Etiqueta: A Deriva dos Continentes

  • Desrespeito

    Desrespeito

    Segundo as mais recentes notícias… parece que a cidade se encontra num singular estado de efervescência filosófica.

    Edgar Allan Poe

    UM HOMEM NA LUA


    Se alguém conhece bem as estações de metro de Lisboa, eu conheço. Durante os últimos anos em que lá vivi, nem sequer tinha carro. Agora que vivo em Estremoz e viajo muito pelo País, desculpem, mas – se alguém conhece bem o terminal rodoviário de Sete Rios, eu conheço. Ambos os conhecimentos, quando aplicados a mim, podem ter a certeza de que querem dizer uma coisa muito importante: conheço muito, muito bem as lojas da Mbooks. Tenho a biblioteca cheia de grande, preciosa literatura, novinha em folha, comprada por cinco euros, às vezes mesmo por três. E, sem esses preços de fundo de colecção, nunca teria possuído condições materiais para ir enchendo desta forma as minhas prateleiras. A pessoa pode dizer coisas horríveis sobre a Mbooks, nomeadamente que em muitos pontos de venda oferece péssimas condições de trabalho aos seus funcionários, ou que lhes paga muitíssimo mal sem lhes dar quaisquer condições de segurança. Mas aqui não é isso que está em causa. Está em causa as pessoas poderem aceder presencialmente[1] e financeiramente a livros formidáveis dentro do perímetro dos seus trajectos quotidianos, fora do espartilho pouco convidativo e pouco compreensível dos circuitos destinados à elite. E podem demorar o tempo que quiserem a fazer as suas escolhas. Os trabalhadores de serviço podem não perceber absolutamente nada de literatura[2], mas são sempre extremamente prestáveis e simpáticos. Isto vale ouro. Da maneira como espiralou hoje a ignorância[3], isto é dos melhores serviços que alguém pode prestar aos livros. Enquanto forma de arte, a literatura merece-nos o maior dos respeitos. Não há pior desrespeito do que começar a empurrá-la para fora de cena. Às armas. Alerta.


    Há que ver que os meus longos encontros com o Terminal Rodoviário de Sete Rios começaram muito antes da minha mudança para Estremoz. O meu País atribuiu-me o estatuto de pária logo aos cinquenta anos, e a partir daí, desde que os meus filhos deixaram de precisar da minha presença e orientação constante[4], sempre que não estive em Amherst dei muitas voltas ao texto para evitar a agressividade guerreira das pessoas com que costumava cruzar-me em Lisboa. Olha que gaita, não gosto de sofrer. Andei numa grande ciganagem por refúgios longínquos, bonitos e tranquilos, esconderijos benevolentes e terapêuticos onde fosse fácil viver dentro do círculo daquelas amizades simples, descomprometidas e autênticas que ali existem, e esquecer tudo o resto. Era só chegar a Sete-Rios, pedir um lugar à janela como ainda hoje peço, e ficar a ver o País deslizar do outro lado do vidro: várias horas mais tarde, tudo era muito mais leve, e todos os episódios confrangedores se tornavam hilariantes.

    Lembro-me de uma vez voltar com a Nídia da praia e de nos sentarmos as duas no muro a contar moedas pretas, para vermos se, entre um e dois cêntimos, conseguíamos ou não totalizar o euro inteiro de que eu precisava para voltar para casa. Conseguimos, mesmo à justa. Ainda me lembro perfeitamente dos olhos furiosos do motorista quando eu lhe despejei na mão aquele cascalho todo, a dizer “está certo, eu e a minha amiga estivemos a contar todas as moedas, dá mesmo um euro”; e a Nídia, do outro lado da porta, parada no passeio: “é verdade, contámos as duas, está absolutamente certo.” Ainda se fosse algum surfista, algum monhé, algum preto de cabelo pintado. Mas não. Francamente. Duas senhoras como nós, já a puxar para o idoso, compostas e bem vestidas e tudo. A pagar em moedinhas de um cêntimo. Está tudo maluco.

    A Nídia diz que foi só o autocarro arrancar e desaparecer por trás da curva. Deixou-se cair em cima do muro e riu, riu, riu, riu, em perfeito contraciclo com o dia de Inverno de nuvens escuras encasteladas a toda a sua volta.

    Chama-se a isto rir na face da desgraça. É a nossa única forma de sobrevivermos felizes, e de sairmos das nossas provações ainda boas pessoas, talvez pessoas melhores. Continuo a sentir imensas saudades do meu grupinho de amigas e dos homens interessantes com tempo para conversar que fui construindo sem ninguém ver. Tenho saudades do meu ermitério no Penedo, tenho saudades da grande família que me acolheu em Colares quando o mundo veio abaixo. Foi uma troca por troca que me fez muito bem: fiquei na miséria, mas cheia de paz. Consegui escrever livros que andavam há muitos anos para serem escritos.[5] Consegui, finalmente, preparar com pés e cabeça, e com toda a concentração deste mundo, a candidatura à bolsa da Fulbright que acabou por permitir a minha partida para os Estados Unidos para recomeçar a estudar e tornar-me co-autora de mais um livro de investigação. Recomecei, por fim, a gozar-me da liberdade de ficar na cama à noite a ouvir rádio baixinho[6] e a ler madrugada dentro se muito bem me apetecesse. Era só estar um lindo dia de sol em Abril que eu agarrava imediatamente no José de Oliveira Cosme[7] e bazava dali para a praia, para todos os seus efeitos terapêuticos, e para os ocasionais bons amigos e boas conversas que se têm na praia a título extemporâneo[8].

    E fartei-me de rir. O tempo todo. O cenário pode ser duro, o caminho ainda mais, mas assiste-nos o direito de nos divertirmos com as nossas próprias desgraças.

    Quando cheguei ao Sudoeste, dada a abundância de turistas por ali naquele tempo, e à minha abundância de roupa acumulada noutros tempos, ainda me ri bastante com a Ana nas nossas deslocações às feiras locais sempre que não estava a chover, para regatear furiosamente com as estrangeiras os preços das minhas roupas mais finas. E contava-lhes histórias intermináveis, no fio da navalha entre a verdade e a ficção, sobre a origem e a história de todas aquelas maravilhas exóticas, apelativas, intactas, e subitamente vendidas ao desbarato numa feira de ferro-velho qualquer. A Ana ouvia, ouvia, e pasmava com a minha capacidade de contar as mesmas histórias sempre de forma diferente de cada vez que mudávamos de poiso e vinham de lá outras estrangeiras interessadas. “É que nem sequer são as mesmas gajas” – comentava ela. “Mas eu assim divirto-me muito mais” – explicava eu. E era verdade. Era bastante melhor do que todas as alturas em que fiz psicologia pop para tentar animar as leitoras deprimidas que se aproximavam devagarinho, com os olhos muito abertos, estancavam, abriam e fechavam a boca em silêncio, e finalmente diziam, muito baixinho, de queixo caído, “mas você é a Clara Pinto Correia”, ao que eu respondia com um sorriso, “pois sou, e este filme podia ser muito pior, aqui ao menos tenho amigas[9], e tenho roupa para vender.” Seguiam-se vários lamentos explicativos das grandes depressões delas, por vezes até com prantos demonstrativos. E eu, já que ali estava e aquelas mulheres não tinham vindo até à minha banca para comprar roupa, dava todo o meu melhor para conseguir fazê-las rir[10]. Houve só uma vez em que a Ana sibilou, enquanto estávamos a fazer marcha atrás para virmos embora: “fds que eu não sei como é que tu aguentas isto.[11]” Mas é preciso ver que, nessa feira específica, num dia inverno cheio de humidade, nem eu nem ela tínhamos conseguido vender uma única peça.

    Nesta aldeia, como ao fundo de outros destinos da camioneta, a Ana e a Nídia apreciavam particularmente os livros sempre diferentes que eu trazia de Lisboa, e que procurava trazer sempre em português. Era sempre da melhor literatura que há no mundo, adquirida sempre por preços absolutamente compatíveis com o meu estado de desgraça, porque a trazia comigo sempre da mesma maneira: chegava uma hora adiantada ao terminal, e, depois de comprar o bilhete e tomar café, passava-a quase toda dentro do espaço exíguo mas sobrelotado da sua loja da Mbooks. Por acaso é uma daquelas que oferecem péssimas condições, tanto aos funcionários como aos utentes, o que é absolutamente lamentável para um ponto de venta que cobre o País inteiro. Mas tem escondidas lá dentro arcas do tesouro impressionantes. Da primeira vez que lá entrei rumo ao meu esconderijo no Sudoeste encontrei um caixote com restos da famigerada colecção Europa-América a dois euros. Com tanta sorte, entre eles estavam alguns exemplares de um dos meus eternos livros de cabeceira, o GREEN HILLS OF AFRICA do Hemingway. O título estava traduzido para português como AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA, já se sabe que o que é bom naquela colecção não são as traduções mas antes o grau de abrangência, e a verdade é que consegui comprar um para cada uma delas, e ainda um romance da Pearl S. Buck[12] para mim – qualquer coisa que, sabe-se lá como, tinha conseguido escapar ao meu momento de devorar compulsivamente tudo o que existisse da laureada americana na Europa-América, durante um mês de férias passado em Sesimbra quando eu tinha doze anos. E ainda fui tomar outro café para saborear as primeiras páginas até chamarem para o embarque no meu expresso.

    Nem me lembro de quando é que começou a tradição do terminal de Sete-Rios; mas, nessa altura, já a tinha totalmente incorporada: quando se viaja compra-se um livro. Uso pouco os comboios e os barcos que servem Lisboa; mas, se usasse, também me dava ao mesmo luxo: há uma loja da Mbooks naquele terminal enorme do Cais do Sodré. E, diga-se de passagem, está localizada e organizada de forma substancialmente mais digna do que a loja de Sete-Rios. É um desperdício as pessoas tenderem a passar todas por ali cheias de pressa. Eu, que não vivo em Lisboa, já lá parei algumas vezes nestes últimos anos, e confirma-se: tem uma grande quantidade de grandes obras a preços inacreditáveis. Claro que há sempre diferenças de uma loja para outra: no Cais do Sodré, já quase que tive de mandar um par de berros à jovem demasiado simpática que estava de serviço para que, antes de mais nada, parasse de falar comigo em inglês; e, a seguir, para que parasse de andar atrás de mim, que eu tinha tempo e preferia procurar o que me interessava sozinha. Também se nota que estão para venda muito mais obras em francês e inglês, algumas em espanhol, outras tantas em alemão.

    Por mim tudo bem, gosto de ler noutras línguas e não tenho vontade nenhuma de morrer estúpida; mas estes livros tendem a ser mais caros do que as edições portuguesas, e, nesse pormenor, de certeza que afastam os leitores de salário mínimo como eu. E o primeiro-ministro pode dizer o que muito bem lhe apetecer sobre a abundância e a estabilidade portuguesas, que isso não impede que toda a gente saiba que Portugal está cheio de pessoas pagas a salário mínimo. E que se falou nisso o menos possível, mas ficou muita gente desempregada no final de 2024. Portanto é bom que os livros não fiquem mais caros. Pelo menos, para quem tiver essa prioridade e arranjar esse tempo, os livros que se descobrem no meio de todas as tretas que também se vendem na Mbooks são alimento para alma. Às vezes é um alimento tão precioso que ficamos a devorá-lo durante a noite inteira.

    Enquanto estive em Lisboa, a melhor loja da Mbooks era, sem dúvida, a do metro da Alameda. Talvez agora alguém me escreva a dizer que ela já não existe e, assim, a dar-me um grande desgosto; mas na altura existia e era a mais digna e limpa de todas. Havia mesmo um balcão grande a separar a funcionária dos potenciais compradores, e do outro lado do balcão havia uma cadeira de escritório. Os conhecimentos literários da funcionária podiam não ser grande coisa, mas ao menos não nos incomodava depois de lhe dizermos que não precisávamos de ajuda: calava-se, ouvia a sua música, e sorria-nos quando vínhamos pôr as nossas escolhas em cima do balcão. Até álbuns de capa dura, daqueles que são muito bonitos para pôr na sala, mas estes com o valor acrescido de serem também extremamente interessantes e rigorosos[13], eu trouxe dessa loja. Enquanto vivi no Bairro dos Actores, usar aquela saída do metro era a bem dizer obrigatório sempre que acabava de ler um livro: tinha de passar por lá logo a seguir para trazer outro para casa. Estava de tal forma viciada que nem conseguia dormir se não estivesse antes pelo menos uma hora a ler, idealmente de janela aberta para a felicidade do Verão em Lisboa, ou então de vidros encostados contra a toada suave da chuva a cair lá fora. Foi o período em que a minha biblioteca pessoal cresceu mais[14], sem ser preciso fazer nela nenhum investimento que doesse na carteira, por pobre como tudo que eu fosse. Empilhar cada vez mais livros dentro do meu quarto dava-me uma sensação de empoderamento que não era brincadeira nenhuma. Cada maluco tem a sua.

    A loja de Sete-Rios não é nem digna nem limpa, mas ao menos é costume lá estar um senhor que gosta mesmo de livros. Foi lá que comprei os meus Faulkners e os meus Fitzgeralds, além de um Chandler que eu nem sabia que existia, porque se chama (mal traduzido) O PARQUE DOS VEADOS, e é ainda mais sufocante do que OS DUROS NÃO DANÇAM. Conheço-a bem. E esta pérola de desrespeito, perigosíssima quando entramos numa segunda era Trump que todos sabemos que vai ser ainda mais inculta e mais cheia de armas em casa do que a primeira, acaba de acontecer há cerca de um mês atrás.

    Vinha eu estafada, depois de dois dias extremamente cansativos de revisão de provas, a entrar no terminal exactamente uma hora antes do expresso das dezanove, o último que sai para Estremoz todos os dias. Compro o bilhete, não trago bagagem, vou mas é a correr para a loja da Mbooks. E estranho logo a situação, porque as luzes estão baixas, parece mesmo que já fecharam, mas ainda faltam uns bons três quartos de hora para o fecho oficial. Vejo o tal senhor a andar de um lado para o outro feito barata tonta, e pergunto-lhe se a loja já está fechada.

    Não. Estamos só a poupar energia, no caso de não vir ninguém. Mas entre à vontade. Eu subo a luz.

    Mas o senhor…

    Ah, não ligue. Eu estou só a carregar mobílias. A loja tem que perder bastante tamanho para a Rodoviária poder instalar os seus bancos novos.

    Bancos? Quais bancos?

    Então a senhora passou mesmo por eles e não os viu? Olhe ali.

    Eu até fiquei arrepiada. Era mesmo verdade que passei ao lado do banco para onde ele apontou. Era uma daquelas estruturas em círculo, com cerca de oito lugares a toda a volta, que depois são forradas com espuma para maior conforto, e cobertas com napa ou com qualquer outra imitação de tecido resistente para melhor efeito visual. Se iam instalar ali, num lugar já contaminado pelo grande carrinho das pipocas, vários bancos destes ao mesmo tempo, então a Mbooks tinha de encolher, e encolher bem.

    Sempre gostava de saber quem é que lucra com estas jogatanas, porque os passageiros não são de certeza. Em todos estes longos anos de uso do terminal de Sete-Rios, nunca vi todos os bancos cheios. Nem os de dentro nem os de fora do terminal. Nem sequer os da esplanada coberta ao lado da descida para o metro e para os táxis, sem dúvida os mais agradáveis de todos, que podem parecer apinhados num determinado minuto, mas há um código secreto nunca escrito que nos permite sentarmo-nos nas mesas uns dos outros desde que existam lá cadeiras vazias, e além disso estão sempre a vagar mesas de pessoas que se levantam para irem apanhar o seu expresso. Não é o povo português quem vai ganhar mais lugares sentados no terminal de Sete-Rios.

    O povo português vai é perder ainda mais a sua simplicidade no acesso aos bons livros, o que é um tremendo insulto à literatura e um desrespeito total pelas pessoas.

    Verguenza, como diria o Papa Francisco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] NÃO É A MESMA COISA DO QUE COMPRAR LIVROS NA INTERNET, OU NÃO CONSIGO FAZER-ME ENTENDER? Comprar livros segurando neles, folheando, aspirando o cheiro do papel, estudando a capa – é outro tipo de experiência, e basta.

    [2] “Onde é que tem as obras de ficção?” – A menina sorri, hesita, vasculha a loja com os olhos – e finalmente aponta com o dedinho rematado numa unha de gelinho perfeito para uma estante de livros com aneis de Saturno, pessoas em Marte, robôs, e assim. Como é evidente, “ficção” é a forma mais rápida de dizer “ficção científica”.

    [3] “Para ler? Então, gosto de fantasia.” Por “fantasia” entenda-se aqueles livros enormes com sagas em três volumes à maneira do SENHOR DOS ANEIS, todas iguais e todas igualmente deploráveis. Os putos enchem as mochilas daquilo até mesmo ao cimo.

    [4] Bem. Honestamente, é mais que atingiram os dois a maioridade e eu deixei de ter essa obrigação de mãe solteira. Claro que o Dick achava a esse respeito imensas coisas que eu não achava. Mas ele nunca tinha sido pai solteiro.

    [5] Deste período, o melhor exemplo é um dos meus romances preferidos, NÃO PODEMOS VER O VENTO.

    [6]Nessa altura a rádio pública passava óptimos programas nocturnos. Daquelas plantas raras e delicadas que, depois de cortadas uma vez, já não voltam a crescer. E ninguém parece preocupado com o vazio gelado que deixam atrás de si.

    [7] Era o meu cachorrinho da altura, trazido com muito amor e carinho do Canil Municipal de Sintra. Parecia um cão d’água preto e branco em miniatura, e – felicidade! – quem o abandonou já o tinha ensinado a só fazer necessidades na casa de banho.

    [8] Levo a Marta à Praia da Aguda, de todas a minha preferida com a sua imensidão de degraus, num fim de semana de sol esplêndido adiantadíssimo no calendário. A Marta anda triste como a noite, e aquele prazer em fins de Março, na perfeita Lua Cheia, faz-lhe bem de certeza. No grande areal do equinócio, em plena Maré Vazia, só estamos nós e um casalinho esquisito – ela é muito jovem, mas aquela boca tão torta só pode ser a marca de um AVC bastante sério, e ele anda com os pés para fora, em movimentos sincopados como os dos patos, orientado por uns olhos completamente tortos. Depois de eu lhes mostrar como é que os camarões aparecem nas poças de água que o mar deixa atrás de si nas rochas, percebemos que a lesão dela é tão grave que mal consegue falar, mas ele conta-nos tudo pelos dois. São ambos antigos heroinómanos que se amavam de paixão, e que, numa noite de Verão, foram para o terraço da casa dos avós dela no Magoito e administraram a si próprios uma overdose de mãos dadas, porque no beco onde se tinham encurralado já não existia qualquer saída. Ambos sobreviveram. Mas ambos estiveram tanto tempo em coma, e ambos perderam tantas faculdades e sentidos, que já nem conseguiam namorar: limitavam-se a dar apoio um ao outro naquela caminhada difícil pela normalidade. Sobreviviam das aguarelas psicadélicas dos acampados em todas as tribos e capelinhas das festas trance, que estavam à época no seu pico de popularidade; e das carteirinhas de filtros já prontos para enrolar e pôr nos charros que a empresa dele produzia em Vila do Conde e fazia circular nas festas por cinco euros. Mostrou-nos uma, eu disse “epá, mas que grande ideia, o filtro é sempre o pior,” e comprei-lhe logo três. A Marta estava a olhar para nós com os pezinhos estendidos para a rebentação e os olhos cheios de lágrimas. “Não é convosco,” acabei por esclarecer eu. “A Marta anda mesmo, mesmo muito triste.” O vesgo deu-lhe um abanão. “O que é isso?”, perguntou-lhe ele com um vago sotaque nortenho. “Gostas de perder o teu tempo? Mas ouve lá, tu não sabes que a vida é muito curta? Vai mas é a umas festas, mulher!” A Marta corou até à raiz dos cabelos, como uma virgenzinha que até aí foi sempre protegida mas de repente está sozinha e tem que entrar em diálogo com o taberneiro mais tinhoso ali do sítio. “Festas?” hesitou ela, com toda a franqueza. “Mas isso é o quê?”. Eu não foi por maldade, foi mesmo por carinho: desatei a rir. “Ó querida Martinha! Com toda a tua experiência da vida não sabes mesmo o que são as festas? Olha, prometo: este Verão, assim que for a primeira festa aqui nas florestas de Sintra, eu agarro no José de Oliveira Cosme, arranjo uma tenda emprestada, vou a Lisboa buscar-te e levo-te lá.” – “Uma tenda?” – “Pois, uma tenda.”

    E foi assim que tudo começou.

    [9] Gesto dramático de passar o braço pelo ombro da Ana, que odiava essas mariquices.

    [10] Apanham-se grandes sustos com estes instintos de escuteirinho. Por exemplo: “Ai, meu Deus. Já não me ria há tantos anos. Clara, desculpe, mas agora tenho imenso medo de voltar a sair de ao pé de si.” E se nesse dia não estivesse lá a Ana, para acabar expeditivamente com o dilema a título de dona do carro? “A menos que queiras ir com a gaja, nós vamos mas é bazar, boa?” – “Pois, muito obrigada, e por mim é já.”

    [11] A Ana passou grande parte da vida na Áustria, onde se licenciou em Economia. É casada com um Surfista escandinavo, tem quatro filhos, dá aulas de Português a estrangeiros, e de Maio a Outubro tem uma banca de ornamentos na calçada que contorna a praia. Não fazia a menor ideia de tudo o que eu tinha aguentado antes. E depois. Aguentar “aquilo” era, obviamente, uma pera doce.

    [12] Não é uma questão de snobeira. Não me lembro mesmo da tradução portuguesa do título.

    [13] Tenho na minha sala, aqui em Estremoz, um desses álbuns A4/capa dura da Mbooks. O título diz, apenas, THOMAS MORE. É uma belíssima biografia, cheia de informação sobre a Renascença e sobre a corte demente de Henrique VIII.

    [14] A minha enorme biblioteca pessoal anterior foi cruelmente saqueada e destruída no armazém dos amigos a quem eu tinha pedido que a guardassem até eu conseguir assentar arraiais, e a minha colecção de CDs, tão difícil de construir, levou o mesmo caminho. Salvaram-se todos os meus livros académicos, que felizmente estavam depositados no Instituto Bento da Rocha Cabral; e também toda a minha ficção de cabeceira, que eu guardei sempre comigo para me dar força. Quando me instalei em Estremoz, achei por oferecer as cerca de cem obras da minha colecção de ficção científica à Biblioteca Municipal, uma vez que eu já não preciso dela, mas talvez outras pessoas precisem. Grande parte de tudo o resto veio da Mbooks.

  • Ignorância não

    Ignorância não

    “Não avançamos

    Por nenhum caminho

    Já aberto –

    Avançamos

    Levando mais além o âmago

    Raptor,

    De fonte latejante

    Drenando um deus

    Pequeno

    Mas vivo.

    Filipe Jarro

    CARTOGRAFIAS


    A mudança de ano condena-nos à vivência de mais um reinado Donald Trump, com a certeza de que teremos de ouvir mais chorrilhos de tolices e de que o mundo não ficará mais bonito. Falei-vos da sua declaração de campanha de que em dois minutos de briefing percebeu tudo o que havia a perceber, o que levava à promessa de que os americanos podiam ficar descansados porque ele é o pai da fertilização in vitro. E mais: vai torná-la grátis para todos os interessados. Se a primeira declaração era de uma estupidez que faz doer, a segunda é de uma demagogia que não se aguenta – termos de ouvir o homem que mais esperneia contra os cuidados de saúde acessíveis para todos os residentes prometer que vai oferecer-lhes de graça um tratamento muito caro que é procurado há décadas por milhões de casais, em clínicas que operam para proveito próprio. Tudo isto para parecer mais moderno do que os fundamentalistas do seu partido que estavam a levantar a voz porque os embriões já eram pessoas e, portanto, congelá-los era um crime. Tudo isto volta a levantar a velha pedra de toque do grande caos que vai na cabeça das pessoas sobre a diferença entre um embrião e um feto. E isso, infelizmente, não acontece só na Améria – os americanos apenas fazem mais barulho. Vale a pena aproveitar a oportunidade para tentar, outra vez, por as coisas no sítio.


    Na vida real, a aventura embrionária é uma montanha-russa de um mês, regulada por três tipos de hormonas diferentes: as gonadotrofinas, que vêm do cérebro, e fazem o ovário amadurecer um dos seus ovos; os estrogénios, que vêm do ovário, e regulam a ligação desse ovo com o espermatozoide mais capacitado para a tarefa; e, finalmente, a progesterona, que participa activamente na ligação do embrião às paredes do útero. Estas tarefas devem estar todas prontas ao fim de um mês, ou, mais apropriadamente, ao fim do equivalente a um ciclo lunar[1]. Se não estiverem é porque não houve embrião, pelo que não houve fertilização. Assim sendo, ao fim de alguns dias depois deste ciclo, o cérebro envia mais gonadotrofinas para o ovário para que o ciclo comece outra vez.

    Quando o ovo por fertilizar[2] cai do ovário para a Trompa do Falópio, inicia uma jornada até ao útero em que pode, ou não, encontrar-se com espermatozoides pelo caminho. Se não encontrar nada, o revestimento nutritivo que, entretanto, o útero preparou para receber o ovo fertilizado[3] torna-se inútil, e ocorre a menstruação. Mas, se o ovo se encontrar com espermatozoides na sua jornada, e se um deles o fertilizar com sucesso, cerca de cinco dias depois do acto sexual o embrião começa a formar-se, ainda dentro da trompa. Em ciclos que demoram de oito a doze horas, primeiro o ovo divide-se num embrião de duas células, e depois num embrião de quatro células. No total, entre a entrada na trompa e a implantação total no útero um embrião demora cerca de dez dias a completar o seu percurso.

    É importante parar aqui, porque geralmente, nas fertilizações in vitro[4], os embriões que os médicos transferem para o útero da mulher, e todos os embriões excedentários que congelam, têm exactamente quatro células.

    E, portanto, a resposta é não: estes embriões não são pessoas.

    Ainda vão ter que andar muito para lá chegarem.

    No fim da jornada pela trompa, o embrião que cai no útero é um círculo microscópico de células todas iguais, que inicia de imediato os seus primeiros contactos com as paredes externas da zona de implantação[5]. À medida que progridem nessa implantação, as tais células todas iguais acabam por formar dois grupos diferentes, numa estrutura que agora já mostra uma diferenciação mais marcada: por fora está uma parede de células todas iguais; e, por dentro, está um botãozinho de células arredondadas agarradas a essa parede. A parede externa vai formar a placenta, e todas as outras estruturas de suporte à gravidez; e só o botãozinho minúsculo é que dará origem ao feto propriamente dito.

    Mesmo assim, não, claro que não: estes embriões ainda estão muito longe de ser pessoas.

    À medida que o seu processo de implantação no útero progride, o embrião vai-se diferenciando cada vez mais, formando os precursores dos primeiros tecidos, as células precursoras do tubo neural, e, finalmente, as estruturas percursoras dos primeiros órgãos.

    Esta gestação embrionária demora cerca de oito semanas. Só depois de concluída é que o embrião passa a ser considerado um feto. E, mesmo assim, é preciso suster a respiração até ao terceiro mês de gravidez, absolutamente crucial para a ligação do feto à placenta, e tipicamente o momento em que ocorrem mais abortos espontâneos. Agora reparem na diferença enorme entre um feto bem-sucedido no final do seu terceiro mês e um embrião de quatro células no seu segundo dia de existência. Se não conseguirem memorizar de outra maneira, usem esta: ninguém precisa de um microscópio para ver um feto. Um embrião, por outro lado, não pode ser visto de outra maneira.

    E, evidentemente, o “pai da FIV” não é Donald Trump.

    Quem primeiro conseguiu juntar o ovo da mãe com os espermatozoides do pai numa caixa de Petri, obter um embrião de quatro células, transferi-lo para o útero da senhora, e obter uma gravidez bem-sucedida a termo foi o investigador britânico Robert Edwards, trabalhando em conjunto com o ginecologista Patrick Steptoe. Depois de muitas falsas partidas, muitos enganos, muitas pistas erradas, os dois conseguiram sincronizar o ciclo hormonal de Lesley Brown, inseminá-la com um ovo fertilizado fora do corpo com sémen do marido, e fazer nascer Louise Brown, o primeiro “Bebé-Proveta[6]” do mundo, a 25 de Junho de 1978. Posteriormente, o seu trabalho conjunto no Center for Human Reproduction, em Olddham, na Inglaterra, permitiu o nascimento de mais de mil bebés, incluindo a irmã mais nova de Louise. Edwards recebeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2010, e faleceu em 2013.

    À época, as FIVs permitiam evitar problemas de infertilidade devidos, por exemplo, a bloqueios nas trompas do Falópio: recolhendo o ovo directamente no ovário, fertilizando-o no laboratório, deixando-o desenvolver-se até à fase de quatro células, e injetando-o de novo no útero em sincronia com o ciclo hormonal, saltava-se por cima desse bloqueio, que é responsável por uma quantidade substancial dos casos de infertilidade feminina. Como é evidente, a técnica expandiu-se logo pelo mundo, e foi logo melhorando. Uma das primeiras melhoras foi esta transformação do “embrião” em “embriões” que tanto preocupa os fundamentalistas e ainda hoje baralha todas as pessoas que não têm qualquer obrigação de ter especializações na matéria.

    Chamou-se-lhe a superovulação.

    Os médicos passaram a estimular artificialmente os ovários da mulher para que, em cada ciclo, em vez de um ovo pudessem obter – facilmente – um valor entre doze e vinte. Isto permitia ter bastante mais embriões bem desenvolvidos, transferir para o útero uns três em vez de só um, para aumentar a possibilidade de pelo menos um se agarrar bem à placenta. Como todos os tratamentos para obter e recolher os ovos são bastante violentos para o organismo feminino e para a psique da mulher que quer engravidar, os embriões excedentários guardavam-se numa câmara de Azoto líquido, prontos para serem descongelados intactos, prontos a repetir a operação sem mais tratamentos se a primeira tentativa falhasse – ou se os pais felizes quisessem ter outro bebé.

    Isto já se fazia nos anos 80 do século passado.

    Já nessa altura gerava a maior das confusões, criava toda a espécie de controvérsias, e levantava dilemas legais nunca antes vistos.

    É espantoso como ainda falta explicar tanta coisa.

    E como Trump tem a lata de dizer, e repetir, e jurar aos quatro ventos, que percebeu tudo em dois minutos.

    O pó que se levanta com estas grandes questões, legitimamente complexas para a inquietação humana, só assenta se nos dispusermos a um mínimo de esforço no seu estudo, por forma a compreendermos o que está mesmo em causa. Distinguir embriões de fetos, por exemplo, já é um grande passo em frente. Já agora, distinguir os fetos insipientes dos três meses das crianças potencialmente viáveis dos cinco meses também é uma grande urgência. Explica-nos porque é que fazemos algumas coisas e outras não.

    O que aí vem é do pior. Por favor, que ninguém escolha manter-se ignorante.

    Feliz Ano Novo.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Ou seja, 28 dias.

    [2] O oócito, ou ovócito.

    [3] O zigoto.

    [4] FIVs.

    [5] O endométrio.

    [6] Não se sabe quem inventou o termo, que foi caindo em desuso com o tempo, à medida que se expandiu e trivializou. De qualquer maneira não era especialmente bem-sucedido, uma vez que a FIV tem lugar em caixas de Petri, e não em provetas.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • O rei das fertilizações in vitro

    O rei das fertilizações in vitro

    “e sentei-me, feliz, na irresponsabilidade da vitória”

    Ernest Hemingway

    GREEN HILLS OF AFRICA


    Como é que se ganha uma campanha eleitoral num país democrático, com todas as condições para estar bem informado, quando se é um acabado imbecil e não se tem uma única ideia que beneficie as populações, dentro e fora das fronteiras? Alguns factores são bem conhecidos. Por exemplo, existir uma democracia significa, cada vez menos, que exista também qualquer espécie de meritocracia. E ter-se acesso à informação também não implica, cada vez menos, que se faça uso desse acesso – por exemplo, quando cheguei aos Estados Unidos em 2014, em pleno período Obama, já todos os Professores andavam muito preocupados porque os seus alunos iam buscar a sua informação aos late night shows, aos monólogos dos comedians, e aos posts apócrifos sempre perigosos da internet. Agora juntem à mistura um candidato que não tenha qualquer espécie de vergonha na cara e diga em público tudo o que lhe passe pela cabeça e soe bem, como faz Donald Trump. É assim que a mistura se torna explosiva, porque Trump está a servir a este povo maioritariamente ignorante fatias de bolo que podem não querer dizer nada mas sabem muito bem e são boas de cantar ao espelho enquanto se faz a barba.

    Foi por via desta estratégia que, num fórum perto do fim da campanha e destinado especificamente às mulheres, para sacudir as acusações de ter apoiado o Supreme Court[1] a roubar às mulheres os seus direitos reprodutivos, Trump se saiu com a declaração bombástica,

    “QUEM? EU? MAS EU QUERO QUE NASÇAM IMENSAS CRIANÇAS AMERICANAS, SEJA POR QUE VIA FOR! EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!

    Os seus opositores, finos e educados, só conseguiram dizer que aquela declaração era “muito bizarra”. And the band played on[2].


    Com as suas nomeações sucessivas de cristãos fundamentalistas para o Supreme Court, Trump já tinha feito estragos extremamente sérios nos direitos das mulheres sobre os seus corpos, com o regresso da proibição do aborto logo à cabeça. Esta nova proibição foi feita de forma extremamente pérfida, como se viu do Texas – foi absoluta e sem apelo nos condados interiores, aberta a casos devidamente fundamentadas aprovados em tribunal nos condados periféricos (mas era preciso a família ter fundos para pagar a um bom advogado, e isso é caro), e sem legislação nos condados em que a fronteira intersecta estados vizinhos em que o aborto é legal, sendo que, mesmo assim, é preciso guiar até à clínica mais próxima, que tem que estar a uma distância de mais de cem milhas da fonteira com o estado que tem como tabuleta distintiva DON’T MESS WITH TEXAS[3].

    Ou seja.

    ovum, sperm, fertilization

    No Texas, os pobres não têm qualquer possibilidade de fazer um aborto, embora o mesmíssimo procedimento seja muito fácil de fazer para o ricos. Lembram-se de séries como DALLAS, ou DINASTY? Em termos sociológicos, não havia ali qualquer exagero. Os ricos do Texas são incrivelmente ricos. Como tal, nada no seu quotidiano os distingue dos ricos de Bollywood. ou de Manila, ou de qualquer outro apeadeiro do Terceiro Mundo, porque todos os ricos precisam do mesmo. Precisam de um nevoeiro sempre activo de milhares pobres para que eles possam viver como ricos e ganhar como ricos. Toda a gente sabe disto. Donald Trump pode não saber muita coisa[4], mas isto sabe muito bem porque é a sua prática de uma vida inteira. A situação no Texas, que alastra perigosamente para outros estados, foi obra das suas nomeações para o Supreme Court, que agora só se revertem se morrer um dos juízes ou se algum for expulso devido a qualquer terrível escandaleira[5].

    Ora acontece que, em mais um passo contra a liberdade de escolha das mulheres, mais recentemente o Supeme Court decidiu declarar que os embriões já são crianças[6]. Sendo assim, o seu processo de congelamento, destinado a permitir às mulheres que querem engravidar por Fertilização in vitro (FIV) e não têm sorte na primeira tentativa[7] possam repetir o ciclo sem voltar a passar pela colheita e sem gastarem mais dinheiro, é uma infâmia aos olhos de Deus, uma vergonha aos olhos dos homens, e portanto, sem dúvida, uma técnica que deve ser imediatamente proibida em todo o país.

    Os ginecologistas com clínicas de FIV, já assustados pelo resultado potencial deste tipo de pregações, começam logo a não congelar mais embriões excedentários[8], o que faz com que as FIVs, já de si muito caras, se tornem ainda mais caras. É que, agora, se a primeira tentativa não funcionar, é preciso repetir todo o processo que vai até à formação dos embriões — estimulação dos ovários  com quinze dias de duas injeções por dia, paragem do ciclo com uma injecção muito dolorosa que pode calhar às horas mais imprevisíveis da noite ou do dia, recolha dos ovos ainda não fertilizados com uma pequena cirurgia, fertilização destes ovos com os espermatozoides do parceiro, incubação conjunta de ambos por dois dias, e esperar que se formem embriões de aspecto saudável. Congelar os embriões supranumerários resultantes da primeira FIV de qualquer casal cobriria tudo até aqui, e há que ver que esta primeira fase é, de longe, a mais complexa e delicada de todas[9], sobretudo para as mulheres. Com embriões congelados só seria preciso fazer uma nova pequena cirurgia para a sua introdução no colo do útero e, durante mais quinze dias, rezar para que tudo corra bem.

    pregnant, maternity, mother

    Ter embriões congelados é tanto mais importante para quem faz FIVs quanto se sabe que as possibilidades de insucesso podem ser várias, até que, por fim, haja (ou não) sucesso.

    De maneira que, mesmo entre os círculos cristãos mais empedernidos, a notícia de que o Supreme Court se preparava para cometer a iliteracia científica de comparar embriões a crianças para proibir o congelamento da bolinha indiferenciada de células dos primeiros, e com ele prejudicar toda a Reprodução Medicamente Assistida, estoirou como uma bomba e pôs toda a gente de braço no ar num protesto conjunto. Sobretudo as mulheres. E foi isto que levou os figurões que gerem as Relações Públicas da FOX a organizar o Forum das Mulheres, em que Donald Trump teria a oportunidade de se fazer ouvir sobre todo isto.

    Mas francamente, o que é que Trump sabe sobre a FIV?

    Boa pergunta.

    À qual o homem tratou de responder imediatamente ele próprio, no seu próprio e colorido vocabulário.

    man in black suit standing beside woman in black dress

    Antes de vir para aqui, falei com a nossa Conselheira dos Assuntos Científicos, uma mulher linda, linda, devo dizer-vos, realmente uma mulher linda. Pedi-lhe que me explicasse o que era a fertilização in vitro. Ela começou a falar, e eu não precisei de mais de dois minutos. Percebi tudo. Tudo! Claro que sou a favor da fertilização in vitro. EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!

    Voaram bonés, bandeiras, t-shirts da campanha. A sala veio abaixo com aplausos. Mudava-se de canal a correr e todos estavam já a citar aquela maldita frase. Nos dias que se seguiram, Trump teve dezenas de oportunidades de repeti-la, sem que ninguém lhe perguntasse o que é que é que ele estava realmente a dizer. E, como os democratas ficaram tão desconcertados que em vez de exporem a falácia a varreram para debaixo de tapete, a águia americana voou a pique, como um grifo dourado, rumo ao País das Maravilhas onde – de facto – cada um pode dizer o que quiser.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Tribunal Supremo, que vigia as leis de todo o País.

    [2] Literalmente “e a banda continuou a tocar”. Utiliza-se quando, apesar de vários protestos, as coisas ficam como estavam. O docudrama em que toda a comunidade inteligente, médica, científica, autárquica, e de grandes pesos-pesados do pensamento tenta alertar o presidente Reagan para as formas de transmissão da SIDA que seria para mim fáceis de evitar, e não recebe qualquer resposta da Casa Branca, chama-se, exatamente, AND THE BAND PLAYED ON.

    [3]Não se metam com o Texas”. As tabuletas de entrada nos outros 49 estados dizem, SEMPRE, “Bem-vindos ao South Carolina”, “Bem-vindos a New York”, e assim.

    [4] Por exemplo, CLARO QUE NÃO SABE COMO É QUE VAI ACABAR COM A GUERRA NA UCRÂNIA, e deve ser o único homem em todo o Ocidente que ainda não percebeu que Putin pode estar interessado em comer-lhe muitas papas na cabeça – mas NÃO ESTÁ MINIMAMENTE INTERESSADO em ser seu amigo.

    [5] Bem, mas num país onde um homem com 36 processos-crime em cima ganha as eleições…

    [6] Não são, não. São uma bolinha oca de células ainda não diferenciadas. Mas lá iremos.

    [7] Acontece muito mais vezes do que correr logo tudo bem.

    [8] Os que sobraram da primeira inseminação. Podem ser muitos, e dar para várias tentativas. Vejam o meu caso. Tive 26 ovos, que deram 18 lindos embriões. Mas os ginecologistas só transferiam três, portanto sobraram 15. Se pudéssemos congelar embriões nessa altura, eu ficava ali com material para mais cinco FIVs…

    [9] Sou boa menina. Não gosto de incomodar ninguém. Estou a poupar-vos educadamente ao termo “dolorosa”, mas claro que ele também conta. Muito. Com grande probabilidade, bastante mais do que o dinheiro.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Trinta e sete anos mais tarde

    Trinta e sete anos mais tarde

    Já vi como são os gajos que andam por aí sozinhos a trabalhar nos ranchos,” disse George. “Não é bom. Não se divertem. Depois de algum tempo tornam-se muito maus. Tornam-se aquele género de gajo que está sempre a querer lutar.

                    “Pois, tornam-se gajos maus,” concordou Slim. “Tornam-se incapazes de falar seja com quem for.

                    John Seinbeck

                    ON MICE AND MEN (1938)


    Quando eu lhes sugeri que, se toda a gente – sobretudo o patrão – estivesse de acordo, podíamos usar o piano ali do bar para fazermos, com mais instrumentos e até talvez com mais vozes, os mesmos espectáculos de fado falado que eu tinha feito em tempos em Lisboa e no Algarve, os olhos do David iluminaram-se de entusiasmo e de antecipação. Quando eu lhe respondi que não via nenhuma razão para ele não contribuir para esse espectáculo com o som do ukelele que ele já andava há mais de um ano a aprender a domesticar – muito pelo contrário, e uma vez mais desde que o patrão concordasse, era uma contribuição porreira, de um som que raramente ouvimos em espectáculos portugueses, e certamente em espectáculos de fado – o David quase que começou a levitar. Repetiu vezes e vezes sem conta que era agora, finalmente, era agora, aos trinta e sete anos: era agora que ia fazer alguma coisa radicalmente diferente das rotinas de Estremoz. Estremoz, onde tinha nascido. Estremoz, onde sempre tinha vivido. Estremoz, onde nunca acontecera nunca nada realmente mau, mas também nunca acontecera nada francamente bom.

    Ah, mas isso agora ia mudar.

    Aos trinta e sete anos, ele ia chegar ali com o seu ukelele e participar num espectáculo radicalmente diferente.

    Diferente, diferente, diferente.

    Aqui mesmo, em Estremoz.


    Foi um café-bar que abriu na última Primavera numa das esquinas do Centro Histórico, um sítio grande, misterioso, cheio de pilares e de esquinas, com mesas e cadeiras todas diferentes e todas muito confortáveis, um lugar onde podiam entrar os cães, onde os empregados eram jovens e sorriam, onde tudo o que serviam era feito na hora na cozinha lá de trás e imensas receitas tinham segredos especiais – era um sítio para a pessoa se sentir mesmo bem e não ter grande vontade de sair a correr. O piano fazia parte de todo este bem-estar. Era antigo, muito bem envernizado, pousado em cima de um estrado espaçoso frente a uma banqueta de veludo a condizer. Foi só dizerem-me que sim, que estava afinado, e que tencionavam usá-lo para dar espetáculos nocturnos no Verão. Lembrei-me logo dos espectáculos de fado falado, que ficariam tão bonitos com um piano. Ainda por cima, funcionavam como uma homenagem a uma Lisboa já quase inexistente, devorada como andara a ser nos últimos anos por legiões cada vez mais cerradas de turistas. Estremoz também estava a ficar submerso em turistas. Talvez um toque nas letras tornasse a homenagem mais explícita.

    Em torno do piano, com o bar ainda vazio, o entusiasmo ia subindo de tom. Eu precisava de uma voz de homem para falar os fados comigo. Era necessário ver quem seria a pessoa mais indicada, falar com ela, convencê-la a juntar-se a nós. Havendo gente, havendo espaço, um coro a entoar a música de alguns dos fados junto do piano era capaz de funcionar muito bem. E esse coro cantava como, a uma voz? Duas vozes? Estava tudo em aberto, a partir do momento em que até entrava um ukelele.

             “Uma coisa que era capaz de ter graça,” continuei eu, “era se de vez em quando, mas nunca se sabia mesmo quando, houvesse na assistência um grupo disperso de pessoas que se levantasse de repente, entoasse uma passagem, e voltasse a sentar-se.”

             “Ah!”, gritou o David com os olhos a brilhar. “Uma flash mob? Isso era brutal!”

             Eu não sabia se seria possível organizar qualquer flash mob naquele espaço. Nem se poderíamos ter minimamente a certeza de que os seus elementos viriam disciplinadamente aos ensaios e estariam organizadamente presentes sempre que houvesse espetáculo. Aliás, não fazia ideia de como é que se coreografa e se ensaia uma flash mob. Mas, como não queria desapontar ninguém, sorri e disse “qualquer coisa assim, depois logo se vê.

             Acabámos por combinar que eu escreveria o roteiro completo do espectáculo, com indicação de intervenientes, instrumentos, letras, e por aí fora. Depois mandava por mail para eles. Depois falava com o patrão, que chegava para a semana. Depois, se toda a gente estivesse de acordo e gostasse do projeto, avançávamos.

             Havia muito que fazer até ao Verão.

             O David saiu comigo, e subimos juntos as escadas que levam ao Castelo. Há muito tempo que não via um homem tão feliz.

             “Ah, finalmente!”, repetia ele. “Finalmente, ao fim de 37 anos, vou fazer uma coisa mesmo diferente em Estremoz! Vou fazer uma coisa que vale a pena fazer! Esperei tanto, tanto, tanto, que já tinha desistido. Agora não. Agora vou recomeçar os ensaios do ukelele já esta noite. Ah, finalmente!

             Depois eu lá consegui encontrar o ficheiro dos fados falados. Dei-lhe vários toques, emprestei-lhe mais conotações estremocenses, substituí o nome de uma casa de fados em Alfama pelo nome daquele café-bar que acabara de abrir com tão bons auspícios. Falei com o patrão, que se mostrou muito interessado e me pediu que lhe mandasse o ficheiro para ele ver.

             Mandei o ficheiro para toda a gente.

             Ninguém me respondeu.

             E fez-se o longo silêncio que se segue às batalhas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • As mulheres e crianças primeiro!, ou nós toleramos a demagogia política (mas não se estiquem)

    As mulheres e crianças primeiro!, ou nós toleramos a demagogia política (mas não se estiquem)

    São irritações dos que nos precederam. Todas as nossas tradições e costumes são herdados dos mortos, não acha?

    Yasunari Kawabata

    O arco-íris


    Tinha eu vinte e poucos aninhos, e, entre outras coisas, a certa altura dei comigo sentada à volta de uma mesa com outros camaradas trotskistas ou simpatizantes do modelo que estavam a formar o PSR[1] sob a jurisprudência do jovem Francisco Louçã. Depois desse dia, sempre que era preciso votar em partidos, eu votava no PSR. No mínimo, seria sempre um pouco bom voto de protesto. Depois do PSR nasceu o Bloco de Esquerda e com ele subiu muito a febre: agora o voto já não seria só de protesto, porque podíamos eleger mesmo deputados que nos representassem. A partir daí, toda a gente conhece a trajectória do Bloco – em que eu continuei sempre a votar, salvo raríssimas excepções. E votei em autarcas do Bloco, em presidentes da República do Bloco (salvo quando votei na Ana Gomes, mas aí a razão era bastante mais forte do que a paixão), em presidentes de Juntas de freguesia do Bloco. Conto-vos esta história para garantir que ninguém podia ter maior dedicação à causa da verdadeira esquerda[2] do que eu. Mas quando ouvi a forma bacoca e demagógica que Mariana Mortágua escolheu para falar do navio de bandeira portuguesa cheio de armas para Israel que estava no Porto de Lisboa até me arrepiei de irritação[3]. Apeteceu-me atirar-lhe à cara o preceito socrático fortificado nosce te ipsum capra[4] e espetar com ela na psicanálise. Então a senhora não vê que há coisas que um político de esquerda, que ainda por cima é uma mulher, que para mais afirma gostar de mulheres, não pode dizer do alto do púlpito?


    Então vamos lá recuar umas semanas no tempo. Através do Bloco de Esquerda, ninguém nos diz como mas também ninguém parece muito interessado em saber, descobre-se que está ancorado no Porto de Lisboa, com a bandeira portuguesa hasteada, um navio com o porão carregado de armas tenebrosas com destino a Israel. Descobre-se porque, nessa manhã, o Ministério da Defesa confirma a presença escandalosa deste barco no nosso porto, a Judiciária apoia a confirmação, o Presidente da República declara-se apanhado de surpresa mas interessado em, antes de mais nada, tirar do barco a bandeira portuguesa, as autoridades portuárias ainda estão a investigar as condições da sua entrada mas consideram que se deve conduzir desde já o barco para águas menos abertas ao público… e ninguém manifesta grande sobressalto com a horrenda descoberta. Por incrível que pareça, tudo isto se passa numa grande tranquilidade de segunda-feira de manhã ensolarada, como se estivessem agentes da MOSSAD, de granada na mão, a guardar todas as saídas do estúdio – e, porque não, todas as saídas da RTP.

    cargo ship on sea under cloudy sky during daytime

    Felizmente, a pulsação política e jornalística sobe geometricamente de pulso assim que a acção passa para o Parlamento. Mariana Mortágua, dirigente do partido político que descobriu a presença entre nós daquele barco sinistro, está no uso da palavra. E ela, ela sim, finalmente – ela está francamente indignada. No seu melhor estilo Morticia Addams, toda vestida de preto, o cabelo asa de corvo escorrido pelos ombros, a pele glacial, a voz de além-túmulo, mas que se lixe: se Portugal estava a albergar sem nós sabermos um barco cheio de armas para Israel, é melhor que alguém com assento parlamentar se indigne, e se indigne a valer. E portanto até eu, que embirro francamente com esta escolha desastrosa de cabeça de cartaz, sinto um alívio enorme quando a oiço.

    Mas isso dura um minuto ou dois.

    Depois até a representante da esquerda para lá da cassette puxa ao choradinho desnecessário.

    “… e todas aquelas armas se destinam a matar as mulheres e as crianças da Palestina…

    A pessoa até dá um salto no sofá e entorna sobre si própria o café ainda a ferver.

    Ai filha, pela tua rica saúde.

    As mulheres e as crianças“?

    Então e como é, os adolescentes, os homens, os velhos da Palestina – esses não têm direito a nada? Não é tão horrível serem massacrados como as mulheres e as crianças? Onde é que tu julgas que estás, quem é que tu julgas que és – talvez um cavalheiro vitoriano a abrir a porta e a dizer, com uma vénia para as visadas e um sorriso paternalista para os amigalhaços presentes, “primeiro as senhoras“? Mas não foi exactamente contra isso, contra a antiquíssima praga do gineceu[5] que escravizou as mulheres de todo o mundo durante milhares de anos, que lutaram as nossas avós, que lutaram as nossas mães, que lutámos nós a vida inteira e que as nossas filhas ainda têm de lutar? Isto, ainda por cima, é declamado pela mesma mulher de esquerda que teve a péssima ideia de tornar público que gostava de mulheres[6]. E depois, de repente, a puxar à lágrima sem qualquer vergonha, sai-se com esta enormidade como se as mulheres fossem menos capazes de resistir às intempéries do que os homens? Tudo bem, espera-se dos políticos que sejam demagógicos. Mas isto é muito para lá de demagógico: isto é absolutamente insultuoso.

    Até para as crianças.

    city with high rise buildings under orange sky

    Tal como as mulheres, as crianças têm uma antiquíssima história de serem insultadas. O homem é o único animal com filhos que precisam de cuidados parentais durante tantos anos, e de uma aprendizagem tão complexa para poderem exercer profissões de qualquer espécie, e este crescimento lento e dependente sempre baralhou os estudiosos. Em consequência e antes de mais nada, embora se meta pelos olhos dentro que as crianças são espertíssimas, como a esperteza delas é diferente da nossa passaram milénios relegadas para o mesmo gineceu que as mulheres, e depois mais vários séculos a serem tratadas como atrasadas mentais. No século XVIII, o filósofo inglês John Locke, hoje considerado o fundador da psicologia, esclareceu finalmente o mistério do crescimento lento das crianças: era uma parte fundamental do plano divino para que as famílias não pudessem deixar de manter-se unidas.

    Mariana, tu não te esqueças que foi preciso esperar até 20 de Novembro de 1959 para que a Assembleia Geral das Nações Unidas se lembrasse, por fim, de aprovar a Declaração dos Direitos da Criança[7], “considerando que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar“. Se continuares a ler, ficas cada vez mais arrepiada. “A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade.” – “A criança tem direito à educação, que deve ser considerada gratuita e obrigatória” – bolas, e, sobretudo, pelo menos para mim, “A criança deve ter plena oportunidade para brincar.” É evidente que estamos a privar todas as crianças do mundo de todos os seus direitos[8]. Por isso mesmo, um bocadinho mais de respeito quando falas das crianças da Palestina não te ficava mal. Santo Deus, já lhes basta o que basta.

    Aliás, implicar que as crianças são incapazes de combater ou de sobreviver sozinhas numa guerra, sobretudo se estivermos a falar das crianças da Palestina, volta a ser de um desdém de bradar aos Céus. Fui eu que enlouqueci ou foram precisamente as crianças da Palestina, quando Israel começou a ocupar os primeiros territórios a que não tinha direito por lei, que iniciaram as hostilidades com as famosas chuvas de pedras? Apanhados de surpresa, sem mais coisa nenhuma que servisse de resposta, não foram precisamente “as crianças” que ripostaram contra os tanques à pedrada, tal como ainda hoje ripostam? É muito triste, Mariana, pois é. Mas, da próxima vez que a demagogia te parecer indispensável, lembra-te das mulheres e das crianças e da forma como nos insultaste a todas. E escolhe melhor os teus recursos de oratória.

    “MAS NÓS TEMOS FILHOS”

    Há cerca de vinte anos, do lado de cá do Mar Morto, frente a Jericó, acabei por ter uma longa conversa com dois pastores palestinianos que se faziam passar por beduínos. Perguntaram-me se eu queria ir ver, e eu disse que sim. Depois de um valente esticão a pé com os borregos, metemo-nos num camião velho e demos uma data de voltas até chegarmos a uma colina junto ao vale do Jordão. A barulheira dos borregos sedentos encobriu a nossa escalada. E, lá de cima, era verdade: via-se perfeitamente. Os israelitas estavam a construir os primeiros blocos sólidos, resistentes, muito feios, de um novo kibutz em plena Palestina. Como se todo aquele chão fosse deles por direito.

    Até eu senti raiva.

    Depois olhei em volta e não pude deixar de questionar-me.

    Mas é por isto que vocês lutam tanto?”, perguntei-lhes. “Por meia dúzia de laranjeiras numas colinas quase desérticas à beira de um rio quase sem água?

    Isto“, respondeu firmemente um dos pastores, sem sequer olhar para mim, “é a nossa terra. Se viessem uns estrangeiros invadir a tua terra – tu não lutavas por ela?

    Pergunta retórica.

    Limitei-me a sorrir, e a dizer que sim com a cabeça.

    Depois insisti.

    Mas estes gajos estão cheios de dinheiro. E estão cheios de armas. Como é que vocês alguma vez conseguirão impedi-los de fazer coisas destas?” – e apontei para a construção grosseira e arrogante com o queixo, enquanto os bulldozers judeus iam e vinham sem parar.

    Eles sorriram com orgulho.

    Sabes uma coisa? Estes gajos não têm filhos. São como vocês. Um casal com dois filhos já é uma grande coisa, por muito que o governo lhes pague para terem três ou quatro. Mas nós” – já não me lembro qual deles é que falou, mas até levantou a voz de emoção – “nós temos filhos. Todos temos muitos filhos. E todos os nossos filhos aprendem muito cedo a odiar os judeus, e a atirar pedras aos tanques dos judeus. Havemos de ter tantos filhos que um dia os filhos deles nada poderão contra os nossos. E é assim que começa o colapso da Judeia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Partido Socialista Revolucionário.

    [2] É um disparate chamar ao Bloco “Esquerda radical” ou “Extrema esquerda”.

    [3] Também é preciso ver que Mariana Mortágua me irrita com uma frequência espantosa. Se eu fosse a sua coach política virava-a completamente do avesso. Em termos de proporcionar um mínimo de conforto aos portugueses, da forma que tanto Louçã como Catarina sabiam fazer tão bem, a Mortágua parece uma figura saída da Família Adams que dorme debaixo da cama deles e assusta as criancinhas durante a noite.

    [4] Conhece-te a ti mesma, cabra.

    [5] A medicina grega considerava as mulheres meros homens incompletos, com os órgãos sexuais retidos no interior do corpo devido ao frio do útero materno, que impossibitara o seu desenvolvimento a termo. Estes “homens mutilados” existiam em grande número porque eram necessários para a reprodução, onde, aliás, morriam com frequência. Como tal, eram mantidos no seu enclave isolado, sem qualquer relação com a filosofia, a guerra, o debate, e tudo o que dissesse respeito à democracia. Os desenhos do homem mutilado demoraram muito tempo a desaparecer da literatura científica. Ainda faziam as suas aparições esporádicas nos livrinhos de cordel do século XIX.

    [6] Antes de mais nada, o dito anúncio não era novidade para ninguém. Mas o pior foi que abriu um precedente gravíssimo. Deu carta branca a quem quisesse andar a vasculhar a vida privada dos políticos, com a Comunicação Social à cabeça, para avançar e fazer isso mesmo com vista a tornar públicas as suas descobertas mais palpitantes. Afinal de contas, era uma dirigente política que acabava de abrir as hostilidades.

    [7] Eu nasci a 30 de Janeiro de 1960. Gozei-me desses direitos por um triz.

    [8] Tanto estamos que não paramos de re-escrever o que já está escrito, com cada vez mais cláusulas e mais notas. A última CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA COM PROTOCOLOS FACULTATIVOS (!) foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal a 21 de Setembro de 1990. Entretanto, há cada vez mais tráfego de crianças, mais criação de crianças-soldado, mais corpos pequeninos de crianças removidos dos escombros de mais algum edifício bombardeado em qualquer parte do mundo.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Omeprazol

    Omeprazol

    Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.

    Bon Marley


    Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.

    O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.

    Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.

    Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.

    Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.

    Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.


    Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]

    É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.

    Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.

    Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.

    Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.

    Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.

    Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.

    Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”

    Então e já decidiram em quem vão votar?

    Olharam para mim como se eu fosse de Marte.

    woman in black long sleeve shirt hugging white and black siberian husky

    Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”

    Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”

    Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.

    Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”

    Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,

    Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”

    Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • O final do alcoolismo

    O final do alcoolismo

    Continuava a sentir-me no país de outro homem, sentia a forma como era estrangeiro, a minha solidão.

    V.S. Naipaul

    THE ENIGMA OF ARRIVAL


    Os momentos em que os governos das democracias recentes tomam posse costumam ser aqueles em que o eleitorado insuspeito sente mais dificuldades em perceber como é que vão concretizar-se novas medidas que nos façam de facto mais felizes, e o momento presente, em que se testam as primeiras águas do novo governo, não foge à regra. Um quarto dos eleitores de Estremoz votou na AD. Mas essas pessoas, agora, terão todas a ganhar com os cortes nos impostos que se perspectivam? Serão todas elas mais felizes quando entrarem em vigor as novas margens de manobra para as rendas das casas? E o pior é ouvir a Assembleia da República em peso a discutir o novo Orçamento Geral do Estado. Pergunto-me qual dos meus vizinhos é que vai beneficiar com ele e não sei. Não sou tão burra como pareço, bolas. Apenas não vivo naquele país, pela simples razão de que nem toda a gente lá vive.


    Se a democracia portuguesa fosse tão disfuncional como qualquer outra nas suas redondezas, então os portugueses não abandonavam Melides para irem trabalhar em Andorra, nem trocavam Lisboa por Berna, nem largavam São Pedro de Moel para se fixarem em Cardiff, nem tomavam mais nenhuma das muitíssimas outras opções de vida deprimentes que podiam listar-se daqui em diante, o que aliás seria completamente desnecessário porque a moral da história está mais do que implícita: a democracia portuguesa só pode ser disfuncional, porque, por mais que o seu país seja bonito e agradável, e ainda por cima cheio de gente a quem os mesmos adjectivos se aplicam, os portugueses continuam a deixá-lo para trás, geração atrás de geração atrás de geração. Temos o clima que temos e gozamo-lo com a nossa proverbial simpatia, enquanto que em Londres chove o ano inteiro, o céu do fim da tarde fica negro de estorninhos que são uma praga infestante pior que os pombos, e as pessoas têm um carácter tão tendencialmente agreste que já ninguém que partilhe a sua vida volta para casa sem passar primeiro pelas happy hours da saída dos empregos. E, no entanto, é para lá que não param de partir os jovens portugueses – em bandos, como os estorninhos. E, no entanto, ali estão os nossos novos governantes a debater as suas novas medidas, que farão dos portugueses um povo feliz. A seguir os comentadores políticos falam interminavelmente sobre quem disse o que quê nessa nova lista das compras do que desta vez se pretende fazer, como se a  lista em si nos tivesse parecido diferente de várias outras, ou como se o tempo em que todos vivíamos bem em Portugal e pagávamos em Euros essas vidas já tivesse existido.

    man and woman sitting and facing near concrete fence during golden hour

    Uma democracia não perde a sua virtude democrática por ser disfuncional. Nem Portugal é a única democracia disfuncional de toda a Europa, para não irmos mais longe. Um país pode ter o seu eleitorado dividido quase ao meio entre a extrema-direita e o socialismo, como o Brasil ou os Estados Unidos, que isso não torna a sua democracia disfuncional, por muito que possamos dizer cobras e lagartos de metade dos seus habitantes. Mas não são falsidades como as de Trump, ou manipulações de contagens de votos como as de Bush Jr., que levam levam os americanos a abandonar o seu país. O que faz partir um grande número de portugueses é a escassez de políticas frontalmente empenhadas na maior felicidade de quem não tiver garantias de meios. Ou seja, o que torna uma democracia disfuncional é notar-se que está atravessada por uma linha horizontal, e tudo o que se passa na sua política e nas suas instituições, a beneficiar alguém, beneficia quem se encontra no espaço superior a essa linha. No espaço inferior a essa linha as pessoas ou dificilmente são beneficiadas, ou – com bastante frequência – são prejudicadas.

    Como a maioria dos portugueses, as pessoas aqui em Estremoz podem ter poucos meios mas fazem tudo o que podem para se sentirem felizes, e usam todos os pretextos a que têm acesso para se divertirem. Além de todas as datas mágicas que se prestam a feriados, pontes, bandas, e danças, procuram-se pretextos especiais para almoços e jantares sempre que estes são possíveis, e basta haver sol para se juntarem grupos nas esplanadas assim como basta que as noites aqueçam para que quem vive dentro das casas se sente cá fora, nos degraus da entrada, a conversar em voz branda para um lado e outro da rua ou mesmo só a ver quem passa. Mas ultimamente festeja-se menos, porque a metade do país que fica na linha inferior da disfuncionalidade não tem dinheiro para festejos. Muita gente não tem nesse extracto não tem dinheiro nem para convidar um amigo, um único, para almoçar ou para jantar. É possível ir para uma esplanada e só tomar um café, mas só um café compra menos tempo. Isto faz todas estas pessoas verem-se quase de repente obrigadas a viver muito mais sós. E, por isso mesmo, mais tristes.

    a woman sitting on a wooden swing in the middle of a field

    Os cálculos de poupança que levavam estas pessoas a ir abastecer e comprar gás a Badajoz podiam não estar feitos a regra e esquadro, mas a verdade é que os abastecimentos em Espanha já eram um hábito antigo, que se tinham generalizado ainda mais depois de começar a Guerra da Ucrânia – e, com ela, começarem as subidas de preço da gasolina, que em Portugal pareciam suceder-se dia sim dia não. Agora quem vive abaixo da linha divisória não abastece em Espanha coisa nenhuma. Nem compra gás. Se por qualquer razão a sua vida depender mesmo de ir a Badajoz, já nem apanha a autoestrada. Ir passear a Espanha, fazer umas compras, e de caminho meter gasolina, podia ser uma tradição que perdeu todo o sentido financeiro com o passar do tempo. Mas foi uma tradição de décadas, e os preços recentes da gasolina portuguesa rejuvenesceram-na. Até pode não ser ir abastecer a Badajoz que faz falta. Mas saber-se que se pode, mesmo que pouco ou nada se ganhe com a manobra – isso sim, isso claro que faz falta. E, para quem já tem pouco dinheiro, é uma recordação acrescida de que passou a haver ainda menos dinheiro, de tal forma que já praticamente nada depende do que queremos fazer mas antes do que somos obrigados a fazer. As grandes depressões não têm só por causa grandes desgostos de amor.

    Tenho ouvido várias vezes falar da falta de dinheiro para comprar medicação prescrita para tomar duas vezes ao dia pela mãe, pelo pai, por um dos filhos, ou pela própria pessoa que está a falar comigo. O ano passado, as farmácias armaram-se de umas maquinetas que não deixam sair um único medicamento que não seja pago primeiro – e não devem ter feito isso por acaso. Às vezes eu por acaso sei que os fármacos que as pessoas não conseguem comprar são fundamentais para o convívio com uma ou outra doença mais ou menos séria. “Então mas estás sem comprar isso há quanto tempo?” – “Há uns dois ou três meses, o que é que tu queres?

    A história mais impressionante daqui do fundo da linha, no entanto, para mim foi a dos bêbedos.

    Quando acaba a folia do Carnaval, tenho por hábito ir tomar café, tão cedo quanto possível, a um barzinho que fica aberto a noite inteira, e de onde, por vezes, ainda vão os últimos bêbedos a retirar-se aos risos, caminhando sem tombos por forma a homenagearem as suas máscaras de mulheres. Faço isto para ouvir as conversas dos velhotes, que entretanto chegam a passo vagaroso, de samarra vestida e boné na cabeça em qualquer altura do ano, para se encostarem ao balcão, pedirem o seu café com bagaço ou então só o seu bagaço, e começarem a questionar o jovem proprietário sobre os bêbedos do Carnaval.

    clear glass tumbler on brown wooden tray

    Ainda no ano passado, a conversa, quando eu entrei, ia nisto:

    Então oh pá. E tivestes cá muito bêbedo?

    O rapaz até apoiou a cabeça na mão antes de se pôr a acenar.

    Ai deixem-me cá.

    Os velhotes inclinaram-se por cima do balcão.

    Tudo maluco, era? Tudo aos berros? Dá-me aí outra pinguinha. Muita bêbedo, hã?

    O rapaz tinha um pano na mão, que pousou de repente para calar toda a assembleia num só gesto.

    Vocês não imaginam a quantidade de miúdas bêbedas que me entraram por aqui adentro, ouviram? Miúdas novinhas, miúdas da idade da minha filha, pois acreditem, aparecem-me aqui com catorze anos e nem se têm em pé, e lá fora umas gritam, outras vomitam, e eu só insisto que não as sirvo, mas é que não as sirvo, e que não as sirvo nem por nada, e elas a dizerem-me de todas as tendinhas onde as serviram e eu que dali que se ponham mas é a andar antes que eu chame a polícia, e elas num estado que já nem queriam saber, eu não servia nem rapazes de catorze anos mas olhem que elas são piores, até tentaram ir-me à cara, se não estivessem tão bêbedas ainda me matavam.

    Os velhotes ouviram aquilo tudo sem dizer uma palavra, e a seguir puseram-se a debater baixinho qual deles é que já se metia assim nos copos aos catorze anos. E, sobretudo, se no tempo deles alguma miúda faria o mesmo.

    Fazer, faziam,” concluiu lapidarmente um dos mais velhos. “Aí por esses montes, onde não havia mais nada, onde não vivia mais ninguém, onde os pais e as mães estavam sempre borrachos e toda a gente sabia onde é que ficavam as chaves para as adegas, vá que às vezes faziam. Mas não faziam era essas figuras, e muito menos vinham fazê-las às claras para o centro da cidade.

    O centro histórico, ainda por cima,” protestou outro velho, menos velho.

    Na esperança de testemunhar mais material que pode sempre vir a ser usado para qualquer coisa, este ano voltei ao barzinho logo a seguir ao Carnaval.

    a man laying in the grass with a bottle of beer

    Como cheguei bastante mais tarde, encontrei tudo muito limpo e arrumado e não estava lá dentro velho nenhum.

    O que vale é que, à custa de tanto trabalho de campo, por estes dias o rapaz já me conhece bem.

    Então conte lá,” perguntei eu, à falta de quem o fizesse por mim, “como é que foi esta noite, muitos bêbedos?

    Ele pôs-me o café e o copo de água do costume em cima do balcão, sem sequer fazer uma daquelas suas perguntas de gozo mútuo como por exemplo “ora então diga-me lá em que é que esta humilde casa pode servi-la.” Depois olhou para mim com um ar de desgosto tão sincero, tão sentido, que não podia ser nenhuma fita.

    E disse:

    Olhe, menina Clarinha. Não há mais esperança. Até já os bêbedos estão tesos.

    E foi acabar de fechar a loja sem mais uma palavra.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • O inferno é um estado de espírito

    O inferno é um estado de espírito

    Já não receio nada.

    Braço dados contigo,

    Desafio o meu século.

    Friedrich Schiller

    Século XVIII


    Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]

    E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.


    O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.

    Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.

    Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.

    O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.

    silhouette photography of trees

    No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.

    No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.

    No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.

    O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.

    No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.

    No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.

    E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Agora digam lá.

    É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?

    Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.

    Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.

    Mas acontece que há caminho.

    Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.

    Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.

    Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.

    Não parece porque não foi[8].

    Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?

    a bridge built into the side of a mountain

    Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.

    Já sabemos que vai ser muito dura.

    Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.

    [2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.

    [3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.

    [4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.

    [5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.

    [6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”

    [7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.

    [8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.

    [9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.

    [10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.

    [11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • O abismo

    O abismo

    Como as de todas as outras paixões, as raízes do ódios são imprevisíveis.

    Jorge Luis Borges


    Aqui há uma semana acordei com telefones a tocar em protestos solidários, o correio electrónico cheio de mensagens encorajadoras, e o Facebook pejado de nomes feios destinados a uma pessoa que eu desconhecia em absoluto. Por fim, o meu editor fez-me chegar uma espécie de CV do Inferno que o tal desconhecido acabava de publicar no Diário de Notícias, onde até este mesmo PÁGINA UM era insultado por minha causa, e todos os acontecimentos desagradáveis de há vinte e quinze anos voltavam a ser esmiuçados em parágrafos intermináveis[1]. No entanto, e assaz curiosamente para quem se tinha dado a tanto trabalho de rememoração desagradável, tudo aquilo estava positivamente juncados de incorrecções. Comecei a ler o texto com toda a atenção, e a questão das tais incorrecções, incluindo erros nos anos dos acontecimentos e outras trapalhices muitíssimos piores, começou a despertar-me a curiosidade. Aquele chorrilho de grosserias parecia escrito à pressa por um estagiário[2] assanhado, e era um exemplo de livro de texto de como não se pode fazer jornalismo, mesmo se feito por um colunista. Comecei a tomar notas.


    A primeira estranheza era mesmo logo no princípio, na frase relativa à altura em que, quando ainda estava a meio do curso de Biologia, entrei para a redacção do semanário O JORNAL, e, quatro anos mais tarde, publiquei o meu primeiro romance. Ora, sendo que a frase começava com as palavras…

    “… nos seus tempos de oiro, muito novinha…”

              … só pude concluir que aquela pessoa estava, no mínimo, extremamente distraída.

    Não tive nenhuns tempos de oiro quando era muito novinha. Tive, isso sim, tempos exigentes em que estudava Biologia quando o resto do País estava todo bronzeado nas filas da camioneta para a Caparica[3], e trabalhava em jornalismo ao mesmo tempo, com dedicação por inteiro ao JORNAL e em mais não sei quantos ganchos para chegar ao fim do mês[4] – e, para onde quer que me virasse, esbarrava constantemente em boatos de que ia para a cama com toda a gente e mais alguém para conseguir fazer todas as coisas que fazia. Se isto são tempos de oiro vo,u ali já venho.

    A seguir o senhor admite que ADEUS, PRINCESA, o meu segundo romance, grangeou um grande respeito da crítica literária (não acrescenta, embora tivesse sido fácil de verificar, que esse respeito, e a consequente explosão de vendas, levou três anos a fazer o seu caminho). Segue-se uma passagem surpreendente, em que nos explica que, quando Vasco Pulido Valente o considerou “o melhor romance português desde OS MAIAS”, o fez apenas por “puro efeito de provocação” – e a pessoa interroga-se, “como é que ele sabe? Falou com o Vasco? E, a ser verdade, o Vasco havia de ser tão burro que lhe dizia isso mesmo na cara? Está bem que o Vasco tinha os seus defeitos – mas burro?” Quer dizer, poupem-nos. Quando eu era aprendiz de jornalista, escrevia uma patetice destas, totalmente infundada e baseada apenas no meu sentimento pessoal, e o Fernando Assis Pacheco ia-me à cara.

    Perfil’ sobre Clara Pinto Correia do ‘historiador’ António Araújo, professor universitário e também membro do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também conhecido por ‘Fundação Pingo Doce’.

    Já agora, só para atestar mais uma vez a total  falta de cuidado com que o autor destes dislates faz o seu trabalho, há uma altura em que envereda pela minha vida pessoal. E aí os seus erros, todos eles facílimos de verificar e de corrigir, acumulam-se de tal forma que alguém bem intencionado na redacção do seu jornal deveria ter arranjado uma desculpa inocente, como por exemplo falta de espaço, para cortar aquilo tudo e poupar ao mais puro dos ridículos um jornalista que pelos vistos tem preguiça de investigar.

    A primeira argolada é afirmar que eu sou a irmã mais velha das quatro.

    Valha-me Deus, o senhor, se não gosta de fazer perguntas, não pode ao menos consultar o Facebook?

    A nossa “primogénita” (como o descuidado me chama, da forma mais insultuosa deste mundo para toda a minha família) é a Maria do Rosário, não sou eu. E isto não é uma pequena curiosidade sem importância. Ao longo de toda a nossa vida adulta – e certamente da minha –, a Ró tem sido a nossa grande organizadora, protectora, aquela que no Verão nos junta a todas na praia, e no Natal e na Páscoa se certifica que toda a gente se consegue reunir, quem vigia a saúde de quem fraqueja, todo um papel de mana mais velha que nunca estaria no meu feitio assumir – e talvez todas nós perdêssemos muito com isso.

    Segue-se a história comovente dos meus passeios em Tremês com o meu Pai, de casa dos meus avós até ao pomar das macieiras. O senhor menciona as minhas palavras comoventes quando digo que as nossas conversas nesse caminho foram fulcrais para estruturar na minha mente os passos do meu futuro. E cita-me: “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois e a passarada.”.

    Porreiro.

    Para já, sou uma grandessíssima parola.

    E ademais, ao que tudo indica com a conivência do meu Pai[5], imagina-se perfeitamente o sol e a passarada a estruturarem os passos do meu futuro. Com flores no cabelo, sandálias, ganzas, e o ashram do Ravi Shankar.

    white sheep on white surface

    Ensinam-nos que os jornalistas não manipulam as fontes, mas este aprendiz de feiticeiro manipulou e não foi pouco. A minha frase sobre as caminhadas com o meu Pai que foram fulcrais  na estruturação do meu futuro eram antes,

    “Numas lindas manhãs de sol, só nós os dois, a passarada, e o anel de benzeno.”

    OK, é possível que a total ignorância do que pudesse ser um anel de benzeno tenha tornado aquela frase, escrita assim, incompreensível ao escrevinhador. Mas, uma vez mais: o jornalismo tem regras. Uma delas é que não se alteram as fontes. E, dê lá por onde der, de certeza que a internet está cheia de textos e videos a explicar o que é o anel de benzeno, como funciona, e a importância que tem na nossa vida. De certeza que até virá contado, algures, que Michael Faraday, o cientista que descobriu a sua estrutura em 1825, conseguiu chegar lá porque a viu claramente num sonho[6]. Descobrem-se coisas lindas, quando se faz investigação. Mas, com toda a evidência, estamos perante uma personalidade de todo em todo alérgica a dar um passo dentro de uma biblioteca.

    A seguir, o despistado lista as várias alcunhas que fui tendo na vida. Num novo exemplo de péssimo jornalismo, mistura os nomes familiares com os nomes profissionais, e nunca percebe que eram, todos eles, nomes extremamente carinhosos[7]. Em África, os meus tios chamavam-me “Pretinha” – o que não era certamente um insulto, e aliás eu tinha imenso orgulho em ser a pessoa mais escura da família. Um namorado que tive no JORNAL chamava-me “Minhoca” com a maior ternura deste mundo. O autor que não consegue perceber nada disto estampa-se ainda mais ao comprido logo a seguir, quando explica que, “como retaliação” eu chamava aos meus colegas “os fósseis,”

    É preciso não me conhecer de todo.

    E é preciso não ter perguntado nada a ninguém.

    Antes de mais nada, não sou minimamente dada a retaliações. E depois, quem é que vai retaliar tratamentos carinhosos? Como expliquei milhares de vezes[8], a história dos fósseis vinha do tempo do liceu, em 1976, dois anos depois da Revolução. De cada vez que nós, os membros aguerridos do esquerdalho, passávamos o portão e esbarrávamos com “os fascistas” de corrente da moto na mão para darem cabo de nós, bem podíamos ficar com as pernas todas rasgadas que não nos abstínhamos da vingança. Íamos para casa de alguém que não tivesse lá os pais, ligávamos para um dos fascistas em causa, esperávamos que viesse a mãezinha ao telefone, e um de nós dizia, no tom mais ameaçador deste mundo,

    “Brigadas de Extermínio aos Fósseis. O seu filho que não saia de casa amanhã, ou não responderemos por nós.”

    Depois, no dia seguinte, o fascista faltava às aulas e nós fartávamo-nos de rir.

    black haired man making face

    É certo que eram outros tempos. Mas quando, aos vinte anos, de shortinhos e top porque era Julho, entrei para uma redacção onde as únicas mulheres eram a Edite Soeiro[9] e a Lurdes Feyo, ambas bastante mais velhas do que eu, e aqueles gajos todos, também mais velhos do que eu, começaram a atirar-se a mim como se eu tivesse nascido ontem, mas depois ficaram muito ofendidos porque os meus palavrões ainda eram mais criativos do que os deles – ah, sim, as BEFs voltaram a acender-se na minha memória e desatei a correr toda a gente a fóssil. Mas isto era no gozo. No gozo”, percebe-se a certa altura, é uma atitude que este jornalista limitado não entende.

    Vale também a pena salientar que há mais passagens interessantes relativas aos talentos de crítico literário deste personagem. A primeira é quando está a listar os diversos tipos de literatura que eu fui cobrindo nas mais de cinquenta obras que escrevi até hoje. Uma delas, segundo este entendido, é a “ficção científica” – com tanto azar, logo um género que eu francamente detesto. Ou seja, a minha produção literária está a ser-nos apresentada por uma pessoa incapaz de distinguir homenzinhos verdes de um outro género que, esse sim, é uma das grandes paixões da minha vida, a divulgação científica.

    Com uma cabeça destas, já não causa grande surpresa que, mais à frente, o grande crítico conceda que sou uma grande cientista (em matérias que ele ignora de todo) mas que os meus livros não prestam. Deduz-se que os leu todos com imensa atenção, que os sublinhou, que marcou as passagens desastrosas, porque só depois de um trabalho destes é que um bom jornalista poderia fazer semelhante afirmação. Vamos acreditar que sim e imaginar que o que deitou tudo a perder foi, digamos, o meu  livro infantil A HISTÓRIA HORROROSA DOS PEIXINHOS AMARELOS, sobre o qual seria interessante fazer-lhe algumas perguntas tão bem preparadas como a crítica literária dele. Mas já  repararam numa coisa? Santo Deus, os editores portugueses devem ser completamente cretinos, não é[10]? Para terem publicado tantos livros meus. E olhem que consegui enganar muito bem os americanos. E os japoneses, que traduzem o meu trabalho científico? Ora, nada mais fácil. Mais de metade do artigo é dedicado a dissecar a minha arte para enganar toda a gente. Por que é que não havia de enganar também os estrangeiros[11]?

    E olhem, segundo este apressado cronista de costumes também houve alguém que enganei muito bem quando fui casar-me a Las Vegas. Aquilo de que eu me lembro é de ter ido lá casar-me com o Dick, o pai dos meus filhos, o meu companheiro  de dezassete anos de vida no Massachusetts, e lembro-me de todos, todos, todos os pormenores. Mas como o autor do artigo escreve por ouvir dizer… fui a correr casar-me a Las Vegas com o autor “daquelas” fotografias, para atenuar a escandaleira nacional[12].

    Só depois disto é que volta a entrar a parte do interesse de Portugal por mim, que já agora corrijo.

    O grande interesse de Portugal por mim registou-se mais entre os 32 e os 40 anos – quando, entre várias outras coisas, já tinha clonado mamíferos muito antes de nascer a Dolly, coisa que o autor não parece ter minimamente registado… e, bem, tinha-se tornado completamente impossível ir para a cama com o mundo inteiro para conseguir fazer o que fazia, incluindo passar quinze dias na Ilha da Páscoa, correr a URSS de comboio e vir-me embora uma semana antes do sonho socialista acabar, doutorar-me, fazer clones, e ir estudar História da Ciência para Harvard. Estou a ler as trapalhadas de datas e de afirmações não atribuídas, a pensar que em jornalismo não se faz isto, e…

              … e depois descubro que o senhor distraído não é um jornalista.

    O homem que não estudou nada do que escreveu é um historiador, pelo que aqui eu já começo a ficar seriamente preocupada[13].

    Será que ele dá aulas?

    E ensinará ele aos alunos a expressarem-se desta forma que, se é errada em jornalismo, em História é pura e simplesmente inaceitável?

    black swivel chair beside rectangular brown wooden desk

    Parece que vive no Alentejo e continua a deslocar-se aos Estados Unidos.”

    Parece?

    Mas o que vem a ser esta balda, este “parece”?

    Então e a verificação das fontes?

    Deveria ser bastante fácil investigar se eu estou ou não a viver no Alentejo – aliás, bastaria ler o mesmo PÁGINA UM pelo qual o nosso historiador, para me desprezar a mim, mostrou um desprezo alarve na sua peça. Da mesma forma, era só sondar o consulado americano e ficaria logo a saber que não – já não me desloco aos Estados Unidos, ou pelo menos certamente não em trabalho. E porquê? Santo Deus, se não quisesse perguntar-me directamente que perguntasse à Segurança Social Portuguesa: estou reformada antecipadamente por invalidez, demasiadamente doente para pode manter horários lectivos constantes e fiáveis.

    O que, acto contínuo, desmente outro “parece que” do nosso brilhante historiador: claro que, se estou reformada, já não sou catedrática na Universidade Lusófona.

              E, uma vez mais, que raio de desmazelo vem a ser este? Um historiador que faz o seu trabalho com seriedade, e que pelos vistos não tem coragem para esclarecer as suas dúvidas directamente comigo (que diabo, tenho um Facebook chamado Clara Pinto Correia e é meu hábito responder às mensagens que recebo) não é pelo menos capaz de agarrar no telefone, ligar para os recursos humanos da minha antiga universidade, e perguntar se eu ainda lá estou a trabalhar? A pessoa até treme, só de imaginar o que serão os seus artigos da especialidade. Consta. Parece que. Dizem. Bibliografia por ouvir dizer. E depois dizem que os alunos portugueses são medíocres, e que têm dificuldades de concentração, e que observam terríveis graus de absentismo. Mas por favor, está toda a gente a ver bem o exemplo que lhes chega de cima?

    Miguel Relvas perdeu, muito merecidamente, o seu grau de doutor. Mais merecidamente ainda, esta nulidade devia perder já o seu grau de historiador. Pode insultar-me à vontade, se isso lhe dá prazer. Mas não pode passar aos miúdos que estão a tentar definir a sua vida a noção de que um historiador é um insultador que manda vir como muito bem lhe apetecer com a maior das leviandades. Até pode tornar a minha irmã mais velha mais nova do que eu, porque, como toda a gente sabe, essas minudências nunca tiveram, nem nunca terão, qualquer espécie de importância. E então em História.

    E este pensamento horrível traz-nos de volta aos insultos.

    Infelizmente, em toda a rodada de maledicência destinada a dizer mal de mim, não é só o PÁGINA UM que come por tabela. Mais perto do fim (porque se há uma outra coisa fundamental em História que este historiador nunca consegue observar é a regra-mestra da sequência cronológica), chegamos à parte em que eu abandono os estudos (nada podia ser mais falso) e me entrego a actividades fúteis do pior gosto e menor qualidade.

    text

    Logo a primeira é ter aceite um papel secundário no filme do António da Cunha Telles KISS ME. Epá, tenham dó. Cubram o Cunha Telles dos defeitos de personalidade e feitio que quiserem[14]. Agora, para me deixar mal vista, ter a lata de chamar a um dos maiores  e mais pioneiros cineastas portugueses fútil, foleiro, de mau gosto, de má qualidade… um historiador não tem que perceber de cinema, mas, à semelhança de todos os outros  académicos como nós, quando não sabe não tem que ir estudar? E, pela descrição do filme que faz a seguir, será que foi mesmo vê-lo? Mesmo, mesmo? Um verdadeiro historiador teria ido. Este limita-se a vituperar que é um filme com a Mariza Cruz. Que, diga-se de passagem, se revelou aqui uma actriz excelente.

    A minha segunda actividade fútil e de muito mau gosto foi ter aceite participar, juntamente com Rui Zink, Carlos Quevedo, e Mariza Cruz, no júri do concurso da TVI A BELA  E O MESTRE. O historiador nem sequer menciona que o nosso papel era integrarmos o júri, e ainda por cima junta a Paula Bobonne ao nosso elenco. Aqui as suas trapalhadas são ainda mais imperdoáveis, porque todos os episódios ficaram gravados, o que lhe teria permitido consultá-los e tirar a limpo o que aconteceu. Qual quê. Ao melhor estilo psicanalítico, o senhor tece várias considerações sobre o que leva uma figura do mundo cultural a aparecer ali, sem a mínima menção a razões semelhantes para o Rui ou para o Carlos, também eles pessoas do mundo cultural. A ideia evidente de que uma mãe solteira com dois adolescentes rebeldes em casa pudessse precisar de dinheiro talvez não lhe tenha passado pela cabeça[15]; mas, uma vez mais, perguntar não ofende. Agora, este historiador é de tal forma avesso a investigar os seus temas que ignorou o ponto principal: chegada ao terceiro episódio, e com o nível do concurso sempre a descer, com ou sem necessidade de dinheiro eu não aguentei mais aquilo e demiti-me. No último programa em que apareci para me despedir, entrevistada pelos apresentadores sobre a minha decisão, disse, apenas, “Sou professora Universitária. Este não é o meu mundo. De certeza que outras pessoas farão muito melhor o que se esperou de mim que eu fizesse.” E foi então – então sim – que a Paula Bobonne entrou para o meu lugar[16].

    E claro que fez aquele papel muitíssimo melhor do que eu.

    Até é uma história interessante.

    Mas, se estamos a braços com um historiador que não sabe dar-se ao trabalho sério e árduo de fazer História…

    … em vez de verdadeiros factos apanhamos antes com chorrilhos de faits divers.

    Muito foleiros, ainda por cima.

    black and white striped illustration

    E extremamente perigosos para a motivação futura de quem ainda anda a estudar, o que não pode ser dito de nenhuma forma elegante: é um verdadeiro crime.

    Sabes, caro homúnculo que se realmente estudou História depois tratou de se  esquecer dela, e cujo nome nunca serei capaz de memorizar? Vi no fim do teu textículo que, ao que parece, as citações de Nietzsche te dão prazer mesmo que sejam completamente descabidas. Então, por uma questão de caridade, sugiro-te que não gastes mais o teu Nietzsche comigo. Porque calculo que saibas como é que isto acaba:

    “Se olhares muito tempo para o abismo, é o abismo que vai olhar para ti.[17]

    Há poucas coisa mais perigosas do que o olhar de volta que o abismo nos manda quando ousamos olhar estupidamente para ele.

    Tu tem lá cuidado com os teus futuros gatafunhos, piroso.[18]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E interminavelmente maus, além de interminavelmente mal escritos.

    [2] Ou mesmo, quem sabe, um “candidato a estagiário”, o escalão onde me arrumaram quem eu comecei a trabalhar no JORNAL.

    [3] Eram os exames de Julho. Por uma questão de princípios, nunca deixei nenhum exame para a segunda época.

    [4] Claro que este detalhe a criatura não poderia aber a menos que perguntasse ao Silva Pinto, mas, quando comecei a minha vida de jornalista – muito novinha, nesses tais tempos de oiro – o meu ordenado era de seis contos por mês. E eu aguentei-me como pude.

    [5] Que, ainda por cima, ainda passou ali uns anos consideráveis com bastante medo de que viesse a acontecer-me qualquer coisa como esta.

    [6] E vocês acham, porventura, que eu decorei isto tudo nas aulas de Bioquímica do segundo ano? Pelo amor de Deus. Fui agora mesmo ver à Wikipedia. Tal como o troca-tintas deveria ter feito, em vez de omitir o anel de benzeno quando cita a minha frase.

    [7] Não sendo psicanalista, atrevo-me a sugerir, perante esta estranha interpretação do sentido de nomes que só poderiam ser ou doces ou humorísticos, que talvez todas as alcunhas dele tenham sido insultuosas, razão pela qual não consegue interpretar nomezinhos queridinhos de outra maneira.

    [8] Uma vez mais, ele que investigasse, gaita.

    [9] Que, com o tempo, veio a ser a minha querida “Mãezinha”.

    [10] Bom, os editores e as pessoas que vêm ter comigo na rua a dizer “queria só que soubesse que o MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS é o meu livro preferido!”. Ou que me escrevem para o Facebook a dizer “Fiquei  fascinada com o MAIS-QUE-PERFEITO, mas emprestei-o e nunca mais o vi. Onde poderei encontrá-lo agora?”O que é que  eu hei de dizer, “deixem-se de coisas e leiam o MOBY DICK?”

    [11] Uma vez estava no  aeroporto de Frankfurt cheia de fomne e de sede, e só tinha uma nota de dez euros no bolso das calças. Epá, meus amigos, enganei ali uns dinamarqueses que foi um gosto.História absolutamente verdadeira excepto no uso do verbo enganar. Confraternizámos enquanto comíamos e bebíamos, foi mais isso.

    [12] Desculpem, está tudo doido?

    [13] “Seriamente preocupada” é um eufemismo, claro. Quantos “historiadores”  destes existirão em Portugal?

    [14] E nem sequer são merecidos.

    [15][15] Os meus colegas do mundo cultural lá teriam razões como as minhas.

    [16] E adorou tudo Aquilo. De onde se prova que aquele não era mesmo o meu mundo, independentemente do dinheiro para pôr os meus rapazes rebeldes na linha.

    [17] Nietzche, citação muito famosa que o homúnculo certamente já conheceu mas depois esqueceu, como tudo o resto.

    [18] Citando Valete, RAP CONSCIENTE. Quem conhece o seu trabalho conhece a continuação.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.