unidos.

    [16] Por alguma razão raciocinou Isaac Newton que a Força da Gravidade era a face visível de Deus. E todo o Século das Luzes concordou com ele, numa euforia de optismo sem precedentes na civilização ocidental.

    [17] Claro, ou é por isto mesmo – o que já seria suficientemente grave – ou é porque Putin está de posse de documentação relativa a Donald Trump de tal forma incriminatória de Crimes Contra a Pátria, e outros, que faz dele o que muito bem lhe apetece – o que, a confirmar-se, seria deveras horrível. Em qualquer uma das duas versões da narrativa, Trump já é bastante pior do que Richard Nixon, uma vez que já é culpado de tirar todo o seu país do sério. E o seu país é muito grande e muito poderoso, mas não é a guerra na Ucrânia.

  • Agora que já não há pobres…

    Agora que já não há pobres…

    Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

                    Jorge de Sena

    ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)


    Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.


    A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.

    Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.

    A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.

    Mas são assim tão caras, essas viagens?

    Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…

    Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?

    Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.

    Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:

    Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.

    Desculpem.

    AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?

    AGORA???

    Mas esta gente vive em que mundo?

    Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.

    Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.

    O raio que os parta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.

    [2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.

    [3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.

    [4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.

    [5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.

    [6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela  – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.

    [7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?

  • A gaja interessante

    A gaja interessante

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5


    Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.


    Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.

    E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.

    Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.

    Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.

    E é tudo.

    Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].

    E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.

    Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.

    Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?

    E eu?

    E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.

    CPC descoberta pelos nossos paparazzi a frequentar um curso de bonobo.

    E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?

    É que uma fêmea farta-se.

    A sério.

    Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!

    O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.

    Eh pá, se estas escadas falassem.

    Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.

    A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”

    Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].

    No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.

    São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.         

    Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?

    Pus-me à escuta.

    E aquilo ouvia-se bem.

    Atão mas ela é uma puta?

    Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.

    Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”

    E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.

    Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.

    (fim)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.

    [2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.

    [3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…

    [4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.

    [5] As fêmeas do Pongo borneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.

    [6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.

    [7] O Desmodus rotundus é o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?

    [8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.

    [9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.

    [10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.

    [11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?

  • O marido

    O marido

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 4


    Inicialmente, poucos biólogos levavam a sério a ideia da violência inter-específica. Existia tão pouca evidência de animais a matarem outros do seu mesmo grupo que se presumia que assassínios destes só ocorriam quando qualquer coisa corria mal – os jardins zoológicos estavam sobrelotados ou mal equipados, ou havia um acidente resultante de erros humanos. A ideia combinava-se perfeitamente com a visão da ordem natural das coisas dominante à época, segundo a qual o comportamento animal era concebido para o bem de todos. A selecção natural darwinista funcionava como um filtro desenhado com o propósito de eliminar a violência assassina. O assassínio, por suposto inexistente no restante mundo vivo, era um produto evidente das guerras humanas, pelo que havia que aceitar que, num dado momento da sua ascensão ao poder, o Homo violara as regras da Natureza ao tornar-se sapiens[1]. Aos olhos dos cientistas, os primatas assassinos, tal como os assassinos em qualquer outro grupo animal[2], não passavam de uma fantasia dos romancistas até à década de 70.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Já ficámos a saber que a violência doméstica entre os chimpanzés é de tal ordem que muitas das fêmeas agredidas chegam a morrer em consequência. Resta acrescentar que o chimpanzé também não se ensaia nada de formar um grupo de comandos que caminha pela savana vários dias até chegar à família mais próxima, a cercar discretamente, esperar pela primeira vítima desprevenida, atacar em massa com grande estridência, gerar o caos e o pânico, matar tantos machos quantos possível e violar todas as fêmeas capturáveis, que depois são arrastadas de volta ao grupo guerreiro e entregues para o resto da vida ao marido que eles lhe escolhem.

    É um cenário bastante familiar, ou não é?

    Os primeiros confrontos entre as primeiras tribos humanas não hão de ter sido muito diferentes disto, incluindo a boçalidade com que cada vencedor trata a fêmea a quem conseguir deitar as unhas.

    Há muito quem argumente que nós não somos mais do que um outro grande primata. E, assim sendo, é evidente que vale mesmo a pena continuar a usar a vida nesta cidadezinha em termos de microcosmos demonstrativo de como o demónio se aloja profundamente dentro da essência masculina.


    Devo dizer que, entre os 16 e os 19 anos, enquanto ainda não tinha idade e depois ainda não tinha dinheiro[3], andei muito à boleia pelo País inteiro. Tudo o que era homem sozinho[4], fosse qual fosse o seu veículo, ao fim de um bocado tentava a sua sorte. Eu dizia “NÃO!”, o homem em causa respondia “Está bem, está bem… mas tens que ver, se eu não tentasse era parvo, não achas?”, e a viagem seguia amena, sem mais sobressaltos.

    Até que cheguei ao Alentejo.

    Nos seis meses da minha primeira experiência corria o ano da glória de 1978, e estávamos todos em pleno PREC – o que quer dizer que, para aquelas bandas, estavam todos em plena Reforma Agrária. Num cenário destes, o que é que espera uma revolucionariazinha de dezoito anos? Oh, aquele seria sem dúvida um povo equalitário e solidário, educado e estudado, enfim: não era certamente dos camionistas daquelas estradas que eu esperava ouvir dizer “a gente damos boleia mas nã damos de graça, óvistes?”, ou “isto pra nós tudo o que tá à beira da estrada é gado”, e outros insultos abertamente insultuosos, e visivelmente perigosos. Não era no Alentejo que eu alguma vez imaginaria que ia acabar ao murro com um motociclista de FAMEL e penico que ficou a bradar impropérios do pior com uma roda torta no caminho de terra por onde tinha tentado desviar-se comigo.

    Mas enfim, tinham passado quarenta anos. Estou no Alto Alentejo, e não no Baixo Alentejo[5], como antes. De certeza que as coisas, agora, já não são assim.

    Família de chimpanzés depois de uma caçada, apanhada a empanturrar-se de carne de gazela.
    É verdade que nós, os Pan troglodytes, temos por hábito ser herbívoros. Mas isso não implica que sejamos necessariamente estúpidos. Sempre que matar não seja dispendioso em termos de energia, e não implique correr grandes riscos pessoais, a caça é uma forma perfeita de garantir quantidades substanciais de comida de alto valor proteico e de grande especial riqueza calórica. Nada que aliás vocês não saibam, ó seus humanos voyeurs que andam sempre a espiar-nos.

    Bastava-me esquecer o motociclista da FAMEL e da luta ao murro. Esse piolhoso era de Estremoz, onde eu estava a pedir boleia para Portalegre.

    O primeiro sinal que, mesmo no Alto Alentejo, tudo continuava a ser assim, veio do gajo do mercado. Eu nunca o tinha visto mais gordo, e vi-o tão pouco que se me cruzasse agora com ele na rua nem o reconheceria. Tinha finalmente conseguido transportar uma boa quantidade dos meus livros cá para casa, e andava obcecada com a questão das estantes. Naquele dia procurava uma estante especial, forte que chegasse para suportar os meus grandes álbuns de História da Biologia, e suficientemente bonita para ficar mesmo ao cimo da escada.

    E não é que encontrei isso mesmo? Era uma estante linda, que parecia um coreto todo feito em ferro forjado. Como acontece com frequência no mercado, comprei-a por tuta-e-meia, feliz da vida.

    O pior foi começar a carregá-la dali para casa num dia de calor vingativo. Eu não transportava outros pesos, mas tinha que parar o tempo todo para limpar o suor dos olhos. Ora, vendo-me fazer todo aquele esforço, um senhor simpático que estava ali à conversa com outros senhores veio oferecer-se para carregar a estante por mim.

    Eu fico-lhe muito agradecida, mas a minha casa ainda é ali no Anónimo[6]. Eu posso é segurar à frente se o senhor segurar atrás, já ajuda muito” – “Ora, menina, eu sei muito bem onde fica a sua casa, ponho-lhe lá a estante num instantinho” – “Mas com este calor...”

    O senhor sorriu, pôs a estante de ferro em cima do ombro, e começou a andar rumo à minha casa. À época ainda me enervava um bocado toda a gente saber onde era a minha casa, mas enfim. Também não deve ser todos os dias que uma menina vem viver para o centro histórico de Estremoz. E, de facto, ainda nem eu tinha acabado de pensar tudo isto e já estávamos à porta de casa.

    Pronto, deixe aqui em baixo que isto ainda são dois andares sem elevador, logo à noite, pela fresquinha, eu peço ajuda às minhas amigas e levamos a estante para cima” – “Ah, não, por favor, eu sei que a menina mora no segundo andar, ponho-lhe já lá a estante e pronto.”

    Bem… se por “e pronto” se entender “e assim que a pousar eu estendo os braços e apalpo-a toda, em todos os sítios onde conseguir apalpá-la”, foi de facto isso mesmo que o senhor simpático tentou fazer. O que quer dizer que, acto contínuo, lhe espetei com um bruto pontapé naquele sítio que faz doer muito aos senhores, ao mesmo tempo que proferia, de forma tranquila mas autoritária, “saia já daqui seu[7]”, enfatizado por um empurrão nos olhos[8], o que acto contínuo fez o senhor simpático cair de costas pela escada abaixo.

    Tinhoso.

    As minhas amigas dizem que estas coisas me acontecem, mesmo com uma idade tão adiantada, porque uma pessoa como eu devia ter um marido, e a ausência dessa entidade representativa do poder na vida em sociedade é tão grave que perturba até os homens mais lutadores.

    Ou seja, e como escreveu o grande Mao Zedong, “O poder cresce sempre no cano de uma arma[9].

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Veja-se a história da serpente, de Eva, da maçã, de Adão, da fúria de Deus, da expulsão do Homo sapiens do Jardim do Paraíso, onde o arcanjo Uriel ficou à porta com uma espada flamejante para que nenhum ser humano pudesse alguma vez voltar a entrar. Não é ciência, como toda a gente sabe. Mas há que admitir que é um pressentimento fantástico.

    [2] Bom… e tal como as plantas carnívoras, ou tal como muitos peixes, incluindo as orcas e os tubarões. Para não falar da raivosa e inolvidável Moby Dick, mas lá está – fantasia de romancista.

    [3] Primeiro para tirar a carta (diga-se em abono do meu estoicismo que passei neste exame uma hora depois de ter passado no exame de Cálculo 2, sem dúvida a mais traumatizante de todas as disciplinas do meu curso, e mesmo no fim do Primeiro Ano, quando a pessoa já se arrastava de cansaço e ainda nem tivera direito de pôr um pé na praia); e depois para comprar o Carocha quatro anos mais velho que eu, onde o nosso colega João Rabaça pintou um noitibó na porta do meu lado, e que, além de fazer toda a Lisboa-Vilar de Mouros com seis pessoas lá dentro à data do primeiro festival, também aguentou dois anos de saídas de campo pelo meio de sapais, e carreiros de terra rumo a praias desconhecidas, até ser trocado por outro ligeiramente mais jovem, exactamente da minha idade e igualmente dado a viajar sem fim. As letras da matrícula eram HB, pelo que o baptizámos com o nome controverso de Herri Batasuna.

    [4] A menos que fosse um gajo porreiro, já com um emprego fixo destinado a ajudar a família e pouco mais velho do que eu. Isso era diferente. Conversávamos imenso, falávamos do que é que gostaríamos de fazer quando pudéssemos, ouvíamos cassettes e era costume gostarmos das mesmas músicas, e nenhum de nós acreditava no casamento porque é o género de vida que mata o amor. Fomos uma geração bestial, na qual ainda hoje tenho muito orgulho.

    [5] Em 1978, eu estava a aproveitar o segundo semestre daquela interessante experiência que antecedeu o 12º ano e se chamou “ano propedêutico” para ganhar umas massinhas a trabalhar em Aljustrel com os miúdos da telescola. Até esses miúdos tinham aquele olhar alentejano que varre as mulheres de alto a baixo. Foi nessa altura, a ouvir confidência atrás de confidência das raparigas da minha idade que não tinham ninguém com quem falar, que comecei a ter umas ideias, ainda vagas, sobre um romance policial que veio a chamar-se ADEUS, PRINCESA.

    [6] AHAHAH. Não, não sou minimamente dada a distracções. Nunca direi onde fica a minha casa.

    [7] Parece-me inútil inserir a longa sequência da frase. As escadas são altas, pelo que qualquer vira-lata ainda demora o seu tempo a cair delas abaixo. E eu não me calei enquanto ele não embateu na porta e deu de frosques.

    [8] Isto tem a virtude  de perturbar a visão, fazer chorar, e em consequência assustar imenso os senhores. Quanto mais os anos passam mais nós vamos aprendendo, não é.

    [9] Não, não é nenhuma metáfora de gosto duvidoso. É uma verdadeira ideia de como viver correctamente dentro da colmeia. Resta-nos esperar que o tempo se despache a transformá-la num arquetípico tigre de papel.

  • Os assassinos

    Os assassinos

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 3


    O que poderá dizer, nos nossos dias, quem continuar a não gostar da ideia de que os humanos estão mais próximos dos chimpanzés do que os próprios gorilas? Até ao fim do século XIX, a resposta céptica mais ferrenha à descoberta de fósseis era que Deus os pusera nas rochas como uma experiência estética, ou filosófica, para fazer de conta de que a Terra tinha uma História – exactamente como dera um umbigo a Adão para fingir que ele tinha nascido de uma mulher. Para os cépticos criacionistas do fim do século XX, a explicação era mais que um qualquer artifício demoníaco organizara todos aqueles fósseis em série para que caíssemos na tentação evolucionista. Ou seja, as marcas moleculares claríssimas de relação estreita entre grandes primatas seriam um plano ou divino ou diabólico. Para quase toda a gente, no entanto, a ideia de um poder enganoso a funcionar a este nível exige demasiado da nossa imaginação. O Criador pode ser Omnipotente, mas é pouco provável que seja Maluco.”

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    As minhas citações do DEMONIC MALES estão a ficar cada vez maiores, mas a culpa não é minha, e nem sequer é do livro de onde eu as tiro: a culpa é dos leitores, que todas as semanas me dão os parabéns pela escolha, me revelam que tudo isto lhes pareceu tão interessante que foram ler o trabalho inteiro, e, de vez em quando, me contam que gostaram tanto que até já encomendaram a obra seguinte dos mesmos autores. E claro, são estes pequenos momentos que nos fazem felizes no meio do caos mais ou menos disfarçado da nossa vida quotidiana: se as nossas histórias, e as nossas citações, levaram outras pessoas como nós[1] a ler um bom livro e a querer ler ainda mais – então, e penso que todos os meus colegas sentem o mesmo, já ganhámos o dia e há poucas emoções melhores.


    Antes de passar adiante, vamos já deixar claro o que se pressupõe óbvio mas nunca se sabe: evidentemente, a maldade não é uma característica exclusiva do masculino[2]. E, se afectar o género oposto, não se fica minimamente por aquelas megeras más e vingativas do século XIX, que infestavam os romances do Charles Dickens ou das irmãs Bronte. Podia estar aqui o que ainda nos resta desta estranha e inconstante Primavera a deliciar-vos com casos horrorosos de crueldade feminina, como a das lontras marinhas, ou a das hienas, ou a das leoas quando caçam em bando. Ao contrário do que ainda me diziam quando eu andava na escola[3], o Homo sapiens está longe de ser o único animal que aprecia fazer mal aos outros, incluindo aos da sua própria espécie[4]. Talvez seja o único animal capaz de distinguir a água benta da água normal[5], mas não é, de maneira nenhuma, o único animal que, quando pode, maltrata os outros a título absolutamente desnecessário, assim mesmo, só para se divertir.

    Costumávamos considerar que a crueldade humana, particularmente manifesta nas guerras que os seres humanos travaram entre si desde que temos registo das suas actividades, era de tal forma sofisticada que requeria uma explicação especial. Talvez essa explicação fosse científica, talvez fosse bíblica – ou até talvez fosse, de facto, completamente inacessível à inteligência humana, pois que nos fora trazida por extra-terrestres, tal como Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram em 1968, por escrito e em filme, em 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO[6].

    Pois, mas se a contarmos só até aqui esta história está coxa e é tudo menos bípede.

    Um dos primeiros Homo sapiens verdadeiramente territoriais prepara a lança para dar guerra à família Neanderthal que vive na gruta que fica do outro lado da montanha, onde, neste preciso momento, sem suspeitar de nada, enche as paredes de pinturas cada vez mais bonitas de bisontes com cada vez mais cores resistentes ao tempo.
    Depois vieram o arco e a flecha, depois os códigos de gritos de batalha, depois as tácticas de cerco, depois…
    … a verdade é que os Neanderthais não estavam a fazer mal a ninguém, até podiam andar por ali em maior número do que os Homos, mas olhem. Eram uns indivíduos suficientemente pacíficos para não só co-existirem connosco como até partilharem connosco alguns dos seus genes,[A] mas nós éramos uns esganados, sempre a precisar de mais território[B]. Fizemos-lhes tantas e tão poucas que eles acabaram por extinguir-se para todo o sempre.

    Falta acrescentar que, há cerca de cinco milhões de anos, houve um grupo inteiro de primatas ainda indiferenciados que desenvolveu alguns comportamentos muito, mas mesmo muito raros. Há pouquíssimos animais que vivam em comunidades patriarcais onde os machos se unem e as fêmeas se esgueiram de um grupo para o outro no sentido de evitarem a consanguinidade. Os tais primatas vieram de um grupo detentor dessa raridade, e também se caracterizavam por manterem uma defesa territorial masculina extremamente agressiva, incluindo ataques letais a comunidades próximas, à procura de inimigos vulneráveis para atacar e matar. Hoje em dia, em quatro mil mamíferos e mais de dez milhões de outras espécies animais, este conjunto de comportamentos é único e específico das duas únicas espécies que derivaram daquela espécie ainda incaracterística que existiu há cinco milhões de anos: os homens… e os chimpanzés.

    E, nestes dois casos, o instinto da violência vem, indiscutivelmente, dos machos.

    Tal como entre os humanos a violência doméstica está geralmente ligada ao homem, que bate na mulher, e pode de igual forma bater nos filhos[7], também entre os chimpanzés são os machos quem parece considerar tudo e mais alguma coisa como um bom pretexto para dar tareias do outro mundo nas suas companheiras. Agora que podemos filmá-las no seu habitat natural com as nossas microcâmaras digitais minúsculas que não levantam suspeitas nem causam inibições, temos que aceitar o chimpanzé tal como ele é: são tareias tamanhas que as fêmeas chegam a morrer em consequência. E, tanto numa espécie como noutra, a comunidade circundante observa… e mesmo que filme, mesmo que relate na rádio, mesmo que faça manchetes de jornais[8], a verdade é que, em termos práticos, reage com tal indiferença que raios nos partam se não for causada por cinco milhões de anos de evolução que continuam a dizer-nos que aquilo é normal e até nos faz bem.

    Com tudo isto em mente, eu estava à espera de quê quando, aos 61 anos, vim viver sozinha para uma cidade pequena no interior profundo, cheia de cafés, que estão cheios de esplanadas, que estão cheias de homens, que estão todo o santo dia a beber ou cervejas ou bagaços ou assim parece? Ai a menina chegou aí e achou que tanto assédio era um bocado estranho? Mas achou mesmo? Então e porquê? Por um lado, não é bióloga? E, por outro lado – nunca ouviu dizer que a ocasião faz o ladrão e depois quem anda à chuva molha-se?

    Ora então.

    Beba mas é mais uma bjeca, senhora, que a malta oferece. E conte lá mais umas historinhas cheias de homens maus.

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu, por exemplo: não sou antropóloga, nem paleontóloga, nem propriamente evolucionista: estudei um bocadinho de tudo isto durante os cinco anos do meu Curso de Biologia no antigo Colégio dos Nobres, mas logo a seguir especializei-me na fertilização do mamífero, depois da História da Biologia, e pronto – estas escolhas não se compadecem com andarmos para aí a aprender tudo o que está nas margens dos nossos interesses. Mas deem-nos um bom livro e contem-nos uma boa história, devidamente documentada e seriamente revista pelos pares: é claro que a gente gosta de aprender!

    [2] Na Natureza, linhas divisórias assim tão taxativas são sempre meritórias de muito pouca confiança. O único diferencial que existe mesmo, no caso da crueldade, encontra-se apenas a nível estatístico, só que é um apenas cheio de penas. Os machos tendem a ser maiores, mais fortes, mais vistosos, e mais dominantes. Um veado maduro enorme, cheio de armações, que esteja na brama, ouve-se e vê-se a quilómetros de distância. As vinte e sete fêmeas pequeninas e sem armações que constituem o seu harém… pois, é mais que se confundem com a folhagem.

    [3] Na realidade, quando agora penso nisso em retrospectiva, contaram-me imensas tretas quando eu andava na escola, e não foi só em Ciências Naturais. Também não há de ter sido tudo deliberado. Agora, sempre que dou aulas, ou explicações, interrogo-me com frequência sobre qual será a grande treta que andamos a ensinar aos nossos alunos. E então desde que comecei a ouvir dizer que se calhar não foi nada um asteroide o que causou a Extinção em Massa dos Dinossauros…

    [4]Só o homem é que tortura, etc.” Ai é? Aguentem firme que eu depois hei de falar-vos de uns quantos orangotangos e gorilas, só para mencionar familiares próximos.

    [5] Remeto-me à minha modéstia. Capaz de distinguir a água benta da água normal? Ná. É evidente que eu, sozinha, nunca conseguiria inventar pérolas de cultura assim tão brilhantes. A frase original é do escritor britânico T. H. White (Mumbay, 1906-1964) e foi gravada na memória de muitos portugueses da minha geração pelas crónicas semanais que grande Augusto Abelaira publicou semanalmente no defunto O JORNAL, O ÚNICO ANIMAL QUE, protagonizadas por duas fêmeas de chimpanzé tornadas famosas à época pelos investigadores de primatologia. O quase esquecido Terence Hanbury White, entretanto, tornou-se particularmente notado em vida pela sua série de romances sobre o Rei Artur, coligidos num único volume, THE ONCE AND FUTURE KING, em 1958. Destes, foi especialmente aplaudido o primeiro da série, THE SWORD AND THE STONE, publicado separadamente em 1938.

    [6] Tanto Clarke como Kubrick tinham personalidades digamos que fortes e difíceis, o que levou à separação pelo meio do seu projecto original de trabalho em conjunto num livro e num filme que haveriam de cair-nos em cima exactamente ao mesmo tempo. Da forma como as coisas correram, o filme, atribuído só a Kubrick, acabou por estrear antes do lançamento do romance, assinado só por Clarke. Mas enfim, sempre aconteceu tudo em 1968. E sem escandaleiras na praça pública, consideradas à época de gosto duvidoso..

    [7]Éramos nove, dormíamos todos em duas camas, e sempre que ele vinha bêbedo acordávamos à noite já com o cinto em cima”: durante todos os anos da minha adolescência em que andei nas vindimas, ouvi variações sobre esta história vezes e vezes sem conta. O resto do pessoal desatava a rir, celebrando o ridículo do homem completamente enfrascado. Ninguém parecia achar nada daquilo estranho, e eu já sabia ficar tão calada como a coruja. Em casa diziam que eu era “uma sonsinha”. Não era nada. Possuía apenas uma deformação profissional que pareceria quiçá aberrante naquela idade.

    [8] E mais sabe-se lá o quê que os chimpanzés fazem para contarem as suas histórias uns aos outros, porque lá porque nós não os percebemos não está necessariamente implícito que eles não se percebam. Estamos a falar de animais capazes de aprender, entender, e utilizar a linguagem dos surdos-mudos. E até de conversar no DOS com os computadores, por muito que possam fazer-lhes pedidos que nós, na nossa eterna sobranceria, consideramos palermas, como por exemplo “vá lá, computador, faz umas festinhas à Kathy!” Animais que atravessam a ponte até este nível mais formas terão de se parecerem connosco – ou sou eu que estou a raciocinar fora do baralho? Eu e todos os primatologistas normais deste ano da graça de 2023?

    [A] E, tanto quanto a gente sabe, entre todos os mamíferos só se trocam genes de uma única maneira.  Por muito que as duas espécies que fazem o amor possam preferir diferentes posições, mudar de posição não é inventar nada nem partilhar nada.
    [B] Porque nós éramos liderados por machos, e os machos que assumiam a liderança eram sempre os mais aguerridos. Em termos de emoções, foram os pioneiros dos gangs dos nossos dias. Não era que precisassem da guerra: era mais que estavam completamente viciados naquela chuva de adrenalina de seguir o chefe, cerrar fileiras, desatar a berrar, e matar o inimigo.

  • A coruja

    A coruja

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 2


    “A inteligência é uma coisa que todos nós conhecemos bem, como um livro antigo, ou um amigo de há muito tempo. Mas, e o que será a sabedoria? Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de ver, a sabedoria é a capacidade de ver longe. Se a inteligência é o olho, a sabedoria é o telescópio. Porque a sabedoria representa a nossa capacidade de sairmos da ilhota de nós próprios para começarmos a grande viagem através do mar.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Aos seis meses, o Sebastião está enorme. Continua a ser um cachorrinho com comportamentos de cachorrinho, mas quando quer brincar com um transeunte incauto as patas dele já chegam aos ombros da pessoa. Em metade das vezes, o visado assusta-se seriamente. Na outra metade, o visado já o conhece e diz-me logo que lhe ponha a trela senão ele foge, ele pode causar um acidente de automóvel[1], e além disso ele é um cão tão bonito e tão esperto que alguém mo rouba de certeza[2]. Para um longo passeio sem trela, em que ele possa pular e espinotear tanto quanto lhe apeteça desde que não faça barulho[3], só mesmo esperando pela noite e tomando a direcção das ruazinhas do Castelo, que são tão estreitas e onde é tão problemático estacionar que quase não há carros, e onde àquela hora já quase não se vê ninguém. O homem que depois do Natal se apaixonou pelo meu cão[4] mora mesmo ao meu lado, é pedreiro, e ganhou ultimamente o hábito de vir passear connosco.


    O Rogério é do Norte, e não é nenhum santinho. Já passou uma boa temporada em Pinheiro da Cruz, e ficamos por aqui. Ele tem pena, porque gostaria muito que eu escrevesse um romance sobre a sua vida, dado que a considera excepcionalmente transbordante de erros[5]. Enfim, essa vida seria não mais que uma réplica de milhares de outras, sempre com os mesmos planos, os mesmos erros, e os mesmos crimes e castigos – qualquer coisa talvez mais útil para o progresso da sociologia[6] do que para o florescimento da literatura.

    Nessas noites, que agora parecem ter ocorrido há milhões de anos-luz, o Rogério usou imensas variações erradas sobre adjectivações muito simples, todas elas tão bizarras e inesperadas que nunca mais conseguem esquecer-se. Ainda por cima, em certas alturas até podem dar vontade de rir, o que é extremamente grave porque perdem logo o peso moral que, de facto, carregam consigo[7]. Às tantas até os meus dois ex-namorados de Estremoz foram corridos a patético, ou mesmo a individual completamente patético, nem me lembro porquê nem agora me interessa. Mas não é todas as noites que uma ouvinte atenta apanha com sequências assim tão brilhantes de palavras e coisas[8]. Mesmo que não queira. Já sei que vou guardá-las comigo para o resto da vida.

    A coruja-das-torres, que como tem um nome feminino não fala. No entanto, ouve tudo com muita atenção.

    Entretanto, em estrita obediência às leis imutáveis da Natureza, eu armava-me na coruja da anedota. Aquela que o outro senhor comprou para fazer dela um papagaio, e a seguir respondia a quem lhe perguntasse “então e a tua coruja, já fala?” com um enfático “não, falar ainda não fala… mas  ouve tudo com muita atenção!”.

    Eu não ouvia o Rogério com muita atenção por ser mulher, e muito menos por ser coruja. Era, apenas, porque sou escritora. Sei que das páginas de um qualquer CV pode saltar subitamente aquela agulha que andou perdida por dentro dos palheiros durante dezenas de anos, e era por causa dessa agulha que eu descobria, por exemplo, quem é que matou o JFK[9]

    À medida que foi criando mais confiança, e como, sendo homem,  gosta muito de falar, o Rogério foi entrando em catarses cada vez piores[10] sobre os seus erros do passado. Eu, como sou mulher e gosto muito de ouvir, ouvia-o com muita atenção. Uma semana depois da conversa que se segue, o Rogério vai usar-me como isco para extorquir quase oitocentos euros às minhas irmãs. Mas, na altura, não existindo qualquer antecedente, ninguém podia adivinhar este desenvolvimento trágico. O Rogério estava a contar-me uma das suas múltiplas separações com uma minúcia tão enorme quanto incompreensível.

    Ó Rogério, tu desculpa, mas não entendo. Que mal é que essa senhora te fez para te vires embora para todo o sempre, sem nunca mais voltares sequer a ver os teus filhos sem ser no telemóvel?” – “UMA SENHORA és tu. A outra BEM QUERIA ser uma senhora, mas era apenas uma grandessíssima preguiçosa. Nem sequer me passajava as meias!” – “Então e tu não sabes passajar as tuas próprias meias, como toda a gente?” – “Clarinha, há uma ordem natural  das coisas para o que fazem as mulheres e o que fazem os homens. Se ela quer ser desnaturada, pois saúde e passe bem, que eu esses desrespeitos patéticos[11] não tolero.”

    (continua…)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Não se percebe se quem sofre com o acidente é o animal ou é a máquina, mais qu’importe. Um acidente é sempre uma desgraça.

    [2] Não é para me gabar, mas o meu cão é, de facto, particularmente bonito. E incrivelmente esperto. Um dia destes conto-vos a história da banana. Está prometido.

    [3] A palavra de ordem para o cachorrinho enorme não fazer barulho é “Sebastião! Queres ir para a rua?”, mesmo quando estamos no meio da rua. História prometida para o dia em que vier ao caso a história da banana.

    [4] Que é como quem diz, mas se não me chateasse tudo bem, e ele nunca me chateou, mesmo.

    [5] Obviamente, este livro seria uma biografia, e nunca um romance. Mas isso eram detalhes que na altura diziam pouco ao Rogério, que só queria contar-me tudo para expor os erros da sociedade, por forma a tornar a sociedade melhor. Nem que fosse só um bocadinho. Valeria a pena. Na versão dele.

    [6] Ou enfim, talvez para a estatística.

    [7] Como veremos mais tarde.

    [8] Ao menos eu não sou patética: sou tão fina que apenas introduzi veladamente no texto uma alusão ao famoso livro de Michel Foucault AS PALAVRAS E AS COISAS – UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS, publicado originalmente em 1966 com um grande impacto quase instantâneo sobre todas as áreas de especialidade relacionadas com a História das Ideias. Em vez de inventar palavras, traduzo-as e copio-as com todo o cuidado, sem não zugeben os mínimos enganos. Es ist ganz anders, como diria o outro antes de se virar para o balcão e pedir à refugiada de qualquer sítio islâmico onde correu tudo mal einem hamburger bitte.

    [9] Uma pessoa nunca sabe quando é que, de repente, sem aviso, uma história vai mudar completamente de rumo, já não ser uma banalidade, e então valer a pena passá-la a romance. Nem vale a pena imaginar o que nos pagariam para “contar tudo”.

    [10] Ou melhores, conforme as preferências literárias do ouvinte que escuta o palrante. O pior é que eu detesto psicopatas e filmes de terror. Mas aguentei firme. Aquilo podia, de facto, ter lá um JFK dentro em qualquer próxima frase.

    [11] O Rogério adorava palavras, e, para falar de forma culta, incorria por vezes, repetidamente, em erros crassos como este famoso “patético”. Eu nunca disse nada. Era um fato grunge de alta costura que lhe ficava a matar.

  • O velho

    O velho

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 1


    A ligação de cérebros poderosos com o demonismo masculismo parece uma coincidência trágica de cadeias causais independentes; mas esta conexão implica criar problemas extremamente complexos. Os cérebros inteligentes são responsáveis por novas formas de agressão, irrelevantes para os animais sem boas memórias nem relações de longo termo.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Ninguém imagina o que me custou começar a escrever esta série de crónicas. Ando a adiá-la há meses – mesmo depois de ter sido enxameada por uma série de dissabores, sempre em torno do mesmo tema. Não gosto de dizer mal de ninguém. E ainda gosto menos de dizer mal de pessoas que pertencem a um mundo onde, por regra, a vida me faz feliz. Mas isto já se tornou francamente excessivo, portanto deve ser dito. Será uma hipérbole, mas toda a Bíblia é uma hipérbole, e há milhares de anos que funciona. Eu gosto de viver aqui, não é isso que está em causa. Mas viver aqui tem detalhes que, depois de todos somados…  não, não mereceriam nenhum Dilúvio, porque um Dilúvio seria muito conveniente, dada a falta de água no Alentejo.


    A verdade é que, mais provação menos provação, continuei sempre a gostar de viver aqui. Esse bem-estar não mudou nem mesmo depois de eu ter arranjado um stalker. E um stalker, isto sim, parece mesmo uma qualquer punição bíblica, enviada por razão desconhecida. Um stalker é uma sombra neurótica e estranha, e extraordinariamente cansativa, que não creio que nenhuma pessoa imagine que possa vir a ter depois dos sessenta anos, quando se instala para viver calmamente, e dar de si o seu melhor, numa pequena cidade do interior. Ainda por cima, é tão raro ouvirmos as mulheres que nos rodeiam falarem de stalkers, que acabamos por considerá-los personagens de filmes americanos. Nem sequer são pessoas. São mesmo só personagens. O King-Kong, o Dirty Harry, o Mad Max, o Batman: a gente não se cruza com eles na rua.

    CPC armada em Clara Pinto Correia.
    Evidentemente, a culpa é toda dela.

    Este meu stalker é um fraca-figura que tem como profissão ir sentar-se na esplanada do Alentejano para pedir a toda a gente cigarros, cafés,  bagaços, e assim. É tão mirradinho, tão silencioso, tem sempre um ar tão triste, e em consequência ocupa tão pouco espaço, que, até começar a perseguir-me, nunca ninguém tinha dado por ele, nem ninguém lhe reconhecia o nome, o que é curiosamente raro aqui na cidade. Ajudei-o a confirmar online, no portal da Segurança Social, a sua necessidade de transporte para Lisboa na segunda-feira seguinte por causa de uma consulta em Santa Maria[1], e tanto bastou para no dia seguinte ele já estar a entrar no café onde eu costumo ir todas as manhãs para suspirar em alto e bom som, “não sei o que é que aquela mulher fez, que deu comigo em doido.” E toda a gente achou graça. Eu por acaso não achei graça nenhuma porque aquilo era do mais incómodo que imaginar se possa, e, sobretudo, porque a história do nosso louco amor passou a ser um teatro que se repetia todas as manhãs. E as mensagens intermináveis dele no meu telemóvel eram todos os dias entre as dez e as vinte.

    Com todos estes ingredientes, mais o seu lugar cativo no banco fronteiro ao tribunal, onde podia contemplar à vontade a porta da minha casa tal como podia contar histórias fabulosas aos taxistas, o velho transformou-se rapidamente no talk of the town[2]. Toda a gente se ria dos seus expedientes e das suas declarações de amor. No meu café, toda a gente apreciava também a sua pontualidade, pois que o velho aparecia às sete em ponto, ia lá deixar recados para mim, e acto contínuo ia sentar-se no seu banquinho. E eu não sou de ferro. Posso ter sido discreta, mas este sentido de humor mesmo-mesmo-mula dos alentejanos acabou por fazer-me rir a mim também.

    Até acabei por rir[3] mesmo depois de o stalker ter destruído a centralina do meu carro durante a noite[4], depois de lhe fazer uma ligação directa para o tirar do lugar onde estava estacionado[5], mesmo à frente da minha porta[6]. Ainda hoje sorrio vagamente ao rever a cara dos polícias quando lá levei o meu telemóvel encharcado em mensagens dele, umas tristes, outras saudosas, umas quantas a jurar suicídio e outras tantas a declarar apenas que ia partir para nunca mais voltar, e todas elas ou dolorosas[7] ou amorosas[8], como se alguma vez tivéssemos formado um casal – ah, mas nunca houve testemunhas, portanto nunca se pôde fazer nada.

    Até hoje, também nunca se pôde fazer nada em relação a nenhum dos dissabores que se seguiram, e não sou eu quem vai dizer que se passaram especificamente aqui porque no resto do País, ou mesmo no resto do mundo, tanto priapismo seria impossível e impensável. Mas que tem sido uma luta constante para merecer algum sossego por parte destes homens – ah sim. Chegada a esta provecta idade, tem sido uma luta sem precedentes.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Consulta essa a que ele nunca foi, pois que várias testemunhas o viram arrastar-se o dia inteiro entre a minha casa e o banco fronteiro ao tribunal. Algures, em Estremoz ou em Lisboa, os contribuintes hão-de ter pago para estar uma ambulância, ou um carro de bombeiros, à espera de um velho doente que afinal não estava assim tão doente como isso. Não é caso para dar ouvidos às barbaridades do CHEGA contra o SNS, mas é caso para usar de mais firmeza em relação a neuróticos que importunam mulheres.

    [2] Que é como quem diz “a pessoa de quem toda a gente fala na cidade”, o que não seria difícil de dizer em português de forma interessante. Mas desculpem-me e deixem-me passar, estes pecadilhos de inserir amostras cosmopolitas da minha presença de espírito bilingue tomam-me de assalto assim que chego à segunda linha seja de que texto for.

    [3] Sozinha, obviamente. Estas coisas não têm graça absolutamente nenhuma, nem eu quero que ninguém pense que eu lhes acho graça. Acontece apenas que, perante as calamidades, o riso continua a ser a melhor arma de defesa que eu conheço.

    [4] A centralina! Estão a ver as coisas que eu sei? A centralina transformou-se numa daquelas palavras que me fazem dar um salto e olhar para trás para ver quem falou, de tal forma me envenenou a vida. A centralina é a peça que controla todo o circuito electrónico do carro. Sem centralina, um carro bem pode ser das melhores marcas e estar novinho em folha – é um carro morto, dê lá por onde der.

    [5] O piolhoso é deveras entendido em motores, pois que foi motorista de camiões TIR. Aos 52 anos foi trespassado por dois balázios numa batida ao javali, e não teve outro remédio senão reformar-se. Mas continuou a juntar uns cobres, incluindo roupa à senhor importante, desempenhando as funções ilegítimas de um Embaixador qualquer que vivia aqui, viajava muito, e pagava em dinheiro. O pior foi quando esse Embaixador mudou de país, e para o seu lugar veio outro, daqueles que não alinham em futebóis. E é neste mundo que eu vivo. Batidas ao javali, balázios, empregos ilegais de alta roda, e finalmente um stalker que não recua perante nada.

    [6] Só mesmo num dia raríssimo em que a pessoa consegue estacionar à porta sem um único pneu em cima do passeio é que estas coisas acontecem, como toda a gente sabe.

    [7]Nunca mais viverei em paz, tiraste à minha vida todo o seu sentido” – quando, ainda por cima, eu tinha dado à vida dele montes de bicas, de cigarros, e até de tostões para bagaços.

    [8]Clarinha, meu amor, proponho-te uma boa sessão de sexo, vais ver como voltas a gostar de mim depois de voltares a ser minha mulher” – e por acaso valeu a pena ver o olhar interdito do senhor agente que estava a atender-me a olhar para mim, “é melhor guardar essa.”

  • A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    A noite em que eu fui a voz do Sérgio Conceição

    Parece que, um belo dia, antigamente, toda a gente combinou entre si mentir a este respeito, e continua a mentir até hoje. Toda a gente diz que odeia o mal, mas, no fundo, toda a gente o adora.

    “Não tem vergonha de estar a destruir-se a si mesma?

    “Apetece-me destruir-me. Oiça: agora, por exemplo, vão julgar o seu irmão por ter morto o pai, e agrada muito a toda a gente que ele o tenha morto.

    Agrada a toda a gente que ele tenha morto o pai?

    “Sim, agrada a toda a gente! Toda a gente diz que é um acto horrível, mas no fundo toda a gente gosta disso. E eu sou a primeira a gostar.

    “Nisso de toda a gente há uma certa verdade – disse Aliocha baixinho.”

    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Nota inicial sobre o título[1]


    Não sei quando foi, nem como foi, que a corrupção começou a esticar cada vez mais as suas raízes dentro da política portuguesa como o eucalipto faz às dele se andar à procura de água em terrenos áridos. Não sei nem observei, porque estava a trabalhar nos Estados Unidos. sabendo uns factos que pareciam anedotas de mau gosto mas eram factos, e quando voltei com os meus meninos para Lisboa, já o Primeiro-Ministro era José Sócrates. Vivia-se mal, muito pior do que nas minhas recordações do País onde vivi até ir estudar para Buffalo, mas os diferentes membros do governo iam-nos explicando que esse era o preço a pagar pela integração na União Europeia. Às tantas percebi que estavam a rasgar-se na paisagem SEIS auto-estradas paralelas entre Lisboa e Valença do Minho, mas explicaram-me que era “para beneficiar toda a gente por igual[2]” e fazer chegar “os frescos” mais depressa aos supermercados[3]. Construíam-se cidades colossais para albergar aeroportos que depois nunca existiram, assim como se desbastaram áreas enormes de terreno para permitirem a passagem de um TGV que depois nunca passou[4]. E cada vez se percebia melhor, cada vez doía mais, mas não perceber já nem era possível: o dinheiro público andava a passar de mão em mão[5] de forma pouco clara, no mínimo.


    De Sócrates[6], o governo passou para as mãos de Passos Coelho[7], e nessa altura ouvíamos falar cada vez mais em luvas, empresas falidas, particulares insolventes, e jovens acabados de formar pelo Ensino Público a partir, a partir, e a partir. Por essa altura, começa também a estar na moda os Bancos irem ao fundo, os Banqueiros a apropriarem-se com tudo o que podiam e fugirem, ninguém os perseguia, e ninguém mostrava qualquer preocupação com os lesados destas transas porque tudo aquilo voltava a reconstruir-se com mais dinheiro de mais impostos.

    É exactamente neste ponto que se ouvem duas ou três piadas indecorosas, absolutamente destituídas de fundamento, sobre vir aí a falência do BES.

    person holding 20 us dollar bill

    Ora acontece que vivia ainda em Portugal, por esses dias, um jovem comediante que faz hoje stand-up em inglês para as multidões de empresários que esgotam os quartos dos hoteis de cinco estrelas na Arábia Saudita[8]. Formava uma pandilha que tinha um nome qualquer do género FEIOS, PORCOS E MAUS, juntamente com mais dois partenaires, uma idosa cheia de piercings e um total anarquista da caricatura, que reunia todos os sábados à noite para debater os diferentes e desgraçados impactos da pobreza imposta por Passos Coelho com a explicação sumária de estar a ser imposta pela UE. Não diziam nada que fosse especialmente interessante, mas quando os meus alunos de Mestrado vinham trabalhar para minha casa nessas alturas, pediam-me sempre para ver ao menos meia horinha daquilo. E é exactamente nesse sábado, dois dias depois das duas ou três piadas parvas sobre a falência do BES, que de repente, sem vir minimamente a propósito, o jovem comediante diz assim:

    “Epá, devia ser proibido por lei assustar as pessoas desta maneira. Se querem saber, eu, por mim, tenho uma valente conta a prazo no BES. E estou perfeitamente sossegado. Não corremos risco nenhum, por isso eu não tenciono minimamente tirá-la de lá!”

    Eu estava de joelhos no chão a organizar pilhas de fotocópias, e dei um tal salto de raiva que espalhei tudo à minha volta.

    “Cabrão de merda!”, gritei eu para a imagem do comediante na televisão. “Com que então, até tu estavas à venda?” – virei-me para os meus aluninhos perplexos. “Vocês não viram bem este filme de terror? Como aquele menino é o amor de toda a gente, o BES paga-lhe uma fortuna para ele chegar ao debate e aconselhar as pessoas a não tirarem o seu dinheiro do BES, uma vez que até ELE continua a ter o seu dinheiraço do BES! Puta que pariu, isto é perfídia pura. Ai, meninos, tirem-me deste filme. Não aguento continuar a assistir ao espectáculo da corrupção crescente que grassa no meu próprio País!”

    “Ó Professora!”, disseram logo os mestrandos, cada um para seu lado. “A Professora é que devia estar a dizer essas coisas na televisão! Vá para a televisão, por favor, vá dizer essas coisas na televisão!”

    “A televisão? A televisão ia querer-me lá a dizer estas coisas?” – e logo a seguir saiu-me de chofre, antes sequer de pensar: “Ai, foda-se. Então os meninos ainda não notaram que já nem sequer há televisão?”

    E pronto, poucos meses mais tarde não estava na televisão: estava antes nos Estados Unidos.

    Espero que ao menos apreciem os meus dotes visionários, e que, não sendo eu o Sérgio Conceição, possam perdoar-me pelo meu vernáculo. A questão é que vocês ainda não me conhecem. O que faz perfeito sentido, porque eu própria ainda não me conheço assim tão bem como isso.


    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O Presidente do FCP teria certamente feito coro connosco, ou pelo menos aplaudido o nosso arroubo de fusão, mas quando se deu este fenómeno místico o eterno Contra-Almirante não estava lá na casa de Alfama para escutar as minhas palavras – as tais que me saíram por instinto puro, mas que pareciam mesmo saídas de um daqueles comentários que o seu treinador cospe para a relva quando foi posto fora num vermelho directo. Só falei uma única vez com Jorge Nuno num qualquer jogo brutal em que fui convidada de homenagem, aliás de tanta homenagem que me sentaram mesmo ao lado dele, logo ali na fila da frente. Estava um frio de Inverno nortenho que mal se tolerava, eu trazia um casaco de raposa apache de bolsos grandes e franjas enormes, e, parte bem educada parte piedosa, ofereci-lhe o bolso do seu lado para ele aquecer a mão. O Grande Chefe fez o sorriso de Raposa Matreira mais bem esgalhado deste mundo, sem precisar sequer de olhar para mim, e disse apenas, só para eu ouvir, “eheheh – cuidado com as escutas!”.

    [2] É incrível, agora, ao fim de todos estes anos de tangas políticas e financeiras cada vez piores, lembrarmo-nos da energia que ainda gastámos a discutir uns com os outros se o que estava em causa era mesmo o benefício dos eleitores, ou se era outra coisa qualquer ainda mal definida, mas que já não pressagiava nada de bom.

    [3] Nunca ninguém me explicou claramente, no entanto, se os produtores desses “frescos”, que o governo dizia querer “beneficiar”, iriam ter que pagar aquelas portagens chorudas que se pagam nas autoestradas, ou se quê. Nem sabemos bem se essas autoestradas ainda estão funcionais. O Vale da Régua, um dos maiores milagres das nossas paisagens naturais, agora tem por cima uma ponte colossal, feia como cornos (oops, lá saltou outra vez cá de dentro o Sérgio Conceição), posta ali há quase vinte anos como tabuleiro da Autoestrada de Viseu. Passei lá por cima uma vez, para mostrar a paisagem a uns estrangeiros – e bem me lixei porque aquilo era tudo gente concernée, que não queria acreditar que um Governo Europeu, secundado por toda a União Europeia, tivesse admitido erguer-se ali uma tal infâmia. Foi tão penoso que acabei por explicar que a ponte da autoestrada fora paga com as fortunas dos Casinos de Macau, que incluíam muitas vezes nos prémios passeios românticos Douro acima em Barcos Rabelos – e que os primeiros compradores de mais aquela jogatana dançante do Senhor Stanley Ho tinham sido os espanhois, e não os portugueses.

    [4] E boas reportagens sobre tudo isto? Não nos fizeram imensa falta? Não continuam a fazer-nos imensa falta? De que é que os jornalistas têm medo? Dos dois matulões da MOSSAD que andavam aí a desempenhar as funções de guarda-costas de Ricardo Salgado? Ah, por favor, isto ainda não é a faixa de Gaza, quand même. Mandem-me lá a mim, que eu faço. Não tenho filhinhos pequeninos nem paizinhos velhinhos. Escuso de estar aqui a empatar.

    [5] Curiosidade interessante, a recordar algumas regras elementares da taxonomia: o dinheiro passava, de facto de mão em mão – mas essas mãos tinham que ser sempre as mesmas, ou recomendadas por outras iguais.

    [6] Notícias posteriores sobre a vida deste ex- PM: a) as suas férias na Quinta do Lago eram tão pagas pelos contribuintes como o seu apartamento caríssimo em Paris; b) o título de Engº vinha-lhe de um Mestrado feito por medida numa qualquer Universidade Privada, cara mas camarada; e c) ao fim de uns tempos foi preso, mas ninguém explicou aos portugueses porquê.

    [7] Foi um senhor que concorreu às legislativas enquanto social-democrata. Nunca sorria, mas explicava que isso era de ver o País em tão mau estado. Bastaram dois ou três meses para se perceber com toda a evidência deste mundo que, na realidade, o senhor não era nada um social-democrata: era mas era um perigosíssimo neo-liberal, e assim continuou até ao fim do seu mandato. Também não percebo como podem manter-se no poder pessoas que afinal não representam minimamente o que disseram que iam representar. Só me lembro de já estar no desemprego, a cair de fome, sono, e frio, numa fila para o subsídio algures em Sintra, e ouvir o cretino dizer na rádio, todo cheio de si próprio, “temos que fazer cortes substanciais no desemprego, porque há demasiadas pessoas que vivem de expedientes.” Filho da mãe. Houve quem chorasse. Ex-pe-di-en-tes!

    [8] Ou, escrevendo a mesma frase de maneira mais sucinta: “… que faz hoje fortunas obscenas no Médio Oriente.”

  • Pois se até Deus mete água…

    Pois se até Deus mete água…

    De que estás a falar, Mítia?

     “Ideias, ideias, é isso! Ética! Que coisa é essa, a ética?

    Ética? – surpreendeu-se Aliocha.

    “Sim, é uma ciência ou quê?

    “É, existe uma ciência com esse nome… mas…  confesso que não te sei explicar que ciência é essa.”

                    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Clarinha, tu passaste-te mesmo? Então a tua casa de sonho ainda agora acabou de arder, e tu não te lembras de nada melhor do que desperdiçares uma noite inteira do teu precioso tempo a reler OS IRMÃOS KARAMÁZOV, em todas as suas quatro partes mais o epílogo?

    Olhem lá, calma, por  favor, muita calma – eu posso explicar. Estava à procura de um breve discurso proferido, sabia eu lá aonde numa obra tão grande[1], por uma jovenzinha histérica, febril, sedutora, manipuladora, encantadora, e demoníaca, às vezes tão frágil que tem que andar de cadeira de rodas. Com esta descrição é evidente que eu não ia longe em termos de posicionamento geográfico, uma vez que alguém assim dotado poderia  corresponder a uns bons 85% dos personagens Dostoiévski, incluindo Deus-Pai propriamente dito[2].


    Porque é que eu queria tanto encontrar esta menina[3]? Parte era o fascínio da sua revolta contra o mundo, que tem tudo a ver com casas a arderem. E a outra parte, aquela que nunca mudou do século XIX para o século XXI embora os regimes tenham mudado várias vezes no entretanto, era a sua revolta contra toda a corrupção que campeia na Rússia czarista do século XIX, observada e descrita em grande angular pelos poderes do seu olho de lince. Lise já viu tanto que “simplesmente, não quero fazer o bem, quero fazer o mal, e nisso não há doença nenhuma[4]” – “Porquê o mal?[5]” – “Para que não reste nada, em lado nenhum!

    Regresso a esta história para nos recordarmos do poder dos lugares-comuns: é indiscutível que a História se repete. E, por isso mesmo, é inevitável que a gente cultive uma vaga fantasia em que o mundo inteiro fica deserto e nós podemos recomeçar a partir do zero, conscientes dos disparates do passado. Deus estava a dar asas à mesma fantasia quando mandou Noé construir a Arca e enfiar lá dentro toda a sua família disfuncional e todos os animais aos pares[6] e pronto – se fantasias destas correm mal até a Deus, é porque se baseiam em fundações espirituais, quando precisariam de ser materiais. Mas as causas de erros destes aprendem-se depressa, não são fenómenos que se esqueçam, e portanto não nos impediriam de fazermos tudo correctamente da próxima vez[7].

    Para fazermos tudo correctamente bastaria mudar a estratégia em que cada um quer é meter ao bolso tudo quanto pertence aos outros[8], passando antes à táctica da actividade em cooperativa, com comunhão absoluta de bens[9] e de horários de trabalho.

    Alguém se chega à frente para uma aventura destas?

    CPC, aos 32 anos, a falar de trabalho
    O entrevistador bem queria que ela lhe falasse antes dos seus amores, mas aí ela fechou-se sempre em copas. Amar não é nenhum serviço de utilidade pública.

    Antes de se extinguirem, houve dinossauros que parecem ter adoptado a postura bípede e desenvolvido um cérebro anormalmente volumoso, portanto é muito possível que a História já se repetisse na Terciária. Se hoje em dia o mundo está cheio de pobreza, já lá vão muitos séculos em que o mundo esteve cheio de miséria. Se o estilo de vida moderno potenciou a disseminação da COVID pelo mundo[10], ainda há um século atrás morriam portugueses como tordos porque ninguém sabia controlar a chamada “gripe espanhola[11]”. Se a Guerra da Ucrânia é de uma brutalidade e de uma estupidez de deitar as mãos à cabeça, recorde-se que o pesadelo da Guerra do Iémen não deixou de existir só porque desapareceu das notícias.

    Mas, no meio de todo este negrume em que as corujas piam e os mochos arrancam os olhos àqueles que ficaram caídos para trás, honrosamente mortos em combate, a gente costumava ter por Portugal um orgulho merecido, e considerar os nossos Presidentes da República pessoas com verdadeira classe, mesmo depois de o Sarkozy já se ter casado com a Carla Bruni. Boas escolas, bom Serviço Nacional de Saúde, respeito rigoroso pelas regras da Reforma, políticos empenhados, polícias, GNRs, e militares civilizados, bom feitio excepto quando ao volante[12] – quem é que não quer?

    E quem é que notou, ainda antes de mim, que, por qualquer caminho tão ínvio como estes caminhos têm mesmo de ser, de repente toda a fachada portuguesa estava igual – mas que, por trás da fachada, o comportamento das pessoas importantes era cada vez mais uma mentira?

    A pena que eu tenho de, nessa altura, não ter apostado nada com ninguém.

    Mas enfim, sou contra as apostas – e, ao menos, fui consistente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E onde tanta gente faz tantos discursos, todos eles tão “histéricos”, tão “febris”, tão “brilhantes de terrível raiva”, e (o meu preferido) tão “desfigurados”.

    [2] Neste romance, de forma assustadoramente sistemática até para os ateus, o Demónio é muito melhor tratado do que Deus pelo autor.

    [3] De seu nome “Lise”, por causa de “Lise” ser “Lisa” em francês, e a acção decorrer entre a alta burguesia russa.

    [4] Dostoievski não é considerado “uma das figuras de proa na consolidação da Psicologia” por acaso. E escreve exactamente no período histórico em que a própria Psiquiatria começa a organizar-se. Este momento poderoso de mudança de paradigma arrasta consigo, no entanto, um problema nada desprezível: todos os estados de espírito mais agitados de todas as pessoas passam a ser considerados “doenças”. Destas, a mais abundante é a infame “febre nervosa.” Só posso acrescentar que prefiro viver agora.

    [5] O pobre irmão que escuta estas confidências com o voto de sigilo total é Aliocha, o que escolheu a vida de monge.

    [6] Isto sim! Isto é que é NÃO SABER MESMO NADA sobre a fauna do planeta, sobretudo quando comparada com a mísera fauna da bacia do Rio Jordão.

    [7] Nem nós, nem Deus. Mas nota-se que Deus está amuado e ficou farto. Com toda a razão.

    [8] Incluindo a sua mulher, ou mesmo as suas mulheres, comportamento que se percebe depressa que Deus detesta.

    [9] A mulher do próximo não é nenhum “bem”, estamos entendidos?

    [10] E vá, deêm algum crédito à ciência: nunca se tinham desenvolvido tantas vacinas, tão depressa, para uma doença completamente nova.

    [11] Viroses, vacinas, bactérias, antibióticos – são tudo técnicas que começam a florescer no período que rodeia a II Guerra Mundial. É também aqui que aparece o Salvarsan, ou seja, uma forma eficaz de travar a progressão da sífilis depois de quinhentos anos de inferno.

    [12] Aquando da sua primeira visita a Lisboa, o Dick aprendeu logo comigo uma palavra que eu própria nunca antes reparei que usava o tempo todo quando ia a guiar: era qualquer coisa como “canoagem”, o que não fazia sentido nenhum. Ao fim de uns bons dez minutos, lá se esclareceu o mistério: “CABRONAGEM!!!! CABRONAGEM!!!!”, gritava eu, furibunda, para todos os carros de todas as filas que estivessem à minha frente.