Categoria: Humor

  • Deliberação (não ratificada mas eventualmente já meditada) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Deliberação (não ratificada mas eventualmente já meditada) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social


    DELIBERAÇÃO DO CONSELHO REGULADOR DA ENTIDADE REGULADORA PARA A COMUNICAÇÃO SOCIAL (ERC) SOBRE O TEXTO PUBLICADO NO PÁGINA UM INTITULADO “INSTAR, A ARTE DE CONDICIONAR SEM OUSAR PROIBIR”

    O Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), reunido em sessão extraordinária, tomou conhecimento da publicação no jornal digital PÁGINA UM do artigo intitulado “INSTAR, A ARTE DE CONDICIONAR SEM OUSAR PROIBIR”, cujo conteúdo incide sobre a alegada influência indireta das entidades reguladoras na conformação do discurso jornalístico.

    Considerando que:

    • A liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental consagrado no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, devendo ser exercido com respeito pelos princípios do pluralismo e da responsabilidade social da comunicação;
    • A ERC tem o dever de assegurar o respeito pelas normas aplicáveis à comunicação social, nomeadamente as estabelecidas na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro (Lei da ERC), designadamente no seu artigo 7.º, n.º 1, onde se estipula que esta Entidade “garante o exercício dos direitos à liberdade de expressão e de informação, assegurando a existência de um espaço público livre e plural”;
    • A atuação da ERC pauta-se pelos princípios da proporcionalidade e imparcialidade, conforme previsto no artigo 3.º da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro (Lei de Imprensa), e não interfere com a autonomia editorial dos órgãos de comunicação social;
    • O direito de crítica às entidades públicas é reconhecido como legítimo no quadro de uma sociedade democrática, mas deve ser exercido com respeito pela veracidade dos factos e pelo rigor informativo, conforme decorre do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99, de 13 de janeiro.

    Assim, o Conselho Regulador decidiu avaliar devidamente este texto da autoria de Brás Cubas, nos seguintes termos:

    1. Sobre a natureza do texto

    O artigo em questão assenta numa estratégia retórica que recorre ao uso repetitivo e ostensivo do verbo “instar”, procurando estabelecer um paralelismo entre a sua construção discursiva e a atuação das entidades reguladoras. Ainda que esta técnica seja reconhecível como um exercício estilístico legítimo, poderá, em certos contextos, induzir interpretações erróneas sobre o papel da ERC, nomeadamente no que respeita à sua missão reguladora.

    2. Sobre a referência à ERC

    O artigo sugere, de forma irónica e indireta, que a ERC exerce uma pressão subliminar sobre os órgãos de comunicação social, ao apresentar a regulação como um processo de “instigação gradual”, “sussurros paternais” e “suaves advertências”. Esta construção narrativa pode contribuir para a disseminação de uma perceção imprecisa sobre o funcionamento da regulação dos media, na medida em que a ERC não condiciona, nem interfere no conteúdo editorial, limitando-se a garantir o cumprimento das normas de transparência e responsabilidade nos termos da Lei da ERC.

    3. Sobre a impossibilidade de notificação do autor

    Em cumprimento do princípio do contraditório, a ERC procedeu a diligências para notificar o autor do artigo em questão, o senhor Brás Cubas, de modo a garantir o dever e direito de esclarecimento sobre os conteúdos publicados. Contudo, não foi possível concretizar a notificação, uma vez que o autor se encontra em parte incerta, facto que inviabilizou um cabal exercício do direito e do dever no âmbito deste procedimento.

    4. Sobre a necessidade de esclarecimento público

    Sem prejuízo da liberdade editorial do PÁGINA UM, e reconhecendo que a ironia e a sátira são formas legítimas de expressão no discurso público, a ERC insta a direção editorial do referido jornal a não instar os seus leitores a acreditar que esta Entidade se dedica a instar jornalistas a alinharem com diretrizes inexistentes. Seria recomendável, no espírito de um debate aberto e responsável, que ficasse claro que a ERC não insta, apenas orienta, e que o instar, enquanto conceito, não deve ser instado a significar mais do que aquilo que legalmente significa.

    Em face do exposto, o Conselho Regulador, no exercício das suas competências previstas na Lei da ERC, delibera:

    a) instar o PÁGINA UM a instar-se na responsabilidade editorial de não instar falsamente a ERC a instar aquilo que não instou nem instará.

    b) Insta-se, ademais, os demais órgãos de comunicação social a observarem com atenção o uso do verbo “instar”, não instando significados equívocos que possam instar no público uma perceção distorcida sobre o papel desta Entidade.

    c) A ERC, por seu lado, insta-se a si própria a continuar a instar dentro dos limites do que pode e deve instar, sem instar em excesso, mas sem deixar de instar quando necessário, garantindo, assim, um equilíbrio regulador onde o instar jamais se confunda com instigações indevidas.

    d) Para que não restem dúvidas, este Conselho Regulador insta formalmente a ERC a instar-se, se necessário for, para que não inste além do que se deve instar, mas que não deixe de instar sempre que tal instância se revele imprescindível para o correto funcionamento da ordem comunicacional, garantindo sempre que qualquer referência à atividade reguladora seja feita com objetividade e respeito pela verdade material.

    e) Por fim, considerando que o sarcasmo e a ironia, ainda que legítimos, podem ser mal interpretados, insta-se Brás Cubas, e os demais cómicos, a moderar o seu tom, evitando formulações que possam instar interpretações indevidas.

    Lisboa, aos 14 dias do mês de Fevereiro de 2025

    O Conselho Regulador (não oficial) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social

  • ‘Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me’

    ‘Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me’

    Com o espírito irreverente e mordaz de Brás Cubas, esta entrevista imaginária com o Pai Natal é um mergulho numa sátira mordaz ao estado do mundo. Num diálogo que oscila entre o humor ácido e a crítica social, o velho símbolo natalício revela uma visão cada vez mais desanimada sobre o presente e o futuro, mas sem nunca perder a centelha de esperança que carrega no seu mítico saco, excepto a partir de momentos em que lhe falam dos seus conflitos em terras eslavas. A partir de um optimismo, embora cauteloso, garantindo que o seu saco está cheio – nem que seja de esperança –, rapidamente a conversa descamba…. Eis uma conversa que desafia o riso e o desconforto, expondo verdades universais sob o véu da sátira. Uma leitura natalícia para quem ainda acredita – ou quer acreditar – na magia da bondade humana.


    BRÁS CUBASMeu caro Pai Natal, que honra tê-lo comigo. Comecemos pelo básico: o saco ainda vem cheio de presentes este ano, ou as coisas andam escassas por conta da inflação?

    PAI NATAL – O saco está sempre cheio, Brás Cubas, nem que seja de esperança! Ainda há quem acredite que o espírito natalício é mais forte do que qualquer crise. Afinal, há sempre algo que não se compra: amor, saúde, união…

    Amor e saúde? Em 2024? Confesse, não trouxe desses presentes para o pessoal do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, pois não?

    Ah, Brás, eu bem tento, mas a lista de espera para receber saúde é maior do que a minha lista de meninos bons! Mas acredito que com diálogo e boa vontade, as coisas se resolverão.

    Boa vontade? Essa gente na política portuguesa acha que é coisa que se embrulha? Diga-me, no seu trenó, já viu mais promessas não cumpridas do que crianças a dormir à meia-noite, certo?

    Bom, promessas são como flocos de neve: bonitas de longe, mas derretem depressa. Ainda assim, prefiro acreditar que há políticos que querem fazer o bem… Não me peça nomes, que estou cansado de decorar listas.

    Conversa imaginária entre Brás Cubas e o Pai Natal para o PÁGINA UM,

    Passemos a temas internacionais. Tem visitado Israel e a Palestina nestes dois últimos anos? Sei que não haverá muitos cristãos que o acolham. Além disso, não deve haver muitos motivos para as crianças brincarem, não é?

    Ah, Brás, essa é uma das paragens mais difíceis. Levo para lá alguns brinquedos, sim, mas também muitas orações. Infelizmente, cada ano que passa, parece que entrego mais esperanças que se quebram. Já começo a achar que o meu saco anda cheio de ilusões e não de soluções…

    E sobre a guerra na Ucrânia?

    Não me quero pronunciar.

    Ouvi dizer que, nos últimos anos, anda em guerras por terras eslavas com o Ded Moroz, que já conseguiu expulsar de partes da Ucrânia. Tem planos para invadir a Rússia para o expulsar daí também?

    A conversa estava a correr tão bem, Brás…

    Certo. Como estamos em espírito natalício, não abordaremos esses seus pecadilhos beligerantes… Falemos então dos outros políticos que lutam mais pela guerra do que pela paz. Que lhes tem para oferecer?

    Ai, ai… Carvão” E não chegaria para tanta gente. Entre líderes que jogam à roleta com vidas humanas e países que fazem discursos e vendem armas ao mesmo tempo, quem sobra são os inocentes. Aliás, ando com vontade de trocar o trenó por um tanque!

    Vamos então ao ambiente, que é tema quente. O Ártico, a sua casa, continua a derreter? Mas gostava também de lhe perguntar o que sente ao ver os políticos portugueses preocupados com o plástico nos areais, mas esquecidos do betão nas falésias?

    Ah, Brás… Até as renas já me pedem um plano de contingência! Mas a hipocrisia também é muita. Portugal, tal como outros países, gosta de dar umas voltas às políticas ambientais, mas aquilo que gostam é de plantar árvores em conferências e deixar depois as florestas arderem…. Enquanto isso, temo que as minhas renas precisem de aulas de natação nos próximos tempos…

    Pai Natal em luta contra Ded Moroz, algures em terras russas.

    Falta de educação, é o que é… Mas falemos então do ensino em Portugal. Vai entregar livros escolares gratuitos ou não acha que seria mais prioritário ensinar mais ética política às crianças?

    Os livros gratuitos são uma ideia bonita, mas ética política? Ai, Brás, essa é uma utopia que nem eu consigo fabricar na oficina. Entre uma criança que acredita em mim e um deputado que acredita no povo, prefiro a primeira.

    Falando em acreditar: acha que o Almirante Gouveia e Melo faz bem em acreditar que vai ser o novo Presidente da República em 2026?

    Brás, ó pá, estás a querer que eu entre na política portuguesa de vez? Olha, se o Gouveia e Melo quiser ser Presidente, que me leve as renas a tiracolo. Ao menos são honestas e sabem trabalhar em equipa, não se importando com a falta de ética.

    Será ele um Marcelo Rebelo de Sousa ao contrário?

    Credo! Eu não quero chamar o diabo para escolhas. Este tipo pareceu-me sempre um duende hiperactivo: sempre em todo o lado, sempre a apertar mãos, sempre a dar abraços e sempre a distribuir simpatia até à exaustão. Não dele, mas de quem o recebia. Não deve haver português que não tenha uma selfie com ele… Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me.

    E a Justiça? Com tantas operações policiais, mas depois tudo a ficar em banho-maria, não acha que daqui a nada vai haver mais prescrições do que quilos de bacalhau na Consoada?

    Justiça em Portugal? Oh, Brás, aqui vou ser sincero. A justiça portuguesa anda tão lenta que as renas já se oferecem para puxar o sistema judicial. Mas só se for mesmo, mesmo urgente, porque temos as férias judiciais a respeitar, claro.

    Pai Natal, está-me a parecer afinal desanimado. Começou nesta entrevista a falar-me do seu saco estar cheio de esperança… Daqui a nada ainda me diz que os portugueses nem têm espírito natalício, que é tudo negócio

    Brás, o português tem espírito natalício… para sacar o décimo terceiro mês, que é até o décimo quarto salário… e até à fatura da luz de Janeiro. Aí, transforma-se num pequeno Grinch a resmungar sobre subsídios e impostos.

    Agora falemos em aspectos mais prosaicos. Sei que tem sido pressionado por associações de defesa dos animais por causa da exploração das renas. Já equacionou pedir apoio do Estado português para eletrificar o trenó?

    Apoio? Ah, Brás, até parece que não me conhece! Se pedisse apoio ao Estado, ainda estava a preencher formulários quando o Natal de 2030 chegasse.

    Estou a ficar preocupado com o rumo desta entrevista. Acho que será melhor ficarmos por aqui… Mas antes de terminar: se pudesse dar um presente ao Mundo, qual seria?

    Ah, meu caro… Antes eu diria “Paz e Amor”. Agora? Talvez um bom par de chapadas bem dadas em certos líderes mundiais. Que tal?

    Pai Natal, atrevo-me a perguntar: está a ficar com mau feitio?

    E quem não ficaria, Brás? Ano após ano a mesma ladainha: promessas não cumpridas, injustiças que se multiplicam, gente que só quer enganar o outro. Quer saber? Já nem saco trago no próximo ano! Dou-lhes é um… Bom, deixa… Que vá tudo pastar no deserto, incluindo os meus duendes! Raios que partam todos.


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  • Maria Alice entra em cena: Estremoz suspira

    Maria Alice entra em cena: Estremoz suspira

    A

    CARTAS DE AMOR

    Em Julho e Agosto de 2023

    Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

    Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

    CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

    UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

    Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


    O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

    Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

    in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


    Calminha, que eu sou uma mulher bonita.

    Bonita e sedutora, com este meu ar experiente de quem está quase a fazer quarenta anos e não precisa de nenhum homem em casa.

    Esta do “ar experiente” pode ser pouco mais do que um mito, mas olhem que é um mito muito bem alimentado. O António José já nos contou, a mim e às minhas amigas de Montréal que lá foram jantar a casa numa festa de despedida, como ele e os coleguinhas do antigo Liceu de Estremoz se sentavam ao alto da escada, do lado de dentro do portão, só mesmo para deitarem olhares sôfregos às mulheres maduras, de cintura fininha e bunda grande e tudo aquilo posto sabiamente em evidência, que iam cruzando o passeio do lado de fora. Babávamo-nos todos, recordou ele entre os nossos risos. Só de imaginar tudo o que elas saberiam. Tudo o que elas gostariam de fazer-nos. Tudo o que elas poderiam ensinar-nos. Ah, recordava o meu marido enquanto acabava de beber mais uma Dos Equis[1] botella way[2]. Que diferente que estar com elas seria de estar com as nossas namoradinhas, só podia.

    E eu sei que é assim que estes rústicos estão a olhar para mim agora.

    Vai ali a mulher do Cortafogos e mais o cão, e a mulher enche completamente o olho a um gajo, e ele está fora mas vê-se logo que ela não precisa de nenhum homem em casa.

    Não preciso de um gajo nem para vigiar as obras, nem para evitar que se atirem a mim. Nem sequer para verificar os materiais em falta, encomendá-los pelo telefone na Casa de Ferragens, mandar vir com eles se descubro a mínima tentativa de me cobrarem dinheiro a mais, despedir um electricista alarve e contratar outro mais decente, e mais um milhar destes pequenos expedientes que, na cabeça deles, competem mas é aos homens, e nunca na vida às mulheres.

    E muito menos às mulheres bonitas, de shortinho curto e criativo, e de top apertadinho e sugestivo. É Verão, que diabo. E estamos no campo, meus senhores. Trago o meu capelo escuro caído a cintilar pelas costas abaixo, ou então apanhado numa banana perfeita, com as duas madeixas douradas na franja que fazem parte da minha griffe. Quem vê passar a Maria Alice nunca vai esquecer o sorriso rasgado e os lábios volumosos, a voz de quem nunca tem medo, as sandálias romanas de plataforma alta atadas pela perna acima, o Leão da Rodésia chamado Júnior que vem sempre à trela e que parece entender todos os seus comandos[3], ou a tatuagem no tornozelo que a Guapa esmigalhou e tem agora uma prótese complicadíssima.

    Desde os dezoito anos que eu sei que estes homens são todos uns alarves, portanto nada no comportamento deles deveria ser motivo de surpresa. Nessa altura, por mera coincidência, namorei um brasonado qualquer com uma quinta enorme aqui a dois passos e fui vítima dos assédios mais parvos deste mundo pela primeira vez na minha vida. Uns tempos mais tarde, aquando do meu primeiro casamento, e também pela mais inacreditável das meras coincidências, passei em Estremoz a minha noite de núpcias e bastou vir sozinha à rua fumar um cigarro para um transeunte aqui da terra achar necessário vir a correr defender-me de dois atacantes podres de bêbedos que zumbiam à minha volta como melgas, em círculos cada vez mais apertados.

    Esse transeunte era o António José, ainda fomos beber umas cervejas juntos depois do incidente numa noite tórrida de um Verão como esta, e foi assim, por total coincidência, que conheci o meu segundo marido: no entretanto, o primeiro, satisfeito o seu prazer e sem querer saber do meu, dormia a sono solto e ressonava como uma locomotiva.

    Mais tarde, muito mais tarde, reencontrei o António José nos corredores de Bruxelas; e as minhas imensas e intensas infidelidades dessa semana deram uma ajuda substancial na recta final do meu divórcio, que andava para ali a arrastar inutilmente os pés e a arranjar grandes agruras de parte a parte.

    Quando reencontrei Estremoz já feita importantíssima estratega da engenharia electrotécnica, agora já pela mão do António José e com um passado cheio de episódios inenarráveis atrás de mim, a primeira coisa que me arrepiou toda – mas arrepiou mesmo, do fundo da minha alma à superfície da minha pele – foi que nada disto tinha mudado nada. É verdade que existe o famoso Hotel Alentejano, o da meia-pensão por 25 Euros mesmo no Largo do Rossio. A única diferença é que o antigo Alentejano foi vendido a uns estrangeiros que querem lá fazer não sei o quê e acreditam que vão ganhar nisso também uma pipa de massa, e que esses novos proprietários mudaram o hotel para outra esquina da rua, bastante mais agradável e toda ela à sombra durante o Verão, de onde percebemos que de sacar turistas percebem eles. O António José aluga ocasionalmente a dois ou três grupos de camones que vêm com um propósito específico, e os dois Hotel Alentejano, agora já ambos munidos de casas de banho privativas nos quartos e árvores da borracha ou cactos colossais a crescerem nas varandas decorativas dos quartos, enquadradas pelo toque horário dos sinos que dobram a finados – porque, como há muito poucos homens em idade de morrer, o que há de compensação em velhotes, sofra para quase todos os dias.

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    Ao contrário de Portalegre, ou de Évora, que se encheram de arredores infernais, de aldeamentos novos com prédios altos, e de centros comerciais cheios de curiosidades que destruíram com o que sobrava ainda da sua beleza, Estremoz tem vivido dentro de uma tal inércia que preservou todo o seu romantismo de origem recusando-se a construir infra-estruturas novas. Eu vou visitar tudo outra vez com a mãe do António José, com os braços outra vez carregados de ramos de flores, e não consigo não voltar a ficar comovida.

    Esta cidade é linda, linda, linda.

    A belíssima casa de família que o nosso casal herdou da família do meu marido, quase escondida pela exuberância da vegetação ao fundo de uma daquelas ruas cheias de laranjeiras de ambos os lados, também é linda. Sempre sonhámos reformar-nos aqui, mas de repente tivemos de apressar tudo para enriquecer mais depressa: ofereceram-lhe uma comissão de serviço de três anos em Bruxelas, onde trabalhará como funcionário da Tradução Simultânea ao serviço das reuniões secretas da União Europeia. É uma longa ausência, mas ambos esperamos ganhar imenso dinheiro com ela. Entretanto, ele poderá vir visitar-me no Natal, nos feriados de Junho, nas férias grandes a que tem direito – e enfim, falando em bom português, sempre que muito bem lhe apetecer.

    Isto é a parte mais fácil, porque o que há há mais na vida é efemérides.

    Entretanto, deixa-os olharem para mim à vontade. Quanto mais o olhar deles se parecer com um olhar de carneiro-mal-morto porque não sabem fazer outro, mais tenderão a obedecer às directivas do chefe que viveu muito tempo do estrangeiro casado com um pancadão de uma mulher.

    Ele é que até parece mesmo que foi de propósito, que deixou a mulher em Estremoz e abalou para Bruxelas.

    Isto entende-se?


    Leia também o Episódio 2 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia


    [1] DOS EQUIS: literalmente, 2X. Marca de cerveja mexicana muito apreciada na América do Norte.

    [2] BOTELLA WAY: literalmente, À MANEIRA GARRAFA. Trocadilho mexicano bem-humorado, e hoje muito difundido na América do Norte, significando BEBER PELA GARRAFA.

    [3] Claro que entende. Treinei-o para isso mesmo, quando ainda estávamos no Québèc. Desde que cheguei a Estremoz, com o António José já em Bruxelas no gabinete secreto da tradução simultânea, já precisei de dizer duas vezes ao Júnior, sem levantar de todo a voz, “MAU”. Ele salta-lhes às goelas com os dentes todos de fora e o ridgeback todo eriçado, uma coisa linda de ver. Esses dois senhores desapareceram logo escada abaixo. O Júnior passou o resto da tarde a moer-me o juízo para eu ir abrir-lhe o portutão. Se calhar queria ver se ainda conseguia encontrar-lhes o rasto para conseguir chaciná-los.