Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


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  • O final do alcoolismo

    O final do alcoolismo

    Continuava a sentir-me no país de outro homem, sentia a forma como era estrangeiro, a minha solidão.

    V.S. Naipaul

    THE ENIGMA OF ARRIVAL


    Os momentos em que os governos das democracias recentes tomam posse costumam ser aqueles em que o eleitorado insuspeito sente mais dificuldades em perceber como é que vão concretizar-se novas medidas que nos façam de facto mais felizes, e o momento presente, em que se testam as primeiras águas do novo governo, não foge à regra. Um quarto dos eleitores de Estremoz votou na AD. Mas essas pessoas, agora, terão todas a ganhar com os cortes nos impostos que se perspectivam? Serão todas elas mais felizes quando entrarem em vigor as novas margens de manobra para as rendas das casas? E o pior é ouvir a Assembleia da República em peso a discutir o novo Orçamento Geral do Estado. Pergunto-me qual dos meus vizinhos é que vai beneficiar com ele e não sei. Não sou tão burra como pareço, bolas. Apenas não vivo naquele país, pela simples razão de que nem toda a gente lá vive.


    Se a democracia portuguesa fosse tão disfuncional como qualquer outra nas suas redondezas, então os portugueses não abandonavam Melides para irem trabalhar em Andorra, nem trocavam Lisboa por Berna, nem largavam São Pedro de Moel para se fixarem em Cardiff, nem tomavam mais nenhuma das muitíssimas outras opções de vida deprimentes que podiam listar-se daqui em diante, o que aliás seria completamente desnecessário porque a moral da história está mais do que implícita: a democracia portuguesa só pode ser disfuncional, porque, por mais que o seu país seja bonito e agradável, e ainda por cima cheio de gente a quem os mesmos adjectivos se aplicam, os portugueses continuam a deixá-lo para trás, geração atrás de geração atrás de geração. Temos o clima que temos e gozamo-lo com a nossa proverbial simpatia, enquanto que em Londres chove o ano inteiro, o céu do fim da tarde fica negro de estorninhos que são uma praga infestante pior que os pombos, e as pessoas têm um carácter tão tendencialmente agreste que já ninguém que partilhe a sua vida volta para casa sem passar primeiro pelas happy hours da saída dos empregos. E, no entanto, é para lá que não param de partir os jovens portugueses – em bandos, como os estorninhos. E, no entanto, ali estão os nossos novos governantes a debater as suas novas medidas, que farão dos portugueses um povo feliz. A seguir os comentadores políticos falam interminavelmente sobre quem disse o que quê nessa nova lista das compras do que desta vez se pretende fazer, como se a  lista em si nos tivesse parecido diferente de várias outras, ou como se o tempo em que todos vivíamos bem em Portugal e pagávamos em Euros essas vidas já tivesse existido.

    man and woman sitting and facing near concrete fence during golden hour

    Uma democracia não perde a sua virtude democrática por ser disfuncional. Nem Portugal é a única democracia disfuncional de toda a Europa, para não irmos mais longe. Um país pode ter o seu eleitorado dividido quase ao meio entre a extrema-direita e o socialismo, como o Brasil ou os Estados Unidos, que isso não torna a sua democracia disfuncional, por muito que possamos dizer cobras e lagartos de metade dos seus habitantes. Mas não são falsidades como as de Trump, ou manipulações de contagens de votos como as de Bush Jr., que levam levam os americanos a abandonar o seu país. O que faz partir um grande número de portugueses é a escassez de políticas frontalmente empenhadas na maior felicidade de quem não tiver garantias de meios. Ou seja, o que torna uma democracia disfuncional é notar-se que está atravessada por uma linha horizontal, e tudo o que se passa na sua política e nas suas instituições, a beneficiar alguém, beneficia quem se encontra no espaço superior a essa linha. No espaço inferior a essa linha as pessoas ou dificilmente são beneficiadas, ou – com bastante frequência – são prejudicadas.

    Como a maioria dos portugueses, as pessoas aqui em Estremoz podem ter poucos meios mas fazem tudo o que podem para se sentirem felizes, e usam todos os pretextos a que têm acesso para se divertirem. Além de todas as datas mágicas que se prestam a feriados, pontes, bandas, e danças, procuram-se pretextos especiais para almoços e jantares sempre que estes são possíveis, e basta haver sol para se juntarem grupos nas esplanadas assim como basta que as noites aqueçam para que quem vive dentro das casas se sente cá fora, nos degraus da entrada, a conversar em voz branda para um lado e outro da rua ou mesmo só a ver quem passa. Mas ultimamente festeja-se menos, porque a metade do país que fica na linha inferior da disfuncionalidade não tem dinheiro para festejos. Muita gente não tem nesse extracto não tem dinheiro nem para convidar um amigo, um único, para almoçar ou para jantar. É possível ir para uma esplanada e só tomar um café, mas só um café compra menos tempo. Isto faz todas estas pessoas verem-se quase de repente obrigadas a viver muito mais sós. E, por isso mesmo, mais tristes.

    a woman sitting on a wooden swing in the middle of a field

    Os cálculos de poupança que levavam estas pessoas a ir abastecer e comprar gás a Badajoz podiam não estar feitos a regra e esquadro, mas a verdade é que os abastecimentos em Espanha já eram um hábito antigo, que se tinham generalizado ainda mais depois de começar a Guerra da Ucrânia – e, com ela, começarem as subidas de preço da gasolina, que em Portugal pareciam suceder-se dia sim dia não. Agora quem vive abaixo da linha divisória não abastece em Espanha coisa nenhuma. Nem compra gás. Se por qualquer razão a sua vida depender mesmo de ir a Badajoz, já nem apanha a autoestrada. Ir passear a Espanha, fazer umas compras, e de caminho meter gasolina, podia ser uma tradição que perdeu todo o sentido financeiro com o passar do tempo. Mas foi uma tradição de décadas, e os preços recentes da gasolina portuguesa rejuvenesceram-na. Até pode não ser ir abastecer a Badajoz que faz falta. Mas saber-se que se pode, mesmo que pouco ou nada se ganhe com a manobra – isso sim, isso claro que faz falta. E, para quem já tem pouco dinheiro, é uma recordação acrescida de que passou a haver ainda menos dinheiro, de tal forma que já praticamente nada depende do que queremos fazer mas antes do que somos obrigados a fazer. As grandes depressões não têm só por causa grandes desgostos de amor.

    Tenho ouvido várias vezes falar da falta de dinheiro para comprar medicação prescrita para tomar duas vezes ao dia pela mãe, pelo pai, por um dos filhos, ou pela própria pessoa que está a falar comigo. O ano passado, as farmácias armaram-se de umas maquinetas que não deixam sair um único medicamento que não seja pago primeiro – e não devem ter feito isso por acaso. Às vezes eu por acaso sei que os fármacos que as pessoas não conseguem comprar são fundamentais para o convívio com uma ou outra doença mais ou menos séria. “Então mas estás sem comprar isso há quanto tempo?” – “Há uns dois ou três meses, o que é que tu queres?

    A história mais impressionante daqui do fundo da linha, no entanto, para mim foi a dos bêbedos.

    Quando acaba a folia do Carnaval, tenho por hábito ir tomar café, tão cedo quanto possível, a um barzinho que fica aberto a noite inteira, e de onde, por vezes, ainda vão os últimos bêbedos a retirar-se aos risos, caminhando sem tombos por forma a homenagearem as suas máscaras de mulheres. Faço isto para ouvir as conversas dos velhotes, que entretanto chegam a passo vagaroso, de samarra vestida e boné na cabeça em qualquer altura do ano, para se encostarem ao balcão, pedirem o seu café com bagaço ou então só o seu bagaço, e começarem a questionar o jovem proprietário sobre os bêbedos do Carnaval.

    clear glass tumbler on brown wooden tray

    Ainda no ano passado, a conversa, quando eu entrei, ia nisto:

    Então oh pá. E tivestes cá muito bêbedo?

    O rapaz até apoiou a cabeça na mão antes de se pôr a acenar.

    Ai deixem-me cá.

    Os velhotes inclinaram-se por cima do balcão.

    Tudo maluco, era? Tudo aos berros? Dá-me aí outra pinguinha. Muita bêbedo, hã?

    O rapaz tinha um pano na mão, que pousou de repente para calar toda a assembleia num só gesto.

    Vocês não imaginam a quantidade de miúdas bêbedas que me entraram por aqui adentro, ouviram? Miúdas novinhas, miúdas da idade da minha filha, pois acreditem, aparecem-me aqui com catorze anos e nem se têm em pé, e lá fora umas gritam, outras vomitam, e eu só insisto que não as sirvo, mas é que não as sirvo, e que não as sirvo nem por nada, e elas a dizerem-me de todas as tendinhas onde as serviram e eu que dali que se ponham mas é a andar antes que eu chame a polícia, e elas num estado que já nem queriam saber, eu não servia nem rapazes de catorze anos mas olhem que elas são piores, até tentaram ir-me à cara, se não estivessem tão bêbedas ainda me matavam.

    Os velhotes ouviram aquilo tudo sem dizer uma palavra, e a seguir puseram-se a debater baixinho qual deles é que já se metia assim nos copos aos catorze anos. E, sobretudo, se no tempo deles alguma miúda faria o mesmo.

    Fazer, faziam,” concluiu lapidarmente um dos mais velhos. “Aí por esses montes, onde não havia mais nada, onde não vivia mais ninguém, onde os pais e as mães estavam sempre borrachos e toda a gente sabia onde é que ficavam as chaves para as adegas, vá que às vezes faziam. Mas não faziam era essas figuras, e muito menos vinham fazê-las às claras para o centro da cidade.

    O centro histórico, ainda por cima,” protestou outro velho, menos velho.

    Na esperança de testemunhar mais material que pode sempre vir a ser usado para qualquer coisa, este ano voltei ao barzinho logo a seguir ao Carnaval.

    a man laying in the grass with a bottle of beer

    Como cheguei bastante mais tarde, encontrei tudo muito limpo e arrumado e não estava lá dentro velho nenhum.

    O que vale é que, à custa de tanto trabalho de campo, por estes dias o rapaz já me conhece bem.

    Então conte lá,” perguntei eu, à falta de quem o fizesse por mim, “como é que foi esta noite, muitos bêbedos?

    Ele pôs-me o café e o copo de água do costume em cima do balcão, sem sequer fazer uma daquelas suas perguntas de gozo mútuo como por exemplo “ora então diga-me lá em que é que esta humilde casa pode servi-la.” Depois olhou para mim com um ar de desgosto tão sincero, tão sentido, que não podia ser nenhuma fita.

    E disse:

    Olhe, menina Clarinha. Não há mais esperança. Até já os bêbedos estão tesos.

    E foi acabar de fechar a loja sem mais uma palavra.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • O inferno é um estado de espírito

    O inferno é um estado de espírito

    Já não receio nada.

    Braço dados contigo,

    Desafio o meu século.

    Friedrich Schiller

    Século XVIII


    Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]

    E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.


    O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.

    Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.

    Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.

    O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.

    silhouette photography of trees

    No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.

    No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.

    No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.

    O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.

    No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.

    No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.

    E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Agora digam lá.

    É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?

    Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.

    Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.

    Mas acontece que há caminho.

    Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.

    Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.

    Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.

    Não parece porque não foi[8].

    Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?

    a bridge built into the side of a mountain

    Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.

    Já sabemos que vai ser muito dura.

    Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.

    [2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.

    [3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.

    [4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.

    [5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.

    [6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”

    [7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.

    [8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.

    [9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.

    [10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.

    [11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.


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  • O abismo

    O abismo

    Como as de todas as outras paixões, as raízes do ódios são imprevisíveis.

    Jorge Luis Borges


    Aqui há uma semana acordei com telefones a tocar em protestos solidários, o correio electrónico cheio de mensagens encorajadoras, e o Facebook pejado de nomes feios destinados a uma pessoa que eu desconhecia em absoluto. Por fim, o meu editor fez-me chegar uma espécie de CV do Inferno que o tal desconhecido acabava de publicar no Diário de Notícias, onde até este mesmo PÁGINA UM era insultado por minha causa, e todos os acontecimentos desagradáveis de há vinte e quinze anos voltavam a ser esmiuçados em parágrafos intermináveis[1]. No entanto, e assaz curiosamente para quem se tinha dado a tanto trabalho de rememoração desagradável, tudo aquilo estava positivamente juncados de incorrecções. Comecei a ler o texto com toda a atenção, e a questão das tais incorrecções, incluindo erros nos anos dos acontecimentos e outras trapalhices muitíssimos piores, começou a despertar-me a curiosidade. Aquele chorrilho de grosserias parecia escrito à pressa por um estagiário[2] assanhado, e era um exemplo de livro de texto de como não se pode fazer jornalismo, mesmo se feito por um colunista. Comecei a tomar notas.


    A primeira estranheza era mesmo logo no princípio, na frase relativa à altura em que, quando ainda estava a meio do curso de Biologia, entrei para a redacção do semanário O JORNAL, e, quatro anos mais tarde, publiquei o meu primeiro romance. Ora, sendo que a frase começava com as palavras…

    “… nos seus tempos de oiro, muito novinha…”

              … só pude concluir que aquela pessoa estava, no mínimo, extremamente distraída.

    Não tive nenhuns tempos de oiro quando era muito novinha. Tive, isso sim, tempos exigentes em que estudava Biologia quando o resto do País estava todo bronzeado nas filas da camioneta para a Caparica[3], e trabalhava em jornalismo ao mesmo tempo, com dedicação por inteiro ao JORNAL e em mais não sei quantos ganchos para chegar ao fim do mês[4] – e, para onde quer que me virasse, esbarrava constantemente em boatos de que ia para a cama com toda a gente e mais alguém para conseguir fazer todas as coisas que fazia. Se isto são tempos de oiro vo,u ali já venho.

    A seguir o senhor admite que ADEUS, PRINCESA, o meu segundo romance, grangeou um grande respeito da crítica literária (não acrescenta, embora tivesse sido fácil de verificar, que esse respeito, e a consequente explosão de vendas, levou três anos a fazer o seu caminho). Segue-se uma passagem surpreendente, em que nos explica que, quando Vasco Pulido Valente o considerou “o melhor romance português desde OS MAIAS”, o fez apenas por “puro efeito de provocação” – e a pessoa interroga-se, “como é que ele sabe? Falou com o Vasco? E, a ser verdade, o Vasco havia de ser tão burro que lhe dizia isso mesmo na cara? Está bem que o Vasco tinha os seus defeitos – mas burro?” Quer dizer, poupem-nos. Quando eu era aprendiz de jornalista, escrevia uma patetice destas, totalmente infundada e baseada apenas no meu sentimento pessoal, e o Fernando Assis Pacheco ia-me à cara.

    Perfil’ sobre Clara Pinto Correia do ‘historiador’ António Araújo, professor universitário e também membro do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também conhecido por ‘Fundação Pingo Doce’.

    Já agora, só para atestar mais uma vez a total  falta de cuidado com que o autor destes dislates faz o seu trabalho, há uma altura em que envereda pela minha vida pessoal. E aí os seus erros, todos eles facílimos de verificar e de corrigir, acumulam-se de tal forma que alguém bem intencionado na redacção do seu jornal deveria ter arranjado uma desculpa inocente, como por exemplo falta de espaço, para cortar aquilo tudo e poupar ao mais puro dos ridículos um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.

    A primeira argolada é afirmar que eu sou a irmã mais velha das quatro.

    Valha-me Deus, o senhor, se não gosta de fazer perguntas, não pode ao menos consultar o Facebook?

    A nossa “primogénita” (como o descuidado me chama, da forma mais insultuosa deste mundo para toda a minha família) é a Maria do Rosário, não sou eu. E isto não é uma pequena curiosidade sem importância. Ao longo de toda a nossa vida adulta – e certamente da minha –, a Ró tem sido a nossa grande organizadora, protectora, aquela que no Verão nos junta a todas na praia, e no Natal e na Páscoa se certifica que toda a gente se consegue reunir, quem vigia a saúde de quem fraqueja, todo um papel de mana mais velha que nunca estaria no meu feitio assumir – e talvez todas nós perdêssemos muito com isso.

    Segue-se a história comovente dos meus passeios em Tremês com o meu Pai, de casa dos meus avós até ao pomar das macieiras. O senhor menciona as minhas palavras comoventes quando digo que as nossas conversas nesse caminho foram fulcrais para estruturar na minha mente os passos do meu futuro. E cita-me: “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois e a passarada.”.

    Porreiro.

    Para já, sou uma grandessíssima parola.

    E ademais, ao que tudo indica com a conivência do meu Pai[5], imagina-se perfeitamente o sol e a passarada a estruturarem os passos do meu futuro. Com flores no cabelo, sandálias, ganzas, e o ashram do Ravi Shankar.

    white sheep on white surface

    Ensinam-nos que os jornalistas não manipulam as fontes, mas este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco. A minha frase sobre as caminhadas com o meu Pai que foram fulcrais  na estruturação do meu futuro eram antes,

    “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois, a passarada, e o anel de benzeno.”

    OK, é possível que a total ignorância do que pudesse ser um anel de benzeno tenha tornado aquela frase, escrita assim, incompreensível ao escrevinhador. Mas, uma vez mais: o jornalismo tem regras. Uma delas é que não se alteram as fontes. E, dê lá por onde der, de certeza que a internet está cheia de textos e videos a explicar o que é o anel de benzeno, como funciona, e a importância que tem na nossa vida. De certeza que até virá contado, algures, que Michael Faraday, o cientista que descobriu a sua estrutura em 1825, conseguiu chegar lá porque a viu claramente num sonho[6]. Descobrem-se coisas lindas, quando se faz investigação. Mas, com toda a evidência, estamos perante uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca.

    A seguir, o despistado lista as várias alcunhas que fui tendo na vida. Num novo exemplo de péssimo jornalismo, mistura os nomes familiares com os nomes profissionais, e nunca percebe que eram, todos eles, nomes extremamente carinhosos[7]. Em África, os meus tios chamavam-me “Pretinha” – o que não era certamente um insulto, e aliás eu tinha imenso orgulho em ser a pessoa mais escura da família. Um namorado que tive no JORNAL chamava-me “Minhoca” com a maior ternura deste mundo. O autor que não consegue perceber nada disto estampa-se ainda mais ao comprido logo a seguir, quando explica que, “como retaliação” eu chamava aos meus colegas “os fósseis,”

    É preciso não me conhecer de todo.

    E é preciso não ter perguntado nada a ninguém.

    Antes de mais nada, não sou minimamente dada a retaliações. E depois, quem é que vai retaliar tratamentos carinhosos? Como expliquei milhares de vezes[8], a história dos fósseis vinha do tempo do liceu, em 1976, dois anos depois da Revolução. De cada vez que nós, os membros aguerridos do esquerdalho, passávamos o portão e esbarrávamos com “os fascistas” de corrente da moto na mão para darem cabo de nós, bem podíamos ficar com as pernas todas rasgadas que não nos abstínhamos da vingança. Íamos para casa de alguém que não tivesse lá os pais, ligávamos para um dos fascistas em causa, esperávamos que viesse a mãezinha ao telefone, e um de nós dizia, no tom mais ameaçador deste mundo,

    “Brigadas de Extermínio aos Fósseis. O seu filho que não saia de casa amanhã, ou não responderemos por nós.”

    Depois, no dia seguinte, o fascista faltava às aulas e nós fartávamo-nos de rir.

    black haired man making face

    É certo que eram outros tempos. Mas quando, aos vinte anos, de shortinhos e top porque era Julho, entrei para uma redacção onde as únicas mulheres eram a Edite Soeiro[9] e a Lurdes Feyo, ambas bastante mais velhas do que eu, e aqueles gajos todos, também mais velhos do que eu, começaram a atirar-se a mim como se eu tivesse nascido ontem, mas depois ficaram muito ofendidos porque os meus palavrões ainda eram mais criativos do que os deles – ah, sim, as BEFs voltaram a acender-se na minha memória e desatei a correr toda a gente a fóssil. Mas isto era no gozo. No gozo”, percebe-se a certa altura, é uma atitude que este jornalista limitado não entende.

    Vale também a pena salientar que há mais passagens interessantes relativas aos talentos de crítico literário deste personagem. A primeira é quando está a listar os diversos tipos de literatura que eu fui cobrindo nas mais de cinquenta obras que escrevi até hoje. Uma delas, segundo este entendido, é a “ficção científica” – com tanto azar, logo um género que eu francamente detesto. Ou seja, a minha produção literária está a ser-nos apresentada por uma pessoa incapaz de distinguir homenzinhos verdes de um outro género que, esse sim, é uma das grandes paixões da minha vida, a divulgação científica.

    Com uma cabeça destas, já não causa grande surpresa que, mais à frente, o grande crítico conceda que sou uma grande cientista (em matérias que ele ignora de todo) mas que os meus livros não prestam. Deduz-se que os leu todos com imensa atenção, que os sublinhou, que marcou as passagens desastrosas, porque só depois de um trabalho destes é que um bom jornalista poderia fazer semelhante afirmação. Vamos acreditar que sim e imaginar que o que deitou tudo a perder foi, digamos, o meu  livro infantil A HISTÓRIA HORROROSA DOS PEIXINHOS AMARELOS, sobre o qual seria interessante fazer-lhe algumas perguntas tão bem preparadas como a crítica literária dele. Mas já  repararam numa coisa? Santo Deus, os editores portugueses devem ser completamente cretinos, não é[10]? Para terem publicado tantos livros meus. E olhem que consegui enganar muito bem os americanos. E os japoneses, que traduzem o meu trabalho científico? Ora, nada mais fácil. Mais de metade do artigo é dedicado a dissecar a minha arte para enganar toda a gente. Por que é que não havia de enganar também os estrangeiros[11]?

    E olhem, segundo este apressado cronista de costumes também houve alguém que enganei muito bem quando fui casar-me a Las Vegas. Aquilo de que eu me lembro é de ter ido lá casar-me com o Dick, o pai dos meus filhos, o meu companheiro  de dezassete anos de vida no Massachusetts, e lembro-me de todos, todos, todos os pormenores. Mas como o autor do artigo escreve por ouvir dizer… fui a correr casar-me a Las Vegas com o autor “daquelas” fotografias, para atenuar a escandaleira nacional[12].

    Só depois disto é que volta a entrar a parte do interesse de Portugal por mim, que já agora corrijo.

    O grande interesse de Portugal por mim registou-se mais entre os 32 e os 40 anos – quando, entre várias outras coisas, já tinha clonado mamíferos muito antes de nascer a Dolly, coisa que o autor não parece ter minimamente registado… e, bem, tinha-se tornado completamente impossível ir para a cama com o mundo inteiro para conseguir fazer o que fazia, incluindo passar quinze dias na Ilha da Páscoa, correr a URSS de comboio e vir-me embora uma semana antes do sonho socialista acabar, doutorar-me, fazer clones, e ir estudar História da Ciência para Harvard. Estou a ler as trapalhadas de datas e de afirmações não atribuídas, a pensar que em jornalismo não se faz isto, e…

              … e depois descubro que o senhor distraído não é um jornalista.

    O homem que não estudou nada do que escreveu é um historiador, pelo que aqui eu já começo a ficar seriamente preocupada[13].

    Será que ele dá aulas?

    E ensinará ele aos alunos a expressarem-se desta forma que, se é errada em jornalismo, em História é pura e simplesmente inaceitável?

    black swivel chair beside rectangular brown wooden desk

    Parece que vive no Alentejo e continua a deslocar-se aos Estados Unidos.”

    Parece?

    Mas o que vem a ser esta balda, este “parece”?

    Então e a verificação das fontes?

    Deveria ser bastante fácil investigar se eu estou ou não a viver no Alentejo – aliás, bastaria ler o mesmo PÁGINA UM pelo qual o nosso historiador, para me desprezar a mim, mostrou um desprezo alarve na sua peça. Da mesma forma, era só sondar o consulado americano e ficaria logo a saber que não – já não me desloco aos Estados Unidos, ou pelo menos certamente não em trabalho. E porquê? Santo Deus, se não quisesse perguntar-me directamente que perguntasse à Segurança Social Portuguesa: estou reformada antecipadamente por invalidez, demasiadamente doente para pode manter horários lectivos constantes e fiáveis.

    O que, acto contínuo, desmente outro “parece que” do nosso brilhante historiador: claro que, se estou reformada, já não sou catedrática na Universidade Lusófona.

              E, uma vez mais, que raio de desmazelo vem a ser este? Um historiador que faz o seu trabalho com seriedade, e que pelos vistos não tem coragem para esclarecer as suas dúvidas directamente comigo (que diabo, tenho um Facebook chamado Clara Pinto Correia e é meu hábito responder às mensagens que recebo) não é pelo menos capaz de agarrar no telefone, ligar para os recursos humanos da minha antiga universidade, e perguntar se eu ainda lá estou a trabalhar? A pessoa até treme, só de imaginar o que serão os seus artigos da especialidade. Consta. Parece que. Dizem. Bibliografia por ouvir dizer. E depois dizem que os alunos portugueses são medíocres, e que têm dificuldades de concentração, e que observam terríveis graus de absentismo. Mas por favor, está toda a gente a ver bem o exemplo que lhes chega de cima?

    Miguel Relvas perdeu, muito merecidamente, o seu grau de doutor. Mais merecidamente ainda, esta nulidade devia perder já o seu grau de historiador. Pode insultar-me à vontade, se isso lhe dá prazer. Mas não pode passar aos miúdos que estão a tentar definir a sua vida a noção de que um historiador é um insultador que manda vir como muito bem lhe apetecer com a maior das leviandades. Até pode tornar a minha irmã mais velha mais nova do que eu, porque, como toda a gente sabe, essas minudências nunca tiveram, nem nunca terão, qualquer espécie de importância. E então em História.

    E este pensamento horrível traz-nos de volta aos insultos.

    Infelizmente, em toda a rodada de maledicência destinada a dizer mal de mim, não é só o PÁGINA UM que come por tabela. Mais perto do fim (porque se há uma outra coisa fundamental em História que este historiador nunca consegue observar é a regra-mestra da sequência cronológica), chegamos à parte em que eu abandono os estudos (nada podia ser mais falso) e me entrego a actividades fúteis do pior gosto e menor qualidade.

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    Logo a primeira é ter aceite um papel secundário no filme do António da Cunha Telles KISS ME. Epá, tenham dó. Cubram o Cunha Telles dos defeitos de personalidade e feitio que quiserem[14]. Agora, para me deixar mal vista, ter a lata de chamar a um dos maiores  e mais pioneiros cineastas portugueses fútil, foleiro, de mau gosto, de má qualidade… um historiador não tem que perceber de cinema, mas, à semelhança de todos os outros  académicos como nós, quando não sabe não tem que ir estudar? E, pela descrição do filme que faz a seguir, será que foi mesmo vê-lo? Mesmo, mesmo? Um verdadeiro historiador teria ido. Este limita-se a vituperar que é um filme com a Mariza Cruz. Que, diga-se de passagem, se revelou aqui uma actriz excelente.

    A minha segunda actividade fútil e de muito mau gosto foi ter aceite participar, juntamente com Rui Zink, Carlos Quevedo, e Mariza Cruz, no júri do concurso da TVI A BELA  E O MESTRE. O historiador nem sequer menciona que o nosso papel era integrarmos o júri, e ainda por cima junta a Paula Bobonne ao nosso elenco. Aqui as suas trapalhadas são ainda mais imperdoáveis, porque todos os episódios ficaram gravados, o que lhe teria permitido consultá-los e tirar a limpo o que aconteceu. Qual quê. Ao melhor estilo psicanalítico, o senhor tece várias considerações sobre o que leva uma figura do mundo cultural a aparecer ali, sem a mínima menção a razões semelhantes para o Rui ou para o Carlos, também eles pessoas do mundo cultural. A ideia evidente de que uma mãe solteira com dois adolescentes rebeldes em casa pudessse precisar de dinheiro talvez não lhe tenha passado pela cabeça[15]; mas, uma vez mais, perguntar não ofende. Agora, este historiador é de tal forma avesso a investigar os seus temas que ignorou o ponto principal: chegada ao terceiro episódio, e com o nível do concurso sempre a descer, com ou sem necessidade de dinheiro eu não aguentei mais aquilo e demiti-me. No último programa em que apareci para me despedir, entrevistada pelos apresentadores sobre a minha decisão, disse, apenas, “Sou professora Universitária. Este não é o meu mundo. De certeza que outras pessoas farão muito melhor o que se esperou de mim que eu fizesse.” E foi então – então sim – que a Paula Bobonne entrou para o meu lugar[16].

    E claro que fez aquele papel muitíssimo melhor do que eu.

    Até é uma história interessante.

    Mas, se estamos a braços com um historiador que não sabe dar-se ao trabalho sério e árduo de fazer História…

    … em vez de verdadeiros factos apanhamos antes com chorrilhos de faits divers.

    Muito foleiros, ainda por cima.

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    E extremamente perigosos para a motivação futura de quem ainda anda a estudar, o que não pode ser dito de nenhuma forma elegante: é um verdadeiro crime.

    Sabes, caro homúnculo que se realmente estudou História depois tratou de se  esquecer dela, e cujo nome nunca serei capaz de memorizar? Vi no fim do teu textículo que, ao que parece, as citações de Nietzsche te dão prazer mesmo que sejam completamente descabidas. Então, por uma questão de caridade, sugiro-te que não gastes mais o teu Nietzsche comigo. Porque calculo que saibas como é que isto acaba:

    “Se olhares muito tempo para o abismo, é o abismo que vai olhar para ti.[17]

    Há poucas coisa mais perigosas do que o olhar de volta que o abismo nos manda quando ousamos olhar estupidamente para ele.

    Tu tem lá cuidado com os teus futuros gatafunhos, piroso.[18]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E interminavelmente maus, além de interminavelmente mal escritos.

    [2] Ou mesmo, quem sabe, um “candidato a estagiário”, o escalão onde me arrumaram quem eu comecei a trabalhar no JORNAL.

    [3] Eram os exames de Julho. Por uma questão de princípios, nunca deixei nenhum exame para a segunda época.

    [4] Claro que este detalhe a criatura não poderia aber a menos que perguntasse ao Silva Pinto, mas, quando comecei a minha vida de jornalista – muito novinha, nesses tais tempos de oiro – o meu ordenado era de seis contos por mês. E eu aguentei-me como pude.

    [5] Que, ainda por cima, ainda passou ali uns anos consideráveis com bastante medo de que viesse a acontecer-me qualquer coisa como esta.

    [6] E vocês acham, porventura, que eu decorei isto tudo nas aulas de Bioquímica do segundo ano? Pelo amor de Deus. Fui agora mesmo ver à Wikipedia. Tal como o troca-tintas deveria ter feito, em vez de omitir o anel de benzeno quando cita a minha frase.

    [7] Não sendo psicanalista, atrevo-me a sugerir, perante esta estranha interpretação do sentido de nomes que só poderiam ser ou doces ou humorísticos, que talvez todas as alcunhas dele tenham sido insultuosas, razão pela qual não consegue interpretar nomezinhos queridinhos de outra maneira.

    [8] Uma vez mais, ele que investigasse, gaita.

    [9] Que, com o tempo, veio a ser a minha querida “Mãezinha”.

    [10] Bom, os editores e as pessoas que vêm ter comigo na rua a dizer “queria só que soubesse que o MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS é o meu livro preferido!”. Ou que me escrevem para o Facebook a dizer “Fiquei  fascinada com o MAIS-QUE-PERFEITO, mas emprestei-o e nunca mais o vi. Onde poderei encontrá-lo agora?”O que é que  eu hei de dizer, “deixem-se de coisas e leiam o MOBY DICK?”

    [11] Uma vez estava no  aeroporto de Frankfurt cheia de fomne e de sede, e só tinha uma nota de dez euros no bolso das calças. Epá, meus amigos, enganei ali uns dinamarqueses que foi um gosto.História absolutamente verdadeira excepto no uso do verbo enganar. Confraternizámos enquanto comíamos e bebíamos, foi mais isso.

    [12] Desculpem, está tudo doido?

    [13] “Seriamente preocupada” é um eufemismo, claro. Quantos “historiadores”  destes existirão em Portugal?

    [14] E nem sequer são merecidos.

    [15][15] Os meus colegas do mundo cultural lá teriam razões como as minhas.

    [16] E adorou tudo Aquilo. De onde se prova que aquele não era mesmo o meu mundo, independentemente do dinheiro para pôr os meus rapazes rebeldes na linha.

    [17] Nietzche, citação muito famosa que o homúnculo certamente já conheceu mas depois esqueceu, como tudo o resto.

    [18] Citando Valete, RAP CONSCIENTE. Quem conhece o seu trabalho conhece a continuação.


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  • Dinheiro sujo

    Dinheiro sujo

    A única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível.

    Mark Twain


    Esta história é absolutamente real, e, nessa condição, parece horrivelmente fantasiosa. Tem a ver com segredos que não são possíveis e sentimentos que não são credíveis, todos eles  revelados por uma única frase que um contabilista me repete duas vezes, a segunda mais contundente do que a primeira: “a doutora passe uma procuração ao seu advogado para ele ir lá ver o que se passa.” E eu, feita parva, ainda falo com o advogado a espernear: “se é para os bancários dizerem quem é que penhorou a minha conta e em quanto, porque é que não basta ir lá eu? Eles não têm a obrigação de me dizer o que se passa com a conta?” E o meu advogado, com os ouvidos cheios de conversas iguais: “Pois têm, Clarinha, pois têm. Mas nunca te vão dizer nada.” E eu, furiosa: “Mas porquê, pá? Porquê? A conta é minha, não é?” E ele, com um suspiro: “Pois é, Clarinha, pois é. Mas, quando há porcaria, eles têm um medo doido de dizerem seja o que for aos titulares das contas.” Medo? MEDO? Mas isto é o quê, é algum offshore na Colômbia onde se movimentam nas sombras personagens sem rosto de um romance do Graham Greene?


    Esclareça-se já que este sítio suspeito onde as pessoas têm medo de falar não está localizado em águas internacionais, os contabilistas que não o dizem claramente mas sabem muito bem que esse medo existe não trabalham para nenhum offshore, e os advogados que já não podem nem ouvir falar de penhoras que ninguém quer explicar aos titulares das contas não viajam em Executiva pelo mundo ao serviço de uma grande ONG de socorro aos lesados de grandes promessas a prazo que afinal eram grandes extorsões à ordem. Muito pelo contrário. Todas as pessoas envolvidas por esta novela financeira estão tranquilamente aqui, em Estremoz, à excepção dos bancários que se distribuem, em dias alternados, pelo eixo Estremoz – Vila Viçosa – Borba.

    Tanto medo, tanta procuração ao advogado, tanto conselho codificado do contabilista num cenário tão bucólico.

    a group of people walking down a hallway

    E, partindo do princípio saudável de que este estranho medo não me afecta só a mim, tanto alentejano tranquilo que tem por lei o direito de saber quem é que lhe penhorou a conta e em quanto, mas em vez disso anda para aí à toa porque os bancários se fecharam em copas e ainda hoje estão fechados.

    É que eu, vá lá. Posso estar um bocado à toa, mas sempre tenho para onde me virar. Tenho um óptimo contabilista que me dá bons conselhos e não cobra separadamente por eles, e um grande amigo que pode ser muito lento mas é seguramente muito entendido na matéria. Mas nem toda a gente tem estas benesses. Se eu já ando de cabeça perdida com o silêncio da banca, imagino o inferno que tudo isto será para quem tem que enfrentar sozinho esse mesmo silêncio. Entretanto o tempo passa, as taxas de juro aumentam, e a nossa possibilidade de falência vai crescendo, crescendo, crescendo.

    Esta penhora que afectou a minha conta foi a primeira penhora que alguma vez afectou a minha vida. Eu estava, portanto, completamente virgem na matéria. O banco tinha a obrigação legal de me fornecer todas as informações que me ajudassem a compreender a situação e depois a lidar com ela. Mas, de facto, tendo em conta a forma como funcionam as penhoras também tinha a possibilidade ilegal de me deixar completamente pendurada, já que qualquer bancário com quem eu falasse podia sempre inventar um pretexto para não me dizer fosse o que fosse.

    O primeiro bancário com quem eu falei disse-me que essas informações só podiam ser fornecidas pelo gerente do balcão.

    O gerente do balcão, misteriosamente, de cada vez que eu lá ia estava sempre em Borba ou em Vila Viçosa, e portanto não podia falar comigo.

    grayscale photo of man holding paper

    Entretanto, e ao contrário de todos os outros bancos que são normais e fecham pelas três da tarde, aquele banco passa a fechar à uma e ao meio dia e meia já está tudo em pé, de pasta na mão.

    Acabei por encostar um bocadinho mais o primeiro bancário à parede, comentando com ele que sabia perfeitamente que aquela penhora ou era das Finanças ou era da Segurança Social. Ele ouviu-me, abanou afirmativamente com a cabeça, e lá suspirou “pois é, são sempre as sanguessugas.

    Dadas as circunstâncias, foi graças a este expediente que fiquei a saber que a penhora era das Finanças.

    E fiquei, também, absolutamente furiosa, porque obter de um banco este tipo de informação não deveria obrigar nenhum cidadão a recorrer a qualquer tipo de expedientes. Mas é que nunca na vida.

    Foi quando o contabilista sensato me disse, duas vezes, para eu passar antes uma procuração ao meu advogado.

    Como se a vida fosse um filme.

    Epá, se é, tirem-me deste filme por favor.

    Eu estava tão indignada com aquele comportamente surreal dos bancários que ainda voltei sozinha ao balcão de Estremoz. Desta vez fui atendida por outro funcionário. Uma senhora madura, com aquele ar posto em sossego de quem já ali anda há muito tempo. Ah, esta de certeza que ia ajudar-me.

    Recitei outra vez a minha litania.

    Recebi um pagamento de 250 Euros por uma tradução. Esse pagamento entrou na minha conta, e logo a seguir saiu. Foi assim que suspeitei logo da penhora, embora não tenha recebido nenhum aviso nesse sentido, fiscal ou outro. O seu colega já viu isso comigo, e já confirmou que é uma penhora das Finanças. Tenho mais pagamentos para receber,  mas não quero que eles sejam sumariamente penhorados. Quero saber qual é o valor total da penhora, e como é que eu posso negociar o seu pagamento.

    a man standing in front of an atm machine

    Ãh? Pareço mesmo uma pessoa crescida a falar.

    A senhora madura esquadrinhou cuidadosamente o seu computador, foi dizendo hm-hm e ah-ah, acenou várias vezes, e por fim fez-me um sorriso profissionalmente simpático.

    Eu nem queria acreditar no que ouvi a seguir.

    Não se preocupe, porque está tudo bem com a sua conta. Está a zeros, sem nenhum saldo negativo.

    Ó sua grandessíssima cabra!

    Claro que a conta estava a zeros, uma vez que as Finanças limparam tudo o que entrou. E claro que voltarão a limpar o que voltar a entrar se eu entretanto não fizer nada para alterar o rumo das coisas.

    E claro que a senhora madura tinha a obrigação legal de me alertar para tudo isto.

    Saí dali a bater com os pés de cólera e falei com o meu advogado nesse mesmo dia. Ainda deixei escapar uns berros, porque, acima de tudo, eu não percebia. Se a lei manda os bancários fazerem uma coisa, por que é que eles se esforçam tanto para fazer outra? O que vem a ser este filme? O que é que eles ganham com isso?

    Não ganham nada,” disse-me o meu advogado. “Por causa das contas penhoradas, os bancos até perdem dinheiro.

    Então eles fazem isto porquê?

    Porque têm medo.

    Têm medo?

    Pois têm.

    Mas medo de quê?

    Então… ó Clarinha… como é que tu dizes? Ah, têm medo da própria sombra! Têm medo de fazer porcaria, têm medo uns dos outros, têm medo dos chefes, controlam-se, espiam-se, é um ambiente de cortar à faca.

    woman walking with shadow

    Eu sei, de fonte incontestável, que os bancários são uma classe muito castigada. Em plena euforia do governo Guterres e da EXPO98, eram o grupo profissional que mais procurava o acompanhamento dos psiquiatras[1]. Entre várias outras coisas horrivelmente humilhantes, chegaram a ter que vender ao balcão férias no Algarve e jogos de faqueiros, uns em aço e outros em prata[2]. A vida deles é dura? Decerto. Mas e a nossa? Se calhar não é? Precisarei de voltar a dizer que os portugueses, quando chegam ao ponto de abrir contas nos bancos de Estremoz, não estão necessariamente a usá-las para ocultar os milhões que desviaram para aquele seu opulento offshore na Grande Caymão[3]?

    Ora bolas[4].


    PÓ, CINZA, E NADA

    Já agora, para vos provar que sei mesmo imensa coisa sobre dinheiro sujo, vou contar-vos uma história que se passou comigo na Grande Caimão, quando fui velejar à volta do mundo no três mastros de um comandante sueco meu amigo.

    Aquilo a gente chega lá e a rua principal é toda ela bancos, que têm diante deles, no passeio, um porteiro muito jovem e simpático que nos convida sempre a entrar. Tudo isto se passa no rés-do-chão, e no primeiro andar ficam os bares e os restaurantes para os clientes fazerem horas, quase todos com vista para o porto. Como já estávamos todos um bocado fartos da comida do iate, decidimos ir almoçar numa daquelas esplanadas simpáticas.

    De repente vimos uma grande fumarada, e percebemos que estava alguma coisa a arder no porto.

    Perante a leviandade dos outros comensais, que nem sequer se dignaram a desviar o olhar, fomos nós a correr ter com o porteiro, a gesticular e guinchar sobre a questão do incêndio.

    Ah,” disse-nos o jovem bonitão, muito simpático. “Não se preocupem. De certeza que é alguém que pegou fogo ao barco.”

    O quê?

    Pois. Não é? Um gajo tem um montão de documentos incriminatórios, certo? Então deita-os todos para o porão do barco… faz-se ao mar… atraca na Grande Caimão e…” – gesto dramático – “up in smoke!

    Uau!” – disse logo eu, que sou uma verdadeira bandida e não consigo deixar de ficar legitimamente impressionada com estas coisas.

    E, declarando-me assim culpada, esta caixa de texto substitui por hoje as notas de rodapé.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] António José Albuquerque, com. pers., 2005.

    [2] Idem.

    [3] A avaliar pela maneira enfurecida como as Finanças me tratam, é sempre onde eu imagino que “eles” imaginam que eu tenho o meu opulento offshore.

    [4] Só para que conste, devo a caixa de texto que ilustra esta crónica ao meu grande e terno amigo e protector Luís Laureano Santos.


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  • Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Deus dá-nos as nozes mas não é Ele quem as parte.

    Provérbio transmontano


    Homenagem a Maria Antónia Fiadeiro,

    Onde se contam as histórias

    Ocultas até hoje


    Convocámos este título inconfundível porque, já que aqui chegámos, aproveitamos a embalagem e, de caminho, homenageamos também a Grande Arietta Franklin. Pode não ter queimado um único sutiã, mas exigiu respeito a vida inteira. Tinha a voz perfeita para isso, e a legitimidade de um passado em que os avós eram escravos. Nunca militou por causas especificamente feministas, mas – ah. Que grande sobressalto causava a sua presença enorme em palco. Era o tipo de presença que nenhum homem poderia alguma vez vir a ter. Era o tipo de presença que ensinou à nossa geração umas lições muito sérias que nós, felizes e estouvadas, bem precisávamos de aprender. Porque era o tipo de presença que só podem ter aquelas que, como Arietta Franklin, ergueram o queixo e, muito naturalmente e muito assumidamente, foram m-u-l-h-e-res muito grandes. And hey, now you deal with it[1].


    Quem muda seja o que for no mundo racista, chauvinista, paternalista e sexista da música soul está evidentemente a mudar alguma coisa no mundo. Sendo assim, claro que o mundo foi mudado por esta mulher enorme que entra em palco de visom comprido, seguida por um coro de Gospel. Vai sentar-se ao piano, solta de lá aquela voz rouca de timbre assombroso que já tinha aos catorze anos, canta até chegar ao clímax final, começa a subir com o coro por trás e vamos lá, “you make me feel like a natural woman – a woman – a woman – a woman – a wo-o-o-o-man!” – e, na batida em crescendo da música, franze as sobrancelhas, salta do piano, agiganta-se de pé no palco, levanta os braços, e – ó momento! – despe e atira para o chão o seu casaco de vison, enquanto o coro explode em harmonias atrás da sua voz sempre firme. No camarote presidencial, Carole King[2] vai ter um AVC a qualquer momento. Michelle, nessa noite linda de morrer, levanta-se sobre o voo do casaco e desata a aplaudir como quem dança. O Primeiro Presidente Negro dos Estados Unidos encostou a cabeça ao espaldar do cadeirão e secou uma lágrima[3].

    Arietta foi aqui chamada como termo de comparação para a portuguesa Maria Antónia Fiadeiro, que eu ouvi cantar várias vezes quando ela se juntava ao meu bando nas nossas noitadas ocasionais de aventura pós-laboral conjunta[4]. A sua voz também era rouca, as suas harmonias também eram certas, as suas notas também eram firmes. Quando íamos aos fados vadios mandávamo-la para a frente nas desgarradas, e as suas quadras de improviso tinham sempre um duplo sentido latente, promissor e ardente[5]. Íamos sentar-nos no alto das colinas, a ver as luzes dos barcos no rio, e ela nessas noites punha sempre uma boina. Até que houve uma noite particular, numa esplanada enorme que existia nessa altura ao cimo do Bairro Alto, onde já chegámos todos completamente mocados e nas duas horas seguintes nos estivémos a deliciar com muita cerveja, muita conversa boa, e muitos peixinhos da horta inacreditáveis que se serviam ali naquela altura.

    Maria Antónia Fiadeiro (1942-2023) numa entrevista à RTP em 2003.

    Nessa noite, e apenas nessa noite, tinham aparecido mesmo no fim do espectáculo alguns Portugueses Muito Importantes. Os outros Portugueses estavam a bater-nos palmas quando se ouviu dizer que íamos fazer um encore para os recém-chegados. Ficou mais gente, entrou mais gente, nós não percebemos nada mas éramos miúdos – repetimos tudo. Fomos para os peixinhos da horta estafados e felizes, comemos e bebemos e falámos, a Fiadeiro presidiu com graça e sabedoria, e por fim toda a gente bazou.

    Estava a nascer uma linda madrugada.

     Foi quando ela me piscou o olho com um sorriso quase tramado mas quase infantil, e me falou quase ao ouvido.

    Gosto de ir ver o teu espectáculo de boina, sabes. O Fernando diz que vocês descarregam uma tal energia sexual para cima das pessoas que mais cedo ou mais tarde o bar inteiro vai acolher um verdadeiro bacanal. E eu não tenho vinte aninhos, como tu, nem uma carinha laroca, como a tua. Preciso de uma boina. Vais ver. Quando estou de boina, sou uma mulher muitíssimo mais atrevida.”

    Não tinha medo das palavras, a Maria Antónia. Pagou centenas de vezes o preço por isso, mas continuou a usá-las com bravura e beleza, de forma limpa e directa desprovida de rodeios, uma forma de falar das coisas que em grande medida eu aprendi com ela.

    É verdade, eu tinha na altura uns 25 ou 26 anos. Ela podia ser minha mãe, e além disso eu era uma miúda e ela era uma grande estrela do nosso firmamento cultural. Metemo-nos a trabalhar juntas num projecto para o Diário de Notícias que também incluía a Antónia de Souza, e quem me convidou para integrar a equipa foi “a Fiadeiro[6]”. Uma porreira, na minha linguagem.  

    Convidou-me porque gostou de mim, da minha maneira de falar[7], e das minhas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas, numa entrevista que me fez para o Diário de Notícias em 1985, assinalando o momento em que acabei o curso de Biologia, fui dar aulas de Embriologia para a Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a fazer investigação de doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, e, para grande surpresa dos meus colegas, continuei a publicar livros e a escrever crónicas mas abandonei as salas de redacção dos jornais. Ora isto, já de si, é absolutamente notável. Só uma mente brilhante como a dela se lembraria de propôr um trabalho destes ao director do maior jornal diário da capital. A grande estrela entrevista o pequeno cometa que vai a passar? Não senhor, não é costume.

    Número 3 do Cadernos de Reportagem, editado pela Relógio d’Água no final de 1983, sob direcção de Fernando Dacosta-

    Como é evidente, foi a primeira grande entrevista que eu dei na vida.

    Que diabo, eu tinha 25 anos.

    E ela não era mesmo  de pestanejar nem hesitar.

    Às tantas eu estava a falar-lhe da festa do amor e do prazer[8], e da importância da felicidade em cada um dos nossos dias e cada uma das nossas tarefas.

    Consideras-te uma hedonista?

    O que é que eu havia de responder?

    Sim.”                   

    Logo a seguir, a grande estrela conseguiu, finalmente, convencer o director a deixá-la formar uma equipa feminina para produzir uma série de reportagens sobre “A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE”. E nem sequer hesitou, convidou logo o pequeno cometa para essa equipa. Gostou da entrevista e basta.

    A sério:

    O pequeno cometa estava todo a tremer quando chegou a casa e contou tudo isto ao marido.

    O marido encolheu os ombros.

    Vocês reparem.

    Ao mesmo tempo que a Maria Antónia tinha estes gestos rasgados de generosidade para comigo, eu sabia perfeitamente que os outros jornalistas andavam antes muito ocupados a garantir uns aos outros que eu ia para a cama com toda a gente e mais alguém[9] para conseguir fazer tudo o que fazia. Era uma explicação sumária tão tentadora que o Meguinha, à época já meu marido, não resistia a usá-la ele próprio de vez em quando.

    Um dia apanhei-o em flagrante delito de cair exactamente nessa tentação mesmo à minha frente[10], e à noite cheguei derreada a casa da Antónia de Souza, em Campo d’Ourique, onde estava marcada a nossa sessão de trabalho para essa semana. Bem, nessa altura já me sentia tão segura com elas duas que desabafei logo na entrada. É que se fosse só o Meguinha, não é? – pronto, seria arrevezado, mas poderíamos imaginar que tínhamos entrado por engano dentro de um romance do Choderlos de Laclos. Elas riam. Mas é que não era só o Meguinha, eram todos os jornalistas, homens e mulheres, oh!, que horror. Elas olharam uma para a outra, e depois recomeçaram a rir. Eu já estava a esticar o beicinho, e foi quando a Fiadeiro me empurrou o braço com o cotovelo, me piscou outra vez o olho, e falou comigo em verdadeiros words of wisdom.

    Clara, essa gente toda que te imagina na cama com outra tanta gente para chegares onde eles não sabem mas tu sabes que queres porque és pérfida e manipuladora sem ter ar disso[11] – por favor, tem pena deles.” São uns desgraçados.”

    Biografia de Maria Lamas, escrita por Maria Antónia Fiadeiro.

    Sorriu para mim.

    Podia ser minha mãe.

    Só que a minha mãe nunca seria capaz de me dizer aquilo.

    Já imaginaste bem a quantidade de pessoas com quem essa gente toda já foi para a cama a tentar chegar onde quer – e nunca conseguiu chegar a lado nenhum? Coitadinhos, queres que não digam mal de ti?

    E então, de repente, vi uma data de gajas todas produzidas a tentarem engatar uns magnatas da televisão que nem olhavam para elas, pelo que acabavam por tirar a roupa para um qualquer técnico de som bexigoso que estava a mastigar pastilha elástica. Vi uns comentadores desportivos já meio carecas, esquecidos da questão de tirar as meias, num esforço patético para dar prazer a umas mulheres desagradáveis com todo o ar de quem não ia dar-lhes nem um quarto de hora nas cenas a cores de domingo[12]. Até vi uns jovens escritores a apanharem em cima com o peso de um editor obsceno que lhes bradava obscenidades e eles só queriam chorar. Vi isto tudo muito depressa, mas não suficientemente depressa, porque, entre a sugestão e o sorriso que a Fiadeiro me oferecera, já estava mas era a rir, a rir, a rir.

    Ela sabia cortar a direito, sabia separar as águas, e tinha este dom.

    Sabia consolar meninas de vinte anos.

    Desse projecto A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE[13], devo-lhe ainda mais uma dádiva rara por demais.

    Na nossa primeira reunião de projecto, com o território ainda todo virgem à nossa frente, tínhamos que começar por escolher um formato para a série. E eu, por acaso, na noite anterior já tivera uma ideia. Sabia que era uma ideia um bocado extemporânea, mas que se lixe. De certeza que a Fiadeiro não me escolhera para que tudo ficasse na mesma.

    Bom, minhas senhoras, eu tenho uma proposta. Posso?

    Elas olharam para mim de sobrancelhas levantadas e expressão curiosa.

    Podíamos pegar nisto pelo lado da ilusão: as mulheres pensam que as coisas mudaram, mas, na realidade, as putas das coisas nunca mudam. Nunca há mulheres presidentes nem mulheres primeiros-ministros, não é? Mas esse é o lugar-comum previsível. Nós vamos antes explorar o quotidiano das mulheres normais e mostrar como elas foram enganadas com a conversa da mudança. Ambos trabalham, mas em casa o homem vê televisão e a mulher cozinha, limpa, e trata dos filhos, estão a ver? Se eu vier a sair do bar no Bairro Alto depois de ter feito o BOA NOITE LUA NOVA e estiver a voltar para casa às quatro da manhã, e me sentir tão feliz que paro num banco da Praça das Flores para fumar um charrinho, o mais provável é que seja atacada por um tarado qualquer porque sou uma mulher que está sozinha à noite num banco de jardim e portanto sou uma puta, e só me resta resolver aquilo ao soco[14], o que já me aconteceu e aposto que não aconteceria a um gajo, e aliás é o mesmo que me acontece quando estou sozinha na estrada a pedir boleia, outra coisa que qualquer homem poderia fazer sem ter o mínimo problema. Se não temos quotidianos iguais, não temos paridade. A minha sugestão é cada uma de nós inventar uma mulher, com as suas características físicas e mundo pessoal próprios, que passa pelas situações em que estarão as nossas entrevistadas. Senão, se estas mulheres puderem ser identificadas com nome e apelido, vai ser terrível para elas.

    Hm,” disse uma.

    Hm,” disse a outra.

    Franziram as duas as sobrancelhas com uma expressão intensa.

    E fez-se um grande silêncio.

    Era evidente que elas não tinham gostado da minha ideia.

    Se calhar eu não me tinha explicado bem.

    Provavelmente tinham ficado ofendidas de morte quando eu disse que a nova liberdade das mulheres – essa nova liberdade pela qual elas haviam lutado a ferro e fogo durante quase toda uma vida – andava mais perto das miragens que dos oásis que íamos cruzando na nossa grande e conjunta travessia do deserto.

    Batia-me de repente o coração com mais força.

    Por fim, a Fiadeiro fez um sorriso tramado e deu uma cotovelada muito sabida à sua velha camarada de armas de Souza.

    A minha mulher,” declarou ela, “vai andar sempre a cavalo e chamar-se Madalena.

    Pausa dramática.

    E não está arrependida de coisa absolutamente nenhuma,” concluiu, mais poderosa do que nunca. “É um cavalo musculoso, de grandes crinas, que é todo negro e que se chama Trovão!

    Ah,” juntou-se-lhe a outra num tropel digno do Trovão. “Nesse caso a minha chama-se María Helena e veio de Madrid a fugir à Espanha de Franco e trabalha em publicidade mas como não consegue falar português sente-se ainda hoje um bocado inadaptada!”

    Desta vez a grande estrela estava a aceitar uma sugestão de formato avançada pelo pequeno cometa, o que era uma lição de modéstia de se lhe tirar o chapéu. E mais: estava a aceitar uma sugestão que implicava cruzar factos jornalísticos com personagens de ficção criados para proteger as fontes, uma técnica até então raramente utilizada[15], e ainda hoje extremamente polémica dentro da Comunicação Social. O género de técnica que ou se usa muito bem ou descamba no puro desastre. Ela estava a aceitar correr grandes riscos por sugestão minha.

    As outras pessoas falavam sobretudo da sua seriedade, e neste número podemos incluir até os seus filhos; mas, para lá de toda essa montanha, estava escondido um mar verde cheio de ondas redondas e de espuma branca: eu achava-a divertidíssima. E isto devia-se, sobretudo, à limpidez da sua sinceridade.

    Uma vez o trabalho era só entre nós as duas, os dias estavam a começar a ser cada vez mais compridos, pairava sobre Lisboa uma brisa balsâmica de Verão, e eu estava apaixonada já nem sei por quem. Não é isso que interessa, foi um caso brevíssimo, mas a verdade é que o amor nos faz flutuar uns bons centímetros acima da calçada dos passeios e nos faz cintilar a pele. Entrei no Bairro de São Miguel positivamente feliz, sorri para o murmúrio dos ramos das árvores, alonguei o passo pela sombra e respirei fundo. Cheguei a casa da Fiadeiro, toquei à campainha, e ela abriu-me a porta envolta pelas trevas do interior.

    Olhou-me imediatamente de alto abaixo, enquanto eu lhe acenava com toda aquela luz de Verão a iluminar-me. Tinha feito uma trança que já começava a desfazer-se em caracóis, trazia a franja por cima dos olhos, e tinha as pernas de fora e o umbigo à mostra dentro de um conjuntinho top-shorts arrancado em grande triunfo de uma pilha da Feira de Carcavelos[16], todo ele amarelo-canário e com uns grafitti pretos e vermelhos à frente numa caligrafia que supostamente era cirílico.

    Pois é, Clara.”

    Voltou a olhar-me de alto a baixo enquanto eu entrava e ia direita à cozinha, onde começávamos sempre por tomar café. Riu-se.

    A questão é que vocês, agora, já nascem assim. Já nascem todas elegantes. Podem andar para aí sem sutiã e de pernas de fora… tu, por exemplo, tu podes, tu assim ficas tão linda… A Lena d’Água… a Lena d’Água  também fica linda. Nós, na minha geração, nascíamos sempre de perna curta e anca parideira, como é que nós podíamos…”

    Deitou-me outra vez aquele olhar de medir tudo, ao mesmo tempo que começava a gesticular com grande veemência, como se estivesse a imaginar-se a si própria, e a todas as suas amigas feministas, dentro de um top-shorts amarelo-canário com dizeres em russo. Sem sutiã e de umbigo de fora.

    Oh, como é que nós alguma vez poderíamos!

    A gente deve estes corpinhos à Revolução,” disse-lhe eu. “Não houve nada em Portugal que não mudasse.

    E custou-nos bastante beber aquele café, porque estávamos constantemente a desatar a rir.

     O ano passado, a 30 de Março, os dois filhos da escritora publicaram na Edições Caixa Alta, que receberam o projecto de braços abertos, o livro ARTISTAS ARTESÃS PIONEIRAS: conversas singulares entre mulheres extraordinárias, com entrevistas da Fiadeiro a várias outras mulheres por vários pretextos. A ideia original foi dela, grafismo e sequência incluídos. Começou a preparar tudo muitos anos antes da data da publicação, e quando estava tudo pronto nenhuma editora teve o arrojo de pegar num livro que é também uma obra de arte: são 565 páginas grandes de capa dura, cheias de grandes histórias, onde  tive a honra de ver incluída esta entrevista que me pôs ao colo das feministas, e que ela intitulou A INTELIGÊNCIA É O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DAS COISAS[17].

    O ano passado o livro assinalava a data da morte da Maria Antónia, que nos deixou a 30 de Março de 2023 com uma paragem cardio-respiratória que chegou às dezanove e cumpriu o seu curso às vinte. Nenhum dos dois filhos estava em casa, portanto nunca saberemos se ela descobriu ou não que estava a ir-se embora. Acontece que este seu último livro, uma belíssima oferta que ela deixava ao povo português, saiu em plena pandemia. Quase ninguém o viu. Portanto, este ano, celebrando o primeiro aniversário da sua morte, a Caixa Alta e os dois filhos da Maria Antónia organizaram uma verdadeira festa de lançamento para os quinhentos exemplares da segunda edição, muito apropriadamente no dia oito de Março, na Biblioteca Municipal de Belém, dentro da sala do Núcleo Feminista Ana Osório de Castro que tem o espólio todo dela. E desta vez cada entrevistada pôde, por fim, ler o trecho da sua entrevista que mais lhe falou ao coração.

    Ou à cueca, vá. No meu caso, entenda-se. A Fiadeiro não era piegas, e eu agora tenho a obrigação de ser hedonista.

    Ainda ao jeito de homenagem, este livro/ obra de arte estará nas montras das livrarias a partir de dia 30 deste mês, um ano depois da morte da sua autora.

    E segue-se um brinde muito pessoal aos construtores do livro, com toda a minha ternura.

    Se querem saber como é que eu, ainda hoje, vejo a Maria Antónia Fiadeiro, pois bem – tal como aos vinte anos, vejo-a igual à WonderWoman[18], a minha grande heroína dos comics. Tinha a sabedoria de Atena e o poder de Afrodite para inspirar amor. Era mais rápida do que Mercúrio e mais forte do que Hércules. Na sua república feminina  na Ilha do Paraíso, um refúgio criado pela cultura das Amazonas, protegido dos intrusos por um campo magnético de pensamentos que o mundo conhece como Triângulo das Bermudas, desenvolvera naturalmente os seus poderes assombrosos treinando-os desde a infância com as suas outras Irmãs Amazonas, em concursos de perfeição, força, e velocidade, modelados pelos combates da Grécia Clássica. Tudo isto nos passava a mensagem de que cada uma de nós pode ter em si poderes secretos, desde que acreditemos neles e os treinemos[19]. Eu, pelo menos, agradeço a Deus ter treinado tanto com ela.

    Sim, é verdade. Nem todos os detalhes colam. Não sou feminista. Mas teria que ser? Acima de tudo, sou mulher. Vivo sozinha no Alentejo[20]. Ia escrever “os homens podem viver sozinhos à vontade que ninguém os chateia,” mas isso não é verdade – os homens não aguentam viver sozinhos. Precisam sempre, sempre, sempre de uma mulher que lhes faça companhia e trate deles. Quando são mais novos e lhes estoira o casamento escrevem imediatamente um livro de       catarse e saltam de bar em bar até arranjarem namorada. Quando são mais velhos atrelam-se sem hesitações nem demoras ao Grupo Excursionista mais próximo. Em ambos os casos, o padrão não muda. Um homem sozinho considera prioritário arranjar uma mulher ao seu serviço.

    Mas eu, que sou uma mulher, há uns bons vinte anos que vivo sozinha.

    A Maria Antónia treinou-me maravilhosamente para este tipo de travessia.                                      

    Conheço muito bem o Inferno, e não faço juízos de valor.

    WonderWoman saves the day.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Nestas circunstâncias, a expressão pode traduzir-se livrement por “Hey, e agora aguentem-se à bronca.”

    [2] Co-autora, juntamente com o seu então-marido, da canção “(YOU MAKE ME FEEL LIKE) A NATURAL WOMAN”. Sempre considerei a canção, enfim – simpática para quem gosta do género. Mas isso foi só até ouvir a rendição de Ms. Franklin com o seu longo vison, o seu piano, e o seu coro de Gospel.

    [3] Este concerto, com este momento inesquecível, está postado no YouTube. Sugestão obrigatória para quem ainda não viu e não conhece as mulheres.

    [4] SURPRESA!

    [5] Nunca me esqueci de uma quadra que ela cantou nos fados da Rua do Diário de Notícias e que fez o jovem muito bem parecido com quem ela foi a despique desistir logo: “Não cantava à desgarrada/ Desde  a minha mocidade/ Mas cada um de nós chora/ Por onde tem mais saudade.” Digam-me lá, quantos níveis de leitura poderia aquilo ter. Chora por onde tem saudade? Ah-ah-ah. Grande danada.

    [6] Na imprensa tratávamo-nos todos pelo apelido. Durante anos e anos, até desaparecer nas neves eternas de Buffalo, eu fui “a Pinto Correia”. Razão pela qual sempre tratei por Meguinha o António Mega Ferreira, a quem nunca chamei António: quando ainda não o conhecia mais intimamente, tratava-o por Mega, como toda a gente fazia. Depois do nosso casamento aquilo esteve quase a descambar porque o “Meguinha” ainda passou a “Guinha”, e o “Guinha” chegou a ser “Gui”. Depois caímos na real e emendámos rapidamente a mão. Ah, e ele nisto dos nomes foi um porreiro. Nunca me tratou por “Pinto-Correia”. Incapaz de pronunciar o terno “Clarinha” do comum dos mortais, informou-se quanto a antecedentes familiares e começou rapidamente a tratar-me por “Pretinha”. Que bom. Sempre foi a minha alcunha preferida.

    [7] A minha maneira de falar era um interesse sério para ela. Considerava-a importante para abrir novos caminhos à linguagem. Nesta entrevista, incluída neste seu livro, nota-se que faz um esforço considerável para deixar transparecer a minha autêntica voz – veja-se o uso de “porreiro”, “cenas”, “partir para outra”, “piroso”, “que nem uma besta”, tudo termos que de outra forma ela não usaria.

    [8] Parafraseando Jorge Palma, já que estamos nisto dos porreiros.

    [9] Visitantes estrangeiros de passagem incluídos. Vim a saber de alguns casos absolutamente fulminantes.

    [10]Vai acampar? Vai acampar no Inverno? Eles vão todos acampar no Inverno? Com chuva, lama, geada, e o frio que tem estado? Querem uma história mais mal contada? Reparem, eu acredito que ela vá para Águas de Moura. E basta. Deve haver lá uma pensão manhosa para brincadeiras com assistentes. Basta afundar o Carocha na lama antes de voltar para casa. Enfim, Matilde. Tenho um fim-de-semana sossegado para ler e ouvir ópera.” E a restante redacção do JL ria com as mímicas do Meguinha, mas é queria, ria, ria. Cabrões. Eu era tão jovenzinha que fiz uma cena canalha através da porta, gritei “Meguinha!”, e, quando toda a gente se calou, abri mais a porta e acrescentei: “Nunca mais escrevo para o JL!” Por acaso nem sei se estou arrependida. Imaginemos, por exemplo, que um dia a vida é um filme.

    [11] A Maria Antónia falava muitas vezes assim, como se estivesse a ler as suas próprias frases já impressas no seu novo livro. Era impressionante.

    [12] É verdade, malta. Se não quiserem acreditar não acreditem, mas eu já estava quase a fazer vinte anos quando apareceu a televisão a cores.

    [13] Trabalhámos imenso, e com muito gosto, mas ficou pelo caminho. Eu fui para Buffalo. Elas não quiseram continuar a trabalhar sem mim. De certeza que a culpa foi do formato.

    [14] História verdadeira.

    [15] A primeira vez que isto se usou em grande escala foi numa grande série de quinze reportagens sobre AS FAMÍLIAS PORTUGUESAS que eu, o Fernando Dacosta, e o António Duarte fizémos para O JORNAL. Protegidas por alter egos, as pessoas diziam mesmo tudo o que lhes ia na alma – e verificou-se então que tinham, de facto, muito para dizer. A série deu tanto brado que tive entrevistados refugiados durante meses em minha casa, entrevistados que ainda hoje não me falam (“mas queres mesmo dizer isso em público?” – “quero!” – “mas?” – escreve! escreve!” – “olha, saiu hoje.” – “cabra! por tua causa tive que ir a um psiquiatra pela primeira vez na vida!”), e, decerto, pessoas que ainda hoje cruzam a rua para virem falar-me de alguma coisa que então leram e lhes falou particularmente ao sentimento.

    [16] Eu sou do tempo eu que nasceu a Feira de Carcavelos, recheada de roupas fantásticas que Portugal nunca tinha visto antes e que não estavam à venda em mais lado nenhum. Tudo ao preço da chuva, e ainda passível de se regatear, uma arte que eu adoro. Nesses primeiros anos, eu e as minhas amigas levantávamo-nos às seis da manhã para reunir no meu carro, ir, comprar, mostrar umas às outras, tomar café, rir imenso, voltar, e estar às nove no trabalho com um ar todo impecável. Eu ia a guiar, por isso não podia trocar de roupa no carro durante o regresso. Mas havia até quem fizesse isso.

    [17] Isto foi uma frasezinha que eu soltei no meio de torrentes de palavras para ilustrar a complexidade do mundo vivo. A Maria Antónia fez logo um título bestial com ela. Um daqueles chauvinistas que pululavam nos jornais teria antes feito logo um título tipo “Parti para outra”.

    [18] Na minha geração ninguém lhe chamava “Mulher-Maravilha”. É bué foleiro.

    [19] Parafraseando Gloria Steinem, outra grande fã (e até estudiosa) da WonderWoman.

    [20] OK, OK, reconheço, vivi sozinha em vários outros sítios. Tive chatices, como as que tive quando andava à boleia. Mas isto aqui é um padrão. Estão a ver a diferença?


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  • Inimigos infiltrados

    Inimigos infiltrados

    Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “o amor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.


    Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.

    Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.

    As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.

    Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.

    Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.

    Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontemperderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.

    Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.

    Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13]alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:

    Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?

    Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.

    Acabem com isto, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.

    [2] Desculpem, não resisti.

    [3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.

    [4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogia DER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.

    [5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.

    [6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.

    [7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.

    [8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.

    [9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.

    [10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.

    [11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.

    [12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.

    [13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.


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  • O rei vai nu

    O rei vai nu

    Pode-se, de uma maneira geral, confiar na confissão de um desesperado, e, como nem todos se confessam à hora da morte, a capacidade de desespero é só concedida a alguns e eu não era um deles.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    Aquilo que me foi dado ver pareceu-me uma valente porcaria de impacto deveras duvidoso, uma autêntica fábula moral daquelas em que só as crianças inocentes e os sábios videntes ousam dizer que o rei vai nu. Parecia tanto que concluí que devia ser mesmo. Mas, não vá o diabo tecê-las, decidi partilhar a história convosco. Pode ser que me tenha escapado algum grãozinho de areia que torne logo esta fábula menos degradante. E, como tal, muitíssimo menos deprimente.


    O grande feito passou esta semana nas notícias,  encavalitado entre reportagens de encontros literários e previsões de tristeza e abandono para a próxima Feira do Livro em Lisboa. A primeira coisa que me ocorre é que não estamos propriamente perante um feito – e que, mesmo que o fosse, nunca seria assim tão grande como isso. Portanto, parece-me que estes pesos e medidas ditam logo à cabeça a conclusão lógica de que esta historieta nem sequer mereceria aparecer ensanduichada nas notícias culturais do dia. Mas como isto é apenas o que me parece a mim, e eu nem sempre sigo a construção destes grandes feitos tão atentamente quanto deveria, respeitei a responsabilidade de escrever para milhares de leitores provavelmente ainda menos informados do que eu; e, antes de mais nada, tratei de organizar uma pesquisa mais séria e mais sistemática sobre o assunto.

    people having a bonfire

    Descobri logo que não há assim grande informação sobre o grande feito, o que já de si é um péssimo sinal. Não me parece que nenhuma informação deva ser promovida ao estatuto de notícia[1] se os espectadores não tiverem, caso fiquem interessados[2], mais informação disponível para começarem a saber com o que é que contarão dali em diante – neste caso específico, em termos de publicações. A editora propõe-se oferecer-nos uma colecção de quinze “grandes clássicos da literatura portuguesa”, pelo amor de Deus. Era bom sabermos qual foi o critério de escolha desses clássicos[3], e, presumindo que a resposta não é “à balda,” com que regularidade se prevê disfrutarmos do seu lançamento no mercado livreiro.

    Ainda dentro do pelouro dos desagrados de menor incómodo, a notícia disse-nos que a colecção vai ser oferecida aos portuguesas por uma editora chamada LEVOIR, que, neste caso, irá trabalhar em conjunto com a RTP[4]. De facto, a senhora que apareceu a mostrar um pouco mais de entusiasmo ao falar destes quinze livros, recordando-nos que “ainda nunca se tinha feito em Portugal nenhuma colectânea de grandes clássicos portugueses,[5]” falava português com um sotaque francês carregado. Um pouco mais de investigação, e descobrimos que as edições LEVOIR são um subsector da ALMEDINA, embora nenhum subtexto nos explique o que distingue a casa-mãe da sua filha afrancesada[6]. Enfim. Se conseguimos chegar até aqui calmamente, a culpar-nos a nós, e não aos outros, por tudo o que nos incomoda nestas modernices, agora a seguir vem de lá a parte pior.

    Estes quinze grandes clássicos não se destinam a difundir em Portugal o prazer das belas letras.

    turned on desk lamp beside pile of books

    A primeira obra a publicar será a MENSAGEM, de Fernando Pessoa, mas o livro não foi concebido para nos levar, silenciosamente, à luz da vela e em passos de veludo que não dispersem quase uma centena de anos de colónias de morcegos[7], até ao fundo do mundo interior do poeta. É mais que vai ser enfiado num funil e empurrado à força pela garganta das pessoas, mesmo com toda a força, mesmo até ao fundo.

    Nesta colecção de Grandes Clássicos da LEVOIR, fiquem sabendo que tanto a acção como o texto hão de cair-vos em cima… em banda desenhada.

    Ai, não.

    Não, não, não, não.

    Enfiar o universo da MENSAGEM numa banda desenhada de recorte pueril[8] não é nenhuma forma de “estimular entre os jovens o prazer da leitura,” ou qualquer outra parvoíce que possa dizer-se a esse respeito. Os jovens, coitados, têm sempre as costas largas. Este género de esforço é tão abominável, e tão inútil, como as tirinhas de BD de História de Portugal que constavam do manual de 6º ano dos meus filhos: alguém achava – mesmo – que os miúdos de nove e dez anos que foram criados pela televisão[9] conseguem compreender o sentido dos rostos contorcidos à frente e com grandes incêncios atrás que constam dos quadradinhos relativos ao Grande Terramoto de 1755? Quantas vezes é que pensam que eu apanhei com as perguntas fatídicas “o que é isto, mãe?”, ou “o que é isto, Clara?”, ou “Ou o que é isto, Professora?”, porque os fenómenos em causa estavam descritos em banda desenhada?

    woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

    E agora o ataque dos Grandes Eventos explicados em BD é direitinho à literatura, a demonstrar que já nada é sagrado, mesmo.

    Se mais ninguém disser que o rei vai nu, eu, por mim, chego-me já à frente. Querem o exemplo acabado de um projecto que não é bom para ninguém? Ponham os olhos neste.

    Não estou para aqui a resmungar. Estou apenas, com toda a tranquilidade possível, a reafirmar que existem áreas separadas. Se podemos argumentar com uma grande parte de verdade que as pessoas deixaram de ter tempo e de ter espaço, tanto exteriores como interiores, para continuarem a ler boa literatura[10], então devemos procurar uma forma produtiva de fazer frente a esta falta de contexto. Não é propriamente apresentar-lhes um resumosinho da história, como acontece tantas vezes na Wikipedia e na escola, que poderá, alguma vez, devolver-lhes o prazer como não há outro de serem parte integrante de uma obra de arte, já que cada livro é ele mesmo e o seu leitor – um livro que não estiver a ser lido é um livro que não existe.

    woman standing in front of mirror

    A boa BD é uma coisa. A boa literatura é outra coisa. Os formatos de suporte para cada uma destas duas coisas não podiam ser mais diferentes. É vergonhoso, positivamente vergonhoso, andarem a refugiar-se atrás de pretextos inúteis, tais como “atrair os jovens.[11]” E não poderiam inventar uma forma mais saloia de homenagear os nossos “grandes clássicos”.

    Que, à excepção do primeiro da lista, ninguém nos disse quais são.

    Mal feito, mal feito, mal feito.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E note-se que era uma notícia de mais de cinco minutos, que passou numa quarta-feira – ou seja, era uma notícia grande e passou mesmo a meio da semana, em plena competição por espaço e tempo característica dos dias úteis.

    [2] E olhem que era uma notícia concebida para espectadores muitíssimo impenitentes. Estava positivamente feita com os pés, sem o carinho e a beleza que a literatura exige para ela própria se levar a sério; e,  embora aparecessem diversas personalidades a debitar bastantes balelas, chegava-se ao fim sem sequer se perceber se o formato vai ser o do livro ou o do fascículo. Acrescente-se que o material que está postado online também não nos tira qualquer uma destas dúvidas.

    [3] A menos que a resposta seja apenas, e tão laconicamente quanto possível, “eram livros que já estavam no domínio público.

    [4] Estou a simplificar. O “em conjunto com a RTP” já foi informação que encontrei online. A notícia da televisão era mesmo minimal.

    [5] Hm? Mas… mas…

    [6] De certeza que a ALMEDINA também pertence, por seu turno, a outra grande editora qualquer; mas isso não está esclarecido em lado nenhum. Nem eu gosto de ir fazer investigação para depois voltar de lá deprimida.

    [7] A data da primeira publicação da MENSAGEM foi 1934. Vamos em 90 anos passados sobre este marco literário. E, já agora, aproveitamos para oferecer factoides aos nossos leitores.

    [8] Apareciam páginas do livro na peça informativa. Isto não é um juízo de valor sobre o talento do artista que as fez. É um grande aperto no peito quando pensamos na forma como todo este material será tratado.

    [9] Quando eu adoptei os meus filhos já não podia fazer grande coisa a esse respeito. Mas dei-me rapidamente conta de que todos os colegas e amigos deles, na escola e na rua, tinham sido criados da mesma maneira.

    [10] Até o meu Sebastião, que interioriza com grande rapidez os comportamentos-chave das pessoas, começa a dar alguns sinais de impaciência ao fim de dez minutos, quando eu estou a ler na cama, e – assim lhe parece – gaita, raios me partam, a grande malvada da mulher nunca mais apaga a luz.

    [11] A sério. É horrível. Eu já fui jovem, e lembro-me muito bem destas políticas. Tudo o que fosse destinado aos “jovens” era fatidicamente medíocre. Meu, que sufoco. Tirem as patas e deixem-nos em paz.


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  • História Universal da Infâmia

    História Universal da Infâmia

    Abandonei as surpresas inerentes ao estilo barroco e também as surpresas que levam a um final que ninguém viu chegar. Em poucas palavras, preferi satisfazer as expectativas em vez de providenciar grandes choques: depois de fazer setenta anos, creio que encontrei a minha própria voz.

    Jorge Luís Borges

    O RELATÓRIO DE BRODY – PREFÁCIO (1970)


    A mercearia da Belinha fica na rua mais estreita que ao fundo desagua no Rossio, entre a praça da minha casa e a esplanada do Zé Russo, logo seguida pela da padaria, frente aos taxis que por sua vez param à frente do tribunal, e rumo ao grande centro de tudo isto onde todos os sábados a festa vai ao rubro com o mercado e com as famílias e grupos de amigos que se juntam para almoçaradas e jantaradas infindas, dentro e fora de horas. De onde está, ou cá fora a remexer intemporalmente nos caixotes da fruta quando não tem fregueses, ou lá dentro a corujar desalmadamente quando chega alguém com uma história nova ao mesmo tempo que espreita através dos vidros, a Belinha só não vê o que não quiser ver. Ao fim da tarde, ao à hora da sesta, quando descem sobre a calçada os períodos de maior acalmia, ela aprecia sentar-se no banco sombreado pelas árvores majestáticas do Ministério da Justiça e saborear uma pausa de repouso na companhia dos taxistas, que lhe alargam ainda mais o campo de visão. Tem por melhor amiga uma menina muito apagada, magrinha e silenciosa, e de ocupação assaz duvidosa, que passa outros tantos períodos de acalmia na zona obscura junto ao fundo da loja, e que também deve dar-lhe a ver muitas e muito boas novas perspectivas sobre a vida quotidiana de Estremoz, porque a Belinha parece adorar a sua companhia. Ontem fiquei a saber que, desta vez, a Chefe da Rua tinha visto o invisível através do meu espelho. Fui até à mercearia para comprar tangerinas e uvas, porque a fruta da Belinha é verdadeira, e enquanto tal[1], nesta terra abençoada, é verdadeiramente deliciosa. Mas aquilo foi um anúncio às massas de tal forma desagradável que saí logo dali e ainda não voltei a entrar lá. Que se lixe a fruta.


    Para contar esta parte pouco interessante depressa, só preciso de contar que andei imenso tempo a sentir-me cada vez mais doente mas sem saber de quê até que fui parar ao hospital, onde me internaram nos Cuidados Intensivos. Quando acordei disseram-me que lhes tinha pregado um grande susto e viajado até às portas da morte, enquanto a mim me parecia mais, de tão estranho que aquilo era, que tinham antes conseguido fechar-me num reality show onde eu era era a última concorrente. Entre isto e o tempo que estive a comer aquela aproximação à comida quase fria e confeccionada sem qualquer espécie de sal que existe nos hospitais, e depois o tempo em que estive a recuperar do reality show dos Cuidados Intensivos numa caminha da Medicina 1[2], passou-se cerca de um mês e meio, e depois vim recuperar ainda mais para casa. E, entre uma coisa e a outra, a verdade é que só esta semana é que comecei a sair livremente à rua, a ver os meus amigos, e a celebrar com eles o meu regresso às rotinas quotidianas.

    Uma dessas rotinas costuma ser o convívio com o espírito de festa revisteira que a Belinha transporta consigo como uma bomba-relógio.

    yellow monitor

    Quando virei rumo à mercearia para ir comprar fruta e vi a sua imagem, sempre toda decorada com requintes de  capricho, a remexer nos caixotes com grande estrilho de colares e pulseiras, fiquei tão contente que apressei o passo, lhe dei um grande abraço, disse qualquer coisa como “ai, Belinha, que bom voltar a ver-te”, e lhe espetei com dois beijinhos muito sentidos. Ela olhou para mim apanhada de surpresa, e a primeira coisa que lhe saiu pela boca fora, desta vez, e por uma vez sem exemplo sem qualquer espécie de graça, foi,

    Olha lá, vais pagar-me o que me deves, não vais?

    Eu penso logo, no piloto automático,

    Porra, que chata que é esta gaja,

    e ao mesmo tempo respondo, ainda dentro meu sorriso inicial,

    Belinha, claro que te pago, então. Eu não fugi com o dinheiro, achas? É mais que fui internada no hospital e estava inconsciente. Depois fiquei lá até à semana passada, e só agora é que consegui começar a sair de casa. E não vês que vim cá logo comprar-te fruta?

    À medida que ela me ouve, os olhos azuis da Belinha tornaram-se pensativos por baixo da maquilhagem.

    Ah, no hospital. Estás doente, não é? Estás outra vez doente, cada vez mais doente. Escuta, sabes o que é que me disse aquela minha freguesa que te conhece muito bem?

    Eu cada vez duvido mais que esta freguesa da Belinha exista mesmo na vida real. Da maneira como ela repete as suas histórias, dá-me ideia de que esta freguesa é um personagem inventado que lhe permite dizer-me, e suspeito que dizer a toda a gente que lhe dê ouvidos, o que lhe apetece dizer a meu respeito mas carece de substrato fiável. Desde que alguém lhe lhe mostrou as minhas fotografias de outros tempos na internet, juntamente com os textos que noutros tempos se postaram na internet a meu respeito, a Belinha descobriu que eu agora sou uma sexagenária mas já fui uma boazona chamada Clara Pinto Correia. Ou seja, dá ideia que descobriu que, no meu caso, envelhecer foi um grave pecado em cuja indulgência eu não tinha o direito de incorrer.

    a person in a red dress sitting on the ground under a red umbrella

    Aquela minha freguesa, sempre que te vê aqui, diz-me logo, Tsss…Meu Deus… Coitada… O que aquela mulher era!

    Ó Belinha. Que disparate. Então uma mulher não tem o direito de envelhecer? Essa tua freguesa queria o quê, queria que eu fosse uma americana cheia de plásticas?

    Ah, mas ela mostrou-me as tuas fotografias, minha filha. E deixa-me que te diga, tu apresentavas-te bem.”

    Não caias de tão baixo. Tu, naquela idade, também te apresentavas bem de certeza.”

    Desta vez, no entanto, a freguesa da Belinha teria ido à mercearia contar uma história ainda mais infame a meu respeito. Ela voltou a estudar-me com um ar pensativo, e depois atirou-me com o golpe de misericórdia.

    Sabes, assim que tu voltaste para casa eu falei com a minha freguesa que te conhece. E ela disse-me assim, Aquela mulher… Como as coisas são, aquela mulher, que já deu na televisão… aquela mulher que dantes era da televisão, olha: agora anda a comer do padre!

    Aquilo inicialmente foi um choque, porque soava mesmo a “anda a comer o padre.” A pessoa até se arrepia. A comer quem? O Padre Francisco? Um senhor tão simpático? Eu? A comer o padre? Mas pronto, o choque passou depressa porque a frase fora, inequivocamente, a comer do padre. E isso só podia ter a ver com a minha situação financeira, que se resume a sobreviver com uma reforma mensal de ordenado mínimo, juntamente com a solidariedade social de Estremoz,  que é rápida e eficaz a responder às necessidades dos doentes e indigentes, e ainda juntamente com a organização protectora das minhas três irmãs, que são uma espécie de sindicato de protecção da ovelha transviada da família[3]. Juntando esforços enquanto eu jazia na minha cama da Medicina 1, tinham-se organizado para que as voluntárias do Lar de Santo André viessem cá a casa trazer-me o almoço todos os dias da semana – e é um almoço tão caseiro, tão saboroso, e tão bem servido, que chega e sobra para também ser um jantar.

    Fiquei tão mal disposta com o pressentimento óbvio do que queria dizer aquele “comer do padre” que já nem comprei tangerinas, nem uvas, nem nada – inverti a curva, afastei-me da mercearia o mais depressa possível, e quase que corri para casa num desespero de conseguir afastar-me do mal.

    man in green robe sitting on chair

    Perguntei a uma das senhoras que cá apareceu com o almoço logo a seguir ao meu encontro imediato com a “freguesa da Belinha”, e ela confirmou o meu pressentimento.

    Uma das pessoas  que se senta no conselho de direcção do Lar de Santo André é o Padre Francisco.

    E, com base nesta informação, à partida muito límpida mas à chegada certamente já extremamente turva, onde dantes eu recebia com imenso gosto esta nova rotina de o termos com o almoço caseiro muito bem servido trazido por duas senhoras da cidade, a Belinha conseguiu instaurar um autêntico Edward Jenner.

    Edward Jenner deixou a sua marca no caminho da Europa entre 1749 e 1823. Este cirurgião britânico era um menino do campo, filho de um pastor protestante e, a partir dos cinco anos, depois da morte do pai, um fruto da educação providenciada pelo irmão mais velho, que também era um pastor protestante. Isto aconteceu tudo em pleno Iluminismo, ou seja, numa época e num lugar em que a Ciência e a Religião estavam pouco menos que sobrepostas, pelo que as respostas para os grandes mistérios da Natureza se procuravam sistematicamente na Bíblia.

    Com o tempo, Jenner tornou-se um cirurgião muito popular e respeitado, amigo lá de casa dos grandes nomes da época e chamado a leccionar em Berkeley pouco depois de ter concluído a sua própria formação, prática e teórica. Juntamente com as aulas, juntou-se a dois grupos académicos que laboravam pela promoção do conhecimento médico, escreveu os seus artigos, aprendeu a tocar o seu violino com a devida doçura, compôs os seus poemas ligeiros com o devido virtuosismo, estudou com particular interesse os hábitos parasíticos de nidificação do cuco[4], e  começou a debruçar-se cada vez mais, primeiro só na população inglesa mas depois na do mundo inteiro, sobre os segredos com que a vacina da varíola se escondia do conhecimento humano.

    Fossem aqueles tempos politicamente correctos como são hoje, e Jenner seria logo proibido de inocular pessoas à vontadinha sem saber ao certo o que é que estava a fazer. Sendo assim, é muito provável que nunca tivesse descoberto coisíssima nenhuma, embora a atitude de princípio que presidia a essa ignorância fosse muito mais decente. E a ausência desta descoberta quereria dizer que o nosso conhecimento sobre inoculações contra vírus assassinos teria evoluído muito mais devagar. Mas estávamos na fronteira entre os séculos XVIII e XIX. A varíola era especialmente odiosa para as classes dominantes porque, ao contrário de outras armas mortíferas como a sarna e a sífilis, não respeitava estratos sociais. Ainda por cima, quando não matava os atingidos, deixava-os a todos desfigurados por igual para o resto da vida. Claro que, neste cenário, os grandes médicos tinham o caminho aberto para testarem as suas teorias no mundo vivo desde que fossem devidamente discretos – e que, claro, restringissem o mais que pudessem o seu campo de acção aos pobres e aos pretos[5]. Ora acontece que, graças a Deus, cobaias dessa natureza eram o material que mais abundava no planeta[6].

    Com base nas suas observações veterinárias, no campo e no laboratório, Jenner concluiu que a melhor defesa contra o agente da varíola[7] seria a inseminação de humanos com varíola bovina, que provocava no humano uma resposta muito mais suave mas aumentava imediatamente o quociente imunitário[8].

     Só para poder ter esta certeza,  não sabemos quantas pessoas é que a grande vedeta da medicina britânica teve que inseminar com soro de vacas doentes.

     No primeiro livrinho que publicou[9], enquanto outros colegas a quem tinha dado amostras do soro começavam também a testá-lo em pessoas que nunca foram identificadas, aparece, por extenso, o nome de sete voluntários.

    two guinea pigs eating carrot

    Agora, nós sabemos que sete cobaias não representam, minimamente, um valor de confiança para um investigador que está à procura de um soro capaz de desencadear uma resposta imunitária no organismo do ser humano. Talvez Jenner tenha antes seleccionado cinquenta cobaias. Ou mesmo quinhentas, para jogar pelo seguro. Hoje em dia seriam umas cinco mil, com um punhado de post-docs estafados, sempre agarrados às micropipetas onde escreveram o seu nome com uma daquelas canetas de tinta resistente à água, o dia inteiro a micropipetar o agente da vacina tirado das vacas doentes, a passar o dia inteiro o sobrenadante dos seus eppendorfs de um lado para o outro[10], tudo isto num silêncio de cortar à faca o dia inteiro porque agora é assim que se fazem as coisas[11].

    Edward Jenner descobriu mesmo a vacina para a varíola.

     Mas, pelo caminho, nunca saberemos quantos pobres e quantos pretos é que morreram nesta escalada para a nossa salvação colectiva.

    Se a história se passasse hoje, claro que o grande cirurgião seria chamado à Justiça e submetido a um longo e penoso julgamento, que, entre outras coisas, traria a público um rol angustiante de identidades das vítimas.

    Mas naquela altura, naquelas vítimas, detalhes desses eram considerados de somenos importância.

    Da mesma forma, para a Belinha, turvar as águas de um programa muito bem organizado de solidariedade social da sua cidade chamando-lhe “comer do padre” e atirando-nos a todos para a gamela dos pobrezinhos suplicantes também é de somenos importância – a malta percebeu a ideia, foi ou não foi? E, dito assim, até é mais colorido.

    topless woman holding red apple

    Se depois de ouvir a versão da “sua freguesa” eu tenho dificuldade em voltar a entrar na mercearia, muito bem – o problema é meu.

    Há mais quem queira.

    Aliás, até deve haver mais quem queira saber que “aquela mulher, que até já andou a dar na televisão”, agora anda “a comer do padre”.

    Belo romance.

    Hm, não.

    Soares de Passos não faria melhor  com as suas estrofes do que eu consegui fazer com a minha vida[12].

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] … honra lhe seja…

    [2] Aqui, evidentemente, já tinha percebido que aquilo não era nenhum reality show. Mas se o que eu vi eram mesmo as portas da morte, bem – organizem-se. Que caos.

    [3] Que sou eu, caso não se entenda bem a frase.

    [4] Um verdadeiro parasita, a merecer maior desenvolvimento metafórico um dia destes. Na Primavera vem de propósito de África para acasalar, depois do que o macho desanda para casa e a fêmea espia os passarinhos pequeninos das redondezas, escolhe os que fazem o melhor ninho, despeja lá o seu ovo, e parte também ela para África. O bebé cuco costuma sair do ovo imediatamente antes dos seus irmãos adoptivos, e a primeira coisa que faz é deitar-lhes todos os ovos ao chão para se tornar filho único. A partir daí, tudo o que faz é berrar com fome, enquanto os pais adoptivos, muito mais pequeninos que o seu filho monstruoso e completamente esfalfados, correm pelos bosques o dia inteiro para lhe trazerem alimentos ao ninho. Muitos morrem quando o gigante está quase criado, mas, como o demónio é sábio, nunca morrem os dois. Quando o jovem cuco se sente capaz de voar, estica as patas, abre as asas – e parte para África, onde ficará a crescer e a engordar atá à Primavera seguinte, quando estará pronto para vir à Europa parasitar com o seu ovo o ninho de um passarinho qualquer. Por acaso, com tudo o que vimos e ouvimos, eu e o Dick ainda nos lembrámos de que poderia ser útil para outros pais adoptivos escrevermos uma autobiografia chamada O OVO DO CUCO. Mas concluímos que era uma péssima ideia.

    [5] Pedimos desculpa, mas o pensamento da época funcionava mesmo assim.

    [6] Bem, abundava na altura assim como abunda hoje. Até podemos escolher não dizer nada, mas sabemos perfeitamente que são precisos imensos pobres para sustentar um rico e que todos os pretos são pobres. Voltamos a pedir desculpa, mas esta história é mesmo tirada da vida real.

    [7] A ideia do vírus ainda estava longe da sua consolidação científica. Esta teve por esperar pelas publicações do  microbiologista russo Dmitry I. Ivanovsky, em 1980, e do microbiologista e botânico holandês Martinus W. Beijerinok, em 1893. Ambos os cientistas estavam a estudar uma doença que afectava as folhas da planta do tabaco.

    [8] Também aumentou o nosso léxico, e de que maneiro. Em português isto não é particularmente espectacular, mas pensem no negrume em que viveram os pobres ingleses, ou nos desgraçados alemães. A palavra latina para vaca é vacca, o que faz com que a varíola bovina se chame vaccinia. Jenner decidiu chamar ao processo de inoculação com o soro da vacciniavaccination. Ou, em português, vacinação, rapidamente simplificado para vacina por sucessivos acordos ortográficos. Estão a ver como se fazem as coisas?

    [9] Note-se que a introdução desta vacina foi muito polémica, sobretudo porque a classe médica não acreditava no efeito benéfico das vacinas. Os primeiros artigos que Jenner submeteu para publicação foram todos chumbados, e o grande cirurgião acabou por optar por uma primeira publicação em livro.

    [10] Ah, desculpem. Os eppendorfs. No caso das micropipetas, os eppendorfs são aquelas pontinhas translúcidas, descartáveis e renováveis, onde se processa o material em estudo. A gente fala deles tantas vezes, por tantas razões, que acaba por esquecer-se que os leigos carecem de nota de rodapé.

    [11] Eheheh! A berraria com que eu fiz as minhas coisas, no meu tempo, já ninguém me tira. Aprendíamos os palavrões mais debochados deste mundo, contávamos histórias francamente porcas, apaixonávamo-nos, chorávamos, valeu tudo. Foi bom.

    [12] Vai alta a lua! na mansão da morte. Já meia-noite com vagar soou; etc. A “mansão da morte” é o cemitério, só podia. E estes são os dois versos de abertura do famoso poema O NOIVADO DO SEPULCRO, que no final do século XIX todas as meninas sabiam de cor (também, não é tão longo nem tão difícil como isso), e que conta a história de dois jovens apaixonados, acabados de falecer, que no final conseguem abraçar-se numa única sepultura, deixando a outra vazia, com a lápide quebrada. É um bocado picante, porque para o fim o rapaz parece insinuar que vai, por fim – e já que não o fez em vida – fazer da rapariga sua mulher. Depois parece que quebrou a lápide. Estão a ver as colegiais do século XIX? Hm-hm.


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  • Somos tão pequeninos

    Somos tão pequeninos

    A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS (1874)


    Aqui de onde estamos quem é que nos vê?


    No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].


    Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.

             Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.

             Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].

    person making dough beside brown wooden rolling pin

             E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.

             “O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.

             “Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.

             “E como é que arranjaste isso?

             “Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.

             “Epá.

             Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.

             Não se fala das desgraças.

             Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.

             Há muitas alturas em que a distância dói.

             Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.

             Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.

             Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.

             “Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?

             “Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.

             A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].

    silhouette of man during sunset

             A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.

             “Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.

             “Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.

             “Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.

             Mariazinha encolhe os ombros.

             “Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.

             “Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?

             Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:

             “Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.

    brown wooden stand with black background

             De sobrancelhas erguidas ou franzidas  em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.

             “Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”

             O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,

             “Parece um filme americano”.

             E a Mariazinha, também num sussurro,

             “Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não  trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.

    [2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.

    [3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.

    [4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?

    [5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.

    [6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.

    [7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.

    [8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.

    [9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.

    A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.

    [10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.

    [11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.

    Somos cultos.

    E vocês têm que pagar para seguir em frente.

    [12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.

    [13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!

    [14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.


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