Categoria: Política

  • Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

    Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.

    Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.

    sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.

    Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.

    O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.

    Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.

    A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.

    É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.

    Proposta do programa eleitoral do Chega foi copiada ipsis verbis pelo Governo de Luís Montenegro.

    No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.

    De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.

    A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.

    people walking on street during daytime
    Atribuição de um número único de identificação permite, mesmo acenando-se com a desburocratização e a segurança, a transição para um modelo de controlo social à moda chinesa

    Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.

    Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.

    Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.

    André Ventura conseguiu introduzir proposta inconstitucional no Programa do Governo.

    A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.

    Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?

    Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.

    No futuro, o cidadão número 35678876 será o líder de um Governo da República Portuguesa…

    E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.

    Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.

  • Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar  carros

    Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar carros

    Em menos de quatro anos, Marcelo Rebelo de Sousa autorizou a despesa de 1,75 milhões de euros em viaturas para o parque automóvel da Presidência da República — mas nenhum desses veículos pertence ou pertencerá ao Estado.

    De acordo com uma análise do PÁGINA UM, desde Setembro de 2021, todos os contratos para viaturas da Presidência têm sido feitos em regime de aluguer operacional de (suposta) longa duração, porque duram geralmente apenas três anos, o que significa que os veículos são devolvidos às empresas no final do prazo, sem qualquer entrada no património público. São carros que custam como se fossem do Estado, mas que acabam por ser apenas emprestados — a preço de ouro.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. / Foto: P.R.

    Apesar de estar a pouco mais de seis meses de abandonar o Palácio de Belém, Marcelo mandou renovar mais uma vez a frota oficial. Na passada quinta-feira foram assinados mais dois novos contratos, envolvendo uma despesa adicional de 279.516 euros. Ou seja, mesmo prestes a sair, continua a deixar contratos fechados e facturas abertas — a serem pagas já pelo futuro Presidente da República.

    Os novos contratos foram celebrados para três “lotes” de veículos. Num dos contratos, no valor de 170.920,80 euros, a empresa PPL Car foi contratada para fornecer quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid, cada uma com 225 cv de potência. Cada viatura custará 42.730 euros pelo período de três anos — sem ficar na posse do Estado. No mercado, o preço-base deste modelo ronda os 50 mil euros, mas sem ter de ser devolvido ao ‘vendedor’ ao fim de três anos.

    No segundo contrato, no valor de 108.595,80 euros, a adjudicatária foi a habitual Lease Plan, empresa que tem vindo a ganhar praticamente todos os contratos com a Presidência desde 2021. Neste procedimento foram alugadas duas viaturas: um Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde, por 71.744,23 euros, e um Peugeot 5008 Allure Plug-in Hybrid de 195 cv, por 36.851,59 euros. Só o Mercedes representa um custo diário de 65 euros, incluindo fins-de-semana e feriados — e no fim dos três anos, regressará à empresa como seminovo pronto a revender. Se a opção fosse comprar, a Presidência pagaria cerca de 90 mil euros, e o veículo poderia durar mais de três anos e ficar no Estado. No caso do Peugeot, o preço-base deste modelo está um pouco acima dos 47 mil euros.

    O aluguer de quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid de 225 cv de cilindrada por um período de três anos vai custar aos contribuintes o valor de 170.920,8 euros. / Foto: D.R.

    A Presidência da República tem recorrido exclusivamente ao aluguer operacional de longa duração (AOLD), uma opção que permite o uso de viaturas novas mediante o pagamento de uma mensalidade fixa durante um período determinado (geralmente três ou quatro anos). Este tipo de contrato inclui manutenção e seguro, mas não transfere a propriedade do veículo para o Estado, nem no final do contrato, nem mediante qualquer valor residual.

    Embora essa modalidade seja frequente em empresas privadas e possa apresentar vantagens de gestão logística (sobretudo em frotas de uso intensivo), a sua aplicação sistemática na Administração Pública levanta sérias dúvidas de racionalidade económica, porque mesmo que uma entidade possa, por questões até de dignidade protocolar, desejar renovar a frota, os veículos com três anos (e uso pouco intensivo) poderiam ser encaminhados para instituições pública.

    Apesar de quase todos os contratos terem sido precedidos de concurso público, a Lease Plan venceu 19 dos 21 contratos dos últimos quatro ano, no valor global de 1.542.5781 euros. As ‘migalhas’ ficaram para a SGald, com um contrato de aluguer de um Mitsubishi Outlander em 2021, e para a PPL Car, com o contrato dos quatro Peugeot 508 Allure celebrado na passada quinta-feira no valor de um pouco menos de 171 mil euros.

    Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde: opção pelo aluguer operacional é aparentemente implica que, ao fim de três ano, em vez de o Estado ficar com o veículo, este regressa à empresa.

    Os dados do Portal BASE mostram ainda que em 2023 se atingiu o pico de despesa, com 680.190 euros, enquanto em 2024, até meados de Julho, a Presidência já comprometeu 343 mil euros, ficando assim a nova frota já assegurada para o futuro chefe de Estado que será eleito em Janeiro.

    Não se conhece publicamente qualquer estudo sobre a opção por este modelo de renovação contínua de frota da Presidência da República que implicam que os veículos circulam três anos — e saem a partir daí pela mesma porta para não mais regressarem. Regressam outros, quase ao mesmo preço da compra.

  • 90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    90 mil euros: custo de ‘retiro’ de 25 dirigentes de Isaltino daria para férias nas Maldivas

    Cada vez mais as organizações apostam em acções de motivação dos seus líderes e funcionários. Na Câmara Municipal de Oeiras essa aposta é em grande, pelo menos no que toca a quadros dirigentes. É que o município contratou uma empresa unipessoal desconhecida no meio para efectuar um retiro de ‘team building‘ para 25 líderes na autarquia.

    Esta acção motivacional custou aos contribuintes quase 100 mil euros. Mais precisamente, o município pagou 89.175 euros para “motivar” 25 dos seus quadros dirigentes.

    Engaged adults playing tug of war, showcasing teamwork and fun outdoors.
    Foto: D.R.

    A empresa escolhida para levar a cabo esta acção para animar e fortalecer o espírito de equipa dos “25 líderes” do munícipio foi a Atmosférica Unipessoal, uma empresa detida por Maria Ermelinda Varela Carvalho. A empresa foi criada em 28 de Março do ano passado, não tem ainda contas apresentadas nem curriculum conhecido, designadamente no campo de acções de ‘team building‘. O PÁGINA UM pesquisou e não conseguiu encontrar um site da empresa na Internet ou sequer um contacto.

    A sociedade foi selecionada através de um processo de consulta prévia, mas o registo do procedimento que consta no Portal Base é omisso sobre se mais alguma empresa foi consultada pelo município no âmbito desta contratação.

    Uma pesquisa pelo nome da proprietária da Atmosférica Unipessoal também não detecta nenhum curriculum ou experiência profissional nesta ou outra área.

    O presidente da Câmara Municipal de Oeiras numa inauguração. / Foto: D.R. | CMO

    O que se sabe é que foi esta empresa a ser contratada no dia 17 de Junho para “a prestação de serviços de Teambuilding – Retiro para 25 Líderes”. O valor do contrato é de 89.175 euros, com IVA incluído.

    O contrato é omisso quanto aos contornos desta acção de ‘team building‘, designadamente se o preço inclui estadia em hotel ou transportes para levar os 25 líderes para algum local específico.

    O que é certo é que esta acção motivacional vai ficar em 3.567 euros por cada um dos participantes que vão beneficiar da experiência. Como termo de comparação, se o município de Oeiras decidisse antes enviar aqueles “25 líderes” numa viagem de 10 dias às Maldivas, com voo, hotel e refeições incluídas, iria gastar praticamente o mesmo valor.

    Silhouette of a group of friends jumping on a beach at sunset, expressing joy and freedom.
    Foto: D.R.

    Apesar de a proprietária da empresa Atmosférica não apresentar publicamente curriculum na área de ‘team building‘, o seu nome surge ligado a outro sector. É que já foi dona de uma empresa de construção, a DCHJ.

    Actualmente, esta empresa é detida pela World Templet – Gestão e Investimentos, que teve como sócia, até 2023, Maria Ermelinda Varela de Carvalho. A World Templet é agora detida por um seu familiar, Hermenegildo Varela de Carvalho – que já teve pelo menos duas outras empresas de construção insolventes -, e um outro sócio, Carlos Garcia Ribeiro.

    A DCHJ efectuou 26 contratos com entidades públicas num valor global de 454 mil euros. Desses, 20 foram contratados com o Município de Oeiras, todos por ajuste directo, sendo que o último data de Janeiro de 2022. No total, a DCHJ facturou 292 mil euros com a autarquia.

    Floating colorful plastic balls in a sunlit swimming pool, creating a vibrant and playful scene.
    Foto: D.R.

    A maioria dos contratos públicos foram obtidos em 2015, 2016 e 2017, sendo que a empresa também efectuou reparações e obras no Palácio das Necessidades, em contratos efectuados por ajuste directo pela secretaria-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

    Da construção de paredes para o ‘team building‘, certo é que a proprietária da empresa Atmosférica encontrou no município de Oeiras um cliente generoso que não poupa a esforços para motivar os 25 líderes que vão beneficiar de uma experiência rica. Nem que seja pelo preço.

  • Bilderberg discutiu despovoamento e migração

    Bilderberg discutiu despovoamento e migração

    Depois dos encontros peninsulares de Lisboa (2023) e Madrid (2024), o Grupo Bilderberg escolheu o norte da Europa para a reunião de 2025, tendo rumado até Estocolmo, capital do mais recente país da NATO – a Suécia tornou-se no 32º membro da Aliança Atlântica a 7 de Março de 2024. Os participantes estiveram reunidos entre os dias 12 e 15, no Grand Hotel, propriedade do banqueiro Marcus Wallenberg, representante sueco no Comité Director, para aquele que foi o 71ª encontro deste grupo internacional, criado em 1954, e que toma o nome do primeiro hotel, na Holanda, onde decorreu a cimeira inaugural.

    Os tópicos da agenda deste ano foram “Relações Transatlânticas”; “Ucrânia”; “Economia dos Estados Unidos”; “Europa”; “Médio Oriente”; “Eixo Autoritário”; “Inovação e Resiliência na Defesa”; “Inteligência Artificial”; “Dissuasão e Segurança Nacional”; “Proliferação”; “Geopolítica da Energia e dos Minerais Críticos” e, finalmente, “Despovoamento e Migração”.

    Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, à porta do Grand Hotel, em Estocolmo, na manhã de 15 de Junho. / Foto Frederico Duarte Carvalho

    Este último item da lista, “despovoamento e migração”, é uma novidade em relação a agendas anteriores, sendo que o tópico do despovoamento e migração tem sido um tema de discussões políticas em vários países pelos partidos de extrema-direita para recolha de proveitos eleitorais. Questionado à saída do encontro sobre a discussão deste assunto em particular, o jornalista do Financial Times e participante habitual dos encontros do Grupo Bilderberg, o britânico Gideon Rachman, explicou aos jornalistas presentes à frente do Grand Hotel que os convidados se limitaram “a ver quais são os países que têm mais nascimentos e os que têm menos”.

    O jornalista britânico do Finantial Times, Gideon Rachman, falou com os jornalistas à porta do hotel.
    / Fotos: Frederico Duarte Carvalho

    Entre os participantes do 71º encontro do Grupo Bilderberg estavam dois portugueses, convidados pelo representante de Portugal na direção da organização, Durão Barroso, ex-primeiro-ministro de Portugal e ex-presidente da Comissão Europeia, actualmente dirigente da Goldman Sachs Internacional e ainda presidente da Gavi, a aliança mundial para as vacinas. Uma das convidadas de Barroso foi a vice-presidente do PSD e presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza, que assim marcou a sua segunda presença nestes encontros. A primeira vez de Leonor – que também é a presidente da comissão de honra da candidatura de Luís Marques Mendes à presidência da República – foi na Turquia, em 2007, então a convite de Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD, ex-primeiro-ministro e dono da SIC e Expresso. Balsemão cedeu a Barroso o seu lugar na direcção de Bilderberg, que ocupava desde o início dos anos 80, em 2015, após o encontro que teve lugar na Áustria.

    Albert Bourla, presidente-executivo da farmacêutica Pfizer (primeiro à esquerda), ao lado de José Manuel Durão Barroso, presidente da Gavi, Aliança Global das Vacinas e presidente da Goldman Sachs International LLC. / Foto Frederico Duarte Carvalho

    O outro convidado português de Barroso para o encontro de Estocolmo foi Diogo Salvi, dono da empresa de tecnologia de telecomunicação, TIMWE. Um rosto pouco conhecido em Portugal, mas dono daquela que é tida como uma das empresas portuguesas com maior representação internacional, e que permite ao empresário, por exemplo, poder pagar do seu próprio bolso para competir no Rali de Portugal. Salvi é igualmente um repetente nestes encontros, tendo estado presente, pela primeira vez, na reunião de 2022, em Washington, também a convite de Durão Barroso.

    Michael O’Leary, dono da Ryanair em conversa animada com o convidado português, Diogo Salvi, fundador e presidente-executivo da TIMWE. /Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Tido pelos amigos como um indivíduo “jovial”, isso confirmou-se quando, na noite de sábado, 14, no passeio de barco a caminho do jantar na residência privada da família Wallenberg, o português conversava animadamente com o irlandês Michael O’Leary, dono da Ryanair e membro permanente da organização, que se ria com as palavras do português. Do que falavam exactamente? Só eles saberão. Por perto, estavam Wes Streeting, secretário de Estado da Saúde do Reino Unido e Gabriel Attal, ex-primeiro-ministro da França.

    Fareed Zakaria, jornalista da CNN (ao centro), na companhia do presidente do World Economic Forum (WEF), Borge Brende (primeiro a contar da direita). / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Uma terceira convidada portuguesa presente em Estocolmo, mas a convite da organização devido ao cargo público que ocupa, foi Maria Luís Albuquerque, antiga ministra das Finanças de Portugal e actual Comissária Europeia dos Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos. Esta foi a segunda vez que a portuguesa participou nestes encontros, tendo a sua estreia sido em 2016, na Alemanha, então a convite pessoal de Durão Barroso. De Bruxelas, veio também Sophie Wilmés, ex-primeira-ministra da Bélgica e actual vice-presidente do Parlamento Europeu.

    Este fórum internacional, de debate à porta fechada, com políticos, jornalistas e empresários de países membros da NATO, rege-se pelas regras de Chatham House, onde os participantes são livres, posteriormente, de prestarem as declarações que quiserem, mas não devem identificar os autores de ideias ou citações, permitindo assim manter um ambiente descontraído que promova uma maior e franca troca de ideias entre todos participantes onde, parte deles são pessoas com cargos públicos – e eleitos segundo regras ditas democráticas nos seus países de origem do espaço NATO –, enquanto outros são os principais donos de empresas privadas, que movimentam milhões de euros e dólares e que provocam impacto directo na vida dos cidadãos que não estão presentes nestes encontros. 

    Maria Luís Albuquerque, comissária europeia com a pasta de Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos, a caminho do jantar privado organizado pelo banqueiro sueco, Marcus Wallenberg. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Durante os três dias da conferência, os participantes assistem a palestras e sentam-se por ordem alfabética, como se fosse um banco da escola. Isso proporciona combinações interessantes onde, este ano, por exemplo, ao olhar para a lista dos convidados divulgada pela organização no início dos trabalhos, vemos que Leonor Beleza, sentou-se entre a francesa Valérie Baudson, CEO da empresa de gestão de activos, Amundi, e, do outro lado, Fatih Birol, directora executiva da International Energy Agency. Uma outra combinação de mais três nomes permitiu colocar Albert Bourla, CEO da farmacêutica Pfizer – uma pessoa que, recorde-se, está envolvido num processo judicial sobre as mensagens privadas que trocou com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – fica sentado entre a dona do Banco Santander, a espanhola Ana Botín, e o norueguês Brende Borge, actual presidente do World Economic Forum – organizador da Conferência de Davos – que substituiu Klaus Schwab.

    Entre os jornalistas presentes no encontro, confirmou-se a presença do membro da direção do Grupo Bilderberg e colaborador regular da CNN norte-americana, o jornalista indiano, residente nos EUA, Fareed Zakaria, que chegou ao hotel de Estocolmo no mesmo momento em que Alex Karp e Peter Thiel – responsáveis da empresa de tecnologia e Inteligência Artificial Palantir, que tem, entre outros, a CIA e os ministérios da Defesa de Israel e Ucrânia entre os seus clientes – saíam para destino desconhecido. Alex Karp não seria mais visto ao longo da reunião, mas Peter Thiel manteve-se em Estocolmo até ao último dia, altura em que o Irão e Israel estavam envolvidos em ataques e contra-ataques de mísseis.

    Alex Karp e Peter Thiel, da Palantir Technologies, empresa de software fundada com financiamento da CIA. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    Igualmente presente, e vista a caminhar fora do hotel, longe das medidas de segurança, foi a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, acompanhado pelo marido, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Radoslaw Sikorski que, tal como a mulher, é já um participante habitual nestes encontros. Na lista dos membros permanentes da direção do grupo constam ainda o nome da jornalista britânica Zanny Minton Beddoes, editora-chefe da revista The Economist e do norte-americano John Micklethwait, editor-chefe da Bloomberg. O editor-chefe do jornal belga De Standaard, Karel Verhoeven, e o jornalista italiano Stefano Feltri também estavam entre os convidados.

    Radoslaw Sikorski, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, na companhia da sua mulher, a jornalista norte-americana, Anne Applebaum, da revista The Atlantic. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    O secretário-geral da NATO e ex-primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, compareceu novamente nesta cimeira transatlântica, assim como seu antecessor, o dinamarquês Jens Stoltenberg, agora ministro da Finanças do seu país.

    O secretário-geral da NATO, Mark Rutte (ao centro), marcou presença. / Foto: Frederico Duarte Carvalho

    O encontro de 2026, segundo os normais e conhecidos procedimentos logísticas da organização, está já escolhido, mas ainda não foi tornado público, impedindo assim que os jornalistas possam planear, com tempo, a próxima cobertura. Sem o devido registo jornalístico, é como se nada tivesse acontecido em Estocolmo, entre os dias 12 e 15 de Junho de 2025. Mas, estivemos lá e vimos que aconteceu mesmo.    

  • Pé-de-meia: Ex-secretário de Estado da Saúde garante  5.535 euros por mês com entidade que já tutelou

    Pé-de-meia: Ex-secretário de Estado da Saúde garante 5.535 euros por mês com entidade que já tutelou

    Caiu em desgraça no início de 2021, quando liderava a task force do programa de vacinação contra a covid-19 — sendo então secundado por Gouveia e Melo, que lhe tomou o lugar —, mas Francisco Ventura Ramos nunca foi abandonado à sua sorte. Aos 69 anos, garantiu este mês a renovação por mais dois anos de uma choruda avença com o Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade pública que tutelou directamente como governante

    Secretário de Estado na área da Saúde por cinco vezes, sendo que a última vez fora entre 2018 e 2019, como adjunto de Marta Temido, Francisco Ramos foi a escolha inicial do Governo em Novembro de 2020 para coordenador o processo de vacinação no auge da pandemia. No mês seguinte, acumulou com a presidência da comissão executiva do Hospital da Cruz Vermelha. E foi por causa de irregularidades na selecção de pessoal a ser vacinado nesse hospital, associado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que Francisco Ramos foi afastado da task force, dando lugar a Gouveia e Melo.

    Francisco Ventura Ramos foi o primeiro coordenador da ‘task force’ criada em Novembro de 2020 para elaborar e gerir o plano de vacinação contra a covid-19. No início de Fevereiro de 2021, demitiu-se do cargo devido a irregularidades detectadas na administração de vacinas no Hospital da Cruz Vermelha, ao qual então presidia. Foi substituído na coordenação da ‘task force’ por Gouveia e Melo. /Foto: D.R.

    O administrador hospitalar acabaria por sair do Hospital da Cruz Vermelha em Junho de 2022, já em idade de reforma, mas mantendo as funções de professor convidado da Escola Nacional de Saúde Pública.

    Mas os seus rendimentos, e a sua ligação à Administração Pública, não se reduziram por muito tempo, porque menos de um ano depois foi-lhe oferecida de ‘mão-beijadas’ uma avença mensal de 5.535 euros com a Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), uma entidade que tutelou directamente enquanto governante.

    Celebrado no dia 2 de Maio de 2023, o contrato entre o SUCH e Francisco Ramos engloba um valor de 132.840 euros, com IVA. Sem qualquer caderno de encargos publicado no Portal Base, o contrato de dois anos estabelece apenas que serão prestados serviços de “consultadoria de desenvolvimento de projectos”. Contactado o SUCH, não foram dados quaisquer esclarecimento sobre as funções e tarefas efectivamente concretizados por Francisco Ramos nos últimos dois anos.

    (Da esquerda para a direita) Joel Azevedo, administrador da SUCH, Paulo Sousa, presidente da SUCH, Marta temido, ex-ministra da Saúde, e Ana Maria Nunes, administradora da SUCH. A equipa executiva da SUCH foi reconduzida num despacho de Abril de 2022 pela então ministra da Saúde, Marta Temido (na foto, a segunda a contar da direita), e o ministro das Finanças, Fernando Medina. / Foto: D.R.

    E também não se sabe o que fará nos próximos dois anos, para além de receber mensalmente os 4.500 euros acrescidos de IVA. Nesta avença, integrada num contrato assinado na semana passada, está estabelecido que Francisco Ramos, que já deve ter desenvolvido todos os projectos do anterior contrato, mostrará a sua polivalência, passando agora a fazer “consultadoria no âmbito da comunicação institucional na área da saúde”.

    No global, nos dois ajustes directos, e durante quatro anos e sem funções específicas (e sem cumprimento de horário), o antigo governante encaixará 265.680 euros, com IVA incluído, a prestar serviços de consultadoria na entidade que agrega múltiplos serviços dos hospitais, desde a gestão dos resíduos até à manutenção. Aliás, foi no pólo logístico da SUCH que ficou sediada a recepção, armazenamento e distribuição das vacinas contra a covid-19.

    Recorde-se que enquanto secretário de Estado de Marta Temido, e mesmo antes, Francisco Ramos teve sob sua tutela directa diversos organismos públicos, incluindo o SUCH. Licenciado em Economia e diplomado em Administração Hospitalar, foi secretário de Estado em quatro anteriores governos, mesmo sem estar filiado no Partido Socialista. A partir de 2014, foi presidente do conselho diretivo do Grupo Hospitalar dos IPO. Voltou a integrar um governo quando, em 17 de Outubro de 2018, assumiu a secretaria de Estado da Saúde, cargo em que ficou até 26 de Outubro de 2019.

    Gouveia e Melo, actual candidato às presidenciais, e Paulo Sousa, presidente da SUCH, numa visita às instalações da SUCH em Setembro de 2021. Gouveia e Melo sucedeu a Francisco Ventura Ramos como coordenador da ‘task force’ da campanha de vacinação. Sob a liderança de Gouveia e Melo, foram administradas vacinas a médicos não prioritários do Hospital Militar e até a um político, numa operação envolvendo a Ordem dos Médicos e então bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD. / Foto: D.R.

    A sua queda em desgraça no processo de vacinação no Hospital da Cruz Vermelho, do qual viria a ser ‘ilibado’ ao fim de oito meses, marcou a ascensão do então discreto vice-almirante Gouveia e Melo que nunca teve problemas em cometer ‘pecadilhos’, como sucedeu na vacinação de cerca de quatro mil médicos não prioritários (e até a um político) à margem das normas então em vigor da Direcção-Geral da Saúde. Esta operação de desvio de vacinas, numa altura ainda em escassez, foi protagonizada por um acordo ‘ad hoc’ com o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.

    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriria formalmente um “processo de esclarecimento” sobre o caso, que envolveu indirectamentea gestão de um fundo solidário do qual esteve também envolvida a então bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, actual Ministra da Saúde. Mas a IGAS acabou por deixar ‘morrer’ a investigação, recorrendo a uma mentira sobre a data crucial de uma norma da DGS e recusando pedir testemunhos e analisar a lista dos supostos médicos vacinados.

  • Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    Polígrafo mentiu para garantir que Rui Tavares só dizia verdades

    O Polígrafo – o órgão de comunicação social dedicado ao fact-checking e que se arvora de “guardiã da verdade”, distribuindo selos, incluindo “pimenta na língua” – foi apanhado a martelar factos, classificando como verdadeira uma afirmação falsa de Rui Tavares, co-líder e deputado do Livre.

    Numa deliberação ontem divulgada, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) reconheceu formalmente que o Polígrafo violou o dever de rigor informativo ao validar, sem a devida contextualização, uma afirmação de Rui Tavares durante o debate televisivo para as recentes eleições legislativas, no qual confrontou André Ventura, presidente do Chega.

    a wooden statue with a white hat on top of it

    Para apurar quem faltara mais à verdade no frente-a-frente, o Polígrafo escolheu cinco afirmações dos dois políticos, tendo “sentenciado” que Ventura mentiu em duas, enquanto Tavares teria dito cinco verdades. Só que não. Tavares afirmou no debate que, durante o mandato de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, “até roubo de jóias houve”. Ora, o Polígrafo classificou tal afirmação como “verdadeira”, justificando-se com investigações em curso no Brasil relativas a jóias recebidas por Bolsonaro durante o exercício da presidência, para além da condenação de inelegibilidade por oito anos. Contudo, como se depreende da própria ERC, quem mentiu foi o Polígrafo.

    De acordo com a deliberação do regulador, é certo que “em Julho de 2024 foi tornado público e profusamente noticiado que a Polícia Federal [do Brasil] denunciara Jair Bolsonaro por apropriação indevida de jóias que recebera enquanto chefe de Estado, considerando que se trata de património público”.

    Porém, “o caso levou a uma decisão do Tribunal de Contas do Brasil (TCU), de Março de 2025, que considerou que presentes de uso pessoal, recebidos por presidentes e vice-presidentes, não são património público, podendo mantê-los ao saírem do cargo”, acrescentando ainda que se “aguarda, entretanto, parecer da Procuradoria-Geral da República que pode seguir diversas vias: denúncia ao Supremo Tribunal Federal – cuja decisão não é influenciada pela posição adoptada pelo TCU –, pedido de novas diligências ou arquivamento”.

    Aliás, nessa decisão de Março passado, acabou por fazer uma equivalência das ofertas recebidas por Bolsonaro ao que Lula da Silva tinha feito em 2005, quando ficou com um relógio oferecido enquanto líder do Estado brasileiro.

    Nada disso é referido na análise do Polígrafo. Ao invés, para fundamentar a classificação de “Verdadeiro” à frase de Rui Tavares, o Polígrafo escreveu: “Bolsonaro deveria ter entregue [sic] essas jóias ao Estado brasileiro assim que deixou o poder, uma vez que estas foram uma oferta institucional. De acordo com as investigações, porém, Jair Bolsonaro vendeu algumas dessas jóias através de intermediários.”

    Assim sendo, a ERC conclui ser “forçoso concluir que o Polígrafo incumpr[iu] o dever de rigor informativo na verificação de factos publicada”, embora destaque sobretudo a ausência de “contexto suficiente para que os leitores compreendam os contornos reais” da alegada apropriação e venda de jóias.

    Polígrafo, um verificador de factos que transforma mentiras em verdades.

    Em todo o caso, o regulador reforça a censura ao acto do Polígrafo tendo em conta o facto de este ser um “órgão de comunicação social reconhecido como verificador de factos certificado e assim apresentado aos olhos do público”, pelo que tem “o dever e a responsabilidade de manter os padrões que lhe são impostos, quer pela legislação e pela ética que impendem sobre o exercício da actividade jornalística, quer pelos padrões exigidos pelas organizações certificadoras de verificadores de factos IFCN – International Fact-Checking Network – e EFCSN – European Fact-Checking Standards Network”. Recorde-se que o Polígrafo tem o Facebook – que teve um papel fulcral na limitação da expressão durante a pandemia – como um dos seus principais financiadores.

    Esta deliberação da ERC não impõe sanções, limitando-se a um “alerta” ao Polígrafo. Mas a marca ficou.
    Para os cidadãos atentos, ficou provado que os verificadores também precisam de ser verificados. E que Rui Tavares, afinal, também mente. Aliás, uma outra frase do co-líder do Livre, no calor do debate, também está longe da verdade: por mais defeito que tenha, Bolsonaro não foi condenado (ainda) por corrupção, logo não é verdade que seja “o mais corrupto da América do Sul”.

  • ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    ‘Sonhos de menino’: Tony Carreira deu uma borla a Luís Montenegro

    A explicação oficial do Governo para o adiamento dos “momentos festivos” das comemorações oficiais do 25 de Abril foi a morte do Papa Francisco, mas, na própria tarde desse anúncio, o gabinete de Luís Montenegro estava já a ultimar as negociações do concerto de Tony Carreira para o dia 1 de Maio, no Palácio de São Belém.

    ‘Negociações’ é um termo lato, porque, na verdade, o Governo de Montenegro conseguiu aquilo que um dos artistas com mais contratos públicos raramente concede: uma borla. Com efeito, segundo documentos a que o PÁGINA UM teve hoje finalmente acesso, após intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na tarde de 23 de Abril passado — na mesma altura em que o Governo anunciava o adiamento das festas da Revolução dos Cravos —, a Regiconcerto, empresa de Tony Carreira, confirmava as condições do espectáculo previsto para o dia 1 de Maio.

    Entre essas condições, “na sequência dos contactos mantidos” — conforme refere num e-mail a CEO da Regiconcerto, Filipa Ramires —, estava “a interpretação de, aproximadamente, seis temas”, sendo que “em termos de cachet artístico, e tal como falado, o Tony Carreira abdica do seu próprio cachet”. O acordo foi realizado ao mais alto nível, porque o e-mail da Regiconcerto é enviado directamente para, entre outros, Pedro Pinto, chefe de gabinete de Montenegro, para a assessora de imprensa Cátia Duarte Silva e até para um adjunto do ministro Pedro Duarte.

    Apesar da ‘borla’ de Tony Carreira, no acordo é indicado que deve haver um pagamentos, no valor de 4.700 euros (mais IVA), para os quatro músicos que acompanharam o cantor, três técnicos operadores, motorista e manager. Foi também apresentado um orçamento adicional para a montagem e desmontagem do espectáculo, a cargo de cinco elementos, mas essa documentação não foi ainda remetida pela Secretaria-Geral do Governo.

    Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril, teria sido impossível a Luís Montenegro contar — e cantar o em dueto ‘Sonhos de menino’ — com Tony Carreira no Palácio de São Bento, em vésperas de eleições legislativas, criando-lhe um momento especial de visibilidade pública. No dito concerto — ou showcase —, o primeiro-ministro chegou mesmo a participar num dueto na canção “Sonho de Menino”.

    Acordo para o concerto de Tony Carreira foi feito no dia do anúncio do adiamento das comemorações do 25 de Abril, alegadamente por causa da morte do Papa Francisco. Nota: O PÁGINA UM rasurou os endereços de e-mail.

    Com efeito, a agenda de Tony Carreira encontrava-se já bastante preenchida há vários meses para os dias em torno das comemorações da Revolução dos Cravos. No dia 24 de Abril, o cantor actuou no Barreiro, ao abrigo de um contrato celebrado no dia 8 desse mês com a autarquia local, à qual cobrou 72.570 euros (com IVA). No dia seguinte, deu espectáculo no município norte-alentejano de Alter do Chão, que pagou 46.125 euros para cumprir um contrato assinado em 21 de Março.

    Não existe ilegalidade alguma num artista actuar gratuitamente num evento para agradar ao primeiro-ministro de um Governo em funções, mesmo em contexto de pré-campanha eleitoral. Porém, do ponto de vista formal, mesmo sem cachet artístico, a empresa de Tony Carreira celebrou um contrato oneroso sujeito às regras do Código dos Contratos Públicos (CCP), uma vez que houve prestações acessórias pagas a músicos, técnicos e outros profissionais, com valores que, somados, configuram inequivocamente uma prestação de serviços financiada por dinheiros públicos.

    Mais ainda, de acordo com os documentos obtidos, essa prestação foi objecto de contactos prévios e de uma confirmação formal de condições por parte da empresa Regiconcerto, em nome de Tony Carreira, na tarde de 23 de Abril. Ou seja, houve um contrato, ainda que não redigido por escrito.

    Agenda de Tony Carreira estava cheia para a noite de 24 de Abril, no Barreiro, e no dia 25 de Abril (na foto), em Alter do Chão.

    A consequência jurídica deste acto é evidente: tratando-se de um contrato de serviços com valor económico, impunha-se o seu registo no Portal BASE no prazo de 20 dias. Ora, tal registo ainda não foi efectuado, em clara violação do princípio da transparência.

    Na verdade, não fosse a insistência do PÁGINA UM junto da CADA, jamais teriam vindo a público quaisquer detalhes sobre os contornos deste contrato, do qual Montenegro colheu claros dividendos simbólicos e mediáticos. Acresce que a gratuitidade, numa situação desta natureza envolvendo o Governo, suscita inevitavelmente dúvidas quanto a eventuais benefícios futuros — tanto mais quando se sabe que, por regra, os espectáculos musicais de Tony Carreira estão longe de ser baratos, rondando, em média, os 50 mil euros, já com logística e montagem de palco.

    De acordo com o Portal BASE, desde Janeiro, Tony Carreira foi contratado por 16 autarquias, envolvendo montantes totais próximos dos 900 mil euros com IVA. Em 11 desses contratos, a entidade contratada foi a própria Regiconcerto, empresa do artista. Importa também sublinhar que, à luz desta amostra — e pelo menos por agora —, Tony Carreira revela-se um artista claramente mais requisitado por autarcas socialistas do que por sociais-democratas.

    Luís Montenegro, ‘quebrando a barreira de segurança’ no dia 1 de Maio para ir cantar um dueto com Tony Carreira, que lhe deu uma ‘borla’.

    Apesar de o PS liderar actualmente 48% das autarquias (149 em 308) e o PSD 37% (114), a distribuição dos contratos evidencia um claro enviesamento político: dos 16 contratos, 11 (ou seja, 69%) foram celebrados com câmaras municipais lideradas pelo PS — nomeadamente Chaves, Marco de Canaveses, Loures, Vila Velha de Ródão, Barreiro, Mértola, Estremoz, Vila Nova de Gaia, Tábua, Olhão e Vinhais —, enquanto apenas três envolveram autarquias do PSD (Ponta Delgada, Alter do Chão e Arganil) e um foi celebrado com uma autarquia independente (Oeiras).

    Ou seja, a “borla” pode muito bem ter funcionado como uma operação de charme de Tony Carreira para abrir caminho também junto dos executivos sociais-democratas. Porém, aparentemente, o ‘coração’ do artista aparenta bater ainda para o lado socialista, o particularmente para o novo líder do PS. Em Dezembro de 2023, o cantor romântico, cujo nome de nascimento é António Antunes, chegou a gravar um vídeo de apoio a José Luís Carneiro — aquando da corrida à liderança contra Pedro Nuno Santos —, considerando-o “uma pessoa com princípios muito bons, com os quais me identifico”.

  • Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Carlos Moedas volta a ser ‘cabeça de cartaz’ em evento pago pela Câmara de Lisboa à Medialivre

    Vira o disco e toca o mesmo. Para cumprir a segunda parte de um contrato de prestação de serviços de 147 mil euros pagos pela Câmara Municipal de Lisboa à Medialivre — a empresa de media detentora do Correio da Manhã e da CMTV, e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista individual —, mais uma vez Carlos Moedas, o edil social-democrata que se recandidatará a novo mandato, foi o cabeça-de-cartaz. Mas com uma ‘nuance’: ao contrário da primeira sessão, em que o presidente da autarquia discursou longos 25 minutos no início, desta vez foram 15 minutos na sessão de encerramento. Para aparecer a discursar nos canais em directo da Medialivre, sem sequer dar assento à oposição, Carlos Moedas ‘passou um cheque’ de quase 75 mil euros por sessão.

    O tema da conferência desta terça-feira foi a imigração. Sob o título “De todos os lugares, uma só cidade”, o evento decorreu no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) e inseriu-se no ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV, em parceria e com o apoio da Câmara de Lisboa. No entanto, como o PÁGINA UM revelou na semana passada, essa “parceria” foi, na verdade, um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, celebrado com a Medialivre para dois eventos — o de hoje e o anterior, realizado a 27 de Maio, sobre segurança.

    Daniela Polónia, jornalista da CMTV (à esquerda), chamando ao palco esta manhã o ministro da Presidência, Leitão Amaro, para discursar: eis um nova ‘atribuição’ dos jornalistas em contratos de prestação de serviços para autarquias.

    Com o espaço e a logística assegurados também pela própria Câmara Municipal, o evento foi assim uma mera prestação de serviços que envolveu três jornalistas da Medialivre: Carlos Rodrigues (CP 1575), director-geral editorial, que deu as boas-vindas; Daniela Polónia (CP 6296), pivot da CMTV, que actuou como mestre-de-cerimónias; e João Ferreira (CP 802), jornalista sénior, que moderou, mais uma vez, os dois painéis da conferência.

    O contrato assinado pelo vereador Filipe Anacoreta Correia estipula que a Medialivre se obrigava a realizar os eventos, fornecendo meios técnicos e humanos, incluindo jornalistas, a troco de 73.800 euros por sessão. Não houve qualquer referência explícita, durante a conferência, à existência de contrato ou ao pagamento envolvido.

    Aliás, ainda no mês passado, a ERC considerou numa deliberação que se estava perante publicidade a realização de dois eventos do género pagos ao Público pela autarquia de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas, que tinham sido moderados pelo actual director do Público, David Pontes.

    Para discursar em dois eventos, sobre segurança e imigração, em instalações da própria Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas pagou, com dinheiros públicos e em vésperas de eleições autárquicas, quase 150 mil euros à Medialivre.

    No caso dos eventos pagos pela autarquia  de Lisboa à Medialivre, as declarações das duas partes envolvidas são sempre no sentido de  se ter tratado de uma parceria, dando a entender que houve distribuição de custos. Ora, não houve: os custos do evento foram da Câmara, que forneceu mesmo o local, e ainda pagou à Medialivre. Em rigor jurídico e técnico, não se deve falar de “parceria” quando há uma relação contratual em que uma das entidades paga à outra uma contraprestação em dinheiro por um serviço prestado. Nesses casos, trata-se de uma relação comercial ou contratual de prestação de serviços, e não de uma parceria no sentido próprio.

    Esta omissão, recorrente nos media, esbate a fronteira entre jornalismo e promoção institucional, colocando em causa o Estatuto do Jornalista, que proíbe actos publicitários ou de natureza comercial por parte de profissionais com carteira. A instrumentalização de jornalistas da Medialivre nestes eventos representa, além de uma violação legal, um caso flagrante de promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    Destaque-se que o Estatuto do Jornalista considera mesmo “actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais”. Ou seja, havendo uma obrigação contratual – em que a troco de dinheiro tem de haver presença de jornalistas –, deixam de existir critérios exclusivamente editoriais, caindo-se na publicidade.

    João Ferreira, pela segunda vez no espaço de sete dias, o jornalista fez o papel de moderação em debates. O problema não é a moderação, que é permitida por lei, mas sim a moderação para efeitos de cumprimento de cláusulas comerciais pela sua entidade empregadora (Medialivre).

    O convidado principal da sessão desta terça-feira foi, desta vez, António Leitão Amaro, ministro da Presidência, que aproveitou o palco para fazer o balanço do primeiro ano de governação na área das migrações. “A capacidade de liderança é ser capaz de ver à frente e agir”, afirmou, destacando o Plano Nacional de Acção para as Migrações apresentado há precisamente um ano. Na sua intervenção, afirmou que o Governo anterior “não compreendeu nem respondeu” à nova realidade demográfica, criando espaço para respostas radicais e desumanizantes. Em contraste, assegurou que a actual governação combina “mudança firme” com “humanismo moderado”.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que abriu a sessão desta terça-feira com uma breve intervenção, enviou esta tarde ao PÁGINA UM um pedido de direito de resposta relativo à notícia publicada na semana passada. O texto será publicado na íntegra amanhã, em cumprimento dos prazos da Lei de Imprensa, que determina que, se a publicação for diária, terá de o divulgar “dentro de dois dias a contar da recepção”.

  • Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Parlamento: deputados únicos do BE, PAN e JPP ‘sonham’ com primeira fila

    Pela segunda vez em 17 legislaturas, a Assembleia da República vai sentar três deputados de partidos políticos sem grupo parlamentar, ou seja, deputados únicos. Amanhã, na primeira sessão da nova composição do Parlamento, Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda, que viu o seu grupo parlamentar colapsar em apenas seis anos — elegeu 19 deputados em 2019), Inês de Sousa Real, do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN, que repete a experiência da legislatura anterior), e o estreante Filipe Sousa, do partido regional madeirense Juntos pelo Povo (JPP), não terão companheiros de bancada.

    Estes deputados vão partilhar assim a mesma solidão parlamentar vivida em 2019, quando, pela primeira vez, mais de dois partidos conseguiram eleger um único deputado: Joacine Katar Moreira (eleita pelo Livre, mais tarde independente), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal) e André Ventura (Chega). Curiosamente, todos os partidos então com representação unipessoal conseguiram ampliar a sua presença nas legislaturas seguintes, sendo que o Chega lidera hoje a oposição com 60 deputados.

    Porém, o PÁGINA UM sabe que Bloco de Esquerda, PAN e JPP vão, contudo, tentar quebrar uma duradoura praxe em Conferência de Líderes, ainda que a hipótese de sucesso seja escassa: um lugar na primeira fila do hemiciclo parlamentar.

    Apesar de o longo e detalhado Regimento da Assembleia da República, nos seus 265 artigos, ser totalmente omisso sobre a distribuição dos deputados no hemiciclo, essa competência cabe, por tradição, à Conferência de Líderes e, em última instância, ao Presidente da Assembleia. Por regra, nunca um deputado único conseguiu acesso aos lugares da primeira fila, pois assume-se que não possui representatividade suficiente para ocupar um dos 24 lugares dianteiros habitualmente disponíveis.

    Com efeito, se a atribuição dos lugares da primeira fila fosse feita com base estritamente proporcional — isto é, através de um critério aritmético rigoroso —, os partidos minoritários como o BE, o PAN e o JPP estariam manifestamente fora de qualquer expectativa de acesso a esse espaço. Mas o mesmo sucederia com outros partidos que, não obstante, terão presença na frente.

    Filipe Sousa, deputado do JPP: pela primeira vez, um partido regional elege para Assembleia da República.

    Num Parlamento com 230 deputados e apenas 24 lugares na primeira fila, o direito proporcional a um lugar dianteiro corresponderia a cerca de 9,58 deputados. Assim, apenas os partidos com pelo menos 10 deputados poderiam ambicionar legitimamente essa posição. Aplicando esse critério, a selecção tornar-se-ia inevitavelmente excludente — e não apenas para o BE, o JPP e o PAN. Só três partidos atingem esse limiar: o PSD, com 89 deputados; o Chega, com 60; e o PS, com 58.

    Todos os restantes ficariam automaticamente arredados da primeira fila: a Iniciativa Liberal, com 9 deputados, não atinge o mínimo necessário; o Livre, com 6, também não; e o mesmo se aplica ao PCP, com 3 deputados. Até o CDS-PP, que regressou ao Parlamento à boleia da Aliança Democrática com dois eleitos, ficaria fora desse espaço, se a lógica fosse puramente aritmética.

    Esta análise evidencia que, do ponto de vista estritamente matemático, permitir que partidos com uma expressão parlamentar reduzidíssima ocupem lugares de destaque na primeira fila constitui uma desproporção evidente. Um deputado único, que representa 0,43% do Parlamento, ao sentar-se na primeira fila — ocupando 1 em 24 lugares, ou seja, 4,17% do espaço visível — multiplicaria por quase dez vezes o seu peso real no hemiciclo.

    Contudo, a democracia parlamentar não se resume à aritmética. Colocar deputados únicos na primeira fila pode ser interpretado, mais do que como um acto injusto de concessão de privilégios desproporcionados, como a expressão de um princípio democrático de inclusão representativa. Num sistema como o português, que adopta o método de Hondt e favorece os partidos mais votados em cada círculo, a eleição de deputados únicos representa, em si mesma, uma superação notável de barreiras estruturais. Em muitos casos, essa eleição constitui um primeiro passo para afirmações políticas mais robustas — como se viu com o Chega, a Iniciativa Liberal e o Livre, que em 2019 tinham apenas um deputado e hoje ocupam posições reforçadas.

    Conceder-lhes maior visibilidade simbólica — através da sua colocação na linha da frente do hemiciclo — traduz-se, assim, num reconhecimento do pluralismo político e da legitimidade de minorias que, mesmo em desvantagem no sistema, conseguiram representação.

    De facto, a visibilidade atribuída a essas vozes solitárias não distorce a democracia; pelo contrário, reforça-a, ao garantir que nenhuma corrente legitimada pelas urnas seja remetida ao esquecimento visual ou ao silêncio institucional. Trata-se, pois, não apenas de uma questão de espaço, mas de princípio: assegurar que o Parlamento se veja a si próprio como espelho, ainda que fragmentado, da pluralidade nacional.

    Na reunião da Conferência de Líderes de 21 de Maio, três dias após as eleições e ainda com os deputados da anterior legislatura em funções, foi apresentada uma proposta provisória de distribuição de lugares no hemiciclo para a sessão inaugural. Contudo, José Pedro Aguiar-Branco — que deverá manter o cargo de Presidente da Assembleia da República — sublinhou que “a disposição definitiva de lugares na XVII Legislatura só será decidida” após a sessão desta terça-feira. Para já, ficou esclarecida a posição do JPP, que recusou ficar junto ao Chega, como se chegou a aventar inicialmente.

    Em 2019, então como deputado único, André Ventura foi relegado para a segunda fila, aproveitando sistematicamente o púlpito para ter destaque. Agora, seis anos depois, com 60 deputados, o Chega terá seis deputados em primeira fila.

    Assim, nesta terça-feira, o Chega ocupará, segundo apurou o PÁGINA UM, seis lugares na primeira fila, previsivelmente mais um do que o Partido Socialista. O PSD deverá sentar-se em oito lugares dianteiros, restando dois para a Iniciativa Liberal, um para o CDS-PP, outro para o Livre e outro para o Partido Comunista Português.

    Depois, será a política — e o bom senso — a ditar se a tradição se mantém ou se Portugal opta por inovar. Porque, nos parlamentos de diversos países europeus, dificilmente o JPP, o Bloco de Esquerda e o PAN arrecadariam uma cadeira da frente. Veremos se Portugal decide olhar mais para os princípios ou para as proporções.

  • Cartel dos fogos: Força Aérea já gastou este ano mais de 181 milhões no aluguer de meios aéreos

    Cartel dos fogos: Força Aérea já gastou este ano mais de 181 milhões no aluguer de meios aéreos

    Onde há fumo há fogo. E onde há contratos chorudos ganhos pelas mesmas empresas de sempre, há suspeitas de corrupção e cartelização. No caso da indústria de combate aos incêndios rurais, só o negócio de aluguer de meios aéreos já envolveu, desde o início do ano, 16 contratos de valor global superior a 181 milhões de euros.

    Estes contratos são adjudicados pelo Estado-Maior da Força Aérea e o ‘bolo’ tem sido dividido por meia dúzia de empresas, incluindo a Agro-Montiar, uma subsidiária da empresa espanhola Titan (ex-Avialsa), condenada este ano em Espanha no âmbito do processo do ‘Cartel del Fuego’, como o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, em Março passado.

    Foto: D.R.

    Não surpreende assim que a Polícia Judiciária (PJ) tenha hoje executado 28 mandados de busca a domicílios, sedes de empresas (não identificadas) e organismos públicos numa operação policial que decorreu de norte a sul do país. A operação ‘Torre de Controle’, levada a cabo pela “Unidade Nacional de Combate à Corrupção, em inquérito titulado pelo DCIAP”, segundo o comunicado da PJ, já levou à constituição de diversos arguidos, entre “pessoas singulares e coletivas”.

    Segundo a PJ, “em causa estão factos suscetíveis de integrar os crimes corrupção ativa e passiva, burla qualificada, abuso de poder, tráfico de influência, associação criminosa e de fraude fiscal qualificada, através de uma complexa relação, estabelecida pelo menos desde 2022, entre várias sociedades comerciais, sediadas em Portugal, e que têm vindo a controlar a participação nos concursos públicos no âmbito do combate aos incêndios rurais em Portugal, no valor de cerca de 100 milhões de euros”.

    O esquema criminoso envolverá, alegadamente, “concursos públicos [que] incidem na aquisição de serviços de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade dos meios aéreos próprios do Estado, dedicados exclusivamente ao Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), com a intenção de que o Estado português fique com carência de meios aéreos e, dessa forma, se sujeite aos subsequentes preços mais elevados destas sociedades comerciais”.

    Foto: D.R.

    Ora, só este ano, num levantamento do PÁGINA UM, os contratos referentes a aluguer de meios aéreos no âmbito do DECIR superam os 181 milhões de euros, valor ao qual há que ser acrescentado o IVA. Foram sete as empresas que beneficiaram destes contratos: Agro-Montiar, Helibravo Aviação, HTA Helicópteros, Gesticopter Operations Unipessoal ligada a familiares do ministro da Presidência, conforme revelou a SIC Notícias , Airworks Helicopters, Avincis Aviation Portugal e Shamrock.

    A empresa que mais facturou este ano com estes contratos foi a Agro-Montiar, subsidiária da Titan, que ganhou mais de 59 milhões de euros através de três contratos obtidos através de concurso público, como o PÁGINA UM noticiou em Março.

    Segue-se a Helibravo, que facturou mais de 47 milhões de euros em quatro contratos ganhos num concurso público, segundo uma análise do PÁGINA UM, que consultou os contratos. A empresa ganhou três lotes daquele concurso, tendo os contratos sido assinados a 4 de Abril.

    Um dos contratos, no montante de 12.860.005,40 euros, diz respeito ao aluguer de cinco helicópteros ligeiros por um período de quatro anos, no âmbito do dispositivo aéreo do DECIR 2025-2028. Um segundo lote, no valor de 13.241.995 euros, abrange o aluguer de mais cinco helicópteros ligeiros pelo mesmo período. Um terceiro lote ganho pela empresa, no montante de 13.292.000 euros, envolve o aluguer de outros cinco helicópteros ligeiros, até 2028.

    Helicóptero da Helibravo em operações de combate a incêndios. (Foto: D.R.)

    A Helibravo ganhou ainda um quarto contrato por concurso público, assinado no passado dia 7 de Maio, no valor de 7.737.201,12 euros para a locação de quatro helicópteros ligeiros no período de 15 de Maio a 30 de Setembro até 2027.

    A terceira empresa que mais facturou este ano com contratos no âmbito do aluguer de meios aéreos para o combate aos fogos é a HTA que já ganhou quatro contratos que superam os 37 milhões de euros.

    Três dos contratos foram obtidos num concurso público, tendo a assinatura dos documentos ocorrido a 13 de Março. O primeiro contrato, para o aluguer de dois helicópteros ligeiros até 2027, custou ao Estado 11.156.959,52 euros. O segundo, no valor de 2.951.546,87 euros, visou o aluguer de um helicóptero ligeiro de 1 de Junho a 31 de Outubro, até 2027. O terceiro contrato, no montante de 9.230.447,18 euros, assinado na mesma data, é relativo à locação de três helicópteros ligeiros até 2027. Esta empresa ganhou ainda um quarto contrato, no dia 2 de Abril, no valor de 13.807.929,20 euros, mas o documento não é público.

    A Gesticopter teve ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. / Foto: D.R.

    Outra empresa beneficiada, foi a Gesticopter, que, segundo a SIC Notícias, tem ligações a um irmão e a um cunhado do ministro da Presidência, António Leitão Amaro. Esta empresa facturou 16.375.617 euros num contrato assinado no passado dia 7 de Maio e que envolve a locação de três helicópteros pesados até 2027.

    A Gesticopter foi constituída a 8 de Março de 2024 com um capital social de apenas cinco mil euros, com sede em Macedo de Cavaleiros. A empresa era detida pela Gestifly e tinha três gerentes: Pedro Alexandre Fernandes dos Santos Bento, Nuno Alexandre Pinto Coelho Torres de Faria e Luís Manuel Gil Pires Ferreira.

    Mas, no passado dia 8 de Abril, a totalidade das quotas passou para as mãos da espanhola Helifinance Asset Management, com sede em Madrid, e mudou a sede para Monfortinho, Castelo Branco, segundo o registo consultado pelo PÁGINA UM.

    Outra empresa que não se pode queixar é a espanhola Airworks, com sede em Salamanca, que ganhou este ano dois contratos de aluguer de meios aéreos para combate aos incêndios. O primeiro, datado de 12 de Março, no valor de 5.671.680 euros, é relativo à locação de dois helicópteros ligeiros até 2027. O segundo, no montante de 10.060.864 euros, foi assinado a 2 de Abril, e visa o aluguer de quatro helicópteros ligeiros até 2028.

    Segue-se a Shamrock, com sede em Carnaxide, que facturou 2.988.000 euros num contrato adjudicado no passado dia 7 de Maio relativo ao aluguer de dois aviões ligeiros de reconhecimento até 2027.

    Por fim, o contrato mais recente, assinado no dia 8 de Maio, que foi adjudicado à Avincis Aviation Portugal, com sede em Loures, com um valor de 2.349.937,08 euros. Este contrato visa a locação de um helicóptero ligeiro de 15 de Maio a 15 de Outubro até 2027.