Categoria: Sociedade

  • Indústria farmacêutica ‘montou’ feudo no Ministério da Saúde

    Indústria farmacêutica ‘montou’ feudo no Ministério da Saúde

    A indústria farmacêutica reforçou a sua presença no Ministério da Saúde com a nomeação de Francisco Gonçalves para a Secretaria de Estado da Gestão da Saúde. O novo governante salta directamente da Sanofi, onde ocupava desde 2021 o cargo pomposamente denominado Head of Market Access & Public Affairs. Nessas funções, Francisco Gonçalves foi responsável pela definição de estratégias para a obtenção de preços e reembolsos junto das autoridades de saúde, bem como pela articulação com decisores políticos e instituições públicas, assegurando o enquadramento regulatório e institucional favorável à empresa.

    Foi ele que, por exemplo, negociou com o Ministério da Saúde, então liderado por Ana Paula Martins, a introdução do fármaco Beyfortus – marca comercial do nirsevimab, um anticorpo monoclonal para a prevenção do vírus sincicial respiratório –, que é hoje uma das coqueluches da farmacêutica francesa (confirma). Nas contas de 2024, a Sanofi reportou receitas com este fármaco de quase 1,7 mil milhões de dólares, com um crescimento de 208% face ao ano anterior, ocupando já a segunda posição entre as suas marcas, apenas atrás do Dupixent, também um anticorpo monoclonal destinado ao tratamento da asma e da dermatite atópica, e que é um autêntico campeão de vendas devido ao seu elevado preço.

    Apesar de se tratar de uma doença genericamente benigna e de não haver registo em Portugal de mortes em bebés, a Sanofi – apoiada numa intensiva campanha mediática que incluiu parcerias promíscuas com a imprensa mainstream – conseguiu que, em 2024, o Ministério da Saúde adquirisse doses suficientes para inocular cerca de 62 mil bebés nascidos entre 1 de Agosto do ano passado e 31 de Março de 2025.

    De acordo com o Portal Base, a Sanofi conseguiu vender até hoje cerca de 14,6 milhões de euros (IVA incluído) de Beyfortus, mas a factura deverá ainda aumentar substancialmente. Grande parte deste valor deveu-se á administração de doses em cerca de 62 mil crianças”, justificada por um alegado estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), com base em dados de 2023, que apontavam para o internamento hospitalar de 145 crianças até aos dois anos de idade, entre 2 de Outubro e 10 de Dezembro.

    No passado mês de Abril, o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde (DGS), decidiu expandir a estratégia de imunização na próxima campanha de vacinação, alargando a sua abrangência a todos os bebés nascidos entre 1 de Junho de 2025 e 31 de Março de 2026. A data ainda não está definida, mas a campanha de administração do anticorpo monoclonal – que não é tecnicamente uma vacina – deverá arrancar a 1 de Outubro e prolongar-se até 31 de Março de 2026.

    O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.

    Apesar de diversos estudos indicarem que o Beyfortus reduz significativamente a hospitalização de bebés com infecções respiratórias por VSR, não são conhecidos estudos públicos sobre o verdadeiro impacto nos hospitais portugueses, sendo certo que, em termos de óbitos, não havia nada a melhorar, por não haver registos de desfechos fatais. Até porque, antes do Beyfortus, já existia um outro anticorpo monoclonal administrado apenas a prematuros e recém-nascidos com comorbilidades graves.

    Apesar disso, os dados da Agência Europeia do Medicamento – actualmente presidida por Rui Santos Ivo, presidente do INFARMED, e que ficará agora sob tutela do ex-Sanofi Francisco Gonçalves – começam a indicar suspeitas de efeitos adversos graves associados à toma de nirsevimab. Ainda que estes dados careçam de confirmação, a sua inclusão no sistema EudraVigilance constitui já um alerta regulatório.

    Desde 2023 até à data, foram reportadas 628 reacções adversas graves, incluindo 21 mortes. Destas, 13 foram reportadas em 2024 e sete já este ano. O mais recente registo de morte associada à nirsevimab é de 29 de Março e ocorreu por morte súbita de um recém-nascido com menos de um mês no próprio dia da toma, de acordo com o registo da EudraVigilance.

    Os efeitos adversos do Beyfortus têm sido detectados sobretudo em França, onde a administração do fármaco é mais intensiva. Actualmente, para além de Portugal e França, o Beyfortus tem sido administrado em Espanha, Alemanha, Itália, Finlândia e Bélgica – embora nem todos os países tenham optado por abranger todas as crianças. O custo por dose ascende a mais de 200 euros, valor considerado exorbitante, o que tem contribuído para o expressivo crescimento das receitas da Sanofi.

    Com a nomeação de Francisco Gonçalves, são agora dois os governantes do Ministério da Saúde com fortes ligações à indústria farmacêutica. Ana Paula Martins esteve durante vários anos ligada à Gilead, uma das farmacêuticas que conseguiu importantes negócios durante a pandemia, sobretudo com o remdesivir, um fármaco que fora um investimento ruinoso contra o vírus do Ébola, mas que miraculosamente foi considerado eficaz contra o SARS-CoV-2.

    Apesar de a covid-19 ser actualmente uma doença praticamente inofensiva, a Gilead conseguiu já vender este ano em Portugal mais 744 mil euros de remdesivir a diversos hospitais, tendo no ano anterior obtido ainda 3,7 milhões de euros. Desde finais de 2020, cerca de 40 milhões de euros deste antiviral foram adquiridos pelo Estado português à antiga empregadora da actual ministra da Saúde.

    Exemplo paradigmático do uso de jornalistas como ‘delegados de propaganda médica”. Clara de Sousa numa acção da indústria farmacêutica, uma empresa de genéricos.

    A indústria farmacêutica vive, na Europa, um período de expansão acentuada dos seus negócios, com cada vez menor vigilância regulatória, fruto das chamadas “portas giratórias” entre o sector e a política. Além disso, ao nível dos media, tem-se vindo a registar aquilo que se poderá denominar – com rigor a definir – “abraços de urso” publicitários, em que parcerias comerciais envolvendo jornalistas alimentam uma cobertura enviesada: os órgãos de comunicação social funcionam agora como novos delegados de propaganda médica.

    Em Portugal, por exemplo, o Expresso, o Público, a CNN, o Observador, o Diário de Notícias, entre outros, têm mantido generosas parcerias com farmacêuticas, o que se traduz numa visível redução de notícias desfavoráveis e num aumento de conteúdos entusiásticos, mesmo relativamente a medicamentos ainda sem provas consolidadas de eficácia ou de segurança.

  • Imparável: após buscas, Nininho Vaz Maia já ganhou mais 200 mil euros em concertos com autarquias

    Imparável: após buscas, Nininho Vaz Maia já ganhou mais 200 mil euros em concertos com autarquias

    Mesmo depois de ser constituído arguido e com rumores da sua ‘expulsão’ de mentor do The Voice, programa de talentos da RTP, a carreira do cantor Nininho Vaz Maia, vai de vento em popa. As buscas de foi alvo, no passado dia 6 de Abril, relacionadas com tráfico de droga e lavagem de dinheiro, não esmoreceram a vontade de autarcas em contratarem o popular cantor, que afirma estar inocente. No espaço de um mês, após as buscas, Nininho ‘assinou’ mais quatro contratos com autarquias num valor global de 205 mil euros para dar concertos ‘grátis’ à população. E há mais a caminho.

    Os quatro municípios que adjudicaram contratos ao cantor, sempre por ajuste directo, foram: Castelo de Paiva, Sertã, Reguengos de Monsaraz e Arouca. Três dos contratos foram efectuados através da Gigs on Mars, que representa o artista, e um foi feito através da empresa unipessoal Iconikourage, segundo a consulta que o PÁGINA UM fez à plataforma de registo dos contratos públicos, o Portal Base.

    A polémica em torno do artista não beliscou o apetite de autarcas em contratar o popular cantor nascido numa família cigana, que se tornou numa das coqueluches do panorama musical nacional e esgotou duas noites no MEO Arena. A tendência confirma que Nininho Vaz Maia se tornou um fenómeno musical, sendo até imune a polémicas, como o PÁGINA UM antecipou. Além da popularidade, a polémica em torno do cantor surgiu num contexto em que a cena política ‘lucra’ com posições a favor ou contra minorias.

    O município da Sertã liderado pelo socialista Carlos Miranda adjudicou, no dia 21 de Maio, um contrato referente à contratação de um espectáculo do cantor no valor de 43.665 euros. O cantor tem assim presença confirmada no dia 19 de Julho no ‘Festival de Gastronomia do Maranho‘ de 2025, que decorre de 17 a 20 de Julho.

    Seguiu-se um contrato adjudicado à Iconikourage, Unipessoal, no dia 23 de Maio, pelo município de Castelo de Paiva presidido pelo social-democrata José Rocha no montante de 74.722,5 euros referente à aquisição de um “espectáculo, produção e gestão da produção do espetáculo musical de Nininho Vaz Maia – Festas de S. João”. O cantor será o cabeça-de-cartaz das festividades e irá actuar na noite de S. João, a 23 de Junho.

    Na passada terça-feira, dia 3 de Junho, o cantor ganhou mais dois contratos por ajuste directo, assinados pela Gigs on Mars com os municípios de Reguengos de Monsaraz e Arouca.

    Nininho Vaz Maia é o cabeça-de-cartaz das Festas de Santo António em Reguengos de Monsaraz.
    / Foto: D.R.

    No caso do município alentejano, o valor do contrato ficou por 46.125 euros para contratar Nininho Vaz Maia para actuar  nas Festas de Santo António de 2025, que decorrem entre 12 e 15 de Junho. O cantor vai estar em palco às 23 horas no dia 12 de Junho.

    O quarto contrato foi adjudicado pelo município de Arouca, por um valor de 41.364,9 euros. O cantor vai actuar na ‘Feira das Colheitas, Edição 2025’ marcada para entre 25 e 28 de Setembro. O músico vai actuar no dia 26 de Setembro, depois de ter sido “o mais votado no âmbito do inquérito online que a Câmara Municipal lançou para recolha de sugestões de artistas para a 81.ª edição da Feira das Colheitas”, segundo um anúncio da autarquia nas redes sociais, cujo prazo de resposta terminou a 15 de Abril, antes das buscas.

    Curiosamente, este contrato foi adjudicado por uma autarca, a socialista Margarida Belém, que foi condenada em 2023 pelo crime de falsificação de documentos, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa por igual período. Em 2024, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso da autarca e confirmou a sentença aplicada na primeira instância.

    Mas a lista de contratos públicos adjudicados a Nininho Vaz Maia não deverá ficar por aqui. É que o artista terá 17 concertos agendados até ao final do ano de Norte a Sul do país, segundo alguns sites com agendas de eventos. Assim, ainda haverá contratos por assinar com autarquias para concertos que serão ‘grátis’ para a população, sendo pagos pelos contribuintes. Por exemplo, Nininho Vaz Maia vai actuar na ‘Festa do Emigrante 2025’, em Agosto, em Vila Real, que celebra este ano o seu centenário.

    Nos últimos dias, surgiram rumores de que Nininho Vaz Maia não irá continuar como ‘Mentor’ no programa de talentos ‘The Voice Portugal’, da RTP, mas não há nenhuma informação oficial sobre o tema. O artista integrou a lista de ‘Mentores’ da última edição do programa, ao lado de de Sónia Tavares, Sara Correia e Fernando Daniel. / Foto: D.R.| RTP

    Ainda hoje foi publicado no Portal Base um contrato no valor de 21.525 euros referente à “aquisição de serviços para o aluguer de som, luz, vídeo, efeitos especiais e material de DJ para o espetáculo do artista Nininho Vaz Maia, inserido na Festa do Emigrante 2025”. De resto, note-se que a despesa com concertos ‘grátis’ contratados pela autarquia de Vila Real em 2025 já iam, no final de Março, perto do meio milhão de euros, segundo um levantamento feito pelo PÁGINA UM. Um custo que ‘sobra’ para os contribuintes e que, em ano de eleições autárquicas, cai que nem ‘mel na sopa’ dos autarcas de todo o país, de ‘olho’ em novo mandato. Nininho é apenas mais um dos artistas com concertos ‘grátis’ que ‘animam’ a festa.

    Na página da Gigs on Mars, agente do artista, constam 11 concertos agendados entre os dias 21 de Junho e 27 de Julho. Já na página oficial do cantor na Internet, a área dedicada a agenda encontra-se vazia, surgindo a mensagem: “de momento não há eventos programados”.

    A agenda recheada do cantor, vem mostrar que a condição de arguido não o afasta dos palcos. Pelo contrário. Recorde-se que, tal como o PÁGINA UM noticiou, no próprio dia em que foi alvo de buscas, o cantor ganhou novo contrato público, com o munícipio de Anadia.

    Actualizando os valores, com os quatro contratos agora ganhos, eleva-se para 697.828 euros a facturação do cantor em 14 contratos com entidades públicas só em 2025. Este valor compara com os 20 contratos ganhos em todo o ano de 2024 e os 12 obtidos em 2023, num valor global 798.940 euros e 326.811 euros, respectivamente.

    Nininho Vaz Maia vai actuar na ‘Festa do Emigrante 2025’ em Vila Real, integrando assim o número de artistas que este ano darão concertos ‘grátis’ à população no âmbito das celebrações do centenário da elevação a cidade. / Foto: D.R.

    No total, desde Janeiro de 2023, quando ganhou o seu primeiro contrato público, o cantor já facturou mais de 1,8 milhões de euros com entidades públicas, incluindo 41 autarquias.

    O cantor tem feito também um percurso fora do circuito dos contratos públicos, sendo exemplo disso a Queima das Fitas e, sobretudo, espectáculos comerciais, com entradas pagas. Por exemplo, há menos de três meses, esgotou duas noites no MEO Arena, em Lisboa.

  • Pela boca morre o peixe: Gouveia e Melo soube de ‘cunha’ de político na vacinação da covid-19… e nada fez

    Pela boca morre o peixe: Gouveia e Melo soube de ‘cunha’ de político na vacinação da covid-19… e nada fez

    Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”

    Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.

    Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.

    O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

    A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.

    Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

    De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.

    Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.

    No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.

    No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.

    Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.

    Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.

    Gouveia e Melo foi coordenador da task force.

    Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.

    Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.

    Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.

    Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.

    A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.

    Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.

    Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.

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    Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.

    Porém, isso é completamente falso.

    Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.

    Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.

    Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.

    Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.

    Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.

  • Correio da Manhã, Público, JN, DN e Expresso em colapso: vendas em mínimos históricos

    Correio da Manhã, Público, JN, DN e Expresso em colapso: vendas em mínimos históricos

    Os resultados do primeiro trimestre deste ano, divulgados na semana passada pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), voltam a comprovar aquilo que os ‘barões da imprensa’ persistem em negar com a habitual táctica da avestruz: escondem a cabeça nos slogans sobre “transformações digitais”, “modelos sustentáveis” e “novas formas de chegar ao leitor”, enquanto o corpo editorial se afunda no pântano da irrelevância.

    A verdade, nua e crua, é esta – e é tão clara quanto dramática: a imprensa escrita generalista portuguesa colapsou. Os números não mentem. São mais de duas décadas de declínio contínuo, mascarado por anúncios piedosos e relatórios internos que já ninguém leva a sério.

    Foto: PÁGINA UM

    Em 2025, nem os comunicados eufemísticos do trust da comunicação social, nem os generosos orçamentos de publicidade institucional, nem sequer o ‘balão de oxigénio’ do Governo – travestido de distribuição gratuita de assinaturas digitais para os jovens – conseguem disfarçar o desastre. A erosão é estrutural e terminal.

    A evolução das vendas em banca – com quebras brutais em todos os títulos – e das assinaturas digitais – com valores unitários largamente inferiores aos do papel e sem escala de massa crítica – espelham o fim de um modelo baseado na fuga para a frente: redacções inexperientes, pouco cultas, reféns de agendas e compromissos, divorciadas dos leitores e cada vez mais promíscuas nas relações com o poder político e económico.

    Mais do que um fim de ciclo, talvez este seja mesmo o fim de linha para alguns dos títulos – o que, convenhamos, não seria necessariamente mau. A extinção natural poderá limpar o terreno dos vícios acumulados, permitir um reequilíbrio do ecossistema mediático e abrir espaço a novas formas de jornalismo, menos dependentes da subsidiação crónica e da formatação ideológica. A imprensa escrita colapsou, mas o jornalismo ainda pode sobreviver – desde que se liberte das amarras que o arrastaram até aqui.

    Foto: PÁGINA UM

    O PÁGINA UM analisou a evolução das vendas dos últimos 30 anos de cinco jornais generalistas portugueses: quatro nascidos como diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e um de origem semanal – o Expresso. A linha temporal inicia-se em 1996, quando ainda não existia o conceito de assinaturas digitais e os portugueses, então leitores assíduos, consumiam jornais em papel como parte integrante do café da manhã.

    Foi apenas em 2009 que esse “novo e maravilhoso mundo” digital começou a dar os primeiros sinais de vida, ainda timidamente. Ao longo da década seguinte, foi ganhando terreno, até se tornar, nos últimos anos, o eixo dominante das estratégias editoriais. Hoje, as edições impressas são cada vez mais residuais, enquanto a produção de conteúdos se rege pela lógica do imediato – e pelos inúmeros erros que daí decorrem.

    A própria natureza do jornalismo transformou-se: os diários deixaram de ser apenas diários para se tornarem plataformas de informação em torrente contínua, ao passo que o Expresso, tradicionalmente semanal, passou a comportar-se como um diário digital, pressionado pelo mesmo ritmo.

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    Mais ainda: a transição é já estrutural em dois casos. O Público e o Expresso são, desde 2020 e 2023 respectivamente, jornais maioritariamente digitais, com as assinaturas electrónicas a superarem as vendas em banca. Esta inversão de paradigma, longe de ser sinónimo de sustentabilidade, levanta sérias questões sobre a viabilidade económica, a qualidade editorial e o impacto social do jornalismo tal como está a ser praticado.

    Mas vejamos, com rigor e em detalhe, os números de cada jornal, tomando como referência os dados relativos ao primeiro trimestre de cada ano, de forma a permitir comparações homogéneas ao longo do tempo.

    Comece-se pelo Público, o diário fundado pelo Grupo Sonae. No primeiro trimestre de 1996, vendia diariamente, em banca, cerca de 58 mil exemplares. Este ano, pela primeira vez, caiu abaixo dos 10 mil. Uma queda de mais de 84%, que nem o empolamento das assinaturas digitais – muitas de acesso gratuito ou incluídas em pacotes promocionais – consegue mascarar. A versão digital, é certo, regista agora cerca de 54 mil assinaturas pagas, quintuplicando os valores registados há uma década, mas à custa de uma política de produção intensiva de conteúdos e de receitas unitárias substancialmente mais baixas que o papel. E a matemática é simples: mais trabalho, menos rendimento. E menos impacto.

    O simbolismo do papel, mesmo no efémero diário, é superior – nesse aspecto, o diário da Sonae é hoje um fantasma: o ano de 2005 foi o último acima dos 50 mil exemplares vendidos por dia; 2015 foi o último com vendas diárias em banca acima dos 20 mil, e agora já está abaixo de 10 mil. Sinal de que o digital não é sustentável mostra-se nas contas. O Público, que sempre foi um jornal deficitário, apresentou em 2023 – os resultados de 2024 ainda não são conhecidos – um prejuízo recorde de quase 4,5 milhões de euros.

    Passemos ao Diário de Notícias, ou àquilo que resta do diário nascido no século XIX e que só existe por um ‘milagre’ não explicado pelas ciências económicas. No primeiro semestre do ano 2000 vendia mais de 70 mil exemplares diários, mesmo mais do que em 1996. Mas várias promiscuidades entre o jornalismo e o mundo político e empresarial foram aniquilando o jornal depois da saída de Mário Bettencourt Resendes em 2004, e da passagem de nove directores (sem contar com os interinos).

    Entre 2003 e 2013, as vendas no primeiro trimestre passaram de cerca de 52 mil exemplares por dia para menos de 24 mil. Mas isso foi apenas o princípio do descalabro.

    Em 2018, as vendas já estavam abaixo dos 10 mil, e dois anos depois mal ultrapassavam os quatro mil. No primeiro trimestre deste ano, o DN nem chega a mil exemplares por dia. Não, não leu mal: são 966 exemplares em banca, em média, no primeiro trimestre de 2025. Trata-se de um nível de circulação impraticável para qualquer modelo de imprensa de massas – e apenas sustentável graças a expedientes editoriais de sobrevivência. A edição digital, por sua vez, ronda os 700 acessos pagos, uma ninharia irrelevante do ponto de vista económico e social.

    Já o Jornal de Notícias, outrora o orgulho da imprensa nortenha. E chegou a ser um jornal centenário por duas razões: por ter mais de cem anos (foi fundado em 1888) e por ter ultrapassado os 100 mil exemplares por dia no final dos anos 90.

    No período em análise, o pico surgiu em 2004 com cerca de 127 mil exemplares diários. Embora até 2009 se tenha mantido em redor dos 100 mil exemplares, a partir desse ano iniciou uma rota descendente. Em 2014 já estava abaixo dos 60 mil exemplares, ou seja, uma queda de 40% em apenas cinco anos. Mas ainda se afundou mais.

    No primeiro trimestre de 2020 já surge abaixo dos 40 mil, e os últimos anos têm sido penosos, mesmo com a sua suposta saída do universo da Global Media. O primeiro trimestre deste ano mostra vendas de 16.613 exemplares, que representam apenas 13% das vendas do pico de 2004.

    Ainda por cima, a digitalização, longe de salvar o navio, apenas está a apressar o naufrágio: 3.300 assinaturas digitais pagas em 2025. Com uma assinatura anual a custar 24,95 euros, não é por aqui que o JN se salvará.

    O Correio da Manhã, tradicionalmente o mais resiliente entre os generalistas, e que se anuncia como o jornal diário mais lido em papel, está agora reduzido a um rei de um só olho em terra de cegos. Há dias, o jornal da Medialivre regozijava-se por vender “mais de 1 milhão de exemplares por mês” em banca, o que corresponde a “um número superior a 34 mil exemplares por dia”. No actual contexto, em que entra em competição o Diário de Notícias com menos de mil, parecem valores extraordinários – mas não.

    Desde 2011 não há ano em que o Correio da Manhã tenha conseguido inverter a tendência de queda. No auge de 2011, vendeu 125.354 exemplares diários – ou seja, mais de 3,75 milhões por mês; cinco anos depois já estava abaixo da fasquia dos 100 mil por dia, mesmo assim cerca de três vezes mais do que os valores do primeiro trimestre de 2025. Ou seja, em 14 anos, entre 2011 e 2025, o Correio da Manhã teve uma quebra de vendas de 73%, que nem sequer é mitigada pelas assinaturas digitais, que começaram em 2012 e apenas rondam agora os 2.700.

    Mesmo sem o descalabro dos outros diários, a imprensa popular também sofre, tanto mais que a transição digital não casa com o público tradicional do Correio da Manhã.

    Finalmente, o caso do Expresso, sendo diferente por ter nascido como semanário, também merece destaque pelo contraste entre o passado de prestígio e o presente de perda. Jornal que, nos anos 90, começou paulatinamente a vender em redor dos 130 mil a 140 mil exemplares por edição – também fruto do célebre saco de plástico que garantia o seu fácil manuseamento –, o Expresso deu-se mal com os ares fora de Lisboa, depois de ter saído da sua célebre redacção na Rua Duque de Palmela. Em 2002, atingiu o seu máximo de vendas por edição no primeiro trimestre, com mais de 143 mil exemplares, mas foi depois paulatinamente decaindo. Em 2012 contabilizou pela primeira vez valores de vendas abaixo de 100 mil exemplares, numa altura em que o digital ainda dava os primeiros passos.

    Nos anos seguintes, o Expresso deixou de ser um semanário com uma edição online para se tornar num diário digital com uma edição semanal em papel. Esta nova versão teve duas consequências: quebras brutais em banca, sobretudo a partir de 2021, que fazem com que por edição se tenham vendido apenas 33.603 exemplares durante o mais recente trimestre; e um aumento nas assinaturas pagas, rondando agora as 50 mil. Dir-se-ia que, somando ambas as categorias, se teria mais de 80 mil leitores, mas esse número fica aquém dos valores da edição semanal da primeira década do presente século.

    Além disso, mesmo considerando que os lucros são teoricamente maiores nas assinaturas digitais – por não implicarem os custos de produção e distribuição da edição em papel –, os custos redaccionais aumentam (porque há mais conteúdos), e o impacto real diminui. O Expresso de hoje, com 33.603 exemplares vendidos em banca, mesmo com 49.987 assinaturas digitais, não tem o mesmo estatuto do Expresso de 2002, com 143.222 exemplares vendidos em banca.

    E se isto se passa com os cinco maiores e mais relevantes jornais generalistas de Portugal, estamos perante um cenário de terra queimada. Nenhum jornal conseguiu fazer a transição para o digital com equilíbrio económico. As receitas digitais, em média, representam uma fracção das impressas – mesmo com maior volume. Os custos redaccionais mantêm-se elevados, pela sofreguidão noticiosa de repetir primeiro tudo aquilo que os outros dão, mas com salários baixos e uma enxurrada de comentadores a opinar, de sorte que há jornais que mais parecem opinativos.

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    Em suma, o papel está em agonia, o digital não sustenta. A imprensa escrita generalista portuguesa está, literalmente, em coma induzido por financiamento público e contratos opacos. Mais grave ainda: esta agonia arrasta consigo a função essencial de contrapoder e de vigilância do jornalismo. Num país onde os jornais vivem de publicidade institucional e do favor dos grandes grupos económicos, a queda das vendas significa também a queda da publicidade sem compromisso, da independência. A maioria dos jornais já não vive dos leitores, mas do poder político, da publicidade camuflada e das agendas de grupo. O resultado é uma imprensa cada vez mais alienada do interesse público, cada vez mais dependente da narrativa oficial.

    Os números do primeiro trimestre de 2025 não deixam margem para dúvidas. A crise deixou de ser conjuntural e tornou-se estrutural e terminal. Nenhuma newsletter ou podcast salvará o que já está morto. Nenhuma “estratégia digital” ressuscitará o que foi enterrado há uma década. A imprensa escrita portuguesa, tal como a conhecemos, está nos últimos estertores – até porque quem vende menos, cada vez mais recorre a esquemas que matam o jornalismo.

  • Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    Helicópteros: cunhado do ministro Leitão Amaro conseguiu, com um único empregado, lucrar 400 mil euros em 2023

    “Estimados, Terei todo o gosto e interesse em esclarecer o vosso site pois acompanho á [sic] alguns anos e sempre apreciei a forma isenta como escrevem e por achar (e provo) que tem muitas incorreções achei de [sic] devia enviar este comunicado e também colocar-me ao dispor.”

    Foi através de correio electrónico que Ricardo Leitão Marques reagiu à notícia do PÁGINA UM, que revelava que a Gesticopter Operation, uma subsidiária da Gestifly, apenas tinha sido adquirida pela Helifinance Asset Management, detida pelo empresário casado com a irmã do ministro Leitão Amaro, em Março deste ano, ou seja, antes do contrato de 20,1 milhões celebrado apenas no mês passado, no dia 7.

    Na sua missiva ao PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques envia igualmente o comunicado divulgado no passado sábado pela generalidade da imprensa, no qual refere que já detinha a maioria do capital da empresa Gestifly desde Junho de 2023, o que significa que a transmissão da Gesticopter constituiu uma mera operação formal de reestruturação societária, sem efeitos substanciais de alteração no controlo efectivo. De facto, a Gestifly é agora detida, de acordo com o Registo de Beneficiário Efectivo, por Ricardo Leitão Marques através da Demeter, uma empresa com sede no mesmo local da Helifinance Asset.

    Porém, apesar dos posteriores pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM, Ricardo Leitão Marques acabou por não responder às questões mais essenciais nem esclarecer algumas das syas ‘garantias’.

    Com efeito, no comunicado deste sábado, Ricardo Leitão Marques diz que a sua entrada na Gestifly em 22 de Junho de 2023 ocorreu quando a empresa “enfrentava sérias dificuldades financeiras e tinha acabado de ser seleccionada para três contratos públicos de aquisição de serviços de disponibilização e locação de meios aéreos para o dispositivo aéreo do DECIR de 2023”.

    Ricardo Leitão Machado, esta semana, em entrevista ao Diário de Notícias. Foto: DR.

    Efectivamente, apesar de constar no Portal Base que a Gestifly teve divulgados quatro contratos em 2024, três destes foram assinados ainda em 2023 para o fornecimento de 10 helicópteros, alguns dos quais para dois anos. O incompreensível atraso na divulgação dos contratos no Portal Base por parte da Força Aérea foi, aliás, detectado em primeira mão pelo PÁGINA UM em finais de Janeiro de 2024. O Estado-Maior da Força Aérea(EMFA) justificou então o atraso como “falha técnica”. Mas, na verdade, tratava-se de uma intencional ocultação de contratos durante meses, pois este era um problema crónico.

    Nessa altura, o PÁGINA UM analisara os 500 contratos mais recentes publicados pelo EMFA – que apanham um período desde 27 de Fevereiro de 2023 e 30 de Janeiro de 2024 – identificaram-se quatro contratos em que se demorou mais de 1.000 dias a inserir-se a informação no Portal Base, um dos quais a aquisição de um boroscópio de medição no valor de quase 31 mil euros à Olympus, adquirido em Agosto de 2020 e que só deu entrado no Portal Base em Agosto de 2023.

    Mas isto são só os casos extremos. Se se considerar os atrasos superiores a um ano, ou seja, 365 dias, encontravam-se 64 contratos, e aí o montante subia para os 69,2 milhões de euros. Com atraso superior a meio ano eram já 212 contratos, envolvendo um montante total superior a 100 milhões de euros. Contudo, considerando que os prazos de divulgação genericamente previstos no Código dos Contratos Públicos são de 20 dias úteis, o EMFA estava num cumprimento inferior a 20% dos contratos.

    Considerando os 15 contratos acima de um milhão de euros, de entre os 500 mais recentemente divulgados pelo EMFA, apenas em seis se cumpriram os prazos, sendo que nos restantes nove encontram-se três em que a demora foi superior a dois longos anos. Neste caso, destaca-se o contrato de fornecimento de combustíveis por cerca de três anos à Petrogal no valor de 57,3 milhões de euros. A celebração foi a 30 de Setembro de 2021, mas a informação só viu a luz no Portal Base no passado dia 16 de Janeiro. Portanto, uma demora de 838 dias.

    Mas regressando aos contratos com a Gestifly, após a afirmação de Ricardo Leitão Marques ter dito que a empresa enfrentava “sérias dificuldades financeiras” em 2023, o PÁGINA UM foi analisar as contas da empresa. Apesar de ter sido criada em 2021, nos dois primeiros anos a Gestifly não teve qualquer actividade e, por isso, os pequenos prejuízos foram irrelevantes.

    Em 2021, o prejuízo foi de apenas 4.060 euros e no ano seguinte de 7.122 euros — nada de dramático para um capital social de 50 mil euros, e para uma empresa que estava à procura dos primeiros negócios. Mas no final do ano de 2022 — ou seja, antes da data que Ricardo Leitão Marques diz ter tomado o domínio da Gestifly —, a empresa até ficou com uma elevada liquidez, porque conseguira um financiamento bancário de 1,6 milhões de euros, conforme se detecta no balanço das demonstrações financeiras desse ano consultadas pelo PÁGINA UM.

    Esse financiamento de 2022 terá permitido que a Gestifly se lançasse para finalmente começar a concorrer a concursos públicos de prestação de serviços de meios aéreos de combate aos incêndios rurais. E em 2023 — o tal ano que o cunhado de Leitão Amaro diz que esta empresa estava em “sérias dificuldades financeiras” —, a Gestifly conseguiu ganhar três concursos e acabar o ano com uma facturação de 6,4 milhões de euros. Uma grande parte das receitas (mais de 5,9 milhões de euros) serviram para pagar a subcontratação de serviços. Mesmo assim, sobraram 401.255 euros de lucro nesse ano, conforme as contas de 2023 consultadas pelo PÁGINA UM, que desmentem a alegada má situação financeira nesse ano.

    Na verdade, os resultados podem mesmo considerar-se excelentes, se atendermos que a Gestifly tinha em 2023… um único empregado. E nem se diga que era um, mas um que era um génio que valia por cem, porque o accionista principal, Ricardo Leitão Marques, apenas lhe pagou um salário bruto de 13.458 euros — ou seja, cerca de 960 euros por mês, o que é compatível com o salário de um contabilista mal pago.

    Em suma, e também considerando que o activo tangível da empresa em 2023 rondava apenas 1,4 milhões de euros —a Força Aérea comprou há três anos seis helicópteros de combate aos incêndios por 8,8 milhões de euros (com IVA) por unidade —, o negócio da Gestifly aparenta ser um simples intermediário: subcontrata os 10 helicópteros a outras empresas, subcontrata pilotos e manutenção, e fica com uma ‘comissão líquida’ de 6,4%. Assim, com um único empregado, a quem pouco mais pagou que o salário mínimo nacional, Ricardo Leitão Machado conseguiu uma produtividade de 400 mil euros por trabalhador, cerca de 20 vezes o valor médio nacional.

    Força Aérea adquiriu seis helicópteros em 2022, mas Portugal está dependente de empresas privadas para o combate aéreo aos incêndios rurais.

    Em 2024, a empresa terá facturado valores sensivelmente idênticos, mas apesar das insistências do PÁGINA UM , Ricardo Leitão Marques nas quis revelar esses dados financeiros.

    Em todo o caso, para justificar a relevância da sua entrada em 2023 na Gestifly — por alegadas “serias dificuldades financeiras” da empresa —, Ricardo Leitão Machado disse ao PÁGINA UM que, quando a adquiriu, esta “não tinha meios para cumprir os contratos que tinha ganh[ad]o, visto não ter tesouraria para as
    Garantias Bancárias a prestar e para o investimento para montar uma operação deste calibre”.

    Esta justificação não deixa de ser surpreendente sob duas perspectivas. Primeiro, pelo lado da Força Aérea, que atribuiu três vitórias a uma empresa sem histórico relevante e que, aparentemente, não deu garantias, na fase de concurso, de possuir capacidades operacionais e financeiras para cumprir contratos desta natureza.

    Por outro lado, no caso das garantias bancárias — exigidas como caução obrigatória em determinados contratos públicos (equivalente a 5% do valor adjudicado) —, a Gestifly já as tinha constituído antes da entrada formal do empresário, uma vez que esta ocorreu a 22 de Junho de 2023 e os contratos com a Força Aérea foram celebrados a 1 e a 16 desse mês. Além disso, convém referir que os custos das garantias bancárias, concedidas por instituições de crédito, rondam, por norma, 0,25% do montante em causa. Mesmo que essa percentagem fosse de 1%, os encargos nunca seriam verdadeiramente insustentáveis, tratando-se de três cauções que totalizavam 648 mil euros — o que corresponderia, nessa hipótese, a um custo real de pouco apenas 6.480 euros.

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    Saliente-se também que Ricardo Leitão Machado não esclareceu quantos meios aéreos próprios a Gestifly possui ou possuía nem qual o valor da transacção de um negócio que logo no primeiro ano, em poucos meses, lhe concedeu um lucro de 400 mil euros. Numa primeira fase, o empresário disse ao PÁGINA UM que “a empresa é proprietária de parte dos helicópteros que utiliza no
    dispositivo”, acrescentando que “os pilotos são todos prestadores de serviços, quer diretamente, quer através da empresa subcontratada”. Mas confrontado com o facto de o activo tangível da Gestifly ser pouco superior a um milhão de euros — o que, no máximo, daria para um helicóptero pesado em segunda-mão —, o empresário esquivou-se a dar uma resposta.

    E diz mesmo estar a sentir-se prejudicado nos concursos públicos mais recentes. Já com outra empresa, a Gesticopter, Ricardo Leitão Machado somente ganhou em 2025 um concurso público (um contrato de três anos no valor de 20,1 milhões de euros, com IVA), perdendo todos os outros os outros, mais de uma dezena, incluindo um para fornecimento de meios aéreos ao INEM. O empresário recusa também qualquer benefício familiar, porque os contratos da Gestifly em 2023 ocorreram ainda durante o Governo Costa.

  • Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Expo 2025 Osaka: Contrato de 220 mil euros feito à pressa para resolver ‘invisibilidade’ mediática

    Poucos dias depois de o PÁGINA UM ter revelado que a participação de Portugal na Expo 2025 Osaka estava a sofrer uma invisibilidade mediática, subalternizando a própria língua portuguesa, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) deu uma resposta robusta — pelo menos no orçamento: vai gastar 220 mil euros pelos serviços de uma das mais relevantes agências de comunicação mundiais, a sueca Kreab.

    O contrato, assinado ontem com o escritório japonês desta empresa fundada em 1970 em Estocolmo, foi realizado com carácter de urgência e ao arrepio do Código dos Contratos Públicos, uma vez que as normas de execução do Orçamento do Estado para 2025 permitem que, na exposição no Japão, a AICEP tenha ‘carta branca’ para gastar em prestação de serviços, a seu bel-prazer, e para escolher quem quiser, até ao limite de 221 mil euros. Portanto, curiosamente, o valor acordado entre a AICEP e a agência de comunicação ficou no limiar dessa fronteira a partir da qual as normas comunitárias obrigariam à realização de um concurso público.

    Pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka. Foto: AICEP.

    Sem se conhecer, até agora, qualquer plano público de promoção da presença portuguesa no certame — na semana passada tinha também sido contratada a agência de João Libano Monteiro, mas ‘apenas’ por 19.500 euros —, a AICEP apressa-se para uma desesperada operação de cosmética mediática.

    Apesar de a Expo 2025 Osaka ter sido inaugurada em 13 de Abril — ou seja, há mais de um mês e meio — e de encerrar no final da primeira quinzena de Outubro, o contrato vai durar até ao final do ano, porque a AICEP quer agora maximizar a presença portuguesa junto da comunicação social nipónica. As actividades previstas incluem a organização de conferências de imprensa, produção de vídeos promocionais, elaboração de conteúdos para redes sociais e publicação de publirreportagens pagas na revista Nikkei Business, considerada a principal publicação empresarial do Japão.

    Mas está também implícita a ‘sedução’ de jornalistas porque, segundo o contrato, a Kreab está obrigada a conseguir a publicação de entrevistas com o embaixador português Gilberto Jerónimo e com a comissária-geral Joana Cardoso ou com o próprio presidente da AICEP, Ricardo Arroja, bem como a apresentar “propostas aos media económicos”.

    À esquerda, Joana Gomes Cardoso, comissária-geral do pavilhão português: contrato com agência sueca visa também conseguir-lhe uma entrevista num jornal nipónico.

    As entrevistas devem ter como foco a sua publicação “nos principais jornais diários e no influente [sic] Nikkei Shimbun”. Este jornal, considerado um dos periódicos financeiros mais influentes do mundo, conta com duas edições diárias (matutina e vespertina) e tem uma circulação total superior a 2,8 milhões de exemplares.

    Embora a AICEP — que foi a entidade escolhida para organizar a presença portuguesa nesta exposição, que é sobretudo um encontro de culturas — mostre que a sua prioridade são os negócios, acaba por colocar como primeiro dos três eixos da narrativa, para envolver os jornalistas nipónicos, a interacção entre Portugal e o Japão. Porém, de forma patética, o contrato comete logo um erro histórico ao afirmar que “Japão e Portugal têm interagido através do Oceano há mais de 500 anos”.

    Ora, essa alegação é anacronicamente redonda e imprecisa: o primeiro contacto entre os dois países ocorreu apenas em 1543, quando três portugueses chegaram à ilha de Tanegashima a bordo de um navio chinês, ou seja, há pouco mais de 480 anos.

     Imagem mural da Catedral de Kagoshima que mostra São Francisco Xavier com Anjiro, um samurai convertido ao cristianismo.

    E mais: essa interacção foi esporádica, dependente das condições políticas internas japonesas e da presença missionária jesuíta, que se iniciou com São Francisco Xavier em 1549, tendo cessado a partir de 1614, com a proibição do cristianismo, e quase por completo com o encerramento do Japão ao exterior a partir de 1639 — o qual se prolongou até meados do século XIX. Por isso, falar de uma interacção contínua “há mais de 500 anos” é, pois, uma construção ficcional mais próxima do marketing do que da História. Ou da ignorância.

    Mas isso é apenas um pormenor — embora maior, por se tratar de ignorância histórica e cultural — numa exposição que ficará marcada pela subalternização da língua portuguesa: na parte principal da exposição, os visitantes são confrontados com uma imersão de luzes e cores, com referência a Portugal e ao mar, mas apenas com legendagem em japonês e inglês. A língua portuguesa ficou — e aparentemente vai ficar, porque eventualmente custaria mais 220 mil euros — submersa. No esquecimento.

  • Cunhado do ministro Leitão Amaro só comprou a empresa de helicópteros há dois meses

    Cunhado do ministro Leitão Amaro só comprou a empresa de helicópteros há dois meses

    O cunhado do ministro Amaro Leitão, o empresário Ricardo Machado – que passou a ostentar também o apelido Leitão depois de casar com uma irmã do governante – apenas comprou em Março passado a empresa contratada pela Força Aérea para fornecer três helicópteros para combate a incêndios rurais por cerca de 20 milhões de euros, com IVA. A empresa em causa, a Gesticopter Operation Unipessoal tem sido apontada como uma das visadas na operação ‘Torre de Controlo’.

    De acordo com elementos recolhidos pelo PÁGINA UM, a empresa em causa, a Gesticopter Operation, foi criada em Março de 2024, mas nessa altura ainda não tinha qualquer ligação ao familiar do actual ministro da Presidência. De facto, a sociedade, que apresenta um capital social de apenas 5.000 euros, teve como primeiro proprietário a Gestifly, uma empresa surgida em 2021 e que, em apenas três anos, acumulou contratos milionários com o Estado português – todos por ajuste directo – no sector altamente rentável da locação de meios aéreos de combate aos fogos florestais.

    Ricardo Leitão Machado, esta semana, em entrevista ao Diário de Notícias. Foto: DR.

    Segundo os registos do Portal Base, a Gestifly celebrou quatro contratos com o Estado-Maior da Força Aérea no âmbito do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), todos em 2024. O primeiro, com data de 16 de Janeiro, refere-se à aquisição de serviços no valor de 3,8 milhões de euros. Seguiram-se, a 9 de Maio, mais 2,3 milhões de euros; a 3 de Junho, um novo contrato por 3,7 milhões de euros; e finalmente, a 7 de Agosto, o mais modesto, mas ainda assim expressivo, montante de 870 mil euros. No total, só com a Força Aérea, a Gestifly encaixou mais de 10,5 milhões de euros (sem IVA) em contratos de aluguer de meios aéreos no espaço de sete meses.

    Já a Gesticopter, que acabaria por substituir a Gestifly – que deixou de concorrer aos meios aéreos, tendo apenas um pequeno contrato de pouco mais de 5 mil euros de venda de combustível à Força Aérea –, não registou qualquer contrato com o Estado ao longo de 2024. Contudo, nos últimos meses do ano passado e no início deste ano, começou a apresentar-se como concorrente em vários concursos públicos.

    Os dados recolhidos pelo PÁGINA UM mostram que a empresa participou em mais de uma dezena de concursos lançados pela Força Aérea nos últimos seis meses, sempre contra um lote recorrente de concorrentes do sector. A aparente repetição e previsibilidade das empresas candidatas – algumas das quais dificilmente teriam capacidade para assegurar todos os meios exigidos nos cadernos de encargos – suscitam, aliás, fundadas suspeitas de cartelização. Tal como não se monta um rent-a-car do dia para a noite, muito menos se arranjam helicópteros pesados de combate a incêndios com simples telefonemas ao fornecedor. Em muitos casos, as empresas subcontratam meios aéreos aos concorrentes que perderam concursos.

    Leitão Amaro, actual ministro da Presidência.

    A entrada de Ricardo Leitão Machado na Gesticopter fez-se através da Helifinance Asset Management, uma sociedade espanhola com sede em Madrid, constituída em Fevereiro de 2024. Formalmente, a compra da Gesticopter Operation, por valores desconhecidos, ocorreu a 12 de Março deste ano, segundo os registos comerciais consultados pelo PÁGINA UM.

    Curiosamente, em nenhum desses registos consta o nome do cunhado do ministro como sócio ou gerente, mas a consulta ao Registo de Beneficiário Efectivo revela que Ricardo Leitão Machado é o proprietário integral quer da Gesticopter, quer da Helifinance. Contudo, há algo surpreendente: nos registos de beneficiário efectivo, o nome de Ricardo Leitão Machado surge como titular das duas empresas desde a primeira quinzena de Janeiro, ou seja, antes mesmo da aquisição formal da Gesticopter. A incongruência entre os registos não deixa de levantar dúvidas sobre a transparência do processo de aquisição e da verdadeira data de entrada de Ricardo Leitão Machado no negócio.

    Também pouco transparente é o contrato celebrado entre a Força Aérea e a Gesticopter. Contrariando a lei – e mesmo decisões sobre esta matéria do Tribunal Administrativo, por estarem em causa actos administrativos em funções públicas –, a Força Aérea rasurou tanto o nome do adjudicante como do adjudicatário. Ou seja, ignora-se ainda quem da Gesticopter assinou o contrato. No caso da Força Aérea, é apagado o nome de quem assina o contrato, mas mantém-se a referência ao cargo: chefe do Serviço Administrativo e Financeiro. Esta função é actualmente ocupada pelo coronel Carlos Miguel de Amorim Inácio, que é economista.

    Helicopter: empresa com capital social de 5.000 euros ganha concurso de 20,1 milhões de euros.

    O contrato de 20,1 milhões de euros (quase 16,4 milhões sem IVA) agora atribuído à Gesticopter pela Força Aérea, para fornecimento de três helicópteros pesados durante três anos, constitui assim a primeira adjudicação pública da empresa sob a nova direcção. Mas não deixa de ser inquietante que uma empresa sem qualquer histórico de execução de contratos semelhantes, com um capital social mínimo e sem meios próprios conhecidos, vença um concurso desta dimensão.

    A avaliação de risco por parte da Força Aérea levanta, por isso, justas interrogações. Afinal, o custo de um helicóptero com as características técnicas exigidas pelo concurso oscila, segundo fontes especializadas contactadas pelo PÁGINA UM, entre 7 e 25 milhões de euros por unidade, dependendo do modelo, estado e equipamentos opcionais. Como pode uma empresa com 5.000 euros de capital social garantir três helicópteros, com estas especificações, por três anos, e cumprir as exigências operacionais e de manutenção previstas nos cadernos de encargos? Com meios próprios ou subcontratando concorrentes, ficando apenas com uma comissão?

    Saliente-se que este contrato não é, contudo, a primeira experiência de Ricardo Leitão Machado associado ao sector florestal. Há uma década, segundo uma investigação da revista Visão publicada no início de Agosto de 2022, o cunhado do ministro da Presidência foi arguido num processo judicial relacionado com fraudes no acesso a apoios do Fundo Florestal Permanente. No processo, julgado no Tribunal de Sintra em Outubro de 2014, o empresário foi inicialmente acusado, juntamente com três outros arguidos, de burla qualificada e falsificação de documentos.

    Registo mostra que a Helifinance Asset Management foi adquirida por Ricardo Leitão Machado apenas em 12 de Março de 2025.

    Durante o julgamento, veio a ser alegada – e aceite pelo tribunal – a reparação integral dos prejuízos causados aos lesados, nomeadamente ao BPI, que reclamava cerca de 321 mil euros. Essa reposição permitiu a extinção da responsabilidade criminal pelo crime de burla, mas o julgamento prosseguiu quanto à falsificação de documentos, pelo qual Ricardo Leitão Machado acabaria condenado a pagar uma multa de 10.000 euros. Tentou ainda recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem sucesso.

    No seu percurso empresarial, Ricardo Leitão Machado, que conta 45 anos, tem acumulado projectos e interesses diversos, incluindo a criação de cavalos e direitos nas Termas de Monfortinho, tendo também adquirido a Herdade do Vale Feitoso, uma propriedade com 7.300 hectares, que pertenceu a Ricardo Salgado. Terá pagado 25 milhões de euros. O cunhado de Amaro Leitão também teve negócios em Angola, onde terá enriquecido sobretudo durante o ‘reinado’ de José Eduardo dos Santos. Com a presidência de João Lourenço, os negócios complicaram-se. Em 2019, o Estado angolano arrestou os activos de uma sua empresa, a Aenergy, acusando-a de fraude num negócio de turbinas de mil milhões de euros. O caso está ainda num tribunal arbitral nos Estados Unidos.

  • Cartel dos fogos: Força Aérea já gastou este ano mais de 181 milhões no aluguer de meios aéreos

    Cartel dos fogos: Força Aérea já gastou este ano mais de 181 milhões no aluguer de meios aéreos

    Onde há fumo há fogo. E onde há contratos chorudos ganhos pelas mesmas empresas de sempre, há suspeitas de corrupção e cartelização. No caso da indústria de combate aos incêndios rurais, só o negócio de aluguer de meios aéreos já envolveu, desde o início do ano, 16 contratos de valor global superior a 181 milhões de euros.

    Estes contratos são adjudicados pelo Estado-Maior da Força Aérea e o ‘bolo’ tem sido dividido por meia dúzia de empresas, incluindo a Agro-Montiar, uma subsidiária da empresa espanhola Titan (ex-Avialsa), condenada este ano em Espanha no âmbito do processo do ‘Cartel del Fuego’, como o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, em Março passado.

    Foto: D.R.

    Não surpreende assim que a Polícia Judiciária (PJ) tenha hoje executado 28 mandados de busca a domicílios, sedes de empresas (não identificadas) e organismos públicos numa operação policial que decorreu de norte a sul do país. A operação ‘Torre de Controle’, levada a cabo pela “Unidade Nacional de Combate à Corrupção, em inquérito titulado pelo DCIAP”, segundo o comunicado da PJ, já levou à constituição de diversos arguidos, entre “pessoas singulares e coletivas”.

    Segundo a PJ, “em causa estão factos suscetíveis de integrar os crimes corrupção ativa e passiva, burla qualificada, abuso de poder, tráfico de influência, associação criminosa e de fraude fiscal qualificada, através de uma complexa relação, estabelecida pelo menos desde 2022, entre várias sociedades comerciais, sediadas em Portugal, e que têm vindo a controlar a participação nos concursos públicos no âmbito do combate aos incêndios rurais em Portugal, no valor de cerca de 100 milhões de euros”.

    O esquema criminoso envolverá, alegadamente, “concursos públicos [que] incidem na aquisição de serviços de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade dos meios aéreos próprios do Estado, dedicados exclusivamente ao Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), com a intenção de que o Estado português fique com carência de meios aéreos e, dessa forma, se sujeite aos subsequentes preços mais elevados destas sociedades comerciais”.

    Foto: D.R.

    Ora, só este ano, num levantamento do PÁGINA UM, os contratos referentes a aluguer de meios aéreos no âmbito do DECIR superam os 181 milhões de euros, valor ao qual há que ser acrescentado o IVA. Foram sete as empresas que beneficiaram destes contratos: Agro-Montiar, Helibravo Aviação, HTA Helicópteros, Gesticopter Operations Unipessoal ligada a familiares do ministro da Presidência, conforme revelou a SIC Notícias , Airworks Helicopters, Avincis Aviation Portugal e Shamrock.

    A empresa que mais facturou este ano com estes contratos foi a Agro-Montiar, subsidiária da Titan, que ganhou mais de 59 milhões de euros através de três contratos obtidos através de concurso público, como o PÁGINA UM noticiou em Março.

    Segue-se a Helibravo, que facturou mais de 47 milhões de euros em quatro contratos ganhos num concurso público, segundo uma análise do PÁGINA UM, que consultou os contratos. A empresa ganhou três lotes daquele concurso, tendo os contratos sido assinados a 4 de Abril.

    Um dos contratos, no montante de 12.860.005,40 euros, diz respeito ao aluguer de cinco helicópteros ligeiros por um período de quatro anos, no âmbito do dispositivo aéreo do DECIR 2025-2028. Um segundo lote, no valor de 13.241.995 euros, abrange o aluguer de mais cinco helicópteros ligeiros pelo mesmo período. Um terceiro lote ganho pela empresa, no montante de 13.292.000 euros, envolve o aluguer de outros cinco helicópteros ligeiros, até 2028.

    Helicóptero da Helibravo em operações de combate a incêndios. (Foto: D.R.)

    A Helibravo ganhou ainda um quarto contrato por concurso público, assinado no passado dia 7 de Maio, no valor de 7.737.201,12 euros para a locação de quatro helicópteros ligeiros no período de 15 de Maio a 30 de Setembro até 2027.

    A terceira empresa que mais facturou este ano com contratos no âmbito do aluguer de meios aéreos para o combate aos fogos é a HTA que já ganhou quatro contratos que superam os 37 milhões de euros.

    Três dos contratos foram obtidos num concurso público, tendo a assinatura dos documentos ocorrido a 13 de Março. O primeiro contrato, para o aluguer de dois helicópteros ligeiros até 2027, custou ao Estado 11.156.959,52 euros. O segundo, no valor de 2.951.546,87 euros, visou o aluguer de um helicóptero ligeiro de 1 de Junho a 31 de Outubro, até 2027. O terceiro contrato, no montante de 9.230.447,18 euros, assinado na mesma data, é relativo à locação de três helicópteros ligeiros até 2027. Esta empresa ganhou ainda um quarto contrato, no dia 2 de Abril, no valor de 13.807.929,20 euros, mas o documento não é público.

    A Gesticopter teve ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. / Foto: D.R.

    Outra empresa beneficiada, foi a Gesticopter, que, segundo a SIC Notícias, tem ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. Esta empresa facturou 16.375.617 euros num contrato assinado no passado dia 7 de Maio e que envolve a locação de três helicópteros pesados até 2027.

    A Gesticopter foi constituída a 8 de Março de 2024 com um capital social de apenas cinco mil euros, com sede em Macedo de Cavaleiros. A empresa era detida pela Gestifly e tinha três gerentes: Pedro Alexandre Fernandes dos Santos Bento, Nuno Alexandre Pinto Coelho Torres de Faria e Luís Manuel Gil Pires Ferreira.

    Mas, no passado dia 8 de Abril, a totalidade das quotas passou para as mãos da espanhola Helifinance Asset Management, com sede em Madrid, e mudou a sede para Monfortinho, Castelo Branco, segundo o registo consultado pelo PÁGINA UM.

    Outra empresa que não se pode queixar é a espanhola Airworks, com sede em Salamanca, que ganhou este ano dois contratos de aluguer de meios aéreos para combate aos incêndios. O primeiro, datado de 12 de Março, no valor de 5.671.680 euros, é relativo à locação de dois helicópteros ligeiros até 2027. O segundo, no montante de 10.060.864 euros, foi assinado a 2 de Abril, e visa o aluguer de quatro helicópteros ligeiros até 2028.

    Segue-se a Shamrock, com sede em Carnaxide, que facturou 2.988.000 euros num contrato adjudicado no passado dia 7 de Maio relativo ao aluguer de dois aviões ligeiros de reconhecimento até 2027.

    Por fim, o contrato mais recente, assinado no dia 8 de Maio, que foi adjudicado à Avincis Aviation Portugal, com sede em Loures, com um valor de 2.349.937,08 euros. Este contrato visa a locação de um helicóptero ligeiro de 15 de Maio a 15 de Outubro até 2027.

  • Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    “Hoje vivemos realmente tempos muito estranhos.” Esta frase foi usada hoje por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, numa conferência sobre segurança, mas sintetiza também, involuntariamente, o estado actual da promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    O evento em causa decorreu sob a chancela do ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como uma “iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV” — órgãos de comunicação social detidos pela Medialivre de Cristiano Ronaldo — em “parceria e apoio” da Câmara Municipal de Lisboa, mas que, afinal, não passa de um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, pago integralmente pela autarquia.

    Quem assistiu hoje à conferência talvez pensasse que eram sinceras as palavras de Moedas nos agradecimentos à Medialivre “por ter escolhido este tema [a Segurança], um tema fundamental na sociedade”. Contudo, o que o edil lisboeta não disse — e também não foi dito por Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que discursou no arranque do evento — é que essa escolha temática veio devidamente contratualizada com dinheiros públicos.

    A narrativa da “parceria” cai, aliás, por terra com o contrato celebrado anteontem pelo vereador Filipe Anacoreta Correia, eleito nas listas de Moedas, que prevê dois debates pagos: o de hoje, sobre segurança, e outro agendado para a próxima semana, dia 4 de Junho, sobre imigração. Um debate anterior, em Fevereiro, também inserido neste ciclo, não está abrangido por nenhum contrato conhecido.

    Cada evento, segundo o contrato, rende assim à Medialivre 73.800 euros, incluindo a produção de conteúdos antes, durante e depois da conferência — desde peças de enquadramento até vídeos de resumo (wrap-ups) a serem difundidos pelos canais da empresa. Em troca, a Medialivre comprometeu-se a usar todos os meios humanos e materiais necessários, assumindo os encargos associados, inclusive os direitos sobre marcas e licenças. Entre os meios disponibilizados contam-se pelo menos três jornalistas com carteira profissional — prática que, para além de antiética, viola claramente o Estatuto do Jornalista.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, deu as ‘boas-vindas’ em conferência paga pela autarquia de Lisboa, e Daniela Polónia foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    A abertura do evento, com transmissão em directo nos canais digitais da Medialivre, foi conduzida por Daniela Polónia (CP 6296), jornalista e pivot da CMTV, que actuou como mestre de cerimónias institucional, anunciando os oradores e, em alguns casos, simultaneamente patrocinadores, no caso do “engenheiro Carlos Moedas”.

    O próprio Carlos Rodrigues (CP 1575) deu as boas-vindas aos participantes, num momento de cumplicidade discursiva com Moedas. Os dois painéis seguintes — sobre policiamento comunitário e paradigmas da segurança urbana — foram moderados por João Ferreira (CP 802), também jornalista do grupo. De entre os participantes no debate, não esteve presente qualquer vereador da oposição — não houve, assim, lugar a polémica. Carlos Moedas teve, aliás, direito a um discurso, sem contraditório, de 22 minutos.

    Mais do que um mero conflito de interesses, este é mais um caso flagrante de perda de equidistância jornalística e de instrumentalização de profissionais da comunicação para fins promocionais. O silêncio sobre a natureza comercial do evento — nenhuma menção explícita a patrocínio, prestação de serviços ou publicidade nos conteúdos divulgados — acentua o carácter enganador desta operação.

    João Ferreira, jornalista há mais de 30 anos, e pivot da CMTV, ganha agora a vida também como prestador de serviços em contratos entre a Câmara Municipal de Lisboa e a sua empresa empregadora, a Medialivre.

    A situação não é inédita, nem isolada — e está a surgir uma ‘normalização’ da mercantilização do jornalismo, em que já se duvida sobre se apenas algumas ou todas as notícias têm uma compensação financeira directa ou indirecta por parte dos interessados, o que mina a confiança dos cidadãos perante a imprensa. Ainda este mês, a ERC concluiu que dois eventos organizados pelo jornal Público — pagos pela Câmara de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas — configuravam publicidade, aplicando uma multa simbólica de 3.500 euros, bastante inferior ao valor dos contratos anómalos. O denominador comum com o evento da Medialivre: no caso do Público, além de jornalistas, o actual director do jornal da Sonae, David Pontes, teve participação activa na prestação de serviços.

    Tal como agora com Carlos Rodrigues, a actividade de publicidade dos jornalistas do Público não foi assumida como prestação de serviços, nem respeitou o Estatuto do Jornalista. Mas os processos prescreveram para efeitos disciplinares, uma vez que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não agiu atempadamente. O regulamento disciplinar dos jornalistas determina a prescrição ao fim de dois anos.

    A passividade da CCPJ, aliada à lentidão crónica da ERC, tem criado um cenário de impunidade que favorece a mercantilização da profissão. O resultado é a banalização de práticas proibidas por lei, mas toleradas na prática pelos reguladores e pela classe jornalística.

    Helena de Sousa, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: perante a promiscuidade, o regulador das media pega em casos pontuais, tarde e a más horas, e agora começa a aplicar coimas simbólicas que funcionam como ‘taxas de promiscuidade’, porque o ‘crime’ compensa financeiramente.

    Na conferência de Lisboa de hoje, até se assistiu, na sessão de encerramento, ao vereador social-democrata Rui Cordeiro agradecer ao Correio da Manhã o “convite” para participar num evento que, na verdade, foi pago pela própria Câmara. E os jornalistas servem de prestadores de serviços contratados por entidades externas, mascarando uma acção de comunicação política como um gesto de jornalismo independente. E tudo isto sob a cobertura de um contrato que, embora público, tenta disfarçar-se de parceria editorial.

    Num país onde a ética jornalística é muitas vezes tratada como uma nota de rodapé, a promiscuidade está a ganhar estatuto de normalidade. De facto, como dizia Moedas, “vivemos tempos muito estranhos”. De facto, vivemos.

    Este artigo teve um direito de resposta de Carlos Rodrigues, director-geral do Correio da Manhã e da CMTV, que pode ser lido aqui.

  • Apagão: EDP compra 36 geradores móveis para evitar desenrascanços com jerricãs

    Apagão: EDP compra 36 geradores móveis para evitar desenrascanços com jerricãs

    Depois do apagão de 28 de Abril, que mergulhou o território nacional numa escuridão simultaneamente literal e simbólica, as vulnerabilidades estruturais ficaram bem patentes no abastecimento de edifícios e infra-estruturas estratégicas. Desde o caso dos jerricãs que o Governo queria enviar para a Maternidade Alfredo da Costa, através dos motoristas dos ministros, até às falhas na rede de comunicações, incluindo o SIRESP, foram os sinais mais evidentes de um país que continua a confiar no improviso como política de resiliência.

    O episódio, que transformou Portugal num caos ao longo de cerca de dez horas, revelou não apenas a fragilidade dos sistemas críticos, mas também a ausência de planeamento integrado para situações de emergência. A dependência de soluções ad hoc ilustra um modelo de governação mais próximo do remendo do que da prevenção.

    closeup photo of lighted bulb

    No caso do SIRESP, que deveria assegurar comunicações robustas entre forças de socorro, a sua falência parcial confirmou a persistência de erros que já tinham sido denunciados nos incêndios de 2017. O apagão de Abril funcionou, assim, como um teste involuntário à robustez do Estado – um teste que, mais uma vez, o país reprovou com estrondo.

    Não por acaso, a E-Redes – a subsidiária do Grupo EDP, anteriormente conhecida por EDP Distribuição e responsável pelo transporte em média tensão e para os consumidores residenciais – tem vindo a ser pressionada para encontrar soluções que permitam, caso haja novos apagões, a garantia do abastecimento ininterrupto em pontos estratégicos, como hospitais, centros de controlo operacional, quartéis de bombeiros ou infra-estruturas de comunicações.

    Exemplo claro desta mudança foi o lançamento, esta semana, de um concurso público protagonizado pela E-Redes para a aquisição de um total de 36 centrais móveis de produção de energia eléctrica. De acordo com os documentos aos quais o PÁGINA UM teve acesso, a medida visa reforçar a capacidade de resposta em situações de emergência, evitando cenas dignas de um país em vias de subdesenvolvimento.

    Maternidade Alfredo da Costa esteve em risco de não ter electricidade durante o apagão de 28 de Abril.

    Embora não se tenha ainda conseguido saber, junto de fonte oficial da E-Redes, se estão previstas mais aquisições nem apurada a distribuição, para já está prevista a compra de uma central móvel de 1250 kVA (kilovolt-ampere), equipada para operar em média tensão (10, 15 e 30 kV), com capacidade de sincronismo com a rede e de alimentar infra-estruturas críticas de grande dimensão. A par disso, prevê-se ainda o fornecimento de oito geradores móveis de 630 kVA e mais 27 de 250 kVA, todos desenhados para actuar em modo de socorro em postos de transformação ou directamente junto a edifícios estratégicos.

    Com uma potência de 1250 kVA, é possível assegurar o funcionamento contínuo de grandes infra-estruturas críticas, como hospitais centrais com blocos operatórios em actividade plena, centros de dados de média dimensão, aeroportos regionais com terminal e torre de controlo, ou ainda grandes centros comerciais e unidades industriais com maquinaria pesada. Já potências na ordem dos 630 kVA são compatíveis com hospitais distritais ou maternidades, escolas secundárias com sistemas integrados de climatização, edifícios governamentais com centros de dados, estações ferroviárias urbanas ou instalações fabris de menor escala.

    Por fim, equipamentos com capacidade para 250 kVA garantem o abastecimento de infra-estruturas mais compactas, como centros de saúde, quartéis de bombeiros, esquadras, supermercados de média dimensão, pequenos hotéis ou centros locais de comunicações, como retransmissores do SIRESP.

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    As especificações técnicas previstas no caderno de encargos são robustas, incluindo a existência de chassis com reboque apto para circulação em todo o território. E, claro, motores a diesel – porque, quando a electricidade falha, ainda são os combustíveis fósseis a dar uma ajuda.

    Embora o concurso público não indique um custo mínimo nem máximo, porque se estará numa fase de qualificação de concorrentes para depois se passar a um procedimento de negociação, o PÁGINA UM sabe que, considerando os preços de mercado de geradores desta natureza, mostra-se previsível que o investimento oscile entre 5,0 e 6,5 milhões de euros. Um valor significativo, mas irrisório se considerarmos que a EDP contabilizou um lucro de 801 milhões de euros no ano passado e que os serviços da E-Redes são uma concessão do Estado, que exige padrões de qualidade no abastecimento.

    Independentemente disto, estas compras da E-Redes não eliminam o risco de novas falhas na rede – sobretudo enquanto Portugal continuar estruturalmente dependente da energia importada de Espanha –, mas mitigam os efeitos mais visíveis e embaraçosos. Estas centrais móveis funcionam, na prática, como extintores sobre rodas: não impedem o incêndio, mas evitam que chegue com maior impacte à opinião pública.

    white electric power generator

    E significa também que a E-Redes já não confia tanto na REN, depois do apagão de 28 de Abril, que, um mês depois, continua sem uma explicação formal. Aliás, ao longo das últimas semanas, a REN tem procurado desresponsabilizar-se do processo. Esta semana, a associação Frente Cívica, liderada por Paulo de Morais, pediu ao Governo que exigisse uma indemnização no valor de 780,5 milhões de euros, valor estimado dos prejuízos em diversos sectores, incluindo mesmo das empresas de distribuição eléctrica.

    Na carta enviada ao primeiro-ministro, a Frente Cívica diz mesmo que “na eventualidade de não conseguir indemnizar, a REN poderá sempre entregar a concessão de volta ao Estado português, legítimo representante dos cidadãos ludibriados pela sua incúria.”