Categoria: Sociedade

  • Até os gelados são roubados neste jardim de Lisboa

    Até os gelados são roubados neste jardim de Lisboa

    Seringas, dejectos, lixo. É este o cenário que os visitantes do Jardim da Cerca da Graça encontram quando visitam o espaço, situado numa das zonas centrais da capital. A degradação do jardim acelera a olhos vistos.

    Ali, os assaltos são constantes e mesmo o café quiosque que se situa no local teve de se adaptar a este novo ‘normal’ no jardim, em que os roubos são mais do que frequentes.

    O Jardim da Cerca da Graça, em Lisboa, situa-se junto numa zona adjacente à Igreja da Graça. Foi inaugurado em 17 de Junho de 2015 pelo então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. Foi alvo de trabalhos de requalificação em 2019, mas muitos problemas de segurança persistem há anos e têm-se vindo a agravar.

    Depois de receber várias denúncias e alertas, o PÁGINA UM decidiu visitar o local. Desci as escadas que estão na entrada do jardim, junto à Calçada do Monte. À direita, decidi passar pelo café quiosque que existe no jardim. Pedi um café e um gelado. “Esse gelado não temos”, respondeu um dos funcionários. “Não temos gelados quase nenhuns. A arca foi assaltada. Tivemos de a mudar de local. Agora temos de a guardar na casa de banho todas as noites”. Antes, a arca de gelados estava no exterior, dentro de um pequeno abrigo de metal, fechado a cadeado.

    Mas não foram só os gelados a serem levados deste estabelecimento. Barris de cerveja também ‘voaram’. Nem as lâmpadas do quiosque escaparam aos assaltantes. Os clientes habituais, esses começaram a deixar de aparecer.

    Este início de reportagem não augurava nada de bom sobre o espaço. Os assaltos ao café quiosque acabaram por ser o mal menor do que encontrámos naquele jardim lisboeta.

    No parque infantil, o chão encontra-se repleto de dejectos de cães (ou pessoas), pontas de cigarros, lixo e isqueiros. Encontrei num dos escorregas uma pilha de lixo que inclui ‘restos’ de roubos: cartões bancários e de crédito, carteiras abertas. Seringas.

    O que encontrei confirma o que já nos tinha relatado um morador, imigrante brasileiro, pai de uma menina. “Levei uns amigos ao Jardim da Cerca no fim-de-semana e as nossas meninas foram para o escorrega e tem lá um abrigo de madeira. Estava lá um rapaz a consumir droga. Havia seringas. Fugimos dali.”

    O Jardim da Cerca da Graça no dia da sua inauguração. / Foto: D.R.

    Ao lado do escorrega maior, três tendas ocupam o espaço destinado a correrias e brincadeiras de crianças. A mesa redonda existente no parque infantil, outrora usada para piqueniques e festas de aniversário infantis, estava ocupada por três jovens de aparência hippie e descontraída a fumarem drogas ‘leves’. O cheiro similar a ‘haxixe’ sente-se em várias zonas do parque infantil.

    Nas mesas e cadeiras ao lado, na zona de ‘piquenique’, vários homens hindustânicos conversavam. Mas, testemunhas relataram que a zona de piquenique serve sobretudo para grupos consumirem álcool, designadamente ao fim da tarde e à noite. O parque encontra-se encerrado durante a noite, mas continua com actividade, incluindo consumo e tráfico de droga.

    Crianças no parque infantil, havia uma — um menino a brincar na ‘aranha’. Havia ainda duas adolescentes a andar nos baloiços, perto do parque que foi construído para se passear os cães. Junto a elas, nova tenda e uma ‘casa’ improvisada ocupavam um dos cantos do parque para canídeos.

    Caminhando de regresso ao relvado, um monte de cobertores e edredons repousava num dos ‘bancos’ longos de pedra situado junto a uma das ‘ruas’ do jardim. Ao fim dessa ‘rua’, mais tendas.

    Alguns turistas passavam incrédulos pelo jardim, maravilhados com a vista mas a comentar o “triste” estado do jardim.

    Passeando pelo espaço, são visíveis seringas, beatas, isqueiros, garrafas e latas de bebidas. Passaram a fazer parte da ‘paisagem’ daquele espaço verde da cidade. Os moradores deixaram, na sua maioria, de lá ir. “Já lá fiz a festa de anos da minha filha mas hoje não ponho lá os pés”, disse Joana, que reside na Graça. “Está uma vergonha e é perigoso. Não dá para os miúdos andarem no escorrega sequer quanto mais estar no relvado. É uma pena o que aconteceu a este parque”.

    Não há no jardim nenhuma zona que escape à degradação. Mesmo o ‘parque de areia’ para as crianças brincarem está impróprio para uso. Vários objectos, como isqueiros, e lixos diversos, sobretudo beatas, estão misturados com a areia.

    Os testemunhos são idênticos, à medida que ouvimos alguns dos residentes no bairro. “Só os turistas é que aturam aquilo. E alguns jovens e o pessoal que vai passear o cão. Mas não passeiam o cão no parque dos cães; deixam-nos fazer tudo na relva e depois a malta que se sente em cima da porcaria, se quiser.”

    De resto, os testemunhos que ouvimos deram conta de serem frequentes os assaltos no jardim. Os telemóveis são os objectos mais roubados, a par das carteiras e malas de senhora. Mas tudo vale. Alguém mais distraído que se descalçou no relvado, ficou sem os ténis num piscar de olhos.

    A Junta de Freguesia de São Vicente confirmou que recebe queixas frequentes sobre os problemas existentes no Jardim da Cerca da Graça, mas diz ser alheia ao caso, remetendo responsabilidades para a autarquia. O PÁGINA UM enviou ontem perguntas para o gabinete do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, e para o vereador com o pelouro dos espaços verdes, Rui Cordeiro, e ainda aguardamos pelas respostas.

    O jardim, inaugurado em 17 de Junho de 2015 pelo então presidente da CML, Fernando Medina, já foi alvo de trabalhos de requalificação em 2019. Na pandemia, houve períodos em que chegou a estar aberto apenas a quem tinha cão. Um polícia à porta impedia a entrada de crianças, jovens ou ‘adultos sem cão’. Na altura, o parque da EMEL, junto ao futuro hotel de luxo, serviu de parque infantil para os que queriam jogar à bola, andar de triciclo ou de trotineta.

    Hoje, o jardim é o espelho e o principal sintoma de uma ‘doença’ que tem levado à crescente degradação do bairro da Graça e que tem uma vertente social, ambiental e urbanística.

    São visíveis os amontoados de lixo que cobrem a colina junto à Calçada do Monte. Garrafas, roupas, vidros partidos misturam-se com plásticos, papéis, sacos e embalagens de comida sujas.

    No outro lado da estrada, o muro que ‘desce’ com a Calçada está coberto de grafitis e nas saliências existências, onde pombos costumam ter ninhos, há agora garrafas de vinho e latas de refrigerantes.

    Os que arriscam deixar os carros estacionados na Calçada do Monte durante a noite encontram, frequentemente, as viaturas com os vidros partidos ou interiores remexidos. De resto, os assaltos a carros, roubos ou tentativas de roubos de motas e bicicletas estacionados na rua tornaram-se comuns.

    Seguindo em direcção à Graça, pela Rua Damasceno Monteiro, avista-se uma ruína, que é o que sobrou da ‘casa de electricidade’ localizada no antigo parque da EMEL, e que foi incendiada recentemente. Depois do incidente, funcionários da CML estiveram no local para ‘limpar’ a zona que tinha sido ocupada por um casal sem-abrigo. O homem passou a ser conhecido na zona por causar distúrbios e extorquir dinheiro a turistas no estacionamento. Antes da limpeza, o local acumulava diariamente objectos, roupas e lixo diverso.

    Também o parque de estacionamento existente do outro lado da rua foi ‘limpo’ na semana passada, tendo sido retiradas as tendas e lixo que se encontravam no local. Mas já lá estão tendas de novo.

    Estes dois parques de estacionamento foram encerrados há cerca de quatro anos para a construção de um hotel de luxo no antigo Quartel da Graça. O hotel, cuja abertura estava prevista para 2022, ainda nem uma telha nova tem em meados de 2025 e o projecto tem sido alvo de contestação popular.

    Com o passar do tempo, e dada a escassez de estacionamento na zona, um dos parques foi reaberto informalmente, não sendo gerido por nenhuma entidade. Os tapumes que se encontram a tapar os antigos parques de estacionamento servem agora de mictório ao ar livre e contribuem para o aspecto degradado da zona.

    “Eles vêem limpar isto e passado uns dias está tudo sujo de novo”, lamentou uma residente no bairro. “Ninguém tem mão nisto e está cada vez pior”.

    O sentimento de insegurança e impunidade instalaram-se. A par do lixo e da permanência de sem-abrigo e toxicodependentes na zona, somam-se os assaltos a quem passa na Calçada do Monte e também aos estabelecimentos comerciais.

    Os agentes da PSP que foram chamados no dia da retirada de tendas do parque de estacionamento ‘informal’, já tinham interagido várias vezes com os sem-abrigo residentes no local. Em breve, serão chamados de novo. As tendas voltarão a ser retiradas. E tudo se irá repetir sem se resolver em definitivo.

    Sem respostas e sem soluções, este bairro lisboeta assiste ao fenómeno esquizofrénico de ver nascer cafés gourmet ao mesmo ritmo em que surgem tendas de sem-abrigo e a insegurança cresce.

    Para as famílias que residem na zona, a realidade é que têm vindo a perder espaços urbanos, como o jardim comunitário onde podiam fazer piqueniques com as crianças. Em troca, ganharam insegurança, lixo nas ruas, a que acresce o movimento contínuo de tuk-tuks. É caso para dizer que a Graça já teve graça, mas parece que agora caiu em desgraça.

    Fotos: PÁGINA UM

  • Florbela Espanca a dobrar: Isaltino pagou 100 mil euros por cópia de escultura

    Florbela Espanca a dobrar: Isaltino pagou 100 mil euros por cópia de escultura

    “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”- assim escreveu Fernando Pessoa. Cerca de nove décadas depois, Inácio Esperança, presidente da Câmara Municipal de Vila Viçosa, diz que viu “a estátua de Florbela Espanca no Parque dos Poetas”, em Oeiras, e decidiu falar com Isaltino Morais para “ter uma igual” na vila alentejana onde a poetisa nasceu em 1894.

    E deste sonho, “nasceu uma permuta” e um acordo que, segundo declarações à imprensa de Inácio Esperança, “passou pela cedência de blocos de mármore alentejano à Câmara de Oeiras”, e a entrega na vila alentejana de uma réplica da estátua do Parque dos Poetas.

    Inácio Esperança ‘sonhou’ e o escultor Francisco Simões ganhou mais 100 mil euros pagos pela autarquia de Oeiras, i.e., pelos contribuintes..

    Mas a história não termina aqui. Apesar da inauguração dessa réplica ter ocorrido no final de Março deste ano, na passada quinta-feira, 17 de Julho, a autarquia de Oeiras celebrou um contrato de 100 mil euros para pagar ao escultor Francisco Simões, autor da escultura original inaugurada em 2003.

    Apesar de a escultura estar ainda abrangida por direitos de autor, por norma o escultor deveria receber entre 5% e 10% do preço de venda, ou seja, do contrato inicial com a autarquia de Oeiras. Em casos de artistas consagrados, ou quando o escultor tem forte controlo sobre a produção, esse valor pode ir até aos 15% ou 20%.

    Original da estátua de Florbela Espanca, no Parque dos Poetas, em Oeiras. / Foto: Vítor Oliveira/ D.R.

    Ora, os 100 mil euros pagos, ainda mais tendo a autarquia de Vila Viçosa cedido os materiais (ou seja, o mármore) será bastante exagerado.

    No contrato assinado na semana passado não é referido sequer o destino da réplica nem que a obra já estava executada há mais de três meses e meio, o que aliás inviabilizaria a adjudicação. No ajuste directo celebrado entre o vice-presidente de Oeiras, Francisco Rocha Gonçalves, e Francisco Simões apenas é referido ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”..

    Assim, ficando protegidos os direitos do autor da estátua original, ficam dúvidas se foram protegidos os direitos dos contribuintes à boa gestão dos dinheiros públicos.

    O escultor Francisco Simões tem tido na Câmara de Oeiras um ‘patrono’ de luxo. Pelo menos desde 2009, o escultor ganhou cinco contratos por ajuste directo com aquele município, mas isso nem sequer incluiu ainda as 20 esculturas que fez para o Parque dos Poetas. Certo é que só com a autarquia de Oeiras, facturou 1,3 milhões de euros nos últimos 16 anos.

    Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras. / Foto: D.R.

    Aliás, foi precisamente com Oeiras que o escultor ganhou o seu maior ajuste directo público. Foi em 2012, no montante de 850 mil euros relativo à “Aquisição de um conjunto escultórico em homenagem ao poeta Luis Vaz de Camões e a sua obra Os Lusíadas”.

    No global, em 16 anos – período em que estão disponíveis contratos com o escultor no Portugal Base – Francisco Simões ganhou mais 450 mil euros em ajustes directos com outros seis municípios: Vila Franca de Xira (três contratos), Covilhã (dois), Lisboa, Grândola, Fundão e Boticas. Ou seja, Oeiras representou 75% da facturação do escultor com contratos públicos.

  • Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Apesar do coro político sobre a prioridade nacional para a habitação, o Estado português – nas suas diversas vertentes, desde a Administração Central até às autarquias, passando pelos Governos Regionais – conseguiu um ‘feito inaudito’: concluir apenas 12 fogos habitacionais em todo o país durante o ano passado. Nem uma centena. Nem meia centena. Doze. É esse o número de casas novas em todo o ano de 2024, de acordo com os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE), agora analisados pelo PÁGINA UM.

    No total de todas as habitações familiares concluídas no ano passado, o sector público foi responsável por menos de 0,05% – ou seja, apenas uma em cada 2.000 casas familiares terá sido construída por entidades públicas.

    low angle photography of cranes on top of building

    Num país onde vigora um Plano de Recuperação e Resiliência com centenas de milhões atribuídos à chamada “Habitação Acessível”, a acção directa do Estado revela-se, na prática, estatisticamente irrelevante.

    Apesar de se assistir a um novo dinamismo na construção de habitações familiares – o ano passado, com 25.311 fogos, foi o melhor da última década, superando mesmo o conjunto do triénio 2015-2017 –, tem sido a iniciativa privada que se tem destacado, tanto ao nível de pessoas singulares (famílias) como de empresas.

    Ao longo de 2024 foram concluídos 15.030 fogos construídos por empresas e mais 10.168 por pessoas singulares. Estes valores são também os máximos da última década, sendo que os crescimentos relativos face a 2023 foram de 15% e 2,7%, respectivamente. Uma parte também reduzida (101 fogos em 2024) foi concluída por iniciativa de empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos.

    Total de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O mapa dos fogos públicos concluídos é quase caricatural: três em Mafra, três em Miranda do Douro, e um em cada um dos seguintes concelhos: Braga, Paredes, Caldas da Rainha, Vila do Conde, Lagoa (Açores) e Valença.

    Esta é a cartografia da acção do Estado português enquanto construtor de habitação. Sempre se poderá dizer que, conforme alerta o INE, não existem ainda dados nos últimos dois anos para os concelhos de Lisboa, Faro e Póvoa de Varzim, por ausência ou insuficiência de informação, mas esse quadro não se modificará muito quando houver dados desses municípios. Por exemplo, a capital de Portugal só tem referidos 100 fogos de iniciativa pública concluídos entre 2015 e 2022.

    A análise da última década mostra uma tendência contínua de afastamento do Estado enquanto promotor directo de habitação. Em 2015, os organismos públicos ainda concluíram 88 fogos. Não era quase nada, mas era sete vezes mais do que em 2024. O número manteve-se baixo ao longo dos anos seguintes, com um breve pico em 2021, quando foram contabilizados 262 fogos públicos – o valor mais elevado da década.

    Mas desde então, o colapso é evidente: 21 em 2022, 63 em 2023 e apenas 12 em 2024. Mesmo com eventuais acertos quando os dados forem definitivos, por agora o INE aponta para apenas 727 fogos familiares por iniciativa pública na última década, que contrastam com os 72.653 fogos por iniciativa de pessoas singulares, os 78.884 por empresas privadas e 556 por outras entidades.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por todas as entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Este desinvestimento é tanto mais escandaloso quanto mais se recorre ao discurso público como cortina de fumo. Nunca se falou tanto de habitação pública, nunca se prometeram tantos apoios, tantos programas, tantas metas. Mas o resultado, medido em tijolos e telhados, é medíocre. Os números não mentem: o Estado não constrói.

    Os dados do INE, que não são matéria de opinião, demonstram que o que se vende como política pública de habitação não passa, em grande medida, de engenharia retórica. Em suma, dos 151.820 fogos habitacionais novos construídos entre 2015 e 2024, praticamente 52% foram de empresas privadas, cerca de 47,2% foram de iniciativa particular, 0,5% por iniciativa pública e um pouco mais de 0,3% por outras entidades.

    Em todo o caso, de forma global, observa-se uma tendência de crescimento do número total de fogos – que passou de pouco mais de 7 mil em 2015 para mais de 25 mil em 2024 –, mas o Estado, além de não contribuir para o volume, está muito longe de ter poder de regulação dos preços de mercado. Aliás, o Estado e as autarquias até beneficiam directamente da especulação, por via dos montantes tributados de IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) e de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de empresas privadas entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de pessoa singular (família) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Os números do INE – que acabam por mostrar que os projectos, os planos, as primeiras pedras e os anúncios de entrega de chaves (que em muitos casos são de casas reabilitadas ou já existentes) – revelam que os sucessivos Governos prometem combater a especulação e a crise habitacional, mas é o mercado, com a iniciativa particular e de empresas privadas, que mostra dinamismo. Estamos perante a radiografia de um modelo de governação que trocou o cimento pelo soundbite. A política da habitação em Portugal continua a ser feita em conferências de imprensa, não em estaleiros de obra. E os cidadãos pagam, todos os dias, o preço dessa encenação.

    O dinamismo da construção de fogos habitacionais novos na última década tem estado concentrado sobretudo nos concelhos urbanos do eixo Porto-Braga e Lisboa-Setúbal, onde se intrometem Leiria, Aveiro e Viseu. O município que mais construiu entre 2015 e 2023 foi o Porto, com 6.590 fogos habitacionais, seguindo-se Vila Nova de Gaia, com 5.543 fogos. Braga é o outro concelho acima da fasquia dos cinco mil (5.045).

    Na Área Metropolitana de Lisboa, o Seixal foi o município que mais construiu (4.291 novos fogos). Segue-se depois, novamente a Norte, Guimarães (3.272), Leiria (3.062) – o primeiro concelho fora das duas áreas metropolitanas – e Vila Nova de Famalicão (3.041). Acima de dois mil fogos estão ainda Barcelos e Odivelas (ambos com 2.658), Matosinhos (2.398), Sintra (2.394), Lisboa (2.328), Mafra (2.311), Loures (2.285), Aveiro (2.234), Viseu (2.146) e Cascais (2.060). Fecham o top 20 os concelhos de Almada (1.991), Maia (1.862) e Setúbal (1.816). Quase quatro em cada 10 novos fogos habitacionais (39,3% do total) foram construídos nestes 20 municípios.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de entidades públicas (Administração Central, Local e Regional) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de outras entidades (empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Porém, as dinâmicas mais recentes mostram algumas diferenças. Apesar de o Porto e Vila Nova de Gaia terem sido os que mais fogos concluíram em 2024 – 1.542 e 1.431, respectivamente –, o terceiro lugar é ocupado por Braga (mais 669 fogos), seguido do Seixal (649), Maia (567), Leiria (564), Cascais (540), Funchal (481), Sintra (472) e Oeiras (465). Estes 10 municípios foram responsáveis por 29,4% dos fogos concluídos no ano passado em todo o país.

    Recorde-se que no mês passado, o Programa do Governo estabeleceu como meta a construção de “59 mil casas públicas” e  a disponibilização de financiamento para mais projectos, incluindo parcerias público-privadas em imóveis do Estado devolutos com aptidão habitacional. Mas as promessas nem quatro paredes possuem, quanto mais tecto e acabamentos, pelo que, o mais provável, pelo histórico, é a montanha parir um rato.

    Aliás, também a promessa do Governo socialista de transformar a empresa pública Parque Escolar em Construção Pública – para assim passar a deter competências na área da habitação social – não passou do papel. E acabou por ser mais uma promessa não concretizada no sector da habitação.

  • Falhas de segurança  informática nas autarquias duplicaram em quatro anos

    Falhas de segurança informática nas autarquias duplicaram em quatro anos

    Num mundo cada vez mais digital, os cibercriminosos têm também cada vez mais alvos disponíveis para os seus ataques informáticos. E no grande oceano digital, os organismos públicos não estão imunes a caírem nas ‘redes’ de piratas informáticos em busca de roubar dados para revenda, a exigir dinheiro para não apagar informações vitais ou para ‘devolver’ um servidor tornado ‘refém’.

    No caso das autarquias, em cinco anos, duplicou o número de munícipios que detectou problemas de cibersegurança. Em concreto, no ano passado, uma em cada quatro das 308 câmaras municipais do país identificou a existência de falhas de segurança ou mesmo ataques cibernéticos, segundo dados disponibilizados hoje pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), usando dados de um inquérito da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).

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    Foto: D.R.

    Em 2020, de acordo com os dados oficiais, apenas 39 municípios tinham identificado identificaram falhas na segurança informática. No ano passado, foram já 77 as autarquias a encontrar problemas. Este é o valor mais elevado desde que existem registos, iniciados em 2005.

    Aliás, nos últimos três anos este número tem vindo a escalar de forma evidente em termos absolutos e relativos. Em 2020 foram detectados problemas de segurança informática em 39 municípios, diminuindo no ano seguinte para 35, mas depois contabilizam-se crescimentos assinaláveis: 48 em 2022 e 60 em 2023.

    Dependendo da vulnerabilidade, se uma autarquia for alvo de ataque informático podem ficar expostos dados sensíveis dos munícipes, funcionários da autarquia e até dos fornecedores. No limite, o município pode ficar incapaz de fornecer serviços aos cidadãos.

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    Foto: D.R.

    Apesar de todos os 308 municípios do país terem software anti-vírus instalado, três ainda não dispõem de firewal. Por razões de segurança, o INE não divulga quais os municípios alvo de ataques ou mais susceptíveis a ciberataques por deficiências do sistema de defesa. Do total, há ainda 15 autarquias que não estão equipadas com servidores seguros e 51 não dispõem sequer de um sistema de backup externo, para poder ter uma cópia dos seus dados em lugar seguro. Em termos de filtros anti-spam, há oito autarquias que não têm qualquer sofware instalado.

    Ainda assim, estes dados de 2024 mostram uma melhoria face ao ano anterior. Mais uma autarquia passou a ter um firewall instalado e mais três instalaram servidores seguros. De 2023 para 2024, foram onze os municípios que passaram a guardar uma cópia dos seus dados num local externo e três instalaram filtros anti-spam.

    Contudo, apesar destas melhorias, e apesar dos riscos crescentes em matéria de crime informático, menos de metade das câmaras municipais do país tem implementada uma estratégia para garantir a segurança dos seus dados e sistemas.

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    Foto: D.R.

    Segundo os dados do INE, apesar de serem 241 autarquias as autarquias com uma estratégia definida nesse âmbito, apenas 142 estão em conformidade, apresentando efectivamente um plano em funcionamento. Do total, 78 municípios até têm uma estratégia, mas o processo para sua implementação está ainda sob revisão. Em 21 municípios nem sequer existe um plano de cibersegurança definido.

    A situação mais grave é nos Açores, onde apenas um quarto dos municípios está em conformidade em matéria de ter uma estratégia de cibersegurança implementada. Das 19 câmaras municipais existentes naquela Região Autónoma, apenas cinco tem um plano em vigor.

    Na região Autónoma da Madeira, quase dois terços dos municípios não tem em vigor nenhum plano de segurança informática.

    Foto: Captura de ecrã de comunicado emitido no site do Município de Murça a 13 de Março de 2025.

    No Continente, a situação melhora mas ainda é assim é alarmante: mais de metade das autarquias não está em conformidade em termos de ter em vigor uma estratégia. Assim, dos 278 municípios do território continental, apenas 133 tem uma estratégia a vigorar na prática. Um sinal de que a vulnerabilidade das autarquias face a ataques informáticos é real.

    Por exemplo, em Novembro do ano passado foram públicos os casos de ataques informáticos maliciosos às câmaras municipais de Chaves, Nelas e Alcobaça. Este ano, a 13 de Março, a Câmara de Murça sofreu também um ciberataque.

    Assim, a tendência crescente de municípios afectados por problemas de segurança informática que se verificou nos últimos três anos deverá continuar. Até porque, os 77 municípios que detectaram problemas de cibersegurança no ano passado, são apenas a ‘ponta’ visível de um icebergue de falhas que pode estar por debaixo deste oceano digital que tem piratas cada vez mais sofisticados.

  • Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Numa manobra que deixa em aberto sérias implicações jurídicas e financeiras, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) celebrou ontem, pelas 14 horas, um ajuste directo com a empresa Gulf Med Aviation, com sede na ilha de Malta, no valor de 4.011.500 euros (acrescido de IVA), para garantir a operação de três helicópteros de emergência médica em regime de prontidão diária de 12 horas (H12).

    Este novo contrato, com uma duração de 123 dias, anula na prática os efeitos de um polémico contrato de 77.475.160 euros (mais IVA), adjudicado à mesma empresa num concurso público internacional lançado em Novembro do ano passado para vigorar a partir de 1 de Julho deste ano, mas cuja execução não está a decorrer porque a empresa de Malta não conseguiu disponibilizar a totalidade dos quatro meios aéreos em todas as horas do dia.

    Na prática, como se a Gulf Med não estava a dar cumprimento do contrato adjudicado após concurso público, o INEM poderia aplicar multas por incumprimento contratual de 730 mil euros por dia, como destacou hoje a TVI.

    O ajuste directo agora celebrado – invocando razões de “urgência imperiosa” – prevê agora a disponibilização de três aeronaves: dois helicópteros médios H145 e um helicóptero ligeiro H135, que deverão estar operacionalmente prontos para missões de emergência médica em território continental português. Um dos helicópteros médios só estará disponível a partir do próximo dia 15.

    O contrato estabelece um custo diário por helicóptero de 11.300 euros mais IVA, englobando operação, manutenção, tripulação e certificações técnicas, sem possibilidade de indisponibilidade superior a 12 horas sem substituição gratuita por aeronave equivalente.

    Este recuo estratégico surge após o falhanço da Gulf Med em garantir a entrada plena em funcionamento das aeronaves a 1 de Julho, como estipulado no contrato público original. Os dois helicópteros baseados em Macedo de Cavaleiros e Loulé só operam de dia, e por tempo indeterminado. O terceiro só estará disponível em Évora a partir de 15 de Julho. A base de Viseu deverá ter aeronave disponível em Agosto, sendo que todas estas operarão, numa primeira fase, exclusivamente em horário diurno. O uso de helicópteros da Força Aérea foi colocada em cima da mesa, mas com limitações técnicas e até jurídicas fortes. O INEM justificava que a passagem para operação 24 horas por dia será “gradual”, de acordo com uma mensagem interna citada pela CNN Portugal.

    Recorde-se que o concurso público internacional foi severamente criticado pela limitação de prazos e penalizações avultadas previstas para falhas operacionais (183 mil euros por base inactiva por dia). Apenas três empresas apresentaram propostas, entre as quais a Gesticopter, que já avançou com uma acção judicial para impugnação do concurso, actualmente em curso nos tribunais administrativos.

    A opção do INEM por este ajuste directo com a Gulf Med – ignorando por completo os pressupostos e o cronograma do concurso anterior – coloca em risco os próprios gestores públicos, que poderão vir a ser responsabilizados pelo Tribunal de Contas caso haja perdão implícito de penalidades à empresa maltesa, numa alegada “fase de transição”. Em casos semelhantes, os tribunais têm imposto restituição integral de verbas ao Estado e aplicação de multas individuais.

    doctors doing surgery inside emergency room

    Este novo contrato, ontem assinado entre o presidente do INEM e os representantes da Gulf Med, reforça assim a sensação de improvisação e falta de planeamento que tem marcado a gestão do sistema de emergência médica aérea, agora dependente de um ajuste directo de quase cinco milhões de euros por apenas quatro meses, enquanto se espera pela regularização – ou colapso – do contrato plurianual de 77 milhões.

    A polémica está longe de terminar. E os tribunais serão, ao que tudo indica, o palco principal onde se decidirá se houve mera urgência técnica ou fraude ao espírito do concurso público. Uma das empresas que perdeu o concurso público, a Gesticopter, já prometeu uma participação ao Tribunal de Contas e uma queixa-crime por indícios de favorecimento público e também à Comissão Europeia.

  • Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Nos Açores, a região com a maior taxa de pobreza do país, há um município que acaba de fazer um ajuste directo recorde. Tem apenas 3.500 habitantes, mas isso não impediu o a autarquia açoriana de Calheta, São Jorge, de gastar “à grande e à francesa”. No passado dia 4 de Julho, a autarquia adjudicou o seu maior contrato por ajuste directo de sempre. E não, não foi para tapar buracos numa estrada nem para mudar o telhado numa escola nem para apoio social. Calheta decidiu fazer o ajuste directo milionário para organizar um festival de música.

    A despesa recorde, efectuada em ano de eleições autárquicas, supera os 343 mil euros e destina-se a contratar músicos e serviços de montagem e desmontagem de palco no âmbito de um festival que se realiza entre o dia de hoje, 10 de Julho, e o dia 14 deste mês.

    O irlandês Gavin James é a principal estrela do Festival de Julho 2025, na Calheta, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o contrato, adjudicado sem concurso à empresa Excellent Vanguard, entre os artistas que vão actuar neste festival contam-se Gavin James, David Fonseca, The Gift, À variações, Némanus, Wet Bed Gang, Karetus, Tropa do Lima e os DJ’s John c e Oram. O preço final inclui a montagem e desmontagem do palco, som e luz..

    Assim, David Fonseca e À variações actuam hoje, 10 de Julho e os Némanus actuam amanhã. Já os Wet Bed Gang e os Karetus actuam no dia 12 enquanto a banda The Gift sobe ao palco no dia 13. Gavin James encerra o evento com um concerto no dia 14. Quanto aos dois DJ’s contratados, actuam no dia 12. Todos os concertos têm uma duração aproximada de duas horas.

    Para o município açoriano, trata-se do quinto maior contrato de sempre registado pela autarquia na plataforma de contratos públicos, o Portal Base. Só é superado por quatro despesas referentes a empreitadas de reabilitação de infrastruturas.

    David Fonseca sobe ao palco hoje na Calheta. / Foto: D.R.

    Em termos de despesa, este ajuste directo ‘comeu’ 3,6% do orçamento anual global da autarquia, da ordem dos 9,5 milhões de euros. Comparando com o caso do orçamento de Lisboa, é como se a capital decidisse gastar 49 milhões de euros com um só evento.

    Tendo em conta o número de habitantes, este festival ‘grátis’ na Calheta corresponde a 98 euros por residente naquele município açoriano que engloba cinco freguesias.

    Para a empresa que ganhou este contrato sem concurso, trata-se da maior facturação de sempre com uma entidade pública. Dos cinco contratos que tem no Portal Base, o segundo maior contrato que obteve com o sector público foi no ano passado, também o município de Calheta, para organizar o Festival de Julho 2024.

    The Gift. / Foto: D.R.

    Mas o contrato obtido no ano passado com aquela autarquia foi de ‘apenas’ 135.736 euros, ou seja, um valor que corresponde a 40% do montante que a empresa conseguiu facturar com o contrato feito agora para o ‘Festival de Julho 2025’.

    O contrato assinado em 4 de Julho do ano passado aparece em branco no documento que é disponibilizado no Portal Base, estando apenas registados os dados com um resumo do procedimento.

    A empresa Excellent Vanguard foi criada em Setembro de 2017 e é detida por um casal que reside em Angra do Heroísmo. A maior quota está nas mãos de Elisa Margarida Oliveira Terroso e uma quota menor pertence ao marido, Rui Duarte Alves Álamo.

    A Excellent Vanguard anunciou que fez o ‘bis’ e ganhou a organização do ‘Festival de Julho 2025’. / Foto: Captura de imagem do Instagram

    Rui Álamo conseguiu, individualmente, um outro ajuste directo no ano passado, no valor de 60.614 euros. Tratou-se de um contrato adjudicado pelo município de Angra do Heroísmo relativo à aquisição de “serviços de manutenção de pavimentos através do corte de infestante no centro urbano da cidade de Angra do Heroísmo”.

    De resto, não se encontra site da empresa na Internet, mas nas sua página na rede social Instagram, a Excellent Vanguard apresenta-se como a organizadora de outros eventos nos Açores, designadamente o Graciosa Sound Fest e o Festas na Praia, na Terceira, e a ‘Festa do imigrante’, nas Flores.

    Para os residentes nos Açores, música não faltará este Verão. No caso da Calheta, haverá música e festa a ‘bombar’ nos próximos dias.

    O cais da Calheta, São Jorge, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o relatório ‘Balanço Social 2024‘, uma em cada 10 famílias na Região Autónoma dos Açores não consegue fazer uma refeição proteica de dois em dois dias, sendo que “a taxa de pobreza está quase 8 pontos percentuais acima da média nacional nos Açores, a região com maior taxa de pobreza em Portugal”.

    De resto, segundo o mesmo relatório, a região apresenta o valor mais alto de privação em diversos indicadores de pobreza, a nível nacional. Os Açores registaram, em 2023, o mais alto coeficiente de desigualdade — GINI — (36,0)em Portugal. Em 2024, a região apresentava a maior taxa de risco de pobreza a nível nacional, chegando aos 24,2%. No relatório, os Açores surgem ainda como a região do país com maior nível de desigualdade.

    Mas, apesar destes indicadores, música não faltará. Pelo menos na Calheta.

  • ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    ‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

    “Pelos mortos e pelos vivos, devemos dar testemunho.

    Elie Wiesel

    Era 12 de Julho de 1995. Ao meio-dia, Saliha Osmanović, de 41 anos, enfrentava o calor avassalador em frente à antiga fábrica de acumuladores em Potočari, onde ela e milhares de mulheres e crianças tinham procurado refúgio no posto avançado de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU).

    Na véspera, as forças sérvias invadiram a vizinha Srebrenica após um cerco prolongado. Embora a cidade tenha sido declarada uma Zona Segura pela ONU, os capacetes azuis não fizeram nenhum esforço para impedir o avanço sérvio.

    No genocídio que se seguiu entre 11 e 20 de julho, pelo menos 8.372 homens e rapazes bósnios foram mortos. Entre eles estavam o marido de Saliha, Ramo, e seus dois filhos: Edin e Nermin. À data do homicídio, tinham respectivamente 18 e 19 anos.

    Sarajevo. / Foto: Boštjan Videmšek

    Depois de alcançar a multidão de refugiados em Potočari, Saliha estava exausta, aterrorizada e atormentada pelo luto. Cinco dias antes, um ataque de artilharia das forças sérvias lideradas pelo general Ratko Mladić matou seu filho mais novo, Edin. Quatro dias depois de o ter enterrado, Saliha fugiu de Srebrenica, acompanhada do marido Ramo e do filho mais velho, Nermin.

    Ramo e Nermin optaram por se juntar aos milhares de homens bósnios adultos que, esperando o pior, partiram a pé em direção a Tuzla e à segurança proporcionada pelo exército da Bósnia-Herzegovina. Mais tarde, a sua viagem ficou conhecida como “a marcha da morte“.

    Em Potočari, Saliha juntou-se a milhares de mulheres, crianças e idosos desesperados e completamente desorientados. Embora aterrorizada, a multidão reunida contava com a proteção da ONU. Nem mesmo os mais pessimistas poderiam imaginar que as estruturas de comando da ONU e da política externa euro-americana concederiam ao general Ratko Mladić liberdade para cometer genocídio. Nenhum dedo foi levantado para impedir Mladić de coordenar a carnificina com Slobodan Milošević e Radovan Karadžić.

    A reacção dos capacetes azuis foi tão inexistente que Mladić conseguiu mesmo dirigir-se à multidão de refugiados em frente ao posto avançado da ONU. Dito de forma directa: o carniceiro foi autorizado a falar às suas vítimas.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Foi assim que Saliha Osmanović se viu nas imediações do infame criminoso de guerra. Em 22 de Novembro de 2017, o Tribunal Penal Internacional de Haia condenou Mladić à prisão perpétua. No entanto, mesmo 30 anos depois daquele fatídico dia 12 de julho de 1995, Saliha ainda consegue recordar cada palavra do general e cada esgar no seu rosto marcado pelo suor.

    “Éramos milhares em Potočari”, contou. “Após a nossa fuga de Srebrenica, foi como se tivéssemos sido transportados para o inferno. A situação era indescritível. As pessoas gritavam, os sérvios invadiam casas e matavam pessoas a torto e a direito… E, então, Ratko Mladić dirigiu-se a nós para nos dizer na cara que tinha o poder de nos destruir e que o presidente bósnio Alija Izetbegović não nos queria. Foi terrível. Ainda esperávamos que as forças de manutenção da paz holandesas nos protegessem. Mas, na noite seguinte, retiraram-se e entregaram-nos aos sérvios.”

    Quando Srebrenica caiu, tudo o que Saliha podia desejar era não acordar no dia seguinte. Trinta anos depois, o seu sofrimento pouco diminuiu… tal como o seu desejo de morrer durante o sono.

    Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Na manhã seguinte, os agressores sérvios carregaram as mulheres e crianças em camiões e autocarros em direcção aos territórios controlados pelo exército bósnio. Enquanto isso, o exército sérvio e as unidades paramilitares continuavam a matar homens e meninos bósnios na floresta ao redor de Srebrenica. Em pouco tempo, toda a zona foi transformada num matadouro.

    Todos os diplomatas e observadores militares internacionais sabiam muito bem o que estava a acontecer no nordeste da Bósnia-Herzegovina. Pior ainda: tinham sido amplamente alertados para a calamidade que se aproximava. Os assassinos em massa, em fúria, sentiram pouca necessidade de esconder as suas intenções. Por isso, não é exagero dizer que a comunidade internacional assistiu ao genocídio como cúmplice passivo.

    Quando as mulheres e crianças chegaram ao território controlado pela Bósnia, nada sabiam sobre o destino dos seus entes queridos deixados para trás. Durante a sua estadia em Puračić, perto de Lukavac, as esposas, mães e irmãs só podiam adivinhar o que tinha acontecido aos homens.

    Alguns dias depois, uma gravação de TV foi mostrada aos sobreviventes. Foi do marido de Saliha, Ramo, que chamou os seus compatriotas – e especificamente o seu filho Nermin – para regressarem a Srebrenica. A gravação foi obviamente feita sob coacção. Sob a mira de uma arma, Ramo Osmanović garantia aos espectadores que Srebrenica era perfeitamente segura. Estava, na prática, a chamar o filho de volta para morrer.

    Nessa altura, Saliha já tinha deixado o campo temporário e encontrado alojamento com um genro. “Trouxe-me um jornal com uma foto do meu marido”, recorda Saliha. “Quando vi a foto, o meu primeiro pensamento foi: Ele está vivo!!”

    A última das suas esperanças morreu quando uma vizinha a convidou para um café, e ela ouviu a voz do marido na televisão da sala. “O meu Ramo estava a chamar o meu Nermin de volta…”, recorda, descrevendo o momento em que o seu medo se tornou absoluto. “Foi aí que tudo me ficou claro.”

    Foi um dos momentos mais dolorosos da vida infinitamente dolorosa de Saliha Osmanović. Depois, tentou forçar-se a esperar contra a esperança… E continuou a fazê-lo até que os restos mortais de Ramo e Nermin foram encontrados em valas comuns.

    Em 2008, Ramo foi localizado na vala comum Zeleni Jadar. Os restos mortais de Nermin foram encontrados em Snagovo.

    Um ano depois, Saliha ajudou a enterrá-los juntos no complexo de cemitérios memoriais em Potočari, criado para homenagear as vítimas do massacre. Em 2015, o centro de Sarajevo ergueu uma estátua feita pelo artista bósnio Mensud Kečo – uma estátua que retrata Ramo chamando seu filho para voltar a Srebrenica.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Dezasseis anos depois do reenterro de Ramo e Nermin, procurei as suas sepulturas no cemitério de Potočari.

    Era um dia sombrio e nublado, pesado tanto para o corpo como para o espírito. As lápides brancas, marcando o local de descanso final de mais de 7000 vítimas do genocídio, permaneciam sem visitas. Funcionários do cemitério cortavam a relva. Alguns cães vadios de grande porte circulavam à volta do perímetro exterior do cemitério, não muito longe de onde agora vivem alguns dos perpetradores. Uma viatura da polícia da Republika Srpska (República Sérvia) estava estacionada em frente à entrada. Um grupo de turistas turcos apareceu e dirigiu-se aos túmulos mais recentes, mais acima no cemitério, apenas para começar a posar para as câmaras dos telemóveis.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    O encontro de Saliha com Ratko Mladić em Potočari valeu-lhe um convite do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia. Foi chamada a testemunhar contra o criminoso de guerra sérvio. Já tinha sido convocada antes para Haia, mas foi a primeira vez que conseguiu reunir forças para fazer a viagem.

    “Quiseram atribuir-me o estatuto de testemunha protegida. Recusei imediatamente. Não precisava de protecção. Já não tinha medo. Já tinha perdido tudo. A minha consciência estava limpa, por isso podia andar pelo mundo de cabeça erguida. Disse-lhes que só aceitava testemunhar se me deixassem enfrentar Mladić”, contou Saliha, três décadas após o crime mais hediondo em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

    “Veja”, — continuou ela: “Certa manhã acordei, fiz as minhas orações e preparei café… Só para me perguntar: Porque não ir ao tribunal de Haia e dizer a verdade?”

    A sua assessora jurídica avisou-a de que a defesa de Mladić no tribunal seria provavelmente extremamente convincente. O advogado do comandante sérvio chegou mesmo a garantir ao tribunal que o seu cliente tinha visitado Potočari para distribuir pão, água e chocolate aos sobreviventes. O monstro foi apresentado como nada menos que um trabalhador humanitário.

    “Mas todas as suas mentiras não conseguiram intimidar-me”, recordou Saliha. “Eu tinha uma missão, e apenas uma missão: dizer a verdade. Nada poderia ter-me impedido. Contei tudo ao tribunal.”

    O objetivo de Saliha Osmanović era enfrentar cara a cara o carniceiro de Srebrenica. Achou revoltante que o general sérvio insistisse em desviar o olhar. A sua presença deixou-o visivelmente incomodado, ao ponto de ele fazer caretas durante o seu testemunho. “Eu conseguia ver o quão arrogante ele ainda era…”, estremeceu. “Por isso, perguntei-lhe se conseguia comer e dormir – se a consciência lhe pesava, de alguma forma, por ter assassinado todas aquelas pessoas. Sabe, às vezes ainda me pergunto o que terá dito aos seus mais próximos depois de regressar de Srebrenica. Ter-se-á vangloriado da quantidade de pessoas que matou?”

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    “Antes da guerra, tínhamos uma vida feliz”, recordou Saliha. “O meu marido trabalhava em Belgrado, com viagens frequentes ao estrangeiro. Eu tinha o meu jardim, as minhas vacas e as minhas vitelas. As coisas corriam bem. Poder cuidar da minha família e da minha casa era tudo o que sempre quis. Mas tudo isso foi destruído… Só fiquei eu. É nisto que penso constantemente. Santo Deus, como é possível que eu ainda esteja viva enquanto os meus entes queridos desapareceram há 30 anos? Tudo o que cozinho, cozinho para eles – continuo a fazer os pratos de que mais gostavam. O cheiro faz-me lembrar a minha família. Mas eles já cá não estão.”

    Saliha Osmanović vive numa modesta casa na aldeia de Dobrak, mesmo acima do verde rio Drina, perto da fronteira com a Sérvia. Tem agora 71 anos. Em 2009, decidiu regressar a Dobrak, que foi reduzida a cinzas pelas forças bósnio-sérvias a 8 de maio de 1992. Fez tudo ao seu alcance para restaurar a antiga casa, parcialmente arrasada pelos agressores.

    Saliha foi uma das poucas mulheres de Srebrenica que optou por regressar ao local do crime e permanecer lá. Após o genocídio, Dobrak e as aldeias vizinhas foram colonizadas por sérvios. Entre eles contavam-se muitos que tinham participado directamente no assassínio em massa da população bósnia. Numerosos criminosos de guerra acabaram por ser recompensados com território.

    Há muito que as bandeiras sérvias se tornaram a ordem do dia nas imediações das valas comuns bósnias. Mas muitas das casas aqui permanecem vazias – mesmo muitas das que não foram danificadas pela guerra. Toda a região de Podrinje e grandes partes do leste da Bósnia foram esvaziadas demograficamente. O mesmo vale para Srebrenica, cujo centro é completamente tranquilo, mesmo durante os dias mais movimentados do ano.

    Hoje, Srebrenica é uma cidade de poucos pubs, todos vazios. É uma cidade sem emprego, onde ninguém quer viver. É, de facto, uma cidade morta. Apenas a sua estrutura desocupada tinha sido autorizada a perdurar. O seu nome pode ter entrado na consciência colectiva, pelo menos por um tempo… Mas esta distinção não solicitada custou à cidade de Srebrenica a sua essência, ou seja, a sua própria alma.

    O seu povo.

    Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

    Durante o auge do cerco sérvio, em 1993, quase 50.000 pessoas passavam de alguma forma por Srebrenica, vivendo em casas bastante apertadas. A maioria deles eram refugiados que procuraram abrigo na antiga cidade mineira depois de as suas próprias cidades e aldeias terem sido etnicamente limpas pelos sérvios.

    Durante o cerco, Saliha, o marido e os dois filhos partilharam uma casa com outros 60 refugiados. Ao longo dos três anos de bombardeamentos constantes, não havia electricidade nem água corrente. A casa só tinha uma única casa-de-banho.

    “Foi horrível”, Saliha estremeceu ao recordar. “Todos nós, das aldeias vizinhas, fugimos para Srebrenica, enquanto eles tomavam conta das colinas para nos levar ao esquecimento. Muitos dos meus companheiros de sofrimento morreram durante esses anos. Nunca devemos esquecê-los. Nós também estávamos com muita fome. Não tínhamos nada. Quando os capacetes azuis entraram em Srebrenica, pensámos que estávamos salvos. Por um momento, deixamo-nos sentir algo semelhante à alegria. Mas foi mesmo o princípio do fim. Quão lamentavelmente falsas eram as nossas esperanças!”

    As tropas holandesas de manutenção da paz da ONU abriram as portas para Ratko Mladić. / Foto: Boštjan Videmšek

    Mesmo 30 anos depois, Saliha Osmanović passa uma parte substancial de cada dia a ponderar a natureza de alguém que pode assassinar em massa antigos vizinhos e colegas de escola a sangue frio, apenas para atirar os cadáveres para um poço e – se necessário – reenterrá-los em outro lugar para escapar à justiça.

    Até agora, todas as suas reflexões renderam pouco que ela pudesse usar.

    “Não”. Ela balançou a cabeça perto do final da minha visita. “Eu ainda não entendo. E acho que nunca entenderei.”

    Fez uma breve pausa para reunir os pensamentos. Então continuou. O seu rosto pálido e enrugado parecendo um mapa topográfico da dor humana. “Mas o que aprendi é que não posso odiar. Eu nem saberia por onde começar. Não sei se isso é exactamente um privilégio… Mas o que aconteceu, aconteceu. O que algumas pessoas fizeram, elas fizeram. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.”

    De alguma forma, Saliha foi capaz de adivinhar a minha próxima pergunta antes que ela fosse feita.

    “Sim”, ela assentiu. “Mesmo depois de tanto sofrimento, a vida ainda é possível. Claro que é possível. Mas é uma vida sem alegria nenhuma.”

    Saliha Osamnović a orar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “A situação actual na minha aldeia e em toda a região de Podrinje é muito sombria. Eu acho que o que me tem salvo é que eu sempre tento manter uma abordagem activa. Passo muito tempo no jardim. As pessoas vêm visitar, e nós sentamo-nos à mesa – a mesma mesa onde eu costumava sentar-me com Ramo, Nermin e Edin. É tão difícil, filho…” Saliha confidenciou.

    E prosseguiu: “É difícil sobreviver. Estou sozinha. Acordo sozinha e vou para a cama sozinha. Os vizinhos – os sérvios – deixam-me em paz. Às vezes, trocamos algumas palavras. Quando está a chover ou a nevar ou quando o sol de Verão bate, os meus pensamentos voltam-se para o meu povo. Todos os que foram assassinados. Não estou na minha melhor forma. A minha casa está localizada muito longe de tudo – da loja, da padaria, da farmácia, do médico … Mas eu continuo a insistir. O que mais posso fazer? Não faz sentido deitar-me numa sepultura aberta ainda em vida.”

    Perguntei-lhe sobre quais eram os seus pensamentos e sentimentos 30 anos depois das atrocidades. Essas feridas podem curar-se um pouco?

    “Todos os dias sinto dor”, respondeu. “Todos os dias. A dor é a minha única companheira, é o centro de mim. Os aniversários são os piores. Eu sempre me vou abaixo quando chega o dia 6 de Julho, a data em que meu filho mais novo, Edin, foi morto por uma granada sérvia… Ou 11 de Julho, quando o genocídio começou e quando Ramo e Nermin desapareceram. Estou a sofrer no corpo e na alma. A dor é difícil de descrever. Grande parte tem a ver com o facto de, com o mundo inteiro a assistir, a comunidade internacional nada ter feito.”

    Saliha prefere evitar a maioria das comemorações e o dženaza (cerimónia fúnebre islâmica), o enterro anual das vítimas de genocídio identificadas desde o ano anterior. Ela acha essas provações muito desgastantes, especialmente quando acontecem no cemitério de Potočari. A cada mês de Julho, ela não consegue dormir ou comer durante dias a fio.

    “Então, todas essas coisas aconteceram”, repetiu. “Mataram-nos. Não há nada que possamos fazer para mudar isso, para trazer alguém de volta. Você sabe, uma vez que você perdeu seus filhos, bem…”

    Por um momento, as palavras abandonaram a mulher enlutada. “Não!” — disse ela. “Não, não gosto de ir a lado nenhum perto de Srebrenica. Se eu fizer isso, o meu nível de açúcar e a pressão arterial disparam para níveis muito perigosos. E tudo o que quero fazer é fugir.”

    Cerimónia em memória do massacre de Srebrenica, em Julho de 2007 / Foto: D.R.

    Se há uma coisa que esta corajosa bósnia se esforça por transmitir é que a história de Srebrenica precisa de ser contada e recontada. Saliha Osmanović sente que há um grande perigo de esquecer o genocídio, e o perigo aumenta com o passar de cada ano.

    Assim, tal como testemunhou em Haia, continuará a testemunhar todos os dias durante o resto dos seus dias. Ela vê isso como o propósito de sua sobrevivência.

    “Sabe o que é pior?” — questionou a certa altura. “Que o povo se foi. Tudo é diferente, tão escuro e vazio! Um grande número dos nossos mortos ainda nem sequer foi encontrado, que descansem em paz onde quer que estejam… Sabe, eu continuo a dizer a mim mesma: Se não houvesse mais guerra! Mas depois vejo o que está a acontecer em Gaza. O que é que as mães de lá podem dizer aos seus filhos quando os colocam na cama? É possível que, de alguma forma, não tenhamos aprendido nada?”

    Na página do Centro Memorial de Srebrenica na Internet encontra-se uma secção através da qual os que ainda procuram familiares desaparecidos podem pedir apoio. / Foto: Captura de imagem do site do Centro Memorial de Srebrenica

    Apesar de ter regressado a Srebrenica há décadas – aquele Verão assassino de 1995 foi a razão para dedicar grande parte da minha vida profissional à cobertura de vítimas de guerra – tive dificuldade em falar com Saliha. Mesmo durante a nossa primeira chamada telefónica, quando estávamos a organizar a minha visita às colinas acima de Srebrenica, fui atormentado por sentimentos de culpa. Parte disso tinha a ver com a noção de invadir o espaço pessoal sem ser convidado. No entanto, sentindo algo na minha voz, a minha anfitriã bósnia foi rápida em tranquilizar-me: “Você é sempre bem-vindo aqui, filho. A minha alma dói tanto que me faz bem falar sobre o que aconteceu. É o trabalho da minha vida. A minha missão. Falarei sobre o genocídio até ao meu último suspiro. Sabe, dói tanto ver a negação. Para mim, isso é quase impossível de suportar. O quê, todos nós aqui simplesmente nos matamos?!”

    Mulher bósnia segura foto de familiar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Disse-me, mais tarde: “Antes de acontecer, não conseguíamos imaginar tamanho terror. O meu Ramo trabalhava em Belgrado. Era um engenheiro cujo trabalho também o levou à Tunísia e à Líbia. No início de maio de 1992, cerca de um mês após o início da guerra na Bósnia, regressou a casa. Ele foi capaz de chegar a Dobrak com seu próprio carro, sem dificuldades reais. Havia muito trabalho a ser feito na quinta. Ele disse-se: ‘Saliha, meu amor… Eu posso sentir que algo está a formar-se. “Ele tinha uma sensação muito má sobre tudo isso. E então começou.”

    Quando a aldeia foi atingida pelas primeiras granadas sérvias, enquanto tiros eram disparados do outro lado do rio Drina, a família Osmanović foi forçada a fugir. “Caso contrário, ter-nos-iam matado a todos”, recorda Saliha. “Tivemos que deixar tudo para trás. Nós, de alguma forma, empurrámos até Srebrenica. O que se seguiu foram três anos de derramamento de sangue constante e sofrimento sem fim. E então veio Julho de 1995. Fizeram o que fizeram. Não sei, filho. Eu nunca vou entender.”

    Eu nunca vou entender. Esta é, de longe, a sua declaração mais frequente.

    Na preservação da memória do massacre, o Centro Memorial de Srebrenica tem um arquivo com fotos. Na imagem, uma pessoa segura uma foto de um dos locais onde foi encontrada uma vala comum com os restos mortais de vítimas do massacre. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Cada vez que Saliha Osmanović descrevia a tragédia de Srebrenica, parecia que a estava a descrever pela primeira vez. A cada relato, ela desabava em lágrimas. Era como se o seu relógio pessoal tivesse parado naquele Verão sufocante há 30 anos.

    Tudo o que veio em seu rastro foi apenas uma extensão do horror final.

    O resultado nunca mudará.

    Mais de 6.000 participantes embarcaram no passado dia 8 de Julho numa viagem de mais de 100 quilómetros – Marcha da Paz -, como parte da memória do 30º aniversário do genocídio dos bósnios em Srebrenica e arredores. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    Ao longo da minha visita, passei muito tempo a questionar-me como era possível sobreviver a tais atrocidades e agarrar-me à própria humanidade. Como é possível que Saliha, que perdeu o pai aos dois anos e cresceu na pobreza, não sentisse ódio, nem sede de vingança?

    O que, se alguma coisa, a manteve? Como é que ela conseguiu enfrentar o amanhecer de cada novo dia? A morte estava frequentemente na sua mente?

    “A dor e a tristeza é algo com que tive de aprender a viver”, respondeu. “Estou longe de ser a única. E não é como se eu pudesse simplesmente desistir e desaparecer. No entanto, tenho de admitir que, cada vez que me deito para descansar, ainda espero não acordar. Fui ao hospital em Tuzla duas vezes. Estive muito doente… Mas, de alguma forma, ainda não consegui morrer.”

    Acreditava que era o seu jardim que a mantinha em funcionamento. “Oh, eu simplesmente amo os meus tomates, cebolas, cenouras, batatas e alho …”

    Saliha Osmanović parece ter feito uma paz precária com o facto de ter sido a voz de milhares de seres humanos assassinados. “Sei que sou a voz do Ramo, do Edin e do Nermin”, explicou. “A voz de Srebrenica. O que significa que não tenho o direito de me calar. O livro da minha vida está sempre aberto. O que aconteceu com sempre permanece dentro de mim. Serei sempre uma mãe cujos filhos foram abatidos e cujo marido foi levado. Srebrenica continua a arranhar-me no meu âmago. Eu só posso descansar com a ajuda de comprimidos para dormir. Especialmente agora, quando a situação na Bósnia está mais uma vez em ebulição de tensão”.

    A sua linha de pensamento foi rápida a mudar do passado para o presente. Na Bósnia, a distância entre agora e então nunca é muito grande.

    Os negacionistas do genocídio e outros tipos de chauvinistas estão cada vez mais audíveis. Em 2021, a Bósnia tornou crime punível negar o que aconteceu em Srebrenica. No entanto, as autoridades da República Srpska estão agora a negá-lo todos os dias – impunemente e com o total apoio de Belgrado e Moscovo.

    Os monstros estão cada vez mais fortes. Local, regional e globalmente.

    Mirela Osmanovi, representante do Centro Memorial de Srebrenica e membro da família das vítimas do genocídio, discursou, no dia 8 de Julho, perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas numa sessão para marcar o 30º aniversário do genocídio de Srebrenica. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

    “Raramente vejo televisão. Mas quando o faço, e quando Milorad Dodik aparece, sou imediatamente transportada para aquela terrível atmosfera odiosa dos anos 90”, disse Saliha Osmanović à medida que a nossa despedida se aproximava.

    “E a situação do outro lado do rio Drina é a mesma”, elaborou. “Depois de todos estes anos, não sei como é que isto poderia ter acontecido. Não aprendemos nada? Alguns meses atrás, tive um grande susto. Tive a terrível sensação de que algo estava prestes a acontecer novamente. Que os tiros estavam prestes a ser disparados. Eu fiz uma única mala de viagem. Ainda não a desfiz. Ainda está à espera no corredor, por precaução.”

  • Presidente do Infarmed arrisca multa por ter mutilado base de dados das reacções adversas das vacinas

    Presidente do Infarmed arrisca multa por ter mutilado base de dados das reacções adversas das vacinas

    O PÁGINA UM interpôs esta terça-feira, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, uma acção destinada a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, em virtude do incumprimento reiterado e injustificado de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), proferido a 11 de Julho de 2024.

    No processo está em causa a recusa do Infarmed – que Rui Santos Ivo lidera desde 2019 e que acumula com a presidência da Agência Europeia do Medicamento – em cumprir na íntegra uma decisão judicial que o condenou a facultar ao PÁGINA UM o acesso às bases de dados contendo informação integral sobre as reacções adversas ao antiviral Remdesivir e, sobretudo, às vacinas contra a covid-19.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed.

    A acção agora intentada visa compelir a entidade a cumprir de forma integral e rigorosa a decisão judicial, sem novas tergiversações técnicas nem omissões deliberadas, e requer ao tribunal que fixe uma sanção diária não inferior a 200 euros, a incidir pessoalmente sobre Rui Santos Ivo, caso o incumprimento persista.

    A iniciativa surge após três anos de resistência institucional do Infarmed, que se escudou durante todo o processo judicial em argumentos tecnocráticos e escassamente fundamentados, tentando impedir o escrutínio cívico e jornalístico sobre os efeitos adversos das vacinas administradas em Portugal. O Infarmed respondeu ao acórdão com um gesto de aparente cumprimento: em Agosto de 2024 remeteu uma ligação com acesso condicionado a uma base de dados.

    Porém, como o PÁGINA UM denunciou de imediato, o ficheiro disponibilizado estava manifestamente truncado e manipulado, suprimindo variáveis essenciais como o grau de causalidade (improvável, possível, provável ou definitiva), o número da dose administrada, a identificação do lote, a idade exacta da vítima, o concelho e a qualificação profissional do notificador – todos dados públicos até então disponíveis no Portal RAM e que, além de não constituírem dados pessoais identificáveis, são indispensáveis para qualquer avaliação epidemiológica séria.

    A mutilação deliberada da base de dados, contrariando de forma flagrante a letra e o espírito do acórdão judicial, levou o PÁGINA UM a interpelar o Infarmed por carta registada em Outubro de 2024, sem que tenha obtido qualquer resposta ou sinal de correção. Mais grave ainda, o ficheiro entregue continha apenas os dados relativos ao primeiro ano da campanha de vacinação – entre Dezembro de 2020 e Dezembro de 2021 – ocultando os anos seguintes, precisamente quando se iniciou a vacinação em massa de adolescentes e crianças.

    Com efeito, mesmo os dados manipulados revelam já um cenário inquietante: durante o primeiro ano, foram registadas 27.220 reacções adversas, das quais 7.110 classificadas como graves. Dessas, pelo menos 104 culminaram na morte do notificado, embora em cerca de quatro dezenas de casos o ficheiro omitisse por completo o intervalo entre a administração da vacina e o desfecho fatal – sinal inequívoco da negligência do Infarmed na recolha e no acompanhamento dos dados clínicos.

    Entre os casos mais chocantes identificados pelo PÁGINA UM estão reacções fulminantes que ocorreram minutos após a vacinação. Uma mulher com mais de 80 anos morreu dois minutos depois de receber a vacina da Pfizer; um homem da mesma idade faleceu quinze minutos após a toma, vítima de tromboembolismo pulmonar; uma mulher entre os 65 e os 79 anos morreu em trinta minutos após inoculação com a vacina da AstraZeneca; e outro homem, sem identificação da marca da vacina, morreu de forma súbita uma hora depois de vacinado.

    também se registam diversos casos de reacções graves registadas entre jovens adultos e mesmo adolescentes, incluindo episódios de miocardites, tromboses, síndromes inflamatórias pediátricas e paralisias faciais, cujo desfecho clínico o Infarmed indicou como “desconhecido”, revelando uma inacreditável ausência de monitorização – precisamente a função basilar da farmacovigilância.

    Entre as 27.220 reacções adversas reportadas no primeiro ano da vacinação, o PÁGINA UM identificou 513 casos classificados como graves ocorridos em pessoas com menos de 25 anos, dos quais 225 permanecem sem qualquer registo de evolução clínica. Nove mortes ocorreram em pessoas com idades entre os 25 e os 49 anos, grupo etário para o qual a mortalidade associada à covid-19 era, mesmo antes da vacinação, residual.

    Há ainda casos de recém-nascidos, não vacinados, que sofreram reacções adversas através do leite materno após a vacinação das mães, e situações de embolias pulmonares, acidentes vasculares cerebrais, tromboses venosas cerebrais e perturbações raras do sistema nervoso, todas registadas como graves – mas também, na maioria, sem que o Infarmed tenha feito qualquer seguimento. No caso das alterações menstruais, fenómeno amplamente reportado em todo o mundo, o Portal RAM já contabilizava duas centenas de notificações apenas até Dezembro de 2021, mas nenhuma foi objecto de análise pública ou contextualização por parte do regulador.

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    O incumprimento por parte do Infarmed da ordem judicial proferida pelo TCAS configura, segundo a acção agora apresentada pelo PÁGINA UM, uma violação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que determina a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias sempre que uma decisão de intimação para prestação de informações não seja cumprida sem justificação aceitável.

    Ao pretender compelir Rui Santos Ivo a suportar pessoalmente as consequências do incumprimento do acórdão, o PÁGINA UM coloca a nu uma realidade incómoda: em Portugal, mesmo em face de sentenças judiciais inequívocas, as entidades reguladoras continuam a agir com arrogância institucional, confiando na passividade dos poderes públicos e no silêncio da restante comunicação social. E isso demonstra não apenas uma cultura de opacidade administrativa, como uma deliberada resistência ao princípio da administração aberta.

    Recorde-se, aliás, que, apesar de sentenças e acórdãos favoráveis nos tribunais administrativos, começa a ser sistemática a disponibilização dos dados de forma truncada ou insuficiente, o que tem obrigado o PÁGINA UM a interpor novas acções com vista à aplicação de multas diárias aos responsáveis dessas entidades.

    Essa situação verificou-se este ano quando o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que acumula com a presidência do Conselho Superior da Magistratura, Henrique Araújo, teve de acatar um acórdão para ceder sem restrições o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, sob pena de pagar do seu próprio bolso uma multa de 50 euros por cada dia de atraso.

    Também ainda se aguarda uma decisão similar relativamente a uma base de dados dos internamentos hospitalares na posse da Administração Central do Sistema de Saúde, cuja entidade se recusa há dois anos a acatar um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.

  • Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Subsídios de doença custaram quase mil milhões de euros em 2024

    Os valores pagos pelo Estado em subsídios de doença aproximaram-se, no ano passado, da fasquia de mil milhões de euros. De acordo com os dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, as prestações de apoio ao longo de 2024 atingiram os 962,1 milhões de euros – o valor nominal mais elevado desde que há registo.

    Esta subida foi acompanhada também por um aumento expressivo de beneficiários, que ultrapassaram os 845 mil, o que representa mais 131 mil pessoas do que em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando foi comum a atribuição de subsídio de doença a pessoas que, mesmo sem sintomas, mas com teste positivo à covid-19, tinham de permanecer em casa. O envelhecimento da população activa e os problemas de acesso aos cuidados de saúde ajudam a explicar esta tendência, mas uma coisa é certa: os seus impactos são estruturais para a sustentabilidade da Segurança Social.

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    Com efeito, a evolução dos números, tanto das prestações como do número de beneficiários, não deixa margem para dúvidas quanto ao agravamento estrutural deste tipo de despesa pública: em apenas quatro anos registou-se um crescimento superior a 18%. Já o montante total subiu 15,5% no mesmo período: de 832,7 milhões de euros em 2020 para os actuais 962,1 milhões. Face ao período pré-pandémico, a subida é ainda mais acentuada: em 2019, o valor pago tinha sido de 692,6 milhões de euros, com 650.958 beneficiários.

    Embora o valor médio por beneficiário se tenha mantido relativamente estável – cerca de 1.139 euros por pessoa em 2024, face a 1.167 euros em 2020 –, o número crescente de indivíduos a recorrer a este apoio tem tido um impacto significativo nas contas públicas. E tudo indica que o fenómeno poderá não ser transitório, mas sim reflexo de transformações profundas no mercado de trabalho e na estrutura etária da população portuguesa.

    Entre os factores explicativos identificados por analistas e especialistas em segurança social, destacam-se quatro causas principais: o envelhecimento da população activa, as alterações no mercado de trabalho, os problemas de acesso a cuidados de saúde primários e hospitalares e, mais recentemente, a normalização do recurso ao subsídio de doença em contextos menos graves.

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    Desde 2011, tem-se verificado um crescimento sustentado da população activa com mais de 55 anos, em contraste com a redução dos grupos mais jovens. Ora, esta faixa etária tem naturalmente maior probabilidade de sofrer doenças crónicas, lesões incapacitantes e períodos prolongados de baixa médica, o que contribui directamente para o aumento dos subsídios atribuídos.

    Por outro lado, a precarização das relações laborais em alguns sectores e o desgaste emocional associado a profissões altamente exigentes – como as ligadas à saúde, educação ou transportes – geram um contexto propício ao aumento do absentismo.

    A existência de ambientes laborais tóxicos, o burnout e os distúrbios de ansiedade são hoje factores relevantes para compreender os padrões de incapacidade temporária. No entanto, não é possível, com os dados disponibilizados pelo INE, destacar qual a tipologia de doenças e afecções que mais têm crescido.

    Evolução do número de beneficiários de subsídio de doença por ano desde 1990. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Todavia, mostra-se evidente que tem aumentado o número de horas inactivas nos últimos anos. Segundo os dados do INE, em 2024 foram processadas 42.750.697 horas de ausência por doença, valor ligeiramente inferior ao de 2023 (44,3 milhões) e ao de 2020 (44,6 milhões), mas muito superior ao verificado entre 2013 e 2019, período durante o qual a tendência de crescimento foi praticamente contínua: de 25,5 milhões de horas em 2013 para 38,8 milhões em 2019, num aumento superior a 50% em apenas seis anos. Nos últimos cinco anos, desde a pandemia da covid-19, têm sido processadas, em cada ano, mais de 42 milhões de horas de ausência por doença.

    Este crescimento não é proporcional ao aumento da população activa, nem ao crescimento da população imigrante residente em Portugal.

    Com efeito, a população activa total em Portugal cresceu apenas cerca de 10% entre 2013 e 2024, e o número de imigrantes com actividade profissional tem registado aumentos relevantes, mas longe de justificar isoladamente a duplicação do esforço financeiro do Estado com este tipo de apoio social. Isto significa que o absentismo por doença cresce a um ritmo autónomo e estrutural, exigindo análise e respostas políticas.

    Evolução das prestações sociais por subsídio de doença desde 1999, em milhares de euros. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM

    A tudo isto soma-se a fragilidade dos cuidados de saúde primários. A ausência de médicos de família para milhões de portugueses, as longas listas de espera para consultas e exames e a falta de resposta atempada nos hospitais levam a que muitos doentes permaneçam em situação de baixa por mais tempo do que seria necessário se tivessem acesso a um diagnóstico e tratamento céleres. A gestão ineficiente da doença, mesmo quando não grave, pode prolongar a incapacidade e acentuar a despesa.

    Comparando com o início da série estatística, a diferença é ainda mais relevante: em 1999, o número de beneficiários era de 417.486 e o montante pago ascendeu a 417,5 milhões de euros, o que corresponde a cerca de mil euros por pessoa. Ou seja, em 25 anos, o número de pessoas apoiadas duplicou e o valor pago também – um crescimento sem paralelo em outras áreas da protecção social.

  • Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Surpreendente: Lisboa foi o concelho com mais novos residentes nos últimos três anos

    Lisboa está a renascer — ou a gerar novos problemas. Depois de quase meio século de declínio demográfico — e de sucessivos diagnósticos que a davam como cidade em esvaziamento crónico —, o concelho da capital portuguesa voltou, com inesperada força, a crescer em população.

    Entre 2021 e 2024, Lisboa foi o município do país com maior atractividade e registou um aumento de 24.425 residentes, passando de 547.010 para 571.435 habitantes, segundo a análise do PÁGINA UM aos dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE). Nenhum outro concelho português registou um crescimento absoluto tão expressivo neste curto intervalo de três anos, o que representa, em média, mais 22 pessoas por dia — um valor ainda mais notável se considerarmos que o saldo natural de Lisboa continua fortemente negativo.

    Este dado, que à primeira vista poderá parecer auspicioso para quem defende o repovoamento das cidades, levanta, no entanto, questões prementes quanto à sustentabilidade urbana, à coerência das políticas municipais e à capacidade de resposta dos serviços públicos e das infra-estruturas.

    O crescimento abrupto ocorre num concelho cuja estratégia nas últimas décadas assentou sobretudo na promoção do turismo, na requalificação urbana orientada para o investimento imobiliário externo e numa política habitacional que, na prática, favoreceu o arrendamento de curta duração, a alienação de imóveis a estrangeiros e a gentrificação de bairros populares. A crise habitacional numa cidade em crescimento populacional, sobretudo associado à imigração pouco qualificada, tende a criar ainda mais problemas de degradação das condições de vida.

    De facto, a pressão sobre o parque habitacional intensifica-se, os transportes públicos dão sinais de saturação e os equipamentos sociais — escolas, centros de saúde, serviços municipais — revelam limitações perante esta nova realidade. Longe de ser o resultado de um plano urbanístico estruturado, este crescimento demográfico parece atropelar uma cidade que ainda não digeriu o seu passado recente como “resort urbano” de milhões de turistas.

    A título histórico, importa recordar que os números actuais de Lisboa continuam abaixo dos registados há quase um século. Nos Censos de 1930, a cidade contava com 591.939 habitantes e atingiu o seu pico em 1981, com 807.937 residentes — embora já estivesse então em curso um processo de despovoamento iniciado nos anos 60 e apenas atenuado nos anos 70 pela chegada de milhares de retornados após a descolonização. Mas essa era uma fase em que as famílias se ‘amontoavam’ em residências com poucas condições.

    Desde então, Lisboa entrou numa trajectória demográfica descendente, alimentada pela suburbanização, pelo envelhecimento demográfico e pelo êxodo da classe média para os concelhos periféricos. Os Censos de 2021 fixaram a população alfacinha em 545.796 residentes, traduzindo uma quebra acumulada de quase 33% desde 1981.

    O recente crescimento populacional de Lisboa — como o de Portugal em geral — não assenta num rejuvenescimento interno. O país continua a registar um saldo natural negativo, com mais mortes do que nascimentos. Ainda assim, entre 2021 e 2024, a população residente aumentou quase 287 mil pessoas, passando para um total de 10.694.681 habitantes, o que corresponde a um acréscimo médio de 262 pessoas por dia.

    Imigração tem sido o grande motor da recuperação demográfica de Lisboa, mas tem criado tensões sociais.

    Este crescimento deve-se, exclusivamente, ao saldo migratório, uma vez que o saldo natural continua a afundar-se. Em 2023, segundo o INE, morreram mais 33.824 pessoas do que as que nasceram, agravando o já elevado défice de 2022, que se fixara em 32.596. Ou seja, em três anos, o saldo migratório terá sido próximo das 400 mil pessoas.

    Os maiores crescimentos populacionais absolutos verificaram-se sobretudo nos municípios urbanos. A larga distância de Lisboa — com os já referidos 22 residentes adicionais por dia — surge o concelho do Porto, que, não obstante também registar um saldo natural negativo, viu a sua população crescer em 16.290 pessoas no último no triénio, o equivalente a mais 16 por dia.

    Seguem-se Sintra (mais 10 por dia), Braga, Seixal e Amadora (7), Maia (6), e depois Vila Nova de Gaia, Cascais, Matosinhos, Odivelas, Loures, Leiria, Aveiro, Valongo e Oeiras, todos com cerca de cinco novos residentes diários. Em comum, estes concelhos integram áreas metropolitanas e beneficiam de dinâmicas urbanas, oferta de emprego, habitação mais acessível ou atracção universitária.

    Abrantes foi o concelho de país que mais população perdeu no último triénio. Foto: CMA.

    Apesar da tendência de crescimento agregada, cem concelhos — quase um terço do total nacional — perderam população entre 2021 e 2024. Em termos absolutos, os maiores recuos ocorreram em Abrantes (menos 575 residentes), Felgueiras (menos 523) e Portalegre (menos 494). Também a cidade da Guarda, sede de distrito, perdeu habitantes: menos 190 face a 2021. Este decréscimo não é apenas estatístico, mas evidencia a persistência das assimetrias entre litoral e interior, bem como o falhanço das políticas de coesão territorial.

    Em termos relativos, o maior crescimento verificou-se em concelhos com forte presença de imigração laboral ligada ao sector agrícola. O caso mais extremo é o de Odemira, que viu a sua população crescer 11% em apenas três anos, passando de 30.186 para 33.495 residentes — um acréscimo de 3.309 pessoas.

    Seguem-se Sobral de Monte Agraço, no distrito de Lisboa, com uma subida de 10,7%, Óbidos e Vila Nova da Barquinha (10,5%), Arruda dos Vinhos (9,0%), Porto Santo (8,9%), Corvo (8,7%), Entroncamento e Bombarral (8,4%), Albufeira (8,1%), Oliveira do Bairro (8,0%), Benavente e Alenquer (7,9%), Lourinhã (7,4%), Ílhavo e Salvaterra de Magos (7,1%), Porto (7,0%), Vagos (6,9%) e São João da Madeira (6,8%).

    Odemira, com as suas estufas, tem atraído bastante população: cresceu 11% nos últimos três anos.

    Estes aumentos percentuais, por vezes mais discretos em números absolutos, são, ainda assim, relevantes. Assinalam novas dinâmicas locais, associadas à atracção de mão-de-obra estrangeira, a políticas de habitação menos especulativas ou à retoma económica pós-pandemia.

    Porém, muitos destes territórios não dispõem de recursos, serviços públicos nem planeamento urbanístico suficientes para absorver, com qualidade, uma população em crescimento acelerado.