Categoria: Política

  • Reconduzido, exonerado e promovido: Durão Barroso Jr. andou por um carrossel de despachos administrativos

    Reconduzido, exonerado e promovido: Durão Barroso Jr. andou por um carrossel de despachos administrativos

    Diz-se que filho de peixe sabe nadar. No caso de Luís António Sousa Uva Durão Barroso, filho do antigo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, talvez seja mais adequado dizer que “filho de cherne” sabe mover-se furtivamente por entre cardumes governamentais. O seu percurso recente nos gabinetes ministeriais dos Governos Montenegro é um caso exemplar de como a burocracia portuguesa consegue transformar o simples em rocambolesco, criando um enredo de despachos assinados em dias diferentes, com efeitos retroactivos absurdos e publicações desencontradas no Diário da República.

    Comecemos pelo ponto de partida: em Abril de 2024, Luís Durão Barroso – nascido em 1983 e que entrou directamente para os quadros do Banco de Portugal em 2014 depois de terminar o doutoramento em Direito em Londres – foi contratado como técnico especialista do ministro das Finanças, Miranda Sarmento.

    ´Luís Durão Barroso em foto do seu perfil do LinkedIn.

    Este ano, por força das eleições, e mantendo-se Miranda Sarmento no cargo, surgiram os despachos de recondução para os membros do gabinete que o ministro assim entendeu. Deste modo, no passado dia 27 de Junho, Luís Durão Barroso foi reconduzido como assessor através de um despacho ministerial, indicando que tinha efeito a 5 de Junho – ou seja, o dia de posse do segundo Governo Montenegro. Essa decisão só foi publicada em letra de forma no Diário da República no dia 3 de Julho.

    Até aqui, aparentemente nada de estranho – sucede com dezenas de outros casos. Mas o detalhe está num pormenor: quando o despacho de Miranda Sarmento foi assinado no dia 27 de Junho, já Durão Barroso não trabalhava nas Finanças, uma vez que já tinha dado um salto para outro ministério. Com efeito, a 16 de Junho de 2025, o filho do antigo presidente da Comissão Europeia tornou-se chefe de gabinete da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral. E, para aumentar a confusão burocrática, esse despacho da antiga provedora de Justiça foi igualmente assinado no dia 27 de Junho.

    Portanto, no mesmo dia em que Miranda Sarmento reconduzia Luís Durão Barroso como assessor nas Finanças, estava Maria Lúcia Amaral a selar a sua nomeação para a chefia do gabinete, embora a publicação tivesse saído no Diário da República apenas a 10 de Julho.

    Miranda Sarmento assinou despacho de recondução quando já sabia que filhode Durão Barroso estava exonerado de facto.

    Temos, portanto, o seguinte quadro: no Diário da República de 3 de Julho, Luís Durão Barroso aparecia ainda reconduzido nas Finanças; no Diário da República de 10 de Julho, surgia já como chefe de gabinete da ministra da Administração Interna; e só no Diário da República de 4 de Agosto é que se publicou a exoneração do cargo nas Finanças, salientando que tinha sido “a pedido do próprio”, assinada a 14 de Julho por Miranda Sarmento. Mas essa exoneração, para não destoar, também tinha efeitos retroactivos: 16 de Junho, o mesmo dia em que começara funções na Administração Interna.

    Na verdade, na data em que Miranda Sarmento reconduziu Durão Barroso Jr., já este estava de facto exonerado, porque tomara posse entretanto como chefe de gabinete da ministra Maria Lúcia Amaral. Só mais tarde, o despacho com as retroactividades habituais tentaram limpar a confusão.

    Em resumo, nesta nebulosa novela em novelos: Luís Durão Barroso foi oficialmente reconduzido nas Finanças a 5 de Junho; passou a chefe de gabinete da Administração Interna a 16 de Junho; foi reconduzido por despacho assinado a 27 de Junho, publicado a 3 de Julho; foi nomeado chefe de gabinete em despacho assinado também a 27 de Junho, mas só publicado a 10 de Julho; e foi exonerado das Finanças a 14 de Julho, com efeitos retroactivos a 16 de Junho, despacho esse apenas publicado a 4 de Agosto. Um verdadeiro carrossel administrativo onde cada data parece desmentir a anterior.

    A imprensa, como não podia deixar de ser, tropeçou na confusão. Por exemplo, o Correio da Manhã, na sua edição do passado dia 5 de Agosto, noticiou apenas a exoneração do filho de Durão Barroso das Finanças para a chefia do gabinete do Ministério da Administração Interna, sublinhando que a saída se dera “a seu pedido”. Porém, o jornal não reparou que, quando deu a notícia, Luís Durão Barroso já estava há quase dois meses no gabinete de Maria Lúcia Amaral.

    Este episódio mostra mais do que a ligeireza de uma redacção apressada: revela a própria natureza da gestão da “coisa pública”. O cruzamento de despachos assinados no mesmo dia com efeitos diferentes, publicações em datas desencontradas e exonerações retroactivas compõem um retrato fidedigno da opacidade e da desorganização que grassam na administração portuguesa. É um jogo de papéis em que ninguém parece preocupado com a transparência ou a clareza. Aquilo que importa é que, no fim, os lugares se acomodem — e os nomes, sobretudo se tiverem peso histórico, encontrem sempre poiso.

    Maria Lúcia Amaral, ministra da Administração Interna, nomeou

    Para completar a ironia, há ainda a memória do percurso paterno. José Manuel Durão Barroso, antes de chegar a ministro e a primeiro-ministro, e depois a presidente da Comissão Europeia, passou precisamente pelo Ministério da Administração Interna: em 1985, foi secretário de Estado Adjunto do ministro Eurico de Melo, no primeiro governo de Cavaco Silva. Mas o Durão Barroso sénior contava então 29 anos. Quarenta anos depois, o filho repete a presença no mesmo ministério, mas apenas como chefe de gabinete e já com 42 anos. Mesmo assim, ainda a tempo de singrar na política…

    Enfim, se o leitor se sente confuso, é natural: essa é a consequência da forma como os governos portugueses fazem da burocracia um labirinto. Quem entra, nunca sai sem se perder. E no caso de Luís Durão Barroso, filho de um peixe que nunca se afoga, parece que a travessia entre Finanças e Administração Interna foi feita sem ondas — mesmo que o rasto no Diário da República seja digno de uma novela kafkiana.

  • Marcelo contrata Pinguim Atrevido para explicar como usar uma condecoração

    Marcelo contrata Pinguim Atrevido para explicar como usar uma condecoração

    Quando o assunto é complicado e se pretende torná-lo simples e cativante, o melhor é fazer um desenho. E se então for um desenho animado, estupendo. Terá sido isso que pensou Marcelo Rebelo de Sousa quando a Presidência da República decidiu encomendar a realização de um filme de animação para explicar… como usar condecorações.

    A empresa escolhida pela Presidência da República para esta ‘árdua tarefa’ de mostrar aos mais novos como as 10 dezenas de condecorações são usadas, quase sempre pelo já (muito mais) velhos, foi a Pinguim Atrevido, com sede no Porto, que vai facturar 17.896 euros, com IVA incluído, num contrato celebrado por ajuste directo no dia 5 de Junho, mas somente publicado no Portal Base no passado dia 9 de Julho.

    Marcelo Rebelo de Sousa com António Mota, antigo CEO da Mota-Engil, em Junho passado. / Foto: Presidência da República

    O objecto do contrato é a “aquisição do serviço de produção de filme de animação ‘Como Usar uma Condecoração’”, mas o contrato muito simples é omisso quanto às especificações do filme e também não menciona qual o objectivo desta encomenda. Sabe-se apenas que deverá estar concluído no início de Setembro.

    Também não está disponível o caderno de encargos do procedimento, contrariando as melhores práticas de transparência na contratação pública. Também não se sabe a razão da escolha da empresa Pinguim Atrevido. Para contratos de valor inferior a 20 mil euros podem ser feitas adjudicações de ‘mão beijada’ ao abrigo do disposto no Código dos Contratos Públicos.

    Em todo o caso, a Pinguim Atrevido é uma empresa criada em Maio de 2015 por Jorge Marques Ribeiro e Rui Marques Ribeiro, gerindo “um pequeno estúdio situado no centro do Porto” e produz “desenhos animados em 2D, 3D, e misturado com imagem real”.

    Foto: Presidência da República

    No seu site, a empresa complementa a sua apresentação com mais detalhes: “Temos vários estilos e linguagens tanto em filme como em ilustração, mas o que mais gostamos de fazer é bonecada!” O primeiro dos sócios, Jorge Marques Ribeiro, foi presidente da Casa da Animação, tendo realizado diversas animações, como, por exemplo, uma dedicada ás Linhas de Torres Vedras.

    Mas este não foi o único contrato envolvendo filmes recentemente encomendados pela Presidência da República. No dia 4 de Agosto, os serviços da Presidência formalizaram um contrato para a “aquisição de serviços de edição de vídeo para reformulação do filme ‘Palácio de Belém: Vivências’, inicialmente realizado em 2005..

    Este novo contrato foi adjudicado a Ramon de Oliveira Freitas, criador do personagem ‘Mitzpe’, através de um procedimento de consulta prévia. A justificação dada para a não realização de concurso foi o facto de ter, alegadamente, havido uma “consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades”, o que abre caminho para um ajuste directo “quando o valor do contrato seja inferior a 75.000” euros. No caso deste contrato, o valor pago foi apenas de 3.752 euros.

    Marcelo Rebelo de Sousa numa das condecorações atribuídas no passado dia 28 de Julho no Palácio de Belém. Na imagem, Miguel Horta e Costa, presidente da Associação World Monuments Fund Portugal, recebeu a insígnia de Membro Honorário da Ordem do Infante D. Henrique atribuída àquela organização.
    / Foto: Rui Ochôa | Presidência da República

    O filme sobre o Palácio de Belém que vai agora ser alvo de ‘remodelação’, conta a história do “emblemático edifício, desde a implantação da República aos primeiros anos do séc. XXI”, tendo sido originalmente encomendado por Jorge Sampaio no âmbito da exposição temporária ‘Do Palácio de Belém. Encontra-se disponível online e na exposição permanente do Museu da Presidência da República.

    O filme faz um retrato “das vivências da residência oficial do Presidente da República Portuguesa e de quase cem anos da nossa História contemporânea”. Foi concebido por Diogo Gaspar e Elsa Alípio e teve produção de Patrícia Rolo Duarte.

    Já em Fevereiro do ano passado, a Presidência contratou “a produção e aquisição de filmes para o Núcleo das Ordens Honoríficas Portuguesas“, num contrato feito por ajuste directo no valor de 18.327 euros. A encomenda ficou nas mãos da empresa Shortfuse – Soluções de Webvídeo.

    Fotograma de um dos desenhos animados da Pinguim Atrevido.

    Um ano antes, em Janeiro de 2023, contratou a “prestação de serviços para produção de filme biográfico dos Presidentes da República para exposição permanente do Museu da Presidência da República“. O montante pago foi de 11.622 euros, tendo o contrato sido adjudicado sem concurso à empresa Braveant II.

    No total, em três anos, Marcelo Rebelo de Sousa gastou, pelo menos, 51.597 euros em filmes. Ficamos agora a aguardar para ver o filme animado sobre como usar condecorações. Outro filme que poderia atrair o interesse dos portugueses seria um sobre como se gasta o dinheiro público. Mas, se calhar, é melhor não dar ideias à Presidência da República…

  • Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.

    Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.

    sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.

    Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.

    O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.

    Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.

    A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.

    É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.

    Proposta do programa eleitoral do Chega foi copiada ipsis verbis pelo Governo de Luís Montenegro.

    No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.

    De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.

    A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.

    people walking on street during daytime
    Atribuição de um número único de identificação permite, mesmo acenando-se com a desburocratização e a segurança, a transição para um modelo de controlo social à moda chinesa

    Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.

    Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.

    Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.

    André Ventura conseguiu introduzir proposta inconstitucional no Programa do Governo.

    A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.

    Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?

    Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.

    No futuro, o cidadão número 35678876 será o líder de um Governo da República Portuguesa…

    E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.

    Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.

  • Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar  carros

    Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar carros

    Em menos de quatro anos, Marcelo Rebelo de Sousa autorizou a despesa de 1,75 milhões de euros em viaturas para o parque automóvel da Presidência da República — mas nenhum desses veículos pertence ou pertencerá ao Estado.

    De acordo com uma análise do PÁGINA UM, desde Setembro de 2021, todos os contratos para viaturas da Presidência têm sido feitos em regime de aluguer operacional de (suposta) longa duração, porque duram geralmente apenas três anos, o que significa que os veículos são devolvidos às empresas no final do prazo, sem qualquer entrada no património público. São carros que custam como se fossem do Estado, mas que acabam por ser apenas emprestados — a preço de ouro.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. / Foto: P.R.

    Apesar de estar a pouco mais de seis meses de abandonar o Palácio de Belém, Marcelo mandou renovar mais uma vez a frota oficial. Na passada quinta-feira foram assinados mais dois novos contratos, envolvendo uma despesa adicional de 279.516 euros. Ou seja, mesmo prestes a sair, continua a deixar contratos fechados e facturas abertas — a serem pagas já pelo futuro Presidente da República.

    Os novos contratos foram celebrados para três “lotes” de veículos. Num dos contratos, no valor de 170.920,80 euros, a empresa PPL Car foi contratada para fornecer quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid, cada uma com 225 cv de potência. Cada viatura custará 42.730 euros pelo período de três anos — sem ficar na posse do Estado. No mercado, o preço-base deste modelo ronda os 50 mil euros, mas sem ter de ser devolvido ao ‘vendedor’ ao fim de três anos.

    No segundo contrato, no valor de 108.595,80 euros, a adjudicatária foi a habitual Lease Plan, empresa que tem vindo a ganhar praticamente todos os contratos com a Presidência desde 2021. Neste procedimento foram alugadas duas viaturas: um Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde, por 71.744,23 euros, e um Peugeot 5008 Allure Plug-in Hybrid de 195 cv, por 36.851,59 euros. Só o Mercedes representa um custo diário de 65 euros, incluindo fins-de-semana e feriados — e no fim dos três anos, regressará à empresa como seminovo pronto a revender. Se a opção fosse comprar, a Presidência pagaria cerca de 90 mil euros, e o veículo poderia durar mais de três anos e ficar no Estado. No caso do Peugeot, o preço-base deste modelo está um pouco acima dos 47 mil euros.

    O aluguer de quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid de 225 cv de cilindrada por um período de três anos vai custar aos contribuintes o valor de 170.920,8 euros. / Foto: D.R.

    A Presidência da República tem recorrido exclusivamente ao aluguer operacional de longa duração (AOLD), uma opção que permite o uso de viaturas novas mediante o pagamento de uma mensalidade fixa durante um período determinado (geralmente três ou quatro anos). Este tipo de contrato inclui manutenção e seguro, mas não transfere a propriedade do veículo para o Estado, nem no final do contrato, nem mediante qualquer valor residual.

    Embora essa modalidade seja frequente em empresas privadas e possa apresentar vantagens de gestão logística (sobretudo em frotas de uso intensivo), a sua aplicação sistemática na Administração Pública levanta sérias dúvidas de racionalidade económica, porque mesmo que uma entidade possa, por questões até de dignidade protocolar, desejar renovar a frota, os veículos com três anos (e uso pouco intensivo) poderiam ser encaminhados para instituições pública.

    Apesar de quase todos os contratos terem sido precedidos de concurso público, a Lease Plan venceu 19 dos 21 contratos dos últimos quatro ano, no valor global de 1.542.5781 euros. As ‘migalhas’ ficaram para a SGald, com um contrato de aluguer de um Mitsubishi Outlander em 2021, e para a PPL Car, com o contrato dos quatro Peugeot 508 Allure celebrado na passada quinta-feira no valor de um pouco menos de 171 mil euros.

    Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde: opção pelo aluguer operacional é aparentemente implica que, ao fim de três ano, em vez de o Estado ficar com o veículo, este regressa à empresa.

    Os dados do Portal BASE mostram ainda que em 2023 se atingiu o pico de despesa, com 680.190 euros, enquanto em 2024, até meados de Julho, a Presidência já comprometeu 343 mil euros, ficando assim a nova frota já assegurada para o futuro chefe de Estado que será eleito em Janeiro.

    Não se conhece publicamente qualquer estudo sobre a opção por este modelo de renovação contínua de frota da Presidência da República que implicam que os veículos circulam três anos — e saem a partir daí pela mesma porta para não mais regressarem. Regressam outros, quase ao mesmo preço da compra.

  • 90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    Cada vez mais as organizações apostam em acções de motivação dos seus líderes e funcionários. Na Câmara Municipal de Oeiras essa aposta é em grande, pelo menos no que toca a quadros dirigentes. É que o município contratou uma empresa unipessoal desconhecida no meio para efectuar um retiro de ‘team building‘ para 25 líderes na autarquia.

    Esta acção motivacional custou aos contribuintes quase 100 mil euros. Mais precisamente, o município pagou 89.175 euros para “motivar” 25 dos seus quadros dirigentes.

    Engaged adults playing tug of war, showcasing teamwork and fun outdoors.
    Foto: D.R.

    A empresa escolhida para levar a cabo esta acção para animar e fortalecer o espírito de equipa dos “25 líderes” do munícipio foi a Atmosférica Unipessoal, uma empresa detida por Maria Ermelinda Varela Carvalho. A empresa foi criada em 28 de Março do ano passado, não tem ainda contas apresentadas nem curriculum conhecido, designadamente no campo de acções de ‘team building‘. O PÁGINA UM pesquisou e não conseguiu encontrar um site da empresa na Internet ou sequer um contacto.

    A sociedade foi selecionada através de um processo de consulta prévia, mas o registo do procedimento que consta no Portal Base é omisso sobre se mais alguma empresa foi consultada pelo município no âmbito desta contratação.

    Uma pesquisa pelo nome da proprietária da Atmosférica Unipessoal também não detecta nenhum curriculum ou experiência profissional nesta ou outra área.

    O presidente da Câmara Municipal de Oeiras numa inauguração. / Foto: D.R. | CMO

    O que se sabe é que foi esta empresa a ser contratada no dia 17 de Junho para “a prestação de serviços de Teambuilding – Retiro para 25 Líderes”. O valor do contrato é de 89.175 euros, com IVA incluído.

    O contrato é omisso quanto aos contornos desta acção de ‘team building‘, designadamente se o preço inclui estadia em hotel ou transportes para levar os 25 líderes para algum local específico.

    O que é certo é que esta acção motivacional vai ficar em 3.567 euros por cada um dos participantes que vão beneficiar da experiência. Como termo de comparação, se o município de Oeiras decidisse antes enviar aqueles “25 líderes” numa viagem de 10 dias às Maldivas, com voo, hotel e refeições incluídas, iria gastar praticamente o mesmo valor.

    Silhouette of a group of friends jumping on a beach at sunset, expressing joy and freedom.
    Foto: D.R.

    Apesar de a proprietária da empresa Atmosférica não apresentar publicamente curriculum na área de ‘team building‘, o seu nome surge ligado a outro sector. É que já foi dona de uma empresa de construção, a DCHJ.

    Actualmente, esta empresa é detida pela World Templet – Gestão e Investimentos, que teve como sócia, até 2023, Maria Ermelinda Varela de Carvalho. A World Templet é agora detida por um seu familiar, Hermenegildo Varela de Carvalho – que já teve pelo menos duas outras empresas de construção insolventes -, e um outro sócio, Carlos Garcia Ribeiro.

    A DCHJ efectuou 26 contratos com entidades públicas num valor global de 454 mil euros. Desses, 20 foram contratados com o Município de Oeiras, todos por ajuste directo, sendo que o último data de Janeiro de 2022. No total, a DCHJ facturou 292 mil euros com a autarquia.

    Floating colorful plastic balls in a sunlit swimming pool, creating a vibrant and playful scene.
    Foto: D.R.

    A maioria dos contratos públicos foram obtidos em 2015, 2016 e 2017, sendo que a empresa também efectuou reparações e obras no Palácio das Necessidades, em contratos efectuados por ajuste directo pela secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

    Da construção de paredes para o ‘team building‘, certo é que a proprietária da empresa Atmosférica encontrou no município de Oeiras um cliente generoso que não poupa a esforços para motivar os 25 líderes que vão beneficiar de uma experiência rica. Nem que seja pelo preço.

  • Bilderberg discutiu despovoamento e migração

    Bilderberg discutiu despovoamento e migração

    Depois dos encontros peninsulares de Lisboa (2023) e Madrid (2024), o Grupo Bilderberg escolheu o norte da Europa para a reunião de 2025, tendo rumado até Estocolmo, capital do mais recente país da NATO – a Suécia tornou-se no 32º membro da Aliança Atlântica a 7 de Março de 2024. Os participantes estiveram reunidos entre os dias 12 e 15, no Grand Hotel, propriedade do banqueiro Marcus Wallenberg, representante sueco no Comité Director, para aquele que foi o 71ª encontro deste grupo internacional, criado em 1954, e que toma o nome do primeiro hotel, na Holanda, onde decorreu a cimeira inaugural.

    Os tópicos da agenda deste ano foram “Relações Transatlânticas”; “Ucrânia”; “Economia dos Estados Unidos”; “Europa”; “Médio Oriente”; “Eixo Autoritário”; “Inovação e Resiliência na Defesa”; “Inteligência Artificial”; “Dissuasão e Segurança Nacional”; “Proliferação”; “Geopolítica da Energia e dos Minerais Críticos” e, finalmente, “Despovoamento e Migração”.

    Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, à porta do Grand Hotel, em Estocolmo, na manhã de 15 de Junho. / Foto Frederico Duarte Carvalho

    Este último item da lista, “despovoamento e migração”, é uma novidade em relação a agendas anteriores, sendo que o tópico do despovoamento e migração tem sido um tema de discussões políticas em vários países pelos partidos de extrema-direita para recolha de proveitos eleitorais. Questionado à saída do encontro sobre a discussão deste assunto em particular, o jornalista do Financial Times e participante habitual dos encontros do Grupo Bilderberg, o britânico Gideon Rachman, explicou aos jornalistas presentes à frente do Grand Hotel que os convidados se limitaram “a ver quais são os países que têm mais nascimentos e os que têm menos”.

    O jornalista britânico do Finantial Times, Gideon Rachman, falou com os jornalistas à porta do hotel.
    / Fotos: Frederico Duarte Carvalho

    Entre os participantes do 71º encontro do Grupo Bilderberg estavam dois portugueses, convidados pelo representante de Portugal na direção da organização, Durão Barroso, ex-primeiro-ministro de Portugal e ex-presidente da Comissão Europeia, actualmente dirigente da Goldman Sachs Internacional e ainda presidente da Gavi, a aliança mundial para as vacinas. Uma das convidadas de Barroso foi a vice-presidente do PSD e presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, que assim marcou a sua segunda presença nestes encontros. A primeira vez de Leonor – que também é a presidente da comissão de honra da candidatura de Luís Marques Mendes à presidência da República – foi na Turquia, em 2007, então a convite de Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD, ex-primeiro-ministro e dono da SIC e Expresso. Balsemão cedeu a Barroso o seu lugar na direcção de Bilderberg, que ocupava desde o início dos anos 80, em 2015, após o encontro que teve lugar na Áustria.

    Albert Bourla, presidente-executivo da farmacêutica Pfizer (primeiro à esquerda), ao lado de José Manuel Durão Barroso, presidente da Gavi, Aliança Global das Vacinas e presidente da Goldman Sachs International LLC. / Foto Frederico Duarte Carvalho

    O outro convidado português de Barroso para o encontro de Estocolmo foi Diogo Salvi, dono da empresa de tecnologia de telecomunicação, TIMWE. Um rosto pouco conhecido em Portugal, mas dono daquela que é tida como uma das empresas portuguesas com maior representação internacional, e que permite ao empresário, por exemplo, poder pagar do seu próprio bolso para competir no Rali de Portugal. Salvi é igualmente um repetente nestes encontros, tendo estado presente, pela primeira vez, na reunião de 2022, em Washington, também a convite de Durão Barroso.

    Michael O’Leary, dono da Ryanair em conversa animada com o convidado português, Diogo Salvi, fundador e presidente-executivo da TIMWE. /Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Tido pelos amigos como um indivíduo “jovial”, isso confirmou-se quando, na noite de sábado, 14, no passeio de barco a caminho do jantar na residência privada da família Wallenberg, o português conversava animadamente com o irlandês Michael O’Leary, dono da Ryanair e membro permanente da organização, que se ria com as palavras do português. Do que falavam exactamente? Só eles saberão. Por perto, estavam Wes Streeting, secretário de Estado da Saúde do Reino Unido e Gabriel Attal, ex-primeiro-ministro da França.

    Fareed Zakaria, jornalista da CNN (ao centro), na companhia do presidente do World Economic Forum (WEF), Borge Brende (primeiro a contar da direita). / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Uma terceira convidada portuguesa presente em Estocolmo, mas a convite da organização devido ao cargo público que ocupa, foi Maria Luís Albuquerque, antiga ministra das Finanças de Portugal e actual Comissária Europeia dos Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos. Esta foi a segunda vez que a portuguesa participou nestes encontros, tendo a sua estreia sido em 2016, na Alemanha, então a convite pessoal de Durão Barroso. De Bruxelas, veio também Sophie Wilmés, ex-primeira-ministra da Bélgica e actual vice-presidente do Parlamento Europeu.

    Este fórum internacional, de debate à porta fechada, com políticos, jornalistas e empresários de países membros da NATO, rege-se pelas regras de Chatham House, onde os participantes são livres, posteriormente, de prestarem as declarações que quiserem, mas não devem identificar os autores de ideias ou citações, permitindo assim manter um ambiente descontraído que promova uma maior e franca troca de ideias entre todos participantes onde, parte deles são pessoas com cargos públicos – e eleitos segundo regras ditas democráticas nos seus países de origem do espaço NATO –, enquanto outros são os principais donos de empresas privadas, que movimentam milhões de euros e dólares e que provocam impacto directo na vida dos cidadãos que não estão presentes nestes encontros. 

    Maria Luís Albuquerque, comissária europeia com a pasta de Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos, a caminho do jantar privado organizado pelo banqueiro sueco, Marcus Wallenberg. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Durante os três dias da conferência, os participantes assistem a palestras e sentam-se por ordem alfabética, como se fosse um banco da escola. Isso proporciona combinações interessantes onde, este ano, por exemplo, ao olhar para a lista dos convidados divulgada pela organização no início dos trabalhos, vemos que Leonor Beleza, sentou-se entre a francesa Valérie Baudson, CEO da empresa de gestão de activos, Amundi, e, do outro lado, Fatih Birol, directora executiva da International Energy Agency. Uma outra combinação de mais três nomes permitiu colocar Albert Bourla, CEO da farmacêutica Pfizer – uma pessoa que, recorde-se, está envolvido num processo judicial sobre as mensagens privadas que trocou com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – fica sentado entre a dona do Banco Santander, a espanhola Ana Botín, e o norueguês Brende Borge, actual presidente do World Economic Forum – organizador da Conferência de Davos – que substituiu Klaus Schwab.

    Entre os jornalistas presentes no encontro, confirmou-se a presença do membro da direção do Grupo Bilderberg e colaborador regular da CNN norte-americana, o jornalista indiano, residente nos EUA, Fareed Zakaria, que chegou ao hotel de Estocolmo no mesmo momento em que Alex Karp e Peter Thiel – responsáveis da empresa de tecnologia e Inteligência Artificial Palantir, que tem, entre outros, a CIA e os ministérios da Defesa de Israel e Ucrânia entre os seus clientes – saíam para destino desconhecido. Alex Karp não seria mais visto ao longo da reunião, mas Peter Thiel manteve-se em Estocolmo até ao último dia, altura em que o Irão e Israel estavam envolvidos em ataques e contra-ataques de mísseis.

    Alex Karp e Peter Thiel, da Palantir Technologies, empresa de software fundada com financiamento da CIA. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Igualmente presente, e vista a caminhar fora do hotel, longe das medidas de segurança, foi a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, acompanhado pelo marido, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Radoslaw Sikorski que, tal como a mulher, é já um participante habitual nestes encontros. Na lista dos membros permanentes da direção do grupo constam ainda o nome da jornalista britânica Zanny Minton Beddoes, editora-chefe da revista The Economist e do norte-americano John Micklethwait, editor-chefe da Bloomberg. O editor-chefe do jornal belga De Standaard, Karel Verhoeven, e o jornalista italiano Stefano Feltri também estavam entre os convidados.

    Radoslaw Sikorski, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, na companhia da sua mulher, a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, da revista The Atlantic. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    O secretário-geral da NATO e ex-primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, compareceu novamente nesta cimeira transatlântica, assim como seu antecessor, o dinamarquês Jens Stoltenberg, agora ministro da Finanças do seu país.

    O secretário-geral da NATO, Mark Rutte (ao centro), marcou presença. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    O encontro de 2026, segundo os normais e conhecidos procedimentos logísticas da organização, está já escolhido, mas ainda não foi tornado público, impedindo assim que os jornalistas possam planear, com tempo, a próxima cobertura. Sem o devido registo jornalístico, é como se nada tivesse acontecido em Estocolmo, entre os dias 12 e 15 de Junho de 2025. Mas, estivemos lá e vimos que aconteceu mesmo.    

  • Pé-de-meia: Ex-secretário de Estado da Saúde garante  5.535 euros por mês com entidade que já tutelou

    Pé-de-meia: Ex-secretário de Estado da Saúde garante 5.535 euros por mês com entidade que já tutelou

    Caiu em desgraça no início de 2021, quando liderava a task force do programa de vacinação contra a covid-19 — sendo então secundado por Gouveia e Melo, que lhe tomou o lugar —, mas Francisco Ventura Ramos nunca foi abandonado à sua sorte. Aos 69 anos, garantiu este mês a renovação por mais dois anos de uma choruda avença com o Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade pública que tutelou directamente como governante

    Secretário de Estado na área da Saúde por cinco vezes, sendo que a última vez fora entre 2018 e 2019, como adjunto de Marta Temido, Francisco Ramos foi a escolha inicial do Governo em Novembro de 2020 para coordenador o processo de vacinação no auge da pandemia. No mês seguinte, acumulou com a presidência da comissão executiva do Hospital da Cruz Vermelha. E foi por causa de irregularidades na selecção de pessoal a ser vacinado nesse hospital, associado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que Francisco Ramos foi afastado da task force, dando lugar a Gouveia e Melo.

    Francisco Ventura Ramos foi o primeiro coordenador da ‘task force’ criada em Novembro de 2020 para elaborar e gerir o plano de vacinação contra a covid-19. No início de Fevereiro de 2021, demitiu-se do cargo devido a irregularidades detectadas na administração de vacinas no Hospital da Cruz Vermelha, ao qual então presidia. Foi substituído na coordenação da ‘task force’ por Gouveia e Melo. /Foto: D.R.

    O administrador hospitalar acabaria por sair do Hospital da Cruz Vermelha em Junho de 2022, já em idade de reforma, mas mantendo as funções de professor convidado da Escola Nacional de Saúde Pública.

    Mas os seus rendimentos, e a sua ligação à Administração Pública, não se reduziram por muito tempo, porque menos de um ano depois foi-lhe oferecida de ‘mão-beijadas’ uma avença mensal de 5.535 euros com a Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade que tutelou directamente enquanto governante.

    Celebrado no dia 2 de Maio de 2023, o contrato entre o SUCH e Francisco Ramos engloba um valor de 132.840 euros, com IVA. Sem qualquer caderno de encargos publicado no Portal Base, o contrato de dois anos estabelece apenas que serão prestados serviços de “consultadoria de desenvolvimento de projectos”. Contactado o SUCH, não foram dados quaisquer esclarecimento sobre as funções e tarefas efectivamente concretizados por Francisco Ramos nos últimos dois anos.

    (Da esquerda para a direita) Joel Azevedo, administrador da SUCH, Paulo Sousa, presidente da SUCH, Marta temido, ex-ministra da Saúde, e Ana Maria Nunes, administradora da SUCH. A equipa executiva da SUCH foi reconduzida num despacho de Abril de 2022 pela então ministra da Saúde, Marta Temido (na foto, a segunda a contar da direita), e o ministro das Finanças, Fernando Medina. / Foto: D.R.

    E também não se sabe o que fará nos próximos dois anos, para além de receber mensalmente os 4.500 euros acrescidos de IVA. Nesta avença, integrada num contrato assinado na semana passada, está estabelecido que Francisco Ramos, que já deve ter desenvolvido todos os projectos do anterior contrato, mostrará a sua polivalência, passando agora a fazer “consultadoria no âmbito da comunicação institucional na área da saúde”.

    No global, nos dois ajustes directos, e durante quatro anos e sem funções específicas (e sem cumprimento de horário), o antigo governante encaixará 265.680 euros, com IVA incluído, a prestar serviços de consultadoria na entidade que agrega múltiplos serviços dos hospitais, desde a gestão dos resíduos até à manutenção. Aliás, foi no pólo logístico da SUCH que ficou sediada a recepção, armazenamento e distribuição das vacinas contra a covid-19.

    Recorde-se que enquanto secretário de Estado de Marta Temido, e mesmo antes, Francisco Ramos teve sob sua tutela directa diversos organismos públicos, incluindo o SUCH. Licenciado em Economia e diplomado em Administração Hospitalar, foi secretário de Estado em quatro anteriores governos, mesmo sem estar filiado no Partido Socialista. A partir de 2014, foi presidente do conselho diretivo do Grupo Hospitalar dos IPO. Voltou a integrar um governo quando, em 17 de Outubro de 2018, assumiu a secretaria de Estado da Saúde, cargo em que ficou até 26 de Outubro de 2019.

    Gouveia e Melo, actual candidato às presidenciais, e Paulo Sousa, presidente da SUCH, numa visita às instalações da SUCH em Setembro de 2021. Gouveia e Melo sucedeu a Francisco Ventura Ramos como coordenador da ‘task force’ da campanha de vacinação. Sob a liderança de Gouveia e Melo, foram administradas vacinas a médicos não prioritários do Hospital Militar e até a um político, numa operação envolvendo a Ordem dos Médicos e então bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD. / Foto: D.R.

    A sua queda em desgraça no processo de vacinação no Hospital da Cruz Vermelho, do qual viria a ser ‘ilibado’ ao fim de oito meses, marcou a ascensão do então discreto vice-almirante Gouveia e Melo que nunca teve problemas em cometer ‘pecadilhos’, como sucedeu na vacinação de cerca de quatro mil médicos não prioritários (e até a um político) à margem das normas então em vigor da Direcção-Geral da Saúde. Esta operação de desvio de vacinas, numa altura ainda em escassez, foi protagonizada por um acordo ‘ad hoc’ com o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.

    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriria formalmente um “processo de esclarecimento” sobre o caso, que envolveu indirectamentea gestão de um fundo solidário do qual esteve também envolvida a então bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, actual Ministra da Saúde. Mas a IGAS acabou por deixar ‘morrer’ a investigação, recorrendo a uma mentira sobre a data crucial de uma norma da DGS e recusando pedir testemunhos e analisar a lista dos supostos médicos vacinados.

  • Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    O Polígrafo – o órgão de comunicação social dedicado ao fact-checking e que se arvora de “guardiã da verdade”, distribuindo selos, incluindo “pimenta na língua” – foi apanhado a martelar factos, classificando como verdadeira uma afirmação falsa de Rui Tavares, co-líder e deputado do Livre.

    Numa deliberação ontem divulgada, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) reconheceu formalmente que o Polígrafo violou o dever de rigor informativo ao validar, sem a devida contextualização, uma afirmação de Rui Tavares durante o debate televisivo para as recentes eleições legislativas, no qual confrontou André Ventura, presidente do Chega.

    a wooden statue with a white hat on top of it

    Para apurar quem faltara mais à verdade no frente-a-frente, o Polígrafo escolheu cinco afirmações dos dois políticos, tendo “sentenciado” que Ventura mentiu em duas, enquanto Tavares teria dito cinco verdades. Só que não. Tavares afirmou no debate que, durante o mandato de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, “até roubo de jóias houve”. Ora, o Polígrafo classificou tal afirmação como “verdadeira”, justificando-se com investigações em curso no Brasil relativas a jóias recebidas por Bolsonaro durante o exercício da presidência, para além da condenação de inelegibilidade por oito anos. Contudo, como se depreende da própria ERC, quem mentiu foi o Polígrafo.

    De acordo com a deliberação do regulador, é certo que “em Julho de 2024 foi tornado público e profusamente noticiado que a Polícia Federal [do Brasil] denunciara Jair Bolsonaro por apropriação indevida de jóias que recebera enquanto chefe de Estado, considerando que se trata de património público”.

    Porém, “o caso levou a uma decisão do Tribunal de Contas do Brasil (TCU), de Março de 2025, que considerou que presentes de uso pessoal, recebidos por presidentes e vice-presidentes, não são património público, podendo mantê-los ao saírem do cargo”, acrescentando ainda que se “aguarda, entretanto, parecer da Procuradoria-Geral da República que pode seguir diversas vias: denúncia ao Supremo Tribunal Federal – cuja decisão não é influenciada pela posição adoptada pelo TCU –, pedido de novas diligências ou arquivamento”.

    Aliás, nessa decisão de Março passado, acabou por fazer uma equivalência das ofertas recebidas por Bolsonaro ao que Lula da Silva tinha feito em 2005, quando ficou com um relógio oferecido enquanto líder do Estado brasileiro.

    Nada disso é referido na análise do Polígrafo. Ao invés, para fundamentar a classificação de “Verdadeiro” à frase de Rui Tavares, o Polígrafo escreveu: “Bolsonaro deveria ter entregue [sic] essas jóias ao Estado brasileiro assim que deixou o poder, uma vez que estas foram uma oferta institucional. De acordo com as investigações, porém, Jair Bolsonaro vendeu algumas dessas jóias através de intermediários.”

    Assim sendo, a ERC conclui ser “forçoso concluir que o Polígrafo incumpr[iu] o dever de rigor informativo na verificação de factos publicada”, embora destaque sobretudo a ausência de “contexto suficiente para que os leitores compreendam os contornos reais” da alegada apropriação e venda de jóias.

    Polígrafo, um verificador de factos que transforma mentiras em verdades.

    Em todo o caso, o regulador reforça a censura ao acto do Polígrafo tendo em conta o facto de este ser um “órgão de comunicação social reconhecido como verificador de factos certificado e assim apresentado aos olhos do público”, pelo que tem “o dever e a responsabilidade de manter os padrões que lhe são impostos, quer pela legislação e pela ética que impendem sobre o exercício da actividade jornalística, quer pelos padrões exigidos pelas organizações certificadoras de verificadores de factos IFCN – International Fact-Checking Network – e EFCSN – European Fact-Checking Standards Network”. Recorde-se que o Polígrafo tem o Facebook – que teve um papel fulcral na limitação da expressão durante a pandemia – como um dos seus principais financiadores.

    Esta deliberação da ERC não impõe sanções, limitando-se a um “alerta” ao Polígrafo. Mas a marca ficou.
    Para os cidadãos atentos, ficou provado que os verificadores também precisam de ser verificados. E que Rui Tavares, afinal, também mente. Aliás, uma outra frase do co-líder do Livre, no calor do debate, também está longe da verdade: por mais defeito que tenha, Bolsonaro não foi condenado (ainda) por corrupção, logo não é verdade que seja “o mais corrupto da América do Sul”.

  • ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    A explicação oficial do Governo para o adiamento dos “momentos festivos” das comemorações oficiais do 25 de Abril foi a morte do Papa Francisco, mas, na própria tarde desse anúncio, o gabinete de Luís Montenegro estava já a ultimar as negociações do concerto de Tony Carreira para o dia 1 de Maio, no Palácio de São Belém.

    ‘Negociações’ é um termo lato, porque, na verdade, o Governo de Montenegro conseguiu aquilo que um dos artistas com mais contratos públicos raramente concede: uma borla. Com efeito, segundo documentos a que o PÁGINA UM teve hoje finalmente acesso, após intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na tarde de 23 de Abril passado — na mesma altura em que o Governo anunciava o adiamento das festas da Revolução dos Cravos —, a Regiconcerto, empresa de Tony Carreira, confirmava as condições do espectáculo previsto para o dia 1 de Maio.

    Entre essas condições, “na sequência dos contactos mantidos” — conforme refere num e-mail a CEO da Regiconcerto, Filipa Ramires —, estava “a interpretação de, aproximadamente, seis temas”, sendo que “em termos de cachet artístico, e tal como falado, o Tony Carreira abdica do seu próprio cachet”. O acordo foi realizado ao mais alto nível, porque o e-mail da Regiconcerto é enviado directamente para, entre outros, Pedro Pinto, chefe de gabinete de Montenegro, para a assessora de imprensa Cátia Duarte Silva e até para um adjunto do ministro Pedro Duarte.

    Apesar da ‘borla’ de Tony Carreira, no acordo é indicado que deve haver um pagamentos, no valor de 4.700 euros (mais IVA), para os quatro músicos que acompanharam o cantor, três técnicos operadores, motorista e manager. Foi também apresentado um orçamento adicional para a montagem e desmontagem do espectáculo, a cargo de cinco elementos, mas essa documentação não foi ainda remetida pela Secretaria-Geral do Governo.

    Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril, teria sido impossível a Luís Montenegro contar — e cantar o em dueto ‘Sonhos de menino’ — com Tony Carreira no Palácio de São Bento, em vésperas de eleições legislativas, criando-lhe um momento especial de visibilidade pública. No dito concerto — ou showcase —, o primeiro-ministro chegou mesmo a participar num dueto na canção “Sonho de Menino”.

    Acordo para o concerto de Tony Carreira foi feito no dia do anúncio do adiamento das comemorações do 25 de Abril, alegadamente por causa da morte do Papa Francisco. Nota: O PÁGINA UM rasurou os endereços de e-mail.

    Com efeito, a agenda de Tony Carreira encontrava-se já bastante preenchida há vários meses para os dias em torno das comemorações da Revolução dos Cravos. No dia 24 de Abril, o cantor actuou no Barreiro, ao abrigo de um contrato celebrado no dia 8 desse mês com a autarquia local, à qual cobrou 72.570 euros (com IVA). No dia seguinte, deu espectáculo no município norte-alentejano de Alter do Chão, que pagou 46.125 euros para cumprir um contrato assinado em 21 de Março.

    Não existe ilegalidade alguma num artista actuar gratuitamente num evento para agradar ao primeiro-ministro de um Governo em funções, mesmo em contexto de pré-campanha eleitoral. Porém, do ponto de vista formal, mesmo sem cachet artístico, a empresa de Tony Carreira celebrou um contrato oneroso sujeito às regras do Código dos Contratos Públicos (CCP), uma vez que houve prestações acessórias pagas a músicos, técnicos e outros profissionais, com valores que, somados, configuram inequivocamente uma prestação de serviços financiada por dinheiros públicos.

    Mais ainda, de acordo com os documentos obtidos, essa prestação foi objecto de contactos prévios e de uma confirmação formal de condições por parte da empresa Regiconcerto, em nome de Tony Carreira, na tarde de 23 de Abril. Ou seja, houve um contrato, ainda que não redigido por escrito.

    Agenda de Tony Carreira estava cheia para a noite de 24 de Abril, no Barreiro, e no dia 25 de Abril (na foto), em Alter do Chão.

    A consequência jurídica deste acto é evidente: tratando-se de um contrato de serviços com valor económico, impunha-se o seu registo no Portal BASE no prazo de 20 dias. Ora, tal registo ainda não foi efectuado, em clara violação do princípio da transparência.

    Na verdade, não fosse a insistência do PÁGINA UM junto da CADA, jamais teriam vindo a público quaisquer detalhes sobre os contornos deste contrato, do qual Montenegro colheu claros dividendos simbólicos e mediáticos. Acresce que a gratuitidade, numa situação desta natureza envolvendo o Governo, suscita inevitavelmente dúvidas quanto a eventuais benefícios futuros — tanto mais quando se sabe que, por regra, os espectáculos musicais de Tony Carreira estão longe de ser baratos, rondando, em média, os 50 mil euros, já com logística e montagem de palco.

    De acordo com o Portal BASE, desde Janeiro, Tony Carreira foi contratado por 16 autarquias, envolvendo montantes totais próximos dos 900 mil euros com IVA. Em 11 desses contratos, a entidade contratada foi a própria Regiconcerto, empresa do artista. Importa também sublinhar que, à luz desta amostra — e pelo menos por agora —, Tony Carreira revela-se um artista claramente mais requisitado por autarcas socialistas do que por sociais-democratas.

    Luís Montenegro, ‘quebrando a barreira de segurança’ no dia 1 de Maio para ir cantar um dueto com Tony Carreira, que lhe deu uma ‘borla’.

    Apesar de o PS liderar actualmente 48% das autarquias (149 em 308) e o PSD 37% (114), a distribuição dos contratos evidencia um claro enviesamento político: dos 16 contratos, 11 (ou seja, 69%) foram celebrados com câmaras municipais lideradas pelo PS — nomeadamente Chaves, Marco de Canaveses, Loures, Vila Velha de Ródão, Barreiro, Mértola, Estremoz, Vila Nova de Gaia, Tábua, Olhão e Vinhais —, enquanto apenas três envolveram autarquias do PSD (Ponta Delgada, Alter do Chão e Arganil) e um foi celebrado com uma autarquia independente (Oeiras).

    Ou seja, a “borla” pode muito bem ter funcionado como uma operação de charme de Tony Carreira para abrir caminho também junto dos executivos sociais-democratas. Porém, aparentemente, o ‘coração’ do artista aparenta bater ainda para o lado socialista, o particularmente para o novo líder do PS. Em Dezembro de 2023, o cantor romântico, cujo nome de nascimento é António Antunes, chegou a gravar um vídeo de apoio a José Luís Carneiro — aquando da corrida à liderança contra Pedro Nuno Santos —, considerando-o “uma pessoa com princípios muito bons, com os quais me identifico”.

  • Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Vira o disco e toca o mesmo. Para cumprir a segunda parte de um contrato de prestação de serviços de 147 mil euros pagos pela Câmara Municipal de Lisboa à Medialivre — a empresa de media detentora do Correio da Manhã e da CMTV, e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista individual —, mais uma vez Carlos Moedas, o edil social-democrata que se recandidatará a novo mandato, foi o cabeça-de-cartaz. Mas com uma ‘nuance’: ao contrário da primeira sessão, em que o presidente da autarquia discursou longos 25 minutos no início, desta vez foram 15 minutos na sessão de encerramento. Para aparecer a discursar nos canais em directo da Medialivre, sem sequer dar assento à oposição, Carlos Moedas ‘passou um cheque’ de quase 75 mil euros por sessão.

    O tema da conferência desta terça-feira foi a imigração. Sob o título “De todos os lugares, uma só cidade”, o evento decorreu no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) e inseriu-se no ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV, em parceria e com o apoio da Câmara de Lisboa. No entanto, como o PÁGINA UM revelou na semana passada, essa “parceria” foi, na verdade, um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, celebrado com a Medialivre para dois eventos — o de hoje e o anterior, realizado a 27 de Maio, sobre segurança.

    Daniela Polónia, jornalista da CMTV (à esquerda), chamando ao palco esta manhã o ministro da Presidência, Leitão Amaro, para discursar: eis um nova ‘atribuição’ dos jornalistas em contratos de prestação de serviços para autarquias.

    Com o espaço e a logística assegurados também pela própria Câmara Municipal, o evento foi assim uma mera prestação de serviços que envolveu três jornalistas da Medialivre: Carlos Rodrigues (CP 1575), director-geral editorial, que deu as boas-vindas; Daniela Polónia (CP 6296), pivot da CMTV, que actuou como mestre-de-cerimónias; e João Ferreira (CP 802), jornalista sénior, que moderou, mais uma vez, os dois painéis da conferência.

    O contrato assinado pelo vereador Filipe Anacoreta Correia estipula que a Medialivre se obrigava a realizar os eventos, fornecendo meios técnicos e humanos, incluindo jornalistas, a troco de 73.800 euros por sessão. Não houve qualquer referência explícita, durante a conferência, à existência de contrato ou ao pagamento envolvido.

    Aliás, ainda no mês passado, a ERC considerou numa deliberação que se estava perante publicidade a realização de dois eventos do género pagos ao Público pela autarquia de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas, que tinham sido moderados pelo actual director do Público, David Pontes.

    Para discursar em dois eventos, sobre segurança e imigração, em instalações da própria Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas pagou, com dinheiros públicos e em vésperas de eleições autárquicas, quase 150 mil euros à Medialivre.

    No caso dos eventos pagos pela autarquia  de Lisboa à Medialivre, as declarações das duas partes envolvidas são sempre no sentido de  se ter tratado de uma parceria, dando a entender que houve distribuição de custos. Ora, não houve: os custos do evento foram da Câmara, que forneceu mesmo o local, e ainda pagou à Medialivre. Em rigor jurídico e técnico, não se deve falar de “parceria” quando há uma relação contratual em que uma das entidades paga à outra uma contraprestação em dinheiro por um serviço prestado. Nesses casos, trata-se de uma relação comercial ou contratual de prestação de serviços, e não de uma parceria no sentido próprio.

    Esta omissão, recorrente nos media, esbate a fronteira entre jornalismo e promoção institucional, colocando em causa o Estatuto do Jornalista, que proíbe actos publicitários ou de natureza comercial por parte de profissionais com carteira. A instrumentalização de jornalistas da Medialivre nestes eventos representa, além de uma violação legal, um caso flagrante de promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    Destaque-se que o Estatuto do Jornalista considera mesmo “actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais”. Ou seja, havendo uma obrigação contratual – em que a troco de dinheiro tem de haver presença de jornalistas –, deixam de existir critérios exclusivamente editoriais, caindo-se na publicidade.

    João Ferreira, pela segunda vez no espaço de sete dias, o jornalista fez o papel de moderação em debates. O problema não é a moderação, que é permitida por lei, mas sim a moderação para efeitos de cumprimento de cláusulas comerciais pela sua entidade empregadora (Medialivre).

    O convidado principal da sessão desta terça-feira foi, desta vez, António Leitão Amaro, ministro da Presidência, que aproveitou o palco para fazer o balanço do primeiro ano de governação na área das migrações. “A capacidade de liderança é ser capaz de ver à frente e agir”, afirmou, destacando o Plano Nacional de Acção para as Migrações apresentado há precisamente um ano. Na sua intervenção, afirmou que o Governo anterior “não compreendeu nem respondeu” à nova realidade demográfica, criando espaço para respostas radicais e desumanizantes. Em contraste, assegurou que a actual governação combina “mudança firme” com “humanismo moderado”.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que abriu a sessão desta terça-feira com uma breve intervenção, enviou esta tarde ao PÁGINA UM um pedido de direito de resposta relativo à notícia publicada na semana passada. O texto será publicado na íntegra amanhã, em cumprimento dos prazos da Lei de Imprensa, que determina que, se a publicação for diária, terá de o divulgar “dentro de dois dias a contar da recepção”.