Categoria: Música

  • Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Perceba-se: um tipo anda já a meio dos cinquenta, com ares de respeitabilidade — pouca, é certo, porque o cabelo comprido não ajuda — e com o peso da idade a cair-lhe nos joelhos e nas pálpebras, e de repente dá por si a enfiar-se no Meo Arena para ver Shawn Mendes. Sim, Shawn Mendes, um rapaz com metade da minha idade, de apelido português, mas canadiano de nascença, que canta baladas capazes de fazer suspirar uma geração que poderia ser filha (ou, pior ainda, neta) deste escriba.

    É a vida a passar e a passear-se. Os de hoje têm Shawn Mendes como nós tivemos George Michael na fase dos Wham! — pré-metafísica de Jesus to a Child — ou até Rick Astley, com aquele pop asseado que parecia saído de uma lavandaria britânica. E se quisermos rebobinar a cassete para os anos 90, o paralelo mais directo será talvez Robbie Williams na transição dos Take That para a carreira a solo — ainda sem o sarcasmo autodestrutivo — ou o Bryan Adams de (Everything I Do) I Do It for You, que fez suspirar meio planeta. Há até uma pontinha de Glenn Medeiros, também ele de raízes lusitanas, para quem se lembra de ouvir Nothing’s Gonna Change My Love for You nas rádios de 1987.

    João Padinha / Everything is New

    Aliás, o sucesso de Shawn Mendes em solo português não deixa de ter graça: há aqui uma espécie de herança lusófona que faz lembrar Nelly Furtado nos anos 2000, esse orgulho luso-canadiano que conquistou os tops mundiais like a bird.

    Cheguei ao concerto quase às cegas: conhecia três ou quatro músicas, mas confesso que não saberia entoar o refrão de nenhuma. E aterrei, sem ver as actuações da belga Lubiana e da portuguesa Maro, num mar de adolescentes e jovens adultos, talvez 95% mulheres — os outros 5%, presumo, seriam namorados resignados — e esperei para ver o que dali saía.

    Antes de Shawn Mendes aparecer, depois da entrada dos músicos, concebi um título possível da crónica: Um concerto de telemóveis e (de) gritos. Os telemóveis formaram uma maré luminosa constante — grava-se tudo, mesmo que se veja pouco — e os gritos surgiam em modo sirene, sobretudo cada vez que o rapaz sorria, dizia “Lisboa” ou pegava na guitarra. Confesso: para quem está ali apenas para escrever uma crónica sociológica, quase como um extraterrestre, há encanto nisto. Mas também fica a sensação de que estamos num karaoke gigante: as fãs cantam tão alto que às vezes quase não se percebe se o homem canta mesmo bem ao vivo. Suspeitei logo no início que sim, mas só nas baladas mais intimistas consegui confirmar.

    João Padinha / Everything is New

    O concerto abriu com um foguetório e There’s Nothing Holding Me Back, e Mendes tomou conta do palco com uma naturalidade desarmante: calças largas, colete negro, um sorriso de fazer corar as adolescentes. O som esteve sempre coeso, a banda entusiasmada, e o alinhamento trouxe alguns temas que já conhecia: Wonder, Treat You Better, Monster, Lost in Japan em modo disco, e, inevitavelmente, Señorita, com as fãs a cantar de forma ensurdecedora.

    E pelo meio, uma ligação genuína ao público. Mendes falou da família, disse sentir-se “em casa”, embora sem dizer uma frase em português, vestiu a camisola 21 em homenagem a Diogo Jota — uma espécie de ritual de ligação a Portugal — e até deixou cair umas palavras sobre Gaza, apelando ao fim do ódio e à escolha do amor. Foi o momento político da noite, relevante para uma plateia que talvez não siga de perto o que se passa no Médio Oriente.

    Entre as músicas novas e as “velhas glórias” — não são assim tantas, que o rapaz tem apenas 27 anos —, Shawn Mendes equilibrou intimismo e espectáculo, emoção e energia. O cenário foi minimalista, sem grandes parafernálias, mas eficaz: uso ponderado dos ecrãs, fogo-de-artifício na medida certa, nada de Las Vegas, mas o suficiente para dar aquele sabor de noite grande.

    Foto: Pedro Almeida Vieira

    Na recta final, a sequência If I Can’t Have You, Why Why Why e In My Blood levou o público ao delírio, culminando com confettis, bandeiras de Portugal e a deliciosa ironia de sair ao som de Uma Casa Portuguesa. Há programadores de setlist que merecem um abraço só por estas ideias.

    Saí do Meo Arena surpreendido: não porque sobrevivi sem perda auditiva permanente, mas porque percebi que Shawn Mendes tem mais estofo do que a simples máquina de hits pop faria supor. Tem carisma, voz, uma ligação genuína aos fãs e uma presença de palco que não se aprende nos reality shows. Tem, acima de tudo, uma coisa rara no mundo do mainstream: autenticidade. E, por entre telemóveis erguidos e gritos esganiçados, é isso que um bom concerto deve mostrar.

    Nota final: 4 em 5.

  • Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Deambular por Riga é um prazer de altos rendimentos: histórico, arquitectónico e sensorial, sobretudo no Verão — ou melhor, no Verão, porque no Inverno ignoro como seja —, quando a luz se estende até depois das 22 horas e os cafés ao ar livre vibram com línguas que, imagino, vêm de todos os cantos do mundo.

    Era isso que fazia — perambulava — pelas ruelas medievais e praças seculares desta cidade báltica, com um olhar ora absorto nas fachadas de inspiração germânica, ora atento aos movimentos do presente.

    Deparo-me, porém, junto à Catedral de Riga, com um concerto de música rock — vejo, mais tarde, tratar-se de um festival organizado por uma empresa local, que decidiu este ano abrir o espectáculo à cidade.

    Saio dali pouco depois de ter despejado, inadvertidamente, parte de uma garrafa de água com gás sobre a minha t-shirt, e começo a contornar a imponente Rīgas Doms. Dou então por mim a menos de meia hora do início de um recital de órgão.

    O dilema era real: valeria a pena interromper a caminhada para “gastar” uma hora dentro de uma catedral — ainda que grandiosa — a ouvir música que não saberei decifrar tecnicamente? Havia ainda o detalhe do bilhete: vinte euros. Aqui, ao contrário de certas instituições culturais portuguesas, que estendem credenciais aos jornalistas como quem oferece rebuçados, não se fazem favores de última hora.

    A ponderação económica impôs-se: de um lado, a continuidade da exploração urbana — gratuita, imprevisível, luminosa; do outro, a hipótese única de assistir a um recital integrado no 38.º Festival Internacional de Música de Órgão de Riga, com um instrumento histórico e uma intérprete consagrada. Qual o custo de oportunidade? A pergunta que qualquer economista faria. E a resposta pareceu-me quase óbvia: seria um desperdício não arriscar.

    A compra do bilhete foi, assim, uma decisão racional — e, como haveria de constatar, também sensorialmente acertada. Primeiro, porque o instrumento em causa era o órgão construído em 1884 pela célebre firma E. F. Walcker & Co., tido como o mais inovador do mundo à data da sua inauguração.

    Não sendo um entendido — muito pelo contrário —, as suas características impressionam: quatro manuais, 124 registos, 17 combinações de registos, um pedal de crescendo, 26 foles e um total de 6718 tubos. Um colosso romântico. Descubro online que mede 22 metros de altura, por 11 de largura e 10 de profundidade — e a sua imponência, mas também beleza, são de uma teatralidade solene, como se a própria arquitectura do som ali ganhasse corpo de pedra e fôlego divino.

    A sua história está ainda ligada ao próprio Franz Liszt, que terá composto o arranjo coral “Nun danket alle Gott” — “Agora agradecemos todos a Deus” — para a inauguração do instrumento.

    E por falar em Liszt, ele era um dos três compositores do programa da noite. Os outros dois: Felix Mendelssohn e Louis Vierne. Mendelssohn, prodígio alemão, foi dos primeiros a redescobrir e divulgar a obra de Bach, escrevendo música de apurada clareza e fervor protestante.

    Liszt, o virtuoso húngaro, criador do poema sinfónico, exprime na sua música para órgão um dramatismo quase litúrgico. Vierne, francês, organista titular da Notre-Dame de Paris, compôs algumas das obras mais densas, visionárias e comoventes do repertório organístico do século XX — mesmo sendo cego desde a infância.

    Quanto à intérprete, Liene Andreta Kalnciema, é natural da Letónia, mas a sua carreira está também estabelecida na Alemanha. Laureada em diversos concursos internacionais — entre eles o Petr Eben, na República Checa, e o Wadden Sea, na Dinamarca —, percorreu já salas e igrejas da Suécia, Canadá, Espanha, Bélgica e Polónia.

    No folheto não constava qualquer passagem por Portugal, apesar de termos também órgãos belíssimos, como os da Igreja de São Vicente de Fora e da Basílica da Estrela, em Lisboa. Desde 2006, é presença regular nas actividades musicais da Catedral de Riga.

    E nesta noite, embora uma pequena câmara permitisse aos espectadores acompanhar, num ecrã discreto, os movimentos firmes e silenciosos de Liene Andreta Kalnciema — mãos ágeis, pés exactos, gestos contidos —, a experiência manteve-se profundamente envolta num mistério acústico. Porque, ainda que se vislumbre a intérprete por vários pequenos ecrãs distribuídos pela nave da catedral, a música não se entrega ao olhar: impõe-se pelo espaço, pelo eco, pela vibração.

    Em todo o caso, para um neófito como eu, as imagens revelavam também algo de insólito: ao lado da organista, surgia, quase imóvel mas vigilante — embora por vezes se movesse de um lado para o outro com agilidade —, uma figura auxiliar. Uma espécie de segundo cérebro e terceiro braço, cuja função não se limitava a virar páginas, mas incluía mudar registos, accionar combinações, antecipar intenções. A música, percebemos então, é ali fruto de uma simbiose silenciosa.

    O órgão, por vezes, parece um murmúrio subterrâneo de catedrais soterradas; noutras, um exército de trombetas celestes em alvorada litúrgica; e, ainda noutros instantes, assemelha-se ao resfolegar de um titã adormecido, prestes a erguer-se em colunas de som. Escutá-lo foi como assistir a um ritual antigo, em que a matéria sonora, mais do que compreendida, é sentida com o corpo inteiro.

    Houve momentos em que o som parecia brotar do subsolo da catedral, como se cada tubo fosse uma raiz a conduzir o espírito para dentro da terra; noutros, o som erguia-se como cúpula, abraçando a nave e elevando os ouvintes até zonas sublimes da emoção. Para quem não é especialista — como é o meu caso —, valeu a experiência pela sensação de tempo suspenso e de contemplação. Não é todos os dias que se escutam, de uma só vez, três gigantes do romantismo europeu em diálogo íntimo com uma catedral de pedra e eco.

    E se a dúvida inicial era entre continuar a deambular ao ar livre ou ceder à sedução de uma hora sob um tecto sacro, a resposta veio em forma de recompensa estética. Saí da catedral com as pernas descansadas, sim, mas sobretudo com o espírito mais pleno. O preço do bilhete, afinal, foi barato para o que se ganhou: beleza, grandeza e silêncio — esse silêncio precioso depois do último acorde, quando ninguém ousa aplaudir por alguns segundos, como se o tempo, enfim, tivesse de pedir licença para voltar a avançar.

    Por vezes, vale a pena entrar para dentro das coisas. Mesmo em Riga. Mesmo com sol.

    Nota final: 4 em 5.

  • Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.

    Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.

    Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.

    Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).

    No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.

    Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.

    Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.

    Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.

    Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.

    Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.

    Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.

    O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.

    Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.

    Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”

    Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.

    Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.

    Nota final: 5 em 5.

    Fotografias: Matilde Fieschi / Everything is New

  • Velho é o Eddie the Head

    Velho é o Eddie the Head

    Na adolescência, quando os “tops” musicais ainda se viam e ouviam uma vez por semana na televisão pública, quando as rádios tinham medo do volume das guitarras e o acesso à música era mediado pelos LPs que os irmãos mais velhos conseguiam comprar com o pouco dinheiro que havia, era raro descobrir bandas fora do radar comercial.

    O meu irmão mais velho tinha os seus altares bem definidos — Genesis, Pink Floyd e Yes — e era nessa maré sinfónica que eu, já na juventude adulta, mergulhava com gosto e algum deslumbramento. Mas um meu outro irmão, esse, era devoto de outro culto: Iron Maiden. Teria eu doze ou treze anos quando chegou a casa com The Number of the Beast. Não era apenas o som. Era a capa. Era o bicho. Era o Eddie the Head. E foi, confesso, amor ao primeiro susto.

    Vieram depois outros discos, alguns com o vocalista Paul Di’Anno — antes da entrada meteórica de Bruce Dickinson — e muitos com capas tão aterradoras quanto fascinantes. Foi também nessa fase que aprendi os nomes dos músicos como quem decora santos de um altar profano: Dave Murray, o mais carismático com aquela cabeleira luminosa; Steve Harris, o comandante; Clive Burr, baterista expulso por causas tão comuns quanto trágicas no rock de então; Dennis Stratton, guitarrista de carreira breve; e Paul Di’Anno, voz crua e desregrada. Alguns já mortos. Todos, eternos.

    A minha separação dos Iron Maiden aconteceu por volta de Seventh Son of a Seventh Son, disco de 1988. A vida levava-me para outras sonoridades e os Maiden foram ficando, como ídolos guardados numa estante. Depois, era só o acaso de uma faixa no Spotify, de um vídeo no YouTube — e a constatação, sempre renovada, de que o heavy metal, bem feito, ainda me dizia qualquer coisa.

    O concerto de ontem, no MEO Arena, marcou os cinquenta anos da fundação da banda em East London. Ir a este concerto era para mim uma viagem pessoal com dois propósitos: celebrar meio século de uma banda que me acompanhou na adolescência e ver de perto a energia vital de uma banda de heavy metal com uns senhores já perto dos 70 anos — e que não estão propriamente sentados a dedilhar umas guitarradas.

    Concerto dos Iron Maiden em foto da própria banda.

    Para lá chegar, contudo, não me bastou a vontade nem a carteira de jornalista. A Prime Artists, produtora do espectáculo, optou por ignorar a legislação nacional e recusou-me a acreditação. Saiu uma deliberação da ERC, in extremis, na sexta-feira passada, mas mesmo assim, num gesto de arrogância, a ‘coisa’ só não teve consequências penais imediatas (crime de atentado à liberdade de informação e crime de desobediência) graças à intervenção diplomática — e pedagógica — de um comissário da PSP. Em todo o caso, perdi a actuação da banda de suporte, os suecos Avatar, que me pareciam promissores para se assistir, pelo que já ouvira antes.

    A resistência à entrada foi amargo, mas o primeiro impacto, já dentro da arena, foi doce: t-shirts dos Iron Maiden por todo o lado, gente de duas gerações — com cervejas… e até pipocas.

    Nova surpresa ao chegar ao local de destino: o lugar atribuído pela Prime Artists era um mimo — Balcão 2, Sector 18, Lugar J.3 — para todos os efeitos, o melhor sítio para não ver o palco. Mas, como em tudo na vida, algum improviso permite vencer a má vontade: dali saí para um ponto superior, em pé, com visão integral do altar de luz, fogo e som que é um concerto dos Iron Maiden.

    Comissário da PSP ‘conferenciando’ sobre a recusa de acreditação e as consequências criminais face à deliberação da ERC.

    Na perspectiva onde me encontrava, mesmo assim perdi a parte cénica mais espectacular, de que apenas me apercebi nas fotografias da própria banda no seu perfil do Facebook. Mas esqueçamos a produtora — que, se houvesse avaliação, levaria zero, com direito a machadada do Eddie the Head de três metros. Aquilo que interessa é que tivemos, aqui sim, um grande concerto à moda antiga: como deve ser.

    Apesar das crónicas deficiências acústicas do Meo Arena, o público ligou-se à corrente eléctrica de Harris, Dickinson & Ca., como num ritual logo à primeira música. Murders in the Rue Morgue, lançada no álbum Killers (1981) — e inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe — inaugurou a noite, precedida de um vídeo onde se revive o nascimento da banda no Cart and Horses Pub. Bruce Dickinson esteve sempre como me recordo, mesmo contando já 66 anos: viaja com a mesma facilidade entre tons graves sólidos, médios expressivos e agudos poderosos, mantendo sempre clareza e controlo técnico, acima das potentes guitarras e da omnipresente bateria.

    Os clássicos sucederam-se sem piedade: Wrathchild, Killers (com Eddie the Head em cena, ameaçador, embora me pareça hoje um adereço desnecessário), Phantom of the Opera, The Number of the Beast (a pedir melhor acústica), 2 Minutes to Midnight, Rime of the Ancient Mariner (com referências visuais ao poema de Coleridge e atmosfera épica), Run to the Hills, The Trooper, Hallowed Be Thy Name. Houve tempo para parte de maior teatralidade, com Dickinson mascarado de faraó em Powerslave, houve bandeiras a tremular com um Eddie-soldado perante a ameaça nuclear, houve Bruce numa cela elevatória.

    E houve, também, oportunidade para a apresentação de Simon Dawson, o novo baterista para substituir, pelo menos nos concertos, o já septuagenário Nicko McBrain. Foi discreto, mas conseguiu manter a pulsação do grupo ao longo de todo o concerto — talvez no lugar mais exigente fisicamente numa banda de heavy metal.

    Quando Wasted Years encerrou a noite, Dickinson pareceu sincero ao dizer que fora a “melhor noite das nossas vidas”. Terá sido retórica, mas deu para perceber que os Iron Maiden apreciam verdadeiramente Portugal. Aliás, desde o ano passado, o vocalista fez uma parceria com a Van Zeller Wine Collection para lançar um tinto do Douro, o Darkest Red, com um rótulo alusivo à banda. Depois deste concerto, uma coisa parece certa: ali, velho, só mesmo o Eddie the Head.

    Nota final: 4,5 em 5.

  • Um espectáculo em vez de um concerto

    Um espectáculo em vez de um concerto

    Perco-me na memória, o que, confesso, já não é difícil. Ela anda fraca, difusa, com os fios do passado a entrelaçarem-se nas brumas do presente. Mas julgo lembrar-me — ou talvez esteja já a confundir imagens com sonhos — dos tempos em que fui, na juventude, a concertos de estádio. Penso que um desses foi com os Genesis, já envelhecidos mas ainda imponentes, ou talvez tenha sido o Sting, não sei já bem. Em ambos os casos, no antigo Estádio da Luz. Recordo, isso sim com mais nitidez, o Nick Cave no Estádio do Dragão, em noite tripeira, como convém à sua figura gótica. Mas tudo isso foi há décadas.

    Nos últimos anos, tenho preferido os recintos mais comedidos, mais próximos do ouvido e do coração. Um concerto no Coliseu ou no Campo Pequeno sabe-me melhor do que a profusão de luzes e decibéis de um estádio. Já quase não vou a festivais. Acho que o último foi com o David Bowie no Passeio Marítimo de Alcântara em 1996 — e já nem me lembrava do ano.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    E não é apenas por pudor de idade ou cansaço auditivo: é porque, cada vez mais, o que se apresenta num estádio é um espectáculo — e não um concerto. Um estádio é uma arena de imagens, de sons preparados ao milímetro, de efeitos que hipnotizam o olhar mas nem sempre tocam a alma. E tudo isso se confirmou com os Imagine Dragons.

    Na quinta-feira, frente a 64 mil pessoas no Estádio da Luz, Dan Reynolds e os seus companheiros ofereceram o que se esperava: um evento visualmente apoteótico, musicalmente eficiente, emocionalmente polido. Mas talvez fosse essa previsibilidade que me deixou um leve sabor a indiferença, como um prato servido com mestria mas sem surpresa.

    Cheguei ligeiramente atrasado ao concerto (não acontece apenas com os jogos do Benfica), mas também não fiquei na Varanda da Luz: fiquei num assento junto ao relvado, perto do sítio onde assisti à vitória de Portugal contra a Suíça no apuramento para o Mundial de 2018. Enfim, bom lugar para ver a parafernália e os ecrãs, mas difícil de saber onde parava o Dan, que ia percorrendo o catwalk, perpendicular ao palco principal. Perdi, segundo consta, Fire in These Hills, do último álbum, e apanhei-me no meio de Thunder, um dos hits da banda de Las Vegas, nascido em 2008, que fez vibrar as bancadas, e que funcionou, claro, como grande parte do repertório do grupo: porque já está no ouvido, porque tem refrão fácil, porque tem (boa) percussão.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Como disse, pela distância e porque andei a percorrer com os olhos as bancadas, não me dava conta por onde Dan Reynolds andava, já de tronco nu, porque o homem saltava, corria, agitava os braços com uma energia quase coreografada, ao mesmo tempo que bolas insufláveis invadiam o relvado e a pirotecnia estalava. Percebia-se logo que ali não se queria dar um concerto, queria-se causar impacto — até porque, por vezes, o som distorcia. E conseguiram: Bones, Take Me to the Beach, Shots, Whatever It Takes — pelo menos estas, que consegui, com maior ou menor dificuldade e apoio, desfilaram todas, uma após outra, como faixas de um álbum de êxitos empilhados sem pausas. Já ali há pouco ou quase nada de indie ou alt rock — é quase tudo pop.

    É verdade que houve momentos de pausa emocional. Quase no final, Dan Reynolds partilhou com o público a sua história pessoal de luta contra a depressão e a ansiedade. Falou da importância da terapia, do apoio, da vida partilhada. Foi genuíno — e nessa franqueza conseguiu o que raras vezes se alcança num estádio: silêncio. Mas, sendo já recorrente nos concertos da banda, esse momento de abertura emocional começa a resvalar para um ritual quase coreografado, uma catarse repetida que, podendo ser sincera e até incentivadora, já dá sinais de déjà vu.

    Tocará isto sempre os corações menos cínicos, é certo, mas roça perigosamente os contornos do marketing emocional — aquele ponto em que a intimidade parece mais ensaiada do que vivida, e em que o apelo à empatia se confunde com uma estratégia de retenção de público. Fica a sensação de que há ali verdade, sim, mas também conveniência.

    Entretanto, houve também momentos acústicos com Next to Me e I Bet My Life, num registo mais contido e sincopado. Talvez ali se tenha ouvido o grupo com maior nitidez — talvez ali se tivesse encontrado, por breves minutos, o que antes se chamava um concerto.

    Também I’m Sorry e Shots tentaram recuperar alguma densidade musical, e não faltaram solos — ora de guitarra, ora de baixo — para cumprir o protocolo técnico. Porém, a estrutura do concerto foi sempre a mesma: subida, explosão, breve pausa, nova explosão, apoteose. A música como cenografia.

    Já perto do fim, desfilaram os maiores sucessos: Bad Liar, Radioactive, Demons e Believer, este último encerrando a noite com pirotecnia em modo épico e Dan Reynolds enrolado numa bandeira da Ucrânia — símbolo de um mundo em que a política e o entretenimento partilham o mesmo palco, mesmo quando não se diz uma palavra sobre o assunto. Houve também uma guitarra com a bandeira trans empunhada pelo baixista Ben McKee, que, podendo ser sincera, também tem algo de marketing inclusivo. Até porque os Imagine Dragons têm recebido críticas pelo facto de tocarem em países pouco recomendáveis.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Por fim, durante Radioactive, Reynolds ainda subiu à bateria para um dueto com o baterista — e ainda pensei que fosse como Phil Collins: melhor baterista do que cantor — e depois sentou-se ao piano para Demons, para acabar por correr de um lado ao outro do palco. “Amamos-vos, Lisboa”, repetiu, até à exaustão. Mas foi um amor sem encore. E aqui, confesso, reside uma das minhas maiores perplexidades: um grupo que não faz encore, mesmo depois de duas horas de actuação, falha algo essencial.

    O encore não é apenas um apêndice: é uma praxe simbólica, um agradecimento final, um jogo de fingimento que reforça a ligação com o público. Recusar esse ritual é como recusar o brinde no final do jantar. E, por causa disso, os Imagine Dragons levam meio ponto a menos nesta crítica do que estavam para apanhar.

    Nota final: 3,5 em 5.

  • Uma sacerdotisa dos fiordes (en)cantando em altar mourisco

    Uma sacerdotisa dos fiordes (en)cantando em altar mourisco

    O Campo Pequeno foi inaugurado, numa arquitectura a imitar o estilo mourisco, em 1893 para ser uma praça de corrida de touros, mas, ao invés de uma arena, transformou-se — mesmo que por breves (demasiado breves) momentos — em altar escandinavo na passada sexta-feira.

    E quem ali entrou, pés desnudados em passos de elfo e olhos de estrela, foi Aurora, uma espécie de sacerdotisa dos fiordes e das florestas encantadas, transportando, com ingenuidade e por vezes travessura, as dores do mundo. Não veio apenas cantar. Veio dizer, em tom de profecia gentil, que ainda há música capaz de sarar a linguagem — essa que já ninguém ouve — e de devolver ao palco o seu valor ancestral: o de câmara de iniciação.

    Desde o primeiro instante, com gestos que pareciam mais exorcismo do que coreografia, a norueguesa nascida em 1996 emergia, para os mais veteranos, como uma figura trans-histórica. Para quem viveu os anos oitenta e noventa, o espanto era redobrado: ali estavam todas as deusas fundidas numa só — a fragilidade orgânica de Kate Bush, o lirismo dilacerado de Sinéad O’Connor, o sussurro tribal de Enya, a excentricidade encantada de Björk, a espiritualidade de Loreena McKennitt, a braveza poética de Annie Lennox. E também David Bowie, pela sua plasticidade camaleónica, aqui já bem evidente quando canta Life on Mars (que não incluiu no Campo Pequeno). Mas tudo isso transfigurado, não por imitação, mas por reinvenção. Aurora é a sua própria linhagem.

    Inserido na promoção do seu novo álbum, What Happened to the Heart?, menos conceptual do que os anteriores, Aurora trouxe consigo uma mensagem para Lisboa, ainda que não verbalizada: a emoção não desapareceu, e a música não precisa de pirotecnia nem de outros artefactos da indústria pop, mas apenas de luz e carne, sombra e voz. E isso houve.

    E que voz! O timbre de Aurora, ao vivo, surpreende — sobretudo porque consegue algo que raramente se mantém na transição entre estúdio e palco: uma verdade vocal que não vacila. Ouvindo-a em disco, dir-se-ia tratar-se de mais uma voz bem produzida por software, encaixada num dream pop estilizado e polido. Mas bastam poucos segundos em palco para que essa impressão ceda lugar a algo mais raro: autenticidade vocal, domínio técnico e, sobretudo, uma capacidade de encarnar a canção, como se cada verso fosse, simultaneamente, lamento, encantamento e exorcismo.

    Aliás, bastaria ouvi-la nas variadíssimas versões ao vivo, disponíveis no YouTube (que vai desde isto até isto, passando por isto), que tem composto de Murder Song — essa elegia íntima à morte por amor, feita com uma beleza crua, e que deveria figurar num upgrade de Murder Ballads, curiosamente editado no ano do seu nascimento, mas com o Nick Cave remetido ao estatuto de backing vocals.

    O timbre de Aurora, embora de aparente tessitura leve e aguda, está longe de ser frágil. Pelo contrário: há nele uma firmeza cristalina, quase mineral, sem esforço. O vibrato, discreto mas natural, não é artifício — mostra-se como pulsação interna, sobretudo nas canções mais intimistas — como em The River, Exists for Love ou Invisible Wounds e, claro, em Murder Song —, porque nas produções mais ‘electrónicas’, por vezes, perdem-se esses detalhes.

    Não é o caso, porém, de canções como The Seed, que evoca uma festa pagã, onde o crescendo emocional não depende da batida nem da produção, mas do modo como a sua voz vai ganhando densidade. Ou em Runaway, talvez a sua música mais conhecida, mas não necessariamente a melhor, que se torna quase um hino à infância perdida, cantado com uma pureza que parece desafiar a lógica. No meio disto, apesar de extremamente expressiva e de preferir os gestos à dança — apesar de algumas correrias —, Aurora nunca parece estar a representar. Está, simplesmente, a ser.

    Aliás, chegou a ser desconcertante que se tenha queixado da vontade de urinar logo no início do espectáculo, ou tenha falado do seu rabo — não sendo uma artista que se queira destacar pela parte física, até por a sua beleza ser mais onírica —, ou que se tenha interrompido num repente em Invisible Wounds porque se lembrou de agradecer ao seu guarda-costas.

    Mas não há ali loucura, nem ingenuidade. Não há ali diva, nem estrela pop. Não há performer. Há uma rapariga que canta como se estivesse sozinha ou em redor de uma fogueira na tundra.

    Há em Aurora algo de paradoxal: ao mesmo tempo que nos lembra todas as deusas do passado — de Kate Bush a Sinéad O’Connor, de Enya a Annie Lennox —, ela subverte todas essas influências, criando algo que não se pode arquivar em nenhuma prateleira. Não é pop, nem folk, nem new age. Não se gosta de tudo, mas tudo é revelação — música para depois do fim do mundo.

    O público presente no Campo Peqeuno, maioritariamente jovem e feminino, com o espiritualismo e o gótico bem representados, mostrou-se grande. Cantou, gritou e até coreografou luzes com as cores da bandeira nacional. E Aurora agradeceu sempre com gentileza. No meio da sua actuação, agradeceu em português — “Muito, muito obrigada!” — não foi só um gesto de cortesia: foi a confirmação de que ela também sentiu a simbiose, embora em algumas músicas fosse preferível o silêncio e a contemplação.

    Mas ouvir em silêncio, isso já seria exigir em demasia: concertos como o que Aurora ofereceu em Novembro de 2017 na Catedral de Nidaros, quando tinha apenas 21 anos, não se fazem todos os dias. Aquilo são heresias dos deuses…

    Nota final: 5 em 5.

  • Cosmopolitismo intimista numa sala a merecer mais

    Cosmopolitismo intimista numa sala a merecer mais

    Há sempre uma sensação estranha que se nos entranha quando, diante de um palco iluminado pela maestria de um artista, percebemos que o espaço à nossa volta permanece desapropriadamente vazio. Não falo do desconforto logístico de cadeiras desocupadas, mas do vazio simbólico de uma sala como o Capitólio, apenas de 400 lugares, que não reflete a grandiosidade do que ali se está a passar.

    Este sabádo, essa sensação foi inequívoca. Dardust – a persona artística do italiano Dario Faini – apresentou-se com o seu espetáculo Urban Impressionism, e fê-lo com uma entrega rara, num concerto que, por direito e mérito próprio, merecia casa cheia, e talvez mesmo um espaço mais condizente, não apenas em número, mas sobretudo em reconhecimento.

    Dario Faini é uma das figuras mais prolíficas e discretamente influentes da música italiana contemporânea. Como compositor e produtor, assina sob o seu nome próprio sucessos que atravessam fronteiras linguísticas e emocionais. Mas embora essa sua faceta de compositor, produtor e pianista lhe granjeiem estatuto na Itália e mesmo nos circuitos de música comercial europeia, é como Dardust que Faini se transcende e, simultaneamente, se recolhe.

    Dardust não é um simples nome artístico; é uma persona cuidadosamente construída, onde habita a sua vertente mais introspectiva e experimental. Aqui, não há canções pop nem refrões simples. Há um laboratório estético e emocional onde o piano se funde com a eletrónica minimalista, criando um território de expressão que oscila entre o neoclássico e o ambiental.

    O próprio nome Dardust carrega em si essa duplicidade conceptual. Trata-se de uma fusão de referências fundamentais para o compositor: por um lado, Dar , evoca Darren Aronofsky, o cineasta norte-americano conhecido pela intensidade emocional e pelo rigor estético das suas obras, como Requiem for a Dream ou Black Swan ; por outro, Dust, numa alusão directa a Stardust , o universo de David Bowie, símbolo de uma visão cósmica, experimental e profundamente inovadora.

    A conjunção destas duas influências – o peso dramático de Aronofsky e o espírito vanguardista e espacial de Bowie – deu origem a Dardust, uma entidade artística que habita o espaço entre a solenidade da música erudita contemporânea e a liberdade imaginativa da pop mais visionária.

    A coleção Urban Impressionism, lançada no final do ano passado – que sucede a 7 (2015), Birth (2016), S.A.D. Storm and Drugs (2020) e Duality (2022) -, é o mais recente testemunho desta identidade múltipla. Trata-se de um projeto ambicioso em que Dardust propõe um ciclo de peças para piano e sintatizadores que mescla uma música neoclássica e contemporânea com influências explícitas da arquitetura urbana e do impressionismo pictórico. Cada composição é inspirada em diferentes lugares e atmosferas das cidades europeias por onde passou, desde edifícios brutalistas às periferias modernas, traduzidas em expressões musicais depuradas e tangíveis.

    Ao longo deste álbum – e da sua versão deluxe, que conta com 19 arranjos instrumentais – Dardust abandona propositadamente os elementos convencionais da música popular, mergulhando em territórios minimalistas e de vanguarda para criar um universo sonoro profundamente emocional. As composições evocam uma ampla gama de estados de espírito, do melancólico e introspectivo ao esperançoso e quase eufórico.

    A precisão quase cirúrgica da sua execução pianística, conjugada com harmonias intrincadas e delicadas camadas de cordas, cativa imediatamente o ouvinte. O álbum propriamente dito funciona como refúgio e convite à contemplação, permitindo ao espectador um afastamento da atracção do quotidiano. O espectáculo, por sua vez, aparentou-se-me mais visceral e mais techno, mas, embora menos melodioso (a sonoridade do Capitólio não ajuda), torna-se mais efusivo e contagiante e deconcertante, no bom sentido.

    De facto, no concerto no Capitólio, Dardust não se limitou à execução das peças, até pela interacção com o público (onde pontificavam muitos italianos); foi antes uma experiência imersiva, onde a música se fundiu harmonicamente com um bom jogo de luzes e samples de sons ambientais ou loops minimalistas.

    Ao piano e aos comandos dos sintetizadores, Dardust é um intérprete comedido e elegante, com uma boa sintonia e diálogo com o pública. Evita o histrionismo dos performers electrónicos habituais e opta antes por uma presença discreta, quase tímida, que sublinha a solenidade da experiência estética. Mas denota-se a mestria capaz de tanto colocar um estádio a dançar, na sua faceta mais techno, como a contemplar o sentido da vida, na sua faceta de pianista na sua faceta de pianista que esculpe silêncios e melodias com as soluções de uma arte da emoção. Aliás, o seu toque ao piano, aparentemente minimalista, é preciso, mas nunca frio. Cada nota parece medida e fortemente intencional, como se cada acorde fosse um ato de comunicação direta com o íntimo do ouvinte.

    A acústica do Capitólio, embora não seja ideal para a transparência das camadas eletrónicas, foi suficiente para que se mantivesse a clareza das diferentes linhas melódicas. Mas a grande dissonância da noite esteve na sala: demasiadas cadeiras vazias, um eco de indiferença que não deveria ter lugar quando se apresenta uma obra desta natureza. Não por vaidade do artista, mas por uma questão de justiça: Urban Impressionism é uma proposta séria, desenvolvida, que reconcilia a música contemporânea com uma dimensão emocional acessível sem ser simplista.

    Dardust continua, assim, a ser um segredo resguardado – um artista que trilha um caminho entre o pop que escreve para outros e a música erudita que assume para si. Mas quem esteve no Capitólio sabe que testemunhou um momento raro: um espectáculo de maturidade e beleza contida, que permanecerá longamente na memória.

    Nota final: 4,5 em 5.

    Fotos: © Everything is New