Categoria: Sociedade

  • Casa roubada, trancas à porta: ICNF vai gastar 27,5 milhões em veículos de prevenção e combate a fogos

    Casa roubada, trancas à porta: ICNF vai gastar 27,5 milhões em veículos de prevenção e combate a fogos


    Mais vale tarde do que nunca. Mas no caso dos fogos rurais, há medidas que chegam tarde demais. Depois de um ano trágico de fogos rurais em Portugal, é no Outono que o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF)dá ordem de compra de meios terrestres e equipamento para prevenção e combate a incêndios.

    No total, em quatro concursos públicos, o ICNF vai gastar até perto de 27,5 milhões de euros, sem IVA, para comprar viaturas ligeiras, tractores, uniformes e equipamento de protecção individual para equipas de sapadores de prevenção e combate aos fogos rurais.

    / Foto: D.R.

    O caso não é para menos. Afinal, segundo dados do Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais, citados pelo ICNF, arderam este ano 269.941 hectares, dos quais 46% relativos a área ardida de povoamentos florestais, 43% de matos e 11% de terrenos agrícolas. este ano foi o quarto pior de sempre, apenas atrás de 2017, 2003 e 2005. No total, até ao dia 22 de Outubro, registaram-se 8.458 ocorrências.

    Paradoxalmente, o investimento na prevenção é feito em mais um ano de desastres, e numa altura em que o Orçamento do Estado até reduz em nove milhões as verbas públicas disponibilizadas, que passará para apenas 44,7 milhões de euros. Porém, o ICNF tem os bolsos cheios para ir às compras por via do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

    No total, através deste pacote financeiro pós-covid, foram atribuídos a este Instituto 188 milhões de euros para gastar em 138 projectos aprovados no âmbito do PRR.

    Área ardida por ano desde 2021. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Perante as estatísticas, o ICNF “abriu os cordões à bolsa” — com financiamento do PRR — e lançou concursos para a compra de equipamento. Um dos concursos que está a decorrer envolve a compra “de 218 unidades de maquinaria pesada (tractores) e respectivas alfaias destinadas à prevenção e combate de fogos rurais”. O valor base do contrato é de 22.544.500 euros.

    Este concurso é composto por dois lotes, um para a compra de 51 tractores florestais “de tipo 1 e respectivas alfaias” e outro relativo à aquisição de 167 tractores florestais “de tipo 2 e respectivas alfaias”.

    Outro concurso que está a decorrer, também financiado pelo PRR, envolve “a aquisição de 55 veículos ligeiros de combate a incêndios para as equipas de sapadores florestais”. Neste caso, o valor base é de 4,4 milhões de euros, com o preço base unitário de 80 mil euros.

    Imagem que consta do caderno de encargos relativo ao concurso para compra de veículos ligeiros pelo ICNF.

    Também a decorrer está o concurso do ICNF para “aquisição de uniformes e de equipamentos de proteção individual para os operacionais na área da gestão de fogos rurais”, composto por três lotes distintos, e que envolve uma despesa de 320.513 euros. O contrato a adjudicar terá um prazo de execução de sete meses. Este procedimento é cofinanciado pelo PRR.

    Já fechado está o concurso para “aquisição de serviços de operação de veículos no âmbito do DECIR (Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais) 2025” e que tem um valor base de 220 mil euros. Esta compra sai do bolso do ICNF, já que não menciona qualquer financiamento comunitário.

    Mas estas medidas já chegam tarde para os que perderam tudo nos fogos deste ano, em Portugal.

    a fire is burning on the side of a road
    Foto: D.R.

    O mesmo se aplica à campanha publicitária de prevenção de incêndios rurais que o ICNF aprovou em Maio e que só viu a luz do dia no final de Agosto, como o PÁGINA UM noticiou. Nessa campanha, o governo despejou, através dos cofres do ICNF, 725 mil euros em publicidade na comunicação social para a “difusão de publicidade institucional, no âmbito da campanha de sensibilização para a redução dos incêndios rurais”.

    Agora, com a chuva de Outono à porta e temperaturas amenas, os meios de combate e prevenção de incêndios estão a ser encomendados pelo ICNF e a população está a ser informada. Para a floresta já ardida, já chegam tarde. Pelo menos, no próximo Verão o ICNF terá meios para evitar o pior.

  • BCP avança com acção de execução contra Luís Delgado

    BCP avança com acção de execução contra Luís Delgado


    Afinal, a Trust in News, dona da revista Visão, não é a única empresa do comentador e empresário Luís Delgado que tem dívidas e acções de execução. Uma outra sociedade do seu universo empresarial acaba de ser alvo de um processo de execução na Justiça por parte do Millennium bcp. O processo também pede que Delgado, que é gerente da empresa, seja executado.

    O banco deu entrada com uma acção no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa no passado dia 4 de Outubro a visar a empresa ‘Regula & Acerta’, bem como o próprio Luís Delgado. Em causa está uma dívida de 108 mil euros.

    Luís Delgado. / Foto: D.R.

    A empresa em questão foi criada por Delgado em 2014 como uma sociedade unipessoal com um capital social de apenas 100 euros. Em 2017, passou a ser uma sociedade por quotas e o capital social foi aumentado em um euro, passando a mulher de Delgado, Ana Delgado, a deter essa quota.

    A sociedade opera com o CAE 56220 relativo a “actividades de serviço de fornecimento de refeições por contrato e outras atividades de serviços de alimentação” e tem sede na morada que Delgado indica como sendo a sua residência: Rua Gil Vicente, 64, rés do chão, em Lisboa.

    Trata-se de uma empresa que já não apresenta contas desde o exercício de 2022.

    Foto: Captura de imagem do Portal Citius.

    Além desta acção de execução, em Julho passado, o empresário foi alvo de um processo para ser executado por uma dívida de 453.978,62 euros da Trust in News à Taguspark – Sociedade de Promoção e Desenvolvimento do Parque de Ciência e Tecnologia de Lisboa. Trata-se de uma dívida relacionada com rendas não pagas pela empresa de media, que acumulou dívidas superiores a 30 milhões de euros, designadamente ao Fisco e à Segurança Social. Os seus credores aprovaram, no início deste mês, a cessação da actividade da empresa de media.

    Recorde-se que Luís Delgado está a cumprir uma pena suspensa de cinco anos pelo crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada por dívidas contraídas ao Fisco nos primeiros anos de actividade da Trust in News. Se não pagar o montante em dívida, de 828 mil euros, arrisca ir para a prisão. O mesmo sucede com os outros dois gerentes da Trust in News, que estavam em funções na altura em que o crime foi cometido.

    Além disso, arrisca ainda mais condenações por outros processos que correm na Justiça, designadamente por dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária (AT) referentes à TIN. Também arrisca ser condenado por insolvência culposa da Trust in News.

    Revista Visão (Foto: PÁGINA UM)

    Como o PÁGINA UM noticiou, em Julho deste ano, o empresário e comentador televisivo foi forçado a avançar com acções em Tribunal para travar duas acções de execução da AT no valor global de 4.379.296,32 euros, que serão respeitantes a uma parte das dívidas contraídas a partir de 2019.

    O plano de insolvência da TIN, apresentado por Delgado, era a sua última ’tábua de salvação’ perante diversas acções de execução em curso por parte de credores de TIN, designadamente a AT e a Segurança Social. Apesar de ter um capital social de apenas 10 mil euros, esta unipessoal criada em 2017, acumulou, estranhamente, dívidas superiores a 30 milhões de euros sobretudo junto do Estado, mas também junto do Novo Banco e da Impresa.

    Agora, a somar ao descalabro da TIN, Luís Delgado enfrenta novas acções de execução mas por dívidas de uma das suas restantes empresas.

  • ‘Quinta de luxo’: Banco de Portugal gasta 61.500 euros em peças para piscinas

    ‘Quinta de luxo’: Banco de Portugal gasta 61.500 euros em peças para piscinas


    O Banco de Portugal encomendou a troca de peças para as duas piscinas que tem na sua quinta de luxo em Odivelas, que classifica como ‘centro de formação’. Pela troca das peças o Banco de Portugal deverá gastar 61.500 euros.

    Em causa está a “substituição das centrais hidráulicas das piscinas da Quinta da Fonte Santa”, um espaço com 22 hectares, às portas de Lisboa, que é propriedade do Banco de Portugal.

    Quinta da Fonte Santa, em Odivelas. / Foto: D.R.

    Em concreto, o objecto da encomenda abrange “a remoção de equipamentos e componentes existentes nas centrais hidráulicas e posterior fornecimento, instalação, ligação e comissionamento de novos equipamentos e componentes, nas centrais hidráulicas das piscinas do Centro de Formação da Quinta da Fonte Santa do Banco de Portugal”. A informação consta do caderno de encargos do concurso público cujo prazo terminou no dia 15 deste mês.

    Segundo os detalhes da encomenda, “pretende-se dotar a central hidráulica da piscina 1, com três unidades de electrobomba do tipo ARAL Plus C-3000 7.5CV 400V, ou equivalente”. Para a “circulação do chapinheiro, piscina das crianças, pretende-se o fornecimento, instalação e comissionamento de duas unidades de eletrobombas do tipo ASTRAL Victoria Plus Silent 1CV 230V, ou equivalente.

    Por fim, “para a central hidráulica da piscina 2, pretende-se o fornecimento e aplicação de duas unidades de electrobombas do tipo ASTRAL Victoria Plus Silent 1.5CV 400V, ou equivalente”. O serviço inclui a “substituição dos equipamentos existentes, com todos os trabalhos, materiais e acessórios necessários ao seu correto funcionamento”.

    A verba que agora o Banco de Portugal vai despender é uma “gota de água” no contexto dos gastos de manutenção que a sua quinta de luxo exige anualmente. Recorde-se que só na manutenção dos espaços verdes da Quinta da Fonte Santa foram gastos 1,6 milhões de euros (com IVA) em sete anos.

    Uma das piscinas da Quinta da Fonte Santa. / Foto: D.R.

    Quanto à limpeza do espaço, tem um encargo de 1.724.460 euros (com IVA) nos próximos cinco anos, segundo o contrato assinado pelo Banco de Portugal no início de Dezembro do ano passado.

    De resto, com a excepção dos contratos referentes aos encargos com a quinta, pouca informação pública se encontra sobre a propriedade, designadamente no site e relatórios do Banco de Portugal.

    A informação mais completa foi divulgada num comunicado que o Banco de Portugal emitiu em 2012 com um esclarecimento. Nesse comunicado, a instituição indicou que “a Quinta da Fonte Santa é património do Banco de Portugal desde 1989” e que “a aquisição do imóvel resultou de um processo de dação em pagamento de dívidas ao banco”.

    As duas piscinas foram ‘herdadas’, mas já registaram algumas remodelações ao longo do ano. Uma piscina de 25 metros de comprimento por 13 metros de largura não é para todas as ‘bolsas’: pode atingir um custo mínimo de 1,3 milhões de euros, com custos de manutenção anual acima de 50 mil euros.

    Vista aérea da Quinta da Fonte Santa. / Foto: Captura de imagem do Google Maps

    Ainda de acordo com o comunicado, “o banco aproveitou este activo como centro de formação e espaço institucional para a realização de reuniões de trabalho”. Também explicou que, “dada a sua implantação e características de origem, a Quinta da Fonte Santa serve igualmente para a promoção de diversas actividades de natureza social, cultural e desportiva, destinadas aos colaboradores e reformados do banco e eventuais convidados”, estando “aberta a iniciativas da comunidade local, acolhendo periodicamente actividades de escolas e associações”.

    Uma certeza existe agora: com este contrato que o Banco de Portugal vai adjudicar em breve, as águas das duas piscinas da sua quinta de luxo estarão garantidamente mais limpas para o bem-estar dos seus funcionários e convidados a desfrutar das várias actividades lúdicas disponíveis na propriedade.

  • Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda

    Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda


    O Relatório Preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre o acidente do Elevador da Glória de 3 de Setembro hoje revelado pode e deve ser confrontado com todo o trabalho de investigação do PÁGINA UM – e que demonstra a virtude do jornalismo independente. Confronte-se aquilo que diz o relatório com aquilo que fomos revelando desde o dia do acidente:

    O que o relatório estabelece, em pontos-chave

    1) Onde e como falhou o sistema? A ruptura do cabo ocorreu dentro do destorcedor do trambolho superior da cabina 1, a poucos centímetros da pinha (soquete) de amarração. A análise macroscópica realizada pelo GPIAAF mostra roturas progressivas dos arames (degrau a degrau, ao longo do tempo). Após a libertação, formou-se a meio do traçado um laço no sentido de torção — assinatura típica de rotação acumulada. Este ponto de ruptura não era visível numa inspeção convencional sem desmontar o destorcedor.

    2) Que cabo estava montado? O cabo era um 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang direita (zZ), com alma de fibra sintética. Entrara em serviço a 1 de Outubro de 2024; à data do acidente tinha 337 dias. Embora a sua carga mínima de rupttura (662 kN) fosse “largamente suficiente” para a carga do sistema, não estava conforme com a especificação interna da Carris para o Ascensor da Glória e, mais grave, o certificado do fabricante proibia o uso com destorcedor — exatamente o que existe no Glória.

    3) Porquê a incompatibilidade com destorcedor? A norma EN 12385-3  classifica cabos que não são resistentes à rotação e não devem trabalhar com extremidades livres de girar (caso de destorcedores). O cabo 6x36WS-FC enquadra-se nesse grupo; o certificado entregue ao operador também o dizia. Nada disto foi considerado na recepção e aplicação do cabo.

    4) A pinha (soquete): defeitos internos e método empírico. Radiografias às duas pinhas do trambolho, realizadas pelo GPIAAF, onde a ruptura ocorreu detectaram zonas menos densas e vazios numa delas. A execução das pinhas seguia um processo empírico histórico, registado num “caderno antigo” da Carris fora do sistema documental, sem norma interna específica para preparação do cabo, composição da liga, ensaios ou critérios de aceitação. O procedimento não cumpria os preceitos das normas EN 12927 (instalações por cabo – requisitos de segurança) e EN 13411-4 (terminações metálicas/resina), que exigem preparação, qualificação e inspeções periódicas à zona da pinha.

    5) Sequência operacional e falência da redundância. Após a ruptura do cabo no acidente do Elevador da Glória, a cabina 1 acelerou pela calçada; o guarda-freio actuou corretamente, mas os freios não imobilizaram o veículo. O primeiro embate, já com descarrilamento e tombamento parcial, deu-se entre 41 e 49 km/h, cerca de 20 segundos após o início de movimento. A cabina 2 recuou e ficou presa no limite inferior. O relatório descreve um sistema de frenagem cuja eficácia não estava assegurada para o cenário de falha de cabo, sem ensaios regulares para esse caso.

    6) Manutenção, aceitação e qualidade. Existia um plano de manutenção, mas os registos nem sempre correspondiam ao executado. A MNTC actuava de facto como “mão de obra” sob orientação da Carris. Não houve ensaios/controlo após a execução das pinhas nem inspeções magneto-indutivas que cobrissem os últimos 2 metros junto às terminações. Em 2024–25 ocorreram ainda dois incidentes (colisão da cabina 1 nas escadas e embate com veículo de manutenção) que solicitaram anormalmente o cabo e as fixações.

    7) Compras e especificação do cabo: o desvio de 2022. A investigação do GPIAAF documenta como, numa consulta lançada para o Elevador de Santa Justa, foram adicionados os artigos do Glória/Lavra e acabou contratualizado (e depois rececionado e aceite) um tipo de cabo divergente da especificação interna da Carris para o Elevador da Glória (que pedia 6x19S-IWRC gr1770, admitindo 6x19S-FC gr1770 como alternativa). Desde Dezembro de 2022 passou a ser usado no Glória o cabo 6x36WS-FC gr1960 zZ, não conforme com a especificação. O primeiro desses cabos durou 601 dias sem incidentes registados; o segundo foi o do acidente.

    8) Enquadramento legal e supervisão pública. O relatório do GPIAAF reconstrói a “zona cinzenta” jurídica que deixou os Elevadores da Glória e Lavra fora da supervisão regular do IMT/ANSF, ao contrário da Bica e de Santa Justa. Mas afirma explicitamente que nada impedia a aplicação adaptada de regras e supervisão efetiva — por iniciativa do operador ou do IMT — e recomenda agora um quadro legislativo que cubra todos os funiculares e sistemas assimiláveis.

    ***

    Onde a nossa investigação bateu certo — e cedo

    O Relatório Preliminar do GPIAAF hoje conhecido confirma, com linguagem pericial, o essencial do que o PÁGINA UM apurou e publicou entre 5 e 27 de setembro. Abaixo confrontamos, ponto por ponto, as constatações oficiais com as nossas peças — com títulos e datas — mostrando como o jornalismo independente chegou primeiro aos nós críticos desta tragédia.

    1) O ponto de falha estava “escondido” — e nós avisámos

    O GPIAAF localiza a ruptura dentro do destorcedor, a poucos centímetros da pinha/soquete, com rupturas progressivas e formação de laço por rotação acumulada — um local invisível numa inspeção visual sem desmontar. Já a 27/09/2025, explicámos que a questão decisiva não era “partir como corda velha”, mas ceder na união cabo–soquete, um ponto que exige processos e ensaios formais de selagem, e não meras rotinas visuais.

    2) O cabo aplicado desde 2022 era de alma de fibra — e isso importa na amarração

    O relatório descreve umcabo 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang (zZ), colocado 01/10/2024, com 337 dias de serviço — não conforme com a especificação da Carris e vedado pelo próprio certificado a uso com destorcedor. Em 22/09/2025, mostrámos a viragem de 2022 de IWRC (alma de aço) para CF (alma de fibra), e revelámos as facturas, e a poupança de 43%, sublinhando que o risco não estava na carga mínima de ruptura (CRM) nominal, mas no comportamento em serviço na amarração. Em 25/09/2025, detalhámos por que a CF é mais vulnerável à compactação e à perda de eficácia no soquete.

    3) Incompatibilidade cabo–destorcedor-soquet: a regra técnica que foi ignorada

    O relatório preliminar do GPIAAF regista que o próprio certificado do cabo proibia o trabalho com extremidade livre para girar (destorcedor), pelo facto de o cabo não ser resistente à rotação — justamente o caso do 6x36WS-FC. Na nossa leitura técnica (27/09/2025) já alertávamos para a eventual não conformidade normativa das terminações e da compatibilidade geometria–material, por serem determinantes na segurança.

    4) Pinha executada por “método empírico” e sem ensaios — aquilo que denunciámos

    Radiografias revelaram vazios internos numa das pinhas e um procedimento transmitido por “caderno antigo” da Carris, sem norma, sem ensaios e sem critérios de aceitação. A 27/09/2025 já escrevêramos que a selagem não é artesanato: exige materiais, provas de carga e qualificação em linha com as normas europeias de segurança. A ausência destes controlos deixava o sistema exposto.

    5) Falhou a redundância: travões que não param sem o cabo

    O guarda-freio (que morreu no acidente) actuou, mas os travões não imobilizaram a cabina; o primeiro embate deu-se entre 41–49 km/h, cerca de 20 segundos após a rutura do cabo. Nunca se ensaiou o cenário de falha de cabo. Em 05/09/2025, denunciámos a “inspeção por olhómetro” feita sem parar o equipamento (tempo real de paragem: 00:00:00), sem testes funcionais sob carga; e em 06/09/2025 provámos que o caderno de encargos nem exigia ensaios mecânicos ou não destrutivos ao cabo. Revelámos também em 13/09/2025 que, ao contrário do que sucedia na Carris, a manutenção no Porto, feita para os eléctricos dos STCP também pela MNTC, eram muitíssimo mais exigentes.

    6) Manutenção e aceitação: registos formais ≠ trabalho real

    O GPIAAF aponta registos que não batiam com as tarefas, formação sobretudo on-the-job, ausência de ensaios após execução das pinhas e inspeções magneto-indutivas que não cobriam os últimos 2 metros junto à terminação; documenta ainda incidentes em 2024–25 que solicitaram cabo e fixações. A 08/09/2025, revelámos a opacidade documental (sem relatório de instalação de 2024, sem prova de qualificações) e exigimos traçabilidade técnica e ensaios de aceitação. Em 06/09/2025, expusemos o modelo de manutenção reduzido a checklists visuais e a ausência de prescrições técnicas para desmontagens/medições/ensaios.

    7) Compras e especificação: o pivot de 2022 ficou provado

    O GPIAAF reconstruiu o processo que levou à escolha, para o elevador da Glória, de um cabo de alma de fibra em 2022. Em 22/09/2025, já tínhamos ligado os pontos: 2020 (cabos IWRC com certificação EN 12385-8) vs 2022 (CF), com uma poupança de 43% no preço e dúvidas de certificação — uma poupança ilusória com custos de segurança. Em 25/09/2025, identificámos a decisão de topo (de Tiago Lopes Faria, então presidente da Carris e professor do Instituto Superior Técnico) em 2022 e a ausência de ensaios/pareceres prévios à mudança.

    8) Enquadramento legal e supervisão: a “zona cinzenta” não desculpa ninguém

    O relatório do GPIAAF explica por que os elevadores da Glória e Lavra ficaram fora da supervisão regular do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMT), mas acrescenta que nada impedia regras e supervisão adaptadas. Em 11/09/2025, demonstrámos que a substituição do cabo é alteração significativa: exige projecto, plano de ensaios, análise de segurança independente e autorização prévia do IMT, além de documentação e inspeções periódicas.

    9) Quem tinha a incumbência de trocar o cabo — e quem o fez

    Revelámos em 08/09/2025 que a substituição do cabo era incumbência contratual da MNTC, sem prova pública de que a equipa tivesse as certificações exigidas. A Carris nunca respondeu e confirmou-se agora que foram técnicos da empresa municipal que procederam á substituição sem garantias de cumprimento das normas.


    Linha do tempo das nossas publicações (antes do relatório)


    Balanço

    O relatório preliminar corrobora o núcleo das nossas revelações: cabo errado e não conforme, incompatível com destorcedor e aplicação no soquete; falha na terminação com método empírico; manutenção/aceitação deficitárias; e supervisão pública omissa onde devia existir. A diferença é que hoje tudo isso vem escrito na gramática da peritagem. O jornalismo do PÁGINA UM chegou lá antes, e continuará acompanhar este caso para que o acidente da Glória modifique práticas e responsabilidades.

  • SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas

    SNS apaga campanha de sensibilização que incluía ‘virtudes’ das drogas


    Uma campanha de informação sobre o uso de drogas, lançada este mês pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), acabou por se tornar tão tóxica que foi eliminada das redes sociais.

    Em causa estão publicações do SNS nas redes sociais, designadamente no Facebook e Instagram, com informação sobre o uso de substâncias, como canábis e cocaína. A polémica estalou porque a campanha mencionava os “efeitos” provocados pelas drogas e que arriscavam servir de incentivo ao consumo das substâncias, por parecerem até ser positivos.

    Foto: Os “slides” polémicos que faziam parte da campanha de informação do SNS ainda estão disponíveis na Internet, tendo como referência a página do SNS no Facebook.

    A campanha de informação do SNS sobre cada substância era composta por quatro “slides” com informações separadas e o objectivo, no último slide, era facultar os contactos para quem precisasse da ajuda do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), a entidade pública identificada na campanha. O principal problema é que, separado dos restantes, um dos slides destacava os efeitos ou alegadas ‘virtudes’ dos estupefacientes, o que poderia induzir à experimentação.

    No caso da campanha sobre o uso de canábis, publicada no início deste mês, o SNS referia que os efeitos do consumo da substância incluem: relaxamento; alteração da percepção do tempo; aumento do apetite; e euforia leve.

    Já na campanha de informação relativa ao uso de cocaína, publicada no dia 10 de Outubro, o SNS destacava que os efeitos do consumo da droga incluem: euforia; aumento de energia; sociabilidade; e diminuição da fadiga. Este slide em particular está a ser partilhado nas redes sociais, separado dos restantes slides, para criticar o SNS pelo conteúdo da campanha de sensibilização.

    O director-executivo do SNS, Álvaro Almeida (em baixo, o segundo a contar da esquerda), e os membros do conselho de gestão do SNS (da esquerda para a direita): Francisco Matos, Ana Oliveira, Ana Rangel, Helder Sousa e Fernando Pereira. / Foto: D.R.

    A campanha, apurou o PÁGINA UM, foi elaborada pelo SNS e validada pelo ICAD, em termos científicos, mas não recebeu criticas positivas dos utilizadores das redes sociais que viram nos “slides” polémicos o risco de servirem como incentivo ao consumo daquelas substâncias que causam dependência.

    Apesar de terem sido apagadas das redes sociais, as imagens da campanha do SNS ainda se encontram espalhadas na Internet. Fazendo uma pesquisa nos motores de busca, encontram-se as imagens, que remetem para a página do SNS no Facebook. Mas quando se clica nas imagens, já não se encontram na página do SNS naquela rede social. Ou seja, existem indícios de que estiveram no perfil oficial desta entidade.

    O PÁGINA UM confirmou junto de uma fonte oficial que a campanha sobre o uso de canábis e cocaína é verídica e que as publicações foram eliminadas das redes sociais pelo SNS, para serem alvo de “reflexão”.

    Foto: Os quatro “slides” que constituem a campanha do SNS sobre o uso de cocaína e que ainda se encontram disponíveis na Internet, apesar de terem sido apagadas da página do SNS no Facebook.

    Para o psiquiatra Luís Patrício, um dos pioneiros no tratamento das toxicodependências em Portugal e autor da página ‘Mala de Prevenção‘, “felizmente, tendo em conta o conteúdo, foi apagado” das redes sociais. Mas, salientou que, “infelizmente, está na rede [Internet]”.

    O especialista recordou “um outro disparate dos anos 90, quando também nos serviços do Ministério da Saúde foi publicada uma informação também disparatada” sobre heroína, em que foi usada uma frase similar a esta: “a gota sedutora que escorre”. Ora, a heroína, é “um produto/droga de consumo abusivo, geradora de intensa dependência”.

    “Estes factos devem-nos fazer pensar que algo tem de mudar em termos de exigência e de competência”, defendeu o psiquiatra.

    No caso da campanha que agora foi apagada das redes sociais, Patrício alertou que, quem vir apenas o slide sobre os efeitos do uso das drogas, “de forma isolada, pode pensar não se tratar de uma informação no âmbito da prevenção sanitária social, mas de um slide integrado numa campanha com perspectivas geopolíticas económicas”.

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    Foto: D.R.

    O psiquiatra observou que quem publicou a campanha “ou não valorizou, porventura, o risco, no âmbito da educação para a saúde/prevenção, na perspectiva sanitária e social, ou teria apenas talvez alguma boa intenção”.

    Luís Patrício salientou que, com o slide polémico, “quem não sabe [quais são] os efeitos, fica a saber” e, “alguém menos informado ou mais frágil, até pela vivência grupal, queira comprovar os efeitos da “gulosa” assim é o nome em calão [para a cocaína]”. Por outro lado, “quem esteja em sofrimento directo ou indirecto relacionado com cocaína, poderá sentir alguma tristeza ou até revolta dados os estragos provocados pela cocaína nos que, sem desejarem, ficaram agarrados, dependentes”.

    O psiquiatra destacou que, na sensibilização sobre o uso de drogas, “um dos equívocos reconhecidos foi, nos anos 70 e 80, serem publicitados os efeitos da substância no âmbito da prevenção” que causou um “efeito contrário ao desejado”. Mas, “porventura, em Portugal, ainda há quem não tenha sido ensinado ou compreendido”.

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    Foto: D.R.

    Defendeu que “é preciso repensar a prevenção em Portugal”, com “mais competência, mais exigência, mais profissionalismo” porque “as boas vontades são simpáticas, mas não chegam”.

    Em resposta a questões do PÁGINA UM, fonte oficial do SNS indicou “que a direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde não tem intervenção nessas campanhas, nem na publicação dos conteúdos das redes sociais do SNS”. Formalmente, o ICAD não comentou a polémica. O PÁGINA UM fez também várias tentativas de contacto com a porta-voz da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, para obter um comentário, mas até ao momento não nos foi comunicada qualquer resposta.

    A par da campanha sobre o uso de canábis e de cocaína, o SNS também publicou recentemente uma campanha nas redes sociais a alertar para os riscos do consumo de álcool, mas, neste caso, a publicação do SNS não deixou rasto tóxico e mantém-se disponível.

  • Reputação: Banco de Portugal contrata sondagem mas exige correcções se o resultado não agradar

    Reputação: Banco de Portugal contrata sondagem mas exige correcções se o resultado não agradar


    Para uma instituição que se quer sóbria, polémicas não têm faltado ao Banco de Portugal, a começar pelo seu governador até há pouco tempo, Mário Centeno. Talvez por isso, a instituição agora liderada por Álvaro Santos Pereira mantenha-se preocupada com a sua reputação e tenha seguido uma ideia herdada do seu antecessor: fazer um barómetro de reputação.

    Assim, dois dias após a substituição de Centeno por Santos Pereira, o banco confirmou a contratação de uma empresa de sondagens para perguntar aos portugueses o que pensam da instituição. Na verdade, o que os portugueses acharem é irrelevante: a acção do Banco de Portugal no quotidiano é praticamente nula, limitando-se à supervisão das instituições financeiras e à execução das directivas do Banco Central Europeu.

    Mário Centeno terminou oficialmente o seu mandato como governador do Banco de Portugal no dia 19 de Julho mas manteve-se no cargo até à nomeação do seu sucessor. Foi substituído pelo antigo ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, cujo mandato como governador teve início no dia 6 de Outubro. / Foto: D.R.

    Certo é que a decisão de avançar com a despesa foi tomada pela direcção do Departamento de Logística e Instalações do Banco de Portugal no passado dia 20 de Julho, em pleno fim oficial do mandato de Centeno, mas o contrato foi celebrado dois dias após a tomada de posse de Santos Pereira, no dia 8 deste mês. A empresa escolhida, após um procedimento de consulta prévia, acabou foi a Marktest que receberá 73.099 euros, com IVA incluído, para elaborar e conduzir um estudo de mercado durante três anos, embora possa ser revogado a cada ano.

    Segundo o caderno de encargos do procedimento, consultado pelo PÁGINA UM, “o Banco de Portugal, com a elaboração de um Barómetro Anual da sua reputação, pretende monitorizar o nível de conhecimento e de confiança da sociedade sobre a sua missão e actividades e adaptar as suas estratégias de comunicação de forma mais eficiente”.

    No entanto, ainda não estão definidas as questões a colocar — estimadas em cerca de três dezenas — nem o número total de pessoas a inquirir. Em todo o caso, um estudo desta natureza, para ter credibilidade estatística representativa da população adulta portuguesa (cerca de 8,2 milhões de pessoas), deve incluir pelo menos 600 entrevistas, o que corresponde a um erro amostral próximo de ±4%. Para uma amostra de 1.000 inquiridos, o erro desce para cerca de ±3%, garantindo maior robustez. Em termos de custos, cada inquérito telefónico ronda entre 15 e 25 euros, dependendo da complexidade e duração, o que colocaria o valor total do estudo entre 9.000 e 25.000 euros.

    Álvaro Santos Pereira, governador do Banco de Portugal desde 6 de Outubro.

    Assim, face ao custo envolvido, é mais provável que seja escolhida uma amostra de cerca de 600 inquiridos, o mínimo necessário para garantir validade estatística, permitindo à empresa contratada maximizar a margem de lucro sem comprometer formalmente a credibilidade do estudo.

    A decisão deste barómetro surge ainda para cumprir uma meta do Banco de Portugal, que definiu, no seu plano estratégico para 2021-2025, como um dos objetivos aumentar a proximidade e a confiança junto da sociedade”.

    E bem que precisa. Têm sido várias as polémicas em torno da instituição, no passado mais distante e no mais recente. Basta lembrar que, apesar de toda a supervisão, grandes bancos colapsaram, com destaque para o BES, em 2014, com as decisões do Banco de Portugal a deixar um conjunto de investidores lesados. Depois, os gastos e alguns luxos, designadamente com salários, contratações e promoções, têm deixado marcas reputacionais negativas.

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    Foto: D.R.

    A somar, mais recentemente, há a polémica em torno da nova sede do Banco de Portugal, na zona de Entrecampo, envolvendo os terrenos da Fidelidade, agora com capitis chineses, que já é vista como um elefante branco. Acrescem todas as polémicas em torno de Mário Centeno, que até na saída do cargo de governador foi motivo de notícia devido ao conteúdo da mensagem que enviou aos trabalhadores da instituição, com um tom que alguns viram como narcísico.

    Agora, o Banco de Portugal contratou a Marktest para aferir “do conhecimento e confiança” que “a sociedade portuguesa adulta” tem desta instituição cada vez mais distantes dos portugueses..

    O contrato está dividido em três fases operacionais que incluem ao desenho, implementação e apresentação do estudo. Assim, “no prazo máximo de uma semana após a outorga do contrato ou em data posterior se o Banco de Portugal assim o indicar, deverá ser realizada uma reunião de kick-off entre as partes para a preparação do plano detalhado dos trabalhos a executar, a identificação de factores críticos de sucesso e riscos do estudo”.

    O Banco de Portugal fechou acordo com a Fidelidade para construir um novo edifício num terreno (na foto) onde antes se situava a Feira Popular, junto a Entrecampos, Lisboa. Foto: PÁGINA UM

    Adivinha-se uma tarefa espinhosa para a Marktest e o Banco de Portugal. Por um lado, o banco quer ouvir os portugueses, por outro não quererá publicar um barómetro de reputação negativo. A chave estará nas questões a colocar aos portugueses que, certamente, não irão incluir perguntas sobre o que pensam da luxuosa Quinta da Fonte Santa, que exige uma manutenção milionária, ou o valor total pago pelo Banco de Portugal com mudanças, instalações temporárias (com tapumes em obras nunca iniciadas) e a construção na nova sede.

    Porém, a instituição agora liderada por Santos Pereira tem a ‘faca e o queijo na mão’: o caderno de encargos do contrato destaca explicitamente que, se houver alguma coisa que esteja ‘incorrecta’ no relatório final, a Marktest terá de “garantir a realização de todas as correcções e/ou propostas de melhoria, à sua custa, solicitadas pelo Banco de Portugal, e disponibilizar uma nova versão actualizada”.

  • A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’

    A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’


    No final de 2021, Dino d’Santiago — o músico português nascido no Algarve mas com orgulhosas raízes cabo-verdianas — dizia ao Observador: “Hoje já me sinto merecedor de tudo.” E tem sido isso mesmo que sucedeu a Claudino Jesus Borges Pereira, hoje com 42 anos.

    Ao sucesso musical, Dino d’Santiago somou o reconhecimento político, tendo sido, em 2023, condecorado com a Medalha de Mérito Cultural, é agora membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial e até do Conselho Geral da Universidade de Aveiro . Tudo isto muito por ter assumido um papel de relevância pública nos projectos sociais em que se envolveu, sobretudo nas áreas da raça e da discriminação. Publicou recentemente o livro Cicatrizes, com prefácio da escritora (e conselheira de Estado) Lídia Jorge, e recebeu ainda um convite para conceber uma ópera “estrelada” no Centro Cultural de Belém, numa encomenda da Bienal de Artes Contemporâneas. Por isso, é amiúde visto em companhia de figuras públicas e de poder.

    Dino d’Santiago com Carlos Moedas em Osaka, numa acção social da Mundu Nôbu, que levou um jovem á Exposição Mundial de Osaka: Foto: DR.

    Mas há outro lado da história: Dino d’Santiago tem sido copiosamente apoiado, como poucos, pelos poderes públicos. E o apoio não é apenas de solidariedade e ‘pancadinhas nas costas’. É com ‘txeu dinheru’ – como se dirá na ilha de Santiago para ‘”muito dinheiro”. Com efeito, ao longo dos últimos cinco anos, Dino d’Santiago tem conseguido implementar, graças à sua popularidades nos corredores da política, um modelo de financiamento que, sendo formalmente escorreito, choca pelas verbas envolvidas.

    Na passada terça-feira, o PÁGINA UM revelou que, através da associação Mundu Nôbu — que fundou em finais de 2023 e que preside, sem se conhecerem outros membros da direcção além de Liliana Valpaços —, Dino d’Santiago conseguiu garantir, nos últimos 13 meses, 481 mil euros de duas empresas municipais (Gebalis e EGEAC) para a prestação de serviços sociais e para dois espectáculos musicais contratualizados por valores inflacionados. Mas essa era apenas uma parte da história.

    Uma investigação mais aprofundada nos últimos dias apurou que, de forma directa e indirecta, desde 2021, Dino d’Santiago já garantiu muito mais em subsídios e contratos públicos: quase 1,6 milhões de euros, grande parte através de uma empresa da qual é o único sócio.

    Ligações privilegiadas ao poder não têm trazido apenas capacidade de intervenção, mas também muito dinheiro. Foto: DR.

    Antes de fundar a associação Mundu Nôbu — nome retirado do álbum homónimo de 2018 —, o músico criou, em 2019, a empresa unipessoal Batuku Roots, com sede em Albufeira, que incluía, além das actividades musicais, o arrendamento de imóveis e a comercialização de vestuário e brindes. Contudo, foi em Lisboa, e sobretudo a partir de 2021, que a empresa começou a facturar em grande escala.

    Nesse ano, ainda com fortes limitações impostas pela pandemia — período em que muitos artistas foram severamente penalizados —, a Câmara Municipal de Lisboa entregou-lhe 250 mil euros de subsídio para lançar um projecto online denominado “Lisboa Criola”. No mesmo ano, o Turismo de Portugal, no âmbito das medidas de mitigação dos efeitos económicos da pandemia, concedeu-lhe mais de 20 mil euros.

    Em 2022, já sem restrições sanitárias, o projecto de Dino d’Santiago manteve-se activo, centrando-se num festival de música com workshops e conferências durante três dias. Resultado: mais 250 mil euros atribuídos à Batuku Roots, valor que, segundo as demonstrações financeiras consultadas pelo PÁGINA UM, representou praticamente a totalidade das suas receitas desse ano. E, como não há duas sem três, em 2023 a empresa de Dino d’Santiago voltou a receber 250 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas. Nesse exercício, a Batuku Roots registou receitas de 346 mil euros, não se sabendo se os cerca de 100 mil euros adicionais provêm de actividade empresarial ou de outros subsídios públicos.

    Em três edições da ‘Lisboa Criola’, uma das quais online, a empresa unipessoal de Dino d’Santiago, a Batuku Roots, recebeu 750 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas.

    Na lista de entidades subvencionadas em 2024 pela autarquia de Lisboa, a Batuku Roots já não surge, mas a razão parece simples: com a criação da associação Mundu Nôbu no final de 2023, Dino d’Santiago deslocou as suas atenções e passou a beneficiar de um estatuto ainda mais privilegiado nos corredores do poder — deixando de necessitar de apresentar candidaturas e passando a celebrar contratos directos com a Câmara de Lisboa, através da Gebalis e da EGEAC. Entre 2024 e 2025, essas contratações já totalizam 481 mil euros.

    A associação Mundu Nôbu recebeu ainda, em Setembro de 2023, um apoio adicional de 314.863 euros no âmbito do Portugal Inovação Social, destinado a um projecto de “empoderamento e capacitação de jovens afrodescendentes” com duração de três anos. O projecto é um dos que a autarquia de Lisboa apoiou este ano.

    Contas feitas, e não tendo sido possível confirmar se houve outros financiamentos por outras entidades públicas de menor dimensão, Dino d’Santiago obteve, através da empresa e da associação, cerca de 1,6 milhões de euros em apoios e contratos públicos desde 2021, sendo que no caso da Mundu Nôbu a verba de subsídios atinge quase 800 mil euros. E a autarquia de Lisboa é, de longe, o principal financiador:Ç mais de 1,2 milhões de euros, entre a Batuku Roots e a Mundu Nôbu. No caso da associação, são também divulgadas mais de uma dezena de entidades privadas como parceiras, designadamente o Banco BPI, a Fundação La Caixa, o BNP Paribas, a Fundação Calouste Gulbenkian, a FNAC, a Emerald Group, a PwC, a Microsoft, a IKEA, a Worten, a Randstad, a Euro M e o ISPA. Mas nada se indica sobre os montantes envolvidos ou se se trata de prestação de serviços ‘pro bono’.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Contactados novamente a associação Mundu Nôbu e Dino d’Santiago, houve desta vez resposta — embora evasiva. O PÁGINA UM quis saber o valor total dos financiamentos públicos obtidos desde 2021, quer através da associação, quer da empresa, bem como as respectivas proveniências. Foi ainda questionado se, dado que a Batuku Roots deixou de receber financiamento da autarquia em 2024, Dino d’Santiago passou a prestar serviços remunerados à associação Mundu Nôbu. Reiterou-se também o pedido de relatório e contas de 2024 — que já deveriam estar aprovados até Março —, bem como a lista de membros dos órgãos sociais e o número de associados, informações que continuam a não ser divulgadas.

    Em resposta individual, Dino d’Santiago afirmou que “a Batuku Roots é a empresa onde desenvolvo a minha actividade profissional e artística, sendo a Mundu Nôbu uma associação privada sem fins lucrativos, no âmbito da qual procuro, enquanto cidadão, contribuir com o meu empenho cívico, social e solidário”. Garantiu ainda que “até à data, nem eu, nem a minha empresa ou qualquer familiar meu, recebemos qualquer verba por parte da Mundu Nôbu”, acrescentando que, “pelo contrário, tal como a minha co-fundadora Liliana Valpaços, aloquei verbas significativas na Mundu Nôbu, a título pessoal”.

    Contudo, sem relatório e contas aprovados nem documentos contabilísticos disponíveis, esta declaração não é comprovável. O PÁGINA UM voltou a questionar Dino d’Santiago sobre os montantes que ele e a sua parceira Liliana Valpaços supostamente alocaram à associação, e que modelo contabilístico foi usado, mas não houve ainda resposta.

    O empoderamento de jovens tem incluído visitas de Dino d’Santiago e dos jovens dos projectos da Mundu Nôbu à Presidência da República. Foto: DR.

    Já na resposta conjunta de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços, enquanto representantes da associação Mundu Nôbu, foram repetidos os mesmos argumentos, e acrescentaram que, quanto às informações financeiras e plano de actividades, “agindo com a transparência que caracteriza a associação, após aprovação em Assembleia Geral, o que se prevê ocorrer a curto prazo, aquela poderá ser disponibilizada para consulta, verificados os pressupostos para tal aplicáveis”.

    Importa salientar que os planos de actividades devem ser elaborados no início do ano a que dizem respeito, e os relatórios e contas de um determinado exercício têm de ser aprovados até Março do ano seguinte. Ora, já passaram mais de seis meses do prazo.

    Uma associação não está obrigada à mesma transparência que uma empresa privada – e esse modelo está cada a enraizar-se mais -, mas o facto de a Mundu Nôbu receber avultados apoios públicos coloca-a sob a alçada da Inspecção-Geral das Finanças e do Tribunal de Contas, para eventual verificação da boa aplicação dos dinheiros públicos.

    Acresce ainda que, recebendo já mais de 800 mil euros em tão pouco tempo, a associação aparenta ser uma estrutura fechada, porque repetidamente Dino d’Santiago não responde aos pedidos de divulgação dos membros dos distintos órgãos sociais. E o facto de, por lei, uma associação não poder distribuir lucros, tão não significa que esteja impedida de desviar receitas através de fornecimentos de serviços ou mesmo remunerações dos seus dirigentes.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    E apesar de não terem respondido a parte das questões nem revelado documentos sobre a associação — que, mesmo admitindo mérito social, se mantém envolta em opacidade —, Dino d’Santiago e Liliana Valpaços deixam um aviso ao PÁGINA UM: “Gostaríamos de sublinhar que qualquer informação que venha a ser veiculada em canais públicos com carácter difamatório, ofensivo ou contrária à realidade dos factos, bem como os prejuízos, designadamente financeiros, da mesma decorrentes, serão tratados em sede própria. Não pode a Mundu Nôbu permitir que uma missão que se quer humanitária seja alvo de qualquer acção de descredibilização, com impacto em todos os que para a mesma contribuem.

    Ou seja, uma associação que já recebeu quase 800 mil euros de dinheiros públicos foi convidada por um jornal a mostrar transparência e, em vez disso, ameaça com um processo judicial – algo que, aliás, pode ser até patrocinada pela pbbr — Sociedade de Advogados, outra das parceiras do Mundu Nôbu.

  • Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias

    Associação de Dino d’Santiago já ‘sacou’ 481 mil euros à autarquia de Lisboa em prestação de serviços e cantorias


    Nos últimos 13 meses, a associação Mundu Nôbu, presidida pelo músico Dino D’Santiago e gerida pela sua parceira Liliana Valpaços, conseguiu encontrar um verdadeiro mundo novo de financiamento público através de alegadas prestações de serviços a empresas municipais de Lisboa.

    À margem dos habituais concursos e candidaturas públicas, a que estão sujeitas dezenas de organizações não-governamentais, a associação criada no final de 2023 pelo músico residente no Algarve, mas com forte projecção mediática na capital, já conseguiu firmar, desde Agosto do ano passado, quatro contratos directos com estruturas da Câmara Municipal de Lisboa, no montante global de 481 mil euros (equivalente a 385 mil euros acrescidos de IVA).

    Carlos Moedas e Dino d’Santiago no ano passado num concerto na Praça do Município. Foto: CML.

    O expediente foi simples: em vez de subsídios ou apoios sujeitos a regras de concurso, a Mundu Nôbu passou a figurar como prestadora de serviços, assinando contratos de aquisição directa — ora para a execução de projectos sociais com a Gebalis, empresa municipal de habitação, ora para a organização de concertos a preços manifestamente inflacionados com a EGEAC, responsável pela gestão cultural da cidade.

    O primeiro grande contrato surgiu em Agosto do ano passado, quando a EGEAC assinou com a recém-criada associação um acordo de 130 mil euros para a “concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundo Novo 2024”. O evento, integrado nas Festas na Rua, foi apresentado com o tema “A interculturalidade portuguesa no topo do Spotify”, mas, na prática, resumiu-se a uma conferência com Dino D’Santiago e convidados, seguida de um concerto nocturno na Praça do Município, com actuações de Dino D’Santiago, Irma, Soluna, Crioulo, Maro e Bateu Matou. Pelas imagens disponíveis, o público presente não terá ultrapassado o milhar de pessoas, embora o evento tenha contado com a presença do presidente da autarquia, Carlos Moedas.

    O ritmo de contratos acelerou este ano. Em Junho, a Gebalis adjudicou à Mundu Nôbu um contrato de 20 mil euros, por ajuste directo, para um projecto de intervenção comunitária denominado “O Teu Lugar no Mundo”, destinado a jovens entre os 14 e os 22 anos. A descrição contratual era vaga: realização de reuniões semanais de duas horas com até 160 participantes, divididos por grupos. Não há registos fotográficos nem informação sobre o local de realização das sessões, mas a empresa municipal pagou integralmente a verba correspondente a oito encontros, uma vez que o contrato teve a duração de 60 dias. Curiosamente, o valor adjudicado coincidiu com o limite máximo legal que dispensa concurso público.

    Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

    Mal terminou esse contrato, a Gebalis renovou a prestação de serviços por mais doze meses, agora no valor de 125 mil euros, sob a designação “fase de desenvolvimento”. Este novo acordo, celebrado em Agosto, foi classificado como uma “contratação excluída” — expressão que, na prática, significa um procedimento fora das regras habituais da contratação pública, situação de legalidade duvidosa no contexto deste serviço. Assim, um apoio temporário transformou-se num contrato anual que assegura mais de 10 mil euros mensais à associação de Dino D’Santiago, com cláusulas invulgares.

    Mais do que um instrumento de intervenção social, o contrato revela-se um veículo de promoção da própria associação. De acordo com o documento, e sob o pretexto de “articulação” com a empresa municipal, prevê-se a realização de visitas mensais aos bairros para “apresentar o projecto e convidar jovens e famílias a conhecer a Mundu Nôbu”, bem como a produção de conteúdos digitais com menções expressas à entidade.

    Em vez de actividades concretas e metas mensuráveis, o contrato estabelece uma rotina de reuniões, relatórios e intercâmbios vagos, que acabam por servir sobretudo para dar visibilidade e notoriedade à associação beneficiária, mais do que para gerar resultados tangíveis junto dos moradores dos bairros municipais.

    Dino d’Santiago e Liliana Valpaços: uma associação em Lisboa que encontrou um expediente para não ter de andar com arrelias e burocracias em candidaturas para apoios públicos: basta fazerprestação de serviços à Gebalis e uns concertos inflacionados para a EGEAC. Foto: CML.

    O quarto e mais recente contrato foi assinado no passado dia 19 de Setembro, novamente com a EGEAC, para a coprodução e apresentação do “Mundo Nôbu Experience 2025”, por um valor total de 110 mil euros. O evento, previsto para 12 de Novembro no Capitólio, está descrito apenas como um “concerto” entre as 20h30 e as 23h00. O documento não especifica o conteúdo artístico, nem há qualquer referência a orçamentos detalhados. Curiosamente, nem o Capitólio, nem a EGEAC, nem a Agenda Cultural de Lisboa incluem o espectáculo nas respectivas programações, o que levanta dúvidas quanto à efectiva execução do contrato.

    Mais surpreendente ainda é o contraste entre estes valores e os cachês de Dino D’Santiago. Nos últimos anos, os concertos do músico, de ascendência cabo-verdiana, têm oscilado geralmente abaixo dos 20 mil euros. A Câmara de Lisboa pagou-lhe 6.000 euros em 2018, no âmbito da Moda Lisboa; em 2019, recebeu 5.500 euros da Associação Vicentina, 17.000 euros da Câmara de Alcobaça e 15.000 euros da de Aveiro (num espectáculo conjunto com Branko). Em Viana do Castelo o valor foi de 10.500 euros, na Figueira da Foz de 5.000 euros, e apenas em Albufeira, sua região natal, atingiu o valor excepcional de 71.400 euros no ano passado. Em 2024, só se encontra um contrato público de espectáculo, com a Câmara de São João da Madeira, no montante de 9.000 euros.

    A associação Mundu Nôbu parece, assim, ter descoberto um modelo engenhoso: usar uma figura pública de grande visibilidade para obter financiamentos públicos regulares, com um modelo de gestão pouco transparente, sem depender de candidaturas competitivas ou de voluntariado associativo. Apresentando-se como uma organização sem fins lucrativos, actua de facto como uma estrutura profissional, concentrada e opaca. Apesar de se afirmar aberta a novos sócios, apenas duas figuras estão visivelmente associadas ao projecto: Dino D’Santiago, presidente, e Liliana Valpaços, responsável pela execução dos contratos e, desde o ano passado, alegadamente remunerada após uma alteração estatutária.

    Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

    O PÁGINA UM contactou por duas vezes a associação Mundu Nôbu, solicitando esclarecimentos sobre as contas do exercício de 2024, o plano de actividades dos seus dois anos de existência, os órgãos sociais e o número de sócios efectivos. Não houve qualquer resposta — talvez por se entender que não é necessário prestar contas à imprensa quando se gerem dinheiros públicos.

    No site da associação surge a equipa da Mundu Nôbu constituída por uma psicóloga, uma responsável pela comunicação e marketing, um responsável administrativo e financeiro e três monitores. Nada consta de relatórios, nem os nomes dos órgãos sociais (direcção, assembleia geral, conselho consultivo e fiscal único), nem planos de actividades. Apenas se exibem fotografias genéricas e frases inspiracionais sobre “interculturalidade” e “empoderamento”.

    Não há sequer referências a eventos realizados nem a iniciativas futuras, e mesmo o anunciado concerto de 12 de Novembro no Capitólio permanece envolto em silêncio. Já a lista de parceiros institucionais e privados é extensa e bem exposta — mais de uma dezena —, uma espécie de convite da Mundu Nôbu para se apoiar uma história de sucesso: só com sorrisos, palmadinhas das costas, dinheiro público… e sem questionamentos.

  • Canal TV dos tribunais administrativos tem já meio milhão de euros pronto para gastar

    Canal TV dos tribunais administrativos tem já meio milhão de euros pronto para gastar


    A Justiça administrativa em Portugal pode ler lenta, com processos a desenrolar-se por anos, e inacessível a muitos, já que as custas são proibitivas, mas não se pode acusá-la de retrógrada: o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) prepara-se para lançar um canal de televisão em regime de streaming com conteúdos jurídicos – e esta até poderá acessível aos cidadãos comuns, pagando uma subscrição. Não se sabe é se o valor será indexado à famosa Unidade de Conta (UC).

    O lançamento do canal JAF TV, que tem estreia marcada para o segundo semestre de 2026 será financiado com verbas retiradas de um projecto de digitalização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O CSTAF tem disponíveis, por agora, 422,8 mil euros de um ‘bolo’ de 950 mil euros que recebeu para “a melhoria das condições de contexto de funcionamento do sistema de Justiça da República Portuguesa, nas vertentes legal, procedimental, de gestão do conhecimento e do paradigma tecnológico”.

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    Foto: D.R.

    Em concreto, o projecto não fala especificamente num canal televisivo, mas sim em investimentos em plataformas digitais dos Tribunais Administrativos, incluindo a contratação de recursos tecnológicos, hardware e software. Grande parte dos investimentos (55,5% do total) deste financiamento global foi já gasto na aquisição de hardware e de software, incluindo de inteligência artificial.

    A decisão de criar o canal JAF TV, que terá de ser autorizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, foi aprovada pelo CSTAF no passado dia 23 de Setembro, mas não nascerá desacompanhada. O projecto televisivo terá parceiros terá cofundadores, segundo a deliberação publicada em Diário da República na passada sexta-feira.  

    Não se pense que este canal servirá para a transmissão de actos processuais como já sucede com o Tribunal de Justiça da União Europeia, até porque são raras as audiências nos tribunais administrativos, que funcionavam à base de requerimentos e despachos escritos. Na verdade, a JAF TV serve para auxiliar na formação certificada especializada dos magistrados da jurisdição administrativa e fiscal, disponibilizando essa formação a quem, na área do direito, tenha interesse em pagar o acesso. Mas também terá uma componente mais aberta, prevendo-se quatro rubricas e ainda um podcast mensal. 

    A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e o juiz conselheiro Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia, que tomou posse como presidente do CSTAF em Outubro de 2024. / Foto: D.R.

    Já desde sexta-feira que o PÁGINA UM preparava uma notícia sobre o lançamento deste canal e enviou questões ao CSTAF, designadamente sobre como será financiado o canal, tendo-nos sido enviadas respostas na segunda-feira. Mas só ontem, após novo contacto telefónico, recebemos a resposta final sobre a origem concreta do financiamento. Em paralelo, sem nada indicar no contacto telefónico feito com o PÁGINA UM, o CSTAF emitiu um comunicado público para anunciar o lançamento do canal, antecipando-se à notícia do PÁGINA UM.

    Antes, nas respostas escritas enviadas ao nosso jornal, o CSTAF esclareceu que as entidades cofundadoras da JAF TV “serão estabelecimentos de ensino superior, instituições públicas e associações de magistrados que acrescentarão qualidade à componente formativa do canal”, disse fonte oficial do CSTAF em resposta a perguntas do PÁGINA UM. Mas poderão alugar por um valor simbólico, a determinar, “os meios tecnológicos e humanos da JAF TV para a realização e transmissão de eventos próprios que se alinhem com a missão do canal”.

    Também não são ainda conhecidos os preços de subscrição da JAF TV, os quais “estão a ser definidos de acordo com o estudo económico financeiro que está a ser elaborado para o canal”. Mas é certo que “qualquer interessado, seja individualmente ou através de uma pessoa coletiva, pública ou privada, pode subscrever e aceder aos conteúdos do canal JAF TV”.

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    O que se sabe é que o canal de TV vai ter um “serviço por assinatura” que “consiste no pagamento de uma quantia periódica – mensal, trimestral ou anual – que confere ao utilizador acesso ilimitado a todos os conteúdos da plataforma, incluindo seminários, congressos, ações de formação, entrevistas e podcasts, no período subscrito”. A criação desta “modalidade visa proporcionar uma receita previsível para o canal e incentivar o consumo contínuo de conteúdo por parte dos subscritores”.

    Também vai disponibilizar o pagamento por conteúdo, que “permite ao utilizador pagar um valor único para aceder a um conteúdo singular e específico, como um seminário, um congresso ou um curso específico, sem a necessidade de uma assinatura contínua”.

    A JAF TV terá descontos para entidades parceiras cofundadoras, as quais “beneficiam de um desconto automático de 35 % em todos os serviços e de condições especiais para a utilização do canal para os seus próprios eventos”. Também “serão estabelecidos descontos de 25 % para estudantes de direito, mestrado ou doutoramento, mediante comprovativo de inscrição”.

    (Da esquerda para a direita) O presidente do STA e do CSTAF, juiz conselheiro Jorge Aragão Seia, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, o secretário de Estado-Adjunto e da Justiça, Gonçalo Cunha Pires, e a juíza-secretária, juíza desembargadora Eliana Almeida Pinto, a qual vai liderar o novo canal JAF TV. / Foto: D.R.

    O canal será dirigido pela juíza-secretária do CSTAF, a juíza desembargadora Eliana Almeida Pinto, que assumirá a função de diretora-geral, a quem caberá definir “a estratégia editorial e institucional do canal”, com a supervisão do presidente do CSTAF.

    A criação de um canal de streaming não foi a única mudança recente aprovada pelo CSTAF. Na mesma sessão em que foi aprovada a criação da JAF TV foi também aprovada a criação de um Gabinete de Relações Internacionais, um Gabinete de estudos e um Gabinete de apoio ao presidente do CSTAF e juiz-secretário.

  • Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados

    Comissão Nacional de Eleições ‘aprova’ com silêncio a realização de debates patrocinados


    A Comissão Nacional de Eleições (CNE), presidida pelo juiz-conselheiro Pires Trindade, recusa comentar e revelar se adoptará alguma posição sobre o patrocínio da secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), através do pagamento de 25 mil euros, à realização de quatro debates autárquicos promovidos pelo Jornal de Notícias (JN) com candidatos às presidências das Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, mas cujo contrato excluía alguns dos partidos concorrentes.

    Apesar de três mensagens de correio electrónico enviadas pelo PÁGINA UM desde quarta-feira terem sido confirmadas como recebidas pelos serviços da CNE, não houve qualquer resposta deste organismo independente quanto à legalidade e oportunidade da iniciativa. A menos de um dia das eleições, o silêncio da entidade fiscalizadora deixa sem escrutínio um modelo inédito — e potencialmente perigoso — de “debates patrocinados” em plena campanha. E abre portas, no futuro, para ‘modalidades’ ainda mais promíscuas e desviantes.

    Como o PÁGINA UM revelou, o JN introduziu nesta campanha uma “inovação”: debates financiados por um terceiro, que assume a definição dos temas a discutir. No caso, a OERN celebrou mesmo um contrato público para estabelecer as condições dos debates, tendo estes se centrado em exclusivo nos temas da “habitação” e “mobilidade”. A cláusula contratual, firmada entre a OERN e a Notícias Ilimitadas (proprietária do JN), limitou convites a forças com representação nas Assembleias Municipais, provocando exclusões em todos os concelhos abrangidos.

    No Porto, por exemplo, apenas 8 das 12 candidaturas estiveram no palco; em Braga, participaram 7 de 10; em Viana do Castelo a CDU ficou de fora; em Bragança subiram ao debate 4 de 7 listas. Para além de condicionar temas e formato, o financiador viu ainda assegurada visibilidade institucional: o presidente da OERN, Bento Aires, foi o centro das atenções, sendo até fotografado no meio dos candidatos.

    O carácter polémico destes debates patrocinados decorre de três planos. Primeiro, a natureza da OERN: sendo uma associação pública profissional que exerce poderes públicos (inscrição, disciplina, regulação profissional), está sujeita a legalidade, imparcialidade, prossecução do interesse público e neutralidade institucional. Financiar debates com candidatos, em período eleitoral, pode colidir com a neutralidade e condicionar o pluralismo.

    Segundo, a parceria com um órgão de comunicação social, remunerada e com temas predeterminados, fere a necessária separação entre jornalismo e patrocínio, agravada pelo facto de o conteúdo ter sido divulgado em formato informativo e moderado por um ex-jornalista com funções comerciais, o que suscita dúvidas de incompatibilidade ética e autonomia editorial. Terceiro, as exclusões de candidaturas legalmente admitidas afectam a igualdade de oportunidades entre concorrentes, princípio basilar da disputa eleitoral.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    Questionado pelo PÁGINA UM, Bento Aires, líder da OERN, justificou por escrito que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões”, garantindo, contra o que resulta do contrato, que “todos os candidatos (…) foram convidados”. E assegurou que os debates decorreram “com total imparcialidade e isenção”. Porém, nem nos vídeos alojados nas páginas do JN e da OERN, nem nas peças de enquadramento, é referida a existência de patrocínio remunerado nem a interferência do financiador na escolha de temas. Esse défice de transparência é grave em qualquer circunstância; em campanha, é inaceitável.

    Perante este quadro, qual deveria ser o papel da CNE? De acordo com as suas competências, esta Comissão tem o dever de zelar pela regularidade dos actos eleitorais, assegurar a igualdade de tratamento das candidaturas e vigiar a neutralidade das entidades públicas, emitindo recomendações e deliberações quando detecta riscos para a liberdade de voto, a isenção informativa e a equidade. Pode ainda instar correcções imediatas e encaminhar ocorrências para a competente actuação contra-ordenacional quando aplicável.

    Num contexto em que uma entidade do sector público financia debates e define regras de participação e temas, esperar-se-ia, no mínimo, um esclarecimento célere sobre se é compatível com a lei eleitoral e com os princípios de neutralidade e igualdade que um patrocinador externo seleccione temas e, por via contratual, condicione quem pode ou não subir ao palco.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    A urgência de uma posição não é meramente formal. O precedente criado pela OERN e pelo JN abre a porta a que, no futuro, associações empresariais, ordens públicas, fundações ou grupos sectoriais ditem, mediante pagamento, as agendas de debate e o perímetro dos convidados em plena campanha. Se hoje foram “habitação” e “mobilidade”, amanhã poderão ser interesses agrícolas, energéticos, imobiliários ou securitários, com o risco de privatizar a agenda pública e moldar a cobertura informativa segundo quem paga. O mercado dos debates substitui a mediação editorial e o interesse público por contratos comerciais, dissolvendo a fronteira entre informação e publicidade em matéria eminentemente política.

    Recorde-se que, além das exclusões, houve ganhos de imagem para o financiador: a marca da OERN esteve permanentemente associada aos debates, e o seu presidente apareceu em destaque ao lado dos candidatos. Os encontros foram moderados por um quadro comercial do grupo de media, circunstância que aumenta a percepção de promiscuidade entre áreas comerciais e conteúdos editoriais. Tudo isto, em período de campanha, quando a legislação e as boas práticas impõem especial rigor.

    N.D. (15/10/2025) O PÁGINA UM escreveu inicialmente que o actual presidente da CNE era o juiz conselheiro Santos Cabral, antigo director nacional da Polícia Judiciária. Essa informação constava no site da CNE à data da publicação. O PÁGINA UM foi alertado por Santos Cabral informando que já cessara funções em 21 de Julho. Contactado o CNE sobre essa situação, André Wemans, porta-voz desta entidade, esclareceu hoje que “que detetado ontem que uma outra página (constante de um submenu designado “História”) não continha a data de fim de mandato do anterior Presidente da CNE – 18.ª CNE – a mesma foi completada com essa data e aditado o espaço do atual Presidente em funções”. Informou também que “relativamente ao V/ pedido sobre os debates, informo que o mesmo se encontra pendente para informação dos Serviços, com vista a submeter à Comissão.”

    Embora por um erro de uma entidade (que deveria ter a informação actualizada), o PÁGINA UM lamenta a informação inicialmente transmitida e pede desculpas ao juiz conselheiro Santos Cabral pela referência na notícia original, entretanto corrigida neste aspecto, que não altera a substância.