Categoria: Visão do Mundo

  • O fim da amizade: tensões crescentes no Árctico

    O fim da amizade: tensões crescentes no Árctico

    Perto de Kirkenes, cidade norueguesa localizada no Círculo Polar Árctico, encontra-se uma das poucas fronteiras russas abertas com o Espaço Schengen.

    Kirkenes, uma cidade na costa do Mar de Barents, encontra-se no centro da luta geopolítica pelo controlo do Árctico. Ambos os lados da fronteira estão agora fortemente militarizados e repletos de actividades dos serviços de informação e segurança.

    Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Para a Rússia, esta área reveste-se de uma importância estratégica fundamental. A vizinha Península de Kola abriga não apenas a Frota do Norte da Rússia, mas também a mais recente geração de submarinos nucleares e cerca de mil ogivas nucleares.

    Perto da fronteira fica a base aérea de Olenya, onde o exército ucraniano lançou recentemente um ataque bem sucedido com drones, destruindo vários bombardeiros estratégicos russos. A região é excepcionalmente rica em petróleo e gás natural, mas também é fortemente afectada pelas alterações climáticas. O derretimento acelerado do gelo já começou a afetar as rotas comerciais internacionais.

    Kirkenes é um dos pontos geopolíticos e de segurança “quentes” do mundo.

    Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Após o fim da Guerra Fria, a cidade norueguesa dedicou grandes esforços para se reinventar como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. No entanto, a agressão russa à Ucrânia, em Fevereiro de 2022, juntamente com as subsequentes sanções económicas, pôs um fim abrupto a essa ambição.

    Apesar do declínio dramático das relações entre a Europa e a Rússia, uma pequena parte da população Kirkenes manteve-se favorável em relação à Rússia … Predominantemente por razões económicas. Antes da guerra na Ucrânia, os negócios estavam a crescer na cidade fronteiriça. Além disso, o legado histórico da União Soviética na região era demasiado forte para ser totalmente apagado pelos desenvolvimentos recentes.

    Cerca de 600 cidadãos russos residem actualmente em Kirkenes e, na sua maioria, estão contra as políticas de Vladimir Putin. Vários — jornalistas, activistas, membros do movimento LGBT — fugiram para cá para evitar o recrutamento ou a perseguição por parte do regime russo. Quando os militares russos declararam a primeira grande onda de mobilização forçada, várias dezenas de russos escaparam para Kirkenes. Outra parcela menor da população russa da cidade apoia activamente o regime de Moscovo.

    Kirkenes, uma capital espiã do Norte. / Foto: Boštjan Videmšek

    Antes da guerra, sucessivos governos noruegueses atribuíram somas avultadas para o reforço da cooperação transfronteiriça com a Rússia na zona do Mar de Barents. Há 17 anos, ambos os lados da fronteira chegaram mesmo a ponderar construir uma “cidade gémea”, o que aumentaria os laços de Kirkenes com a cidade mineira russa de Nikel, no distrito de Pechegensky, e talvez até ajudasse a criar uma “área transnacional”.

    Tais eram os sentimentos na época.

    Assim, em Julho de 2008, Kirkenes acolheu uma reunião entre o ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês, Jonas Gahr Støre, atual primeiro-ministro da Noruega, e Sergey Lavrov, que ainda desempenha as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros russo. O projeto foi interrompido na fase puramente teórica. No entanto, a relação global manteve-se estreita. A equipa de hóquei Kirkenes passou alguns anos a competir numa liga regional russa. E, todos os anos, membros de ambos os grupos de patrulhas de fronteira reuniam-se para um amistoso jogo de futebol.

    Dito isto, várias das pessoas que entrevistei em Kirkenes alertaram para o facto de que partes da cooperação cultural foram ocasionalmente utilizadas indevidamente para fins de política externa. Ou, para ser mais direto, como ferramentas de propaganda direccionada.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Legado soviético

    “Sinto-me enlutado e também traído por antigos amigos”, confessou um médico reformado, Harald Sunde, ao lado de um monumento aos soldados soviéticos mortos, no centro de Kirkenes.

    Além da sua longa e ilustre carreira médica, Sunde também é autor de dois livros sobre guerrilheiros noruegueses durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Sergey Lavrov visitou Kirkenes pela última vez, em 2019, Sunde ofereceu-lhe um exemplar de um dos seus livros. Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão. Logo depois, o norueguês recebeu uma comenda especial do Ministério da Defesa russo.

    No dia 1 de Março de 2022, uma semana após a “operação especial” na Ucrânia, Sunde fez uma visita ao consulado russo para a devolver.

    “A invasão foi um enorme choque”, recordou, enquanto fitava a estátua da Segunda Guerra Mundial, erguida em 1952. “Até ao último minuto, esperava que Vladimir Putin não cumprisse as suas ameaças. O ataque russo à Ucrânia destruiu toda a confiança. E eu não acho que vai voltar tão cedo. Após três décadas a tentar construir uma comunidade amigável, temos agora um regime hostil do outro lado da fronteira. Os danos causados pelo rompimento dos laços são incalculáveis.”

    Harald Sunde, médico e guia histórico de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Durante a Segunda Guerra Mundial, Kirkenes e os seus arredores viram alguns dos combates mais ferozes no Árctico.

    O exército alemão ocupou Kirkenes em Junho de 1940, mantendo a cidade ocupada durante mais de quatro anos. No auge da ocupação, cerca de 30.000 soldados alemães estavam em Kirkenes ou arredores, usando a cidade como um ponto de observação para ataques a Murmansk. Kirkenes esteve perto de ser destruída por aviões soviéticos que lutavam contra as forças nazis, apenas para ser libertada pelo Exército Vermelho em Outubro de 1944.

    Durante a Guerra Fria, o monumento aos soldados russos mortos em Kirkenes serviu como um forte elo nas relações locais Noruega-Rússia. Em ambos os lados da fronteira, o período foi suficientemente apreciado para ser apelidado de “a paz no Árctico”.

    Sempre que visitava o monumento, encontrava-se estacionado junto a ele um carro pintado com as cores da bandeira ucraniana, ostentando slogans como “Parem Putin!” e “Parem a guerra!”. O carro pertencia a um cidadão russo.

    Um carro com slogan anti-Putin está estacionado diariamente junto ao monumento dos soldados soviéticos. / Foto: Boštjan Videmšek

    O centro de Kirkenes também ostenta uma estátua de bronze do falecido Thorvald Stoltenberg, pai do antigo ministro da Defesa norueguês e mais tarde secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Stoltenberg foi uma figura-chave na ligação entre os países do Árctico após o colapso da União Soviética. Fundou o Secretariado do Mar de Barents e liderou numerosos projetos destinados a estabelecer laços com a Rússia.

    “Ele agora deve estar a virar-se no seu túmulo”, comentou Harald Sunde quando chegámos a esta segunda estátua.

    O aficcionado por História, de 67 anos, também exerce funções na Câmara Municipal como representante do Partido Socialista. Ele acompanhou-me até a placa comemorativa colocada pela comunidade local perto da entrada do consulado russo, após a morte do líder da oposição russa, Alexei Navalny.

    Homenagem a Alex Navalny em frente ao consulado russo, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Enquanto caminhávamos pela rua da memória da cidade, repleta de lembranças nostálgicas, Sunde continuava a elencar as lojas e empresas forçadas a fechar devido às sanções. As ruas eram maioritariamente frequentadas por cidadãos idosos… O que não surpreendeu, dado que os jovens têm fugido da zona. A população total está visivelmente a diminuir. Neste dia de primavera chocantemente quente, alguns turistas estavam por ali, enquanto as gaivotas, voando baixo, gritavam histericamente, protegendo os seus descendentes. Bandeiras ucranianas podiam ser vistas em cada passo que dávamos.

    As placas de sinalização de trânsito em Kirkenes estão escritas em três línguas diferentes: em norueguês, russo e sami. Desde 24 de Fevereiro de 2022, os políticos locais mantiveram um debate fervoroso sobre se as inscrições russas deveriam ser removidas. Recolheram-se assinaturas, iniciou-se uma petição… No entanto, o processo de remoção das inscrições não conseguiu reunir apoio suficiente.

    “Antes da invasão, Kirkenes era um importante centro comercial para os russos de classe média que viviam em cidades perto da fronteira. Posteriormente, muitos negócios fecharam, muitos deles permanentemente. Eu esperava que as autoridades de Oslo ajudassem mais, dada a gravidade da crise”, relatou Sunde.

    Fizemos uma breve paragem no abrigo subterrâneo onde os habitantes da cidade se esconderam durante os três anos de pesados bombardeamentos soviéticos na época da ocupação nazi. Pelo olhar que trocámos, ficou claro que ambos sentíamos que tudo o que é relacionado com a guerra deveria pertencer apenas a um museu.

    Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    O colapso da confiança

    O facto de Kirkenes estar a voltar-se contra as políticas agressivas russas foi destacado durante a Conferência de Kirkenes, do ano passado. No seu discurso inicial, o presidente da Câmara Municipal de Sør-Varanger, Magnus Mæland, lamentou que, devido à invasão, as relações com a Rússia se tinham agravado nas gerações vindouras.

    “Independentemente do resultado da guerra, a nossa confiança na Rússia sofreu um golpe substancial”, disse Mæland aos delegados, na reunião. “Kirkenes visa fornecer um porto seguro para aqueles que querem democracia e liberdade”.

    Jonas Gahr Støre, primeiro-ministro norueguês, foi ainda mais directo. Na sua opinião, a situação na região era a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. “Temos de estar preparados para que a guerra acabe por chegar à Noruega, embora não haja uma ameaça imediata”, alertou Store, na Conferência de Kirkenes, em Maio.

    Abrigo da Segunda Guerra Mundial, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    No dia de Junho, o edil Magnus Mæland decorou a fachada do prédio da autarquia de Kirkenes com uma grande bandeira arco-íris, usada na Noruega para homenagear a “marcha do orgulho LGBT” durante um mês inteiro. A menos de 100 metros de distância, no consulado russo, está pendurada a bandeira tricolor russa. Este é provavelmente o único lugar do mundo onde as duas bandeiras se encontraram tão próximas.

    “Quando estávamos a hastear a bandeira arco-íris, comecei a reflectir sobre como estávamos a viver na fronteira entre um regime totalitário e uma sociedade democrática aberta”, disse-me o autarca conservador, de 41 anos, no seu espaçoso gabinete no centro de Kirkenes. Mæland tornou-se presidente da autarquia durante o Outono de 2023, um ano e meio após a invasão russa da Ucrânia. Desde então, ele não trocou uma palavra com o cônsul-geral russo de Kirkenes, Nikolay Konyigin. As relações oficiais foram completamente cortadas.

    “Logo após a invasão, o cônsul-geral começou a espalhar as formas mais extremas de propaganda russa. Como como a Rússia estava realmente a lutar contra nazis. Como todos no Ocidente se tornaram nazis. Como esta foi a continuação da Segunda Guerra Mundial”, disse Mæland.

    Kirkenes (centro). / Foto: Boštjan Videmšek

    Na sua opinião, a invasão foi um enorme choque para toda a região, e especialmente para Kirkenes. No entanto, também acredita que os seus eleitores foram rápidos a aceitar a nova realidade, uma vez que as relações entre as duas comunidades fronteiriças já começaram a deteriorar-se após a anexação russa da Crimeia, em 2014.

    “O regime de Putin manipulou-nos como tolos”, afirmou Mæland. “A Europa revelou-se incrivelmente ingénua. Por aqui, vimos 31 anos de estreita colaboração com a Rússia. Somos uma cidade fronteiriça. Estamos interligados com os nossos vizinhos. Muitas das pessoas aqui ficaram tremendamente magoadas. Agora, toda a confiança extinguiu-se. O meu receio é que não renasça, pelo menos durante várias gerações.”

    “Kirkenes é um hotspot geopolítico. É verdade que partilhamos com a Rússia uma fronteira muito mais curta do que a Finlândia ou a Suécia. No entanto, a nossa fronteira está localizada junto ao mar de Barents e à Península de Kola, onde a Rússia tem enormes capacidades nucleares. Toda a área é uma fortaleza russa”, adiantou o autarca.

    Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Mæland explicou que Kirkenes fica a 15 minutos da fronteira russa e a apenas 30 minutos de carro do vale de Pechenga, onde está colocada a 200ª Brigada de Fuzileiros Motorizados Separados do exército russo – uma unidade que sofreu pesadas baixas na Ucrânia. “Mais duas horas de condução e você chega a Severomorsk, a sede da Frota do Norte Russa, também composta por submarinos com armas nucleares estratégicas. E então, a apenas 30 quilómetros dali, há a base aérea de Olenya, onde há poucos dias vários bombardeiros de última geração foram destruídos por drones ucranianos”.

    Perguntei a Magnus Mæland se ele se sentia seguro, dado o que ele acabou de me dizer. “Sim”, respondeu ele. “Os nossos serviços de inteligência e segurança sabem exactamente o que está a acontecer. O mesmo vale para a polícia. O exército norueguês é extremamente competente. Estamos no controlo. Ao mesmo tempo, somos os olhos e os ouvidos da NATO. Somos importantes para a União Europeia e para os Estados Unidos. As armas nucleares do outro lado da fronteira nunca foram apontadas à Noruega. E não estão agora, tenho a certeza disso.”

    Mæland está bem ciente de que o Árctico se tornou o novo campo de batalha para as superpotências. As razões são muitas: as alterações climáticas permitem novas rotas comerciais, os abundantes recursos naturais do Árctico (petróleo, gás natural, metais e minerais raros, peixe) e as fontes de energia renovável…

    Magnus Mæland, presidente da Câmara Municipal de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    O presidente da Câmara de Kirkenes considera que tudo isto constitui uma boa razão para a Europa começar a construir uma nova base industrial. Na sua opinião, este seria o passo fundamental para a autossuficiência. Ao mesmo tempo, denuncia qualquer forma de dependência de regimes totalitários. Ele defende evitar rigorosamente o tipo de “ingenuidade globalizante” que tornou a Alemanha e vários outros países europeus quase totalmente dependentes do gás natural russo.

    “A solução para tudo o que falamos está aqui, no alto do norte”, concluiu o jovem político norueguês. “Embora seja verdade que estamos a enfrentar as consequências mais dramáticas das alterações climáticas, o nosso canto do mundo será, no futuro, muito mais habitável do que outras partes do globo”.

    Pesca pela Segurança

    Kirkenes e dois outros portos menores do Árctico norueguês são os únicos portos onde navios de carga russos ainda estão autorizados a atracar. A maioria deles são barcos de pesca. No entanto, o Serviço de Segurança norueguês permanece vigilante. Vários navios de pesca que atracaram em Kirkenes nos últimos três anos e meio tinham a bordo equipamento moderno dos serviços de informações. Por exemplo, o  barco de processamento de peixe Arka-33, que atracou na cidade durante várias semanas, em 2023.

    Estaleiro de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Ben Taub, jornalista da revista The New Yorker, habilmente utilizou fontes do serviço de informação para provar que o Arka-33 estava a recolher informações. A embarcação pertencia a duas empresas russas com laços estreitos com empresas de segurança privadas e de um deputado russo que foi alvo de sanções internacionais.

    No final de 2023, até oito barcos de pesca russos altamente modernos, tripulados por 600 marinheiros, estavam atracados no porto de Kirkenes. Nenhum deles estava presente durante o período da minha visita, embora um (registado em Murmansk) estivesse a ser reparado no estaleiro local. Na sua maioria, os marinheiros russos que atracam em Kirkenes têm passaportes manuscritos — de modo a não serem rastreáveis. Os serviços secretos noruegueses estão convencidos de que pelo menos alguns dos marinheiros são membros da Frota do Norte russa.

    Nos últimos anos, todo o território norueguês do Árctico foi regularmente exposto a ataques dos serviços secretos de segurança russos. A maioria deles era de natureza eletrónica. O que se pode vislumbrar aqui é o núcleo de uma guerra híbrida que grassa em ambas as direções. O Serviço de Segurança da Polícia Norueguesa está a emitir alertas regulares sobre a possibilidade de sabotagem de ferrovias e oleodutos russos. Também se registaram numerosos casos de interferência de GPS.

    A Rússia tem vindo a expandir as suas actividades de inteligência de segurança — ou, em inglês claro, espionagem — em todo o território do Mar de Barents, desde 2014. Isto é especialmente verdade para a Frota do Norte russa. Mas isso não é nada de excepcional nestas partes. É apenas a continuação da norma adoptada durante a guerra fria.

    Rio fronteiriço. / Foto: Boštjan Videmšek

    Desde o início da guerra, o tráfego total no porto de Kirkenes caiu 30%. O principal motivo? A Noruega já não permite que navios russos fiquem fundeados nos seus portos para reparação e manutenção.

    Isso teve um impacto significativo na situação económica da cidade fronteiriça, onde grande parte da infraestrutura de serviços voltada para unidades navais russas foi construída após a Segunda Guerra Mundial. A referida infraestrutura era o principal empregador numa cidade extremamente remota, com todos os seus bares, restaurantes, oficinas mecânicas, hotéis e lojas.

    Ao longo dos últimos meses, tem-se falado cada vez mais de uma possível reabertura da mina.

    A verdadeira divisão

    Bjarge Schwenke Fors é o chefe do Instituto de Barents de Kirkenes, uma organização de investigação local que opera sob a égide da Universidade do Árctico da Noruega em Tromsø.

    Schwenke Fors está convencido de que a deterioração das relações transfronteiriças causou estragos económicos na região.

    Bjarge Schwenke Fors, diretor do Instituto de Barents. / Foto: Boštjan Videmšek

    Schwenke Fors relatou que, na sua opinião, o afecto da população local pela Rússia era, em grande parte, mítico. E apontou para os resultados de um recente estudo do Instituto Norueguês de Pesquisa Urbana e Regional, afirmando que apenas uma parte da comunidade russa de Kirkenes apoiou as autoridades de Moscovo.

    “A verdadeira divisão não está entre aqueles que apoiam ou se opõem ao regime do Kremlin”, esclareceu Schwenke Fors. “É entre aqueles que estão a tentar pôr fim aos investimentos locais na zona do Mar de Barents, bem como qualquer investimento adicional nas relações com os russos … E aqueles que desejam que os investimentos continuem.”

    Encontrei-me com o investigador norueguês na sede do Instituto de Barents. “O meu receio é que não consigamos regressar ao estado pré-invasão tão cedo”, advertiu Schwenke Fors. “Vai demorar várias gerações. O certo é que as relações aqui entraram numa nova época. A recuperação será certamente difícil. De várias formas, as duas comunidades permanecem estreitamente ligadas. Kirkenes é o lar de muitos russos, que são uma parte importante da comunidade. Assim como durante a Guerra Fria, quando a relação era propensa a muita oscilação. Mas, naquela altura, as coisas pelo menos costumavam ser bastante previsíveis. Hoje em dia, há apenas uma incerteza completa …”

    Caminho para a fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Schwenke Fors acredita que, após o fim da guerra na Ucrânia, as relações entre as duas comunidades terão de ser reconstruídas quase do zero. Principalmente devido a um sentimento de hostilidade cada vez maior.

    A resposta local à abundante propaganda russa era bastante previsível. A suspeita e a russofobia começaram a penetrar até mesmo nos cidadãos de mente mais aberta do lado norueguês da fronteira. Nas palavras de Schwenke Fors, o projecto de criar uma identidade comum na região do Mar de Barents estava morto.

    A identidade do Mar de Barents

    Kirkenes fica na segunda maior e menos povoada província da Noruega, Finnmark. A cidade foi fundada no início do século XIX. Durante muito tempo, foi propriedade de uma empresa mineira privada que a utilizava para extrair minério de ferro. No auge da produção, a mina empregava 1500 trabalhadores. No entanto, durante os anos 80, a falta de encomendas e de opções alternativas de emprego provocou um grave declínio demográfico.

    Foto: Boštjan Videmšek

    A situação mudou após o colapso da União Soviética. Durante alguns anos, os moradores de Kirkenes e Nikel foram autorizados a viajar até 30 quilómetros de distância nos seus respectivos países vizinhos, com apenas um passe de fronteira.

    O estatuto de isenção de impostos de Kirkenes significou que numerosos navios russos começaram a atracar no porto da cidade, trazendo um fluxo constante de comerciantes. Os noruegueses abriram uma cantina pública na cidade russa vizinha de Nikel.

    Durante a primeira metade dos anos 90, observou-se um intenso tráfego nos dois sentidos, entre Kirkenes e Murmansk. Os cidadãos russos frequentavam o lado norueguês da fronteira porque podiam comprar muitas coisas actualmente indisponíveis na sua terra natal. Os noruegueses, por outro lado, gostavam de visitar o lado russo em busca de festas baratas movidas a álcool.

    Durante os primeiros anos após o colapso da União Soviética, o lado russo da fronteira foi marcado por um grande caos. Estava em curso uma privatização de vale-tudo. Sindicatos criminosos assumiram o controle de Murmansk e de muitas cidades menores. A poluição industrial vivia o seu apogeu, em grande parte causada pelo mau manuseamento dos resíduos nucleares.

    Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Perto do final dos anos 80, a Península de Kola abrigava aproximadamente 20% de todos os reactores nucleares do mundo. O combustível nuclear em desuso continuou a derramar-se no Mar de Barents. Os resíduos nucleares que aguardavam armazenamento podiam ser vistos em frente a estaleiros navais e instalações industriais falidas.

    Havia algo como a “Identidade de Barents”, ou era um mito — perguntei a Olga Povoroznyuk, antropóloga social da Universidade de Viena e membro  do Instituto Austríaco de Investigação Polar com experiência de investigação a longo prazo na Sibéria e no Árctico.

    “Em 1993, os países do Mar de Barents – Rússia, Noruega, Suécia e Finlândia — criaram uma nova Região Euro-Árctica do Mar de Barents (o BEAR), uma região constituída pelas partes setentrionais da Finlândia, Noruega e Suécia, e a parte noroeste da Federação Russa, e onde vivem cerca de seis milhões de pessoas. A Declaração de Kirkenes, assinada nesse ano, lançou as bases para a cooperação. Esta importante iniciativa contribuiu muito para melhorar as relações internacionais e forneceu uma base para o desenvolvimento de uma identidade comum.”

    Olga Povoroznyuk tem investigado o projeto InfraNorth, com foco na infraestrutura de transporte e sustentabilidade, e actualmente é co-líder do projeto ARCA sobre espaços verdes urbanos e adaptação climática no Árctico. Em Kirkenes, ela e seus colegas da InfraNorth têm se concentrado nos impactos locais do desenvolvimento de infraestrutura e nas visões do projecto de expansão do porto marítimo.

    Mar Árctico. / Foto: Boštjan Videmšek

    “No início do século, quando estava a terminar o meu doutoramento, a ideia de uma identidade comum de Barents recebeu muita atenção nos círculos académicos e políticos”, disse Olga Povoroznyuk, recordando uma época em que as relações regionais atingiram um pico em termos de proximidade.

    E acrescentou: “a identidade regional partilhada foi tema de debates públicos e de imaginários futuros, apesar de o BEAR nunca se ter tornado uma região totalmente integrada do ponto de vista geopolítico”.

    Segundo Povoroznyuk, as relações na região têm vindo a deteriorar-se, pelo menos, desde a crise da Crimeia em 2014. “O ano de 2022 tornou-se um ponto de viragem histórico, impactando enormemente a identidade regional. Onde antes havia uma cooperação estreita, agora só há muita desconfiança e frustração. As vidas de muitos residentes em Kirkenes e Sør-Varanger sofreram mudanças dramáticas com o declínio da mobilidade, do comércio e das trocas comerciais entre a Rússia e a Noruega. O desejo de forjar laços transformou-se num sentimento de perda e incerteza futura”.

    Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Antes dos seus actuais projetos de investigação, Povoroznyuk passou alguns anos a investigar os tópicos de indigeneidade, identidade, desenvolvimento industrial e mudanças climáticas na Sibéria e outras zonas do Árctico. “As pessoas aqui, em Kirkenes, estão preocupadas”, disse. “Sentem que estão longe de estar suficientemente protegidas de uma potencial nova ameaça. Ao mesmo tempo, a população ainda é capaz de tirar partido de inúmeras memórias da coexistência pacífica da guerra fria. A situação emocional é, portanto, bastante ambivalente. A população de Kirkenes vê a possibilidade de a cidade ser transformada numa base militar como ‘o cenário apocalíptico’. Ninguém quer ver isso acontecer. Da mesma forma, ninguém quer que a situação escale ainda mais.”

    De alguma forma, as suas palavras foram ecoadas por literalmente todos os meus interlocutores em Kirkenes e arredores.

    Exposição Setentrional

    O The Barents Observer é um jornal local que cobre todo o Árctico. Publicando o trabalho de colaboradores noruegueses e russos, o jornal online está disponível em ambas as línguas. O papel pode ser de natureza local, mas a qualidade de seus artigos está bem à altura dos padrões globais. Muitos dos que acompanham activamente a situação no extremo norte consideram-no um ponto de referência fundamental.

    O seu compromisso com a verdade e a objectividade transformou o jornal num alvo constante de ataques e sanções da Rússia. No início do ano, as autoridades russas declararam a publicação como indesejada, enquanto a colaboração com o jornal foi transformada num acto criminoso com uma pena de prisão de seis anos — incluindo republicar o seu conteúdo online.

    “Uma parte significativa dos materiais publicados tem uma orientação claramente anti-russa. É de salientar que estão a ser elaborados por cidadãos da Federação Russa que deixaram o país e estão incluídos no registo de agentes estrangeiros ou na lista de terroristas e extremistas”, refere um boletim público emitido pela Procuradoria-Geral da Federação Russa, a 7 de fevereiro. As autoridades russas também alegaram que os artigos do The Barents Observer visavam fomentar protestos nas partes do norte da Rússia, bem como aplaudir novas sanções contra a Federação Russa.

    Caminho para a Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Os jornalistas do jornal não ficaram, de modo algum, surpreendidos com a decisão do Kremlin. O jornal divulgou imediatamente uma declaração de compromisso firme com sua missão jornalística — principalmente o jornalismo de investigação publicado tanto em norueguês como em russo.

    “O que aconteceu mostra que o regime repressivo russo estava ciente de que éramos bons no nosso trabalho. O jornalismo não é crime. Tentar impedir a liberdade de imprensa e sufocar a liberdade de expressão do público — agora, isso é um crime! Vladimir Putin construiu o seu domínio com base no medo. Por isso, continuaremos a demonstrar que não temos medo dele”, disseram-me Thomas Nilsen, editor e — juntamente com os jornalistas — coproprietário do The Barents Observer, na modesta sede do jornal.

    Em Fevereiro deste ano, o The Barents Observer ganhou uma ação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra a autoridade de comunicação russa, que impediu os repórteres do jornal de entrar em território russo.

    Nilsen acredita que uma cortina de ferro foi implementada ao longo da fronteira entre a Noruega e a Rússia. As pessoas estão cada vez mais assustadas. “Depois de a Rússia ter iniciado a sua guerra ilegal e brutal em solo europeu, percebemos que a ferramenta mais potente à nossa disposição era o jornalismo. Decidimos intensificar os nossos esforços.”

    Vale a pena mencionar que Nilsen foi proibido de entrar em território russo dois anos antes de todos os outros repórteres do jornal.

    A equipa doThe Barents Observer é composta por quatro jornalistas russos, que fugiram para Kirkenes da censura e perseguição, em 2022. Os quatro jornalistas são regularmente alvo de assédio por parte dos serviços de informação russos, mas continuam fiéis à sua profissão. Considerando que forças mal-intencionadas acompanham cada um de seus passos, não se podem dar ao lixo do menor deslize no padrão do seu trabalho.

    “Toda a zona do Árctico está a tornar-se num importante tópico mundial. Aqui, em Kirkenes, onde as consequências da ruptura dos laços com a Rússia não são tão graves como alguns afirmam, todos os temas-chave da nossa situação estão presentes. A geopolítica, as alterações climáticas, a proximidade da guerra… O que aconteceu há poucos dias na base aérea de Olenya, do outro lado da fronteira, foi um aviso claro de quão perto está a guerra. Percebo muito bem que a nossa carga de trabalho de reportagem só tende a aumentar”, resumiu Thomas Nilsen sobre a situação, falando comigo entre fotografias de Mikhail Gorbachev e caricaturas emolduradas que retratam a perseguição russa a jornalistas, mesmo ao lado de uma sala memorial a Boris Nemtsov.

    Campo de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Um barril de pólvora geopolítico

    No contexto da segurança nuclear, a praticamente desconhecida cidade norueguesa de Kirkenes situa-se numa das áreas mais sensíveis do mundo, em termos geoestratégicos — pelo menos tão sensível como, por exemplo, Caxemira.

    Há mais de duas décadas que Vladimir Putin vê o Árctico como um importante campo de batalha geopolítico. A pressão russa sobre a região intensificava-se a cada ano. O mesmo se pode dizer da crescente pressão da NATO sobre a Noruega.

    Desde 2005, a Rússia começou a reabrir mais de 50 antigas bases militares soviéticas na Península de Kola. De acordo com os meus interlocutores, pelo menos mil ogivas nucleares — o segundo maior arsenal nuclear da Rússia — estão agora localizadas num raio de 200 quilómetros. A Península de Kola acolhe também zonas de lançamento de ‘rockets‘ hipersónicos e a maior frota de navios quebra-gelo do mundo. Um dos quebra-gelo é alimentado por um reactor nuclear.

    Ainda assim, mesmo com tamanha abundância de recursos, o recurso estratégico mais importante da Rússia na região do Mar de Barents são os seus submarinos nucleares supermodernos. Um único submarino pode transportar 16 ‘rockets‘ balísticos com ogivas nucleares, que podem ser disparados das profundezas do mar. Estes submarinos constituem a base da segurança estratégica russa e continuam a ser a prioridade absoluta de Moscovo. O mapa da Península de Kola parece, assim, um mapa da segurança geoestratégica russa.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Aliás, em 30 de Outubro de 1961, o exército soviético desencadeou a maior detonação de uma arma nuclear da História. A explosão foi 3.000 vezes mais poderosa do que a de Hiroshima. A detonação ocorreu na ilha de Novaya Zemlya, no Mar de Barents. Soldados noruegueses no norte do país puderam observar o céu brilhante, mesmo estando a 1.000 quilómetros de distância da explosão.

    Rápida militarização

    A fronteira terrestre entre a Noruega e a Rússia mede 195,7 quilómetros de comprimento, a fronteira marítima 23,2 quilómetros. A única estação de travessia terrestre está localizada em Storskog, a cerca de 10 quilómetros de Kirkenes. A fronteira foi demarcada em 1826 e permaneceu praticamente inalterada até ao presente.

    O posto fronteiriço de Storskog ganhou destaque entre 2015 e 2016, quando foi usado por vários milhares de refugiados e requerentes de asilo do lado russo para entrar na Noruega. Só nos últimos três meses de 2015, mais de 5.000 pessoas atravessaram a fronteira.

    A maioria delas eram cidadãos sírios. Chegaram à Noruega de bicicleta e até de cadeiras de rodas, uma vez que era proibido atravessar a fronteira a pé. Os agentes dos serviços secretos noruegueses identificaram várias pessoas contratadas como agentes pelo Serviço Federal de Segurança da Federação Russa. Esta foi uma das razões pelas quais a fronteira foi fechada para refugiados, enquanto a Rússia foi colocada na lista de países seguros para refugiados. Veículos particulares com placas russas foram impedidos de entrar na Noruega em Maio de 2024.

    Durante o tempo da minha visita, a travessia foi usada do lado russo por um par de autocarros que transportavam turistas chineses. As infraestruturas em torno da estação de travessia estão a deteriorar-se rapidamente.

    Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    O lado russo fortemente militarizado da fronteira é controlado pelo serviço de fronteira do Estado, enquanto o lado norueguês, cada vez mais militarizado, é patrulhado pela guarnição da região de Sør-Varanger.

    Toda a zona fronteiriça está repleta de estruturas de serviços de informação e segurança — a mais imponente é um trio de enormes cúpulas de radar localizadas na vila piscatória de Vardø e controladas pelo exército norueguês. Nos últimos anos, este exército tem usado a zona para treinar membros de unidades especiais ucranianas.

    Nikel é o primeiro maior assentamento do lado russo, marcado por uma série de chaminés altas. Não há muito tempo, quando a central ainda estava operacional, o ar e a água de ambos os lados da fronteira estavam fortemente poluídos.

    Perto de Nikel, encontra-se o famoso buraco de mais de 12 quilómetros de profundidade — o buraco mais profundo conhecido no mundo. Foi criado por engenheiros soviéticos nos anos 70, com o objectivo de perfurar o seu caminho até ao núcleo da Terra.

    Falharam.

    Foto: Boštjan Videmšek

    A Guerra Híbrida

    “O Árctico está a testemunhar as consequências da agressão à Ucrânia. A Rússia está a promover activamente uma narrativa de militarização do Árctico pela NATO e há vários anos que tem vindo a reforçar as suas posições militares no Árctico, abrindo novos postos avançados e actualizando os antigos”, disse-me Kari Aga Myklebost, professora de História russa na Universidade do Árctico da Noruega, numa conversa telefónica.

    Adiantou que a Rússia aumentou os seus esforços para criar uma imagem hostil do Ocidente a partir de 2022. Ao hastear bandeiras soviéticas e ao organizar aproximações de desfiles militares nos colonatos russos no arquipélago norueguês de Svalbard, no Mar de Barents, a Rússia está a tentar forçar a Noruega a reagir.

    “A incidência da actividade simbólica russa aumentou acentuadamente após o ataque em grande escala à Ucrânia. A Rússia intensificou as comemorações públicas de 9 de Maio como o Dia da Vitória, colocando uma ênfase adicional no seu legado da Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que glorificou a actual guerra na Ucrânia. Este é o actual modo de operações híbridas da Rússia em Svalbard: a Rússia está estrategicamente a aproveitar a liberdade de expressão norueguesa e o uso de símbolos. O objectivo é provocar uma reação através da promoção de símbolos revanchistas, já que uma reacção mais incisiva abriria espaço para acusar a Noruega de discriminação contra a população russa. A partir de 2022, temos assistido a muitos desses casos em Svalbard”, explicou a professora Myklebost.

    Na sua opinião, a Noruega desempenha um papel bastante importante nos planos a longo prazo da Rússia. “Sendo um pequeno país que faz fronteira com a Península de Kola, estrategicamente importante, e com o adjacente Mar de Barents, a Noruega é, com razão, muito cautelosa. O equilíbrio de poder é extremamente assimétrico e estas regiões são de elevada importância militar e estratégica para a Rússia. A Noruega está bem ciente de que a Rússia poderia potencialmente começar a aumentar a pressão sobre o arquipélago de Svalbard.”

    Foto: Boštjan Videmšek

    Após a queda da União Soviética, as autoridades norueguesas investiram muito no estabelecimento de relações com a Rússia através da fronteira no norte. Especialmente em Kirkenes e arredores. “Depois de 2022, a construção de relações foi interrompida. Em Kirkenes, as relações com a Rússia tornaram-se um tema bastante sensível.”

    As comemorações da guerra, como o Dia da Vitória Russa, que costumava ser celebrado conjuntamente pela Noruega e pela Rússia em Kirkenes, tornaram-se controversas. De acordo com Myklebost, Moscovo — através de suas contínuas comemorações de guerra — mantém uma narrativa de unidade transfronteiriça na luta contra o nazismo alemão, bem como o neonazismo na Ucrânia hoje. “E isto é feito apesar do facto de muitos residentes de Kirkenes terem expressado muito claramente a sua desaprovação das comemorações russas, que tentam estabelecer uma ligação com a guerra na Ucrânia. O consulado russo simplesmente continua com suas provocações.”

    Como uma das principais autoridades em geopolítica do Árctico, Myklebost está convencido de que Kirkenes, em si, não tem um valor estratégico muito alto para a Noruega, mesmo que seja importante para a NATO como um todo, devido à proximidade com a Rússia. Já para a Rússia, o caso não poderia ser mais diferente. “Tanto Svalbard como o Mar de Barents são de extrema importância para a Rússia. Em caso de conflito entre a Rússia e a NATO, a Rússia necessitaria de controlar a parte oriental da província de Finnmark, bem como o Mar de Barents, para garantir as suas capacidades estratégicas na Península de Kola e o livre acesso da sua frota setentrional ao Mar Atlântico. Isto envolveria também o controlo de Kirkenes, Svalbard e da parte ocidental do Mar de Barents. Os principais objectivos seriam assegurar as capacidades nucleares da Península de Kola e conceder livre navegação à Frota do Norte russa.”

    O factor chinês

    Há umas semanas, o director do porto de Kirkenes, Terje Jørgensen, afirmou que queria construir um novo terminal portuário, destinado a conectar a América do Norte, Europa e Ásia. O novo terminal iria servir, principalmente, navios de carga chineses, concedendo à China precisamente o que mais deseja. Ou seja, seria um passo importante na criação da chamada Rota da Seda Polar. Embora também tenha de se salientar que o cliché do ‘norte de Singapura’ faz parte do debate público em Kirkenes há tanto tempo que já está um pouco gasto.

    “O facto é que o porto de Kirkenes precisa de investimentos e actividade. É por isso que o director expressou a sua abertura à colaboração económica com a China. A minha sensação pessoal é que o Governo norueguês não o permitirá, por razões de segurança”, argumentou Kari Aga Myklebost. A professora destacou os estreitos laços estratégicos da Rússia com a China, tendo os dois países realizado exercícios militares conjuntos no Árctico.

    Kari Aga Myklebost. / Foto: D.R.

    “A Noruega receia que a potencial infraestrutura portuária chinesa em Kirkenes possa ser utilizada para fins duplos. Ou para vários fins, em desacordo com os interesses nacionais noruegueses”, concluiu Myklebost.

    Os serviços secretos noruegueses estão cada vez mais preocupados com as mudanças recentes na Casa Branca, bem como com os norte-americanos que se aproximam da Rússia enquanto estão “de olho” na aquisição da Gronelândia. O norte da Noruega foi apanhado no meio de uma convulsão geopolítica.

    “A Noruega está a adaptar-se à evolução das circunstâncias. Por um lado, temos uma Rússia muito determinada e, por outro, a administração norte-americana extremamente imprevisível. Neste contexto, o Governo norueguês anunciou, em Maio, que tenciona suavizar as restrições impostas aos seus aliados há 70 anos, relativamente às actividades nas zonas fronteiriças com a Rússia. Esta é uma grande mudança, uma vez que as restrições foram em parte destinadas a enviar uma mensagem à Rússia,” disse Kari Aga Myklebost.

    Tal como a Finlândia e a Suécia, a Noruega tem vindo a reforçar as suas capacidades defensivas nacionais com o objectivo de conter a Rússia. “Esta é a realidade. Por enquanto, simplesmente não estamos em posição de planear as nossas futuras relações com a Rússia. A situação é demasiado imprevisível.”

    O Derretimento do Norte

    Outro factor-chave que contribui para as tensões crescentes no Árctico são as alterações climáticas.

    Nas últimas quatro décadas, cada década, em média, viu o derretimento de 13% do gelo de Verão. E a tendência só aumenta. A este ritmo, o Árctico poderá ficar livre de gelo até 2040 — uma previsão que se assemelha a uma declaração de guerra global. Ao mesmo tempo, o derretimento do gelo já está a abrir novas rotas comerciais. Alguns deles atravessam o Mar de Barents. Muito em breve, a Rota do Mar do Norte estará aberta durante todo o ano.

    Todos os países do Árctico, excepto a Rússia, são membros da NATO. À aliança militar euro-atlântica juntaram-se recentemente os vizinhos há muito neutros da Noruega, a Suécia e a Finlândia. A Rússia, que controla mais de dois terços do Árctico por si só, estendendo-se por 5.600 quilómetros de comprimento, foi expulsa pelo Conselho do Árctico em 2022. Todos os contactos científicos foram igualmente cortados, causando danos incalculáveis à nossa compreensão comum das mudanças que varrem a região do Árctico.

    white ice on water during daytime
    Foto: D.R.

    Antes do ataque russo à Ucrânia, as autoridades norueguesas planeavam transformar o porto de Kirkenes numa importante base logística que ligava a Europa à Sibéria ocidental. De suma importância, seria um terminal de petróleo e gás ligado à cidade finlandesa vizinha de Rovaniemi e, a partir daí, ao sistema ferroviário finlandês. Mas a invasão russa não foi o único factor que pôs fim ao ambicioso projecto. A Noruega também tinha expectativas excessivas em relação aos seus projectos de perfuração de gás terrestre no Mar de Barents.

    A Noruega, que se apresenta actualmente como um dos países mais verdes do mundo, continua a procurar intensamente novas jazidas de petróleo e gás terrestre. Estima-se que o Árctico contenha cerca de 30% das reservas mundiais de gás terrestre.

    De acordo com analistas petrolíferos, o Mar de Barents detém dois terços das reservas norueguesas de petróleo e gás terrestre. Em 2022, quando o sistema energético europeu entrou em pânico na sequência do ataque à Ucrânia, a Noruega abriu 93 novos locais de perfuração. Destes, 71 deles estavam localizados no ecossistema extremamente sensível do Mar de Barents. No período de 2022, o petróleo e o gás terrestre representaram 73% de todas as exportações norueguesas.

    industry, conduit, petroleum, energy, loop, conduit, conduit, petroleum, petroleum, petroleum, petroleum, petroleum
    Foto: D.R.

    De acordo com dados do Departamento da Plataforma Continental, em Dezembro de 2023, a Noruega quebrou um recorde de seis anos em relação à quantidade de gás terrestre extraído num só mês (379 milhões de metros cúbicos). No final do ano passado, a Noruega exportava, em média, 1,85 milhões de barris de petróleo por dia para a União Europeia.

    Os combustíveis fósseis continuam a ser uma das principais forças motrizes da guerra.

  • ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    “Pelos mortos e pelos vivos, devemos dar testemunho.

    Elie Wiesel

    Era 12 de Julho de 1995. Ao meio-dia, Saliha Osmanović, de 41 anos, enfrentava o calor avassalador em frente à antiga fábrica de acumuladores em Potočari, onde ela e milhares de mulheres e crianças tinham procurado refúgio no posto avançado de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU).

    Na véspera, as forças sérvias invadiram a vizinha Srebrenica após um cerco prolongado. Embora a cidade tenha sido declarada uma Zona Segura pela ONU, os capacetes azuis não fizeram nenhum esforço para impedir o avanço sérvio.

    No genocídio que se seguiu entre 11 e 20 de julho, pelo menos 8.372 homens e rapazes bósnios foram mortos. Entre eles estavam o marido de Saliha, Ramo, e seus dois filhos: Edin e Nermin. À data do homicídio, tinham respectivamente 18 e 19 anos.

    Sarajevo. / Foto: Boštjan Videmšek

    Depois de alcançar a multidão de refugiados em Potočari, Saliha estava exausta, aterrorizada e atormentada pelo luto. Cinco dias antes, um ataque de artilharia das forças sérvias lideradas pelo general Ratko Mladić matou seu filho mais novo, Edin. Quatro dias depois de o ter enterrado, Saliha fugiu de Srebrenica, acompanhada do marido Ramo e do filho mais velho, Nermin.

    Ramo e Nermin optaram por se juntar aos milhares de homens bósnios adultos que, esperando o pior, partiram a pé em direção a Tuzla e à segurança proporcionada pelo exército da Bósnia-Herzegovina. Mais tarde, a sua viagem ficou conhecida como “a marcha da morte“.

    Em Potočari, Saliha juntou-se a milhares de mulheres, crianças e idosos desesperados e completamente desorientados. Embora aterrorizada, a multidão reunida contava com a proteção da ONU. Nem mesmo os mais pessimistas poderiam imaginar que as estruturas de comando da ONU e da política externa euro-americana concederiam ao general Ratko Mladić liberdade para cometer genocídio. Nenhum dedo foi levantado para impedir Mladić de coordenar a carnificina com Slobodan Milošević e Radovan Karadžić.

    A reacção dos capacetes azuis foi tão inexistente que Mladić conseguiu mesmo dirigir-se à multidão de refugiados em frente ao posto avançado da ONU. Dito de forma directa: o carniceiro foi autorizado a falar às suas vítimas.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Foi assim que Saliha Osmanović se viu nas imediações do infame criminoso de guerra. Em 22 de Novembro de 2017, o Tribunal Penal Internacional de Haia condenou Mladić à prisão perpétua. No entanto, mesmo 30 anos depois daquele fatídico dia 12 de julho de 1995, Saliha ainda consegue recordar cada palavra do general e cada esgar no seu rosto marcado pelo suor.

    “Éramos milhares em Potočari”, contou. “Após a nossa fuga de Srebrenica, foi como se tivéssemos sido transportados para o inferno. A situação era indescritível. As pessoas gritavam, os sérvios invadiam casas e matavam pessoas a torto e a direito… E, então, Ratko Mladić dirigiu-se a nós para nos dizer na cara que tinha o poder de nos destruir e que o presidente bósnio Alija Izetbegović não nos queria. Foi terrível. Ainda esperávamos que as forças de manutenção da paz holandesas nos protegessem. Mas, na noite seguinte, retiraram-se e entregaram-nos aos sérvios.”

    Quando Srebrenica caiu, tudo o que Saliha podia desejar era não acordar no dia seguinte. Trinta anos depois, o seu sofrimento pouco diminuiu… tal como o seu desejo de morrer durante o sono.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Na manhã seguinte, os agressores sérvios carregaram as mulheres e crianças em camiões e autocarros em direcção aos territórios controlados pelo exército bósnio. Enquanto isso, o exército sérvio e as unidades paramilitares continuavam a matar homens e meninos bósnios na floresta ao redor de Srebrenica. Em pouco tempo, toda a zona foi transformada num matadouro.

    Todos os diplomatas e observadores militares internacionais sabiam muito bem o que estava a acontecer no nordeste da Bósnia-Herzegovina. Pior ainda: tinham sido amplamente alertados para a calamidade que se aproximava. Os assassinos em massa, em fúria, sentiram pouca necessidade de esconder as suas intenções. Por isso, não é exagero dizer que a comunidade internacional assistiu ao genocídio como cúmplice passivo.

    Quando as mulheres e crianças chegaram ao território controlado pela Bósnia, nada sabiam sobre o destino dos seus entes queridos deixados para trás. Durante a sua estadia em Puračić, perto de Lukavac, as esposas, mães e irmãs só podiam adivinhar o que tinha acontecido aos homens.

    Alguns dias depois, uma gravação de TV foi mostrada aos sobreviventes. Foi do marido de Saliha, Ramo, que chamou os seus compatriotas – e especificamente o seu filho Nermin – para regressarem a Srebrenica. A gravação foi obviamente feita sob coacção. Sob a mira de uma arma, Ramo Osmanović garantia aos espectadores que Srebrenica era perfeitamente segura. Estava, na prática, a chamar o filho de volta para morrer.

    Nessa altura, Saliha já tinha deixado o campo temporário e encontrado alojamento com um genro. “Trouxe-me um jornal com uma foto do meu marido”, recorda Saliha. “Quando vi a foto, o meu primeiro pensamento foi: Ele está vivo!!”

    A última das suas esperanças morreu quando uma vizinha a convidou para um café, e ela ouviu a voz do marido na televisão da sala. “O meu Ramo estava a chamar o meu Nermin de volta…”, recorda, descrevendo o momento em que o seu medo se tornou absoluto. “Foi aí que tudo me ficou claro.”

    Foi um dos momentos mais dolorosos da vida infinitamente dolorosa de Saliha Osmanović. Depois, tentou forçar-se a esperar contra a esperança… E continuou a fazê-lo até que os restos mortais de Ramo e Nermin foram encontrados em valas comuns.

    Em 2008, Ramo foi localizado na vala comum Zeleni Jadar. Os restos mortais de Nermin foram encontrados em Snagovo.

    Um ano depois, Saliha ajudou a enterrá-los juntos no complexo de cemitérios memoriais em Potočari, criado para homenagear as vítimas do massacre. Em 2015, o centro de Sarajevo ergueu uma estátua feita pelo artista bósnio Mensud Kečo – uma estátua que retrata Ramo chamando seu filho para voltar a Srebrenica.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Dezasseis anos depois do reenterro de Ramo e Nermin, procurei as suas sepulturas no cemitério de Potočari.

    Era um dia sombrio e nublado, pesado tanto para o corpo como para o espírito. As lápides brancas, marcando o local de descanso final de mais de 7000 vítimas do genocídio, permaneciam sem visitas. Funcionários do cemitério cortavam a relva. Alguns cães vadios de grande porte circulavam à volta do perímetro exterior do cemitério, não muito longe de onde agora vivem alguns dos perpetradores. Uma viatura da polícia da Republika Srpska (República Sérvia) estava estacionada em frente à entrada. Um grupo de turistas turcos apareceu e dirigiu-se aos túmulos mais recentes, mais acima no cemitério, apenas para começar a posar para as câmaras dos telemóveis.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    O encontro de Saliha com Ratko Mladić em Potočari valeu-lhe um convite do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia. Foi chamada a testemunhar contra o criminoso de guerra sérvio. Já tinha sido convocada antes para Haia, mas foi a primeira vez que conseguiu reunir forças para fazer a viagem.

    “Quiseram atribuir-me o estatuto de testemunha protegida. Recusei imediatamente. Não precisava de protecção. Já não tinha medo. Já tinha perdido tudo. A minha consciência estava limpa, por isso podia andar pelo mundo de cabeça erguida. Disse-lhes que só aceitava testemunhar se me deixassem enfrentar Mladić”, contou Saliha, três décadas após o crime mais hediondo em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

    “Veja”, — continuou ela: “Certa manhã acordei, fiz as minhas orações e preparei café… Só para me perguntar: Porque não ir ao tribunal de Haia e dizer a verdade?”

    A sua assessora jurídica avisou-a de que a defesa de Mladić no tribunal seria provavelmente extremamente convincente. O advogado do comandante sérvio chegou mesmo a garantir ao tribunal que o seu cliente tinha visitado Potočari para distribuir pão, água e chocolate aos sobreviventes. O monstro foi apresentado como nada menos que um trabalhador humanitário.

    “Mas todas as suas mentiras não conseguiram intimidar-me”, recordou Saliha. “Eu tinha uma missão, e apenas uma missão: dizer a verdade. Nada poderia ter-me impedido. Contei tudo ao tribunal.”

    O objetivo de Saliha Osmanović era enfrentar cara a cara o carniceiro de Srebrenica. Achou revoltante que o general sérvio insistisse em desviar o olhar. A sua presença deixou-o visivelmente incomodado, ao ponto de ele fazer caretas durante o seu testemunho. “Eu conseguia ver o quão arrogante ele ainda era…”, estremeceu. “Por isso, perguntei-lhe se conseguia comer e dormir – se a consciência lhe pesava, de alguma forma, por ter assassinado todas aquelas pessoas. Sabe, às vezes ainda me pergunto o que terá dito aos seus mais próximos depois de regressar de Srebrenica. Ter-se-á vangloriado da quantidade de pessoas que matou?”

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Antes da guerra, tínhamos uma vida feliz”, recordou Saliha. “O meu marido trabalhava em Belgrado, com viagens frequentes ao estrangeiro. Eu tinha o meu jardim, as minhas vacas e as minhas vitelas. As coisas corriam bem. Poder cuidar da minha família e da minha casa era tudo o que sempre quis. Mas tudo isso foi destruído… Só fiquei eu. É nisto que penso constantemente. Santo Deus, como é possível que eu ainda esteja viva enquanto os meus entes queridos desapareceram há 30 anos? Tudo o que cozinho, cozinho para eles – continuo a fazer os pratos de que mais gostavam. O cheiro faz-me lembrar a minha família. Mas eles já cá não estão.”

    Saliha Osmanović vive numa modesta casa na aldeia de Dobrak, mesmo acima do verde rio Drina, perto da fronteira com a Sérvia. Tem agora 71 anos. Em 2009, decidiu regressar a Dobrak, que foi reduzida a cinzas pelas forças bósnio-sérvias a 8 de maio de 1992. Fez tudo ao seu alcance para restaurar a antiga casa, parcialmente arrasada pelos agressores.

    Saliha foi uma das poucas mulheres de Srebrenica que optou por regressar ao local do crime e permanecer lá. Após o genocídio, Dobrak e as aldeias vizinhas foram colonizadas por sérvios. Entre eles contavam-se muitos que tinham participado directamente no assassínio em massa da população bósnia. Numerosos criminosos de guerra acabaram por ser recompensados com território.

    Há muito que as bandeiras sérvias se tornaram a ordem do dia nas imediações das valas comuns bósnias. Mas muitas das casas aqui permanecem vazias – mesmo muitas das que não foram danificadas pela guerra. Toda a região de Podrinje e grandes partes do leste da Bósnia foram esvaziadas demograficamente. O mesmo vale para Srebrenica, cujo centro é completamente tranquilo, mesmo durante os dias mais movimentados do ano.

    Hoje, Srebrenica é uma cidade de poucos pubs, todos vazios. É uma cidade sem emprego, onde ninguém quer viver. É, de facto, uma cidade morta. Apenas a sua estrutura desocupada tinha sido autorizada a perdurar. O seu nome pode ter entrado na consciência colectiva, pelo menos por um tempo… Mas esta distinção não solicitada custou à cidade de Srebrenica a sua essência, ou seja, a sua própria alma.

    O seu povo.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Durante o auge do cerco sérvio, em 1993, quase 50.000 pessoas passavam de alguma forma por Srebrenica, vivendo em casas bastante apertadas. A maioria deles eram refugiados que procuraram abrigo na antiga cidade mineira depois de as suas próprias cidades e aldeias terem sido etnicamente limpas pelos sérvios.

    Durante o cerco, Saliha, o marido e os dois filhos partilharam uma casa com outros 60 refugiados. Ao longo dos três anos de bombardeamentos constantes, não havia electricidade nem água corrente. A casa só tinha uma única casa-de-banho.

    “Foi horrível”, Saliha estremeceu ao recordar. “Todos nós, das aldeias vizinhas, fugimos para Srebrenica, enquanto eles tomavam conta das colinas para nos levar ao esquecimento. Muitos dos meus companheiros de sofrimento morreram durante esses anos. Nunca devemos esquecê-los. Nós também estávamos com muita fome. Não tínhamos nada. Quando os capacetes azuis entraram em Srebrenica, pensámos que estávamos salvos. Por um momento, deixamo-nos sentir algo semelhante à alegria. Mas foi mesmo o princípio do fim. Quão lamentavelmente falsas eram as nossas esperanças!”

    As tropas holandesas de manutenção da paz da ONU abriram as portas para Ratko Mladić. / Foto: Boštjan Videmšek

    Mesmo 30 anos depois, Saliha Osmanović passa uma parte substancial de cada dia a ponderar a natureza de alguém que pode assassinar em massa antigos vizinhos e colegas de escola a sangue frio, apenas para atirar os cadáveres para um poço e – se necessário – reenterrá-los em outro lugar para escapar à justiça.

    Até agora, todas as suas reflexões renderam pouco que ela pudesse usar.

    “Não”. Ela balançou a cabeça perto do final da minha visita. “Eu ainda não entendo. E acho que nunca entenderei.”

    Fez uma breve pausa para reunir os pensamentos. Então continuou. O seu rosto pálido e enrugado parecendo um mapa topográfico da dor humana. “Mas o que aprendi é que não posso odiar. Eu nem saberia por onde começar. Não sei se isso é exactamente um privilégio… Mas o que aconteceu, aconteceu. O que algumas pessoas fizeram, elas fizeram. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.”

    De alguma forma, Saliha foi capaz de adivinhar a minha próxima pergunta antes que ela fosse feita.

    “Sim”, ela assentiu. “Mesmo depois de tanto sofrimento, a vida ainda é possível. Claro que é possível. Mas é uma vida sem alegria nenhuma.”

    Saliha Osamnović a orar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “A situação actual na minha aldeia e em toda a região de Podrinje é muito sombria. Eu acho que o que me tem salvo é que eu sempre tento manter uma abordagem activa. Passo muito tempo no jardim. As pessoas vêm visitar, e nós sentamo-nos à mesa – a mesma mesa onde eu costumava sentar-me com Ramo, Nermin e Edin. É tão difícil, filho…” Saliha confidenciou.

    E prosseguiu: “É difícil sobreviver. Estou sozinha. Acordo sozinha e vou para a cama sozinha. Os vizinhos – os sérvios – deixam-me em paz. Às vezes, trocamos algumas palavras. Quando está a chover ou a nevar ou quando o sol de Verão bate, os meus pensamentos voltam-se para o meu povo. Todos os que foram assassinados. Não estou na minha melhor forma. A minha casa está localizada muito longe de tudo – da loja, da padaria, da farmácia, do médico … Mas eu continuo a insistir. O que mais posso fazer? Não faz sentido deitar-me numa sepultura aberta ainda em vida.”

    Perguntei-lhe sobre quais eram os seus pensamentos e sentimentos 30 anos depois das atrocidades. Essas feridas podem curar-se um pouco?

    “Todos os dias sinto dor”, respondeu. “Todos os dias. A dor é a minha única companheira, é o centro de mim. Os aniversários são os piores. Eu sempre me vou abaixo quando chega o dia 6 de Julho, a data em que meu filho mais novo, Edin, foi morto por uma granada sérvia… Ou 11 de Julho, quando o genocídio começou e quando Ramo e Nermin desapareceram. Estou a sofrer no corpo e na alma. A dor é difícil de descrever. Grande parte tem a ver com o facto de, com o mundo inteiro a assistir, a comunidade internacional nada ter feito.”

    Saliha prefere evitar a maioria das comemorações e o dženaza (cerimónia fúnebre islâmica), o enterro anual das vítimas de genocídio identificadas desde o ano anterior. Ela acha essas provações muito desgastantes, especialmente quando acontecem no cemitério de Potočari. A cada mês de Julho, ela não consegue dormir ou comer durante dias a fio.

    “Então, todas essas coisas aconteceram”, repetiu. “Mataram-nos. Não há nada que possamos fazer para mudar isso, para trazer alguém de volta. Você sabe, uma vez que você perdeu seus filhos, bem…”

    Por um momento, as palavras abandonaram a mulher enlutada. “Não!” — disse ela. “Não, não gosto de ir a lado nenhum perto de Srebrenica. Se eu fizer isso, o meu nível de açúcar e a pressão arterial disparam para níveis muito perigosos. E tudo o que quero fazer é fugir.”

    Cerimónia em memória do massacre de Srebrenica, em Julho de 2007 / Foto: D.R.

    Se há uma coisa que esta corajosa bósnia se esforça por transmitir é que a história de Srebrenica precisa de ser contada e recontada. Saliha Osmanović sente que há um grande perigo de esquecer o genocídio, e o perigo aumenta com o passar de cada ano.

    Assim, tal como testemunhou em Haia, continuará a testemunhar todos os dias durante o resto dos seus dias. Ela vê isso como o propósito de sua sobrevivência.

    “Sabe o que é pior?” — questionou a certa altura. “Que o povo se foi. Tudo é diferente, tão escuro e vazio! Um grande número dos nossos mortos ainda nem sequer foi encontrado, que descansem em paz onde quer que estejam… Sabe, eu continuo a dizer a mim mesma: Se não houvesse mais guerra! Mas depois vejo o que está a acontecer em Gaza. O que é que as mães de lá podem dizer aos seus filhos quando os colocam na cama? É possível que, de alguma forma, não tenhamos aprendido nada?”

    Na página do Centro Memorial de Srebrenica na Internet encontra-se uma secção através da qual os que ainda procuram familiares desaparecidos podem pedir apoio. / Foto: Captura de imagem do site do Centro Memorial de Srebrenica

    Apesar de ter regressado a Srebrenica há décadas – aquele Verão assassino de 1995 foi a razão para dedicar grande parte da minha vida profissional à cobertura de vítimas de guerra – tive dificuldade em falar com Saliha. Mesmo durante a nossa primeira chamada telefónica, quando estávamos a organizar a minha visita às colinas acima de Srebrenica, fui atormentado por sentimentos de culpa. Parte disso tinha a ver com a noção de invadir o espaço pessoal sem ser convidado. No entanto, sentindo algo na minha voz, a minha anfitriã bósnia foi rápida em tranquilizar-me: “Você é sempre bem-vindo aqui, filho. A minha alma dói tanto que me faz bem falar sobre o que aconteceu. É o trabalho da minha vida. A minha missão. Falarei sobre o genocídio até ao meu último suspiro. Sabe, dói tanto ver a negação. Para mim, isso é quase impossível de suportar. O quê, todos nós aqui simplesmente nos matamos?!”

    Mulher bósnia segura foto de familiar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Disse-me, mais tarde: “Antes de acontecer, não conseguíamos imaginar tamanho terror. O meu Ramo trabalhava em Belgrado. Era um engenheiro cujo trabalho também o levou à Tunísia e à Líbia. No início de maio de 1992, cerca de um mês após o início da guerra na Bósnia, regressou a casa. Ele foi capaz de chegar a Dobrak com seu próprio carro, sem dificuldades reais. Havia muito trabalho a ser feito na quinta. Ele disse-se: ‘Saliha, meu amor… Eu posso sentir que algo está a formar-se. “Ele tinha uma sensação muito má sobre tudo isso. E então começou.”

    Quando a aldeia foi atingida pelas primeiras granadas sérvias, enquanto tiros eram disparados do outro lado do rio Drina, a família Osmanović foi forçada a fugir. “Caso contrário, ter-nos-iam matado a todos”, recorda Saliha. “Tivemos que deixar tudo para trás. Nós, de alguma forma, empurrámos até Srebrenica. O que se seguiu foram três anos de derramamento de sangue constante e sofrimento sem fim. E então veio Julho de 1995. Fizeram o que fizeram. Não sei, filho. Eu nunca vou entender.”

    Eu nunca vou entender. Esta é, de longe, a sua declaração mais frequente.

    Na preservação da memória do massacre, o Centro Memorial de Srebrenica tem um arquivo com fotos. Na imagem, uma pessoa segura uma foto de um dos locais onde foi encontrada uma vala comum com os restos mortais de vítimas do massacre. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Cada vez que Saliha Osmanović descrevia a tragédia de Srebrenica, parecia que a estava a descrever pela primeira vez. A cada relato, ela desabava em lágrimas. Era como se o seu relógio pessoal tivesse parado naquele Verão sufocante há 30 anos.

    Tudo o que veio em seu rastro foi apenas uma extensão do horror final.

    O resultado nunca mudará.

    Mais de 6.000 participantes embarcaram no passado dia 8 de Julho numa viagem de mais de 100 quilómetros – Marcha da Paz -, como parte da memória do 30º aniversário do genocídio dos bósnios em Srebrenica e arredores. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Ao longo da minha visita, passei muito tempo a questionar-me como era possível sobreviver a tais atrocidades e agarrar-me à própria humanidade. Como é possível que Saliha, que perdeu o pai aos dois anos e cresceu na pobreza, não sentisse ódio, nem sede de vingança?

    O que, se alguma coisa, a manteve? Como é que ela conseguiu enfrentar o amanhecer de cada novo dia? A morte estava frequentemente na sua mente?

    “A dor e a tristeza é algo com que tive de aprender a viver”, respondeu. “Estou longe de ser a única. E não é como se eu pudesse simplesmente desistir e desaparecer. No entanto, tenho de admitir que, cada vez que me deito para descansar, ainda espero não acordar. Fui ao hospital em Tuzla duas vezes. Estive muito doente… Mas, de alguma forma, ainda não consegui morrer.”

    Acreditava que era o seu jardim que a mantinha em funcionamento. “Oh, eu simplesmente amo os meus tomates, cebolas, cenouras, batatas e alho …”

    Saliha Osmanović parece ter feito uma paz precária com o facto de ter sido a voz de milhares de seres humanos assassinados. “Sei que sou a voz do Ramo, do Edin e do Nermin”, explicou. “A voz de Srebrenica. O que significa que não tenho o direito de me calar. O livro da minha vida está sempre aberto. O que aconteceu com sempre permanece dentro de mim. Serei sempre uma mãe cujos filhos foram abatidos e cujo marido foi levado. Srebrenica continua a arranhar-me no meu âmago. Eu só posso descansar com a ajuda de comprimidos para dormir. Especialmente agora, quando a situação na Bósnia está mais uma vez em ebulição de tensão”.

    A sua linha de pensamento foi rápida a mudar do passado para o presente. Na Bósnia, a distância entre agora e então nunca é muito grande.

    Os negacionistas do genocídio e outros tipos de chauvinistas estão cada vez mais audíveis. Em 2021, a Bósnia tornou crime punível negar o que aconteceu em Srebrenica. No entanto, as autoridades da República Srpska estão agora a negá-lo todos os dias – impunemente e com o total apoio de Belgrado e Moscovo.

    Os monstros estão cada vez mais fortes. Local, regional e globalmente.

    Mirela Osmanovi, representante do Centro Memorial de Srebrenica e membro da família das vítimas do genocídio, discursou, no dia 8 de Julho, perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas numa sessão para marcar o 30º aniversário do genocídio de Srebrenica. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “Raramente vejo televisão. Mas quando o faço, e quando Milorad Dodik aparece, sou imediatamente transportada para aquela terrível atmosfera odiosa dos anos 90”, disse Saliha Osmanović à medida que a nossa despedida se aproximava.

    “E a situação do outro lado do rio Drina é a mesma”, elaborou. “Depois de todos estes anos, não sei como é que isto poderia ter acontecido. Não aprendemos nada? Alguns meses atrás, tive um grande susto. Tive a terrível sensação de que algo estava prestes a acontecer novamente. Que os tiros estavam prestes a ser disparados. Eu fiz uma única mala de viagem. Ainda não a desfiz. Ainda está à espera no corredor, por precaução.”

  • Vidas arrancadas

    Vidas arrancadas

    A guerra na Ucrânia parece não ter fim à vista. As condições ao longo da frente oriental são abismais. A cada dia que passa, fazem lembrar cada vez mais os horrores da Primeira Guerra Mundial. A máquina imperial russa lavra tudo o que está no seu caminho.

     A Ucrânia, eterna prisioneira da geografia, luta para continuar a resistir. Para a Ucrânia, trata-se de uma luta pela sobrevivência. Para a Rússia, não é nada disso. O conflito ucraniano parece ter-se tornado mais uma guerra eterna que alimenta a indústria da morte, em rápida expansão.

    Dado que a guerra só pode ser descrita de forma credível pelos seus sobreviventes, falei com alguns soldados feridos nos hospitais militares ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Eu e dois outros combatentes fomos numa missão de reconhecimento do campo de batalha em Donetsk. De repente, ouvimos o som de drones e procurámos refúgio num edifício em ruínas nas proximidades. Mas os três drones russos conseguiram detectar-nos”, relatou Andry Romanyak, de 55 anos, natural de Lviv.

    Recordou que dois deles lançaram bombas sobre o local onde se encontravam e o terceiro embateu contra o edifício, fazendo explodir a sua carga. “A última coisa de que me lembro antes de desmaiar foi de uma cadeia de explosões absolutamente angustiantes. Quando acordei, o meu primeiro impulso foi procurar os meus dois companheiros. Encontrei-os esquartejados a poucos metros do sítio onde estava”.

    “Eu sangrava dos pés e da parte inferior das pernas. Os estilhaços também me tinham atingido as costas. Tudo o que eu queria era sobreviver e voltar para a minha família, por isso consegui arrastar-me para fora dos escombros”, contou-me Romanyak, deitado no quarto do hospital da cidade de Uzhhorod.

    Pai de dois filhos e avô de dois netos, Romanyak foi ferido a 13 de Novembro de 2024. Tinha sido mobilizado seis meses antes. Tal como a toda a sua equipa, o serviço de mobilização tinha vindo buscá-lo ao estaleiro onde trabalhava como encarregado.

    Dois anos antes, tinha sido declarado apto a 60% para o serviço militar. O que, pelo menos em teoria, significava que tinha sido declarado inapto para o serviço na linha da frente.

    No entanto, dada a crescente falta de pessoal causada pela forte pressão russa, especialmente na parte oriental da Ucrânia, Romanyak foi mobilizado e imediatamente transformado em condutor de veículos blindados da linha da frente.

    Andry Romanyak (Foto: Boštjan Videmšek)

    O seu ferimento ocorreu após quatro meses de combates incessantes; quatro meses a fugir incessantemente à morte.

    “Estava um frio terrível”, diz Romanyak, recordando a sua luta frenética para se colocar em segurança após o  ataque do drone. “Felizmente, eu tinha juízo suficiente para saber a direcção de onde tínhamos vindo. Decidi regressar à minha unidade. Esperava que me encontrassem”.

    Todo o equipamento de comunicação tinha sido destruído no ataque e era claro para Romanyak que a evacuação era impossível. “Eu sabia, de facto, que eles não podiam salvar-me. Por isso, peguei numa arma e comecei a rastejar em direção ao sol. Só conseguia pensar na minha família”.

    Romanyak só conseguia mover-se de uma forma lenta e agonizante. A hipotermia crescente tornou-o alheio aos seus ferimentos. De vez em quando ouvia soldados russos a falarem. Ele está convencido de que em várias ocasiões chegou a estar a menos de dez metros deles. Quando se escondeu nos arbustos, uma patrulha russa inteira passou por ele.

    Durante a sua fuga não dormiu nem um minuto.

    Enquanto rastejava tentava encontrar lonas militares para se cobrir e descansar, já que, por todo o lado, o barulho da artilharia pesada aumentava a urgência da sua situação era insuportável.

    “Estava aterrorizado, mas que alternativa tinha”, referiu Romanyak com uma expressão mortalmente séria no seu rosto branco quase fluorescente.

    “Rastejei por entre um mar de soldados russos”, lembrou, explicando que esta parte do campo de batalha era altamente caótica. “Libertávamos alguns metros de território, e depois os russos recuperavam-no; recuperavam tudo. Estávamos sempre a andar para trás e para a frente”.

    Após três dias de uma miséria indescritível, Romanyak viu finalmente um grupo de soldados ucranianos. “Gritei “Slava Ukraini” e esperei não me ter enganado”.

    “Felizmente, eram de facto ucranianos. Limparam-me as feridas, puseram-me ligaduras e levaram-me para o hospital de campanha mais próximo. Ao contrário dos meus dois camaradas que morreram no ataque, eu tive uma sorte incrível”, lembrou.

    Devido aos seus ferimentos, os médicos do hospital militar decidiram amputar todos os dedos de ambos os pés. Quando falei com ele, Andry Romanyak ainda estava feliz por ter sobrevivido… Mas também temia não voltar a andar, o que o tornaria incapaz de cuidar da sua família.

    O seu prognóstico era, no entanto, bom.

    Assim que me despedi dele, foi-lhe marcada a sua primeira hora de exercícios de reabilitação.

    “O meu plano é simples”, confidenciou. “Quero voltar a pôr-me de pé e esquecer o que me aconteceu. Espero que isso me ajude a começar a dormir melhor”.

     “As condições lá são terríveis”

    Juriy Pakanich, cirurgião militar de 55 anos, pegou no seu telemóvel para me mostrar fotografias das complexas intervenções cirúrgicas e das feridas inimaginavelmente horríveis com que se deparou durante os seus mais de dois anos de serviço nos hospitais militares espalhados pelos campos de batalha ucranianos.

    Cemitério militar em Uzhhorod. (Foto: Boštjan Videmšek)

    As imagens eram tão abomináveis que tive de me esforçar muito para não desviar os olhos.

    “Habituamo-nos a isto”, explica Pakanich. “Caso contrário, não conseguimos fazer o nosso trabalho”.

    Enquanto cirurgião civil, o seu principal objetivo era salvar vidas, como cirurgião militar, a sua  tarefa é remendar as pessoas para que possam regressar aos combates.

    “Em determinadas alturas, tivemos tantas baixas que o nosso trabalho aqui assumiu aspectos quase industriais”, disse. “Uma vez tive de operar durante 12 horas sem pausa. Quando terminei, saí da sala de operações, apenas para constatar que a fila lá fora era maior do que quando comecei. Por isso, não tive outra hipótese senão voltar à sala de operações”.

    Durante os dois anos na frente, Pakanich operou vários milhares de soldados. A natureza da sua actividade obriga-o a decidir quem mais precisa de cirurgia – o que, na linha da frente, muitas vezes significa decidir quem vive e quem morre.

    Nas piores alturas, chegavam a ser trazidos diariamente 250 feridos para os hospitais militares onde o Dr. Pakanich trabalhava.

    Só deixou a linha da frente quando adoeceu com um grave surto de hepatite B. Uma parte dos seus pulmões teve de ser removida devido à infecção.

    Passou várias semanas num hospital e apesar de ter recuperado parcialmente, o seu estado de saúde impediu-o de regressar à frente de combate. O Dr. Pakanich ainda não se tinha conformado com esse facto.

    “Regressei à cirurgia civil”, explicou, “mas os meus pensamentos estão sempre com os nossos soldados na frente. Quero muito ajudá-los. As condições lá são horríveis”.

    Explicou que a Rússia continua a enviar novos soldados para a guerra e eles têm cada vez mais armas, enquanto o exército ucraniano está a resistir o melhor que pode.

    “Não conseguiríamos resistir sem a ajuda dos Estados Unidos e da Europa. O problema é que não recebemos nem de perto nem de longe a ajuda suficiente, mas simplesmente não nos podemos render e assim desonrar aqueles que já caíram pela nossa liberdade”, disse.

    O Dr. Pakanich é capitão no exército ucraniano e pai de três filhos. “Sou um homem muito diferente agora, do que era quando a guerra começou”, disse.

    “Todos nós aqui mudámos. Pessoalmente, tudo o que posso sonhar é com paz, descanso e boa saúde”.

    “Parecia não haver maneira de parar a hemorragia”

    Antes de se voluntariar para o exército, Ruslan Telegaj, de 35 anos, natural de Sarni, no noroeste da Ucrânia, trabalhava como guarda prisional.

    Praticamente sem descanso, lutou em todos os principais campos de batalha da guerra ucraniana: Kharkiv, Kherson, Zaporíjia… bem como nos campos de morte da interminável linha de frente do Donbass, que faziam lembrar os horrores da Primeira Guerra Mundial.

    Ruslan Telegaj (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estávamos numa missão de reconhecimento na fronteira entre Dnipropetrovsk e Donetsk. Seis de nós tinham-se amontoado num pequeno camião militar e quando ouvi o som de um drone, não tive tempo de reagir. Houve uma explosão selvagem e ficou tudo branco”, recordou Ruslan do seu quarto de hospital mobilado de forma ascética.

    Ao relatar os acontecimentos daquele fatídico dia 5 de Agosto de 2024, o seu tom podia ser descrito como ligeiramente dissociado.

    “Logo após a primeira explosão, tentei pôr-me de pé e avisar os meus companheiros para se abrigarem”, continuou, explicando que  a primeira vaga de drones ‘kamikaze‘ é normalmente seguida por uma segunda. “É uma táctica russa clássica”.

    “Tentei levantar-me, mas caí de novo no chão. A minha perna direita tinha sido rebentada e  três dos meus companheiros estavam mortos”.

    Ruslan arrastou-se  em busca de abrigo que encontrou na vala mais próxima. E, como esperado, a segunda onda abateu-se.

    “A minha hemorragia intensa alertou-me para o facto de também ter uma ferida enorme nas costas. Não tinha forças para me ajudar a mim próprio, quanto mais aos meus companheiros. Parecia não haver maneira de parar a hemorragia e a minha visão estava a girar, mas eu mantive-me consciente durante todo o tempo. Também estava com muita sede, por isso comecei a pedir ajuda”.

    Como as equipas de salvamento são elas próprias frequentemente alvo de ataques russos, a ajuda demorou cerca de uma hora a chegar aos sobreviventes. Ruslan desmaiou na ambulância, mas os médicos do hospital de campanha conseguiram estabilizar o seu estado. No hospital militar de Dnipro, a sua perna direita foi amputada abaixo do joelho.

    Não há fim à vista para a guerra (Foto: Boštjan Videmšek)

    “Estou a melhorar a cada dia que passa”, afirmou. “Também estou a começar a adaptar-me à minha nova situação. Com a ajuda de próteses, posso agora andar. E tudo o que consigo pensar é como estou prestes a regressar a casa depois de três longos anos”.

    Ao proferir estas palavras, Ruslan emocionou-se visivelmente. Como alguém que se descreve como tendo sido “criado nas ruas”, a sua mulher e o seu filho de três anos são sagrados para ele.

    No entanto, ainda não lhe é permitido juntar-se a eles – não por causa do seu estado de saúde, mas devido ao facto de, tal como centenas de centenas de outros doentes, ainda estar preso num limbo burocrático que o leva à eventualidade de ter alta do serviço.

    Passa os dias no hospital a fazer flexões intermináveis.

    “Não quero voltar para a frente de batalha. Já perdi muito. Quero viver como um ser humano normal. Quero estar com a minha família e ajudar a Ucrânia de outra forma. Se puder andar, aceito qualquer trabalho disponível”, disse com firmeza Ruslan Telegaj acerca das suas prioridades actuais.

    “O que nós, soldados, passamos não se vê na televisão”

    “23 de abril de 2024. Três de nós estávamos a fazer reconhecimento para a brigada mecanizada 116 quando ouvimos o som de um drone. Tentámos dispersar, mas mesmo assim fomos atingidos em cheio. A explosão deu-se perto de mim e fui projetado para o ar”, contou Andry Tarasov, da província de Mykolaiv, descrevendo telegraficamente o dia em que perdeu a perna direita.

    Andry Tarasov (Foto: Boštjan Videmšek)

    Quase perdeu a vida também. A unidade de resgate não conseguiu chegar ao local porque havia fortes combates por todo o lado. Andry, que tinha perdido uma quantidade crítica de sangue, foi colocado numa maca por um par de camaradas e levado para um local seguro, através de três quilómetros de fogo inimigo constante.

    Muitos dos soldados feridos chegam aos hospitais em muito mau estado. As enormes quantidades de antibióticos que lhes são administradas durante as primeiras fases do tratamento no terreno contribuíram para o desenvolvimento generalizado da resistência aos antibióticos, disse-me Oleg Holub, diretor do hospital municipal de Uzhhorod.

    Por esta razão, frequentemente as feridas dos soldados curam-se de forma muito mais lenta.  E, em muitos casos, toda a recuperação é posta em causa.

    “A guerra é assim”, diz Andry, com um ar sombrio, o olhar apontado para o chão. “Muito daquilo por que nós, soldados, passamos, não se vê na televisão”.

    A sua opinião sobre a guerra é certamente uma opinião qualificada. Andry lutou nos piores campos de batalha da frente oriental. É um veterano de teatros de batalha como Avdiivka, Kupiansk e vários outros. Já em 2017 – durante a chamada guerra tranquila com a Rússia – lutou pela infantaria da Marinha ucraniana contra formações paramilitares pró-russas em Mariupol.

    Ao todo, já passou nove meses em vários hospitais. No hospital militar de Lviv, foi-lhe colocada uma prótese à qual se está a habituar lentamente. Está desejoso de continuar no exército.

    Uzhoorod (Foto: Boštjan Videmšek)

    Depois de ter alta do hospital de Uzhhorod, gostaria de se tornar instrutor. Já tinha recebido ofertas das forças especiais e gostaria muito de transmitir os seus conhecimentos aos soldados mais jovens, que estão a entrar na frente cada vez menos preparados.

    No entanto, a situação com o exército agressor é inversa, uma vez que o lado russo é constantemente reforçado com tropas bem treinadas e quantidades de armamento praticamente ilimitadas.

    “Hoje estou zangado. Amanhã estou em paz. Depois, volto a ficar zangado. O meu humor é regido por fortes oscilações. Só sei que não seria capaz de viver sem trabalhar. Neste momento, a minha saúde é o mais importante, mas os meus pensamentos estão sempre com os meus colegas soldados na frente de batalha”, disse.

    Conta que antes da guerra, trabalhava no estaleiro de Chornomorsk, onde limpava os reservatórios dos navios. “Era um trabalho muito duro”.

    “Toda a minha vida trabalhei muito”, contou o homem com um rosto cinzento-escuro e profundamente cansado.

    Quando lhe perguntei se sofria de stress pós-traumático, Andry Tarasov apenas conseguiu esboçar um sorriso cínico.

    “Putin está a agir como um canibal”

    O Dr. Yuriy Fatula, chefe do departamento de cirurgia do hospital municipal de Uzhhorod, informou-me que três em cada 10 soldados feridos que tratavam no hospital sofriam de stress pós-traumático.

    De acordo com o Dr. Fatula, o hospital opera em média 10 soldados por dia, a maioria das quais são amputações. “Esta é uma guerra horrível. Faz-me lembrar a Primeira Guerra Mundial: uma longa frente fixa, trincheiras, artilharia pesada, baixas impensáveis. Vladimir Putin está a agir como um canibal”, afirmou o cirurgião, enquanto caminhávamos pelo cemitério militar de Uzhhorod, onde 150 rapazes e homens da cidade, perto da fronteira com a Eslováquia, estão enterrados.

    Dr. Yuriy Fatula (Foto: Boštjan Videmšek)

    Debaixo de um tímido sol de inverno, dois jovens cavavam buracos pouco profundos no meio de um tumulto de bandeiras ucranianas e coroas comemorativas. Os caixões de madeira já estavam preparados. Três ou quatro soldados são enterrados aqui todas as semanas – aqui e em todo o país, em todas as aldeias ucranianas.

    Pouco mais de um quilómetro separa o cemitério de Uzhhorod das fronteiras externas da União Europeia. Os europeus fariam bem em lembrar-se de que toda esta carnificina está a acontecer literalmente a um tiro de distância.

    “Sabe, o número real de baixas é significativamente mais elevado do que o citado pelo presidente Zelensky em Dezembro. Mencionou 45.000 – que, na verdade, é o número de soldados mortos directamente no campo de batalha. Mas o mesmo número de soldados terá morrido nos hospitais, durante o transporte, no cativeiro russo ou mais tarde em casa”, referiu o Dr. Fatula.

    O médico assumiu com orgulho as suas funções de chefe da cirurgia do hospital de Uzhhorod. Considera os seus esforços como um pequeno contributo para a liberdade ucraniana – embora essa liberdade pareça cada vez mais distante.

    “As pessoas estão tão cansadas”, disse-me enquanto nos conduzida de regresso ao hospital. “A guerra arrancou-as das suas vidas. É tão difícil para nós sentirmos qualquer tipo de felicidade ou alegria. Toda a gente aqui conhecia alguém que foi morto. Todas as famílias foram afectadas”. “É uma coisa horrível quando já não se pode planear o futuro – nem sequer o futuro dos nossos netos. A guerra faz com que o próprio tempo corra de forma diferente. Todos nós aqui estamos a envelhecer a um ritmo sem precedentes”, afirmou o Dr. Fatula.

    Lembrou que quando a guerra começou, “ficámos todos chocados”, realçando que cada vítima era uma tragédia colossal. “Mas ao fim de três anos, a guerra tornou-se o nosso estado por defeito. O nosso novo normal, se quisermos”. “Habituámo-nos às perdas constantes”, disse. “Mas continuamos a sofrer a toda a hora. E estou mesmo a falar a sério; a toda a hora.”

  • ‘A única maneira de sairmos daqui é pela força’

    ‘A única maneira de sairmos daqui é pela força’

    Em Abril de 2023, Ida Asp recebeu uma carta da Inspeção de Mineração de Estocolmo, informando que a  empresa Bergslagen Metals AS recebeu uma “licença exclusiva” para iniciar pesquisas de mineração na ‘área número 2’ de Viken, no município de Berg.

    A área designada estende-se por quase todos os arredores da casa de campo de Asp, construída no século XVIII e que foi renovada recentemente, bem como por toda a sua propriedade na vila de Oviken, onde os xistos de alúmen localizados logo abaixo da superfície do solo são ricos em metais e minerais.

    Asp trabalha na função pública, onde supervisiona a entrada de fundos europeus na Suécia. Como vice-presidente do conselho municipal de Berg, também é activa na política local. Asp e o marido receberam uma proposta de compra da sua casa e do terreno circundante “a um preço de mercado”. A Lei Mineral Sueca, que foi escrita no século XIX, afirma que qualquer pessoa pode solicitar uma licença de mineração em qualquer lugar sob a superfície, precisando apenas escolher um metal ou mineral com uma sólida possibilidade de ser encontrado no local designado. Isto pode potencialmente significar que os proprietários de terras suecos nem sequer são os proprietários das suas próprias caves.

    Grande parte da costa do Lago Storsjön pode ficar exposta à mineração intensiva.
    / Foto: Boštjan Videmšek

    Várias centenas de habitantes da idílica região de Jamtland receberam o mesmo tipo de carta – entre eles proprietários de terras, agricultores, silvicultores, proprietários de retiros de fim de semana. No momento da minha chegada, a região tinha sido abençoada com um degelo maravilhoso. No entanto, muitos dos moradores estavam a ser consumidos pela ansiedade. Alguns até temiam ser realocados em massa para um “novo Oviken” construído às pressas em outro lugar… Muito parecido com o que sucedeu aos habitantes da histórica cidade mineira de Kiruna.

    De acordo com os  dados do Serviço Geológico sueco, a Suécia – especialmente as suas planícies centrais – detém a maior reserva de minério de urânio do mundo. O país também é rico em vários outros metais e minerais como potássio, cobre, níquel e vanádio.

    Há muito tempo que as empresas de mineração globais estão cientes dos potenciais ganhos inesperados no país. Em Maio de 2018, o parlamento sueco aprovou uma emenda à legislação ambiental, que instituiu uma proibição nacional da mineração e pesquisa de minério de urânio. A moratória entrou em vigor a 1 de Agosto de 2018.

    Ida Asp, uma das líderes dos protestos contra a mineração de urânio na região de Jamtland. / Foto: Boštjan Videmšek

    Uma pesquisa encomendada pelo Ministério do Clima e Empresas, em Fevereiro do ano passado, determinou uma mudança de regras e definiu os termos para a extracção de urânio. O relatório sobre a discussão pública do referido inquérito tem de estar concluído até 20 de Março deste ano. O levantamento da moratória será então discutido no Parlamento sueco. As alterações legislativas têm de ser adoptadas até 1 de Janeiro de 2026, o mais tardar.

    De acordo com várias fontes, há poucas dúvidas de que as autoridades suecas irão descartar a moratória até ao final do ano. No início do levantamento, o Ministério do Clima e Empresas afirmou que o objetivo era “remover uma proibição que não é necessária”. Acrescentou ainda que a extracção de urânio deve ser regulada pelos mesmos regulamentos ambientais que dizem respeito aos outros metais e minerais.

    Ainda antes da publicação das conclusões do inquérito, o secretário de Estado do Ministro do Clima e do Ambiente, Daniel Westlén, previa que a moratória seria levantada. “A proibição da mineração de urânio será removida”, anunciou Westlén no Outono passado. “Será possível extrair urânio na Suécia. Não há razão para uma proibição”.

    Lago Storsjön / Foto: Boštjan Videmšek

    “Para que a União Europeia se torne o primeiro continente neutro em termos climáticos, é necessário garantir o acesso a metais e minerais sustentáveis”, declarou, no Verão passado, Romina Pourmokhtari, Ministra do Clima e do Ambiente.

    A chegada das empresas mineiras

    A inevitabilidade do fim da moratória foi recebida com grande entusiasmo pelos proponentes locais de um renascimento nuclear… Tal como a intenção das autoridades de construir dois novos reactores nucleares até 2035 e 10 até 2045, ao mesmo tempo que visa descarbonizar totalmente a electricidade da Suécia em nome da transição verde.

    Nos próximos 30 anos, prevê-se que a actual procura bastante elevada de electricidade na Suécia duplique para cerca de 300 TW/h … Principalmente devido à descarbonização da colossal indústria siderúrgica sueca.                                                         

    Até agora, a Suécia precisava de cerca de 1.500 toneladas de urânio por ano para manter seus seis reactores nucleares a funcionar. Nas próximas décadas, estima-se que esse número aumente para entre 3.000 e 4.000 toneladas. De acordo com dados da Associação Nuclear Mundial (ANM), o mundo consome 67.000 toneladas de urânio por ano, enquanto o uso anual da União Europeia é de 12.500 toneladas.

    Lago Storsjön / Foto: Boštjan Videmšek

    Segundo a ANM, estão actualmente a ser construídos 65 reatores nucleares em 16 países, enquanto outros 90 reactores estão em fase de planeamento. A China está, mais uma vez, a liderar… Contudo, também vale a pena mencionar que, nas últimas duas décadas, mais de uma centena de centrais nucleares foram encerradas em todo o mundo.

    A ANM prevê um aumento de 33% no uso de urânio na próxima década, correlacionando-se com um crescimento estimado de 27% nas capacidades dos reactores nucleares. Os peritos acreditam que novas tecnologias, como os “reactores rápidos”, poderiam aumentar consideravelmente a eficiência da utilização de combustível nuclear. Em teoria, isso deveria significar que o planeta detém urânio suficiente para quase 2000 anos. Outro factor a acrescentar é a opção de reciclagem do combustível nuclear – considerado que o processo ainda é actualmente demasiado dispendioso.

    A Suécia é, naturalmente, membro da organização Euratom, que fornece urânio aos seus membros, ao mesmo tempo que tem em conta um certo grau de diversificação da cadeia de abastecimento. Há vários anos que a Suécia importa a totalidade do seu aprovisionamento de combustível nuclear. Actualmente, o país não dispõe de meios para o enriquecimento de urânio, embora isso também esteja previsto mudar.

    Os dados mais recentes disponíveis da Euratom referem-se a 2022, ou seja, antes de uma série de perturbações geopolíticas importantes e dos seus impactos nas cadeias globais de abastecimento de urânio.

    Oviken, o centro dos futuros projectos de mineração de urânio. / Foto: Boštjan Videmšek

    De acordo com esses dados, a União Europeia importou a maior parte do seu urânio do Cazaquistão (26,2%), Níger (25,38%), Canadá (21,99%) e Rússia (16,89%). Na sequência da agressão russa à Ucrânia e do golpe militar no Níger em Julho de 2023, quando a junta local expulsou os franceses e entregou o controlo das minas de urânio à Rússia, muita coisa mudou no mercado global de urânio.

    Diversas empresas internacionais de mineração já demonstraram um grande interesse na extracção de urânio sueco. A mais proactiva até agora tem sido a empresa canadiana District Metals , à qual foram recentemente concedidos os direitos de investigação e extracção de urânio relativos a toda a região de Viken quando a moratória for levantada.

    Outra empresa digna de menção é a australiana Aura Energy, destinada a extrair minério de urânio ao longo do rio Häggån, onde potássio, zinco, molibdénio e vanádio também serão extraídos. Em 2019,  a Aura Energy processou o governo sueco por danos por causa da moratória.

    Oviken / Foto: Boštjan Videmšek

    “O objectivo declarado do governo sueco está bem alinhado com a capacidade de extrair urânio doméstico, reduzindo a dependência externa e fortalecendo o fornecimento de energia nacional e europeu”, afirmou Andrew Grove, que até recentemente actuou como diretor-geral da empresa. E acrescentou: “evidentemente, é essencial que o urânio seja extraído de uma forma que não ameace o ambiente local nem o abastecimento de água, e estou certo de que conseguiremos demonstrá-lo no âmbito do processo de licenciamento sueco”.

    Em nome da transição verde

    Não, inferno não! Não vou permitir que escavem debaixo da minha casa!” Ida Asp declarou, sentada à enorme mesa de madeira na sua encantadora residência escandinava, onde pretende viver uma vida de autossuficiência. Ao lado de sua casa vermelha, há um canil com 10 cães husky siberianos. Várias ovelhas balem atrás de uma vedação, acompanhadas por um cavalo islandês. Um par de cães e uma série de gatos comandam a casa.

    “Assim que recebi a carta, comecei a fazer chamadas. As pessoas ficaram furiosas. A primeira vez que organizei uma reunião, uma centena de pessoas apareceu. Mesmo muitos daqueles que realmente não se incomodam com o meio ambiente estavam a opor-se veementemente ao projeto de mineração. Quase toda a comunidade local se manifestou contra,” disse Asp, descrevendo os estágios iniciais da revolta local.

    Um dia antes da minha chegada, Ida Asp comemorou seu aniversário. De antemão, ela havia instruído os seus amigos e parentes de que os presentes mais desejados seriam livros de sobrevivência. “Sabe, livros sobre como fazer doce de morango em caso de catástrofe nuclear, ha-ha!”, disse. “Estou a preparar-me para o futuro. Já não compro a maioria das ilusões prevalecentes. Nós estragamos tudo. A humanidade não é capaz de uma reviravolta suficientemente forte. Só nos são oferecidas soluções de ‘mais-mais-mais’ , quando claramente a única resposta é ‘menos-menos’.”

    Asp relatou que, a partir do momento em que as cartas começaram a chegar, uma nuvem tóxica de ansiedade desceu sobre toda a comunidade local. De repente, era impossível planear o futuro.

    Ida Asp. / Foto: Boštjan Videmšek

    Logo após a chegada das primeiras cartas, o líder da empresa australiana Aura Energy fez uma visita a Oviken. Foi marcada uma reunião com a comunidade local, com a presença de mais de 300 pessoas.

    “O seu diretor-geral estava completamente despreparado!, recordou Asp, com traços de indignação ainda fumegantes no seu tom. “Muitas das nossas perguntas básicas simplesmente encontraram um espaço em branco! Mesmo as pessoas que vieram à reunião na esperança de que os projetos de mineração pudessem trazer algum bem para a região ficaram com a impressão de que algo obscuro estava a acontecer. E foi por isso que também eles se voltaram contra as autoridades de Estocolmo e as empresas mineiras estrangeiras. Todos nós estávamos com a impressão de que estávamos prestes a ser enganados. É preciso entender que o chamado preço de mercado da nossa terra é ridiculamente baixo. O meu marido e eu calculámos que a venda só iria gerar metade do nosso investimento no restauro da casa. O que, mais uma vez, é ridículo! É inédito! Então, não importa o que aconteça, estamos prontos para ficar. A única maneira de sairmos daqui é pela força.”

    Asp também sublinhou que as tendências recentes na política sueca a fizeram considerar retirar-se completamente da vida política. Especialmente porque as autoridades de Estocolmo estão atualmente a preparar um veto às decisões das comunidades locais… O que Ida Asp vê como um ataque ao que só recentemente costumava ser a sede mundial da democracia e das políticas ambientais progressistas.

    “Se isto pode acontecer na Suécia, então só se pode imaginar o que se está a passar no resto do mundo”, afirmou.

    Asp candidatou-se, recentemente, ao cargo de diretora de uma escola primária local.

    O número dos que protestavam contra o projecto de mineração aumentou rapidamente. A sua causa foi muito reforçada quando a Naturskyddsforeningen, a organização não-governamental da Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, se juntou à luta, trazendo o apoio dos seus 200.000 membros.

    Foto: Boštjan Videmšek

    “Soubemos imediatamente que algo estava muito errado. Tivemos de reagir”, disseram-me Katja Kristoffersson, directora de comunicação da filial local da Naturskyddsforeningen em Östersund.

    “Conseguimos obter um pedido apresentado por uma das empresas estrangeiras para ter a autorização para extrair urânio por estas partes”, explicou. “Então, sabemos o que está errado, sabemos onde estão os problemas. Acreditamos que ainda podemos parar o projecto, que realmente tem pouca ou nenhuma conexão com a transição verde. Trata-se de uma forma grosseira de induzir o público em erro no interesse de empresas estrangeiras”.

    Kristoffersson foi atraída para a causa conservacionista através de seu amor por fotografar alimentos biológicos. Trabalha em turnos diários de quatro horas na Naturskyddsforeningen. A outra metade do seu tempo de trabalho é gasta a moldar cerâmica.

    “Temos muitas ideias de como reagir”, disse-me… “Estamos a preparar um relatório com base na posição do próprio governo em 2020, quando as autoridades afirmaram claramente que essa forma de mineração era inaceitável. O cerne da nossa campanha é a ameaça que a mineração traria ao meio ambiente. Sobretudo à água. Os projectos de mineração que estão planeados estão localizados nas imediações do lago Storsjön, o quinto maior lago da Suécia, que fornece água para 60.000 pessoas. Também estão em risco as florestas e as terras agrícolas excepcionalmente férteis – somos 85% autossuficientes quando se trata de alimentos aqui. Mas tememos que tudo esteja prestes a ser envenenado – a água, as florestas, o solo, a nossa comida, tudo! Em muitos lugares onde o urânio era extraído de xistos, como seria aqui, foi precisamente isso que aconteceu”.

    Um dos que se juntou à batalha para acabar com a mineração de urânio na região de Jamtland foi o Dr. Urban Tirén. O antigo director do departamento de pediatria do hospital de Östersund, que agora trabalha como consultor sénior, também recebeu uma das cartas infames.

    Foto: Boštjan Videmšek

    “A minha motivação para parar o projeto é simples”, disse Tirén. “Como médico, quando as crianças adoecem com cancro ou outras doenças graves, faço sempre tudo o que está ao meu alcance para as ajudar. Nunca vou desistir. E a mineração no xisto de alúmen é como o cancro. Apenas se espalha causando grandes danos. A mineração em xisto de alúmen não foi comprovadamente segura para o meio ambiente em nenhum lugar do mundo.”

    Como entusiasta da natureza, gosta de passar o máximo de tempo possível ao ar livre, de preferência na companhia dos netos. Como entusiasta de fotografia, Tirén está intimamente familiarizado com as florestas, prados, lagos e rios locais. E receia que os projectos mineiros pendentes possam prejudicar irremediavelmente a fauna local, as águas do lago Storsjön e a produção agrícola na região de Jamtland, no centro da Suécia, com o seu solo muito fértil.

    Na sua opinião, uma única licença de mineração poderia desencadear um efeito dominó. Toda a região poderia ser transformada num local de escavação generalizado. A quietude do Inverno seria substituída por poeira e ruído, e a qualidade de vida semelhante à ‘Northern Exposure‘, aqui, desapareceria para sempre.

    “Na minha juventude, passei muito tempo a trabalhar como médico em África – na República Centro-Africana, por exemplo. E lembro-me muito bem da extensão da devastação que as empresas mineiras deixaram no seu rastro”, continuou Urban Tirén.

    Dr. Urban Tirén, pediatra. / Foto: Boštjan Videmšek

    Tirén teme que o enfraquecimento da legislação ambiental possa, em última análise, transformar a Suécia numa espécie de Amazónia escandinava. A população local vê os projectos de mineração como a continuação da colonização interna. Na Suécia, esse processo atingiu seu auge no século XIX e na primeira metade do século XX, com a mineração a desempenhar um papel altamente proeminente.

    Turbulência geopolítica

    Os recentes acontecimentos na Suécia têm de ser entendidos no contexto dos recentes acontecimentos em Bruxelas. Em Dezembro de 2023, o Parlamento Europeu aprovou a Lei Europeia das Matérias-Primas Críticas, dedicada a garantir um fornecimento seguro e sustentável desses materiais. Em Agosto passado, a Suécia assinou um enorme acordo nuclear com os Estados Unidos – a chamada parceria estratégica que obriga ao desenvolvimento conjunto de “pequenos reactores modulares” e visa melhorar as actuais práticas de gestão dos resíduos nucleares.

    De acordo com as nossas fontes, as exigências dos reactores nucleares americanos poderiam muito bem ser uma grande força motriz por detrás dos projectos mineiros na Suécia. No passado, os Estados Unidos tornaram-se fortemente dependentes da Rússia para urânio enriquecido. As sanções mudaram isso, pelo menos em parte.

    Segundo  dados da Agência Internacional de Energia (AIE), a procura global anual por metais e minerais críticos deve aumentar em 7,5 milhões de toneladas até 2040, saltando para um total de 28 milhões de toneladas. Em caso de atingir emissões neutras, a AIE estima a procura em 43 milhões de toneladas.

    Ao longo da última década, a União Europeia importou da China a maior parte dos seus metais e minerais críticos. O país detém um grande controlo sobre as cadeias de abastecimento globais – especialmente quando se trata de lítio, o componente-chave da bateria de iões de lítio. A UE colocou-se, assim, numa posição marcadamente subordinada, pondo assim em risco, pelo menos indiretamente, alguns dos seus ambiciosos objectivos de sustentabilidade.

    Um interesse crescente pela mineração de tudo o que existe sob o sol também foi demonstrado na Gronelândia, onde o gelo derretido esconde enormes quantidades de riquezas naturais, incluindo urânio. Na situação actual, a extração de urânio não é permitida na Gronelândia. Mas nada ainda é definitivo. As autoridades locais têm cada vez mais dificuldade em afastar pretendentes cada vez mais agressivos. Com a China de um lado e os Estados Unidos do outro, a frente ártica está agora firmemente implantada.

    ‘Northern Exposure’ / Foto: Boštjan Videmšek

    Até 2018, a participação maioritária na Rossing, a maior mina de urânio da Namíbia, era detida pela empresa australiana Rio Tinto. Agora, 69% dela pertence à empresa estatal chinesa China National Uranium Corporation. Curiosamente, 15% da mina é propriedade do Irão – e tem sido desde 1976.

    De acordo com  dados da Associação Nuclear Mundial, a Rússia tem à sua disposição 39 das capacidades mundiais para o enriquecimento de urânio (principalmente através da empresa Rosatom no Ural).

    “A Rosatom é um actor-chave no negócio de combustível nuclear e vende bens e serviços para a Europa e os Estados Unidos”, segundo James Action, do Carnegie Energy Institute. “Ironicamente, o processo de desmame dos combustíveis fósseis russos deixou a Europa particularmente dependente das exportações nucleares russas”.

    Rosatomácea é também um factor importante na agressão russa à Ucrânia. Um ex-director da empresa, Sergey Kyrienko, foi um dos que planeou a operação especial, enquanto a Rosatomácea continua a servir como um grande fornecedor do exército russo.

    Nos últimos três anos, o negócio do urânio voltou a prosperar. Os preços do urânio nas bolsas mundiais duplicaram. Para citar apenas um exemplo: o valor de uma mina de urânio localizada na Bacia de Athabasca, no Canadá, foi estimado em 4 mil milhões de dólares, apesar do facto de que só entrará em operação em 2028, quando o Canadá poderá ultrapassar o Cazaquistão como o principal fornecedor de urânio do mundo.

    Ajustados pela inflação, os preços do urânio atingiram o seu nível mais alto durante a Guerra Fria. Após o seu fim, quando uma parte do arsenal de armas nucleares foi desmantelada, os mercados globais foram atingidos por uma profusão de urânio enriquecido. Isso reduziu muito o preço, às vezes em até 90%.

    Área onde será feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek

    Um facto importante, mas muitas vezes negligenciado, é que, após o colapso da União Soviética, os Estados Unidos começaram a importar grandes quantidades de urânio enriquecido da Rússia e de várias outras ex-repúblicas soviéticas. Isto foi possível através do ‘Programa Megatons para Megawatts’, adoptado em 1993. As antigas ogivas nucleares russas foram, assim, utilizadas para alimentar os reactores nucleares dos EUA, pelo menos, até 2013. E 500 toneladas de urânio enriquecido foram transferidas no âmbito do programa, 500 toneladas que costumavam compor 20.000 ogivas. Até 2009, os Estados Unidos pagaram à Rússia cerca de nove mil milhões de dólares pelo referido urânio.

    A empresa de mineração canadiana District Metals entrou na Suécia em 2020, durante a primeira onda da pandemia. Até 2022, o mercado mundial de urânio permaneceu bastante estático. No início, a empresa não investiu muito. Na maior parte dos casos, contentou-se em simplesmente perder tempo.

    Na sequência da agressão russa à Ucrânia, a situação geopolítica e económica alterou-se. Dada a dependência europeia do gás russo e a consequente corrida por alternativas, a energia nuclear estava prestes a experimentar um renascimento.

    A District Metals começou a explorar novas opções para a mineração na Escandinávia. “Quando vimos a situação na Suécia, começámos a procurar áreas onde o minério de urânio pudesse ser encontrado”, relatou o presidente-executivo da empresa, Garreth Ainsworth, geólogo e um dos operadores mais reconhecidos do sector.

    Área onde irá ser feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek
    Garret Ainsworth, CEO da Distric Metals. / Foto: District Metals

    Entre outros projectos, a District Metals solicitou uma licença de exploração e mineração na área de Viken, onde a prospecção inicial mostrou que estavam disponíveis grandes quantidades de urânio.

    “A autorização foi barata, por conta da moratória. Pagámos 10.000 dólares por uma ‘licença mineral’, ganhando 68% dos depósitos Viken. Mais tarde, também comprámos os 32% restantes”, explicou Ainsworth. E está firmemente convencido de que o Governo sueco levantará a moratória sobre a extracção de urânio até ao final do corrente ano.

    “Estamos certamente preparados para o levantamento da moratória”, declarou. “Quando isso acontecer, é certo que as coisas correrão bem, tendo em conta o legislador sueco. O processo é bastante rápido. Na Suécia, pode obter uma autorização em seis semanas. No Canadá, o mesmo processo leva pelo menos dois anos.”

    A inevitabilidade do fim da moratória torna-se ainda mais clara quando se tem em conta um relatório publicado em Dezembro do ano passado pelo Ministério do Clima e das Empresas sueco. O relatório recomendava o fim da moratória até ao final do ano. As empresas globais de mineração, como a District Metals, estão a preparar-se intensamente.

    “O relatório representa um quadro legislativo para o levantamento do tema. Não se trata apenas de extrair o urânio, mas também de processá-lo e enriquecê-lo”, explicou Garreth Ainsworth. Ao longo de nossa conversa, o CEO da District Metals elogiou muito a tradição e a infraestrutura de mineração da Suécia.

    “A Suécia é um dos principais Estados mineiros da Europa”, disse, entusiasmado. “E não só em relação ao urânio, mas também ao minério de ferro, cobre, zinco, chumbo, prata, ouro… É um prazer trabalhar aqui. Os suecos gostam de investir em projectos no seu próprio país.”

    Ainsworth previu que, após o levantamento da moratória, a Suécia irá rapidamente construir cadeias de abastecimento – desde a mineração ao processamento e enriquecimento até à produção de combustíveis nucleares… Todo o caminho até ao utilizador final, ou seja, os reactores nucleares do mundo. Na sua visão, os resíduos também seriam reciclados de forma cada vez mais eficiente.

    “Em tempos instáveis, isso é crucial. Está caótico lá fora. Tenho a certeza de que está ciente de que o Níger, por exemplo, que abasteceu o mercado europeu com 25% de seu minério de urânio, agora é controlado pelos russos. O CEO da Kazatompromcompany do Cazaquistão declarou publicamente que agora é muito mais difícil para enviar urânio para o Ocidente, dada toda a pressão da China e da Rússia”, acrescentou Ainsworth.

    Uma decisão estritamente política

    “Esta não é uma transição verde, é cinzenta. Estão a tentar convencer-nos de que parte do meio ambiente precisa ser sacrificada para salvar o meio ambiente. Mas as soluções que estão a oferecer são falsas e perigosas. Parecem sempre encontrar novas desculpas para explorar os recursos naturais. Alguns até querem começar a fazê-lo no espaço, e tudo em nome da transição verde”, atirou o activista da Greenpeace Carl Schlyter, que representou o Partido Verde sueco no Parlamento Europeu, entre 2004 e 2014.

    Perguntei se existe a possibilidade de as empresas não atingirem seus objetivos. A sua primeira resposta foi uma careta.

    “Não se trata apenas da moratória”, explicou. “Logo após o Natal – quando todos já estavam de férias – o nosso governo propôs a eliminação do direito de veto das comunidades locais. Os referidos direitos poderiam certamente frustrar os seus planos. Mas isso não significa que o governo terá sucesso. Muitos dos autarcas opõem-se ao levantamento da moratória, uma vez que se apercebem dos danos que podem ser causados ao ambiente”.

    Carl Schlyter, da Greenpeace na Suécia. / Foto: Greenpeace

    Schlyter acredita que as razões por detrás do fim da moratória são estritamente políticas. “Na Suécia, a questão nuclear é uma questão de prestígio político. É preciso perceber que, durante a última campanha eleitoral, os partidos do governo enfatizaram fortemente o reforço das capacidades nucleares do nosso país”.

    Em 2022, as condições nos mercados de energia eram muito diferentes do que são hoje. Soluções rápidas estavam na ordem do dia. “Quando a Rússia atacou a Ucrânia, os preços do gás terrestre dispararam”, lembrou Schlyter. “E o preço da electricidade também disparou, principalmente devido ao alto preço do gás. Na Suécia, estávamos habituados a preços de electricidade excepcionalmente baixos – o segundo mais baixo de toda a União Europeia. E obtivemo-lo principalmente a partir de fontes renováveis e nucleares, apesar de termos encerrado vários reactores nucleares. Mas quando as coisas mudaram, a nossa indústria dependente de energia não carbónica sofreu um choque. Pelo menos durante um curto período de tempo, foi desprovida da sua competitividade”.

    A expansão das capacidades nucleares da Suécia foi a principal promessa de campanha e uma das primeiras promessas feitas pelo novo governo de direita… Uma postura que Schlyter vê como um estudo de caso no dogmatismo à prova de factos.

    “Venderam-nos a ideia de que a crise energética será resolvida com a construção de 10 novos reactores nucleares. Mas isso é totalmente absurdo”. O representante sueco da Greenpeace foi claro. “Na Europa Ocidental, a construção de um desses reatores demora, em média, 19 anos e custa cerca de 20 mil milhões de dólares. Ao mesmo tempo, é preciso perceber que os preços da electricidade baixaram nos últimos dois anos. O que significa que 2024 não viu um único mês em que o preço foi superior ao preço máximo garantido que está em vigor há 40 anos! No entanto, o governo ainda pretende destinar 35 mil milhões de euros em subvenções para a construção dos reactores, bem como 55 mil milhões de empréstimos baratos. Não se trata de economia, trata-se de pura política. As próximas eleições terão lugar em 2026, e a coligação no poder quer desesperadamente começar a construir algo antes disso para se poder gabar de cumprir as suas promessas”.

    Schlyter está quase divertido com o governo neoliberal estar a adoptar uma abordagem de ditadura comunista para a construção de novos reactores nucleares.

    Área onde será feita a mineração no futuro. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Em todo o mundo, o negócio do urânio é controlado por Estados e governos”, explicou. “Actualmente, existe apenas uma empresa privada que se dedica ao enriquecimento de urânio. Situa-se nos EUA e não está muito bem. Os governos do mundo ditam os preços e controlam o mercado. Mesmo os franceses estão agora a enriquecer menos urânio – a sua procura não é assim tão elevada. Até agora, tem havido muito pouco investimento. O nosso governo afirma que os recentes desenvolvimentos geopolíticos estão a aumentar a procura de urânio e que a tendência só irá aumentar no futuro. Ao mesmo tempo, as estimativas oficiais do custo dos novos reactores são demasiado baixas para metade. O governo também prometeu que não faremos negócios com a Rússia. Mas, mais cedo ou mais tarde, haverá paz com a Rússia, certo? E então os nossos novos e brilhantes reactores poderiam facilmente ir à falência, uma vez que estariam a produzir quantidades totalmente supérfluas de combustível de urânio”.

    De acordo com Schlyter, o projecto proposto foi mal pensado desde o início. “Temos zero instalações de enriquecimento de urânio. Não temos fábricas de processamento de minério. Podemos abrir uma centena de novas minas de urânio, mas pouca coisa mudará – a Suécia continuará a ser incapaz de produzir o seu próprio combustível nuclear”.

    A sua principal preocupação prende-se com a forma como quantidades cada vez maiores de fundos públicos são afectadas à energia nuclear, enquanto as fontes renováveis são subnutridas. Pouco antes do Ano Novo, por exemplo, as autoridades suecas suspenderam a construção de 13 novas turbinas eólicas no Mar Báltico.

    “No que diz respeito às energias renováveis, costumávamos ser um dos países mais bem-sucedidos do mundo”, lamentou Schlyter. “Mas quando o governo se empenhou na opção nuclear, criou-se um certo vazio – que pode durar os próximos 20 anos”.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Carl Schylter acredita que a história da mineração – tanto na Suécia como em outros lugares – mostra claramente a inevitabilidade da poluição da água potável.

    “Na Suécia, onde há urânio, geralmente também há água de alta qualidade”, alertou. “A legislação europeia proíbe a redução da qualidade da água. Este poderia ser o elemento protector. Em tempos de crise climática, a água é um recurso natural fundamental”.

    Como muitos dos habitantes de Oviken, o activista da Greenpeace vê os planos de mineração pendentes como uma forma de colonialismo: “Não é a primeira vez na História que a Suécia pretende colonizar as terras dos seus povos indígenas. Uma parte da elite dominante acredita que a resistência das comunidades locais pode ser quebrada com uma abordagem colonial. Mas as comunidades locais estão longe de estar desamparadas. As pessoas aqui estão conectadas. Trabalham em conjunto. Também têm os seus próprios deputados. O colonialismo é mais facilmente combatido através de uma comunidade local empoderada”.

    Uma nova forma de colonialismo

    Åsa Gustafsson é proprietária de uma quinta perto de Oviken, uma herdade com 65 vacas e vitelos. Ela é a quarta geração de sua família a trabalhar os cerca de 150 hectares de solo excepcionalmente fértil. A sua propriedade está localizada ao lado do lago Storsjön, que fornece água para Östersund, o famoso ‘resort‘ de desportos de Inverno. A fazenda de Gustafsson é totalmente dependente da água do lago.

    Åsa Gustafsson, proprietária de uma quinta. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Os primeiros representantes das empresas mineiras começaram a vir para cá com maquinaria de perfuração já há trinta anos”, contou o agricultor sueco. “Mesmo assim, procuravam urânio – entre outras coisas. Fizeram muitas perfurações, incluindo algumas no nosso terreno. Mas depois ficámos em paz até Abril de 2023, quando recebemos a carta”.

    Estando junto de um dos estábulos arrumados, a voz de Gustafsson teve que lidar com uma cacofonia de ‘múús’. “O que mais me assusta é a situação da água”, disse. “Todos os locais de mineração estão localizados um pouco acima do lago, então a poluição estará descendo. E todos os rios, ribeiros e águas subterrâneas fluem para esse lago, bem como sobre as terras agrícolas locais. Mais cedo ou mais tarde, algum tipo de contaminação está garantido. Não recebemos garantias nem das empresas mineiras nem do Estado. Então, certamente não vou assinar nada. Vou ficar aqui”.

    A transição verde foi usurpada e privatizada pelo ‘lobby‘ nuclear, para que as riquezas locais pudessem ser entregues à corporação internacional de mineração. É esta a opinião de Bertil Sivertsson, que dirige a associação de agricultores local. É também membro dos democratas-cristãos – um partido da coligação governamental que parece ser a favor do levantamento da moratória a nível nacional e que se lhe opõe a nível local.

    Bertil Sivertsson, líder de agricultores locais. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Em Estocolmo, parecem acreditar que ninguém vive em Jamtland”, disse”, disse Sivertsson. “Aparentemente, não existimos. É assim que é apresentado às corporações estrangeiras de mineração. Mas a realidade é que a nossa é uma zona com uma história e tradição excepcionalmente ricas… Embora tudo isso possa acabar em breve. Se conseguirem lançar a primeira mina, a caixa de Pandora estará aberta e um efeito dominó será inevitável”.

    “Isso mesmo”, exclamou Åsa Gustafsson. “O que temos aqui é um conflito crescente entre a produção de alimentos e metais e minerais raros… Ou, se preferir, uma guerra entre sobrevivência e lucro. Estamos atualmente a salvar o planeta destruindo-o. A agricultura respeitadora do ambiente e dos animais deve fazer parte da transição verde, e não algo que deva ser casualmente posto de lado por causa dela. Todos sabemos que, aqui, ninguém quer ouvir. Mas vamos continuar a gritar, mesmo assim. Vamos mostrar-lhes que existimos! Espero que os nossos protestos possam realmente fazer uma mudança. Todos os agricultores aqui estão do mesmo lado. Embora deva dizer que a ameaça sempre presente de poluição ou deslocalização torna terrivelmente difícil fazer planos mínimos para o futuro”.

  • Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização

    Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização


    Em 16 de Setembro, o Ministério da Saúde palestiniano publicou um documento de 649 páginas com uma lista de todas as mortes causadas pela punição colectiva israelita de Gaza pelo massacre do Hamas em 7 de Outubro.

    A lista inclui mais de 34 mil das 41 mil vítimas de Gaza. As restantes vítimas ainda não foram identificadas. A lista não inclui as 10 mil pessoas (no mínimo) presas sob os escombros nem todas as vítimas indirectas da agressão israelita. O prazo abrangido pelo documento estende-se até 31 de Agosto. Desde então, pelo menos mais mil habitantes de Gaza foram mortos.

    Ao lado dos nomes das vítimas também estão listados o sexo, número de documento pessoal e idade. Nas primeiras 14 páginas do documento, o número na faixa ‘Idade’ é 0 Zero. São 14 páginas com o nome de crianças mortas antes de completarem o seu primeiro aniversário.

    Foto: D.R.

    No passado dia 9 de Setembro, outro ano escolar deveria ter começado em Gaza. Depois de um ano de horror indescritível, cerca de 640 mil crianças deveriam estar voltando às salas de aula. Cerca de 45 mil teriam ingressado no primeiro ciclo.

    É claro que isso não aconteceu.

    Enquanto 700 equipas das Nações Unidas (ONU) vacinavam em massa as crianças palestinianas contra a poliomielite, cujo ressurgimento em Gaza marca uma forma de eclipse social, as bombas e mísseis israelitas continuavam a chover. No dia em que as aulas deveriam ter começado, o exército israelita invadiu a escola do campo de refugiados de Nuseirat, que funcionava no âmbito do programa Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para a Palestina (UNRWA). Doze mil pessoas que tinham sido expulsas das suas casas encontraram refúgio lá. Vinte e cinco foram mortas no ataque; seis eram funcionários da ONU. Em pouco menos de um ano, 250 trabalhadores humanitários e 170 jornalistas foram assassinados no enclave palestiniano – mais do que em qualquer guerra até agora.

    Este ataque ao que deveria ter sido uma zona segura custou a uma mãe palestiniana todos os seus seis filhos.

    Cerca de 40% das vítimas do massacre israelita em Gaza eram crianças. Outras 20.000 crianças ficaram órfãs ou separadas dos pais. Um ano de destruição indescritível que certamente se estenderá pelas gerações vindouras.

    Foto: D.R.

    Neste momento, nenhum lugar em Gaza é seguro. De acordo com dados da ONU, 93% dos habitantes foram deslocados internamente – a maioria deles várias vezes, alguns deles até 10 vezes. Mais de 80% de Gaza foi devastada. O enclave palestiniano foi praticamente demolido, portanto, tornou-se inabitável durante anos.

    Mais de um milhão de pessoas – um pouco menos de metade da população de uma das áreas mais densamente povoadas do mundo – está a tentar sobreviver nas condições brutais no campo de Al Mawasi, na costa do Mediterrâneo. A maioria deles fugiu para lá depois que o exército israelita lançou uma ofensiva terrestre em Rafah, onde 1,3 milhão de pessoas procuraram refúgio após os primeiros meses da invasão de Israel.

    Em Al Mawasi, os refugiados exaustos, doentes e profundamente traumatizados quase não têm água, alimentos e medicamentos à sua disposição. As condições nos outros abrigos temporários entre as ruínas pós-apocalípticas são praticamente as mesmas. Apenas alguns hospitais em Gaza conseguiram continuar a funcionar. Inúmeras instalações médicas foram saqueadas; centenas de trabalhadores médicos assassinados. Durante semanas a fio, as forças israelitas sitiaram vários hospitais, incluindo o maior deles – Al Shifa.

    A situação dos residentes de Gaza agravou-se ainda mais em Maio, durante a ofensiva terrestre em Rafah, quando o exército israelita assumiu o controlo do lado palestiniano da passagem da fronteira egípcia – e pouco depois também do chamado Corredor de Filadélfia.

    Isto provocou a paralisação quase total da ajuda humanitária, cujo afluxo já tinha sido severamente dificultado pelos bloqueios israelitas. É agora claro que Israel optou por recrutar a fome em massa como mais uma arma no seu arsenal. Neste momento, mais de 70% da população de Gaza está a passar fome, totalmente dependente da ajuda externa que quase nunca chega. Isto é especialmente verdadeiro no caso do isolamento a norte de Gaza, que foi transformado num gueto faminto onde as forças israelitas atacaram comboios humanitários em diversas ocasiões.

    Já há dois meses, a reputada revista médica britânica The Lancet estimou o número total de vítimas directas e indirectas da agressão israelita em 186.000. Ou 8% de toda a população de Gaza.

    Guerras Eternas

    Pode-se perguntar: como pode ser tudo isso?

    As estruturas internacionais não estão a funcionar. As Nações Unidas foram há muito reduzidas a um fóssil vivo que presidiu a um número cada vez maior de genocídios (Ruanda, Srebrenica, Darfur, Gaza, …). O domínio geral dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em combinação com os seus direitos de veto, representam o obstáculo final a qualquer tipo de intervenção competente. Especialmente agora, em tempos de perturbação bipolar global, cujas guerras frias estão agora a fundir-se numa guerra bastante quente.

    As decisões do Tribunal Penal Internacional (ICC) e do Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia perderam há muito tempo quase toda a relevância. O mesmo se aplica ao direito humanitário internacional, às principais convenções internacionais e ao próprio conceito de direitos humanos, que agora parecem meros ecos de uma época passada que talvez nunca tenha realmente existido. Os tempos tornam-se mais distópicos a cada hora – e mais divididos, racistas e estratificados. Todos os contratos sociais há muito existentes estão a desmoronar-se diante dos nossos olhos. É praticamente o mesmo em todo o mundo, e certamente no Ocidente agora quase impossivelmente narcisista.

    Esta é parte da razão pela qual vivemos numa época de guerra eterna.

    Nem uma única guerra iniciada depois do 11 de Setembro de 2001 terminou realmente. No Afeganistão, em Agosto de 2021 assistiu-se ao regresso dos Taliban ao poder, após 20 anos de ocupação norte-americana. Sim, muitos dos combates podem ter acalmado, mas a guerra contra a população afegã está longe de terminar. A invasão do Iraque pela “coligação” em Março de 2003 – seguida de uma ocupação e de uma guerra civil selvagem – enviou ondas de choque por toda a região. Os ecos da guerra no Iraque tiveram um impacto terrível na guerra sem fim na Síria e nos horrores em curso no Iémen, que a chamada comunidade internacional há muito varria para debaixo do tapete.

    A guerra que eclodiu no Sudão, em Abril passado é uma das guerras mais horríveis do nosso tempo. Segundo dados da ONU, também provocou a maior crise humanitária da história… E não há fim à vista. Tal como aconteceu com os conflitos na Líbia e na República Democrática do Congo. Este último conflito dura desde 1997. Os seus primeiros seis anos custaram seis milhões de vidas.

    E depois há a guerra na Ucrânia, que traz todas as características de mais uma guerra eterna. Ao lado dos massacres diários em Gaza, é o melhor testemunho da total irresponsabilidade da comunidade internacional, que é cada vez mais liderada por psicopatas e até por assassinos em massa.                         

    a yellow car is parked on the side of the road
    Foto: D.R.

    Poucos dias depois das atrocidades do Hamas no sul de Israel, o secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou que os ataques do Hamas “não aconteceram no vácuo“. Foi a descrição mais branda possível de 75 anos de racismo sistematizado, roubo de terras, deslocalizações forçadas, apartheid, humilhação colectiva e violência perpetrada por Israel.

    A manhã de 7 de Outubro trouxe a constatação de que o status quo se foi para sempre. E que uma resposta selvagem de Israel era inevitável. Também era certo que a comunidade internacional não conseguiria encontrar uma resposta. Parafraseando o secretário-geral: o que aconteceu depois dos ataques do Hamas também não aconteceu no vácuo.

    Tudo o que foi dito acima foi perfeitamente compreendido pelos líderes do Hamas, que optaram por ceder à sua própria impotência política e ao estado completamente depravado da política interna palestiniana para levar a sua própria nação à beira da ruína total. Após a sua tomada violenta do poder no Verão de 2007, o Hamas governou o enclave palestiniano com mão de ferro. E também, de mãos dadas com os seus co-progenitores, a elite política israelita.

    Foi a receita perfeita para um desastre total e implacável.            

    Foto: D.R.

    Durante o ano de massacres em massa em Gaza, as autoridades israelitas de extrema-direita lideradas pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não conseguiram alcançar um único dos seus objectivos oficiais. Cerca de 100 reféns israelitas ainda permanecem em Gaza, embora não esteja claro quantos ainda estão vivos e quantos foram mortos pelos seus captores ou pelas bombas e mísseis israelitas.

    Esta é a principal razão por trás dos protestos em massa que ocorrem nas ruas de Tel Aviv e de outras cidades israelitas todos os fins de semana. Em 14 de Setembro, por exemplo, mais de um milhão de israelitas protestaram e exigiram a libertação imediata dos reféns. Não pela força militar, que já se revelou insuficiente, mas através da negociação de um cessar-fogo com o Hamas.

    Depois de um ano de selvageria desenfreada, o exército israelita não conseguiu derrotar o Hamas, nem no sentido militar nem no sentido político. Apesar de ter sofrido enormes baixas, a posição do Hamas na região foi significativamente reforçada. Acima de tudo, nas ruas do mundo árabe, onde ainda existe um mínimo de solidariedade para com os palestinianos… Ao contrário das elites políticas árabes corruptas, que ficaram suficientemente felizes em trair Gaza pelo que parece ser uma última vez.

    Tendo em conta o facto de o Hamas ser indiscutivelmente uma organização terrorista e de as autoridades palestinianas (AP) serem meros subcontratantes da ocupação israelita, os palestinianos não têm ninguém que os represente.

    Israel como uma ameaça a si mesmo

    Apesar de toda a carnificina, Israel ainda está inundada com enormes quantidades de armas.

    Segundo os últimos dados da Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a grande maioria das armas importadas por Israel entre 2019 e 2023 veio dos Estados Unidos (65,6%); 29,7% vieram da Alemanha, 4,7% de Itália. Há dois meses, Washington autorizou uma venda adicional de armas a Israel no valor de 20 mil milhões de dólares.

    De acordo com dados do SIPRI, as vendas combinadas de armas europeias a Israel no ano passado totalizaram 326,5 milhões de euros – 10 vezes mais do que em 2022. Por outro lado, o Ministério da Defesa de Israel admite livremente que Israel exportou 13 mil milhões de dólares em armas em 2023. O seu acordo de armas mais lucrativo foi com a Alemanha, que pagou a Israel 3,5 mil milhões de dólares pelas suas armas. Interceptador de mísseis antibalísticos Arrow 3 sistema.

    No Médio Oriente, tal como em qualquer outro lugar, enriquecer com a guerra é normalmente uma via de dois sentidos.

    Foto: D.R.

    Um ano de violência em Gaza e cada vez mais ao longo da Cisjordânia ocupada também enfraqueceu significativamente o próprio Israel. As suas perspectivas de segurança, sociais, económicas e políticas diminuíram enormemente. Muitos investimentos internacionais foram retirados. Em todos os 76 anos da sua história, Israel nunca esteve tão dividido internamente e insultado globalmente.

    Vale a pena afirmar que Netanyahu e os seus parceiros de coligação de extrema-direita, messiânicos e semelhantes aos Taliban começaram a conduzir o Estado judeu para o seu actual caminho totalitário ainda antes de 7 de Outubro. A sede de poder do primeiro-ministro de Israel nunca foi tão evidente quando tentou aprovar uma forma judicial que colocaria o Supremo Tribunal – o tradicionalmente mais independente e progressista entre as instituições israelitas – inteiramente sob o seu controlo.

    Atenção: a motivação de Netanyahu era mais pessoal do que política. Ainda há um julgamento em andamento sobre suas supostas práticas corruptas.

    Ao longo dos últimos anos, os extremistas governantes liderados por Netanyahu levaram a cabo uma espécie de revolução (anti)cultural em Israel. No entanto, apesar disso, e do facto de as autoridades israelitas terem sido totalmente culpadas pelo fiasco de segurança de 7 de Outubro, o controlo do poder do primeiro-ministro parece mais firme do que era há um ano. Não importa que nenhum dos seus principais objectivos políticos declarados tenha sido alcançado. E não importa que, ao espalhar o conflito ao Líbano, à Síria, ao Irão e ao Iémen, o primeiro-ministro expôs o Estado judeu a um grave risco existencial.

    Em 13 de Setembro, o jornal israelita Maariv publicou uma sondagem segundo a qual Netanyahu e o seu partido ainda ganhariam o maior número de assentos no parlamento. A mesma sondagem também evidenciou que a popularidade pessoal do primeiro-ministro aumentou desde o início da guerra. O público israelita parece considerá-lo o homem mais adequado para o cargo.

    Foto: D.R.

    Mais uma vez: como pode estar a acontecer tudo isto?

    Toda a oposição política genuína no país foi extinta. O que resta é liderado por oportunistas desavergonhados como Beni Gantz, que a Casa Branca há muito escolheu como sucessor de Netanyahu.

    O que hoje em dia passa por oposição é, portanto, cúmplice da orgia contínua de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Palavras semelhantes poderiam ser usadas para descrever uma grande parte dos actuais manifestantes antigovernamentais. O terrível sofrimento dos palestinianos não é algo com que se sintam obrigados a preocupar-se, dado que os seus protestos são sobretudo alimentados por preocupações etnocêntricas.

    Em abril passado, o historiador Amos Goldberg, professor associado da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um artigo muito significativo na revista israelita Sicha Mekommit.  Intitulado, ‘Sim, isso é genocídio‘, o artigo classificava em alto e bom som as acções israelitas em Gaza como genocídio – e depois justificava meticulosamente a afirmação.

    É claro que tal posição exige enorme coragem no Israel de hoje. Os riscos estão longe de ser negligenciáveis.

    Prevalece na sociedade israelita uma atmosfera radical de desumanização dos palestinianos de um nível tal de que não me consigo lembrar nos meus 58 anos de vida aqui.” Goldberg declarou recentemente numa entrevista.

    Goldberg também relatou que a princípio hesitou muito em usar a palavra genocídio e tentou fazer tudo o que pôde para se convencer do contrário. “Ninguém quer ver-se como parte de uma sociedade genocida. Mas havia uma intenção explícita, um padrão sistemático e um resultado genocida – então, cheguei à conclusão de que é exatamente assim que o genocídio se parece”, diz Goldberg.

    Uma vez que você chega a essa conclusão, você não pode ficar em silêncio“, disse o historiador israelita de forma clara.

    Portanto, cabe aos corajosos historiadores locais continuarem dizendo a verdade. Mas quem fornecerá os dados para futuros bravos historiadores? Os jornalistas estrangeiros continuam impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas nacionais estão a ser mortos propositadamente pelo exército israelita.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos

    Médio Oriente: o destino de milhões decidido pelos mais baixos impulsos humanos


    Enquanto políticos, analistas e jornalistas, em estilo desportivo, contam as horas até uma possível grande escalada – uma grande guerra – no Médio Oriente, e enquanto Israel, apesar das indicações de que poderá em breve encontrar-se na maior crise (de segurança) de toda a sua história, continua a cometer assassínios em massa e demolições na Faixa de Gaza, temos de questionar se há algum actor na comunidade internacional, em geral, que esteja a tentar travar o possível curso fatal de eventos. Ou questionar se serão as decisões tomadas pelos líderes apenas um reflexo da natureza humana central e de um estado de espírito completamente despudorado e irreversivelmente desumanizado.

    Depois de o líder político do Hamas, Ismail Haniya, ter sido morto na semana passada em Teerão, onde assistia à tomada de posse do novo presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, as autoridades iranianas, lideradas pelo Líder Supremo Ayatollah Ali Khamenei, anunciaram uma vingança feroz. Um ataque a um convidado do Irão em território iraniano foi um passo que foi longe demais para o gosto das autoridades iranianas – um passo israelita que foi longe demais. Dado que o exército israelita também matou o número um operacional do movimento xiita libanês Hezbollah, Fuad Shukr, em Beirute, poucas horas antes da liquidação da Haniya, prevaleceu imediatamente a narrativa de que uma grande guerra regional com efeitos globais seria praticamente inevitável.

    Todos os passos subsequentes – por todas as partes envolvidas – foram passos para a guerra. Algumas tentativas diplomáticas – lideradas pela dissonância cognitiva e moral dos Estados Unidos, que aumentaram consideravelmente a sua presença militar na região, e pela União Europeia, completamente impotente, que aparentemente desconhece a grande ameaça de guerra à sua porta – revelaram-se patéticas. A sensação de que outra grande guerra já é aceite como um  facto irreversível soa como uma profecia autorrealizável da boca dos principais actores regionais e globais. Uma história pré-contada.

    O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, Nasser Kanani, fez recentemente uma declaração que deverá ficar nos anais da dissonância cognitiva e moral. “O Irão não quer uma escalada na região, mas Israel precisa ser punido pelo assassinato de Ismail Haniya na capital iraniana e evitar mais instabilidade na região.” Sim, é compreensível que o Irão queira vingança. Mas por que razão – da mesma forma, sabendo absoluta e antecipadamente as consequências da sua acção para a sua própria população civil, a liderança do Hamas fez ao atacar o Sul de Israel em 7 de outubro do ano passado – o Irão, com ataques retaliatórios contra Israel, directamente ou através dos seus representantes regionais, faria alguma coisa que certamente afectaria mais a população civil iraniana?

    Tem o regime iraniano conhecimento de que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, tem tentado arrastar o Irão para uma grande guerra há muitos anos – e a um ritmo acentuadamente crescente nos últimos meses – e está pronto a fazê-lo (o mesmo se aplica à propagação dos confrontos com o Hezbollah, à brutalização do apartheid na Cisjordânia ocupada,  o bombardeamento do Iémen, os crimes de guerra em série em Gaza, os ataques a alvos iranianos na Síria e o conflito interno israelita em curso) para ameaçar existencialmente até o seu próprio Estado judeu?

    Os tambores de guerra já ressoam no Irão. A propaganda está em plena forma. Mas o país não é como é por acaso. E os militares também não. Por que – uma vez, para variar – não se fazer o que um homem (líder, país…) é forçado a fazer pela sua natureza?

    brown camel

    O destino de centenas de milhares, o destino de milhões é decidido pelos mais baixos impulsos humanos. As convenções internacionais, o direito internacional humanitário e as principais instituições internacionais, lideradas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, são apenas ecos de ilusões ouvidas há muito tempo. O que nunca foi mais nem menos do que uma ilusão. Talvez… um fantasma.

    Outro motivo para preocupações fortes de que uma grande guerra é inevitável foi a visita “não anunciada” do ex-ministro da Defesa russo e agora o número um do Conselho de Segurança Nacional, Sergei Shoigu, a Teerão: Shoigu e o seu superior são quase os últimos a querer a paz. O último que estaria pronto para pisar no travão. Muito pelo contrário.

    Uma situação muito semelhante – igual – é o apoio inabalável dos Estados Unidos a Israel e a Netanyahu, que há duas semanas no Congresso previu muito claramente o desenvolvimento de acontecimentos que controla remotamente com o seu maquiavelismo e assassínios em massa. Até agora, apenas em Gaza, onde o número de mortos da punição coletiva de Israel aos palestinos está inexoravelmente a aproximar-se de 40.000. Este número não inclui pelo menos 10.000 pessoas desaparecidas e presas entre as ruínas dos terrenos em chamas do enclave palestiniano.

    Boštjan Videmšek é jornalista


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Uma Guerra Fria chegou ao fundo do mar

    Uma Guerra Fria chegou ao fundo do mar

    A Noruega vai abrir o seu fundo marinho à exploração de minérios, prevendo-se o início em 2025. E arrisca ser uma caixa de Pandora. O projecto ameaça colocar em perigo alguns dos ecossistemas menos explorados mas importantes para a dinâmica do planeta. O principal argumento da indústria para a mineração no fundo do mar é a alegada necessidade da ‘transição verde’, mas os efeitos nefastos de ‘mexer’ nas profundezas marinhas não estão sequer avaliados. Oceanógrafos e outros cientistas alertam para a falácia da extracção de minérios em nome do combate à crise climática. O timing da decisão do Governo norueguês, com uma aprovação rápida, não aparenta ser, porém, uma coincidência, enquanto se intensificam vozes belicistas na Europa contra a Rússia. Os mares da Noruega são estratégicos e a exploração de minérios no fundo marinho é algo bastante apetecível para a indústria de armamento. Na generalidade dos países, os riscos da exploração em mar profundo têm levado à instauração de moratórias, para estudar melhores os impactes, sendo que Portugal ficou a meio caminho [ver texto autónomo]. Reportagem do jornalista Boštjan Videmšek em exclusivo para o PÁGINA UM, em Portugal.


    No dia 9 de Janeiro, a proposta sobre a mineração em mar profundo foi aprovada no Parlamento norueguês por uma maioria esmagadora – 80 votos a favor e 20 contra. A Noruega, que se considera um dos países mais verdes do mundo, está assim a caminho de se tornar o primeiro país a abrir uma parte do seu fundo marinho à mineração industrial.

    A pretendida ‘zona económica exclusiva’ norueguesa compreende 281.000 quilómetros quadrados. A mineração está planeada para ocorrer entre 1.500 e 4.000 metros de profundidade, na escuridão perfeita, iluminada apenas por criaturas que produzem luz bioluminescente.

    As profundezas do oceano – incluindo o solo – abrigam alguns dos ecossistemas menos explorados do planeta. Em muitos aspectos, também o mais delicado. A área definida pelo Governo norueguês é o habitat natural de um grande número de espécies animais, incluindo vários tipos de baleias. De acordo com estimativas científicas, a zona também pode ser o lar de milhares de espécies que ainda não descobrimos. Significa que não fazemos ideia daquilo que podemos estar a colocar em risco.

    A paisagem natural bela e única de Lofoten, no Ártico da Noruega, poderia sentir as consequências da mineração em mar profundo.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    As profundezas do mar, na sua maioria inexploradas, são já fortemente influenciadas pelos efeitos das alterações climáticas, da poluição e da pesca excessiva. Na opinião de oceanógrafos e outros cientistas marinhos, a extracção de metais e minerais em nome do combate à crise climática pode colocar ainda mais em risco os ecossistemas de águas profundas.

    Parte da área marcada para mineração encontra-se dentro da plataforma continental norueguesa, enquanto uma parte está nas águas internacionais vizinhas, cujo solo está sob jurisdição norueguesa. Uma parte da área de mineração é o arquipélago ártico de Svalbard – visto pela Noruega como a sua área económica exclusiva, apesar de um tratado internacional de 1920 estipular o uso partilhado com a Rússia, Reino Unido e Islândia, juntamente com vários outros países.

    As empresas norueguesas planeiam utilizar o fundo do mar para a extracção de cobalto, cobre, zinco, magnésio, níquel e uma série de metais raros. Os metais raros estão localizados na crosta de manganês de montanhas subaquáticas, e nas proximidades de fontes hidrotermais activas ou extintas.

    O principal argumento usado pela indústria de mineração em alto mar para conquistar políticos e investidores é que a mineração no fundo do mar é vital para a transição verde. Segundo este ponto de vista, a produção de tecnologias de fontes renováveis e de mobilidade eléctrica exigirá quantidades quase ilimitadas de metais e minerais. A brutal manipulação do ecossistema menos explorado do planeta, mas comprovadamente de extrema sensibilidade, é assim apresentada como o único caminho viável para a descarbonização.

    Um dia norueguês de vergonha

    “Precisamos cortar 55% de nossas emissões até 2030, e também precisamos cortar o resto de nossas emissões após 2030”, disse Astrid Bergmål, secretária de Estado do Ministério do Petróleo e Energia da Noruega, à Mongabay. “A razão pela qual devemos olhar para os minerais do fundo do mar é a grande quantidade de minerais críticos que serão necessários durante muitos anos”, continuou Bergmål. A governante também ressaltou que a mineração em alto mar só ocorrerá se o Governo norueguês determinar que seja conduzida “de forma sustentável e com consequências aceitáveis”.

    A Noruega está longe de ser o único exemplo. As Ilhas Cook, o Japão, a Nova Zelândia e a Namíbia são apenas alguns dos países que também estão a actualizar a sua legislação em matéria de águas profundas.

    O Governo japonês já construiu o primeiro navio destinado à colheita de metais subaquáticos. O projecto deve arrancar até o final da década. Em Novembro passado, as autoridades japonesas declararam que a área designada continha cobalto suficiente para 88 anos e níquel suficiente para 12 anos de necessidades japonesas.

    A China, por outro lado, é o maior proprietário individual de licenças para a exploração e mineração do fundo marinho do Pacífico. A Rússia e a Coreia do Sul também possuem um grande número de licenças – como a Índia, que pretende criar sua própria área exclusiva para mineração em alto mar.

    A sensação de que a indústria está atormentada por uma grande oposição ambientalista pode ser enganadora. A oposição está presente apenas nas regiões ambientalmente sensíveis do mundo ocidental, e mesmo aí as massas não estão exactamente a exigir para que se acabe com a mineração.

    Lofoten, no Ártico da Noruega.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    A secção norueguesa da organização ambientalista World Wide Fund for Nature (WWF) está convencida de que a decisão parlamentar a favor da exploração mineira dos fundos marinhos não cumpre sequer as normas legais mínimas. A WWF decidiu, assim, processar o Governo.

    “A decisão da Noruega de prosseguir com a abertura de vastas áreas oceânicas para mineração destrutiva representa um escândalo governativo sem precedentes”, disse a CEO da WWF-Noruega, Karoline Andaur, há algumas semanas. “Nunca antes vimos um governo norueguês a ignorar tão descaradamente os pareceres científicos e a ignorar os avisos de uma comunidade de investigação oceânica unida. Se esta decisão não for contestada, aceitamos que os políticos possam infringir a lei e gerir os nossos recursos cegamente. Isso criaria um precedente novo e perigoso para a forma como as avaliações de impacto são conduzidas pelos governos atuais e futuros.”

    Até agora, 26 países pediram uma moratória temporária sobre o projecto, incluindo França, México, Dinamarca e Grã-Bretanha. A estes juntaram-se mais de 800 cientistas de 44 países que decidiram escrever uma carta aberta às autoridades norueguesas. “A enorme importância do oceano para o nosso planeta e as pessoas, e o risco de perda em larga escala e permanente de biodiversidade, ecossistemas e funções ecossistémicas, exige uma pausa de todos os esforços para iniciar a mineração do mar profundo”, afirmou Karoline Andaur.

    Os apelos para uma moratória foram mesmo ecoados por numerosas empresas globais como a BMW, Microsoft, Ford e Google. O Banco Europeu de Investimento retirou da sua carteira os investimentos em mineração de minerais marinhos devido aos seus potenciais impactos climáticos e naturais.

    Embora a Noruega não seja membro da União Europeia, em Janeiro a Comissão Europeia lançou um apelo a Oslo para proibir a mineração em alto mar até que se saiba mais sobre seus prováveis efeitos. E até que seja claramente provado que a mineração não prejudicará os ecossistemas marítimos. Em Fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou por unanimidade uma resolução altamente crítica dos planos noruegueses.

    Animação de mineração em alto mar.
    (Foto: Imagem da empresa Loke)

    “A mineração no fundo do mar pode colocar em perigo algumas das áreas mais sensíveis e vulneráveis do mundo”, disse-me Peter Haugan, diretor político do Instituto de Investigação Marinha da Noruega e director do Instituto Geofísico da Universidade de Bergen. “O dia em que a Noruega decidiu tomar esta atitude foi um dia muito triste para o nosso país.”

    Haugan está convencido de que a decisão das autoridades norueguesas está em desacordo com a lei: “Não foram previamente recolhidas provas científicas suficientes sobre as prováveis consequências”. Segundo Haugan, os políticos agiram de forma precipitada. As respetivas licenças serão atribuídas em breve e as empresas requerentes não possuem capacidade para explorar adequadamente a área separada para a exploração mineira dos fundos marinhos.

    “Em absoluto, é demasiado cedo para a emissão de licenças!”. Haugan foi taxativo. “Sabemos realmente muito pouco sobre os ecossistemas a tais profundidades, e também sobre o próprio fundo do mar. Há muita coisa que não sabemos! E o mesmo vale para as espécies animais que podem ser encontradas lá. Estamos a falar de um ambiente extremamente sensível e frágil, que não compreendemos. Os riscos são enormes. A mineração está planeada para ocorrer em níveis significativamente mais profundos do que os de nossos actuais poços de petróleo e gás, onde os riscos são pelo menos um pouco conhecidos!”

    Haugan acredita que seriam necessários cerca de 10 anos para uma exploração suficientemente séria dos ecossistemas de águas profundas. O mesmo se aplica a um exame suficientemente sério dos riscos mineiros a longo prazo.

    O diretor do Instituto de Investigação Marinha da Noruega teme que o exemplo norueguês possa encorajar outros países com ambições semelhantes. Também acredita que o Governo norueguês pode estar a apressar o processo de emissão de licenças para fortalecer seu controle sobre o Ártico, especialmente o arquipélago de Svalbard. “As preocupações territoriais podem estar a desempenhar um papel importante. Embora isso seja actualmente mera especulação da minha parte.”

    Haugan espera que o processo de exploração dos fundos marinhos enfrente uma resistência crescente por parte da comunidade ambientalista. Também duvida muito da viabilidade económica do negócio. “Serão necessários investimentos tremendos, do tipo que até as grandes empresas de gás e petróleo, como a empresa estatal norueguesa Equinor, desconfiam. Para os grandes investidores, ainda há muitas incógnitas.”

    Em nome da transição verde

    A organização Environmental Justice Foundation (EJF) declarou recentemente que a decisão da Noruega representava “uma marca negra irrevogável na reputação da Noruega como um Estado oceânico responsável”. Um relatório da EJF afirma que a mineração em alto mar não é necessária para a transição energética. De acordo com o relatório, os actuais objetivos climáticos da humanidade poderiam ser alcançados através de uma combinação de novas tecnologias, economia circular e reciclagem. Desta forma, a nossa procura de metais e minerais poderia ser reduzida em 58%. O EJF está firmemente convencido de que os benefícios potenciais da mineração em alto mar não compensam certos danos para o meio ambiente.

    Como já foi referido, a Greenpeace classificou a votação parlamentar de Janeiro como um dia da vergonha. “É embaraçoso ver a Noruega posicionar-se como líder oceânico enquanto dá luz verde à destruição dos oceanos nas águas do Ártico”, afirmou o gestor de projectos da Greenpeace Noruega, Frode Pleym. A sua visão é ecoada por Haldis Tjeldflaat Helle, líder da campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic.

    “O Governo parece estar com muita pressa”, disse-me Helle, em Oslo. “A sua pressa na emissão de licenças sugere que quer fazê-lo o mais rapidamente possível. O concurso saiu no final de Abril. A data limite para inscrições era 21 de maio. Com todos os feriados nacionais pelo meio, o concurso só esteve aberto durante onze dias úteis. Na indústria petrolífera, o período normal é de dois meses”.

    De acordo com Tjeldflaat Helle, a janela excepcionalmente curta para o concurso sugere que o Governo sabia que as empresas já estavam preparadas. Também acredita que o Executivo está a apressar o processo devido às eleições parlamentares do próximo ano – com a actual coligação a querer “cimentar” a decisão de abrir uma grande parte do fundo marinho do Ártico para exploração.

    De qualquer modo, três ‘start-ups‘ apresentaram um pedido de licença de pesquisa. As nossas fontes acreditam que o Governo norueguês poderá anunciar a sua decisão já em Julho ou, o mais tardar, até ao final do Verão. Depois disso, a legislação exige um prazo de 90 dias para consulta e debate público. As primeiras licenças deverão, por conseguinte, ser emitidas no primeiro trimestre do próximo ano. O que significa que a exploração real do fundo do mar pode começar em 2025.          

    Haldis Tjeldflaat Helle lidera uma campanha contra a mineração no mar profundo da Greenpeace Noruega.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Ao conversar com os representantes da enorme indústria, fica-se com a impressão de haver uma confiança esmagadora. “A confiança deles está apenas na superfície”, advertiu Haldis Tjeldflaat Helle. “Tenho a certeza de que eles estão bem cientes do quanto de adivinhação está em jogo. Há tantas incógnitas! Especialmente no que diz respeito ao funcionamento dos equipamentos que estão a desenvolver”.

    Como muitos dos seus pares, Tjeldflaat Helle está profundamente perturbada com o facto de que as empresas de mineração negligenciaram a inclusão de um plano de exploração a longo prazo do fundo do mar e das profundezas onde residem numerosas espécies animais desconhecidas. “Normalmente, são necessários oito a 10 anos apenas para classificar e descrever uma nova espécie animal. E, lá em baixo, certamente serão tantas! Noventa e nove por cento da área destinada à mineração está inexplorada. O Governo afirma que a extracção será realizada com a máxima responsabilidade ambiental. Mas como podem dizer isso com tão pouca informação?!”

    Para Tjeldflaat Helle, o argumento de que o projecto faz parte da transição verde não resiste ao escrutínio. “A transição verde deve levar a sério a preservação do meio ambiente, e não atacar cegamente ecossistemas completamente inexplorados! Isto não faz qualquer sentido, o que é comprovado pela resposta unânime dos ambientalistas noruegueses e internacionais. A mineração em alto mar representa um risco tremendo para a diversidade biótica. Na verdade, é também um enorme risco do ponto de vista das alterações climáticas, uma vez que o oceano serve de sumidouro de carbono.”

    A líder da Campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic também não está convencida da viabilidade económica do projecto. Helle é rápida em alertar que as descobertas de diferentes levantamentos geológicos se contradizem enormemente.

    Ao mesmo tempo, a mineração do fundo marinho do Ártico seria diferente da mineração do Pacífico – muito mais agressiva. De acordo com Tjeldflaat Helle, isso implicaria muitos equipamentos novos. “Não esqueçamos que partes da área designada estão localizadas até 500 quilómetros da costa mais próxima. Trabalhar nas águas longínquas do Ártico será extremamente exigente, e o alcance limitado dos helicópteros de resgate é apenas parte da razão pela qual também será muito perigoso. Serão necessários enormes investimentos apenas para garantir a segurança da força de trabalho”.

    A economia e o bem-estar da Noruega foram construídos com base no petróleo e no gás.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    A cada novo dia, Tjeldflaat Helle está ainda mais convencida de que a abordagem do Executivo norueguês para a mineração em alto mar é a mais irresponsável entre as partes interessadas. “Devo repetir que toda a comunidade ambientalista está extremamente preocupada. Um projecto tão importante deve basear-se na transparência e na responsabilidade. Até agora, não foi esse o caso. Mesmo algumas das perguntas mais básicas que dirigimos aos decisores não foram respondidas. E, no entanto, estão prestes a começar a distribuir licenças!”

    Com tão pouco apoio entre os ambientalistas, como é possível que o projecto tenha recebido luz verde? É certamente curioso que a mineração em alto mar pareça ser apoiada apenas por políticos.

    “É uma questão do contexto norueguês específico”, explicou Tjeldflaat Helle. “O primeiro-ministro – o líder do Partido Trabalhista, Jonas Gahr Støre – é um grande apoiante do projecto. Ele tem muito capital político investido nisso. Antes da votação parlamentar, houve muita disputa entre vários Ministérios. A mineração dos fundos marinhos é uma questão controversa mesmo dentro das fileiras governamentais. O único Ministério firmemente a favor do projecto foi o Ministério da Energia. É assustador que a ideia tenha sido aprovada pelo Parlamento de qualquer maneira, uma vez que sugere que a vontade do primeiro-ministro foi o factor decisivo.

    Por outro lado, a Noruega é a terra do petróleo e do gás. Os líderes destas indústrias exercem uma grande influência na nossa sociedade, tanto formal como informal. Quando olhamos para as empresas que decidiram candidatar-se, podemos dizer com segurança que uma parte das indústrias mencionadas decidiu embarcar no ‘comboio mineiro’. Mas há tanta coisa que simplesmente não sabemos. Tanto os ambientalistas como os jornalistas têm muita dificuldade em chegar às pessoas que estão a tomar estas decisões. Em geral, apenas nos remetem para algum burocrata inferior ou outro”.

    Todos os dias, Tjeldflaat Helle fica cada vez mais horrorizada com a falta de transparência, dado que a Noruega gosta de se orgulhar de ser um dos países mais democráticos que existem. “Talvez o mais arrepiante de tudo seja o facto de o Governo ter decidido por uma posição pública segundo a qual a resposta negativa do Parlamento Europeu foi causada por ambientalistas que espalham desinformação”.

    Os pescadores noruegueses são contra o projecto.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Muitos ambientalistas noruegueses acreditam que as autoridades de Oslo esperavam ingenuamente que a história da mineração em alto mar passasse abaixo do radar do público. No entanto, a resposta dos ambientalistas foi rápida e contundente – tanto a nível interno como externo.

    “Espero que tudo isso ainda possa ser interrompido”, confidenciou Tjeldflaat Helle. “Em princípio, as licenças em questão só dizem respeito à exploração. As licenças de mineração estão condicionadas à comprovação de que o processo não seria muito prejudicial para o ambiente. Ainda há uma hipótese de que o Governo decida dar um passo atrás. E o próximo Executivo também pode reverter as mudanças na Lei. É apenas uma questão de vontade política.”

    Neste Verão, a Greenpeace pretende levar um veleiro cheio de cientistas para a área designada do Ártico para realizar suas próprias pesquisas. A viagem pode ser vista como o início da campanha contra a mineração em alto mar, e será seguida por navegar ao longo da costa norueguesa e aumentar a consciência pública.

    A brincar com o futuro

    Uma sucessão de governos noruegueses tem vindo a considerar a ideia de exploração em alto mar pelo menos nos últimos oito anos. A situação tornou-se grave com a aprovação da Lei dos Minerais do Mar em 2019. “O acto é apenas uma estrutura que pode ser usada para muitos propósitos”, disse-me a bióloga marinha Kaja Lønne Fjærtoft. “Em 2020, a Noruega aprovou uma lei abrindo a área designada. O acto exige uma estimativa holística dos efeitos para o ambiente, para a economia e para a comunidade. Só se a estimativa for favorável é que os políticos podem decidir sobre os próximos passos. Isto também é apoiado pela Lei Mineral do Mar, que afirma que, em caso de dados insuficientes, é necessário um estudo mais aprofundado.”

    Como alguém que trabalhou para o Ministério da Energia norueguês, Lønne Fjærtoft está intimamente familiarizada com o funcionamento da indústria fóssil norueguesa e da burocracia do país. Há cerca de 30 meses, decidiu juntar-se à  organização World Wide Fund (WWF) for Nature, onde lidera agora a campanha contra a mineração em alto mar.

    O Governo norueguês anterior separou uma área de 600.000 quilómetros quadrados para a mineração do fundo do mar. Uma grande parte da área não faz parte da zona económica exclusiva norueguesa, onde a Noruega tem direito apenas aos recursos no fundo do mar, enquanto tudo acima do fundo é considerado águas internacionais. Estas águas acolhem actualmente barcos de pesca de vários países, muitos dos quais já manifestaram uma oposição fervorosa às intenções mineiras norueguesas.

    Não há dúvida de que a mineração em alto mar perturbaria o funcionamento normal das águas internacionais de várias formas. Esta é uma das razões pelas quais a decisão norueguesa causou tanta celeuma junto da comunidade internacional.

    Kaja Lønne Fjærtoft, líder da campanha WWF Deep Sea Mining.
    (Foto: WWF)

    A Agência Norueguesa do Ambiente, um organismo governamental, respondeu à ambição dos planos mineiros notificando os decisores de que dois anos não eram suficientes para a preparação de uma avaliação de risco suficientemente sólida.

    Poucos ou nenhuns dados estão disponíveis para quase toda a área designada. “Há partes onde a profundidade exacta do mar nem sequer foi medida”, explicou Lønne Fjærtoft. “A própria análise do Governo confirma que, ‘devido às lacunas no nosso conhecimento’, uma estimativa holística do risco é actualmente impossível. Só esta afirmação exige legalmente que iniciem um estudo mais aprofundado. Mas não o fizeram. No entanto, reduziram a área potencial de mineração para 281.000 quilómetros quadrados. O motivo? Uma análise tendenciosa indicou que esta área reduzida era rica em minerais desejáveis. A análise dos recursos naturais pela Direção Norueguesa de Offshore foi realizada sem consulta pública. Isso causou uma enorme revolta entre numerosas organizações ambientalistas, que viram a abordagem governamental como completamente irresponsável.”

    A Agência Norueguesa do Ambiente considerou a referida análise inválida, uma vez que não preenchia determinados critérios europeus. Segundo a Agência, a análise também não atendeu às exigências do artigo 22 da Lei dos Minerais do Mar, que elenca claramente os critérios para uma análise válida dos efeitos sobre o meio ambiente. Além disso, a Agência declarou que a análise violava os princípios de precaução e a legislação norueguesa em matéria de biodiversidade.

    “Foi a declaração mais contundente da Agência em toda a sua história”, relatou Lønne Fjærtoft na filial norueguesa da WWF, no centro de Oslo. “Na verdade, usaram a palavra ‘ilegal’! Até mesmo a petrolífera estatal Equinor começou a pedir cautela ao Governo.”

    A WWF-Nordic e outras organizações ambientalistas esperavam que a sua revolta instigasse as autoridades de Oslo a conduzir mais investigações. No entanto, isso não aconteceu. Muito pelo contrário: em Janeiro, o Executivo submeteu o projecto a votação e o Parlamento aprovou-o por larga maioria.

    Muitos dos activistas e cientistas com quem falei, incluindo Kaja Lønne Fjærtoft, acreditam que os deputados foram induzidos em erro – que não lhes tinham sido apresentadas todas as informações relevantes. Eles podem ter sido enganados pela insistência do Governo de que se tratava principalmente de uma questão de exploração. Várias fontes disseram-me que, desde então, alguns dos deputados se arrependeram de terem aprovado a proposta… Mas apenas em privado. Até agora, nenhum deles tentou expiar publicamente o erro.

    No entanto, a portas fechadas, o ministro das Relações Exteriores, Espen Barth Eide, classificou o projecto de mineração em alto mar como a maior mancha na imagem pública norueguesa da História. “Antes da votação, alguns dos deputados nunca tinham ouvido falar da exploração mineira dos fundos marinhos”, explicou Lønne Fjærtoft. “O Governo tentou manter o tema abaixo do radar de todos, e os deputados simplesmente aprovaram o que lhes foi dito para aprovar.”

    red and white ship on sea under white clouds during daytime
    Svalbard (Foto: Alena Vavrdova)

    Lønne Fjærtoft também partilhou os seus receios sobre o que pode acontecer caso o projecto seja interrompido. Irão as empresas licenciadas em fase de arranque, depois de terem investido enormes quantias de dinheiro, decidir processar o Estado por terem sido induzidas em erro?

    “As empresas privadas interessadas na mineração em alto mar são movidas puramente por motivos financeiros”, garantiu Lønne Fjærtoft. “A sustentabilidade não lhes diz minimamente respeito. A nossa mensagem para o Executivo foi: não sabe o que está a a fazer! O Instituto Norueguês de Pesquisa Marinha afirmou claramente que 99% da área designada estava completamente inexplorada. Por isso, tentámos pressionar o Governo a realizar mais estudos. Durante um ano e meio, apontámos enormes incoerências e até violações da lei. No final, decidimos processar o Estado norueguês. Foi uma decisão difícil, mas tivemos que considerar que as acções do nosso Governo poderiam ser usadas como precedente em outro lugar.”

    Primeiro, a WWF alertou o Executivo, esperando que isso pudesse dissuadir os governantes de prosseguirem com novas acções. Todas essas esperanças foram em vão: simplesmente rejeitaram todas as reivindicações da WWF. Assim, em Maio, os ambientalistas finalmente entraram com uma acção a sério. A lei exige que os tribunais realizem a primeira ronda de audições no prazo de seis meses.

    Apenas alguns dias após a apresentação da acção, o Governo iniciou o processo de licenciamento. Portanto, é preciso questionar o que acontece caso a acção judicial seja bem-sucedida. O projecto pode ser interrompido após a concessão das licenças e a exploração dos fundos marinhos estar bem encaminhada?

    “Não sabemos”, respondeu Lønne Fjærtoft. “Não se trata apenas de uma questão de legislatura interna; é também uma questão de direito internacional. É preciso entender que esta é a pior decisão que qualquer Executivo norueguês já tomou em relação ao meio ambiente. Os oceanos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Arriscar a sua segurança significa brincar com o futuro!”

    Os cientistas receiam que qualquer forma de exploração do fundo do mar – com as suas montanhas subaquáticas, onde o magma quente frequentemente irrompe das fontes hidrotermais para água gelada – possa causar enormes danos. A mineração causaria o aumento de enormes quantidades de sedimentos, o que provavelmente perturbaria as rotinas das populações de águas profundas de bactérias, algas, esponjas, baleias e golfinhos – para citar apenas algumas espécies.

    Os países vizinhos da Noruega também poderão ser afetados. O mesmo se aplica a todo o Ártico, incluindo as suas margens. De acordo com os planos actuais, a mineração em alto mar da Noruega seria mais invasiva do que a do Pacífico.

    snow covered mountain near body of water
    Svalbard (Foto: Lloyd Woodham)

    A velocidade que o Governo norueguês está a impor ao projecto é extremamente preocupante para os ambientalistas. Apesar dos anos que passou como ‘insider‘, Lønne Fjærtoft admite que não compreende totalmente a pressa. “O projecto é empurrado de forma mais agressiva pelo Ministério da Energia”, disse-me. “Mais especificamente pelo próprio ministro da Energia.”

    A líder da campanha contra a mineração em mar profundo também destacou os enormes esforços que as autoridades norueguesas têm investido para acalmar a comunidade internacional. A Noruega enviou recentemente uma delegação a Kingston, na Jamaica, onde se situa a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA). A delegação era composta por três representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dois do Ministério da Energia, um da Direcção Offshore e nenhum da Agência Ambiental. O objetivo oficial da visita era, naturalmente, garantir “os mais elevados padrões ambientais”.

    Os proponentes do projecto de mineração em alto mar estão claramente interessados em impedir uma proibição internacional. Embora tal proibição não pareça muito provável, a ofensiva diplomática de Oslo contra a ISA ainda pode ser interpretada como uma tentativa de antecipar estrategicamente as acções daquele órgão internacional.

    A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos funciona no âmbito das Nações Unidas e deverá aprovar o seu veredicto final sobre a mineração em mar profundo em 2025. Está também a ser preparado um regulamento para a exploração mineira em alto mar. Actualmente, a prática não é proibida em águas internacionais. A iniciativa para a formação do regulamento foi dada pelo pequeno Estado insular de Nauru, um dos ‘Estados patrocinadores’ para os beneficiários de licenças de exploração mineira em mar profundo.

    O contexto geopolítico

    Assim que desligava o meu gravador, muitas das minhas fontes mostraram-se ansiosas para falar sobre as razões negligenciadas e difíceis de provar pelas quais uma parte da elite política e económica norueguesa está a curvar-se para garantir o controle sobre os recursos naturais no Ártico.

    As razões, muitos acreditam, são principalmente geopolíticas.

    A Noruega pretende reforçar a sua posição nos confins setentrionais do globo, não só devido à abundância de recursos naturais, mas também devido à rápida escalada das tensões entre os Estados Unidos e a Rússia. A Noruega partilha a sua fronteira ártica com a Rússia, enquanto o tratado de Svalbard é suficientemente frouxo para deixar margem para várias interpretações. A última vez que a Noruega expressou publicamente a convicção de que tem direito a uma interpretação mais generosa foi em 2007 – quando o actual primeiro-ministro Jonas Gahr Støre era ministro dos Negócios Estrangeiros.

    A situação actual lembra muito o tempo da Guerra Fria. Naquela altura, como hoje, uma Noruega altamente militarizada era considerada como um dos principais membros – e territórios da NATO. “O momento não é coincidência”, disseram-me as minhas fontes norueguesas. Os próprios territórios do Norte são considerados tão vitais como os recursos localizados abaixo do fundo do mar.

    Para compreender o contexto geopolítico da mineração em mar profundo, as seguintes informações podem ser úteis. Três das cinco empresas de armamento que recebem os maiores investimentos financeiros da Comissão Europeia – através da ASAP (Act in Support of Ammunition Production ou Lei de Apoio à Produção de Munições, em português) e da EDF (Fundos Europeus de Defesa) – estão sediadas na Noruega: Nammo (Nordic Ammunition Company), Nammo (Raufoss) e Kongsberg (Defence and Aerospace AS). Através da  empresa Rheinmetall Nordic AS, a Noruega está também ligada à alemã Rheinmetall, o maior beneficiário de contratos europeus de defesa.

    Resumindo: a Noruega está no bom caminho para se tornar o principal parceiro da União Europeia na produção de armas.

    A  empresa Kongsberg, parcialmente detida pelo Estado norueguês, é o maior investidor individual na empresa norueguesa de mineração em mar profundo Loke. A Kongsberg é o maior produtor mundial de sistemas militares de longo alcance. É também o parceiro estratégico da canadiana The Metals Company, actualmente o ‘player’ mais forte no mercado global de equipamentos de mineração em alto mar.

    Lofoten, no Ártico da Noruega.
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    A ‘start-up’ canadiana é vista como a mais avançada quando se trata de desenvolvimento de tecnologia e mineração do fundo do mar. No final de 2022, realizou uma escavação teste das primeiras 3.000 toneladas de rochas e pedras do fundo do mar. Este ano, a The Metals Company deve solicitar uma licença para iniciar a mineração em escala industrial.

    Walter Sognnes, CEO (presidente-executivo) da Loke, é geofísico por formação. Depois de mais de três décadas na indústria petrolífera, passou os últimos 20 anos a trabalhar como empresário focando-se nas transações petrolíferas na Noruega e na Grã-Bretanha. Há cinco anos, decidiu embarcar no comboio de transição verde, como muitas pessoas que costumavam trabalhar para a indústria do petróleo.

    Nas próprias palavras de Sognnes, a razão por detrás da sua mudança de carreira foi a sua percepção da “interessante convergência entre as indústrias de petróleo e gás e potenciais projectos de mineração em alto mar”. Por isso, foi cofundador da empresa Loke.

    “No início, decidimos concentrar-nos na Noruega”, lembrou Sognnes. “Conseguimos atrair uma série de investidores poderosos – do tipo ‘smart-money‘, aqueles que trazem dinheiro e novas tecnologias. Juntamente com os nossos parceiros, temos desenvolvido tecnologias de mineração e tecnologias para exploração do fundo do mar com o objetivo de causar danos mínimos ao meio ambiente.”

    Através do registo na Grã-Bretanha, a Loke já obteve duas licenças para a exploração e mineração da Zona Clarion-Clipperton, localizada em águas internacionais entre o México e o Havai. Acredita-se que o fundo marinho da zona seja o mais rico do mundo em metais e minerais. A empresa norueguesa conseguiu obter as duas licenças através da compra de uma empresa anteriormente detida pelo gigante norte-americano do armamento Lockheed Martin. No processo, a Loke transformou-se num dos principais detentores de licenças na gigantesca Zona Clarion-Clipperton, que se pode tornar a Arábia Saudita da mineração subaquática.

    Em 21 de Maio, a Loke enviou uma proposta ao Executivo norueguês, na qual listou as áreas árticas consideradas mais adequadas para mineração. “Os locais para exploração e potencial mineração devem ser escolhidos este Outono”, apontou Sognnes. “As coisas devem avançar relativamente rápido dado que a legislação norueguesa sobre minerais é quase uma cópia da legislação que rege a indústria de petróleo e gás. Mas a referida indústria desenvolveu-se ao longo de várias décadas, enquanto a indústria mineira em mar profundo está apenas a ser formada. Acho que isso significa que teremos que nos adaptar à medida que avançamos.”

    Dissonância cognitiva norueguesa

    Sognnes acredita que as primeiras licenças de exploração serão emitidas no início de 2025.

    É assim que ele descreve a sua motivação para ter entrado no negócio de mineração em alto mar: “A Noruega tem uma longa história de falar sobre mais cedo ou mais tarde ter que fechar a indústria de petróleo e gás e procurar alternativas. Mas não podemos simplesmente fechar a nossa maior indústria! Os engenheiros petrolíferos deveriam procurar novas formas de emprego mais verdes. Mas que tipos de empregos seriam esses, exactamente? Foram apresentadas muito poucas propostas específicas. Dado o nosso vasto conjunto de excelentes quadros, isso despertou a minha ideia de criar uma empresa de mineração de fundos marinhos. Quero ajudar a construir esta nova indústria, que tem muito em comum com a indústria petrolífera. A transição verde só será possível se forem assegurados recursos suficientes para as suas tecnologias.”

    Na opinião de Sognnes, a indústria norueguesa de mineração em mar profundo não precisa da indústria de mineração quando se trata de exploração, escavação e transporte de recursos para a superfície. Todo o ‘know-how’ e equipamento necessários estão nas mãos da indústria petrolífera.

    “É muito diferente do que na superfície”, disse Sognnes, continuando a listar os argumentos para a exploração do fundo do mar. “Se queremos manter o mundo ocidental competitivo com a China no contexto da transição verde, temos de criar a nossa própria linha de abastecimento. E uma adequada, abrangendo todos os elos desde a mineração até o processamento e a fabricação de produtos finais. A China controla actualmente a maior parte das minas e dos recursos naturais que nelas se encontram. Devido a razões ambientais e comerciais, o Ocidente desistiu quase totalmente da mineração e processamento, meio que realocando-os ou transferindo-os para a Ásia … Portanto, agora estamos muito atrasados na frente dos recursos naturais. E a procura certamente só aumentará e aumentará.”

    Walter Sognnes, CEO da Loke.
    (Foto: D.R./Loke)

    “O Ocidente tem padrões excepcionalmente elevados de proteção do ambiente, o que é excelente. Também temos uma mentalidade de ‘não no meu quintal!’. Essa mentalidade é parte da razão pela qual a maior parte da mineração foi feita longe de nossos olhos e mentes. Não nos importávamos. Mas quando as imagens da escavação de cobalto na República Democrática do Congo chegam ao público, há um enorme clamor”, disse Walter Sognnes, a dissecar a dissonância cognitiva e moral em jogo em todo o mundo ocidental.

    O CEO da Loke está ciente da forte oposição nacional e internacional a incursões agressivas no mundo natural. Especialmente nos seus impactos desconhecidos. Segundo Sognnes, a fase de exploração deve ser bastante fácil, ou seja, tecnologicamente pouco exigente. E também barata. Não é difícil localizar minerais e metais na crosta de manganês. O mesmo vale para a localização das áreas onde a mineração deve se mostrar comercialmente viável. A tecnologia usada pela indústria de petróleo e gás – como submarinos sem tripulação e drones navais – já está disponível.

    Sognnes acredita que a fase de exploração, incluindo a marcação do fundo do mar e o aprofundamento da nossa compreensão dos ecossistemas de águas profundas, deve demorar entre três e cinco anos.

    “Até lá, tanto o plano ambiental como o plano mineiro estarão prontos. Caso o Governo confirme esses planos, o processo de produção poderá começar dois anos depois. A tarefa mais exigente é estabelecer um processo de produção eficiente com um impacto mínimo no meio ambiente. Uma vez que os recursos sejam trazidos para a costa, precisaremos da infraestrutura para processá-los. Este é actualmente o nosso maior desafio, uma vez que a referida infraestrutura não existe. O que havia, fechámos. O que significa que temos de construir de raiz. Hoje, a maioria dos minerais são processados na China. Mas se os enviarmos para lá, não teremos conseguido nada. O mundo ocidental precisa de reagir o mais rapidamente possível”, afirmou Sognnes.

    Na sua opinião, o monopólio chinês é um grave problema geopolítico e económico. “Somos bastante vulneráveis. Quer queiramos quer não, a nossa transição verde está firmemente ligada à nossa indústria mineira. Não vejo a abertura de novas minas na densamente povoada Europa e nos Estados Unidos. As nossas melhores minas estão encerradas há décadas. Então, o que devemos fazer? Esta pergunta é melhor dirigida aos geólogos. E a resposta que eles encontraram está no fundo do mar, com sua abundância de metais e minerais. É claro que precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para optimizar os equipamentos, a fim de proteger a natureza. Se conseguirmos isso, e se formos capazes de ganhar a confiança das pessoas, então estamos olhando para o nascimento de uma nova indústria incrivelmente benéfica”, disse o CEO da Loke em resposta aos críticos da mineração no fundo do mar Ártico.

    O empresário norueguês está bem ciente de que o sucesso do projecto estimularia o desenvolvimento em países concorrentes como a China, a Índia e a Rússia, onde acredita que as autoridades terão pouca simpatia pelas preocupações ambientalistas. “A transição verde não significa apenas ‘desligar-nos’ das fontes de energia fósseis. Na verdade, significa substituir a indústria fóssil pela indústria mineira. Isto é uma espécie de paradoxo.”

    Qual é, então, a sua resposta às preocupações inteiramente justificadas do público sobre os potenciais danos irreparáveis para o ambiente? Que tipo de garantias pode oferecer?

    Animação de mineração em alto mar (Foto: Imagem da empresa Loke)

    “Agimos de acordo com a legislação e com o plano do Parlamento norueguês”, respondeu Sognnes. “Estamos estritamente sujeitos à regra da precaução. Também não somos nós que decidimos se a indústria avança ou não. Mas temos de começar por algum lado. Precisamos, pelo menos, de recolher o máximo de informação possível para preencher as lacunas no nosso conhecimento. Os cientistas estão sempre a aprender. Estou bem ciente de que nunca saberemos tudo. Mas devemos esforçar-nos por saber o suficiente para tomar as decisões correctas. O fundo do mar contém tudo o que precisamos para a transição verde, excepto lítio. Existe actualmente uma moratória sobre a exploração mineira dos fundos marinhos até que seja aprovada uma regulamentação adequada. Àqueles que se opõem a nós, diria: permitam-nos, por favor, que preenchamos as lacunas do nosso conhecimento. E com base nisso, podemos decidir.”

    Se tudo correr como planeado, Sognnes espera que a mineração no círculo polar ártico comece depois de 2030.

    “Penso que as elites políticas e económicas vêem a mineração em alto mar como a continuação da indústria do petróleo e do gás, que está lentamente a seguir o seu curso. Os burocratas do petróleo precisam de um novo projecto. E estão a usar a transição verde como desculpa”, disse-me Gytis Blaževičius, que dirige a ONG (organização não-governamental) norueguesa Natur og Ungdom (Natureza e Juventude).

    “Durante 10 anos, as pessoas encarregadas de gerir os recursos naturais dentro das estruturas governamentais não sabiam que o Ministério da Energia estava a preparar-se para a mineração em alto mar. Tudo aconteceu furtivamente, em silêncio…”, adiantou o activista de 23 anos.

    Blaževičius também demonstra o seu espanto com a velocidade estonteante com que o processo de emissão de licenças tem vindo a desenrolar-se, dada a fama da burocracia norueguesa pelo seu ritmo glacial. Blaževičius está também perplexo com a confiança dos representantes da “futura grande indústria”, dado que todas as empresas candidatas estão ainda na sua fase de arranque. E o pouco que sabemos não deve exactamente encorajar os investidores a virem a correr.

    “Até os custos de exploração serão astronómicos. Há alguns anos, a Universidade de Bergen realizou uma única pesquisa na área marcada para mineração. A conta era de um milhão de euros. Para explorar toda a área serão necessários milhares de milhões. E muito tempo. Não há garantia de que uma abundância de metais e minerais esteja à nossa espera lá em baixo”, disse Blaževičius. Acrescentou que, nas perspectivas actuais, acha difícil acreditar que a indústria do mar profundo será viável. “Estou bastante confiante em prever que o projecto vai acabar por ser um fracasso.”

    Gytis Blaževičius, Natur og Ungdom (Jovens Amigos da Terra)
    (Foto: Boštjan Videmšek)

    Ao mesmo tempo que pressiona em prol da exploração mineira dos fundos marinhos, o Governo norueguês está também a emitir novas licenças para projectos de petróleo e gás no Mar do Norte e no Mar de Barents. Durante alguns anos, isso foi visto como controverso até mesmo na Noruega – um país que alimenta a sua transição verde com os lucros de exportação da indústria fóssil. Na Noruega moderna, a dissonância cognitiva parece estar na ordem do dia.

    Até agora, o público não reagiu aos planos do Executivo de lançar a indústria de mineração em mar profundo. O homem e a mulher comuns não sabem praticamente nada sobre o projecto de mineração do fundo do mar. Blaževičius explicou que isso não se deveu apenas aos métodos não transparentes do Governo, mas também ao facto de que o público norueguês prefere deixar as questões ambientais para as ONGs. A Noruega possui cinco milhões de habitantes e 24 milhões de membros de organizações não governamentais. O que significa que, em média, cada cidadão é membro de quase cinco ONG diferentes. Em muitos aspetos, estas organizações substituíram a sociedade civil.

    Na opinião de Blaževičius, a resposta do público norueguês tem sido, até agora, bastante fraca devido à natureza distante do projecto. Tanto de uma forma geográfica como temporal: “A Noruega ganhou muito dinheiro com a guerra ucraniana e os consequentes picos nos preços do petróleo. Assim, começámos a comercializar-nos como a fonte de gás segura e fiável da Europa. E, de repente, a energia fóssil deixou de ser tão controversa como era! Isso trouxe um novo vento para as velas do ‘lobby’ do petróleo e gás, e muitas novas licenças para plataformas estão a ser entregues.”

    N.D. : Reportagem original em inglês traduzida para português.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • ‘Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados’

    ‘Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados’

    Yehuda Shaul é, aos 41 anos, uma das vozes críticas mais reconhecidas da sociedade israelita. Como soldado e comandante, passou uma parte da segunda intifada palestiniana na Cisjordânia ocupada e ficou a conhecer o funcionamento interno das forças de ocupação israelitas e o cerne do conflito israelo-palestiniano. Juntamente com alguns colegas que partilham as mesmas ideias, fundou a organização não-governamental Breaking the Silence (BTS) em 2005 e começou a sensibilizar o público israelita e internacional para a ocupação israelita dos territórios palestinianos e para a realidade de viver em enclaves palestinianos. Em 2020, juntamente com Dana Golan (também da BTS), fundou o Ofek: The Israeli Center for Public Affairs, que defende uma solução política para a questão israelo-palestiniana. Na sua opinião, a única solução é uma solução de dois Estados. A criação de um Estado palestiniano independente ao lado de Israel. A voz de Shaul é ainda mais importante no rescaldo das atrocidades cometidas pelo Hamas, seguindo-se a brutal operação militar israelita na Faixa de Gaza e a quase unanimidade da violência.


    Qual é o clima actual em Israel? Como pode alguém que pensa diferente da linha dura do poder operar nestas semanas caóticas e trágicas?

    Quando a sociedade experiencia o trauma do horrível massacre perpetrado pelo Hamas no sul de Israel, uma pessoa – e a sociedade como um todo – pode reagir de duas maneiras. A primeira maneira é um desejo de vingança movido pela raiva e zanga. A segunda é uma resposta impulsionada pela humanidade e compaixão. Infelizmente, os corações da maioria dos israelitas nos dias de hoje estão cheios de raiva e vingança.

    Na nossa organização, tentamos falar e agir de forma sensata. É claro que a nossa voz está agora marginalizada. Mas temos de ser activos, barulhentos. A política não deve ser feita quando o sangue está a ferver. A política não deve ser movida pela emoção. A política deve ser clara, ponderada e coerente. São tempos muito difíceis. Só posso esperar que, quando a poeira assentar no dia seguinte ao fim da guerra, haja muitas perguntas difíceis a fazer.

    Yehuda Shaul (Foto: Quiqe Kierszenbaum)

    O que aconteceu no sul de Israel é um resultado directo da política de quinze anos de Benjamin Netanyahu. Esta baseava-se na procura de uma cisão entre os palestinianos, no enfraquecimento da Autoridade Palestiniana (AP) e no reforço do Hamas, e o seu objectivo era impedir a criação de um Estado palestiniano e uma solução diplomática para o conflito. Netanyahu estava ocupado a alimentar o monstro, e o monstro veio até nós e mordeu-nos.

    Espero vivamente que, depois de feitas as perguntas difíceis, as pessoas vão deixar de ignorar que existe apenas uma solução político-diplomática para o conflito israelo-palestiniano. Uma solução que aborde as causas profundas da violência. 75 anos de deslocação palestiniana. 56 anos de ocupação. 16 anos de cerco à Faixa de Gaza. Ao mesmo tempo, sublinho que nada, absolutamente nada, pode justificar o terrível massacre que o Hamas levou a cabo no sul do país. Mas acho que o contexto é importante. Explicar, não entender. Temos de dar um passo em frente. A menos que abordemos os factores subjacentes ao conflito que enumerei, não seremos capazes de parar a violência.

    Se os líderes europeus e mundiais se preocupam com a paz nos territórios judaicos e palestinianos, têm de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para encontrar uma solução viável que aborde as causas profundas do conflito. No centro da solução está a criação de um Estado palestiniano soberano que existirá ao lado de Israel. Esta é a única saída possível. Tudo o resto são apenas palavras, declarações…

    Soldados israelitas numa operação em Gaza. (D.R.)

    Considera que existe um interesse sério em algo deste tipo na chamada comunidade internacional?

    Considero encorajador que tanto Washington como Bruxelas estejam a falar de uma solução assente na coexistência de dois Estados. Mas aprendemos que as palavras não chegam.

    Há alguma consideração sobre como deve ser o dia seguinte à guerra na sociedade – e na política – israelitas, neste preciso momento?

    A ideia de que utilizaremos a violência para erradicar o Hamas, que actualmente domina Israel, é extremamente problemática. Não porque o Hamas não deva ser erradicado, mas porque não acredito que se possa matar uma ideia pela força. A única forma de derrotar verdadeiramente o Hamas é devolver a esperança aos palestinianos. Isto só é possível através da criação de um Estado palestiniano e, como disse anteriormente, eliminando as causas profundas da violência. É claro que isso também não matará a ideia, mas ela será muito enfraquecida.

    a person wearing a hat
    (Foto: Levi Meir Clancy)

    Mas para algo tão copernicano, teria de haver uma enorme mudança política e social em Israel. E não só em Israel?

    Seria uma mudança drástica; um evento drástico. Não esqueçamos que o actual governo israelita não é o único culpado pela situação actual. Muitos governos israelitas impediram continuamente a criação de um Estado palestiniano durante muitos anos. Esta foi a razão de ser de parte da política de Israel. O único governo israelita que realmente trabalhou para a criação de um Estado palestiniano independente foi o segundo governo de Yitzhak Rabin (1992-1995), que foi assassinado.

    O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um evento drástico. Tivemos de lhe responder de forma drástica. Não há saída fácil para a situação actual. Mas Israel já experienciou uma surpresa semelhante na sua história, uma situação drástica semelhante, quando o seu próprio conceito explode no seu rosto. Esta foi a Guerra do Yom Kippur em outubro de 1973. Alguns elementos desta guerra levaram a um acordo de paz entre Israel e o Egito alguns anos mais tarde (1979).

    A ideia de que se pode gerir conflitos é equivocada. A ideia de que na normalização da situação na região – por exemplo, nos acordos com os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita – se pode deixar os palestinianos irem embora, também. O conflito tem de ser resolvido e não gerido. A única forma moral e pacífica de resolver o conflito é, como já foi dito, a criação de um Estado palestiniano. Eu e as pessoas que pensam da mesma forma faremos de tudo para que esta ideia volte a ganhar força. Penso que, após o fim da guerra, os protestos antigovernamentais que tiveram lugar em toda a Israel durante vários meses antes de 7 de outubro devido à reforma do sistema judicial, serão muito, muito mais massivos. Isso será algo que Israel nunca teve antes. Estas questões terão também de fazer parte de um debate mais alargado.

    Que questões – a par da necessidade de estabelecer um Estado palestiniano?

    Digamos – como é possível que na manhã de 7 de outubro houvesse 23 batalhões do exército israelita na Cisjordânia, mas apenas três na fronteira com Gaza? Isto mostra claramente quais eram as prioridades deste governo. E países. Ao mesmo tempo, o conceito não só deste governo ruiu, que se baseava na ideia de que, com superioridade militar e tecnológica, se pode ficar no pescoço de milhões de pessoas para sempre e negar-lhes direitos e dignidade e, desta forma, alcançar a paz e a estabilidade. Não, não, não… Não funciona assim. Algo assim nunca funcionou na história. Toda a ideia israelita – conceito político, estratégia – de enfraquecer a Autoridade Palestiniana e fortalecer o Hamas explodiu a 7 de outubro.

    Esta estratégia baseava-se na ocupação permanente e na fragmentação dos palestinianos – política e territorial. Israel criou enclaves palestinianos desconexos onde manteve a supremacia. Israel espremeu a crescente demografia palestiniana para uma geografia cada vez menor. Esta não é uma receita para a estabilidade. Esta é uma receita para a instabilidade. Devemos acrescentar também o projeto colonial dos colonos judeus na Cisjordânia, que está em constante expansão. Isso criou ainda mais pressão sobre os enclaves palestinos, trouxe ainda mais instabilidade. Por conseguinte, espero sinceramente que compreendamos que a única solução para o conflito só pode ser política.

    Durante as sete semanas de bombardeamentos brutais de Gaza, poder-se-ia ter a sensação de que o Estado israelita – o mesmo se aplica ao exército – está, pela primeira vez na história, disposto a sacrificar muitas vidas civis israelitas para atingir o seu objectivo – estou a falar dos quase 240 reféns que se encontram em Gaza? (A conversa teve lugar pouco antes de se chegar a um acordo sobre a troca de reféns israelitas por prisioneiros palestinianos) Ao mesmo tempo, a política israelita está extremamente radicalizada. Então, onde e como procurar soluções?

    Se até agora a comunidade internacional não estava interessada em pôr fim ao conflito israelo-palestiniano, porque não lidava muito com a moralidade e o respeito pelo direito humanitário internacional, espero sinceramente que agora seja diferente. Para o mundo ver os perigos desta parte do mundo e deste conflito. Que está ciente de que este conflito pode muito rapidamente transformar-se numa guerra regional. E que, por conseguinte, existe vontade política suficiente nos Estados Unidos e na União Europeia para fazer o que é necessário fazer.

    A prioridade para nós deve ser o regresso dos reféns. Mas receio que esta não seja a primeira prioridade do Governo israelita. O Estado falhou moralmente com as pessoas que vivem nos locais próximos da fronteira com a Faixa de Gaza e, por conseguinte, tem de fazer tudo para devolver as pessoas raptadas a casa com vida. Tudo o resto deve ser secundário, neste momento. A única vitória israelita nesta guerra só é possível sob a forma do regresso dos reféns.

    pray, peace, israel
    (Foto: Heather Truett)

    Isso exigiria muita coragem política?

    Logo se vê. Alguma coisa está a acontecer.

    Uma ligeira digressão. Qual foi a primeira coisa que sentiu e pensou na manhã de 7 de outubro? Como percebeu as atrocidades cometidas pelo Hamas e o facto de algo tão inimaginável poder acontecer à sociedade israelita?

    Você não vai acreditar, mas eu não estava em Israel. Eu estava a caminhar nos Himalaias, no Nepal. Vi a notícia e regressei imediatamente. Em três dias eu já estava em Israel. Nos dias seguintes, fiquei horrorizado a assistir a imagens dos kibutzim e dos locais atacados no sul de Israel. O nível de brutalidade e desumanização paralisou-me… Depois soube que dois membros do movimento BTS também tinham sido mortos em confrontos com o Hamas. Um deles era meu grande amigo. Durante sete horas, como parte das unidades de proteção locais no kibutz, ele persistiu na luta contra os agressores. Até que ficou sem munições. Eu nem consigo imaginar o que eles tiveram de passar. Seguiram-se funerais, luto, visitas familiares, … Tudo o que isso significa. Foi uma semana terrível. Demorei algum tempo até começar a funcionar.

    Soldados israelitas numa operação em Gaza (D.R.)

    Esperava, intimamente, uma resposta tão brutal das autoridades israelitas sob a forma de punição colectiva dos palestinianos em Gaza?

    O sangue em Israel ferveu e ainda está a ferver. Como nunca antes na minha vida. E, provavelmente, nunca antes. Deve ficar claro que Israel tem o direito de se defender. E não só o direito – também tem a obrigação de se defender. Mas, ao defender-se, é importante respeitar o Direito Internacional Humanitário. O Direito Internacional Humanitário não foi escrito para tempos de paz. Foi escrito para um tempo de guerra, de conflito; para o momento em que o sangue ferve. Um cerco negando o acesso à água potável, por exemplo, é ilegal. As imagens que saem de Gaza criam muitas dúvidas e lançam uma grande sombra sobre o respeito de Israel pelo Direito Humanitário Internacional. Ainda não sabemos quais são as regras de combate. Levará algum tempo a saber o que está a acontecer, a medi-lo e a avaliá-lo. Mas o que vemos, sem dúvida, lança uma grande sombra.

    É um soldado experiente, foi comandante na Cisjordânia durante a segunda intifada. Conhece todos os detalhes do exército israelense e sua doutrina. O que vê em Gaza? Quais poderiam ser os objetivos do exército israelita?

    Precisamente porque esta é a minha profissão, prefiro não especular muito até saber todos os pormenores. Não é a primeira vez que o exército israelita invade Gaza. Lembremo-nos das operações militares em 2008/2009, 2012, 2014, … Até agora, é óbvio que o exército israelita continua com a doutrina do risco zero para os seus soldados. E a qualquer custo. Assistimos a um enorme uso da força para reduzir as perdas do lado israelita, o que transfere a ameaça para o lado palestiniano. Isso significa bombardeamento aéreo em massa com o objectivo de suavizar o terreno, uso maciço de artilharia, morteiros, bombardeamento em massa com tanques, … Foi assim que se combateu no antigo e convencional campo de batalha. Digamos, em outubro de 1973, no meio da Península do Sinai, com o exército egípcio. Mas não no meio de uma das áreas mais povoadas do mundo. Mais cedo, o exército israelita alertou as pessoas para deixarem suas casas – deu-lhes um ultimato. Mas depois transformou bairros e cidades inteiras em campos de batalha da velha escola. Agora é ainda mais explícito. Dizem às pessoas que quem ficar será tratado como colaborador de terroristas; como suspeitos.

    blue and white printer paper

    Estará o Governo israelita – pela primeira vez desde 2005 – a planear recuperar o controlo da Faixa de Gaza? Muitas vozes no gabinete do governo já expressaram claramente essa intenção. Isso significaria uma nova Nakba para os palestinos?

    Sabemos com certeza que há elementos no nosso governo para quem recuperar o controlo de Gaza é uma missão de vida. Há indivíduos messiânicos e extremistas no governo que não estavam satisfeitos com o status quo. Queriam o caos. Porque você pode implementar políticas ainda mais radicais dentro do caos. É triste dizer, mas para eles, o horrível ataque do Hamas pode até ter sido visto como uma oportunidade de atacar com força total e implementar sua agenda messiânica. A sua retórica, as suas reações e as suas opiniões são verdadeiramente incríveis.

    Mas não esqueçamos que Israel não estava segura mesmo antes de 2005, quando Gaza estava sob o nosso controlo. Atacantes suicidas chegavam a Israel vindos de Gaza – inclusive através dos túneis. Milhares de rockets voaram contra Israel. Muitos soldados israelitas morreram em Gaza antes de 2005 devido a bombas colocadas pelo Hamas. Quero dizer: este não é o caminho a seguir. Precisamos de uma solução política! Uma solução de dois Estados. E espero que a comunidade internacional faça tudo para impedir que se mate esta ideia, de que Israel precisa de recuperar o controlo de Gaza.

    Path to Peace graffiti
    (Foto: Cole Keister)

    Outra coisa de que se fala muito na política israelita é a possibilidade de uma reinstalação forçada de palestinianos de Gaza noo Sinai. Fazer isso realmente causaria a segunda nakba [catástrofe]. Para alguns membros do governo, esta é a direcção que querem seguir. De uma vez por todas, a chave é que os líderes mundiais matem esta ideia criminosa. E o mais rápido possível. Não devem permitir isso.

    O que essas pessoas estão a pensar? A primeira Nakba palestiniana de 1948 trouxe-nos paz e estabilidade? Não! Foi – e continua a ser – parte das razões subjacentes ao conflito. Até por tudo o que está a acontecer hoje. Por que diabos eles pensam que, se fizermos isso novamente, será diferente desta vez? Não é apenas uma ideia criminosa, é ilegal, é uma ideia estúpida.

    Quão forte é a sociedade civil israelita neste momento? Pode ser levantado? E – podem os familiares dos raptados, que têm sido os opositores mais vocais de Benjamin Netanyahu e do seu governo de extrema-direita durante várias semanas, tornar-se uma força política, uma força de mudança?

    Antes de 7 de outubro, vimos a ressurreição da sociedade civil israelita. Espero que esta energia seja agora redirecionada primeiro para trazer os nossos irmãos e irmãs para casa, o mais rapidamente possível. Ainda não chegámos lá, mas a sociedade civil israelita está a ganhar ímpeto ao apoiar as famílias dos raptados. Espero que isso obrigue o governo a fazer do resgate dos reféns uma prioridade.

    man waving flag
    (Foto: Ahmed Abu Hameeda)

    Acha que Netanyahu, o grande maquiavélico, tem, no entanto, a capacidade de fazer sacrifícios políticos – em nome da resolução desta enorme crise? Ou será que já não é capaz de agir racionalmente?

    Quanto à culpabilidade do nosso governo pelo que aconteceu a 7 de outubro, por todos os erros, não há dúvida de que recai primeiro sobre Benjamin Netanyahu. Isto não justifica de forma alguma o horrível ataque do Hamas – o assassínio em massa de crianças, mulheres, idosos, famílias inteiras… Do lado israelita, sim, a culpa foi de Netanyahu. Espero que tenhamos um novo governo o mais rapidamente possível, que procure uma solução diplomática.

    Passou a maior parte da sua carreira militar na Cisjordânia ocupada, onde a situação – à sombra do que está a acontecer em Gaza – está a piorar de dia para dia. O pior desde o final da segunda intifada. O que vai acontecer?

    Alguns elementos do movimento migratório estão a fazer tudo para abrir uma nova frente na Cisjordânia. Como se Gaza e a ameaça de abrir uma frente norte com o Hezbollah não bastassem. A violência dos imigrantes está a aumentar. Os ataques a aldeias palestinianas estão a aumentar. Segundo as Nações Unidas, até 7 de outubro, houve uma média de três ataques de imigrantes contra palestinos todos os dias na Cisjordânia. Agora, a média já é de seis ataques por dia. O número de ataques está a aumentar principalmente na chamada Área C, que representa 60% da Cisjordânia e está sob controlo israelita. Há uma deslocação forçada maciça de palestinianos das suas terras. Há décadas que não víamos nada assim na Cisjordânia. São comunidades que sobreviveram à segunda intifada, mas não conseguem sobreviver à violência dos colonos.

    Por vezes, os soldados israelitas ficavam de braços cruzados quando os colonos atacavam os palestinianos. Não fizeram nada para parar a violência. Nos últimos dois ou três anos, houve alguns casos em que soldados se juntaram a colonos em ataques contra palestinianos. Hoje, os colonos na Cisjordânia são o exército israelita e o exército israelita na Cisjordânia são – os colonos. Porquê? Porque estamos em guerra. Recrutas e soldados profissionais estão estacionados nas linhas de frente – ao longo e em Gaza e na fronteira norte com o Líbano. É por isso que agora há agora principalmente reservistas na Cisjordânia. Muitos deles vêm de unidades chamadas “defesa regional”. Estas são unidades de reserva compostas por colonos locais! Os mesmos bandidos de rua que atacaram os palestinianos e os expulsaram da sua terra há dois meses estão agora fardados, em pleno equipamento de combate e com toda a força. Não há mais zona tampão.

    Quanto espaço público, está atualmente disponível para pessoas que pensam diferente em Israel?

    Permitam-me que comece por dizer que há muitas detenções de cidadãos árabes de Israel, para as quais não existe uma razão única. Quanto a nós, defensores dos direitos humanos e ativistas, permitam-me que diga que alguns dos meus amigos já não vivem em casa. Alguns chegaram mesmo a deslocar-se ao estrangeiro nas últimas semanas. Grupos de direita começaram a publicar os nossos endereços online e pediram ataques. Bandos de fascistas…

  • ‘Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade’

    ‘Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade’

    Há um ano, o Centro para as Liberdades Civis em Kiev foi um dos três galardoados com o Prémio Nobel da Paz, juntamente com o bielorrusso Ales Bialiatski e a International Memorial Board, uma associação russa. A advogada Oleksandra Matviychuk é, aos 39 anos, o rosto desta organização ucraniana que ajudou a fundar em 2007 para lutar pela democracia no seu país. Quase 20 meses depois da invasão da Rússia, a activista dos direitos humanos conversa com o jornalista Boštjan Videmšek numa entrevista publicada em simultâneo no PÁGINA UM e no jornal esloveno DELO.


    Recentemente, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia expressaram o seu apoio conjunto à Ucrânia em Kiev. O mesmo se pode dizer de uma reunião em Varsóvia, à qual assistiu. Sente que este apoio é sincero, forte, unido, suficiente? Ou sente que talvez já exista um cansaço na comunidade internacional?

    Apesar de a guerra já durar há quase vinte meses, o foco da comunidade internacional continua na Ucrânia. Isso é lógico. Agora, os ucranianos não estão apenas a lutar por nós próprios, mas também pelos outros. Estamos a assistir ao desmantelamento da Ordem Mundial que foi criada após a Segunda Guerra Mundial.

    Foto: Center for Civil Liberties

    Neste momento, por parte dos seus aliados, o que é que a Ucrânia precisa mais – e sente falta?

    Quando a grande ofensiva russa começou em Fevereiro passado, o Mundo reagiu com a ideia de que a Ucrânia não deve cair. Como resultado disso, começou a receber os primeiros carregamentos de armas, enquanto as primeiras sanções sérias foram impostas contra a Rússia pela comunidade internacional, pelas quais estamos, naturalmente, muito gratos. Tudo isto permitiu-nos resistir à invasão russa em larga escala. Mas agora chegou a hora de mudar essa narrativa: vamos ajudar a Ucrânia a vencer rapidamente. Há uma enorme diferença entre estas duas abordagens – a Ucrânia não deve cair e a Ucrânia tem de ganhar rapidamente. E é uma diferença que pode ser medida na prática. O tipo de arma, a rapidez da tomada de decisões e a severidade das sanções e muitos outros factores são decisivos. O problema é que nós, ucranianos, não temos tempo. O tempo, na Ucrânia, traduz-se em muitas vidas humanas perdidas nos campos de batalha, no interior e nos territórios ocupados.

    A maioria dos meus amigos e conhecidos ucranianos estão exaustos, cansados, traumatizados. Por causa da Guerra e da insegurança, porque foram ‘arrancados’ das suas vidas. Como é que se sente? Onde encontra forças para continuar, para lutar constantemente no campo civil?

    É difícil viver numa altura em que há uma grande guerra. O meu humor muda constantemente; para cima e para baixo, e para cima e para baixo. Vivemos em completa incerteza. Perdemos completamente o controlo sobre as nossas vidas. Não podemos planear nada, nem mesmo no dia seguinte, nem na hora seguinte! Um novo ataque russo pode acontecer a qualquer momento. Isso também significa que estamos constantemente receosos pelos nossos entes queridos, amigos e conhecidos – especialmente aqueles que se juntaram às forças armadas ucranianas ou vivem nos territórios ocupados. Ou em qualquer outro lugar do país. Nenhum lugar da Ucrânia está a salvo das bombas russas. Esta é a nossa realidade. Aquilo que me ajuda, e a muitas pessoas que conheço, para continuar a nossa luta e os nossos esforços, são duas coisas. A primeira é o nosso objectivo comum; lutamos pela liberdade. Pela liberdade em todos os níveis possíveis. Porque queremos ser um país livre e independente, não uma colónia russa. Pela liberdade de sermos ucranianos e de não apagarmos a nossa identidade e nos tornarmos russos à força. Pela liberdade das nossas decisões democráticas e de construir um país onde os direitos de todos sejam respeitados, um país onde as autoridades sejam responsáveis perante o povo, onde o poder judicial seja independente e onde a polícia não seja violenta para com os manifestantes.

    Foto: Right Livelihood

    A coisa que me faz continuar – e que nos faz continuar – é o desejo de ser um exemplo para os outros. Não desejo que nenhum país ou nação passe pela nossa experiência, mas estes tempos dramáticos deram-nos a oportunidade de trazer à tona o melhor de nós: que somos corajosos, lutamos pela liberdade, tomamos decisões difíceis, mas correctas, e que nos ajudamos uns aos outros. Somente através da ajuda mútua podemos experienciar aquilo que um ser humano realmente é. Um exemplo: quando a invasão russa em larga escala começou, as organizações internacionais evacuaram os seus cidadãos da Ucrânia, mas as pessoas comuns permaneceram. E as pessoas comuns começaram a fazer coisas extraordinárias. Pessoas comuns resgataram pessoas comuns de cidades atacadas. As pessoas comuns romperam bloqueios e cordões para fornecer ajuda humanitária. Pessoas comuns sobreviveram sob constantes ataques de artilharia. E também sobreviveram ao último Inverno, quando a Rússia estava deliberadamente a destruir o sistema energético ucraniano. Eu também passei algum tempo em Kiev num apartamento sem água, electricidade, Internet, conexão móvel e aquecimento. Isto uniu ainda mais as pessoas comuns e inspirou-as a continuar a fazer coisas extraordinárias. É assim que lutamos contra a dor e o desespero.

    Então concorda que o tecido social ucraniano ficou muito fortalecido durante a guerra, que está mais forte do que nunca?

    É difícil dizer que está mais forte do que nunca, mas está extremamente forte. Dito de outra forma: não temos outra escolha. Nunca nos renderemos. Nunca desistiremos. Não nos tornaremos escravos russos. Se pararmos de lutar, nós, ucranianos, desapareceremos. Esta guerra tem um carácter genocida. Os russos estão a tentar destruir a nossa identidade. Não há existência sem luta.

    Foto: Right Livelihood

    Afirmou recentemente que a vitória ucraniana não significa apenas a expulsão do exército russo do território da Ucrânia, o restabelecimento da ordem internacional e a libertação das pessoas que vivem nos territórios ocupados. A vitória, disse, significa também uma transição democrática bem sucedida. Como consegui-lo?

    Queremos construir instituições democráticas funcionais, eficientes e sustentáveis. Isso cumpriria a vontade de milhões de pessoas que arriscaram as suas vidas há nove anos, durante a revolução da dignidade e os protestos contra o regime corrupto. Nessa altura, quando se perguntava às pessoas nas ruas por que razão protestavam a favor da visão europeia da Ucrânia, elas ainda não conheciam a estrutura e o funcionamento das instituições europeias. Ainda hoje, o cidadão comum não sabe como funcionam o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu. Naquela época – e até hoje –, a escolha era sobre valores. As pessoas gostariam de viver no seu próprio país, que elas próprias construiriam. E onde as regras são as mesmas e completamente claras para todos. Onde o Governo não dita em quem o povo deve acreditar, e quem deve amar, e por aquilo que deve viver ou pelo que deve morrer… Queremos viver em liberdade. Queremos ser devolvidos à civilização europeia. Portanto, a escolha é uma escolha de valores. E é por isso que Vladimir Putin iniciou esta guerra, que não começou em 24 de Fevereiro de 2022, mas oito anos antes, quando o povo ucraniano conseguiu derrubar um regime autoritário, dando-nos a possibilidade de uma transição democrática. Putin queria evitar que isso acontecesse. Foi por isso que lançou uma agressão, ocupou a Crimeia e uma grande parte do Donbass e, em Fevereiro do ano passado, lançou uma grande invasão. Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade.

    Foto: Right Livelihood

    Será a Ucrânia também uma vítima de estruturas internacionais extremamente débeis – lideradas pelas Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, este fóssil vivo que, com a sua (in)ação, permite todas as guerras modernas?

    Vou ser honesta. O sistema internacional de garantia da paz e da segurança não funciona. As pessoas na Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iraque e Ucrânia sabem disso muito bem. Mas agora estão a tornar-se perceptíveis mesmo para as pessoas nas sociedades democráticas desenvolvidas. Precisamos de uma reforma fundamental e abrangente do sistema das Nações Unidas. Ouvimos recentemente uma proposta do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para aumentar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança. Mas esta não é uma reforma cardinal. Precisamos de uma abordagem totalmente nova. Um sistema completamente novo de garantia internacional da paz e da segurança, que não estará ligado ao Produto Interno Bruto (PIB) nem à dimensão geográfica dos membros do Conselho de Segurança. Deve estar vinculada pelo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades.

    Oleksandra Matviychuk em Dezembro do ano passado, enquanto discursava em Oslo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz.

    Não há absolutamente nenhuma indicação de que a Rússia esteja a considerar pôr fim à sua agressão na Ucrânia. Muito pelo contrário. Parece que as consequências da guerra colonial-imperial para Moscovo não são tão graves como se poderia pensar que seriam. Como parar então a Rússia?

    O que precisamos para ganhar, é o que me pergunta? Os resultados das guerras não são decididos nas fronteiras nacionais. Não é apenas uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, entre dois países; é uma guerra entre dois sistemas. Entre o totalitarismo e a democracia. Putin não vai parar. Putin tem de ser travado. Se não for parado na Ucrânia, irá continuar. A Rússia é um império que tem o seu centro, mas sem fronteiras. Se um império tiver energia suficiente disponível, irá sempre expandir-se. Para travar a expansão deste império, muitos países, e não só a Ucrânia, precisam de sair da sua zona de conforto. Sim, estamos gratos pelas armas e pela ajuda financeira à economia ucraniana, mas a Rússia está a preparar-se para uma guerra prolongada. Esta guerra já mudou o quadro social da Rússia. Por conseguinte, todo o mundo democrático tem de fazer mais para contrariar este cenário russo. Ninguém quer uma guerra longa. Nós, ucranianos, queremos paz.

    Foto: Right Livelihood

    Está muito envolvida na documentação dos crimes de guerra russos. Como punir a Rússia por todos os crimes de guerra?

    Quando falamos de justiça, estamos a falar das condições prévias para a paz em toda a região. Os militares russos cometeram crimes horríveis. Não só na Ucrânia. Ainda antes, na Chechénia, na Geórgia, … Também na Síria, no Mali e na Líbia. Nunca foram processados ou punidos. Por isso, começaram a acreditar que podem fazer o que quiserem de impune. Por conseguinte, é necessária a criação de um tribunal especial para a agressão russa; que Putin, toda a liderança política e comando militar russo sejam responsabilizados pelo planeamento, início e execução desta guerra. Documentámos um grande número de crimes: assassinatos planeados, tortura, violações, raptos, bombardeamentos selectivos de zonas residenciais… Tudo isto é o resultado da decisão da liderança russa em iniciar uma guerra. Por isso digo que, se queremos paz, a primeira condição é a justiça. Com uma acção tão decisiva, poderíamos evitar novos ataques russos e quebrar o ciclo vicioso da impunidade.

  • ‘Sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho um futuro’

    ‘Sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho um futuro’

    No dia 6 de Fevereiro deste ano, a partir da madrugada, uma sucessão de sismos devastou a Turquia e a Síria, fazendo 60 mil vítimas mortais e centenas de milhares de pessoas ficaram desalojadas. Mais de quatro meses depois, o jornalista esloveno Boštjan Videmšek, várias vezes premiado por reportagens em ambiente de guerra e em contexto de migrações e refugiados, relata como agora ali se vive, se (sobre)vive após o colapso da Natureza ter transformado vidas e casas em destroços e pó. Esta reportagem foi também publicada no jornal esloveno DELO.


    “Foi o pior pesadelo. Um horror absoluto. Assim que o tremor começou, fugimos lá para fora, onde estava a chover fortemente. Estava frio e bastante escuro. As pessoas gritavam por toda parte. Foi hora após hora, como se fosse o apocalipse”, diz Maryem Kalkan, de 54 anos, num assentamento de tendas formado na esteira do terremoto, num pequeno parque nos arredores de Antioquia, numa província turca de Hatay.

    Com o amanhecer, Maryem pensou que o pior já tinha passado. Algumas horas depois, o chão tremeu de novo.

    Antioquia e toda a província de Hatay foram as regiões mais devastadas. O centro antigo da cidade ficou quase totalmente arrasado. Os blocos de apartamentos mais recentes desabaram como se feitos de papelão. Uma cidade maravilhosa de grande património cultural acabou dizimada. E com ela, milhares e milhares de vidas.

    Oficialmente, o terramoto de 6 de Fevereiro passado, que atingiu o sudoeste da Turquia e uma parte do noroeste da Síria, provocou mais de 55 mil mortes. Várias dezenas de milhares de pessoas ficaram feridas. Três milhões perderam as suas casas. De acordo com a Direcção-Geral das Operações Europeias de Protecção Civil e Ajuda Humanitária, o terramoto afectou diretamente mais de nove milhões de pessoas espalhadas por onze províncias.

    Quando a primeira ajuda humanitária chegou ao norte da Síria, com uma semana de atraso, as pessoas ainda tiveram de passar por pior. Muitas foram forçadas a tentar desenterrar os seus parentes com as próprias mãos. Mesmo agora, os sobreviventes dependem inteiramente da ajuda humanitária.

    ***

    Após o terramoto, nos primeiros dez dias, Maryem Kalkan e os seus familiares dormiram ao relento. Demorou algum tempo até ela perceber, em pleno, a extensão da catástrofe. Depois de uma semana, uma equipe de resgate desenterrou o cadáver de seu pai. Em seguida, o marido da sua filha grávida foi encontrado, também morto.

    Maryam tentou descrever suas perdas com o estoicismo de uma sobrevivente. Mas as lágrimas rapidamente a dominaram.

    A sua casa, no bairro de Defne, ficou muito danificada. “Está a desmoronar-se lentamente”, relatou. “Mais tarde ou mais cedo, as autoridades locais vão, por certo, derrubá-la; está perdida para sempre”.

    Só em Antioquia, cerca de 20 mil casas e edifícios foram arrasados ou se tornaram inabitáveis para sempre. Retroescavadoras ainda estão peneirando o que resta da cidade. Em frente às suas casas danificadas, os sobreviventes estão a retirar os escombros, como se se estivesse a concretizar o mito de Sísifo, sabendo muito bem que as autoridades destruirão um dia aquilo que resta. Crianças vasculham os destroços. Antigas carroças puxadas por mulas são agora carregadas com pertences que, pelo menos, possam parecer úteis.

    Como a paisagem, o ambiente urbano ficou completamente alterado.

    Agora, Antioquia está repleta de crateras, como se bombardeada até quase ao esquecimento. O centro da cidade lembra muito o oeste de Mossul, no Iraque, depois de o Estado Islâmico e as forças do Governo iraquiano se enredarem num turbilhão de destruição. Dezenas de automóveis, dobrados e retorcidos fora de forma, estão espalhados ao longo das bordas daquilo que eram estradas de asfalto.

    Em cada passo, arriscamo-nos a tropeçar noutra pilha de betão e ferragens, ou a sermos atropelados por um camião-cisterna que atravessa tudo, tentando desesperadamente fornecer água potável onde é mais necessária.

    Enormes cães famintos estão vagueando neste cenário pós-apocalíptico, em busca de comida. Mas a sua inteligência não está à altura dos gatos, que agora também têm a vantagem em número.

    Um profundo sentimento de trauma

    Na província de Hatay, cerca de 40 mil empresas encerraram temporária ou permanentemente por causa do terramoto. O desemprego colectivo está na ordem do dia. O famoso bazar de Antakya também ficou destruído, tendo sido transferido para os arredores da cidade. O antigo local está agora cheio de contentores azul-claro para alojamento.

    Tudo isto é como se o Ano Zero tivesse sido declarado em todas as regiões do sudoeste da Turquia. Grande parte da sua história física foi apagada, e um sentimento de temporariedade é agora evocado em cada passo.

    ***

    “Agora, já não nos sentimos mendigos quando recebemos ajuda. De alguma forma, resignámo-nos por termos perdido tudo”, lamenta Maryem Kalkan, em frente à sua barraca, no calor escaldante da tarde. Como a maioria, ela perdeu as suas perspectivas em redor da casa e do emprego, tornando-se integralmente dependente da ajuda humanitária.

    As equipas humanitárias locais e internacionais fornecem às vítimas, com regularidade, alimentos, água e medicamentos às vítimas. Infelizmente, o auxílio disponível não é suficiente para ajudar todos. A crise é demasiado vasta. “A necessidade de ajuda é estupenda e incontrolável«, afirma Ali Fuah Sütlü, diretor de programa da organização humanitária Concern.

    “Todos aqui compartilhamos a mesma experiência«, diz Maryem. “O terramoto não escolheu as suas vítimas, por isso partilhamos agora um forte sentido de solidariedade.”

    Antes do cataclismo, Maryam ganhava a vida como cozinheira, empregada de limpeza e colectora de nozes. Em frente à tenda, esteve acompanhada pelo irmão, que não largava um doberman que choramingava. Ambos pareciam inflexíveis e não tinham qualquer intenção de se mudarem para os colonatos de contentores.

    Despontadas em toda a zona sinistrada, estas colónias albergam agora cerca de 600 mil pessoas. O resto das vítimas – ou seja, mais de dois milhões de pessoas – vive em acampamentos. As razões desta opção vão desde o medo em habitar num espaço confinado até à esperança de poderem regressar às suas casas, se o processo de reconstrução for rápido. Tanto nos contentores como nas tendas reina um profundo sentimento de trauma. Há muita luta diária pelo espaço íntimo e os receios de violência e doença são elevados.

    ***

    “Já não me atrevo a entrar numa casa. Qualquer casa. Assim que tento, entro em pânico. Não consigo evitar. Começo a pensar que o chão pode tremer novamente. Acho que tem muito a ver com as constantes réplicas. Há também muitos saques e destruição em toda a cidade. Pelo menos aqui, nas tendas, estamos seguros. E o mais importante, estamos juntos«. Maryem Kalkan conclui assim a nossa conversa, enquanto o ar em frente à sua tenda se enchia com o cheiro de pão recém-cozido.

    Começar do zero

    Seren Reyhangoulari, de 23 anos, também garantiu que ela e a sua família alargada de 35 pessoas não tencionam mudar-se para os contentores, cujos habitantes parecem condenados a permanecer lá pelo menos durante os próximos anos.

    “Aqui, nas tendas, estamos juntos”, conta a mulher de cabelo negro. “E queremos mesmo ficar juntos; é a única coisa que nos resta – uns aos outros!”

    Antes da convulsão, Seren trabalhava como professora numa escola privada. Agora, nem um único dos seus familiares que se amontoam com ela nos arredores de Antioquia tem emprego. Sobrevivem à custa de ajuda social e humanitária e estão amontoados em seis tendas. Mas, comparadas com um mero lençol de plástico arrancado de uma casa de jardinagem local, as tendas quase parecem um luxo.

    “Tivemos de esperar muito tempo por estas tendas e pelos primeiros socorros”, recorda Seren. “Como não somos do centro da cidade, e como recusamos mudar para os contentores, parece que fomos esquecidos. A casa onde eu vivia está apenas moderadamente danificada e pode ser reparada. Mas onde é que vamos arranjar o dinheiro? Ser-nos-ia pedido que contribuíssemos com 40% dos custos, o que significa que todos nós teríamos de nos endividar durante várias gerações”, diz.

    As palavras saem em catadupa da boca de Seren, que apanhou o terramoto enquanto andava de autocarro. O acontecimento deixou-a profundamente traumatizada. A sobrinha teve as duas pernas amputadas. Todos perderam familiares, vizinhos e amigos. Seren também se juntou à longa lista de pessoas que já não se atrevem a entrar em qualquer tipo de edifício.

    Mas mesmo que Seren fosse psicologicamente capaz de encontrar uma nova casa, não tinha dinheiro para a comprar. Após o terramoto, as rendas locais aumentaram até quatro vezes. Aquilo que se pode chamar de “Economia de Guerra” está em pleno andamento.

    Há também que ter em conta a crise económica geral com que a Turquia se estava a debater nos últimos anos. Depois de espantosos aumentos de 88% nos preços em 2022, a inflação deste ano está, por agora, estimada em 44%. A maior parte das poupanças já foi varrida, enquanto os preços dos alimentos continuam a disparar.

    Como sempre, o peso do colapso económico é suportado pelas componentes mais vulneráveis da sociedade. Nas zonas afectadas pelo cataclismo, o trabalho clandestino é agora muito escasso, apesar de constituir normalmente uma parte muito importante da Economia turca. Não há trabalho, a não ser em projectos de demolição e de limpeza. Mas estes pertencem a empresas privadas experientes, com fortes ligações às autoridades locais e centrais.

    Para piorar, nos meses que se seguiram à convulsão, várias centenas de habitantes da província de Hatay receberam uma mensagem de texto das autoridades, informando-os de que um decreto presidencial lhes tinha confiscado os terrenos, pelo que deviam sair imediatamente. Tudo em nome da renovação.

    ***

    “As nossas vidas desapareceram. Tudo mudou. Todos nós, aqui, estamos a começar do zero. As nossas personalidades também mudaram. Agora, sou muito mais temperamental, irrequieta e agitada”, continuou Seren Reyhangoulari.

    Ao seu lado, estava sentada a sua parente Feride, que se encontrava na fase final da gravidez. Faltando apenas sete dias para a data do parto, afogava-se lentamente em ansiedade.

    Feride sabia que a sua vida iria, por certo, tornar-se ainda mais difícil. Mas mesmo depois do parto, não tinha qualquer intenção de se mudar para os contentores.

    “Vamos ficar juntos”, insistiu ela, enquanto gatos e galinhas continuavam a passear à volta das tendas doadas pela China e pelo Paquistão. “Só posso esperar que as autoridades ajudem a melhorar as nossas condições de vida. Aqui, vemos cobras a toda a hora! As crianças estão aterrorizadas. Gritam e choram. Estamos todos cobertos de picadas de insectos. Só há pouco tempo é que temos uma casa de banho portátil, mas ainda não está ligada aos esgotos. Mas há muitos que estão ainda pior do que nós”.

    Duplamente vitimados

    Infelizmente, Feride tem razão. O terramoto de Fevereiro também afectou brutalmente quase dois milhões de refugiados sírios. Quando estavam finalmente a recompor-se, depois de fugirem de uma guerra particularmente selvagem, as ondas de choque fizeram-nos cambalear. E, sem mais nem menos, voltaram a agarrar-se à vida.

    “Para mim, o terramoto foi um momento de medo e de morte. No meu bairro, várias casas foram destruídas. Felizmente, a nossa só ficou danificada. Agora, sobrevivi a um bombardeamento e a um terramoto. Deve significar que tenho de ter um futuro”, explicou calmamente Abdul Hakin, um rapaz de quinze anos.

    Conheci Abdul no centro do Projeto Nacional Sírio de Próteses de Membros em Reyhanli, mesmo ao lado da fronteira com a Síria. Em 2013, o bonito e desgrenhado adolescente perdeu as duas pernas num ataque aéreo das forças governamentais sírias nos arredores de Hama. Uma das suas pernas teve de ser amputada abaixo da cintura e a outra abaixo do joelho.

    Após o ataque, que custou a vida a seu pai, Abdul e a mãe, gravemente ferida, foram levados para a Turquia. Foram necesários dois anos para lhe ser entregue um par de próteses. No centro, gerido pela organização Relief International, Abdul reaprendeu a andar e terminou a escola primária.

    Foi então que surgiu o choque da pandemia da covid-19.

    De acordo com o seu psicoterapeuta, a falta de contacto social mergulhou o rapaz numa grave depressão. Esmagado pelos seus traumas, Abdul começou a ter ataques de pânico. Pôs a um canto as duas próteses que lhe permitiam viver uma espécie de normalidade. A mãe, que também tinha recuperado na Turquia, já não o conseguia fazer sair do apartamento alugado. O rapaz deixou de estudar e de ir à fisioterapia.

    Depois, o chão começou a tremer. A mãe, os irmãos e as irmãs de Abdul conseguiram, de alguma forma, tirá-lo do apartamento. Passaram os dias seguintes à espera de ajuda, nas ruas frias e húmidas. Um tio, que vinha de carro da devastada Antioquia, acorreu em seu socorro. Trouxe ajuda e mudou-se com a família para o seu apartamento, que ficou apenas um pouco danificado.

    Nas palavras do próprio Abdul, o terramoto acordou-o, tirou-o da sua espiral descendente. Apercebeu-se de que as suas decisões imprudentes, no rescaldo da pandemia, poderiam ter-lhe custado a vida. Por isso, retomou o uso das suas pernas protéticas e voltou a frequentar a fisioterapia.

    “Também quero muito retomar os meus estudos. Um dia, gostaria de ser arquiteto, como o meu tio. O meu desejo é construir casas para as pessoas. E também hospitais e escolas!” Abdul sorriu, pouco antes de nos despedirmos.

    Um enorme fracasso de solidariedade

    Após o terramoto, a grande maioria dos refugiados sírios teve de se deslocar para as cidades de tendas informais que surgiram nas cidades e aldeias, sobretudo como resultado da improvisação e da pura vontade de sobreviver. No entanto, quatro meses e meio depois, nada indicava que a situação dos refugiados estivesse a melhorar.

    De facto, é precisamente o contrário. Cerca de 99% das pessoas colocadas em contentores pelas autoridades eram de origem turca. Os refugiados sírios podem, de facto, candidatar-se à interminável fila de espera. Mas as nossas fontes nas fileiras humanitárias disseram-nos que os sírios não tinham praticamente nenhuma hipótese de entrar num dos contentores.

    A escassez de contentores marca um enorme fracasso na solidariedade do Governo turco para com os refugiados. Assim, os pobres sírios foram obrigados a aguentar ao ar livre, enfrentando todo o tipo de condições climatéricas e sendo ameaçados de expulsão pelo candidato presidencial da oposição, Kemal Kılıçdaroğlu, durante a sua campanha infamemente racista.

    ***

    Uma das cidades mais duramente afectadas pelo terramoto foi Nurdağı, na província de Gaziantep.

    Uma grande parte da cidade foi destruída, e é certo que permanecerá inabitável nos próximos anos. Mas na altura da nossa visita – ainda com ferro, betão e pertences das vítimas espalhados por todo o lado –, o mais devastado dos bairros de Nurdağı já ostentava um par de negócios grotescamente iluminados. Um era um salão de beleza; o outro uma concessionária de ouro.

    Um grande número de residentes foi deslocado para a enorme cidade de contentores situada no topo de um planalto próximo. Chegámos à povoação quando o ano lectivo estava a entrar na sua última semana. Com uma série de workshops psicossociais para crianças em idade escolar a decorrer, o planalto fervilhava de risos.

    O primeiro grupo de crianças tinha acabado de enviar para o céu alguns aviões de papel, depois de ter escrito os seus maiores medos na parte que formava as asas laterais dos aviões.

    “Queremos que elas saibam que o medo não é para sempre”, explicou Gizem Özgün, oficial protector das crianças da UNICEF. “E também que a sua dor não é para sempre. A maioria destas crianças está profundamente traumatizada. Recusam-se a entrar em edifícios. Na verdade, é muito difícil fazê-las ir a qualquer lado! Temos visto muitos casos de depressão, ansiedade, xixi na cama, insónias, distúrbios alimentares e agressividade. É ainda pior com os adolescentes, que não puderam voltar à escola, uma vez que todas as escolas secundárias foram destruídas.”

    ***

    “Qual é o teu maior medo?” perguntei a um rapazinho com uma camisola de futebol do Karim Benzema.

    “Terramoto!”, sorriu o rapaz. “Mas os professores disseram-me que hoje todos os meus medos voaram para cima e para longe!”

    Enquanto me contava isto, conseguiu finalmente o que andava a tentar fazer há muito tempo: lançar um papagaio de plástico para o céu. Nele, tinha recebido instruções para escrever todos os seus desejos mais queridos.

    Disse-me que só tinha escrito um: “Acabaram-se os terramotos!”

    Fotografias: Diego Cupolo/EU Humanitarian Aid