Categoria: Hora Política

  • ‘A Segurança Social é um esquema em pirâmide puro, não tem sustentabilidade a longo prazo’

    ‘A Segurança Social é um esquema em pirâmide puro, não tem sustentabilidade a longo prazo’

    O Partido Unido dos Reformados e Pensionistas, fundado em Julho de 2015, está em profunda transformação. Rui Lima, gestor, 38 anos, é presidente do PURP desde Abril de 2023. O número dois do partido é Pedro Girão, médico anestesista. Ambos tiveram um papel na pandemia, tendo sido vozes na defesa da democracia, dos direitos civis e dos direitos humanos e também falando em prol de medidas baseadas apenas na evidência científica – e não na política. O tempo deu-lhes razão. Nesta entrevista, Rui Lima fala dos objectivos do partido, cujo futuro está nas mãos do Tribunal Constitucional, o qual está a analisar os novos estatutos, bem como uma nova denominação – ATUA – e um novo símbolo. Esta é a sétima entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.



    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE RUI LIMA, PRESIDENTE DO PARTIDO UNIDO DOS REFORMADOS E PENSIONISTAS (PURP), CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    O Partido Unido dos Reformados e Pensionistas, conhecido pela sigla PURP, está em transformação. Este é um partido que foi criado em Julho de 2015, e que teve, em Abril de 2023, a eleição de novos órgãos sociais. Teve também, mais recentemente, em Outubro, num Congresso extraordinário, onde foram aprovadas muitas alterações que estão agora a aguardar aprovação por parte do Tribunal Constitucional. Que transformação é esta? É um partido novo que está a nascer?

    Sim, exatamente. O PURP tinha um objeto, que era relativamente aos reformados e aos pensionistas, que é importantíssimo e cada vez mais é importante. Aliás, é a base de um dos problemas que achamos que tem que ser discutido na praça pública e é preciso ação. Porque, daí, nasce realmente um problema e outro conjunto de problemas que achamos que são graves, que se passam, hoje, não só na sociedade portuguesa, infelizmente, mas internacional. Mas vivemos aqui em Portugal, temos de atuar naquilo que é a nossa sociedade como membros ativos da sociedade. São problemas sérios que, infelizmente, de todos os partidos que têm assento parlamentar ou até que não têm assento parlamentar, não abordam, não tocam, porque é tabu, por não quererem entrar nesse tipo de debate, porque são assuntos muito “populistas” ou assuntos em torno dos quais existe já uma narrativa na cabeça das pessoas que é muito difícil de sair, neste momento. Acreditamos que são de elevada prioridade e que é preciso haver um grupo de cidadãos como é este o caso – somos um grupo de cidadãos, não temos qualquer ligação política ou qualquer carreira política no passado –, mas um grupo de cidadãos que quer, realmente, tocar em pontos que achamos que são muito importantes e que, infelizmente, ninguém fala.

    Já nos conhecíamos, nomeadamente de debates sobre democracia e direitos individuais, direitos civis, direitos humanos. Há aqui pontos que o vosso partido quer endereçar. Em 15 de Outubro, no vosso congresso extraordinário, aprovaram, na ordem de trabalhos, propostas de alteração dos estatutos. Também a alteração da declaração de princípios e também uma proposta para um novo nome e símbolo, propostas que foram, de resto, aprovadas e submetidas ao Tribunal Constitucional. O que é que é este novo partido, o que vai defender? É de esquerda, de direita, vai defender os pensionistas, vai também defender os jovens?

    Pegando no tema da esquerda e da direita, acho que esse é um tema, hoje, já completamente desactualizado. Não somos nem de esquerda nem de direita. Uma coisa também posso garantir: não somos socialistas, nem populistas, nem nacionalistas, portanto, não temos essa posição. Queremos tocar em temas que são prementes, temas que estão ligados ao peso elevado que o Estado detém sobre as nossas… E queremos tornar num partido que, nos vários temas, incluindo, por exemplo, os temas das pensões e daquilo que é o sistema de Segurança Social actual, e outros temas, em que [se] dá autonomia às pessoas e liberdade às pessoas. É um partido centrado na liberdade individual das pessoas. Nos últimos anos –  isso tem acontecido cada vez mais – vemos cada vez mais esses direitos, liberdades e garantias serem violados, constantemente.

    É um partido que tem aqui um cariz muito vincado em termos de ser composto e ser liderado por cidadãos, ou seja, sem ligação à política. Tem novos órgãos sociais, incluindo tu próprio.

    Posso falar de mim e, neste caso, dos outros órgãos… Ninguém teve uma carreira política. Estamos a falar de pessoas como eu, que sou gestor. Estamos a falar de pessoas que são, por exemplo, um médico, ou pessoas comuns, que têm funções normais do dia-a-dia. Como a maioria de nós, portugueses, queremos tocar realmente em pontos e achamos que a sociedade está muito passiva e queremos tentar mudar isso. Queremos que as pessoas comecem a tocar em temas que achamos prementes e queremos mostrar isso através do facto – e acho que é importante – de ter pessoas comuns, pessoas da sociedade que acham que tem que se fazer alguma coisa e que precisamos de tocar em temas que são urgentes.

    Mas qual é o português que se mete na política, hoje? É preciso ter algum tipo de coragem ou um misto de loucura, digamos assim, para se meter na política. O que é que leva um Rui Lima… E quem é o Rui Lima?

    Sou um cidadão comum. Não sou, nunca tive, nem tenho ambição política, portanto não tenho passado político. Tenho o meu trabalho, tenho o meu negócio, tenho as minhas coisas, dedico um tempo da minha vida à parte social, pelo simples facto de achar que há temas, como estes que vamos abordar, que ninguém aborda. E, hoje, é muito difícil – então na política – ter uma atividade cívica. Porque está tudo tão embrenhado já num poder que está instalado, em que são sempre as mesmas pessoas, são sempre os mesmos, que as pessoas já desistiram, em parte. E é isso que temos de tentar mudar ao longo do tempo. As pessoas já desistiram de ter uma voz ativa. Já assistimos a entrevistas a pessoas na televisão ou nas redes sociais a dizer que isso já é um problema das gerações futuras. E “que eu não vou conseguir fazer nada”. É a atitude da maior parte das pessoas, hoje. E “eu sou mais um, no meio deste emaranhado de pessoas, e não vou conseguir fazer nada, não vou mudar nada”. E, se todos pensarmos assim, realmente – e essa é que é a realidade actual –, estamos entregues a um conjunto de pessoas. Estamos entregues a uma elite que domina e temos de continuar a cada vez a pagar mais impostos, cada vez mais a ver as nossas liberdades e as nossas garantias a serem violadas constante. E olhamos para o futuro e vemos as gerações futuras, ou a terem de ir lá para fora, porque não veem futuro, não veem oportunidades. Os portugueses estão estagnados a nível de rendimentos e ao nível de crescimento, há décadas. Já estamos a falar de décadas, estamos a falar nos últimos 20 anos, Portugal não cresce, tem um crescimento residual. Estamos a ser ultrapassados por vários países da Europa, mesmo com a Europa a ter um conjunto enorme de problemas. E isto tem sido uma constante ao longo do tempo.

    Aliás, numa entrevista ao PÁGINA UM, Nuno Palma, economista e professor na Universidade de Manchester, aconselha os jovens a votarem com os pés, a saírem do país, porque o país não lhes vai dar nada, nenhum futuro decente. Acreditas que estes pequenos partidos de cidadãos, em Portugal, podem ainda fazer a diferença? Podem ainda causar a mudança ou criar aqui uma transformação do país?

    Podem, mas temos que sair um bocadinho dentro do habitual, temos que começar a falar de temas que não são populares, mas que precisam de ser mexidos. Um deles, que afeta os jovens, indirectamente, é o sistema da Segurança Social actual, ou seja, há para os reformados. Actualmente, já é mau porque estamos … O nosso sistema de Segurança Social, é um esquema em pirâmide puro, não tem sustentabilidade a longo prazo. E ainda conseguimos viver porque ainda temos uma grande fatia da população que está a contribuir ainda para a Segurança Social. Nos próximos 20 anos vamos ter o grande bolo da população a reformar-se. Vamos ter um problema, vamos ter um problema grave para essas pessoas que contribuíram. O que vão fazer? Não [se] tem outra hipótese: é aumentar impostos, adiar a idade da reforma ou cortar-lhes a reforma. E os jovens vão viver presos para sustentar uma geração e, depois, no futuro, eles próprios não vão usufruir de nada disso. É um exemplo de um dos temas que ninguém quer tocar, mas que é algo que nos vai explodir na cara mais tarde ou mais cedo, aos poucos. Não pode não ser uma explosão logo imediata, mas vai escravizando a sociedade para um problema futuro que, se não for discutido e se não pensarmos noutra saída, este sistema habitual… Temos um problema gravíssimo para as gerações futuras.

    Ou seja, não está a ser visto o país numa lógica de médio e longo prazo de planeamento, mas sim, apenas está a tocar-se tudo “pela rama”, naquilo que é o curto prazo e a gerir sempre o país um bocadinho nessa base.

    Em todos os temas, seja na Segurança Social, especialmente neste, que tem efeito a longo prazo, só se olha a curto prazo. Ninguém quer olhar, ninguém quer tocar neste tema, neste problema. É um problema que vamos ter. Os reformados actuais vão ter esse problema, mas os futuros reformados e os jovens vão ter um problema gravíssimo pela frente. Vão ser escravos desse sistema. E a saída disto vai ser muito difícil e quanto mais se adiar, quanto mais tempo passar, estamos a avolumar. Já está um lixo enorme debaixo da carpete e vai-se avolumar cada vez mais.

    Ou seja, o país tem vivido um bocadinho a “apagar fogos” e tem de deixar de ser esse tipo de país.

    O nosso grande problema é esse. Só se olha para jusante. Só se olha para o problema quando estamos ali, quando o rio já está no fim. Quando o problema é muito anterior. Quando não se não se toca nos problemas … Note-se, andamos sempre a apagar fogos. Os outros países da Europa também vão pelo mesmo caminho. Portugal não é único. Uns mais tarde, outros mais cedo, mas nós é que vamos sempre a correr atrás do problema. Vamos ter aqui, obviamente, um problema grave na Saúde, na Segurança Social… Vamos ter, mais tarde ou mais cedo, um problema grave e, se não fizermos nada, vai ser pior para todos.

    Voltando aqui ao partido, não estão a concorrer às eleições legislativas. Têm planos para o futuro? Qual o novo nome do partido e qual é o símbolo?

    É difícil mostrar por rádio [podcast], obviamente, mas tem a ver com acção. E o nosso objetivo é sensibilizar os portugueses, em geral. Podemos ter uma voz ativa, todos. O insucesso é sempre garantido, portanto, temos de fazer com que tudo seja um pequeno ou grande sucesso. E achamos que é necessária a acção na mão das pessoas e dar autonomia às pessoas para terem uma voz activa, que é isso que nos falta, hoje. Queremos que as pessoas, em todas as áreas, na acção cívica política, seja o que for, que podem ter uma voz activa novamente e não ficarem dependentes daquilo que é o status quo e só um conjunto de pessoas que decide sobre nós e ficamos remetidos… “Olha, eu não consigo fazer nada”. É isso que queremos.

    Mudar, meter a “mão na massa” não é só votar. Haver um envolvimento maior dos portugueses naquilo que é a acção cívica, mas também política.

    Exatamente. E haver debate. E esse é o papel dos media e da comunicação social que, infelizmente, passou a ser … Porque é financiado [com apoios, parcerias comerciais e publicidade estatal] pelo próprio Estado. E o Estado mete a mão na naquilo que é a comunicação social, o que é um perigo e é algo que tem de acabar. Mas tem um papel fundamental de pôr em debate e não ser simplesmente uma comunicação social copy-paste uns dos outros. Sou muito crítico [sobre] o atual estado da comunicação social. É uma comunicação social de agência e de copy-paste uns dos outros, neste momento. Há outros perigos que isso traz: há uma narrativa, há um tema, e todos copiam. É tudo igual. E, mesmo que às vezes possa haver ideias que são incómodas, têm de se dar voz a essas ideias e também ao contraditório, para se poder também desmanchar essas ideias. Não é através da censura ou fingir que esses temas não existem.

    Até pelos perigos de desinformação. Porque, quando há um órgão de comunicação social a espalhar desinformação ou notícias falsas, e todos os outros passam essas notícias falsas e essa desinformação, passam a ser dadas como verdadeiras e não são. Há também há esse risco. Como jornalista, tenho observado isso. Mas, voltando à questão do partido: quais são os objetivos? Quando é que o ATUA vai concorrer a eleições? Estão à espera de haver uma resposta do Tribunal Constitucional?

    Estamos. Acho que, nessa altura, será o ideal. Porque, aí, já podemos publicar tudo, os princípios. Acho que as coisas têm que ser bem feitas, a seu tempo. Infelizmente, não foi a tempo das legislativas, é impossível.  É preferível fazer as coisas bem feitas, do que tudo atabalhoado. Mas, assim que houver oportunidade, e assim que estiver aprovado, penso que aí é a altura ideal para se começar a divulgar mais amplamente os objetivos. Até lá, queremos ter as coisas já aprovadas e publicadas para, depois, começar a fazer a nossa comunicação.

    Há alguma perspetiva? Qual o ponto de situação relativamente a uma resposta do Tribunal Constitucional?

    Como é algo que depende do Tribunal, tudo depende do tempo de resposta do próprio Tribunal, que pode ser amanhã, como pode ser daqui a uns meses. É muito difícil dar datas. Depois disso, então as pessoas e todos ligados ao partido podem ter o plano para comunicar e lançar e concorrer a eleições. Até lá, é sempre mais difícil, obviamente. Primeiro, tem de ter esta parte [concluída], é o primeiro passo. Tem de aprovada, obviamente. Neste momento, ainda está numa fase muito, muito embrionária.

    Pedro Girão, médico e vice-presidente do (ainda) PURP, futuramente ATUA. Foi em Abril de 2023 que foram eleitos os novos órgãos sociais do partido, que conta com Bruno Monarca como secretário-geral.
    (Foto capturada a partir de vídeo da Plataforma Cívica Cidadania XXI)

    Tens defendido, sobretudo desde 2020, os direitos humanos, os direitos civis, a democracia. Porque os países ocidentais, incluindo Portugal, tiveram um retrocesso no nível de democracia. Houve um aumento forte de mecanismos de censura, a aprovação de leis que vêm limitar e condicionar a liberdade de imprensa. Houve violações de leis fundamentais, já comprovadas também por tribunais, e a violação dos direitos dos cidadãos. És uma pessoa tem sido uma voz em defesa da democracia. Entendes que a democracia está em risco?

    Está, neste momento. Está paulatinamente a perder liberdade. A censura tem sido sempre um pretexto para “proteger” as pessoas de desinformação ou para “proteger” as pessoas de notícias falsas. Têm, sucessivamente, criado mecanismos de censura, seja nas redes sociais, seja nos órgãos de comunicação social, em Portugal e lá fora. E vemos a tendência daquilo que se passa lá fora e nos Estados Unidos. Tem sido publicado e tem sido debatido. Infelizmente, aqui nem se fala no tema na nossa comunicação social, da censura e da pressão de governos para censurar jornalistas independentes e pessoas comuns, médicos ou outros que tenham uma opinião divergente daquilo que é a política do governo. Isto é extremamente grave. Está-se a verificar também cá, ao longo do tempo. Muitos dos que falavam que eram contra a censura no tempo da ditadura, antes do 25 de Abril. Hoje, vemos isso a acontecer e parece que está tudo a amorfo relativamente a uma sucessiva censura e de pressão, seja nos órgãos de comunicação, seja até nas pessoas comuns, nas redes sociais.

    Em Portugal, tem estado na ordem do dia a crise no nos media, com o Grupo Global Media no centro, Mas também a Trust in News, que é a dona da Visão. A própria Impresa, que também não tem as suas contas muito famosas. Mas tem havido também algumas vozes a tentar puxar para que haja um apoio dos contribuintes ao setor dos media, dizendo que a apoiar os grupos grandes grupos de comunicação social, está-se também a defender o jornalismo e a democracia. Tens essa visão, de que os grandes grupos de comunicação social têm estado do lado da defesa da democracia e do jornalismo?

    Não, pelo contrário. Opomo-nos totalmente a qualquer tipo de apoio, seja subsídio, seja em geral, a qualquer empresa privada, seja ela qual for, especialmente da comunicação social. A partir do momento que o Estado e que os governos apoiam a comunicação social, estamos a pôr a mão da comunicação social ligada ao poder e ao Estado. É exatamente o oposto. Jamais o Estado deve intervir ou apoiar e financiar qualquer órgão de comunicação social. E nisso opomos totalmente, assim como nos opomos a qualquer outra empresa privada ou pública. Especialmente, nessa situação, é uma situação muito perigosa. É o oposto. Financiar e estar a apoiar os media, numa ideia de estão em dificuldade e que precisam de apoio, estamos a pô-los na mão do poder que está instalado, num determinado momento. Isso é um perigo para a democracia.

    Mas eles já não estão, de certa forma, na mão?

    Já já estão. E vamos pôr ainda mais, se vamos ainda dar mais apoio. É ainda por mais na mão do poder que está instalado. Isso é um perigo. Opomo-nos linearmente a qualquer tipo de apoio que o Estado possa ter em empresas privadas.

    No entanto, num país como Portugal, que sabemos que têm poucos leitores e são poucas as pessoas que pagam para ter acesso a informação, como é que pode sobreviver o jornalismo? Não só em Portugal. As pessoas estão a começar a estar habituadas a ter acesso a conteúdos gratuitos – pensam elas que são gratuitos, porque normalmente isso implica ceder dados. Como é que o jornalismo pode sobreviver?

    Tem de se reinventar. Tem de sobreviver no mercado, tal e qual como outro privado. O jornalismo tem de mudar. Há uma tendência crescente de jornalistas independentes que conseguem, através das redes sociais, através do Twitter, através de outros [meios e plataformas] financiar-se. Os órgãos de comunicação vão ter de se reinventar. É a lei do mercado. A partir do momento que há uma mudança do paradigma, vão ter de se reinventar. Não é um Estado “papá” que vai ter de ajudar e vai ter de meter a mão nos media para os manter. São eles que vão ter de mudar a forma de estar. Hoje, apoiados pelo Estado [publicidade estatal, apoio em 2020, parcerias comerciais], são uns media de agência, basicamente em que fazem copy-paste uns dos outros. O resultado é o que temos à vista. Se estão nesta situação, vão reinventar-se.

    E, nesta altura que estamos praticamente em campanha eleitoral, vemos que os media têm de facto um papel muito importante naquilo que é a difusão de informação de todos os partidos e na imagem que a opinião pública pode ter determinados líderes. Qual é a tua posição relativamente àquilo que tem sido o trabalho dos mass media em divulgar informação dos pequenos partidos?

    É inexistente. Os media preocupam-se com os partidos que têm assento parlamentar basicamente e, nomeadamente, os dois principais – PS e PSD. E, agora, o Chega, que é um bocadinho mais popular e que os media lhe põem toda a atenção em cima. Mas tudo o resto, aos media não lhes interessa. Até porque ainda não existe a cultura cá em Portugal, infelizmente, de política de actuação cívica, de olhar também para as outras propostas e para os outros pequenos partidos. Obviamente, os media não dão cobertura ao aparecimento de novos partidos.

    Isso também afecta a democracia e a possibilidade de haver maior diversidade de ideias e o maior debate de ideias.

    Afecta, porque as pessoas confiam ainda muito na comunicação social, naquilo que dá na televisão e naquilo que aparece na televisão. E se aumentarmos a idade, as pessoas não conhecem a outra realidade, não conhecem outras propostas, não conhecem quem possa apresentar outras soluções ou até ideias para debate, para o público, que devia acontecer e que não existe. E depois, ainda por cima, como quem financia os media são os partidos que estão no poder [publicidade estatal, parcerias comerciais, apoio em 2020], obviamente a tendência dos media é dar atenção aos partidos que estão no poder e vão jogando entre um lado ou outro e obviamente nunca dão atenção. Portanto, é “uma pescadinha de rabo na boca”. Sei que isto é muito difícil, mas aquilo que é a nossa posição em muitos temas. Apoiar privados e a comunicação social, nem pensar. É um perigo.

    Há temas que estão na ordem do dia, como a crise na Habitação, na Saúde. A eterna crise no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os anos, no Inverno, temos um pico e temos um problema no SNS, que está sempre em ruptura. A cada pico de doenças do foro respiratório…

    E todos os anos parece uma novidade e todos os anos parece uma novidade.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Mas, começando pela Habitação, têm propostas? Qual é a vossa visão relativamente à situação que se existe em Portugal, em que um português com um salário mínimo ou até com um salário médio dificilmente tem acesso, hoje, a habitação, seja por via da compra, seja pela via do arrendamento, sobretudo quando falamos nos grandes centros urbanos.

    Não somos nem socialistas, nem de esquerda, nem direita, nem populistas. Portanto, ações populistas de o Estado mexer nas rendas ou actuar sobre os preços, nem pensar. Lá está, novamente, caímos sempre no mesmo erro. Pois surge-nos o problema e depois “ai ai ai” – é preciso fazer alguma coisa. E, depois, vêm com estes remendos, que é para piorar ainda mais a situação. O grande problema da Habitação é que Portugal está inserido no mercado internacional. Há uma procura por imobiliário, por casas cá em Portugal e isso faz aumentar os preços. Mas o problema não é o aumento dos preços das casas. O grande problema é que os portugueses há décadas – e já estamos a falar de décadas, não é anos – estão estagnados a nível de crescimento. Os portugueses, pouco ou nada têm aumentado os rendimentos nas últimas décadas. O rendimento dos portugueses não acompanhou o aumento do preço das casas. Este é que é o grande problema. O problema está muito antes do que é o preço. Quando falamos do preço das casas, estamos já no fim do problema. Vamos fazer o que é costume. Vamos andar a fazer remendos. O problema está na criação de riqueza e está no facto de que os portugueses não crescem. Infelizmente, é muito devido ao papel que temos do Estado, que é o principal elemento que bloqueia o crescimento em Portugal através de impostos, taxas, burocracia e todo o conjunto de problemas e toda a estrutura que cria ineficiente à volta de todos os portugueses. Isso prende-nos a esta situação e vamos continuar a viver assim, cada vez mais do Estado e de uma situação grave destas que é um português comum não conseguir comprar uma casa. Vai ser muito difícil comprar uma casa devido ao facto de estarmos sempre a fazer estes remendos e não olhar para a raiz dos nossos problemas.

    Como é que se pode resolver isso? Ou seja, como é que os portugueses podem ter acesso… O que é que o vosso partido vê que é possível ajudar os portugueses que estão com dificuldades, sobretudo as muitas famílias que não têm acesso à habitação?

    Qualquer solução populista, ou qualquer solução de cortes de rendas ou no valor das rendas ou mexer nos contratos de rendas ou créditos bonificados com o apoio do Estado, qualquer situação que se possa criar, não vai resolver o problema. Vai atenuar durante um período curto para piorar ainda mais. Para o futuro, a única solução possível, é cortando naquilo que são os impostos e o peso que as pessoas têm todos os dias. Porque as pessoas não têm noção. A maior parte dos portugueses está metade do ano a trabalhar para o Estado e, só depois a outra metade está a trabalhar para si própria. E enquanto nós não conseguimos mudar isto, enquanto isto não deixar de estar estagnado, não há solução. E, às vezes, é difícil porque isto não é populismo, porque populista era dizer que a solução é cortar nas rendas e resolver o problema das rendas. Ou dizer que vamos aumentar o salário mínimo já para 1.200-1.500 euros, para 2.000 ou 3.000 euros. Todos falam em aumentar o ordenado mínimo como se fosse a solução. Não é solução, não vai resolver o problema das pessoas.

    Até porque esse aumento de salários vai implicar também maior carga  …

    E desemprego diretamente. Portanto, é das tais soluções populistas. Todos falam o óbvio, o que todos nós … Eu gostaria de dizer aos portugueses: vamos todos ganhar 2.000 euros ou 3.000 euros por mês. Era fantástico. Eu adoraria poder dizer isso, mas não é assim, não é por decreto que as pessoas vão ter um aumento, rendimentos. Impossível. É por facilitar-lhes a vida e dar-lhes a liberdade de poder escolher, poder lutar pelos seus objetivos e não terem uma carga fiscal e um Estado burocrático em cima. Só assim é que os portugueses vão conseguir ter, ao menos, rendimentos para o futuro. Não há outra hipótese.

    O que defendes é, no fundo, um aumento do rendimento das famílias por via de menor carga fiscal, menores custos com questões burocráticas.

    Custos e peso burocrático! Porque o peso burocrático não é só na questão do custo e dos impostos. É todos os bloqueios que cria aos empresários e toda a estrutura que existe, neste momento. Não é um problema só português. Na Europa também é um problema. Mas, em Portugal, também somos óptimos a amplificar os problemas lá de fora. Não é uma solução a curto prazo, não é um resultado imediato. Podíamos ir por populismos e por dizer às pessoas “olha, a solução é esta”. Não há soluções milagrosas, são soluções que levam tempo. Mas aquilo também podemos dizer às pessoas, é que quanto mais tempo demorarmos a fazer uma mudança, pior ainda para o futuro, porque vamos estar a criar sempre remendos e ter um problema ainda maior ainda no futuro.

    Fernando Loureiro, fundador do PURP (ao centro), e cabeça de lista do partido nas Europeias 2019.
    (Foto capturada a partir de imagem da RTP/2019)

    Entendes que essas medidas a serem implementadas iriam poder ser um incentivo para reter jovens e travar a fuga de “cérebros” que tem acontecido?

    Não vai ser logo, no imediato. A libertação de carga fiscal e de peso do Estado não é imediata. Porque, obviamente, os jovens precisam de ver, ter objetivos também a curto prazo. Mas sim. Depois, acredito – e acho que é importante que as pessoas saibam –  que, com crescimento e com perspectivas de futuro, os jovens deixam de fugir e ter que olhar lá para fora para sobreviver. A realidade é esta. Os jovens cá, infelizmente, –  e dada a situação actual –, vivem em casa dos pais até aos 20 e tal, 30 anos, qualquer dia até aos 40 anos, porque a realidade é esta. Eles não têm rendimento sequer para conseguir viver, na grande maioria, com uma casa própria e conseguir auto sustentar-se. Não conseguem. A única solução é olhar lá para fora. Porquê? Porque é muito difícil, hoje, começar uma carreira. Muito difícil. E – lá está –depois, cria-se subsídios e às empresas para contratar jovens, mas isto não é a solução, nunca vai ser a solução.

    Tem havido manifestações pelo direito à Habitação em várias cidades. O que parece estar subjacente é de estarem a ser pedidos apoios e subsídios à habitação, o acesso à habitação, através de mecanismos públicos. O vosso partido o que defende é que não é essa via. Deve resolver-se o problema um bocadinho mais…

    Muito antes. Num caso extremo, até Hitler prometeu casa e carro para todos os alemães. Quer dizer, todos podem prometer. Todos podem prometer mundos e fundos. A situação da maior parte das pessoas, é uma situação muito difícil. A primeira solução de pedir apoios é sempre a solução mais fácil, só que não vai resolver o problema das pessoas. Vão ficar cada vez mais presas a um problema, sem perspectivas de crescimento e com um problema no futuro ainda maior. Não é por aí e nunca iremos ir por populismos ou ações populistas que sabemos que à partida nunca irão resolver o problema das pessoas. Nunca.

    Também se tem falado de aumentar o rendimento das famílias por via de haver uma espécie de rendimento básico universal ou algo do género. Contemplas uma solução dessas, a nível europeu, que possa beneficiar também os portugueses?

    Nem pensar. Essa é das tais ideias que nos parece muito bonita e utópica. Ter um rendimento que cai na minha conta todos os meses. Parece uma coisa fantástica. Mas isso é tornar as pessoas ainda mais escravas do sistema actual. O vai acontecer é que, depois, isso gera outros problemas a seguir. Parece resolver um problema à partida. Poderá resolver a questão burocrática do próprio sistema actual de Segurança Social, parte desse problema. Mas não vai resolver problema nenhum. Vai tornar as pessoas cada vez mais escravas ainda do sistema de apoios do Estado.

    E debilitar a democracia, eventualmente.

    Exatamente. Depois, as pessoas que estão no poder, vão ter sempre os votos garantidos das pessoas que vão estar sempre dependentes deste sistema. Isto é “uma pescadinha de rabo na boca” e nunca vamos sair disto, se continuarmos a apoiar e continuar a falar de ações dessas, que são utópicas e que vão criar uma escravatura da população atual, mas mais ainda nas gerações futuras. Portanto, isso nunca vai resolver o problema.

    Tem havido protestos, nomeadamente das forças policiais, mas também houve protestos de professores e auxiliares. Entendes que é preciso uma mudança em diferentes áreas, em Portugal, e que já chega desses remendos? Como é que vês estes protestos?

    São legítimos porque a situação dessas pessoas, em geral, é precária. No caso da polícia, da PSP, da GNR, é uma situação difícil para aquilo que a responsabilidade que têm. É uma situação muito precária. Aliás, normalmente estas pessoas têm poder até acho que devem ganhar bem. Mas, ao mesmo tempo tem haver escrutínio. Quem tem cargos de poder e quem tem cargos de autoridade tem de ser altamente escrutinado. Porque não são cidadãos comuns. Há um problema de rendimentos com estas pessoas. Mas têm de ser altamente escrutinados e muito bem selecionados para este tipo de cargos.

    No caso da Educação, como o vosso partido vê a questão das problemáticas que têm sido levantadas e os protestos que ocorreram durante vários meses?

    O problema da Educação é que está muito dependente do Ministério da Educação e de toda a doutrina que está criada. Depois vivemos um tabu. Pensamos que a educação tem que ser a imagem actual pública normal do Estado e não podemos olhar para outros meios ou outras formas. E há outras formas. É tema tabu, em Portugal. Porque não temos um sistema privado que até pode sair mais barato ao Estado pagar a educação, e que as pessoas possam escolher. Isso é que é importante, dar autonomia às pessoas para escolher as escolas. Para onde vão os seus filhos. E o Estado pagar essa escola, pode ser mais barato do que ter a estrutura toda, o “monstro” que tem, desde o Ministério da Educação à própria educação atual.

    O PURP em campanha para as eleições europeias de 2019.
    (Foto capturada de reportagem da RTP)

    Mas sentes que esse é um tema tabu?

    É um tema tabu. Não se pode mudar neste tema porquê? Porque, obviamente, depois existe um conjunto de interesses. Porque os professores, infelizmente, estão na mão, dentro do Ministério da Educação …

    Iriam perder votos se avançassem com esse tema…

    Iriam perder votos, obviamente. Óbvio. Porque é uma alteração muito grande e que deixam também aos professores incertezas. É normal. Porque é uma mudança, causa incerteza e desconforto. Mas, se vamos continuar tal e qual como está… E achamos que é só um bocadinho de aumento de salário aqui, uma atualização ou uma regalia ali, que vai resolver o problema. Não vai resolver o problema. E, enquanto não discutirmos a fundo reformar, seja a Saúde, seja a Segurança Social, seja o sistema de educação, nunca mais vamos…

    Sair disto… O que é certo a elite, incluindo política, os líderes políticos, têm os seus filhos a estudar em colégios privados e no ensino privado.

    Claro, claro. Aliás, vemos isso, seja na Educação, seja na Saúde. Assim que uma família ou uma pessoa individual, seja quem for, tem a possibilidade de poder pagar – mesmo continuando a pagar os impostos, que paga ter a possibilidade de pagar saúde ou educação privada – vai para o privado. É logo a primeira opção que faz. Portanto, reparem nisto. Estamos a pagar uma estrutura brutal. À primeira oportunidade que um português tenha de poder pagar o ensino privado ou uma educação privada, foge logo. Foge do ensino ou da saúde pública. Criámos um monstro e não queremos reformar.

    Não se assumindo, acaba por ser quase uma sociedade de castas, em que uma casta tem acesso a determinados serviços de uma qualidade superior porque têm meios financeiros e, depois, tens toda uma outra casta inferior, que não tem meios financeiros e, portanto, não tem acesso à habitação, não tem acesso a saúde com qualidade ou ensino com qualidade. O SNS também tem profissionais com enorme qualidade, que depois não tem …

    São os serviços. Os serviços não funcionam. Mas, a partir do momento que temos o SNS como temos, e o sistema de educação como temos, atualmente… O que tem de se tentar é dar a possibilidade às pessoas de poder escolher.

    Escolher o serviço.

    Quando digo privado, estamos a falar de possibilidade e de algo que deve ir a discussão pública. Mas, mesmo que seja privado, não estamos a falar aqui de contratos com privados, com a escola. Não. As pessoas têm de escolher e têm e podem escolher entre as escolas, não é com contratos de parcerias público-privadas, em que estou a dar garantias a um privado. É as pessoas poderem escolher e o Estado, em vez de ter a estrutura… Sai mais barato e já se fez essas contas e sabemos que sai mais barato.

    Portanto, o vosso partido ATUA defende é que haja esse debate, ou seja, que haja esse debate em torno de haver uma mudança profunda naquilo que tem sido a forma de termos o sistema de ensino e do Orçamento de Estado, que é aplicado a várias áreas, incluindo não só na Educação, mas também a Saúde.

    Sim.

    Na Saúde, como é que o vosso partido vê estas crises constantes no SNS? É típico, já é sazonal. Chegamos ao Inverno, no pico das doenças do foro respiratório, e há sempre as notícias com os hospitais a abarrotar, as filas de espera, pessoas a falecer nas urgências. Há uma solução?

    Continuamos sempre a olhar para o para o problema e depois temos o problema nas nossas mãos. Os hospitais estão cheios de pessoas e temos problemas com as camas e há falta de camas. E o problema repete-se durante anos, durante décadas. Sempre foi assim todos os anos, e todos os anos parece que é sempre uma novidade. De facto, aqui a solução não é fácil, mas só é dando a possibilidade … Reparem numa coisa: isto bate no outro problema, que é outro dos grandes problemas, porque cada vez temos mais … Cada vez há mais gastos e a estrutura, seja da saúde, seja da Segurança Social, seja de educação, é enorme. Existe aqui um outro problema, que é, para onde é que vai esse dinheiro, o dinheiro público, daquilo que é para os hospitais públicos. Sabemos de situações sobre os ajustes directos e concursos públicos. Por essa gestão ser pública, e por acreditarmos que ser uma gestão feita por privados é mais eficiente do que por públicos… Grande parte dos recursos que são gastos, através dos hospitais e do Estado, são logo gastos. O dinheiro é gasto de forma ineficiente e leva a que o Estado e os hospitais a terem muito menos recursos do que aquilo que têm, atualmente.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Há muito desperdício e desorganização?

    Há imenso, imenso. Seria bom fazer uma auditoria global àquilo que são as contas da saúde, aquilo que é gasto. Porque, o que estamos a falar é de um conjunto de pessoas, muitas delas infelizmente ligadas a governos, opções governamentais, que estão ligadas ao Estado e que é gerido desta forma, e que não é a mesma coisa que gerir com o seu próprio bolso. É totalmente diferente. A partir daí, as ineficiências acumulam-se. Temos um gasto brutal em saúde, continuamos a gastar na saúde, imenso, e continuamos a ter cada vez pior serviço.

    Não se investe tanto nos meios humanos, se calhar.

    Gastamos cada vez mais em saúde e estão a abrir cada vez mais privados e as pessoas a fugir o mais possível do público. E os privados estão cheios. Isto vai-se agudizando ainda mais. Temos um SNS cada vez mais gigante, com um gasto brutal, cheio de problemas e um privado a crescer cada vez mais. E nós, a pagar, como cidadãos, logo dos dois lados. Estamos a pagar um serviço SNS nem uso ou nem usamos, porque depois que vamos ao privado porque não queremos estar à espera e não queremos ter um serviço que temos no SNS. Isto é dramático.

    Estamos a pagar os dois lados, portanto o que defendem é que haja também um olhar para esta ineficiência.

    Fundamental. E não algo populista de falar contra a corrupção, porque todos falam contra a corrupção há décadas, mas a corrupção é um problema claro e evidente que temos, pelo facto de o Estado ter o poder e estar metido em tudo. Logo, isso dá azo a que haja pessoas que se aproveitam dessa situação para benefício próprio. Mas a corrupção é um problema, a falta de escrutínio, a falta de avaliação. Ainda por cima, com os media cada vez mais dependentes do Estado e que se demitiram daquilo que faziam antigamente, que era o jornalismo de investigação, que morreu em Portugal, deixou de haver. Estamos a falar de um conjunto de problemas … Se formos ver todos os outros partidos, ninguém aborda estes problemas, mesmo que não seja popular, haja solução, mas nenhum aborda.

    Um relatório recente apontou que Portugal desperdiçou dinheiro em testes durante a pandemia. Mas há também o caso da compra de milhões de euros de um medicamento, o Remdesivir – e poderíamos mencionar outros, patrocinados por médicos, os quais têm ligações à indústria farmacêutica. São medicamentos, que depois vão para o lixo, ou pior, que acabaram por prejudicar portugueses, nomeadamente com resultados fatais, quando deveria ser o contrário.

    E a comunicação social a chamar essas pessoas [médicos pagos por farmacêuticas]. Não fazem a devida [verificação]. As pessoas podem dar opinião que quiserem, mas os media –  ou as próprias pessoas que lá vão e que dão a sua opinião acerca de medicamentos onde gastamos milhões…  Qual foi a utilidade da quantidade de testes que fizemos? Mas aquilo que se gastou dava para abrir vários hospitais. A própria comunicação social nem a advertência faz de que aquela pessoa que pode dar a sua opinião, mas que recebe, seja pela sua consultoria, seja pelo que for, recebe dinheiro dessas farmacêuticas, e está a dar uma opinião favorável desse medicamento.

    Portanto, em alguns especialistas, não houve a devida declaração de interesses que trabalhavam também para farmacêuticas.

    Claro que não. Se publicarem um estudo científico, por obrigação têm de pôr no estudo uma declaração de conflitos de interesse. E devem pôr, tal e qual, nos media. Não sendo um estudo, deviam dizer: “atenção, esta pessoa recebe”. É impossível ter uma opinião isenta, não é?

    Entendes que os portugueses iriam ver certos “especialistas” com outros olhos se os media divulgassem para que farmacêuticas é que eles também trabalham?

    Criava desconfiança e não era o que queriam que se criasse. Porque também se viveu um ambiente de narrativa única e de discurso único durante esse período de tempo [pandemia].

    Mas depois, isso levou também estas ineficiências e estes gastos que …

    Brutais. E muita coisa que aconteceu nesse período – na saúde ou fora da saúde – que se deixou de ver. O gasto foi enorme, mas na saúde, então nem se fala. Estamos a falar de testes e de outras coisas que se fez sem qualquer avaliação. Não houve qualquer avaliação sobre o que se passou e, no entanto, sabemos…

    Conferência de apresentação do PURP, na sua fundação, em Julho de 2015. (Foto: D.R.)

    Temos que haver essa investigação aprofundada, até para se tirar ilações e lições para o futuro do que aconteceu em Portugal, como está a acontecer até noutros países? Deveria haver essa investigação mais detalhada sobre o que é que aconteceu em Portugal, para onde é que foi o dinheiro, quem ganhou, quem lucrou? Até porque temos um problema que é o elevadíssimo excesso de mortalidade, que mostra que a gestão da pandemia em Portugal, ao contrário do que se tem vendido, foi um redondo falhanço.

    Foi e continua. Temos tido excesso de mortalidade, ao contrário do que os próprios media… No início, diabolizaram, e depois deixaram de falar, do país que teve menos excesso de mortalidade, que foi a Suécia, que, [em geral], não fez confinamentos, não obrigou a uso de máscaras, nem nada disso.  

    Mas os portugueses nem souberam disso…

    Para eles, sabem o que ouviam dizer, no início, que morreram muitas pessoas na Suécia. Morreram naquilo que os suecos imitaram, aquilo que nós também fizemos e que não há, até hoje, nenhuma investigação sobre isso – ouviu-se falar de Reguengos –, que foi o que aconteceu nos lares. Muitas pessoas morreram nos lares. A grande parte da mortalidade foi nos lares, na Suécia, tal e qual como em Portugal, foi nos lares, só no início, de pessoas que morreram – como ouvimos no caso de Reguengos – com desidratação, com escaras. Foram isoladas nas camas e não tinham pessoas suficientes para tratar das pessoas, por causa das baixas que tinham com testes positivos, na altura. Nunca houve investigação sobre isto. Nunca houve sobre nada. Morreram imensas pessoas, morreram imensos idosos em situações que nós nem imaginamos. Se estivermos a falar dos muitos lares ilegais que existem em Portugal, sem terem pessoas para tratar deles, completamente abandonados… Mas claro, o rótulo de morte covid deu muito jeito para escamotear também muitas situações gravíssimas que aconteceram nos lares. Claro que isso não é tema, é tabu. Ninguém quer abordar esse tema porque correu muito mal e há muitos responsáveis por essa situação.

    Portugal está com enorme excesso de mortalidade e não está a ver a devida investigação. O Ministério da Saúde anunciou, já há um tempo, que iria fazer uma investigação sobre as causas deste excesso de mortalidade. Mas, o que é certo, é que não vemos nada e, nos media, o que vai saindo, também acaba por não ser muito elucidativo. Era importante perceber o que é que aconteceu, até porque muitos portugueses deixaram de ter acesso a poder fazer diagnósticos a determinadas doenças, portugueses fugiram dos hospitais. A própria Direção-Geral da Saúde aconselhou a isso mesmo. Era importante perceber o que está a acontecer e ajudar os portugueses a perceber para travar o que continua a causar este excesso de mortalidade?

    Era importantíssimo. Mas isso vai levantar… Ninguém quer pegar nesse tema. Vai levantar imensas responsabilidades. Muitos agentes que estiveram envolvidos, desde a comunicação social, pelo papel que teve nalgumas situações, muito negativo, relativamente a esses temas e relativamente ao Estado e às autoridades, durante esse período de tempo. Porquê? Porque houve muitas pessoas que deixaram de ter acesso a saúde, ao contrário do que muita gente diz, durante o período da pandemia, ou em termos de afluência às urgências. Esteve muito abaixo do normal. As pessoas deixaram de ir ao hospital por medo, por “n” razões.

    Então que dizer que não se quer saber, não se quer investigar agora por uma questão política. Ou seja, está-se a fazer uma gestão política para tentar esconder um bocadinho…

    Está. Ninguém quer falar. Se calhar, é preferível –  e já tem acontecido –  pôr a responsabilidade do excesso de mortalidade nas alterações climáticas. É muito fácil, pronto. É um argumento. É um argumento vazio, completamente vazio. É mais fácil de fazer do que pôr a mão na massa e perceber exactamente o que se passou. Porque o que se passou, especialmente naquilo que aconteceu nos lares…

    Em vez de identificar responsáveis por…

    … Que foi investigado lá fora e que sabe que se passaram coisas muito graves nos lares. Aqui ouvimos a tal história Reguengos, porque houve uma médica que teve a coragem de dizer e de contar o que se tinha passado. Eu imagino os casos e a multiplicação de casos que levou à morte de milhares. Estamos a falar de milhares de idosos.

    E, em Portugal, também têm estado a ser escondidas bases de dados que poderiam facilmente… Era possível saber, com pormenor. do que é que estão a morrer os portugueses. Como é que vês isso? Como sabes, o PÁGINA UM tem ações em tribunal para forçar o Governo, o Ministério da Saúde, a permitir o acesso a essas bases de dados. Elas deveriam ser facilmente acessíveis, visto que os dados são anonimizados. Como é que vês essa manipulação, que está a haver de se esconder informação que deveria estar acessível?

    É gravíssimo. Vai tocar naquele ponto que falámos da falta de escrutínio que existe e que isso nem devia ser discussão.

    Mas é uma gestão política…

    Essa informação devia ser automática e pública. É anonimizada. Não tem dados pessoais das pessoas, devia ser uma informação pública, seja para investigação jornalística, seja para investigação científica, seja o que for ou até um cidadão comum. Vão dar sempre a desculpa, que é só para determinadas pessoas deverão ter acesso, a tal questão do especialista que deve aceder àquilo. Estamos a pôr nas mãos só pessoas que interessa ter acesso a essa informação para não haver o escrutínio. O escrutínio do Estado deve ser uma coisa automática, livre, e nem sequer deve ser discutida. Aquilo que vocês têm feito, e bem, não deviam sequer ter de estar a fazer. O trabalho devia ser uma coisa automática. Qualquer jornalista devia ter acesso aos dados públicos anonimizados na mortalidade. Isso tem de ser sistemático, porque, ao não darem, é crime. Isso para mim é um crime, porque o Estado está a abusar do poder que tem.

    O futuro do PURP está nas mãos do Tribunal Constitucional, que está a analisar o pedido para a alteração dos estatutos do partido, da sua denominação e símbolo. (Foto: D.R.)

    És dos poucos líderes partidários a quem podemos fazer esta pergunta, sabendo que estás perfeitamente a par do que é que tem estado a acontecer. A pandemia foi aproveitada como uma oportunidade para haver mais restrições e mais censura. Uma das medidas que tem estado a ser discutida e que tem sido bastante controversa é a das alterações ao Regulamento Sanitário Internacional, junto com a criação do chamado Tratado Pandémico. Poucos portugueses conhecem o que está a ser discutido. Teme-se que esteja a ser criada uma estrutura dando poderes à Organização Mundial de Saúde para que nenhum país possa fazer o que a Suécia fez, que foi aplicar as suas próprias medidas independentes das decisões ou de estruturas internacionais ou de políticos. Como é que vês estas alterações que estão a ser discutidas e o facto de em Portugal não estar a haver debate? Portugal está a alinhar completamente com essas alterações.

    Sempre o que era de esperar. Estamos a falar de organismos e de políticas de pessoas não eleitas. Logo aí, à partida, é uma violação total daquilo que é o princípio democrático e o princípio de uma sociedade livre, de facto.

    E há uma ressalva. Porque o líder da OMS tem vindo a tentar “pôr água na fervura” e dizer que não está em causa a soberania, mas fala na questão do Tratado Pandémico, o que nós estamos a falar é das alterações ao Regulamento Sanitário Internacional que, em conjunto com o Tratado Pandémico, aí é que está o risco, e daí haver essa polémica e controvérsia.

    Claro. É poder aplicar aquilo que tentaram fazer durante este período [pandemia de covid-19] de uma forma ainda mais eficiente, com todos os conflitos de interesse.

    Mais eficiente, mas não para a saúde..

    Dentro daquilo que é a perspetiva deles – que é absurdo – de uma doença futura que nem sequer sabe qual é, como vai se comportar. Nada. Zero. Como também não sabiam desta, não sabiam minimamente. Com um conjunto de medidas que todas elas tiram liberdades, garantias às pessoas.

    E terão alguma proteção na saúde ou não o irão fazer com que países, como, por exemplo, a Suécia, que deixem de poder fazer…

    O objetivo é poderem controlar. Lá está, ainda por cima, seja líder da OMS, seja outro, por pessoas não eleitas, pessoas com os seus devidos conflitos de interesse. Porque não são anjos, nem são puros. Há muitos interesses, obviamente. Mas é preciso que as pessoas saibam isto: a Organização Mundial de Saúde é financiada por privados. Não é totalmente isenta.

    Os portugueses têm noção do que é a Organização Mundial de Saúde, como é financiada?

    Não têm. Infelizmente, não têm. Infelizmente não é falado. Há de vir o órgão de comunicação social que tenha falado nos últimos três anos daquilo que tem sido o financiamento da…

    Porque é que achas que existe de facto esta indisponibilidade para falar sobre estes temas de forma aberta?

    Se a própria comunicação social é financiada, no caso da pandemia, para ter um determinado discurso e para ter uma determinada posição, é óbvio que nunca vai abordar esses temas. Vai continuar a fazer o mesmo trabalho de sempre. É aquilo que é financiado, é aquilo que é apoiado e vamos falar sobre este tema. “Vamos apoiar uma determinada narrativa e vamos abafar tudo o que seja o resto, porque não nos dá jeito” – infelizmente, esta é a realidade da comunicação social, hoje.

    Havendo uma aprovação daquilo que tem estado a ser debatido na OMS, porque ainda não está fechado, das alterações ao Regulamento Sanitário Internacional junto com o novo Tratado pandémico, estamos ou não perante uma grave crise, uma grande ameaça às democracias ocidentais?

    Estamos. É mais uma. Mais um grave problema que temos e uma ameaça à democracia por aquilo que implica, em termos de autonomia e liberdade das pessoas, pela violação total daquilo que são os princípios dos direitos humanos, inclusive.

    E a capacidade dos países de gerir crises sanitárias de acordo com aquilo que é…

    Autonomamente. Acho que é a ideia é que todos juntos fazemos melhor, quando vimos, perfeitamente, no que isso deu, muitas vezes.

    Mas faz sentido haver uma coordenação ou colaboração. Agora, é diferente de haver uma imposição.

    Claro e, neste caso, o objetivo é ter uma imposição e por um órgão não eleito. Não elegemos. Estamos a falar de organismos não eleitos.

    O vosso partido está disponível também para defender e trabalhar nestas áreas da defesa dos direitos civis, da democracia, neste âmbito Internacional?

    É a base fundamental deste partido. Aliás, opomo-nos a tudo o que seja ideias de federalismo europeu. Apoiamos aquilo que é a União Europeia, aquilo que foi a sua base, que era a livre circulação de bens e pessoas, de serviços, o Tribunal Europeu, naquilo que era a base e não o monstro burocrático em que se tem tornado a União Europeia e que perigosamente estamos a caminhar a mesma coisa com organismos internacionais. Não apoiamos entidades supranacionais com poder sobre as pessoas. Queremos defender a autonomia do indivíduo e a liberdade do indivíduo. E essas entidades são uma ameaça à liberdade de cada um de nós.


    Pode consultar AQUI a página do PURP, a qual está em reconstrução.


  • ‘Estamos sempre do lado que defende mais liberdade’

    ‘Estamos sempre do lado que defende mais liberdade’

    Assumiu a presidência da Iniciativa Liberal em 2023, sucedendo no cargo a João Cotrim de Figueiredo. Aos 53 anos, Rui Rocha é o rosto do liberalismo em Portugal. Licenciado em Direito, gestor e antigo ‘enfant terrible’ no Twitter, o presidente da Iniciativa Liberal acredita num crescimento no partido nestas legislativas, fruto do descontentamento dos portugueses perante os casos de corrupção e degradação das condições de vida no país. Atacando o ‘barulho’ do Chega na campanha eleitoral, aponta o caminho para melhorar a vida dos portugueses, que passa por ‘menos Estado’ em diversas áreas. Esta é a sexta entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.



    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE RUI ROCHA, PRESIDENTE DA INICIATIVA LIBERAL, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    É um político relativamente jovem, e está num partido que também é relativamente jovem. Há muitos desafios nesta altura, não só no país, e desafios que são conhecidos, como a crise na Habitação e na Saúde, mas temos também problemas estruturais que já vêm de trás. Como um partido jovem, a Iniciativa Liberal tem trazido propostas diferentes do habitual.  E começo a entrevista por aqui: quais são algumas das principais propostas que têm para os portugueses nestas eleições?

    Eu concordo que a Iniciativa Liberal [IL] tem propostas diferentes, muito diferentes mesmo, daquelas que outros partidos apresentam. A primeira proposta é mesmo a do crescimento económico. Para a IL, o crescimento económico é determinante, e nós, sem entrar ainda no detalhe, vemos que o primeiro passo para esse crescimento económico passa por duas áreas fundamentais: primeiro, a descida de impostos para as pessoas, e uma descida significativa no IRS – a mais ambiciosa que os partidos políticos põem sobre a mesa é nossa.

    (Foto: D.R.)

    E, depois, uma outra parte virada para as empresas, onde temos uma abordagem que passa pela simplificação dos licenciamentos de actividade, a eliminação ou redução daquelas taxas e taxinhas e as burocracias e mesmo as taxas que se pagam. E ainda uma terceira, que diz respeito ao próprio IRC e às derramas, também com uma descida significativa. Porque propomos isto? Porque entendemos que este é o primeiro passo – não é o único, mas o primeiro passo –  para que consigamos, por um lado, que as empresas portuguesas cresçam. Isso é muito importante para nós, porque precisamos de mais produtividade, de mais capital investido, de mais é ciência, mais tecnologia, mais inovação. Isso faz-se libertando capital às empresas e precisamos de atrair capital estrangeiro, investimento estrangeiro que ajude também a produzir esses efeitos que pretendemos com o objetivo final é que os salários em Portugal cresçam, nomeadamente o salário médio. A única forma que conhecemos deste salário poder aumentar é com a economia a funcionar, portanto, isso é uma primeira prioridade. É uma abordagem muito ambiciosa da IL.

    Depois, a área da saúde, e aí também nos distinguimos por ser a única proposta que implica uma reformulação estrutural do acesso à saúde. Aquilo que temos hoje, diria que há um sistema de acesso universal a listas de espera. A IL quer um sistema de acesso universal a cuidados de saúde, pondo a decisão no utente e não numa decisão pré-definida, nomeadamente pelo poder político. O utente, quando tem necessidade de um tratamento, consulta ou de uma urgência, deve decidir qual é o prestador que mais lhe convém: se é público, perfeito; se é privado, ótimo; se é do setor social, excelente. Mas é ele que sabe, ele deve saber qual é. A singularidade disto é que estamos a propor coisas que já têm provas dadas que funcionam. Funcionam na Alemanha, funcionam na Holanda. Queremos que o acesso à saúde dos portugueses tenha esse mesmo nível de qualidade e de rapidez que encontramos em países como esses. Isso implica uma reflexão sobre a função do Estado no que diz respeito à saúde.

    Para nós, é uma mudança muito grande na forma de estar. Há uma mudança grande. O Estado deve ser financiador deste acesso, deve ser regulador, mas não tem de ser – nem deve ser – o único prestador. O objetivo final é que haja um acesso à saúde mais rápido, de maior qualidade para as pessoas, sem que elas paguem mais.

    (Foto: D.R.)

    Terminando ­– falando de alguns temas fundamentais neste momento –, temos também uma abordagem muito clara para habitação. São precisas mais casas em Portugal. Precisamos de mais casas e temos que trazer mais casas para a disponibilidade, para a oferta. Temos também uma proposta baseada em três pontos, que vou simplificar, que são os da celeridade nos licenciamentos… Mais uma vez, a burocracia. Esse é um ponto que está sempre presente nas nossas propostas: simplificação; desburocratização. A questão dos impostos também [está] muito, muito presente nas nossas propostas. Estamos a falar, sobretudo, de baixar o IVA da construção. Porque aquilo que se paga em IVA de construção, hoje, para determinados fins, é o mesmo IVA que se paga para a compra de um iate. Isso não faz sentido. Se a habitação é um bem essencial, não pode ter uma tributação de bem de luxo. A eliminação do IMT na aquisição de habitação própria e permanente… Por exemplo – que, infelizmente é um exemplo já mais comum – se comprar uma habitação por 250.000 euros, o IMT vale 7.000 e tal euros. Quando estamos a falar de comprar por de 300.000 euros, vale já 11.000 e alguns euros. Apesar de tudo, [é] um peso grande num momento em que as pessoas já estão a fazer um esforço para a aquisição de habitação. Esse, que é o imposto mais estúpido do mundo – nas palavras de António Guterres –, pois cá persiste passados 30 anos. É preciso eliminá-los também para baixar o custo da habitação.  

    Depois, uma coisa que nos parece elementar: justiça. Se a habitação é um bem essencial e se estamos num momento de crise, os devolutos do Estado, os edifícios do Estado, as habitações de que o Estado é detentor – que estão ou abandonadas ou não se sabe exatamente onde estão ou para que servem – deviam ser postos ao serviço das populações, permitindo que privados pudessem licitar esses devolutos do Estado e pudessem colocá-los à disposição de quem procura habitação, através de um sistema de renda acessível.

    Aqui está o sumário de uma visão que é muito diferente da IL, daquela que todos os outros partidos apresentam para pontos essenciais da vida dos portugueses.

    Em resumo, também há aqui menos Estado. Há aqui um tentar que o Estado deixe de estar tão presente.

    (Foto: D.R.)

    O Estado, em várias áreas –  e mencionou aqui, por exemplo, também a questão da habitação  tem lucrado com o facto de haver uma crise na habitação e com esta alta dos preços, tem lucrado com a inflação…  Esse é um aspeto que não tem havido uma grande justiça para os portugueses, visto que “levam” com a crise, mas há quem esteja a lucrar, nomeadamente o Estado.

    Pois. Há quem fale muito de lucros extraordinários. Na verdade, o Estado tem tido – chamemos-lhe assim –, se não lucros, mas, pelo menos, receitas absolutamente extraordinárias. A receita de IVA anual, por exemplo, aumentou nos últimos anos 7.000 milhões de euros. Estamos a falar de muito, muito, muito dinheiro, mas acho que o problema é fundamental. É até para lá da questão do esforço fiscal a que os portugueses são sujeitos. E é verdade que são sujeitos a um esforço fiscal grande. Portugal tem o quarto o esforço fiscal mais alto da Europa, que resulta de impostos que estão, em termos absolutos, na média da União Europeia, mas a riqueza que temos é bastante abaixo. O esforço que estamos a pedir aos portugueses é bastante mais alto. Não é a mesma coisa a pagar 500 euros de impostos em Portugal ou pagar 500 euros de impostos na Alemanha, com o nível de rendimento que a Alemanha tem por contraposição com Portugal. Há um esforço fiscal muito grande para os portugueses. Mas ainda é pior do que isso. Porque à medida que esse esforço fiscal cresce e que essa arrecadação fiscal cresce, o que se passa é que vemos uma degradação dos serviços públicos. Portanto, esse esforço fiscal quer os portugueses estão a fazer, não é compensado por serviços públicos que, de alguma maneira, pudessem compensar esse esforço que está a ser feito. Olhamos para a Saúde e vemos que está cada vez mais complicado. Não será por acaso que temos agora a 3.700.000 portugueses com seguro de saúde. Há poucos anos eram 2.200.000. Subiu muito nos últimos. [Há] uma procura cada vez mais pronunciada de soluções privadas de educação, colégios e está a haver aqui um abandono daquilo que são os serviços públicos porque não se lhes reconhece, qualidade e celeridade. Qual é o problema disto? É que ficam nos serviços públicos os mais desfavorecidos que não têm o poder económico para contratar um seguro de saúde ou para pôr os filhos num colégio privado, e isso condiciona muito o desenvolvimento da sociedade. Temos ainda índices de pobreza, infelizmente, muito elevados. Não fomos capazes, nos últimos anos, de os contrariar. Cerca de 20% das crianças portuguesas correm risco de pobreza.

    Se cobramos muitos impostos, se os serviços públicos não correspondem, o que estamos é a criar as condições para que essa pobreza estrutural acabe por não ter condições para a combatermos ou não poder ser combatida. Porque quem não tem condições para recorrer a um serviço privado fica com uma saúde que não corresponde às suas necessidades. E quem está na escola pública também não reconhece que a escola pública esteja a funcionar. Aliás, temos, infelizmente, evidência disso com resultados dos últimos instrumentos de avaliação, o Pisa, e os próprios resultados das provas de aferição.

    João Cotrim Figueiredo, antigo líder da Iniciativa Liberal e cabeça de lista do partido para as Europeias de 2024, apoiou a candidatura de Rui Rocha à liderança da IL. (Foto: D.R.)

    Na Educação tem havido também algumas fragilidades. Na escola pública, por exemplo, também muitos alunos sem professor, os professores também a viverem, muitas vezes, sem as mínimas condições, terem que se deslocar para outras zonas do país. Na Educação, quais são as vossas propostas?

    Fazemos um diagnóstico de que continuarmos a ter milhares de alunos sem professor durante… Termos maus resultados nestes instrumentos de avaliação, como o Pisa, que saiu recentemente, ou as provas de aferição que foram divulgadas há menos dias. Temos professores, milhares de professores deslocados, desmotivados. Temos muito poucos jovens que querem ser professores. Os cursos de formação de professores ficaram praticamente desertos nos últimos anos. Tudo isto condiciona muito a tal ideia da educação como elevador social, como a preparação para a vida e como forma de eliminar essas desigualdades, essas dificuldades, essas carências de base, que uma parte da população das nossas crianças ainda enfrenta todos os dias. Todas as nossas soluções são o decorrer da análise que fazemos que isto não pode continuar. Depois, temos um conjunto de soluções de curto prazo de emergência, digamos assim, depois uma visão estrutural para a educação.

    Ou seja, também há uma a ideia na IL de que na Educação há que fazer uma reforma grande e as coisas têm de mudar bastante.

    Sim, é isso que nos distingue. Em cada tema que falamos, vamos encontrar a visão da IL de reformas estruturais, de que isto já não vai lá com remendos, que precisamos mesmo de mudar o país em muitas áreas, de forma muito significativa. A Educação é uma delas, do ponto de vista daquilo que são medidas de emergência. O que estamos a trazer para o debate político… Há a possibilidade de recorrermos a professores reformados, uma vez que já se alargaram os critérios que permitem leccionar. Isso não é suficiente. Continuamos a ter evidência de milhares de alunos sem aulas a disciplinas. Entendemos que, de forma voluntária, os professores interessados, que se tenham reformado, mas que ainda se sintam com energia –, se calhar não para fazer um horário completo, mas para fazer um horário de oito horas, um horário 10 horas –, possam acumular a pensão com uma remuneração pré-determinada, para que possam contribuir para este esforço de recuperação daquilo que é a escola pública. É uma situação de emergência obviamente. Segunda medida: a questão dos planos de recuperação de aprendizagens. A governação socialista avançou com planos nessa matéria, mas o Tribunal de Contas veio dizer que a execução desses planos ficou muito aquém daquilo que seria esperado, entre outras coisas, porque não foram fixados objetivos, não foram determinadas estratégias. É quase como se tivéssemos pegado em dinheiro e tivéssemos atirado mais uma vez para cima do problema. Mas os resultados estão à vista e o Pisa, como disse, é um bom exemplo. Adicionalmente, entendemos também que é preciso reintroduzir as avaliações de final de ciclo que elas contêm para a nota, porque só isso motiva. Já vimos que as provas de aferição não motivam os alunos para o esforço de tentarem [ter] melhores notas. E, se não tivermos avaliações que são credíveis, não sabemos como é que o sistema está e corremos o risco de andar anos com o problema a agravar-se, sem podermos actuar sobre ele. Isto é a visão de emergência que temos para a Educação.

    Depois, estruturalmente, baseámo-nos no princípio da autonomia e da liberdade de escolha na autonomia das escolas. Em nosso entender, as comunidades educativas são quem melhor conhece as condições locais e faz todo o sentido que sejam as escolas a fazer o recrutamento dos professores. Bem sei que, para ser completamente transparente, sou casado com uma professora do ensino público e a nossa família viveu as deslocações. A minha mulher esteve em Faro, esteve em Mirandela. Nós moramos em Braga. Portanto, na adolescência dos meus filhos, ela esteve deslocada vários anos, seis, sete anos. Deu aulas em Lisboa, em Loures. Sabemos bem que os professores, de alguma maneira, estão escaldados com as colocações feitas localmente, porque foram os critérios em determinado momento, foram pervertidos, foram criadas injustiças, mas é possível que o recrutamento seja local. Complementando critérios mais objetivos com avaliações específicas, nem todas as pessoas têm a mesma vocação para trabalhar em diferentes contextos socioeconómicos e a escola sabe melhor os alunos que têm e o perfil do professor mais adequado a cada um, a cada uma das escolas. É importante que as escolas tenham a possibilidade de estabelecer, dentro de determinada base, conteúdos curriculares também mais adequados àquilo que são os alunos, os interesses dos alunos e das suas famílias, a gestão da escola, dos horários, quando é que o ano lectivo começa. Dentro sempre determinados limites, mas há zonas do país onde, se calhar, começar um pouco mais tarde, faz mais sentido. Áreas onde há, por exemplo, muito turismo, onde os pais estão menos disponíveis para acompanhar um determinado momento: se calhar, atrasar 15 dias o começo do ano lectivo não é mau ou antecipar noutras regiões onde, por exemplo, o clima é mais adverso. Depois, as condições são adaptáveis, mas é a escola e a comunidade escolar conhece melhor as necessidades dos alunos e das suas famílias e devia haver uma grande autonomia da escola.

    Adaptado, portanto.

    Portanto, a nossa visão, mais uma vez, uma visão bastante diferente daquela que outros apresentam. Até porque parece haver aqui um fenómeno estranho que é de Portugal ser conhecido até por ter boas escolas, boas faculdades e dar uma boa formação ao nível universitário. Mas depois, em termos de ensino público, também os testes e os resultados estão muito aquém daquilo que poderiam ser e os últimos anos, com as medidas da grande regressão – sim, houve uma regressão, houve uma regressão nos últimos anos… É óbvio que uma parte da regressão tem a ver com a com a pandemia, com a perda de aprendizagens, mas regredimos mais comparativamente do que outros países da Europa e essa devia ser a nossa preocupação. E, independentemente de haver uma causa que pode ser a pandemia, devemos estar preocupados em como é que recuperamos agora essa perda de aprendizagens que tivemos. Não é seguramente com falta de professores e com conflitualidade laboral permanente nas escolas, que esse esforço de recuperação é viável.

    E há uma questão também que depois acaba por afectar aqui mais os jovens, que é a saída de jovens e dos chamados ‘cérebros’. Recentemente, o PÁGINA UM entrevistou, Nuno Palma, economista, professor na Universidade de Manchester, que deu um conselho aos jovens de votarem com os pés e saírem do país. Partilha deste tipo de visão? Imagino que talvez não, mas…

    Percebo o contexto em que isso é dito, mas acredito que podemos fazer mais, que Portugal pode fazer mais. E a luta fundamental da IL é construirmos um país, a partir de 10 de Março, em que possamos dizer aos jovens que já saíram que há uma oportunidade para voltarem, e aos que, neste momento, ponderam sair, um bocadinho com base nesse pensamento, que é possível fazermos mais, é possível termos um país diferente e é possível que haja aqui uma oportunidade para eles terem a opção de ficar. Não há nenhum problema especial na emigração de jovens quando ela é desejada, quando faz parte de um percurso de vida, quando se quer ter uma experiência, quando se quer diversificar conhecimentos. Tudo isso é ótimo, que uma ida ao estrangeiro, num contexto profissional, se faça, mas porque é uma opção, não porque é uma condenação. Aquilo que temos, hoje, os números… Ainda há relativamente pouco tempo, em 2022, mais 60.000 portugueses emigraram. É um movimento contínuo de perda de qualificações, de competências que não estamos a conseguir parar. É por isso que falamos do crescimento económico. É por isso que falamos das questões da habitação que afetam, sobretudo, os jovens, e dos salários. Tudo isso faz parte dessa economia que funciona, que tem remunerações mais altas… Também somos capazes de ter empresas com mais valor acrescentado, mais produtividade. Tudo isso faz parte dessa visão que queremos transmitir ao país, porque não desistimos dos jovens, dos salários.

    Temos de lutar por um país onde os jovens podem ficar. Tenho uma visão mais otimista no sentido de dizer, é possível. Mas só é possível se mudarmos de governo. Porque, como é óbvio, a IL considera que isso é absolutamente essencial. Mas não basta mesmo mudar de governo. É mesmo preciso fazer as tais transformações estruturais de que a IL fala.

    É possível fazer essas alterações estruturais e mantendo no poder esta rotatividade que tem existido entre dois partidos?

    Esse é o ponto quando dizemos que é preciso alterar, mudar o governo, porque é essencial. Estes nove anos não mudaram nada de essencial no país, pelo contrário. Foram anos, em muitas áreas, perdidos ou em que tivemos até regressão. Por exemplo, no caso da Educação, como vimos, ou da Habitação ou da Saúde. Não basta mudar o governo. É preciso mudar políticas. É por isso que dizemos uma coisa que foi muito discutida em determinado momento… Porque é que a Iniciativa Liberal se apresenta com os seus candidatos e com as suas listas nas eleições? Porque é que fazíamos questão de não fazer uma coligação pré-eleitoral e de irmos com as nossas ideias? Isso era fundamental, porque não há mais nenhum partido que apresente a reforma da Saúde tal como apresentamos. Não há mais nenhum partido que apresente a reforma da Educação como apresentamos. A reforma do sistema eleitoral, que também já apresentámos aqui na Assembleia da República – [em] que vamos insistir. Não há nenhum partido que ponha o crescimento económico no centro da ação política como a IL põe, e que ponha esta ambição do país – que pode ser mais essa insatisfação com aquilo que vivemos, hoje, e essa vontade de mudar e de mudar, de mudar a série…

    A IL no Carnaval de Torres Vedras. (Foto: D.R.)

    Mas está disponível para entrar e colaborar, participar em coligações que surjam para viabilizar um governo?

    Somos também muito claros. Da mesma maneira que dissemos que não iríamos com mais ninguém, não prescindíamos das nossas ideias, do nosso programa e das nossas listas nesta eleição, somos também muito claros sobre os cenários em que admitimos algum tipo de entendimento. Admitimos entendimento – temo-lo dito – com o PSD, será o parceiro natural para um entendimento eleitoral, com determinadas condições – as condições, mais uma vez, são fáceis de entender. Ou seja, queremos mesmo que haja uma descida de impostos para as pessoas e para as empresas e isso tem que estar assegurado, porque entendemos que é o motor da recuperação e do desenvolvimento económico e social do país. Esta visão da Saúde, que tem que ser também uma visão estrutural na reforma estrutural à Habitação, a Educação…, portanto, é mais ou menos fácil. Já sabemos que num entendimento não haverá lugar para todas as nossas medidas com um nível de ambição que possibilitem que sejam integralmente cumpridas. Mas, quer destas medidas, quer destas áreas, quer de que se trate de uma visão ambiciosa, não conformista, que não seja mudar só por mudar, só para mudarem as caras. Isso não é suficiente, tem de ser mudar a sério.

    Na prática.

    Depois, estes casos que aconteceram na Madeira também evidenciaram o porquê da IL ter mantido essa intenção de apresentar as suas próprias ideias e programa. Também não prescindimos de uma visão de exigência no exercício das funções públicas das responsabilidades públicas e não prescindimos de ter o mesmo critério. Portanto, dois pesos e duas medidas. Com a IL não funcionarão. Sabemos que nos sistemas humanos há situações indesejáveis que acontecem. É preciso preveni-las, mas sobretudo, depois, quando elas acontecem, é preciso agir sobre elas de forma determinada. O que não aceitamos é que se apliquem dois pesos e duas medidas a situações que são, em bom rigor, bastante semelhantes e isso fará parte das nossas exigências para a participação em qualquer tipo de entendimento.

    No caso do PSD, está também aqui em coligação e, portanto, aí essa abertura, essa disponibilidade da IL também abrange…

    Sim. Relativamente aos partidos que integram, a coligação AD, temos mais proximidade com algum deles, depois temos uma menor proximidade a outros. Mas creio que o fundamental é mesmo a posição que, numa eventual negociação, se possa alcançar, que tem que respeitar estes princípios, além daqueles outros óbvios que a IL não prescinde… não é de só a questão da exigência ética no exercício das funções públicas e das funções políticas de responsabilidade, são também as questões fundamentais da liberdade de expressão da liberdade individual, da autodeterminação do indivíduo, a separação de poderes. Tudo isso faz parte das ideias liberais. Seremos muito exigentes nessa matéria, mas creio que só cumprimos as nossas responsabilidades perante os eleitores e perante os membros da IL e [perante] as pessoas que votam em nós e que confiam em nós se tivermos essa exigência. Não se trata de fazer uma exigência absurda. Trata de fazer uma exigência de responsabilidade, de compromisso com aquilo que são as nossas propostas. E uma exigência, sobretudo, com os portugueses que nos apresentamos com esta visão transformadora e diferente de todos os outros partidos. Portanto, o resultado de um eventual entendimento tem de reproduzir essa visão transformadora que temos.

    (Foto: D.R.)

    Falou na questão dos casos na Madeira, há mais espaço dedicado a estes casos de corrupção, a casos de polícia, do que propriamente àquilo que são as propostas e as soluções para o país. E falo aqui também da questão da cobertura mediática que tem existido numa época que já é pré-eleitoral.

    Defendemos, sem nenhuma reserva, a liberdade de imprensa e o critério final tem de ser mesmo um critério de quem faz a cobertura destes acontecimentos, e de quem acompanha a atividade política. Na medida em que valorizem mais as reações e as posições relativamente a estas questões, enfim é um critério jornalístico. Creio que faz parte depois da nossa responsabilidade como políticos ter uma posição sobre os factos relevantes que acontecem, mas depois de ter a capacidade também de apresentar propostas, medidas, ideias que também despertem o interesse. É um trabalho mais de quem está do lado da responsabilidade política, que eventualmente dos órgãos de comunicação social, porque esses seguem os seus critérios que são, obviamente, legítimos, absolutamente legítimos.

    Existe pluralismo verdadeiro, ou seja, existe uma capacidade de os grandes grupos de comunicação social de ouvirem as propostas dos partidos, em geral?

    Sei, por experiência própria, que se me pronunciar sobre um daqueles factos do dia, que suscitam um interesse momentâneo, instantâneo, se na mesma intervenção falar de um programa estrutural para a Saúde, há mais probabilidade de essa posição sobre o tema do dia ser ouvida e ser reproduzida do que o tal grande programa de reestruturação da Saúde. Há aqui uma preferência, muitas vezes, dos órgãos de comunicação social, sobre as questões que também, provavelmente, geram depois mais audiência e mais interesse. Mas é o que eu digo: creio é que tem que estar mais do lado da responsabilidade política dar corpo a essas ideias, a esses programas, essas iniciativas, de forma a gerar o interesse que equilibra aquilo que é o natural de interesse do momento, que é que nós temos também em Portugal, nesta altura infeliz. É que, de facto, têm acontecido muitas coisas, não é? Têm acontecido muitas coisas. Quer dizer, se nós olharmos, um governo caiu. Mas a pergunta é: o governo podia continuar em funções depois do círculo próximo do primeiro-ministro estar envolvido em questões que são, hoje, conhecidas e isso não é relevante? Não é relevante, do ponto de vista do interesse dos portugueses, o interesse dos órgãos de comunicação social, do interesse político, perceber como é que aquilo acontece, em que condições? Isso não revelará uma menor, uma menor exigência no exercício das funções e não deverá ser objeto de reflexão? Dois meses depois, ou pouco mais de dois meses depois, cai um governo regional. Porquê? Porque são identificados um conjunto de práticas no círculo próximo, muito próximo do presidente do governo regional. O caso Sócrates teve aqui um desenvolvimento. Ou seja, acontecem muitas coisas, mas não devemos desvalorizar isso agora. Mas isso, mais uma vez, é responsabilidade do poder político. Como é que se combate este estado de coisas? É com barulho, é com indignação, que depois não tem consequências que não sejam a de ruído que se faz e da chamada de atenção que se faz por alguns actores políticos, ou é com uma visão concreta que possa ajudar a que este tipo de situações não aconteça tão regularmente? Eu vou mais por esta segunda possibilidade. Como? Primeiro, aquilo que falávamos há pouco, não aplicando dois pesos e duas medidas a estas situações. Isso é fundamental, porque às vezes isto envolve pessoas que estão do outro lado do espectro político e é mais fácil tomar uma posição de crítica. Mas, quando envolve quem está um pouco mais próximo, temos de ter a mesma isenção, acho que é fundamental.

    Tem de haver o mesmo…

    O mesmo critério. Porque, senão, aí é que as pessoas não percebem. Se tivermos critérios divergentes, então é que isto fica tudo em crise, crise de valores. Isso é o que devemos evitar. Não creio que as questões da corrupção se possam combater com ruído, com vozes mais altas, com indignações inflamadas. Acho que se combatem, por exemplo, com coisas que estamos a propor: simplificação; desburocratização. Quanto mais complicado é um processo… Por exemplo, hoje, um investimento em energia fotovoltaica em Portugal implica a intervenção de 30 organismos do Estado. E, por isso, demora três anos. Num processo tão longo, é muito fácil imaginar que possa quem se queira aproveitar deste excesso de intervencionismo do Estado, excesso de processos, excesso de burocracia, para instalar um conjunto de práticas que são práticas de corrupção ou lá próximas e absolutamente indesejáveis. O que é que é melhor? A indignação inflamada, não é olharmos para os processos e ver como é que podemos simplificar como é que pode…? Como podemos pôr isto mais ágil, com menos intervenções, com menos meandros que, depois, só quem domina certos circuitos e consegue pôr em causa. Penso que é muito mais útil esta reflexão que fazemos sobre a simplicidade e a desburocratização do que uma indignação inflamada, que, no final do dia, tem muitos decibéis, mas não tem soluções.

    (Foto: D.R.)

    Ou seja, esta questão de alguns dos casos que temos vindo a assistir também se trata no fundo, da forma como os processos estão a decorrer e como as coisas funcionam.

    Sim. Isso também nos leva a uma outra … Há a evidência de que há muita complexidade das coisas, muita, muita falta de transparência. É aí que devemos actuar. Depois leva-nos a outra consideração que também [está] associada a essa, que é a questão da Justiça. E vemos também discursos, pois é a tal história dos dois critérios ou dos critérios diferentes quando toca à porta de uns. E porque a Justiça tem uma agenda, mas quando toca à porta dos do outro lado, não. Nesse caso, a Justiça já está a funcionar. E qual é o final disto? É que os portugueses, depois, também já não acreditam na Justiça. Isso é um discurso muito perigoso. Obviamente, a Justiça tem as suas críticas ou deve sofrer também crítica. Quando olhamos para um processo como o de José Sócrates, que se prolonga por décadas, isso não é aceitável. Não é, não pode ser, mas quando a relação? Se pronuncia e diz que José Sócrates deve ser levado a julgamento por actos de corrupção, isso é ou não é a Justiça a funcionar? Eu digo que é e não vou criticar isso quando estiver num quadrante político que de que eu tenha mais proximidade. Vou dizer: a Justiça próxima é a justiça a funcionar.

    Como é óbvio, quando há uma investigação que abrange as pessoas que estão no círculo muito próximo do primeiro-ministro, isso é a Justiça a funcionar. Ou não? Eu digo que é. O que é que preferíamos: que a Justiça não avançasse, que não fizesse investigação. Quando vemos a Justiça na Madeira investigar situações como aquelas que resultaram na demissão de Miguel Albuquerque, isso é a justiça a funcionar. Ou não é? É. Ficávamos mais contentes se estas investigações não acontecessem, se houvesse este tipo de práticas e não fossem investigadas? Por mim, não. Portanto, quero acreditar que, infelizmente, há uma acumulação de casos destes no tempo muito próximo, com situações graves, que implicam a queda de governos regionais e nacionais. Mas quero crer que tudo isto é feito porque a Justiça está a funcionar e é o poder político que tem que se questionar sobre o nível de exigência ética que está a colocar na condução das coisas públicas. Penso que essa reflexão é fundamental.

    Na questão da Justiça, também algumas empresas, nomeadamente multinacionais, muitas vezes, um dos travões que as leva a não entrar em Portugal, a não investir, é a morosidade na Justiça e imprevisibilidade nesse campo. Tem alguma proposta sobre o que pode ser feito para minimizar esta situação?

    Creio que, quando uma empresa estrangeira olha para um país, avalia três coisas fundamentalmente. Avalia a rapidez dos licenciamentos da atividade. Ninguém quer estar três anos ou quatro anos à espera de poder iniciar uma atividade. Se estiver, provavelmente vai olhar para outro país para fazer o seu investimento. Tem também, obviamente, uma preocupação com a questão dos impostos. Por isso é que queremos baixar o IRC de base para 12%. Depois, será de 15% para as multinacionais por imposição Europeia, mas o IRC de base para nós será de 12%. Precisamente, porque queremos atrair grandes empresas e empresas em geral para trazerem capital para Portugal. Precisamos muito de capital, somos muito deficitários de capital.

    Depois, a questão da Justiça, obviamente. Porque se for um investidor estrangeiro e me disserem que, se tiver um problema com o Estado, posso demorar 10 anos, 12 anos a ter uma decisão no Tribunal Administrativo… Isso faz com que … Se olhar, os impostos são os que são, a Justiça tarda como tarda, os licenciamentos são também tão demorados, como são… Provavelmente, é melhor levar este investimento para outro lado. Isso tem acontecido ao longo dos anos, muitas vezes, demasiadas vezes. Na Justiça. o que temos são propostas muito concretas para a justiça administrativa. Hoje, uma decisão em primeira instância num tribunal administrativo pode demorar mais de 850 dias, em média. Estamos a falar de dois anos e meio.

    Isso é uma eternidade para os negócios.

    Claro. E é a primeira instância. Ainda estamos, depois, à espera depois da conclusão. Isso é uma eternidade. Na Europa conseguem fazer isto abaixo de 400 dias. Um dos cinco objetivos transformadores que apresentamos para Portugal é que as decisões em primeira instância, nos tribunais administrativos, passem para menos de um ano, reduzindo em mais de metade da duração atual. Como é que isto se faz? Por um lado, com a simplificação de que falávamos, porque quanto menos burocracia houver, menos dúvidas de interpretação se geram menos complicações, menos complexidade, portanto, o contencioso tente a diminuir.

    Segunda medida importante: a introdução de um mecanismo que faça com que a arbitragem passe a ser uma solução. Quando um processo em tribunal administrativo demora mais do que um tempo determinado, passando esse tempo, o processo vai para arbitragem, permitindo às partes que tenham uma solução mais rápida. Uma outra medida para além de outras, temos no programa a criação de tribunais especializados, de competência especializada. Por exemplo, em matéria de urbanismo, que é uma matéria que tem uma complexidade grande, que gera muito contencioso, hoje, em Portugal. É preciso haver competências especializadas nessa área. Temos outras medidas no programa, todas neste sentido, mas o objetivo final é reduzirem mais de metade o tempo de tramitação de um processo em primeira instância, em termos médios.

    (Foto: D.R.)

    Ao nível da Comissão Europeia e da União Europeia, tem havido questões relativamente a casos também, infelizmente, de corrupção, de suspeitas, de falta de transparência. A elevada burocracia é também algo que se fala muito. Pensa que há muito trabalho a fazer também nesse campo?

    Creio que há trabalho a fazer na União Europeia enquanto tal e há trabalho… Portugal também, na transposição daquilo que são, quer em termos legislativos, quer em termos da legislação que Portugal depois incorpora nas questões que dizem respeito à União Europeia. Na União Europeia, creio que temos um excesso de complexificação. Vemos que os Estados Unidos, em muitas matérias, são muito mais ágeis. A União Europeia tem uma sempre uma grande preocupação de regulamentação, de regulamentar muito cedo todas as questões. Isso é bom, até determinado limite, porque cria um contexto regulatório conhecido estável. Mas quando há excesso de regulação, também estamos a condicionar o crescimento económico.

    Por exemplo, a inteligência artificial é um bom tema. A União Europeia avançou com uma regulação da inteligência artificial. Os Estados Unidos estão, neste momento, preocupados em desenvolver, e não tanto em regular ou limitar. O equilíbrio… Também não defendo a desregulação total, obviamente, mas creio que que há um desígnio de contenção no excesso de regulação que a União Europeia muitas vezes acaba por desenvolver. E uma das vantagens da presença de deputados liberais da IL, a representação dos liberais portugueses no Parlamento Europeu nas futuras eleições, é precisamente trazer esta visão, que é uma visão dinâmica que acredita muito na regulação, mas que não acredita numa regulação que condiciona totalmente a atividade económica. Na transposição, quer da visão, quer depois da legislação, Portugal tem às vezes também, estado mal.

    Falávamos da corrupção. Ainda agora o GRECO [Grupo de Estados Contra a Corrupção] , a entidade que acompanha a implementação do desenvolvimento das medidas anticorrupção, veio questionar Portugal e desafiar Portugal. Porque, na verdade, há uma estratégia anticorrupção que o Governo socialista aprovou. Mas a implementação concreta das medidas, todas as medidas que dizem respeito à transparência, aos processos, e à sua estruturação, ficamos muito aquém na execução e depois somos sancionados de alguma maneira por essa visão menos abonatória que estes organismos têm. Depois, os investidores conhecem esses relatórios e entendem que Portugal tem custos de contexto demasiado elevados para a rentabilidade que podem aqui encontrar.

    Ou seja, há anúncios que é “para inglês ver”…

    Sim. Agora já não inglês, porque os ingleses já saíram, já abandonaram a União Europeia, mas para europeu ver. Creio que isso é verdade. Devemos evitar o excesso de regulação, mas devemos também evitar esses anúncios proclamatórias que depois não se concretizam em medidas concretas em áreas fundamentais.

    Tem havido uma percepção, não só em Portugal, mas ao nível da União Europeia, há uma predominância em termos de ideologia de esquerda e uma forma de estar que não é tão próxima daquilo que é a visão da Iniciativa Liberal. Num mundo em mudança, em transformação, com cada vez maior presença da tecnologia, com o mundo em que podemos trabalhar a partir de qualquer lado, fazer negócios e investimentos a partir de qualquer lado… faz falta um pouco mais de visão liberal?

    Olhando para Portugal, claramente. Depois, para a Europa, creio que falta mesmo esta ideia de dinâmica. Acho que nós perdemos, na Europa, nestes últimos anos… E fomos deixando que essa ambição esmorecesse. Fomos fazendo conquistas, obviamente muito importantes. Não é do ponto de vista da qualidade de vida e dos valores que perfilhamos, da liberdade. E isso, de alguma maneira, pode ter nos tirado esse ímpeto reformista que é verdadeiro na Europa. Essa ambição transformadora e que é ainda mais aguçada em Portugal. Essa energia liberal que nós fizemos questão de ter presente nestas eleições com os nossos programas e as nossas ideias. É algo que faz parte também dessa necessidade de revitalização da ideia Europeia. Porque parece que entrámos aqui numa espiral depressiva em alguns momentos. Tem a ver com todo um contexto, mas essa revitalização, essa energia adicional, creio que é muito necessária nesta altura.

    Deixe-me só dizer um ponto que tem a ver com esta ambição ou com esta perda desta ambição, que é muito, muito importante. É que na Europa estamos num momento em que, ao contrário do que acontecia nas últimas décadas, não estamos em condições de garantir que a próxima geração vai ter o mesmo nível de vida que as gerações anteriores tiveram. Isto é um momento marcante. Porque, até agora, nas últimas décadas, foi sempre possível pensar e assegurar que a geração seguinte tinha uma vida melhor, um melhor nível de vida e melhor qualidade de vida. Isso, hoje, está em causa. E isso tem de convocar o poder político, quem tem responsabilidade política, para retomar essa energia, essa ambição. Porque não podemos aceitar como bom esse cenário em que deixamos à próxima geração uma dúvida ou até uma certeza, em muitos casos, de que vão ter pior qualidade de vida do que aquela que a geração anterior teve.

    (Foto: D.R.)

    Mas há correntes de pensamento, e têm saído até alguns artigos sobre isso, que defendem que até para se implementarem algumas medidas, as sociedades democráticas não são a melhor opção. E tem havido regulação aprovada ao nível da União Europeia que vem, por exemplo, condicionar a liberdade de imprensa, o que veio surpreender muitos jornalistas por se poder condicionar a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão. Também algumas medidas que foram tomadas durante a pandemia foram vistas como atentados àquilo que é até a visão liberal do mundo e de uma sociedade democrática. Começa a haver correntes que defendem que, para se implementarem certas medidas, é melhor viver em regimes não democráticos. Como é que vê estas ideias, inclusive entre partidos políticos?

    Sim. Nós defendemos, sem reservas, o princípio da liberdade individual. É o princípio fundador da nossa proposta política. Assentamos toda a nossa visão política, social, económica, no princípio da liberdade individual. Na pandemia, por exemplo, a IL foi o único partido que nunca votou a favor de um Estado de emergência. Porque é que não o fez? Porque entendeu que estávamos perante situações que abriam a porta ao abuso do Estado. Creio que esse abuso do Estado aconteceu em vários momentos da gestão da pandemia, com medidas que eram francamente excessivas, que violavam de forma desnecessária aquilo que era a liberdade individual. Nós votámos sempre contra os Estados de emergência, ou melhor, nunca votámos a favor. Abstivemo-nos na primeira vez e, depois, tivemos uma posição contrária, enquanto o Chega, por exemplo, queria implementar confinamentos obrigatórios para doenças respiratórias. Estamos do outro lado desta visão do mundo que, em Portugal, pode ser corporizada por um Chega, com essa visão iliberal da sociedade.

    Para nós, na dúvida, mais liberdade, mais liberdade individual. Na dúvida, mais liberdade de expressão. Na dúvida, mais liberdade económica. Na dúvida, mais liberdade social. É essa a nossa visão, claramente. Estamos sempre do lado oposto dessas visões mais iliberais que dizem que é preciso regimes mais musculados, que algumas das liberdades podem ser controlo. Porque, depois, quem paga são sempre os mesmos. Começa a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, por aí… E quando, depois, não se corta no início este tipo de vertigem ou tentação, é sempre muito mais difícil recuperar as liberdades que se perderam. Nós estamos sempre do lado que defende mais liberdade.

    A pandemia trouxe a oportunidade para certas organizações poderem reforçar os seus poderes. Neste momento, Portugal e os restantes países estão a ter de discutir alterações ao Regulamento Sanitário Internacional, que vão implicar, junto com o chamado Tratado Pandémico, mais poderes para a Organização Mundial de Saúde (OMS), que é uma entidade também financiada por privados e que é vulnerável a influências de privados, alguns deles com interesses em negócios, indústrias, etc. Como pode Portugal dar esse reforço de poderes, mas manter a sua capacidade e a sua flexibilidade para poder, por exemplo, fazer como a Suécia fez na pandemia? A Suécia rejeitou algumas das medidas da OMS e geriu a pandemia com muito mais sucesso, visto que é o país com a menor taxa de excesso de mortalidade, enquanto Portugal é dos países que tem mais.

    Respondo a isso dizendo que defendemos na Revisão Constitucional. Uma das questões que estava em cima da mesa nesta Revisão Constitucional e que, quer PS quer PSD mostraram disponibilidade para avançar, era que pudéssemos ter aqui confinamentos decretados por entidades administrativas, sem intervenção prévia de quem a deve ter, do poder político, a Assembleia da República, sem sequer questões de validação judicial ou constitucional. A IL tomou uma posição muito clara. Não aceitamos esse tipo de limitações à liberdade. Não se trata de não termos preocupação com a saúde, com o bem-estar das pessoas. Obviamente, não é disso que se trata. Mas, no momento em que começamos a ceder princípios fundamentais da liberdade e a permitir que decisões que são gravosas para a vida das pessoas, depois que sejam tomadas por entidades administrativas, sem nenhum tipo de validação política, manifestámos imediatamente a nossa oposição. Se isso, por acaso, avançasse, seria um daqueles casos em que faria todo o sentido que a IL fosse para a rua, convocasse os portugueses, em defesa da liberdade. Aí está a nossa posição e é uma posição que tem expressão na nossa visão constitucional.

    Então esperemos que Portugal tome uma posição também nesta altura, antes de aderir as estas alterações que estão a ser feitas ao Regulamento Sanitário Internacional. Ainda há tempo. Mas, não falámos ainda de um tema que também é importante, e abrange a União Europeia, porque acaba por ser algo que é feito no espaço comunitário, que é o da imigração. E, depois, temos jovens a emigrar, a sair do país. Temos uma questão de demografia que tem que ser endereçada e da sustentabilidade da Segurança Social. Contudo, também há os desafios trazidos pelo facto de haver um grande fluxo de entrada de pessoas que não falam a língua, que vêm de outras culturas. Há países na Europa que já estão a lidar com problemas graves devido a esta esta questão. Como é que Portugal pode ter a receita certa, equilibrada, para recebermos imigrantes, mas, ao mesmo tempo não entrarmos no desequilíbrio, como acontece já em alguns países?

    No que diz respeito ao fluxo que leva portugueses para o estrangeiro, as nossas propostas de que falámos, como o crescimento económico, o aumento dos salários, as questões ligadas à Habitação, também as apostas que temos em termos de transportes, para dotar Portugal de um sistema de ferrovia mais avançado… Fazem parte da nossa proposta virada para tornarmos Portugal o tal país onde quem saiu, pode regressar e quem está, pode aqui construir a sua vida. No que diz respeito ao fluxo inverso de entrada em Portugal, a primeira nota é fundamental: vemos esse fluxo de imigração como um fluxo bom para o país. Temos um país envelhecido, temos um país que tem perdido, pelas circunstâncias que conhecemos, jovens.

    Temos uma visão favorável à imigração, estruturalmente, porque é uma questão de dignidade. É uma questão de respeito pelos direitos humanos e pelo direito de circulação. E isso é um princípio liberal. Mas temos também uma preocupação de que essa migração seja feita com dignidade e que as pessoas tenham condições para estar com dignidade no nosso país. O aspecto fundamental que identificamos nesta matéria é o funcionamento daquilo que era o SEF, AIMA e todas as entidades criadas nesta matéria. Porque, quando recebemos as pessoas e não há nenhum tipo de controlo, nem de estrutura administrativa, que faz o enquadramento destas pessoas em Portugal, o que temos é que as pessoas ficam numa situação de clandestinidade ou semiclandestina e vulneráveis a todo o tipo de exploração, de abuso. Isto é algo que não que nos parece desejável e que não podemos aceitar. Acho que a primeira prioridade, depois podemos discutir outro tipo de políticas, outro tipo de abordagens, mas essas abordagens partirão sempre desse princípio de sermos favoráveis a que Portugal receba a imigração. Somos um país de emigrantes e, portanto, isso faz sentido.

    (Foto: D.R.)

    Mas a estrutura administrativa tem de funcionar. E podemos aceitar que, depois, faça uma discussão à volta disto, mas sem que isto esteja assegurado, não há nada que funcione. Tem de haver um reforço, se calhar dessas estruturas, para que funcionem.

    A governação socialista falhou em muitas áreas. Falámos delas. Falámos da Educação, da Saúde, da Habitação, mas esta não é uma das áreas que tenha falhado menos. Tudo aquilo que aconteceu à volta do SEF, a implosão dos serviços, a demora na reestruturação, a ideia que ainda não ninguém percebeu bem se era mesmo uma necessidade ou se era a necessidade do governo inventar qualquer coisa para desviar atenções daquilo que foi a implosão do SEF. Tudo isto demorou demasiado tempo. Quando dizemos que temos centenas de milhares de pessoas com processos, que estão na tal situação de semiclandestinidade, porque não conseguem que administrativamente lhes deem seguimento aos seus processos é uma área gravíssima de falhanço do Governo socialista. Depois, tem as consequências para todos, sobretudo para aqueles que estão nessas situações sujeitas a abusos e a todo o tipo de exploração, que é francamente indesejável.

    Já falou em medidas, mas quais são os objetivos da IL nestas eleições? O que é que espera? Há sempre muitas sondagens… Quais são exatamente as vossas metas?

    Definimos essas metas há, relativamente, pouco tempo, há pouco mais de uma semana, e essa meta é para nós muito clara. Queremos mais de 50% relativamente ao resultado que obtivemos nas eleições anteriores, de 2022. Porque é que nós entendemos que temos este potencial? Precisamente, por aquilo que fomos falando ao longo desta entrevista. Temos uma posição muito diferente. Temos uma posição muito diferente na Saúde, na Educação, na Economia, no crescimento, na Habitação. E entendemos que os eleitores, à medida que o tempo for passando e que nos formos aproximando daquilo que são as eleições, compreenderão melhor porque é que tínhamos que ir com as nossas listas, com os nossos programas e com as nossas propostas e valorizarão essa capacidade de desafiar o país, essa ambição, essa vontade de mudar, mesmo mudar o país. É um processo que vemos como sendo de crescimento ao longo desta campanha eleitoral, por diferença daquilo que são as propostas e a visão dos partidos concorrentes. Cremos que teremos a capacidade de desafiar o país, de apresentar esta ambição e de crescermos. Porque, se queremos que o país cresça e se temos a ideia de que as nossas propostas são as propostas que fazem falta ao país, então temos que acreditar que a IL vai mesmo crescer eleitoralmente.

    E já é uma preparação para as europeias?

    Bom, tudo é uma preparação para tudo, não é? Obviamente que, tendo esta capacidade de comunicar intensamente nesta campanha eleitoral com os portugueses, dando a conhecer a nossa visão, temos esta convicção de que isso vai ajudar todos os atos eleitorais que vierem a seguir. Esta afirmação das ideias liberais no país vai contribuir depois para os actos eleitorais seguintes.

    (Foto: D.R.)

    O ruído nos media na questão dos casos que têm ocorrido pode ser uma oportunidade para outros partidos, que não os do chamado arco do poder, apresentarem as propostas e os portugueses olharem agora com outros olhos, se calhar com maior atenção, para as propostas dos outros partidos?

    Creio que sim, porque estamos, quer naquilo que diz respeito às condições essenciais do país, ao crescimento económico, que tem sido medíocre, aos salários, que são baixos. à emigração de jovens que continua, à natalidade, que cresce muito pouco… Com tudo isto, revela um Estado de estagnação do país que temos que combater. Isto associado a todas as questões mais ligadas aos casos, alguns casinhos, mas outros que não são casinhos, são casos graves, que temos constatado. Eu creio que isso traz aos portugueses primeiro, talvez um momento de estupefacção perante tudo isto. Mas espero, depois, que essa estupefacção seja transformada em energia para mudar. Aí uma escolha muito clara é que não vale a pena mudar para ser mais do mesmo. É aquilo que o Partido Socialista, que esteve no poder praticamente 20 e tal anos nas últimas três décadas, tem trazido. Também não creio que o PSD, por si, tenha essa capacidade de se diferenciar de forma pronunciada. Portanto, faz falta um partido com uma Iniciativa Liberal que tenha essa ambição, tenha essa capacidade, tenha isenção e esse distanciamento de tudo aquilo que foi a governação até esta data e que tem essa energia transformadora. Confio muito é que isto, esta estupefacção que os portugueses podem sentir em determinado momento, se transforme depois em energia para a mudança, mas mudança com soluções, mudança com propostas mudar. Porque alguém faz mais barulho? Tudo bem, estamos no momento de campanha eleitoral. O barulho pode até ser importante, mas e, no dia seguinte, quando for mesmo para concretizar? Soluções, onde é que estão as soluções de quem faz muito barulho? Nós temos, acabámos de falar delas. Temos uma visão concreta de medidas concretas para transformar o país.

    Até porque o grande adversário dos partidos acaba por ser a enorme abstenção.

    Certo, e é isso. Quem estiver em casa e olhar para tudo isto que tem acontecido no país e se não vir um partido com uma Iniciativa Liberal, com propostas concretas, com visão transformadora, com reformas estruturais, com coragem e energia, o que é que pensa? Mas vou votar nos mesmos de sempre? Vou votar naqueles que fazem muito barulho? Mas, quer dizer, o barulho não resolve. Quem é que tem as soluções para, a partir de 11 de Março, começar realmente a mudar o país?


    Pode consultar AQUI o programa da Iniciativa Liberal para as Legislativas de 2024.


  • ‘A extrema-direita e o Partido Socialista são quase um líquen; alimentam-se um do outro para sobreviver’

    ‘A extrema-direita e o Partido Socialista são quase um líquen; alimentam-se um do outro para sobreviver’

    Antigo presidente da ‘jota’ social-democrata, Jorge Nuno Sá desfiliou-se do PSD, no qual fora deputado, e seguiu as pisadas de Pedro Santana Lopes na fundação do Aliança em 2018, ‘herdando’ depois o partido quando o actual autarca da Figueira da Foz se cansou em não conseguir capitalizar em votos a sua popularidade mediática. Aos 46 anos, o líder do Aliança vai a votos, desta vez, coligado com o Movimento Partido da Terra (MPT), sob a denominação de Alternativa 21, e apresentando como ‘trunfo’ em Lisboa o antigo número 2 do Chega, Nuno Afonso, clamando, em simultâneo, por uma racionalização do debate político e por medidas de direita sem estarem baseadas em mitos. Esta é a quinta entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.



    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE JORGE NUNO SÁ, PRESIDENTE DO ALIANÇA, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    É antigo líder da Juventude Social Democrata (JSD), também antigo deputado do PSD e é deputado municipal em Lisboa, pelo Partido Aliança, que integrou a coligação que deu a maioria [na lista de Carlos Moedas] à Câmara de Lisboa. Muito obrigada, Jorge, por ter aceitado este convite do PÁGINA UM.

    Obrigado eu. Essa espécie de currículo, tendo em conta a opinião que as pessoas têm, é quase um cadastro [risos]. Com tanto cargo exercido… Mas também tenho, além disso, uma vida profissional que eu gosto sempre de dizer e de realçar, pois não vivo exclusivamente da política, o que é muito importante para mim.

    Em todo o caso, os nossos ouvintes e leitores poderão consultar a sua biografia através de um link, para fazer ‘justiça’ e não haver o risco de pensarem que é aquilo que se chama o carreirista, ou ter os sucessivos “jobs for the boys” [risos].

    [risos] Exactamente, agradeço.

    Para ficar esclarecido, até porque, de facto, é importante, e estar a dar esta tónica mais na actividade política não é correcto. Sobretudo, como disse, pela percepção que existe…

    Correcto é, porque tenho esta vida política e não a escondo. Mas eu gosto muito que as pessoas vejam isso, porque fico admirado quando às vezes… Não quero fulanizar, mas ultimamente, até há aí uma política que tem muito jeito e tal: nunca trabalhou na vida, nunca fez mais nada. Só vivem naquele circuito fechado. Eu contra mim falo – e desculpe já ter aqui começado a falar –, fui eleito deputado com 23 anos; era um miúdo. Não é que isso seja defeito. Nem acho que não deva haver deputados com essa idade. Mas, evidentemente que tinha uma visão da vida muito diferente da que tenho hoje aos 46 anos; e já tendo exercido outros cargos e trabalhado noutras funções e ter pagado ordenados, e ter empresas que correram bem e que correram mal, porque isso nos dá uma experiência de vida que é impossível ter aos 23 anos. O único defeito é quando se entra na bolha da política aos 19, 20, ou 23 anos, e não se sai dela; porque se vive num mundo artificial. E começa-se a falar das pessoas como um objecto, e que não se sabe muito bem qual é a vida deles. Quando eu era deputado, costumava dizer aos meus colegas – porque eu sou um bocadinho desbocado, para quem me conhece – que as alcatifas do Parlamento são muito grossas; e se as pessoas se habituam a andar só nelas, perdem o contacto com o chão e com a realidade. E muitas vezes, nos debates, fazem-se aquelas perguntas de algibeira: “sabe quanto é que custa o passe?”, ou “sabe quanto é que custa a refeição na cantina?”. E eles estudam só aqueles números para poderem responder à primeira. O problema é que não sabem a vida real das pessoas. E essa é que é a grande dificuldade. Isso acontece muito, e é generalizado, da esquerda à direita. Não vou dizer que isto é um problema da esquerda, da direita ou do centro, porque é generalizado; um problema da nossa classe política. Muitas vezes, desligada da realidade. E nós assistimos, às vezes, aos debates e parece que estão a falar de um mundo que não é aquele em que nós vivemos. Esse é que é o defeito.

    Também há uma certa diabolização da política. Hoje, sente-se um grande divórcio entre a classe política e a população.

    Sim. A vida política tem funcionado muito em circuito fechado. Contra mim falo. Às vezes, não se prioriza o contacto com as pessoas, ou só se prioriza quando é preciso ir buscar votos ou na campanha eleitoral. E, no intervalo, falha-se nisso. Eu, modestamente, tento combater um bocadinho isso. E quem tem lidado comigo – principalmente agora aqui na Assembleia Municipal e noutros cargos que desempenhei –, sabe que sou uma pessoa que vai ao terreno, que fala com as pessoas. Aliás, um dos princípios fundadores do Aliança era o princípio personalista, humanista, do contacto das pessoas. O nosso primeiro slogan era “das pessoas para as pessoas”. E tinha um bocadinho a ver com isto: com colocarmos a pessoa no centro da acção. Porque quando nós nos limitamos à macroeconomia… Eu não estou a dizer que não seja importante. Mas, e no caso concreto de Portugal neste momento, os índices macroeconómicos até são simpáticos. Nós temos uma redução da dívida pública abaixo dos 100%, que é uma coisa quase inédita. Temos temos tido superavits orçamentais, coisa que não existia, e a vida das pessoas está melhor. Esse é o problema; porque eu sei que nós temos de cumprir critérios internacionais, e quando nos pusemos de joelhos a pedir dinheiro para pagar contas, tivemos de nos sujeitar – em de 2011 a 2015, tivemos de pedir dinheiro emprestado para viver. E aí, temos de nos sujeitar às condições que nos impõem. Mas quando temos estas folgas, como temos neste momento, é preciso perceber se a vida das pessoas está melhor.

    E de 2011, já vai um tempo.

    Exacto. Mas há pessoas que gostam de ‘cristalizar’ em algumas épocas históricas para dizer que têm sempre razão. E os tempos mudam, e já mudaram muito; de 2011 até hoje, o mundo mudou. Aliás, nos últimos dois anos, o mundo mudou em muitas dimensões. Às vezes vemos debates na televisão, e falam na dívida pública e no PIB per capita… E em que é que isto se reflecte na vida das pessoas?

    Até porque essas questões, como a dívida pública ou a questão do défice, também estão ligadas a outros factores que não têm propriamente a ver com a governação…

    Claro. E não só com as opções políticas; têm a ver sobretudo com as próprias questões técnicas e tudo o que é a burocracia do Estado. Aliás, outra coisa muito interessante de se ver, é olhar para onde têm sido investidos os valores do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. O PRR é dos maiores investimentos no país de sempre. É quase o segundo ouro do Brasil. Perto de 90% das verbas têm sido investidas na máquina do Estado. Portanto, continuamos a ter uma perspectiva de que o Estado comanda a vida. Isto tem chegado ao bolso das pessoas? Tenho dúvidas. Tem melhorado a qualidade dos serviços? Tenho dúvidas. Muitas vezes, perde-se na burocracia dos níveis intermédios de serviços e etc., e não chega àquilo que é o objectivo. Estamos a investir mais do que nunca na Saúde, como se tem dito muito, desde a pandemia. Há investimentos acima da média; e continua a haver filas de madrugada à porta dos centros de saúde e portugueses sem médico de família – eu sou um deles. Tudo isso se mantém. O problema não é só dinheiro. Eu lembro-me de, há muitos anos, quando o doutor Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, fez-se uma Convenção no Coliseu. Eu era, na altura, da JSD [Juventude Social Democrata]. E na Convenção, o doutor Roquete, que tinha sido Presidente do Sporting, disse uma frase que é capaz de não ser original, mas foi a primeira vez que a ouvi e ficou-me gravada: “quando se deita dinheiro para cima dos problemas, há uma coisa que desaparece e não são os problemas”. Porque quando é um problema que não se resolve do ponto de vista estrutural, e só se atira dinheiro para o problema, o dinheiro desaparece e o problema não se resolve. E na Saúde, é isso que estamos a ver. Está-se a atirar dinheiro a rodos para o Serviço Nacional de Saúde. E se não houver reformas estruturais, e organização e reorganização de serviços, não adianta de nada; o dinheiro desaparece, os serviços continuam fracos, os profissionais desmotivados e as pessoas continuam sem terem os seus problemas resolvidos. Este é um paradigma de sociedade que temos de começar a pensar mudar. Não só do ponto de vista do investimento, mas muito e acima de tudo, do ponto de vista organizacional, e do ponto de vista “ao serviço de quê”. Porque os serviços públicos não podem estar ao serviço das estatísticas, mas sim ao serviço das pessoas. Se não estiverem, não servem para nada.

    E daí, se calhar, também haver esse ‘divórcio’ da população, a sentir-se insatisfeita e a afastar-se da política. Aliás, vê-se sempre na elevadíssima abstenção.

    Certo; porque, a certa altura, há a resignação, “para que hei-de votar, se isto não serve para nada?”

    Olhando para soluções. O Aliança está, nestas eleições legislativas antecipadas, numa coligação com o movimento Partido da Terra [MPT], com o nome Alternativa 21, e a sigla “MPT.Aliança”. Estão a concorrer a quase todos os círculos eleitorais. Quer falar um bocadinho sobre isso?

    Sim. Nós apresentámos candidaturas em todos os círculos eleitorais do país, também nas regiões autónomas e nas comunidades imigrantes. Tivemos um outro problema em alguns círculos eleitorais, alguns recursos que temos, porque coincidiu com a greve judicial e havia os problemas da entrega das listas. Mas tivemos candidatos em todo o país. Vamos ver como é que isto resulta, sendo certo que temos a noção de que, mesmo sendo uma coligação, a probabilidade de eleição em círculos pequenos é muito reduzida. Vamos apostar nos maiores círculos nacionais, como é evidente. Quando um partido concorre a eleições, o principal objectivo é a eleição, obviamente. “Viemos para participar”, ninguém acredita nessa história. Claro que queremos apresentar as nossas ideias, o programa, e manifesto eleitoral, mas o objectivo essencial é a eleição – não vamos escamotear. Houve aqui uma conjugação de sinergias de dois partidos, que estão presentes em muitas coligações autárquicas pelo país – é uma experiência que começou há dois anos –, entre os quais Lisboa, onde estamos inseridos na coligação Novos Tempos, que inclui também o PSD, o CDS e o PPM. Mas nós, na Aliança e MPT, acreditamos no projecto Novos Tempos. Achamos que esta AD agora criada é de outros tempos; mas isso é outra conversa, não quero estar a falar nisso. Mas achámos que devíamos criar sinergias de um centro-direita, [juntando] o Partido Aliança – um partido de cariz mais personalista e humanista – e o MPT – um partido que foi criado por Gonçalo Ribeiro Telles, muito no âmbito do ambientalismo, da Ecologia. E juntando estas vertentes num projecto de centro-direita, sem vergonha de o ser, que defende princípios de organização do Estado, de primado do humanismo e de Ambiente, que às vezes são associadas a outras áreas políticas, mas que nós defendemos sem qualquer receio; conjugando esforços e tentando a representação parlamentar, porque achamos que vale a pena. E falando agora num assunto que que devia ser discutido seriamente: há uma abstenção desmesurada. Mais de metade dos portugueses não vota, e é preciso perceber porquê.  Neste momento, há 20 e tal partidos inscritos no Tribunal Constitucional. Da extrema-esquerda à extrema-direita; há N soluções onde as pessoas se podem rever. Porque é que ainda não se reveem? Se calhar, por culpa nossa, das nossas mensagens não chegarem; ou por culpa da comunicação social, porque entrevista sempre os mesmos. E honra seja feita, estamos aqui com uma excepção. Mas vê-se na televisão o tempo de antena que é dado é completamente díspar, ao contrário de outras democracias consolidadas. Porque, em rigor, quando começa uma eleição, é como num campeonato de futebol: estamos todos com zero pontos. Só que isso não acontece, as oportunidades não são iguais.

    (Foto: Américo Coelho)

    Mas por algum motivo, também há um certo divórcio entre a população, os telespectadores, os leitores e os órgãos de comunicação social.

    Certo. Mas deixe-me só dizer uma coisa. Se calhar, seria interessante, na reforma do sistema político, que se começasse a pensar qualquer coisa deste género… Na abstenção, não concordo que deva ter reflexo no resultado eleitoral; mas nos votos em branco, sim. Se uma pessoa vai à cabine de voto, e diz que nenhum dos partidos lhe serve, e vota em branco, é uma manifestação política – não é pura e simplesmente não votar porque não lhe apetece. Se os votos em branco começassem a ser cadeiras vazias no Parlamento, se calhar, começávamos a aprimorar algumas coisas. Se por 10% de votos em branco, ficarem 20 cadeiras vazias no Parlamento, talvez fosse uma possibilidade de começar a resolver. E poupava-se em ordenados e em subvenções públicas aos partidos. Era uma questão de pensar nisso. Dificilmente os partidos com assento parlamentar aprovarão uma coisa deste género, mas era uma proposta para começarmos a desbravar alguns caminhos. Quando se fala de abstenção, e uma parte é de quem não quer saber… Mas outra coisa também importante é, às vezes, as dificuldades no acesso ao próprio voto. Nós vivemos no século XXI; o nome da nossa coligação Alternativa 21 é precisamente por isso. Mas nós ainda votamos como se votava no século XIX: temos de ir à Junta de Freguesia, fazer aquele todo aquele ritual. Não faz sentido nenhum. Mesmo o próprio processo eleitoral: a entrega de listas em papel, não sei quantos duplicados serem pendurados na porta dos tribunais, quando temos tecnologia, e-mails, Internet, divulgação pública; até para maior escrutínio, maior facilidade, e maior compreensão das pessoas e dos eleitores. E isto não existe porquê? Porque é que se cria barreiras? Aliás, normalmente as abstenções até estão mais nas classes mais jovens. Depois, daqueles que votam, as opiniões podem divergir. E actualmente, há uma tendência mais para a direita, enquanto que há 10 ou 15 anos, era mais para esquerda. Mas muitos dos que não votam, maioritariamente é porque sentem que estão distantes, que estão inacessíveis. Porque é que não se quebram estas barreiras? Continuamos a funcionar como funcionavam as eleições da Primeira República, e já se passaram 100 anos. Porque é que tem de continuar a ser assim? Se eu estiver a passar o fim-de-semana no Algarve, porque é que tenho de fazer 600 quilómetros para votar em Vila Real ou em Bragança? Agora, já há o voto antecipado, que tem alguma procura. A forma de voto antecipado na semana anterior poder ser onde queremos, e que levou a muitos inscritos, devia ter feito soar campainhas, do género: “epá, fizemos uma coisa diferente e as pessoas aderiram”. Será que é por não haver estes métodos que as pessoas não votam tanto? Mas depois, não há nenhuma reflexão… Porque é que o voto antecipado foi um sucesso? Porque facilita. Eu sou licenciado em Viana do Castelo porque é a terra onde nasci e onde vivi grande parte da minha vida. Se eu estiver em Lisboa e fizer voto antecipado, voto em Lisboa; mas se for ao dia, tenho de fazer 400 km para votar. E isto acontece aos estudantes deslocados, aos profissionais deslocados. Porque é que não se facilita o acesso ao  voto electrónico? Eu não digo que se desvalorize o voto ao ponto de ser uma coisa absolutamente banal.

    Não está a dizer que é para criar uma aplicação no telemóvel, como se fosse um jogo?

    Sim, tipo o voto da “Máscara” da SIC ou coisas desse género… Não, não vamos por aí. Mas por exemplo, como as Pole Station, na Inglaterra, onde uma pessoa pode estar em qualquer ponto do país, dirige-se a um boletim de um ponto e vota lá. E o seu voto é encaminhado para o seu círculo. Porque é que as coisas não podem ser assim? A democracia parece… Nós estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril, e isto não deixa de ser curioso, porque notamos que há um imenso divórcio das pessoas com a participação democrática. Isto não preocupa ninguém? Aliás, qual a melhor forma de comemorar os 50 anos de democracia e de liberdade do que com três parlamentos dissolvidos, dois regionais e o nacional?

    É simbólico?

    Quando é baseado em casos de corrupção, de eventuais desvios de dinheiro… É este o estado da arte: os 50 anos da democracia são brindados com três eleições antecipadas nos três parlamentos. Ninguém acha isto estranho? Continuamos a seguir assim, deixamos o discurso dos problemas para quem berra, para os populismos fáceis?

    Jorge Nuno Sá, como líder do Aliança, durante o debate dos ‘pequenos partidos’ na RTP para as eleições legislativas de 2022.

    Ou para debates de 20 minutos…

    Sim, debates de 20 minutos, onde se debate muito a espuma dos dias. Tivemos eleições há dois anos, com uma maioria absoluta que não se previa durante a campanha. E passados dois anos, estamos novamente em eleições. Quem for rigoroso e sério na análise – apesar de haver, como dissemos há pouco, níveis macroeconómicos que estão aparentemente melhores –, quando falamos dos problemas concretos das pessoas, as classes profissionais mais sacrificadas, como enfermeiros, polícias, professores… As questões nacionais para a Agricultura, as questões relacionadas com a Habitação, a inflação, eram as mesmas de há dois anos, numa escala pior. Pouco mudou. No entanto, houve uma maioria absoluta. O segundo maior partido, líder da oposição, continua a ser o mesmo, com grande votação. Aumentou-se os que berram muito no Parlamento, mas que pouco resolvem, e as coisas no país ficaram na mesma. Portanto, mesmo para o eleitor comum, devia pensar: “mas valerá a pena continuar a votar neste sistema ou nos mesmos”? A reflexão deve ser profunda, porque os problemas são os mesmos. Há dois anos, tive a oportunidade de participar num debate na RTP, com os partidos sem assento parlamentar, e fui o único que falei disto. Porque irrita-me um bocadinho perder tempo na vida. Gosto de fazer coisas, e irrita-me muito perder tempo. E mais de metade do tempo dos debates de 20 minutos entre os líderes de partidos era o “quem quer casar com a carochinha?”, “quem vai fazer coligação com quem?”. Quer dizer, passava-se metade dos debates nisto. Estamos quase a chegar ao mesmo ponto, sobretudo depois das eleições dos Açores. E, na altura, eu dizia que ninguém fala de duas coisas. Por exemplo, da crise inflacionista. Os bens de consumo – o arroz, o açúcar, o óleo, a farinha – estavam com aumentos de 25% a 30% há dois anos. Hoje, há aumentos de 100%, ou seja, os preços destes produtos duplicaram. Eu falo disto porque, tal como muitos outros, vou ao supermercado fazer compras; e já se sabia há dois anos, e não era por causa da guerra da Ucrânia, que ainda não tinha começado. Era mesmo por causa da sequência, evidentemente, das crises internacionais, da crise da covid-19, etc. As guerras na Ucrânia e em Israel agora só vêm agravar e acentuar o problema, mas isto já existia. E como é que se permite que os partidos que são responsáveis por elaborações de orçamentos no Parlamento, passem mais de metade do tempo a discutir com quem se vão casar ou de quem se vão divorciar, do que discutir estes problemas concretos? Na altura, eu lembro-me bem, quando ia a caminho desse debate, que havia por Lisboa espalhadas uma série de vacas em cartão, onde falavam dos preços… Em Dezembro de 2020, fiz um tempo de antena do Partido Aliança, onde falava precisamente do aumento dos custos de produção dos agricultores, e que não era esse o reflexo do aumento dos preços de consumo; antes pelo contrário. Continuavam a ser preços baixos pagos aos agricultores, enquanto continuava os aumentos do preço ao consumidor. Portanto, havia qualquer coisa que estava mal. Mas ninguém ligou nenhuma. Tivemos a ministra da Agricultura, se calhar, mais incompetente do último século. As coisas continuaram assim, e temos os agricultores nas ruas, e com razão. Só que não é nada que não se soubesse, não é nada de hoje! Eu não sou propriamente um ‘expert’ em agricultura, mas era uma coisa evidente: o aumento dos combustíveis, o aumento dos adubos, com a guerra da Ucrânia, o aumento dos preços da água, a manutenção do preço de compra ao agricultor por parte das cadeias distribuição… Alguma coisa tinha de rebentar um dia.

    Em termos de propostas, o que é a Alternativa 21? No âmbito das próximas eleições. que propostas têm para algumas dessas questões, nomeadamente os baixos rendimentos das famílias, os problemas do custo de vida, a crise na Habitação e na Saúde?

    Por uma questão de respeito institucional, não queria adiantar muitas medidas. Não é que não as tenhamos, mas à hora e dia que estamos a gravar – não sei se posso dizer, mas estamos a gravar na sexta-feira de manhã [dia 9 de Fevereiro] –, e temos hoje à tarde a reunião para aprovação do programa eleitoral. Sendo que estão envolvidos dois partidos e personalidades independentes, seria muito deselegante da minha parte estar a avançar algo. Se quiser falar comigo para a semana, terei todo o gosto em voltar a falar sobre isto.

    Falemos no caso do Aliança. Que propostas gostaria de apresentar aos portugueses?

    Sim, sobre isso posso falar com mais propriedade, porque estou mais à vontade sobre isso.

    Que soluções e medidas podem ser tomadas?

    Evidentemente; coisas muito simples. Há [por aí] um ‘leilão das pensões’, que se tem falado em coisas completamente irreais, de dizer que têm de ser de 1.000 euros. Aliás, como a questão do salário mínimo. Há uma coisa muito importante que eu aprendi há muitos anos, que é básica e que toda a gente percebe: só se pode redistribuir o que se ganha. Se não se conseguir colher na Economia, em impostos, que é daí que vem o dinheiro… O “dinheiro público” não existe. Margaret Thatcher dizia isto há 40 anos e parece que muita gente ainda não percebeu. Aquilo que existe é dinheiro dos contribuintes e dos impostos. E, portanto, o que nós temos de saber é como se aplica esse dinheiro, e onde se vai buscar. Para existir redistribuição, tem de haver riqueza. A doutora Manuela Ferreira Leite dizia, com graça, quando era ministra das Finanças: “eu não me importo nada que haja ricos que comprem iates; quando eles forem comprar iates, eu tenho é de os taxar para ir lá buscar as taxas suficientes para poder reintroduzir no sistema de Saúde, da Segurança Social, etc.”

    Mas sabemos que quem tem mais meios financeiros, aquilo que acaba por fazer é colocar a sua riqueza noutras regiões onde sai favorecido em termos fiscais.

    Mas tem a ver muito com isso… Também não adianta, e isto existe particularmente à esquerda, a ideia de que se pode estar sempre a aumentar impostos. E chega-se a um momento, está estudado – eu não sou propriamente fiscalista nem economista, nem especialista na área, mas sei que do que conheço e do que vejo – que se chama “exaustão fiscal”. Ou seja, a partir de certa altura pode-se aumentar o que quiser, que não se faz mais receita. Porquê? Porque quem tem meios foge com o dinheiro para outras paragens, e estar sempre a sobrecarregar a classe média não resolve problema nenhum, porque se está a criar dificuldades. Mas, evidentemente, os aumentos de rendimentos, de reformas e apoios sociais, custam dinheiro. Não temos de escamotear isto. Assim como também custa dinheiro, por exemplo, meter 3 mil milhões de euros na TAP. O que estamos aqui a falar é de prioridades.

    Ou seja, de gerir bem o dinheiro dos contribuintes?

    Sim, e de saber quais são as prioridades de investimento. E aqui coloca-se muito a questão: qual é o papel do Estado? E aí há uma divergência substantiva entre esquerda e direita. Quando a esquerda entende que o Estado deve ter um papel de actor económico, à direita entende-se que não, que o Estado pode ter um papel fiscalizador e regulador, mas não de actor económico. E eu sou de direita, sem qualquer ‘trauma’ nem dificuldade em assumi-lo. Sempre fui, aliás.

    Portanto, pensa que foi mal aplicado o dinheiro da TAP? Aliás, já tornou público que acredita que o dinheiro poderia ter sido aplicado noutras circunstâncias.

    Sim; durante a campanha, há dois anos, falava-se só de 400 milhões na TAP. Esta verba podia ser aplicada, por exemplo, a aumentar as pensões mínimas para um índice igual ao IAS.

    Mas esse dinheiro da TAP já desapareceu…

    Certo. E ao contrário da fantasia de que o vamos recuperar, o melhor é esquecer, acreditar que a TAP continuará a ser uma grande companhia, e desejar-lhe bom futuro. Não sendo eu propriamente um cliente da TAP, mas acreditando que é a companhia pode ter um papel… Vamos cá ver uma abordagem sobre a TAP, enquanto papel estratégico para Portugal. É um bocadinho o que se passa com a comunicação social, com  a RTP: interessa-nos ter uma companhia pública, ou um serviço público? É que as questões são diferentes: porque se nos interessa, na TAP, ter a ligação aos países de língua oficial portuguesa, e às nossas comunidades imigrantes, nomeadamente Venezuela, Canadá, parte dos Estados Unidos, Extremo Oriente, nós precisamos de ter uma companhia pública ou de ter um serviço público que o faça? Isto faz muita diferença. Uma questão é estarmos a atirar dinheiro para uma companhia pública que teve buracos sucessivos por má gestão. E não estou aqui a falar dos profissionais da TAP; temos grande tradição na manutenção e engenharia da TAP, grandes pilotos, etc. Não é isso que está em causa. Mas é o serviço que a companhia presta. Sobre a ligação às regiões autónomas, que hoje é muito falada: não é mais barato viajar na TAP. Muitos dos nossos concidadãos dos Açores e da Madeira não optam pela TAP para viajar. E o que interessa ao Estado: que o serviço exista ou que seja feito por uma companhia pública? É como a RTP. O que interessa é haver serviço público de informação ou haver uma empresa pública que o faça? Tem muito a ver com definirmos aquilo que queremos, porque eu não acho mal haver financiamento público para as ligações aos PALOP, às comunidades emigrantes portuguesas e às regiões autónomas, porque, de facto, temos de assegurar que estas ligações existem. Mas já me faz um bocadinho mais de confusão que tenha de ser uma empresa pública a fazê-lo.

    Jorge Nuno Sá, o primeiro à direita, integrou a coligação Novos Tempos nas eleições autárquicas de Lisboa em 2021, sendo eleito deputado municipal.

    Portanto, o que diz é que esta visão tem estado a retirar muito dinheiro ao país que poderia ser aplicado noutras coisas. Porque além da TAP, podemos falar de muitas outras empresas na esfera pública e muitos outros projectos.

    Sim. Eu lembro-me quando houve a primeira intervenção de grandes privatizações de empresas diversas. Nós vivemos de crise em crise, mas falo da crise de 2001, em que o engenheiro Guterres saiu devido ao “pântano”. Havia dificuldades orçamentais, défice orçamental excessivo, e até uma salsicharia o Estado tinha, algures na região de Santarém, se a minha memória não me atraiçoa. Mas lembro-me que até uma salsicharia tínhamos! Que sentido é que faz? Isto não é Cuba, em que até os cafés são do Estado.

    Já que está a tocar nesse ponto, e antes de avançarmos para outras medidas concretas, penso ser bom esclarecer isto: sente-se muito, sobretudo na comunicação social, uma certa diabolização da direita e um olhar para a ideologia liberal como sendo algo mau. E eu vejo muito isso em debates, e em artigos na imprensa. Faz algum sentido, nos dias de hoje?

    Não faz, e até há um erro de percepção. A direita, nem toda é ultraliberal. Vamos lá ver se nos entendemos: a nossa raiz é conservadora. E isto pode parecer contraditório, mas estudar Ciência Política às vezes dá jeito. A raiz do liberalismo e do conservadorismo vem dos ingleses, de conservadores liberais. Eram conservadores nos valores, no Estado, e eram liberais na Economia. E depois houve algumas divergências de caminho. Mesmo em Portugal, a Iniciativa Liberal tenta ser um partido liberal puro, mas muitas vezes tem dificuldade em definir se é de direita ou de esquerda. É difícil para um partido de direita dizer que defende a eutanásia, por exemplo. Nem sempre a leitura pode ser tão simplista como pôr liberais à direita. Mas aquilo que, de facto, se mostra uma marca distintiva da direita é a intervenção do Estado na Economia, que deve ser mínima. Deve ser regulador, fiscalizador, e não actor; esta é a diferença principal.

    Portanto, a gestão dos bens públicos deve ser feita numa abordagem mais racional.

    Certo. E a gestão da TAP foi muito sintomática nos últimos anos. A Comissão de Inquérito e os WhatsApps da vida, e as indemnizações… Notou-se que havia um dirigismo do ministro de então, hoje candidato a primeiro-ministro, Pedro Nuno Santos, em que ele próprio quase dirigia a empresa como se fosse, não um CEO formal, mas, se calhar, uma espécie de chairman, que dava orientações para a empresa. E isto é completamente errado!

    Mas aí tem a ver com aquilo que falava há pouco: a diferença entre pensar-se que o dinheiro é público, e quem está no poder controla as empresas como se fossem suas; ou se é o dinheiro dos contribuintes.

    É exactamente a mesma base ideológica. E eu percebo que à esquerda se pense assim; que as empresas públicas têm de ser dirigidas pelos governos – como se viu em Portugal nos últimos 50 anos, com péssimos resultados, e com défices acumulados, com uma injecção de dinheiros públicos. Dinheiros públicos, que, tal como disse, saem do bolso dos contribuintes. Não sei se todos atentaram a isto, mas, num comentário bastante boçal, um dos agora acusados desta operação da Madeira, numa inauguração, uma jornalista pergunta-lhe, não sei se de uma forma ingénua ou propositada: “mas quem é que vai pagar isto?” E o senhor aponta para ela e diz: “é você”. E isto é sintomático daquilo que se pensa da gestão do dinheiro público; porque, de facto, é cada um dos contribuintes que o paga. E esta desresponsabilização da administração do dinheiro público é, para mim, assustadora. Eu não tenho nada contra a TAP…

    Há medidas que  se podiam fazer, nomeadamente este aumento das reformas mínimas para um nível mínimo – o IAS, que é o indexante de apoios sociais e ronda os 500 euros para as pessoas –, que é considerado pelo Estado como bitola de cálculo para atribuição de apoios sociais. Não devia haver nenhuma pensão mínima abaixo disto. E não falo do salário mínimo, porque é um crescimento que os dinheiros públicos não aguentam.

    Mas sem aumentar impostos, como se faz essa ‘ginástica’?

    Esta é possível. Já propusemos, em tempos, aumentar em 50% o subsídio de alimentação dos funcionários públicos. Estas duas medidas somadas rondarão os 400 milhões de euros, que é menos de metade da primeira injecção de capital feita na TAP. Portanto, não me digam que este dinheiro não existe; é uma questão de gestão do dinheiro.

    Ou seja, se quisermos, ele aparece. Nos Estados Unidos há o mesmo problema, porque também se criam milhares de milhões para determinados fins, mas para outros…

    O dinheiro não se produz; não se imprime notas conforme precisamos. Mas é uma questão de saber onde podemos cortar, e onde podemos investir. Essa nossa proposta de aumento de 50% do subsídio de refeição dos funcionários públicos não é um aumento salarial. Mas além de ser um aumento que se sentiria mais directamente no bolso das pessoas, é também um dinheiro que se sente imediatamente na Economia. Porque estamos a falar de as pessoas usarem-no para consumo porque precisam, e também injectam directamente na Economia. E estas contas devem ser feitas. Eu tive o privilégio de estar na comissão municipal que acompanhou a Jornada Mundial da Juventude e falou-se muito de dinheiros públicos – muito, e mal.

    Até houve um artista, Bordalo II, que fez aquela intervenção bastante polémica.

    Sim, aquele artista que recebe pipas de dinheiro em ajustes directos nas suas obras pagas por entidades públicas; e, para os seus ajustes directos, ele não tem problema nenhum, só para os dos outros… Portanto, estamos a falar de coerência. Mas voltando à questão da Jornada. Antes, falou-se muito da Jornada, mas depois de serem apresentadas contas, tem-se falado muito pouco. De facto, foi investido dinheiro, mas o retorno económico e financeiro da Jornada é enorme. E parece que há vergonha de dizer isto. Eu não tenho nenhum problema: fui um grande defensor da organização da Jornada, porque eventos deste género trazem mais-valias tangíveis e intangíveis. As intangíveis têm a ver com o crédito do país. E já podemos voltar a isso. E as intangíveis têm a ver com o dinheiro que reverte directamente da iniciativa. Eu fartei-me de fazer contas nesta área. Houve uma série de inscritos internacionais e nacionais que vieram a Lisboa para a Jornada que pagaram à organização um valor, e desse direito a dormida, alimentação, etc. A alimentação foi fornecida por restaurantes locais, cadeias de supermercados, etc. Teve de se recrutar, inclusivamente, porque a oferta de Lisboa não chegava; estamos a falar de ter triplicado a população de Lisboa durante aquela semana. Só o valor do IVA das refeições pré-pagas é superior ao investimento, por exemplo, no famoso palco; que não tem a ver com o palco, mas com toda a infraestrutura que existia em Beirolas, do aterro que existia, que foi todo reformulado, e que hoje é um parque urbano ao serviço das pessoas na cidade. Mas só o IVA das refeições pré-pagas, paga isso. Sem falar de todo o resto da dimensão de gastos. Fale-se com os comerciantes. Claro que não foi nessa semana que as marcas de luxo da Avenida da Liberdade ganharam dinheiro, porque teve até a Avenida fechada, muita confusão na rua e esses clientes de gama altíssima desapareceram da cidade. Mas os pequenos comerciantes venderam tudo o que tinham e o que não tinham, desde água a bebidas e comida. Houve uma movimentação económica, aliás, como tem sido vista em todos os relatórios, muito superior ao investimento. E isso é um bom investimento público.

    Mas não houve também alguns ataques que poderiam ter a ver com questões de ideologia, e o facto de ser a religião católica?

    Sim, claro que teve a ver com o radicalismo jacobino, anticlerical e anti-Igreja Católica. Eu sou cristão apostólico romano. Mas acima de tudo, sou um grande defensor da liberdade religiosa. Se amanhã me disserem que as igrejas evangélicas querem fazer um grande evento em Portugal, eu acho que pode ser apoiado, na medida em que o Estado deve apoiar as religiões, desde que traga uma contrapartida. E a Jornada foi um grande negócio público. Aliás, que eu me recorde, e não sou assim tão velho, mas das últimas quatro décadas, foi a primeira vez que houve um grande evento que deu lucro. Nós já investimos milhões em estádios de futebol para estarem às moscas. Investimos em muitos equipamentos para vários eventos que dão prejuízo… Este foi tão criticado e foi um evento altamente lucrativo, e sem contar, depois, com aquilo que é intangível. Não sei se acompanha esta área, mas eu gosto muito de exposições e vou muito, até por questões profissionais. A Alimentaria, que era uma feira bi-anual para a área profissional do ramo alimentar, mudou de nome há dois anos ou três. E eu achei estranho; numa visita institucional que fiz à FIL, passou a ser “Lisbon Food Affair”. E a Alimentaria era de dois em dois anos para não conflituar com outra que existia, também bi-anual, em Barcelona. Portanto, eram complementares. Quando alteraram o nome para Lisbon Food Affair, começaram a ser concorrenciais com Barcelona; um passo arrojado, a fazer concorrência e a atrair os melhores. E eu perguntei aos responsáveis: “não acham arriscado ao fim de tantos anos, mudar a marca, deixar de ser Alimentaria e passar a ser Lisbon Food Affairs?”. E disseram que não, que foi o melhor investimento que fizeram, porque tinham de pôr o nome de “Lisboa” na Feira. Porque Lisboa e Portugal neste momento são marcas por causa da Web Summit. E a Web Summit foi trazida por governos que nunca foram apoiados por mim. Mas por causa da Jornada Mundial da Juventude e por uma série de eventos, Lisboa atrai investimento e capital. Este património e benefício intangível não é directo dos eventos, mas é um proveito para o país, e nós temos ganhado muito à conta disto. Claro, com alguns problemas, que depois temos de resolver. Mas não nos podemos esquecer, nem podemos ‘matar’ as nossas galinhas dos ovos de ouro, que depois se podem repercutir precisamente naquilo que falávamos: em apoios aos mais carenciados, aos mais desprotegidos, aos nossos profissionais. Nós temos classes, aliás, altamente desprestigiadas, precisamente por serem maltratadas pelo Estado – falo concretamente de professores, polícias, forças de segurança no geral – que têm estado nas ruas com toda a razão; como já estavam há dois anos, pelos mesmos motivos.

    Foto de 2019, Jorge Nuno Sá com Pedro Santana Lopes, fundador do Aliança.

    E se é verdade que Lisboa mudou, também houve uma questão que tem afectado bastante os lisboetas e os portugueses, em geral: o custo da Habitação, que está completamente incomportável. Que soluções o Aliança vê para esta questão?

    Aqui, queria começar por dar um exemplo pessoal, mas o meu exemplo pessoal é verdadeiro, não é como a doutora Mariana Mortágua que falou de uma avó que parece não existir [risos]. E eu próprio fui vítima disso: tinha casa em Lisboa, o meu senhorio faleceu e os herdeiros opuseram-se à renovação e puseram as pessoas mais antigas na rua – eu já vivia lá há 12 anos – para poderem duplicar preço das rendas sem fazer qualquer investimento. Criou-se, na Habitação, aquilo que pode ter sido a tempestade mais perfeita nas crises, porque se juntaram várias dinâmicas ao mesmo tempo. Primeiro, a chamada “Lei Cristas”, sobre a qual eu tenho algumas reservas, mas não me oponho, globalmente, ao seu significado. Não fazia sentido termos rendas congeladas há 40 e 50 anos por um motivo simples: temos sempre a ideia de pensar nos senhorios como especuladores, gente com muito capital… Em alguns casos, é verdade; não são todos santos. Mas, como em todas as classes, não se pode estigmatizar e dizer que são todos uns vigaristas. Ver manifestações a dizer “morte aos senhorios” é inqualificável. Aliás, podemos falar também da radicalização e das fracturas sociais a que o discurso político tem levado nos últimos anos, que é uma coisa que eu não tolero em momento algum. Admitir-se a frase “morte aos senhorios” é entrarmos numa escalada irreversível. Houve muita gente – e nós sabemos disto – que, nos anos 1960-70, o aforro que faziam não era a poupança nos bancos, como hoje se usa, mas era comprar propriedade para depois terem ali a sua reforma. Muita gente que veio do interior do país para Lisboa trabalhar, em cafés e restaurantes, investiu em imobiliário para depois pôr a render para as suas reformas. E isto não pode ser esquecido, porque é uma vertente importante, e não compete a essa gente fazer caridade social. Isso compete ao Estado. E esta primeira parte da questão das rendas tinha de ser resolvida. O problema é que coincidiu com uma tempestade perfeita: um ‘boom’ de turismo, a questão dos vistos Gold nas áreas urbanas e uma diminuição na construção. Portanto, estes factores, todos conjugados, levam a um brutal aumento de preços, sem ter sido acompanhado de medidas que o prevenissem.

    Para além de problemas estruturais, como por exemplo, os baixos salários, até para os jovens e as famílias, que não têm meios até para comprar uma casa…

    Certo. Não houve capacidade – e aqui estamos a falar principalmente a nível municipal – de criar mecanismos que permitissem contrariar algumas destas tendências.

    Neste caso, e concretizando, o Aliança também pensa que pode passar pelas autarquias a resolução do problema?

    O Plano Especial de Erradicação de Barracas [PER], do Governo do Professor Cavaco Silva, faz agora 30 anos. Não sendo eu um cavaquista, acho que o PER é, talvez, a par de muitas outras iniciativas, a maior marca de política social do Professor Cavaco Silva.

    E para quem não sabe, Lisboa tinha muitos bairros de casas muito degradadas.

    Sim, as pessoas viviam as pessoas em condições degradadíssimas e houve um salto qualitativo brutal nos anos de 1990, de um Governo que teve coragem, e das câmaras que o acompanharam. A Câmara de Lisboa era liderada pelo doutor Jorge Sampaio, na altura secretário-geral do Partido Socialista. Algumas outras câmaras da região de Lisboa eram socialistas, do PSD… O PCP teve mais relutância, principalmente na Margem Sul, em aderir ao PER, e por isso fenómenos como o bairro da Jamaica se prolongaram até agora. Com muita culpa de quem gosta de viver da miséria e o Partido Comunista nisso tem algumas culpas no cartório. Mas é preciso um novo plano, corajoso. E não é com medidas que nós vemos serem anunciados com pompa e circunstância que depois resultam em pouquíssimos casos. As primeiras medidas da habitação do plano de rendas apoiadas, quando se ia fazer as contas por cada concelho, dava meia dúzia de casas por concelho. Estas medidas, além de não terem efeito, depois diluem-se de tal forma que não tem qualquer significado. Dou um exemplo concreto de Lisboa: Lisboa está a fazer, e o presidente Carlos Moedas bem, ao libertarem uma série de casas que estavam desocupadas, para poderem ser ocupadas de imediato. São quase um milhar de casas que estavam em condições degradantes, e estão a ser reabilitadas e repostas no mercado; e está a fazer o maior investimento de sempre em imobiliário. Isto faz sentido. Lá está: não sendo eu um defensor do Estado enquanto actor, o Estado tem de intervir no mercado quando há falhas; e neste momento tem. Não só criando condições de habitação pública, como tirando algumas barreiras à construção privada para que ela possa existir. E não estamos a falar de rebentar com tudo que é espaços verdes para construir prédios. Há muitas coisas que podem ser feitas, preservando uma qualidade de vida. E aí, em homenagem ao nosso parceiro de coligação MPT: visionários como Gonçalo Ribeiro Telles, que explicaram isto há muito tempo, da manutenção dos corredores verdes e das linhas de água, etc. Mas corrigindo erros, por exemplo, como construções em cave, que são inadmissíveis, mas criando condições para urbanização. Dou um exemplo concreto: terrenos vendidos pelo Estado para urbanização. Um exemplo paradigmático são os terrenos em Alcântara, que estiveram ali debaixo da ponte, durante anos esventrados a céu aberto e agora foram construídos prédios de serviços, essencialmente. O Estado vendeu aqueles terrenos para serem urbanizados, e demorou mais de 20 anos a licenciar as urbanizações – isto não pode acontecer. Este ‘monstro’ burocrático. Ainda por cima há quase uma questão de má fé, de ser o próprio Estado a vender para urbanizar, e depois não autorizar os licenciamentos. Como é possível um investidor privado gastar uma fortuna a comprar um terreno para urbanizar, e depois ter de esperar 20 ou 30 anos para poder concretizar o projecto? Ninguém aguenta isto.

    Há também a pressão turística e das casas que são utilizadas para alojamento local…

    Certo; se bem que aí há alguns mitos urbanos. E a forma como tem sido gerida esta ideia, de um dia para outro, proibir tudo, que leva a uma corrida às licenças, e que é pernicioso… Não nos podemos esquecer que o alojamento local e o turismo permitiram a reabilitação das nossas cidades em grande medida, e nós não podemos ser ingratos. O Estado tem de ser uma pessoa de bem e não pode usar os actores económicos à sua mercê, como bem apetece. Tem de saber controlar a amplitude das suas acções, e parece-me haver alguma leviandade em algumas decisões, e depois há um retrocesso quase histérico de dizer: “isto é que é o mal do mundo”, e não é. O mal foi não se saber programar as coisas. Na Habitação, tem de haver pacotes de medidas que fomentem a habitação pública, por um lado. E a possibilidade da construção da habitação privada; dar condições aos jovens, nomeadamente com a redução da carga fiscal, e aceleração de processos de licenciamento. Actualmente, o acesso ao crédito está muito dificultado, e não é só por uma questão da possibilidade do pagamento. É por uma questão, também, do próprio mercado financeiro ter evoluído de uma forma que não é possível a um jovem aderir ao crédito. Quando se exige 20% ou 30% de uma entrada inicial, se não forem os pais a pagar, qual é o jovem de 20 ou 25 anos que conseguiu aforrar para ter 20% ou 30% do valor de uma casa para poder investir de um momento para o outro? Isto não existe. O Estado podia aqui até ser garantia para alguns destes casos. Não tinha mal nenhum.

    Jorge Nuno Sá, em 2019, no primeiro congresso do Aliança.

    Até porque o mercado de trabalho também está diferente. Os contratos de trabalho são diferentes.

    Claro. Como é evidente, vivemos num mundo cada vez mais flexível e não podemos criar regras que se tornem inflexíveis. Isto não é deitar dinheiro ao desbarato. Por exemplo, mais importante do que dar garantias à banca para poder continuar a fazer investimentos loucos e depois ir à bancarrota, se calhar era mais rentável o Estado dar garantias aos jovens que depois um dia vão pagar aquelas casas, e o que pagam em impostos e em outras matérias, revertem logo para o Estado. É sempre uma questão de prioridades e de investimento. E, neste momento, a Habitação é um problema nacional grave e não pode continuar a ser adiado.

    E jovens vão saindo do país, enquanto temos um fluxo migratório que, aliás, faz parte também da política europeia de integração e de acolhimento. E aí, queria também ver se é verdade que existe um mito relativamente àquilo que são as posições dos partidos ditos conservadores ou de direita: de estarem contra a imigração, a inclusão e a tolerância e tudo o que tenha a ver com questões de género. São mitos?

    São, em larga medida. E basta conhecer as pessoas. Isso tem muito a ver com a polarização da sociedade. Já há bocado abordámos, e vamos agora a esse tema. Mas quero dizer isto claramente sobre a imigração: eu tenho vida partidária pública há quase 30 anos, e sempre disse o mesmo. Nós temos de ser rigorosos na entrada para ser generosos no acolhimento. Não há aqui xenofobia nenhuma, nem racismo, nem treta nenhuma que queiram colar. Aliás, quem me conhece e sabe a minha vida pessoal, sabe perfeitamente que sou o último discriminador. Sou a última pessoa que podem chamar discriminador do que quer que seja. Agora, não adianta ter uma política de portas 100% abertas para depois ter as pessoas na miséria em Portugal. Houve aqui um movimento que foi travado em larga medida… Quando houve agora esta revolução dos transportes na Área Metropolitana de Lisboa, e criada a Carris Metropolitana, havia anúncios de muitas empresas fornecedoras de serviços a pedir motoristas de língua oficial portuguesa. De forma um bocadinho irresponsável, disseram aos ditos PALOP: “venham que temos trabalho”. Isto não pode ser assim. As pessoas não podem vir ao engano; porque depois tivemos a questão dos timorenses que foram todos dormir para tendas para o meio da cidade de Lisboa, porque não tinham os empregos prometidos. Não podemos enganar as pessoas. Evidentemente, precisamos de imigrantes. Isso, penso que toda a gente sabe, porque temos precisado de mão-de-obra. Eles pagam impostos. Temos de saber o que precisamos e para o que precisamos; e não temos de ter um controlador à porta a dizer: “este pode entrar, porque é branco, este não pode entrar, porque é amarelo”. Não podemos criar uma clivagem. Nós estamos aqui na Avenida de Roma, a fazer esta gravação, e do outro lado da rua existe um supermercado, e não digo a marca para não fazer publicidade, eu assisti, na semana passada, a uma cena que me chocou e indignou e fez pensar no país que estamos a construir com esta polarização política: uma senhora mais velha, uma funcionária não-branca, do estabelecimento, vira-se a certa altura com alguns palavrões, e diz: “volta para a tua terra, estás aqui à minha conta”. E a outra senhora responde-lhe: “sua velha, eu é que pago impostos para pagar a tua pensão”. Isto é uma sociedade que nós queremos? Aquela senhora mais velha de certeza que ganhou uma pensão por uma vida de trabalho, e tem todo o direito; e a outra senhora, nem sei se é imigrante ou se é uma portuguesa tão de gema como qualquer um de nós… a cor da pele não pode caracterizar, porque não é por aí… Mas esta agressividade, esta polarização da sociedade, não nos leva a lado nenhum. Eu sou de direita, e há um partido de direita em franco crescimento, não questiono, que consegue federar o descontentamento como ninguém. Para quê? Para ter 12 deputados que berram no Parlamento? Eu vou dizer isto, e é a primeira vez que vou usar esta frase: o PAN, com um deputado, foi mais eficaz ao longo desta legislatura do que o partido de extrema-direita Chega ao longo desta legislatura com 12 deputados. Por um motivo simples: o PAN com a sua deputada conseguiu aprovar algumas medidas legislativas – boas ou más, não estou sequer a discutir o mérito das mesmas –, conseguindo dialogar e conversar com outros partidos. Conseguiu levar para o seu eleitorado algumas conquistas. A direita radical não levou nada. Aquele tipo de discurso de ódio, de berro e de insulto permanente… As pessoas podem ficar muito satisfeitas, podem bater muitas palmas e delirar com isto. O problema, a consequência, é [que vale] nada. Qual é o resultado prático? Nenhum.

    Mas nesta vossa coligação, na Alternativa 21, têm como cabeça de lista por Lisboa um fundador do partido Chega, Nuno Afonso, antigo braço-direito de André Ventura. E é candidato independente. Espera com isso que vá roubar alguns dos votos que eventualmente poderiam ir para o Chega, até por via desse ruído que normalmente existe?

    O Nuno Afonso, que é vereador na Câmara de Sintra, é um quadro altamente qualificado. E é com muito gosto que o apresentamos a eleições, e que pode ser eleito deputado. E é uma direita de confiança e de diálogo, como já demonstrou na sua acção na Câmara de Sintra. Ele foi fundador do Chega, certo. Tal como eu, foi militante do PSD, e acreditava num projecto de direita que conseguisse construir uma alternativa. E ele chegou a uma conclusão simples e óbvia: com o berro e o grito constante, não se constrói nada; destrói-se. Cria-se esta sociedade polarizada na qual eu não quero viver. Não quero viver numa sociedade de permanente insulto, parece-me um jogo da bola Benfica-Porto todos os dias.

    Como observadora, vejo também muito um instigar de polarização por via de partidos da esquerda. E bullying também.

    Claro. Os cartazes ofensivos do Chega não ficam nada a dever aos cartazes do PSR do princípio dos anos 1990. Estamos a falar do mesmo tipo de abordagem.

    E, aliás, só aqui uma nota: há jornalistas e comentadores que, apenas por questionarem determinados temas, são apontados logo como extrema-direita e outros termos depreciativos.

    Claro. Precisamente. Os extremos são iguaizinhos, tocam-se. Eles são tão extremos que acabam por se tocar. Aliás, o próprio Partido Socialista tem beneficiado muito desta polarização da sociedade, porque faz insuflar o Chega e depois grita: “vêm aí os fascistas; nós somos os salvadores”. Na Biologia, há um ser que eu aprecio muito: o líquen, que vemos nas árvores, de manchas coloridas nos troncos das árvores. É um fungo e uma alga juntos; não é um ser, são dois seres completamente diferentes, mas não vivem um sem o outro. Neste momento, a extrema-direita e o Partido Socialista são quase um líquen; alimentam-se um do outro para sobreviver. E o Partido Socialista vai pagar com língua de palmo esta atitude. Deste diálogo não nasce nada, apenas se polariza a sociedade e se criam estes conflitos. Isto não leva a lado nenhum. Aliás, temos um mundo cada vez mais intolerante e o estado a que estamos a chegar é evidente: guerras a rebentar por todo lado, crise económica, pessoas a serem atiradas para as franjas, para a pobreza e para a miséria, porque se perdeu a capacidade de dialogar.

    Mas a própria Comissão Europeia, e saindo um pouco do país, tem dado também alguns maus exemplos. E durante a pandemia, fez isso: puxar pela polarização, colocar pessoas e cidadãos uns contra os outros, e encetar por medidas que são muito pouco democráticas.

    Isto é aquela velha clássica que vem dos romanos, que era juntarmo-nos contra o inimigo externo. E criar um inimigo externo muitas vezes para lutar contra ele, para reforçar o poder.  É o princípio errado da política. A política, a polis, é a construção da cidade, ainda com os gregos. A cidade só se faz em diálogo, em conversa; evidentemente, com divergência. E essa divergência pode ser dura. Quando eu falo sobre a intervenção económica do Estado, sei que tenho divergências de princípios fundamentais com a esquerda, com o Partido Socialista, o Partido Comunista, evidentemente, e mais com o Bloco [de Esquerda]. Mas as coisas têm de ser feitas em diálogo, para construir alguma coisa. Se a nossa luta é só de destruição, chegamos ao fim e não temos nada.

    Estamos nos 50 anos da democracia, e já se vê até algumas correntes, e tenho lido artigos no estrangeiro, que até dizem que, se calhar a democracia não é o melhor para os governos poderem aplicar determinadas medidas e políticas que, na visão dessas pessoas, são urgentes. Acredita que a democracia está num ponto de viragem, mas no sentido de ser melhorada, ou entende que a democracia está em risco, por via de um recuo grande nos seus princípios nos últimos anos?

    Não lhe sei responder de forma taxativa. E passo a explicar. Eu gosto muito da obra do doutor Francisco Sá Carneiro. Não sou como outros, que acham que o reencarnam; mas ele dizia uma frase que ainda hoje devemos ter atenção: “a democracia é difícil e exigente, mas dela não abdicamos”. Evidentemente, hoje, com as formas de participação directa, com os canais mais directos de comunicação, tornou-se ainda mais exigente a forma de comunicação transparente e límpida daquilo que são as opções democráticas. Isso é um facto. Não podemos continuar a assentar, com todas estas novas tecnologias, em modelos de séculos passados. Isso parece-me evidente. Mesmo os modelos eleitorais, e saindo de Portugal: os Estados Unidos têm um modelo eleitoral, que foi da Confederação, onde se arrisca que um candidato possa ter mais um milhão de votos, e o outro é que ganha as eleições… Isto não faz sentido nenhum nos tempos que vivemos.

    E também há questão de quem pode votar…

    Sim, ainda há essa dificuldade nos Estados Unidos, de quem pode votar, que nós não temos. Mas isto devia fazer-nos rever profundamente os mecanismos. A democracia esgota-se em si própria? Não acho. Aliás, quando se tenta criar limites à democracia, normalmente sai sempre asneira. A nossa Constituição, que é democrática, tem algumas coisinhas que não são democráticas. Toda a gente diz: “Ah, o preâmbulo é só simbólico”… Então, por que continua lá? Nós temos um preâmbulo de uma Constituição que diz que caminhamos rumo ao socialismo. Eu não me sinto minimamente revisto naquilo. Temos outra pequena questão: impedirmos constitucionalmente o referendo à reforma republicana de Governo. Porquê? Não há, neste momento em Portugal, uma questão aberta sobre Monarquia e República.

    Portanto, é um optimista no sentido de ver que há espaço para melhorar a democracia.

    Sim. Este referendo à forma republicana de Governo, não é que isso seja muito importante, mas por que tem a nossa democracia esta barreira? Temos medo de quê? Eu, não sendo republicano fervoroso, nem monárquico fervoroso… Países como a Suécia e a Inglaterra, que são monarquias, não se têm dado mal. E quando se diz que a coroa espanhola é mais barata que a Presidência da República Portuguesa para o bolso dos contribuintes, também é um argumento. Se daí depreendo que devíamos referendar a República? Não estamos nesse estado. Mas pergunto. por que é proibido?

    Estamos num contexto em que as políticas feitas em Portugal têm um peso forte de Bruxelas…

    Certo. A União Europeia é talvez a organização menos democrática em que participamos.

    E também em outras organizações, Portugal está envolvido em tratados internacionais, como os da Organização Mundial de Saúde.

    Certo. Nós, desde o nosso nascimento, gostamos de nos considerar como euro-críticos. Ou seja, não somos contra a integração europeia, mas há muitas coisas… Nós temos um Parlamento Europeu que é o único órgão ‘democratizado’ das decisões europeias, mas que deixa muito a desejar em termos de competências de facto, ou de representação. Temos todo um conjunto de burocratas que decidem o tamanho da sardinha que podemos pescar ou se podemos ter o saleiro na mesa ou não, que ninguém os elegeu para coisa nenhuma e que não prestam contas perante ninguém, mas que, de repente, nos alteram a vida de cima a baixo. E que nos custam dinheiro. Na área da Agricultura, esse é um dos problemas fundamentais; muitos dos custos à produção são altíssimos por causa das regras da União Europeia. Se elas estão bem, se calhar estão; mas têm de ser aplicadas também ao que vem de fora. Não podemos exigir a um produtor que produz maçãs na Beira que cumpra determinados padrões porque somos muito desenvolvidos e muito preocupados, e depois pomos a sua maçã a concorrer com a que vem da América do Sul sem qualquer controlo e taxação ou sem qualquer exigência no processo de produção. Isto é condenar a nossa agricultura a uma indigência absoluta e à falência dos produtores agrícolas.

    Mais uma vez, aquela visão do burocrata que está em cima e que não olha para a realidade.

    E que não pisou o chão, não sabe o que é que custa produzir uma maçã, nem o que custa engarrafar uma garrafa de vinho. Vive num mundo de Excel, de folhas, de planeamento e não vive o mundo real. E, portanto, nós, mesmo sendo pró-europeus – e não só pela geografia, mas isso condenava-nos a ser europeus, estarmos na Europa –,  não é a qualquer preço. Andamos longe daquilo que é o federalismo. Aliás, muito longe dessa tendência. Temos muito orgulho em ser portugueses. No outro dia, o doutor Durão Barroso dizia que achava estranho, e eu concordo com ele, as pessoas de direita terem às vezes vergonha de dizer que são patriotas e falarem em palavras como família. Eu sou um patriota, e gosto da minha pátria, não tenho medo de o dizer com as letras todas. Isto não me leva a ter de dizer que para isso tenho de ser contra imigrantes, contra isto ou aqueloutro. Não tenho de ter um discurso de ódio associado ao meu patriotismo.

    Mas tem havido uma diabolização de determinados termos.

    Certo. E depois terminamos naquelas discussões fantásticas, como a discussão das casas de banho. Quer dizer, o país não tem mais problema nenhum do que estar a discutir se as casas-de-banho são para homens, para mulheres ou para todos? Olhe, acabe-se com estas casas de banho colectivas, casas de banho individuais e qualquer um entra e usa. São discussões esotéricas que, às vezes, nos fazem perder 70 e 80% dos debates, e depois as pessoas continuam a ter dificuldade em pagar a conta da farmácia, da comida e ir ao supermercado. Às vezes têm de fazer opções entre alimentos e medicamentos. E perde-se só 10 minutos a discutir esses problemas, e depois passa-se uma hora a discutir as casas-de-banho e outras realidades. Temos tido os debates dos maiores partidos, e falam de tudo e mais alguma coisa e das coligações, para a extrema-direita e para a esquerda. O mundo está com duas guerras abertas, com a possibilidade de abrir uma terceira, e ninguém fala disso? Ninguém fala do enquadramento de Portugal no mundo, na nossa dependência externa? Não se discute isso porquê? Os cidadãos não podem ter opinião sobre isso… Os portugueses não podem saber com quem é que o seu país está metido e com quem está aliado, com quem é que está alinhado? Não pode ter uma palavra sobre isso, ou só vai discutir quem é que se casa com quem? Isto é o absurdo para onde estamos a levar o debate político.

    É também muita ‘infantilização’ no debate público, não é?

    Sim, é um bocadinho o jogo da claque. Vivemos quase numa claque deste e daquele. Eu desfilei-me do PSD ao final de 25 anos de militância. Por um motivo simples: um partido não é um clube de futebol. Eu sou adepto de alguns clubes da minha juventude, de Viana, porque os meus pais e os meus tios eram, e foi fundado pela minha família; porque há ligações afectivas e irracionais. Mas a política não é uma irracionalidade; são pessoas concretas sobre a vida das pessoas. E, portanto, não se pode basear em “são dos meus, são bons; são dos outros, são maus”. Tem de ser um debate sobre as questões concretas, e não é só pelos alinhamentos, porque é de um bom partido ou é do partido contrário. Se entrarmos nesta dicotomia, estamos no jogo de clubes. Isto deixa de ser política, e passa a ser clube. E um clube não tem lugar nesta discussão.


    Pode consultar AQUI o programa do Alternativa 21 para as Legislativas de 2024.


  • ‘Vejo-me como primeiro-ministro, mas depende dos portugueses, não de mim’

    ‘Vejo-me como primeiro-ministro, mas depende dos portugueses, não de mim’

    Nas suas terceiras eleições legislativas, o partido fundado por André Ventura em 2019, quase de um homem só, promete agora ‘revolucionar’ o sistema político nacional no próximo mês, talvez mais do que o ‘fenómeno’ efémero de 1985 com o PRD. Consciente da capacidade de ser uma surpresa (maior do que a já esperada) nas eleições de Março, e despindo o cunho nacionalista e até xenófobo de outrora (onde o discurso contra os ciganos desapareceu e o tema da imigração se ‘moderou’), o líder do Chega assume agora já não querer ser apenas uma voz anti-sistema; está já a lutar pelo poder. E garante que não quer perder a identidade, embora já comece a ser difícil discernir quais das suas propostas são de direita e quais de esquerda. Esta é a quarta entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.



    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE ANDRÉ VENTURA, PRESIDENTE DO CHEGA, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    O Chega é um partido, fundado em 2019, que se assume como nacionalista e conservador. Actualmente, é a terceira força política. Pode vir a ser a segunda, em breve?

    Obrigado pelo convite e parabéns pelo trabalho que têm feito, que tenho acompanhado e que, de facto, faz muita falta, sobretudo pela ausência de algumas amarras, que não se vêem em todos os órgãos de comunicação. [O Chega] pode chegar a ser segunda, de facto. Não vou dizer que é uma tarefa fácil. Em 2022 estávamos a lutar para ser a terceira força política; na altura, as sondagens punham-nos taco a taco com o Bloco de Esquerda. Ficámos bastante à frente do Bloco de Esquerda, mas numa votação que, diria, ainda de segunda divisão. Ou seja, ficamos em terceiro lugar, é verdade, hoje somos a terceira força do Parlamento, mas temos de reconhecer que havia dois partidos que ainda estavam numa divisão a frente. Penso que esta legislatura nos foi favorável, no sentido que conseguimos globalmente, mesmo cometendo erros – um partido, como disse, tem cinco anos, ainda não amadurecemos totalmente – e algumas precipitações, uma legislatura muito positiva. Conseguimos marcar a agenda política e mediática, o que é muito difícil em Portugal, até os nossos parceiros europeus nos dizem isso. E depois todo o contexto que vínhamos denunciando e que levou à queda do Governo também colocou o Chega um pouco, não diria como o anfitrião destas eleições – que essa expressão não existe – mas como charneira nestas eleições. E, portanto, é possível ficarmos em segundo, mas é importante que todos saibam que, enfim, o Chega está com sondagens que são muito variáveis, para ser honesto: vão desde os 16% aos 21%. Em política, as pessoas não têm noção disso, mas 16% e 21% são coisas completamente diferentes.

    D.R./Chega

    Mas revê-se nessas sondagens?

    Sim. Vamos lá ver, eu gostava de vencer as eleições e estou a lutar para isso, mas temos de ser realistas, não é? Neste momento sente-se na rua um apoio que nunca senti, sente-se um apoio a nível das estruturas sociais e do tecido social, mas reconheço ser muito difícil quebrar o domínio dos partidos que estão há 50 anos incrustados no poder. Não é no poder; é incrustados no poder. Eu acho que é possível ficar em segundo se conseguirmos que uma parte significativa do eleitorado do centro-direita se transfira para o Chego. Penso que já agregamos, na sua maioria, o eleitorado de direita; há pequenos ‘focos’ que não, mas na sua maioria agregamos. A grande disputa – e, por isso, os debates com Luís Montenegro também vão ser importantes – vai ser [atrair] o eleitorado do centro-direita, porque o Chega está a conseguir não só ir buscar votos a esse centro-direita, à direita e à abstenção, mas curiosamente também está a conseguir buscar votos a alguma esquerda pouco ideológica, ou seja, que votavam à esquerda, mas estão a transferir-se para o Chega. Portanto, acho que é possível ficar em primeira à direita, digamos assim. Se é possível, nesse contexto, vencer o Partido Socialista, vamos ver. Eu esperarei pelas eleições. Na Holanda foi possível, por exemplo. Todos diziam que não era possível e acabou por ser. Estou a lutar para vencer. São as primeiras eleições que o Chega está a lutar para vencer, reconhecendo que é um caminho muito difícil e que temos muito contra nós, ainda. Vamos tentar quebrar essa bipolarização, mas também gostava de deixar, a todos, os pés na terra: temos de fazer o caminho, temos de ser exigentes. Estou a apontar para um resultado entre os 15% e os 22%, que é um resultado muito elevado. Mas em relação a rankings, vamos esperar. Eu gostava de vencer, mas vamos esperar para ver.

    Já foi muito claro naquilo que disse em todo o caso, mas olhando para o número de deputados, qual o patamar? Neste momento, têm 12…

    Temos 12, somos 12 deputados, tivemos 7,18% nas eleições [de 2022]. Há sondagens que dão 55 deputados, outras 60, outras 40, outras mais modestas, 35. Penso ser consensual na sociedade portuguesa que vamos crescer bastante. Isto é uma dose também de responsabilidade; não só de felicidade, mas também de responsabilidade. Eu acho que nós podemos ‘vencer’ [formar] o grupo parlamentar decisivo no Parlamento. Entre o PS e o PSD, podemos ser o grupo parlamentar que decide se há Governo ou não há Governo, que tipo de Governo é que há. E isso também nos dá uma margem de manobra forte, mas também nos dá muita responsabilidade. Significa que teremos de poder orientar o próximo Governo em decisões fundamentais, desde a Fiscalidade à Saúde, à reforma da Justiça, à luta contra a corrupção, à censura – enfim, à censura digital. Todas estas matérias. Portanto, eu não tenho números na cabeça, um número de deputados. Se me vão perguntar quantos deputados, se acha que vai ter 55, 40 ou 70? Eu gostava de ser o partido mais votado, e isso significa sempre ter acima dos 70 e qualquer coisa de deputados, atendendo à média dos últimos anos. Próximo dos 80 deputados. Neste momento, as sondagens não nos apontam ainda para aí; apontam-nos nos 50 e muitos. Falta ainda um mês de campanha, sensivelmente, um bocadinho menos, e eu penso que ainda é possível chegar aí, nomeadamente com os debates e com a campanha, mas penso que vamos ter mais do que 30 deputados, isso teremos.

    Antes de avançarmos para algumas das vossas propostas, uma questão: neste momento, parte da imprensa e alguns comentadores apontam o Chega quase como um bicho-papão na política em Portugal. E falando sempre um bocadinho da extrema-direita e da xenofobia. O que tem a dizer sobre isto, até porque na imprensa parece haver uma relação um pouco estranha, porque a imprensa acaba…

    De amor ódio…

    D.R./Chega)

    … exactamente; porque a imprensa acaba por lhe dar muito palco.

    É uma relação, enfim… Eu, no início, compreendia; havia uma certa estupefação pelo crescimento do Chega. E também foi uma novidade no sistema político português; não havia nenhum partido como o Chega. Eu compreendia um pouco, e até mesmo nas eleições presidenciais de 2021, onde eu tive 12%, já se notava que havia um eleitorado que estava a crescer muito, mas percebi: havia uma certa estupefação da imprensa, dos comentadores, do tecido institucional, digamos assim. Depois, honestamente, acho que agora se caiu num certo exagero, e digo isto porquê? Os programas do Chega, uns melhores, outros piores – como eu digo, temos cinco anos – têm amadurecido, têm crescido, têm recolhido apoios. Isto é o normal de todas as instituições. Tem [agora] uma história parlamentar de defesa dos serviços públicos, de defesa dos órgãos públicos, da defesa da liberdade, de defesa da democracia. Eu acho que já não se justifica ter criado esta ideia que o Chega vem aí para acabar com o Serviço Nacional de Saúde, com a Educação, com a democracia. As nossas propostas parlamentares falam por nós. O Chega agora tem uma vantagem: tem um património parlamentar que fala por ele, na Saúde, na Educação, na liberdade, na informação. E é só ir ver. O Chega esteve ao lado, penso eu, de propostas que são discutidas e aprovadas por toda a Europa. Portanto, eu acho que o Chega tornou-se numa arma de arremesso dentro do sistema político. E acho também, honestamente, que estamos a evoluir no sistema político, e até os comentadores que não gostam de nós dizem isso. Havia um sistema político bipolarizado, ou bipartidarizado, e penso que caminharemos para um sistema tripartidarizado. Digo isto porquê? Não é por falta de respeito aos partidos – eu também já fui um partido pequeno –; é por as sondagens, os números e as movimentações, mostrarem cada vez mais que há três partidos numa escala de valor, e os outros numa escala de valor mais baixa. Estou a referir-me aos partidos parlamentares. Mesmo as últimas sondagens, está o PS e o PSD nos 25 ou 26%, o Chega nos 21 ou 19%, e depois os outros dos 5% para baixo, o que significa que já há uma décalage muito grande entre estes dois blocos. Portanto, eu acho que o sistema vai caminhar para uma espécie de tripartidarização, com todos os riscos que isso acarreta, mas também com todas as vantagens. E as vantagens é haver uma quebra neste sistema de interesses que se instalou ao longo dos últimos anos. Como é que o sistema vai funcionar a partir daqui? Não sei, vai depender muito da relação com os outros. Por exemplo, nas regiões autónomas, onde o Chega tem tido um crescimento – duplicou os votos nos Açores –, quer ao nível da República, vai depender muito da relação com os outros partidos. Quer dizer, com o Partido Socialista é muito difícil o Chega vir a ter qualquer relação, porque estamos nos antípodas de pensamento, prática política. Vai depender um bocadinho se o centro-direita aceita dialogar com o Chega e começa a construir um novo paradigma [connosco]; ou se, como na França, acabará por ser engolido pelo Chega. Ou se o Chega será derrotado por esse centro-direita, que também pode acontecer, e temos de pôr essa hipótese também, embora eu não ache muito provável. Portanto, eu acho que os próximos anos deste sistema tripartidarizado vão ser decisivos para perceber se o Chega se consegue assumir como grande pólo da direita; se volta a diminuir perto do que era CDS antes de existir o Chega; ou se consegue dominar o espaço do centro-direita, como aconteceu em França com a Rassemblement National [de Marine Le Pen], e dominar essa parte da oposição. Em todo o caso, neste momento, aquilo que eu sinto é que o Chega é usado como arma de arremesso entre os dois partidos, e usam-no para fins político-partidários. Portanto, vai depender muito do resultado eleitoral. Eu tenho muita esperança que as pessoas compreendam – e hoje temos novos meios – o PÁGINA UM é um exemplo, mas as redes sociais também. Graças a Deus, os cidadãos conseguem-nos ouvir em múltiplas formas, não é só nas principais televisões ou nos principais jornais; ouvem-nos, diretamente. Ouvem e criticam diretamente. Todos os dias, eu sou criticado no Instagram, no Facebook, no TikTok ou no Twitter, por propostas nossas. Tento responder, quando não consigo, alguém tenta responder. E há aqui uma ligação directa que favorece a democracia, e favorece a aproximação ou o afastamento. Durante anos, vamos ser francos, os principais meios [de comunicação social] estavam focados em pôr o PS e o PSD como reis do sistema e era impossível chegar lá perto. Como isto está a mudar, eu acredito que a imagem do Chega também está… eu não diria a institucionalizar, no mau sentido, mas está a tornar-se uma grande instituição política nacional. Acho que vai acontecer isso nestas eleições, e temos condições de chegar ao Governo a curto prazo. Não sei se esse curto prazo será já, se será daqui a uns meses, se daqui a uns anos, mas acho que tudo aponta que esse caminho vai ser feito.

    DR/Chega

    E agora vou olhar mesmo para aquilo que o Chega está a propor aos portugueses. Tem referido um aumento do salário mínimo para 1.000 euros até 2026, um aumento das pensões, salvar a Segurança Social, reformar a Constituição. Nesta altura, resumindo, o que é mais importante, o que quer o Chega dar aos portugueses?

    Ainda bem que me faz essa pergunta, porque acho que temos de desmistificar um pouco. O Chega arriscou fazer uma coisa que nunca ninguém tinha feito: deixar um bocadinho de lado o especto direita-esquerda e passar a dizer que está a fazer propostas para os portugueses, independentemente do seu cunho ideológico. Por isso, nos debates que [já] tive com Paulo Raimundo, com Inês Sousa Real, com Rui Rocha [a entrevista foi realizada em 12 de Fevereiro, antes do debate com Luís Montenegro], fui tentando explicar que temos de deixar de olhar para medidas e dizer assim; “Ah, isso é tipicamente socialista; isso é tipicamente liberal; isso é tipicamente de direita”. Honestamente, eu acho que as pessoas não querem saber disso. Vim de uma terra, Mem Martins, que é um subúrbio de Lisboa, onde, enfim, onde vive a classe média baixa, que é quem maioritariamente vota, que é quem sustenta o país. E eu não via as pessoas preocupadas se os combustíveis aumentavam ou diminuíam, se a casa aumentava ou diminuía, ou se havia creches ou não havia para os filhos, ou se as escolas tinham condições ou não tinham – eu nunca via as pessoas preocupadas se as medidas eram de esquerda ou direita; era se tinham ou não impacto. Aumentar o salário mínimo é claramente uma medida que hoje me acusam de ser de esquerda. Num cenário macroeconómico normal, eu até compreenderia isso; agora, num cenário macroeconómico, em que a inflação – fruto da guerra que tivemos na Ucrânia –está a aumentar brutalmente (e hoje, no dia em que estamos a gravar esta entrevista voltou a aumentar a inflação em Portugal), em que os custos da habitação já estão ao nível dos maiores do Mundo (que é uma loucura), como é que podemos dizer que aumentar o salário mínimo é uma de esquerda? Eu acho que é uma medida de razoabilidade, para não permitirmos que haja cidadãos a viver neste país caro e a ganhar 800 e tal euros por mês.

    E a sair do país…

    Um jovem a quem lhe dizem que vai ganhar 1.000 euros, e ele sabe que a com a formação que tem pode ganhar 2.000 ou 3.000 euros em França ou na Suíça, ele vai. Ainda por cima, hoje falam línguas, estão perfeitamente integrados no mundo digital. Portanto, eu acho que aumentar o salário mínimo é um desígnio nacional; é como as pensões, um bocadinho, quer se diga que é de esquerda ou de direita.

    Mas consegue fazer tudo isto sem aumentar os impostos?

    Essa é a verdadeira questão. Nós temos apostado em cinco eixos de receita para contrapor. Obviamente, partimos de uma premissa de ter um crescimento acima dos 3% ao ano. Eu mão sou economista, mas daquilo que ouvi, e tenho reunido com vários [economistas], se o país for bem gerido, nomeadamente aos níveis do desperdício e da reorganização, facilmente crescemos 3% ao ano. A partir dos 5% é que já será difícil. Baseando-nos num crescimento desses, com limites ao nível do desperdício – no âmbito do combate à corrupção e à economia paralela e com uma taxa sobre os lucros da banca, das distribuidoras e das petrolíferas –conseguiremos uma margem financeira para três grandes desígnios: o aumento do salário mínimo; o aumento da pensão mínima, para que em se anos se aproxime do valor do salário do salário mínimo; e, ao mesmo tempo, embora seja a jusante, a diminuição dos impostos sobre o património e sobre as pessoas. E por que lhe refiro os impostos sobre o património? Por exemplo, o IMI [Imposto Municipal sobre Imóveis] é um imposto que não tem grande peso na estrutura fiscal portuguesa. Se não me engano, mesmo nos impostos indiretos, depois pode confirmar, são cerca de 4,4%. Isso significa que o IMI, tal como o IUC [Imposto Único de Circulação], não dão grande receita ao Estado, mas é um imposto que tem um impacto significativo na vida das pessoas, para além de ser um imposto teoricamente estúpido. Como eu já disse na televisão, quando compramos uma casa, pagamos um imposto; quando vendemos a casa, pagamos um imposto; para fazer obras na casa… quase todos pagamos um imposto, mas o IMI pagamos pelo simples facto de ter a casa. Portanto, queríamos dar aqui um sinal às pessoas de que é possível, gerindo melhor… Eu dei um exemplo que me parece evidente: o Ministério da Saúde tem tido médias de mil milhões [de euros] de desperdício todos os anos. Gerindo um bocadinho melhor, conseguimos também reduzir a carga fiscal, que é elevada. A direita fala só em carga fiscal, e eu compreendo isso; é importante. Os países mais modernos do Mundo têm uma reduzida carga fiscal, mas há uma dimensão social que não se resolve com a carga fiscal. As pensões não se resolvem com a carga fiscal. Pode diminuir o IRS, mas quem recebe 200 ou 300 euros numa pensão não vai conseguir ter uma vida melhor por causa de se diminuir o IRS. Pode diminuir o IRS, mas quem recebe salário mínimo não paga IRS, portanto, não vai sentir o efeito. Infelizmente, como deixaram isto chegar a este ponto, temos de atuar nas duas dimensões do rendimento e da carga fiscal. Vamos ter de ser mais tímidos na carga fiscal. Por exemplo, a direita liberal propõe uma redução muito mais radical da carga fiscal; é legítimo. Só que nós, como temos medidas sociais, temos de ser mais tímidos, porque senão não é possível fazer tudo, não é?

    DR/Chega

    Para a Habitação também tem algumas medidas…

    Olhe, até vi o PS copiar este [nosso] programa eleitoral, o que achei uma coisa incrível. Nós somos atacadíssimos por uma proposta inovadora que, em nome da honestidade, não é minha, foi estudada lá fora, que é o Estado assumir-se como garante no primeiro empréstimo dos jovens. [Disseram] que era socialismo, que era estar a pôr o Estado na vida das pessoas. Para os jovens, é evidente que há um problema de rendimentos, mas há outro, que não é de rendimentos. Os jovens até podem ganhar 1.500 ou 1.600 euros, mas ao preço que as casas estão, o banco diz: “muito bem, garantias, ou têm pais ricos ou tem património”. Mas vamos lá ver: quem de nós tinha património, quando tinha 21 ou 22 ou 23 anos? Ninguém. Portanto, o Estado dá aqui um passo arriscado, assumindo-se como uma espécie de fiador daquela habitação. E vi ontem o PS apresentar exactamente a mesma medida para os jovens no crédito da habitação. É uma medida arrojada, e mais uma vez, eu não me importo como me chamem socialista, de esquerda ou de direita.

    Mas essa medida resolve o problema na habitação, pelo menos para os jovens? Se calhar não terão à mesma rendimentos também para pagar os empréstimos…

    Obviamente, estabelecemos limite quer na idade, quer no valor do imóvel. Se um jovem quiser ir ver para o Palácio de Seteais, é evidente que tem de ter dinheiro para isso. Para muitos jovens, que até já conseguem receber um valor razoável – não é um valor elevado, porque infelizmente em Portugal isso é muito raro –, conseguem um estímulo para adquirir a sua casa, o que os prende até mais ao país, porque repare: se um jovem tiver a sua casa e estiver a pagá-la, sentir que pode [aqui] viver com a sua namorada ou com o seu namorado, ou com o seu marido ou a sua esposa e terem filhos, há logo uma ligação ao país muito maior do que se não têm nada, e que facilmente se desliga e vai embora. Ora, tivemos há pouco tempo o número: 30% dos jovens portugueses decidiram emigrar para países onde pagavam mais. Então, temos de ir por caminhos de os fixar mais ou de os deixar ir mais? Há uma lógica liberal que diz que se baixarmos os impostos, isto vai funcionar tudo. Eu não sou economista, confesso, mas duvido de uma lógica que diz que se simplesmente baixarmos os impostos, isso vai resolver os problemas. Muitos dos problemas não têm a ver com impostos; têm a ver com a falta de liquidez e também com falta de capacidade de acção do mercado. E se o Estado der aqui um apoio [aos jovens], eu tenho a certeza de que 90% [dos que saíram] preferia estar em Portugal se tivessem condições. Qual é uma das grandes condições que as pessoas se queixam? É a habitação, porque em Lisboa, no Porto, em Faro, em Braga e no Funchal as nossas habitações estão ao nível do mais caro do Mundo. Nem da Europa, já é do Mundo – só que os salários não estão a nível do mais elevado do Mundo. Portanto, eu acho que este sinal era positivo; e lá está, não me importa se é direita ou se é de esquerda.

    DR/Chega

    A Saúde é outra das questões que os portugueses também se queixam.

    Talvez até onde há mais queixas maior. Aí são dois modelos completamente diferentes.

    Já falou nos desperdícios

    Os desperdícios são uma parte evidente, mas aqui questões que eu não quero fugir, que são difíceis de resolver. Por exemplo, os médicos. É evidente que até temos estudos que mostram temos médicos a mais, mas que ou foram embora ou estão no setor privado. Por outro lado, também sabemos que há hoje um gestão deficiente do Serviço Nacional de Saúde, e que o Governo socialista a aumentou muito ao criar super, macro, micros e superestruturas em todo o lado, ao querer desdobrar estruturas, não para serviços, mas para nomear pessoas. E também o grande problema é não conseguir gerar uma carreira atractiva. E não é só para médicos; émédicos, enfermeiros, profissionais de saúde. Defendemos que haja um regime de horas extraordinárias, que seja efectivamente pago, porque muitos destes médicos queixam-se que, sobretudo nas urgências, fazem horas e horas extraordinárias, e que a partir de um certo limite deixam de receber. Isto era importante resolver para se sentirem presos ao Serviço [Nacional] de Saúde. O mesmo com os enfermeiros. Mas também era importante permitir que o sector privado e o setor público criem uma interacção, que não temos. A esquerda diz sempre: “temos de manter o Serviço Nacional de Saúde público. Nós já não temos um Serviço Nacional de Saúde. Cerca de 40% das diligências já são feitas no sector privado, seja análises, seja procedimentos de natureza de diagnóstico, seja cirurgias. Portanto, já temos um sistema complementar, só que a cegueira ideológica dos últimos anos levou-nos a querer retroceder esse caminho, acabando com PPPs [parcerias público-privadas], desprezando o sector privado, espezinhando médicos que foram para o privado, ao ponto de o secretário-geral do PS – posso estar enganado, mas foi o que li ontem – até quer obrigar os médicos que saem do Serviço Nacional de Saúde a compensar o Serviço Nacional de Saúde, uma espécie de indemnização por irem para outra outra vida. Acho que a chave do sucesso aqui é a articulação. Não vamos ter mais médicos para o ano, ou seja, não vamos resolver este problema em seis meses. Os médicos demoram tempo a formar. Eu acho que faz falta, mesmo assim, desdobrar os focos de ensino, os pólos de ensino de Medicina em Portugal, como aconteceu com o Direito, com a Engenharia, com a Economia, nos anos 80. Acho que faz falta mais faculdades de Medicina, mas sobretudo temos de criar uma boa sinergia entre o privado, o público e o social. Uma dessas manifestações são as parcerias público-privadas [PPPs], mas não só. É possível criarmos protocolos e sinergias entre um sector e outro, garantindo que mesmo quando a pessoa escolha o público – e a liberdade é importante –, mas não consegue ser atendida em tempo, ou porque não há profissionais ou porque não há condições naquele momento, pode [então] ir ao privado, gastando o mesmo gastaria no público. portanto, garantindo uma cobertura do Estado também ao sector privado e ao setor social.

    DR/Chega

    Isso já vai ajudar que, por exemplo, nos picos do Inverno, quando haja saturação, haja uma maior eficácia…

    Enquanto não fizermos o reforço dos centros de saúde, porque isso é decisivo para desimpedir as urgências… Reconheço que há uma cultura em Portugal que pode promover o sufoco nas urgências, mas o verdadeiro problema – e eu vejo isso até na terra dos meus pais –, o verdadeiro problema é que as pessoas sentem que não têm uma rede de cuidados de proximidade que lhes permite ser essa a primeira porta. Portanto, sentem que se vão para o centro de saúde, ou não está aberto, ou o médico só está lá duas horas por dia, ou então se for para alguma coisa mais importante, vou mandá-lo, no fim, para o hospital. E então ela pensa: “vou já para o hospital e resolvo já tudo”. Portanto, temo de garantir que esta rede de cuidados de proximidade dá, de facto, resposta, e dá uma resposta completa, dentro do possível, a estas exigências. A maior parte das pessoas que, no pico do Inverno, vão para [os hospitais] do Sistema [Nacional] de Saúde não estão com problemas absolutamente graves, graças a Deus. Estão com problemas temporários. Precisam de apoio ali. Se o centro de saúde conseguir dar isso, nós aliviaremos as urgências e conseguiremos funcionar melhor. E aí o público e o privado têm de se entender.

    Há no seu programa medida de combate à corrupção, que é um tema de bandeira, mas outros ainda, como o ensino e a retirada da ideologia no ensino. Tem também a questão da imigração. Estamos numa altura em que Portugal está muito dependente de decisões tomadas em Bruxelas, e muitas destas políticas implementadas a nível comunitário. E até a outro nível, como o que está a ser negociado na Organização Mundial de Saúde que vai reforçar ainda mais os poderes desta entidade. E, de facto, há países que estão já a debater esse tema. Como vê ser possível implementar todas estas medidas, incluindo o combate à corrupção, quando surgem impostas de fora?

    Já agora, sobre esse tema da Organização Mundial de Saúde, eu acho um erro permitirmo-nos que essa entidade, com todas as competências que tem, e que são louváveis, possa arvorar-se numa espécie de organização vinculativa, com poderes quase de aplicação directa sobre os ordenamentos jurídicos a que pertencem, restringindo as liberdades dos cidadãos de forma imediata. Parece-me um exagero, e acho que, se adotarmos, vamos acabar por recuar. E pior: vamos estar pior do que estamos agora. Tem razão, em Portugal não estamos a discutir esse tema, ainda, mas há países que já estão a discutir, e alguns até com grande intensidade.

    Quanto à questão da imigração, é de facto paradigmático o que refere. Muitos me têm dito que a emigração hoje não pode ser feita sem o acordo da União Europeia e sem as regras comunitárias. Vamos lá ver. Há uma parte que sim, relacionado com a fronteira externa, porque somos uma fronteira externa da União Europeia, mas há uma parte que também temos a nossa responsabilidade nessa matéria. E vou-lhe dar um exemplo: este regime de vistos da CPLP, que criamos – eu percebo que os socialistas possam achar que lhes vai dar muitos votos –, é um sistema absolutamente anacrónico. A pessoa chega, não tem de ter trabalho, não tem de ter casa, não tem de ter nenhuma subsistência, diz apenas que vai procurar trabalho e durante um ano fica aqui à solta.

    DR/Chega

    E pode também depois ser explorado e ficar à mercê de redes de exploração…

    Evidente. Pode ser explorado ficar à mercê de redes ou pode simplesmente tornar-se uma espécie de indigente dentro do espaço da União Europeia. Eu estive recentemente na Estação do Oriente [em Lisboa] e é assustador o número de sem abrigos que estão a crescer, muitos deles fruto desta imigração desregulada. E, portanto, a Comissão Europeia abri um processo [contra Portugal] por causa deste regime da CPLP, que é absolutamente anacrónico. Isto não quer dizer fechar fronteiras, nunca quisemos fechar fronteiras. Acho que Portugal não deve fechar as suas fronteiras, mas acho que devemos ter uma imigração consistente, regulada; que possa ser controlada para sabermos que, quem vem, vem por bem.  A nossa economia precisa destas pessoas [mas tem de] as conseguir integrar no seu espaço económico, institucional e comunitário. E também [temos de] conseguir o controlo necessário. A extinção do SEF [Serviços de Estrangeiros e Fronteiras] foi um erro por isso, porque ao mesmo tempo que abríamos portas, quisemos quebrar quem controlava a porta, e isso então é uma mistura explosiva, é uma tempestade perfeita. Conseguimos regressar a esse controlo, por isso, nós dissemos que uma das primeiras coisas que vamos fazer é a reversão da extinção do SEF. Vamos voltar a colocar as nossas fronteiras com uma polícia de controlo, e vamos reverter – também não quero esconder – este regime de vistos da CPLP. É um absoluto anacronismo estar a permitir que qualquer pessoa entre sem meios nenhuns, sem visto, simplesmente andando por aí durante um ano. Cedo ou tarde, vamos pagar caro isto.

    Este este tipo de controlo de que está a falar tem sido muito criticado por ser quase xenófobo. Revê-se nesse tipo de críticas?

    Não, é evidente que não é. Quando a esquerda não tem argumentos, é esse a discussão que tem. Ainda agora vimos a França, que é um país que ninguém pode acusar de ser xenófobo, reverter as suas leis de imigração e reforçar novamente o controlo da sua fronteira, obrigando a que quem entre tenha meios de subsistência, que tenha contrato de trabalho ou a perspetiva de encontrar trabalho e conheça minimamente a cultura e a língua. Nós não. Nós deixamos de entrar toda a gente de qualquer maneira, conheçam ou não conheçam [a cultura e a língua], tenham trabalho ou não tenham. Acho que isto é um erro, e mais: vamos pagar um preço elevado. Já não será, se calhar no nosso tempo, [embora] ache que a esta velocidade, com este tipo de imigração desorientada, é bem provável que dentro de uma década, ou menos, estejamos a pagar um preço elevadíssimo, semelhante ao da Bélgica ou da França.

    Mas há estudos que apontam que estes imigrantes, depois, também contribuem para a Segurança Social, para os impostos, para para a taxa de natalidade…

    É evidente. Não ponho isso em causa… Mas também era o que faltava: que não pagassem segurança social, só faltava estarem isentos de segurança social. Claro que se vêm e trabalham, pagam Segurança Social. Eu estou a um ponto antes. a Economia precisa deles. Eu conheço muitos empresários que me dizem: eh, pá, nós precisamos de mão de obra, de imigrantes no sector do turismo, da agricultura, da restauração, da hotelaria, dos serviços”. Isso é uma coisa. Outra coisa é não ter absolutamente nenhum controlo. E eu acho que nós podemos ter as duas coisas: podemos ter uma migração bem acolhida, bem recebida, que contribua para a Segurança Social, para o trabalho, etc., mas ao mesmo tempo não temos as fronteiras completamente escancaradas ao ponto de até termos casos que nos criam constrangimentos, como terroristas que passaram por Portugal e que nunca foram apanhados; acabaram por ser apanhados noutros países, e que aqui viveram alguns até com apoios da Segurança Social. Portanto, eu acho que conseguimos ter o melhor dos dois mundos nesta matéria. Precisamos é de coragem política e a coragem dizer: “sim, queremos acolher bem, mas queremos acolher com controlo, queremos acolher com regras e queremos acolher sem falsos humanismos”. Aquilo que leva à [situação da] estação do Oriente cheio [de imigrantes sem-abrigo] é o falso humanismo, é o dizer: “não, não, nós recolhemos toda a gente, venham que haverá condições para isso”, só que depois não há. Aos preços a que a habitação está em Portugal, é muito fácil a alguém que chegue sem nada ficar a dormir na rua, porque não consegue desenvencilhar-se. Precisamos de uma imigração controlada, regulada e, nesse sentido, bem integrada. Acho que podemos ter o melhor dos dois mundos neste caso.

    DR/Chega

    Nos últimos tempos tivemos protestos, agora dos agricultores, mas também das forças de seguranças, antes dos professores. Ou seja, há aqui também um grito de parte da sociedade a pedir algumas mudanças em determinadas áreas. Como vê o Chega este tipo de protestos sociais que muitas vezes tentam colar à extrema-direita?

    O Chega sempre teve a perspectiva, desde que estes protestos começaram, de se desligar deles politicamente, ou seja, de permitir que a sociedade também faça o seu caminho. Há um espaço para os partidos; há um espaço para organizações da sociedade civil. Estes protestos, estes movimentos, estas manifestações, até perdem às vezes se os partidos se juntarem, porque tornam-se partidários, e não espontâneas. O Chega, obviamente pela proximidade que tem com a causa dos polícias, desde sempre acompanhou muito de perto a questão, sem termos sido nós que organizámos ou incentivamos [os protestos], mas acompanhámos de perto uma coisa que era justíssima [suplementos de risco], e que eu continuo a achar que foi só uma tentativa do Governo de espezinhar estes profissionais; podendo ter tomado uma decisão justa, não o fez. Vimos que os agricultores sentem o mesmo. Nos últimos três anos, fiz imensas visitas a feiras agrícolas, à CAP e a organizações agricultores; e sabe que nos últimos anos, pelo menos no último ano, em muitas daquelas grandes feiras que assistimos – em Santarém, na Golegã, etc. –, o Governo já nem sequer era convidado para estar presente. Ou seja, convidavam os líderes dos outros partidos, mas nem sequer convidavam a ministro da Agricultura, tal era o ambiente crispado que se estava a criar. Porquê? Porque os apoios não chegavam. Eu conhecia agricultores que ainda no tempo da covid-19 não tinham recebido os apoios. E, portanto, têm de pagar salários, têm um conjunto de taxas em Portugal que eu penso que não existe em nenhum país da Europa – na CAP disseram-me uma vez que as taxas agrícolas em Portugal ascendem a 1.200. Só para as pessoas terem noção: 1.200 taxas sobre isto, sobre aquilo, sobre o trabalho aqui, sobre o gasóleo… Ou seja, uma confusão e um peso enorme, e os apoios nunca lhe chegam, eles não têm uma palavra do Governo. Tinha de acabar assim; se não fosse agora, era daqui a seis ou sete meses. Isto não tem a ver com extrema-direita nem com extrema-esquerda; isto tem a ver com os Governos terem-se aburguesado ao poder, terem achado que o poder nunca mudaria e, por isso, deram-se ao luxo de ignorar, de espezinhar, de desconsiderar sectores profissionais vastíssimos: as polícias, as forças armadas, a agricultura, as pessoas ligadas à justiça, os pequenos empresários, porque se entendeu, tal como sentir no século XIX, que o poder bastava a si próprio neste equilíbrio perpétuo. Aquilo que está a acontecer na Europa mostra bem que o poder e o equilíbrio de poder não são perpétuos, que há uma dinâmica permanente e que as pessoas, quando começam a querer falar, não há como controlá-las. Nós temos de lhes dar espaço e voz. Este tipo de movimento vai-se acentuar ao longo dos próximos anos na Europa e nos Estados Unidos, embora sejam dinâmicas diferentes.

    DR/Chega

    E vê que a Europa vai ter de mudar?

     Evidente. O panorama político europeu vai mudar muito nos próximos anos. As eleições europeias já vão ser um sinal disso, agora em Junho. Mas acho que [também] ao nível dos governos. Na Holanda, vimos o [Geert] Wilder vencer as eleições [com 37 dos 150 lugares da Câmara dos Deputados]. Eu conheço-o bem; era impensável há quase anos ele pensar em vencer as eleições. Em Portugal, nós não sabemos se o Chega vai vencer, mas terá pelo menos com resultado histórico. Muitos colegas europeus dizem-me que nunca acharam que Portugal pudesse ter um movimento deste tipo, com este peso. Em Espanha, o Vox está com uma expressão um pouco mais frágil, mas está em crescimento acelerado. Em França [também]. Na Alemanha, o AfD [Alternativa pata a Direita, conotado como extrema-direita] está em primeiro em algumas sondagens.

    Mas existem tentativas de bloquear estes partidos até; até ilegalizar alguns…

    Imenso. Ouça: às vezes queixo-me em Portugal, mas o que eu vi na Alemanha foi assustador. Há até tentativas de quebrar a subvenção que eles recebem – como nós recebemos, quando se tem X deputados e X votos – para quebrar, ou seja, para não receberem nenhuma verba de funcionamento. Só que, geralmente, isto não funciona; tem um efeito contrário. As pessoas sentem que é a democracia que está a ser posta em causa. Ora, se as pessoas votam no Chega, e hoje, com a pluralidade de meios que existem… Eu ainda acredito que possa haver algumas pessoas que votam ao engano, mas hoje a grande maioria da população sabe em quem está a votar; quer votar e tem consciência a quem está a votar, não é?

    Houve um recuo ao nível de democracia com estes partidos actualmente no poder…

    Evidente, evidente. Houve nas restrições de direitos, liberdades e garantia. Há uma tentativa de condicionar a Justiça nesta matéria, também para que a Justiça não actue de determinadas formas. Por isso, uma das prioridades [do nosso programa] é despolitizar a Justiça. Despolitizar aqui não é dizer que os magistrados ou os polícias estão dominados pelo poder político. Eu conheço muitos, e sei que são independentes e pessoas sérias, mas há uma tentativa institucional de condicionar. Quando o poder político é que nomeia algumas destas pessoas, é difícil depois pedir a estas pessoas que venham investigar esse poder político que os nomeou. Temos de caminhar para uma maior autonomia e para menos politização [da Justiça].

    Mas isso não é quase uma tarefa impossível? É como retirar, por exemplo, a ideologia do Ensino…

    Ainda hoje publiquei, no Instagram e no Facebook, um vídeo também com alguma polémica a mostrar o que foi a contratação de um artista para animar uma escola com conteúdos absolutamente aberrantes e sexuais, para [perguntar] aos pais se sentem confortáveis com aquilo. Qual é o problema? Isto não passa nas televisões, não chega ao grande público e nós temos de andar aqui a trabalhar com muita força nos meios alternativos. Eu tenho a certeza de que muito disto que acontece, quer na corrupção, quer na ideologia de género no ensino – olhe, esta coisa das casas de banho mistas, a cultura woke em geral –, se as pessoas vissem isto com os olhos, isto mudava.

    André Chega com Marine Le Pen ( RN) e Tino Chrupalla (AfD). DR/Chega

    Se houver então propostas para ajudar os grandes grupos de media que estão a precisar de financiamento, o Chega é a favor?

    Reconhecemos duas coisas. A importância de haver meios independentes. O que hoje temos dúvidas é que estes meios sejam verdadeiramente independentes. Mesmo no caso da RTP, que é um meio público, há muitos que defendem que deve ser privatizada. A questão é: nada nos garante hoje que, mesmo privatizada, a RTP não ia parar às mãos de grupos próximos do poder político.  Reconheço que há meios de comunicação em muita dificuldade, também temos reunido com alguns. Alguns trabalhadores, jornalistas, recebem mal, alguns com muitos salários em atraso. E uma sociedade com mau jornalismo também não é uma sociedade democrática. Por outro lado, temos de ter aqui a ponderação de perceber se é o Estado ou o Governo a salvar alguns grupos, ficará no ar a suspeita de que estes grupos ficarão adstritos à política que o Estado quer impor. Salvar o jornal não é o mesmo que salvar uma indústria têxtil ou salvar um banco. Um, banco, em princípio, enfim, pode depois também ter as suas coisas, na compra de publicidade, mas um jornal ou uma televisão tem um impacto muito grande porque pode gerar a suspeita de que está agora a trabalhar para o ‘dono’. Portanto, temos de reagir com alguma cautela, reconhecendo que é importante apoios quer à imprensa independente, quer à imprensa regional, quer à imprensa nacional, mas queremos garantias de que há uma independência real, e que não há aqui canais escondidos, em que o poder político está a tentar orientar estes meios de comunicação social.

    O Chega é um partido que se assume antissistema. Com mais poder, vai continuar a ser um partido antissistema ou vai passar a fazer parte desse sistema?

    Eu compreendo a questão, e até me colocaram essa questão a propósito dos deputados que vêm do PSD ou da Iniciativa Liberal e de outros partidos, e que de autarcas, alguns até do PS. Vamos ver: o Chega é um partido que cresceu muito rápido, e isto foi uma dificuldade para todos. Para mim, em primeiro lugar, mas para os dirigentes. Em quatro, cinco anos, e com um facto que eu acho que nunca tinha acontecido em Portugal: recebeu pessoas das mais diversas orientações políticas. Por exemplo, no Alentejo e em Setúbal recebemos uma série de novos militantes e dirigentes que vinham do PCP, alguns tinham sido funcionários do PCP. Funcionários! No norte e centro do país estamos a receber, naturalmente, pessoas que vêm do CDS e do PSD, e aí a integração é mais fácil. Em Lisboa estamos a receber o voto não ideológico; muitos votaram no PS, outros no Bloco de Esquerda, outros no PSD, mas sem convicção. Aquilo que o partido vai ser nos próximos anos dependerá muito da nossa capacidade de manter os fios unidos e de manter também uma liderança focada, unida, falar a uma voz e manter um quadro de valores estável, porque se o partido se desintegra na sua identidade, também corre risco de tornar-se mais um partido do sistema igual aos outros.

    Até pela tentação de formar uma coligação e ceder em algumas alguns aspectos…

    Sim, exactamente. São dois riscos, e um deles está muito presente, se não houver condições para uma maioria absoluta. Depois do dia 10 [de Março], pode acontecer ter de haver aqui convergências. Aliás, eu tenho falado muito nisso. Quero acreditar, embora não tenha uma bola de cristal, que em Itália temos um bom exemplo do que conseguiu funcionar, mantendo a identidade. A Giorgia Meloni [primeira-ministra italiana e líder dos Irmãos de Itália] e o [Matteo] Salvini [líder da Liga Norte, e actual vice-primeiro-ministro] e na altura [Silvio] Berlusconi [então líder do Força Itália], que já faleceu, conseguiram juntar três partidos muito diferentes, e dizer: “nós somos muito diferentes, queremos manter a nossa identidade, mas temos um propósito comum, afastar o socialismo do poder e garantir um governo de centro-direita, democrático e livre”. Estão a conseguir. O Governo não terminou. O Liga Itália [Notte], que é da minha família política, está a fazer um trabalho incrível na questão da imigração, na questão das infraestruturas; a Giorgia Melloni, apesar de não ser da minha família política, está a fazer um bom trabalho como primeira-ministra. E o PSD de lá, que é o Força Itália está a suportar esse Governo. Portanto, acho possível, mas reconheço, como lhe disse, e no sentido da sua pergunta, que o grande desafio vai ser manter face do Chega como antissistema, firme na defesa de questões fracturantes. Agora numa lógica de poder, porque o Chega também não se pode eximir ao poder, porque, repare, se com estes valores o Chega dissesse: ”nós não queremos governar, nós queremos manter-nos fora do Governo”, o que diria o eleitorado? Também diria disto que, afinal, o Chega é um partido totalmente irresponsável, quer só estar perto, mas também não quer aceitar o ónus da responsabilidade. Eu diria que o grande desafio dos próximos anos vai ser conseguir manter um partido anti-corrupção e anti-sistema com um forte pendor nacional, pela liberdade, mas ao mesmo tempo ser um partido de poder. Vai ser o desafio da nossa vida. Eu costumo dizer que é o desafio da minha vida aquilo que vai acontecer nos próximos anos. Mas acho [também} que vai ser o desafio da vida do Chega, porque pode transformar o partido para sempre. E a História mostra que, se os partidos perdem identidade, desaparecem. O PRD em 1987 [N.D. 1985] teve 17 e tal por cento [17,9%], elegeu um grupo parlamentar enorme [45 deputados], mas desapareceu [N. D. existiu até 2020, mudando de nome para Partido Nacional Renovador e denominando-se agora Ergue-te]. O CDS quando começou a perder a identidade, e a ser a muleta do PSD, desapareceu. E é uma lição para nós. É uma lição para nós, realmente. Já não serei eu, enquanto líder do partido, mas é uma lição para o futuro.

    André Ventura com Geert Wilders, líder do PVV (Partido pela Liberdade), o mais votado nas eleições na Holanda em 2023. DR/Chega

    E o Chega sobreviverá sem o André Ventura?

    Terá de sobreviver, porque o André Ventura não vai durar para sempre. E também porque hoje os líderes políticos estão a durar cada vez menos. Essa é a verdade. Olhamos para os anos 70 e 80, e os líderes duravam 10 ou 15 anos, porque o Mundo não estava à velocidade que está hoje. Agora, estamos a uma [grande] velocidade social, política, mediática. Os líderes tendem a durar menos. Sou Presidente do Chega há cerca de cinco anos, gostava de fazer mais este ciclo, mas reconheço que um dia o meu ciclo também vai terminar, e eu também gostava de fazer outras coisas na vida. Tenho 41 anos, gostava de fazer outras coisas, e acho que o Chega tem todas as condições para sobreviver depois de mim. Nós temos hoje bons deputados, acho que temos valores, pessoas já reconhecidas pela sociedade, até mediaticamente. Não deve ser uma tarefa fácil, no sentido em que o partido ficou muito ligado à imagem do fundador – neste caso, fui eu –, mas acho que vai acontecer e terá de acontecer.

    Então não se vê um dia Primeiro-Ministro?

    Eu vejo-me, mas isso depende dos portugueses, não depende de mim. Se eu algum dia entender que eu já levei o partido ao máximo que poderia levar, terei a capacidade de perceber que, se calhar, outros agora podem pegar e fazer esse caminho que, enfim, eu não consegui fazer. Por vezes, a chegada ao poder depende de muitas circunstâncias, e se eu reconhecer um dia já não sou o indicado, e outra pessoa pode ser, eu sei o caminho. Não preciso que me tirem. Espero que consiga sair pelo meu próprio pé.


    Pode consultar AQUI o programa do Chega para as Legislativas de 2024.


  • ‘Estamos a tornar-nos no país do ordenado mínimo’

    ‘Estamos a tornar-nos no país do ordenado mínimo’

    Advogada de 45 anos, Márcia Henriques tem, desde 2022, a tarefa de substituir o célebre Tino de Rans (Vitorino Silva), fundador há oito anos do partido Reagir Incluir Reciclar (RIR), depois de uma experiência nas Presidência de 2016, em que obteve 3,3% dos votos. Embora não completamente afastado – o mediático fundador do RIR é o cabeça de lista pelo círculo do Porto – Márcia Henrique é agora a líder de um partido de alma ‘centrista’. Nesta entrevista, critica a falta de pluralismo nos principais media, que não dão visibilidade aos partidos mais pequenos. Apesar disso, mantém a esperança do partido poder vir a ter um deputado eleito. Esta é a terceira entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE MÁRCIA HENRIQUES, PRESIDENTE DO PARTIDO REAGIR INCLUIR RECICLAR, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    O RIR é um partido relativamente jovem. Foi fundado em 2019 por Vitorino Silva, mais conhecido por Tino de Rans. Visto que era um partido que também se apresentava, na altura, como uma alternativa ao sistema político tradicional, o que é hoje o RIR?

    O RIR é o que sempre foi desde o início. O RIR foi criado pelo Vitorino Silva, o famoso Tino de Rans. E foi criado porque percebemos que há uma grande parte da sociedade que não se identifica com os partidos que existem e com os chamados partidos do arco da governação. Da esquerda à direita, PS, PSD, e o CDS estão aqui um bocadinho em crise. Foi-lhe dada agora uma grande ajuda com a coligação AD mas, de facto, a história da ideologia à esquerda e à direita deixou de fazer sentido. Começa a deixar de fazer sentido. Porque estamos em crise é já estamos em crise há alguns anos. Crise de valores, crise na sociedade, crise em várias áreas. E a própria democracia está em crise. E isso leva a que apareçam outros partidos com um discurso mais extremado. Isto deve-se ao facto desta bipolarização de esquerda e direita que já não responde às necessidades da sociedade e dos portugueses. E que leva, por outro lado, a que a abstenção cresça, que as pessoas não queiram saber, que ignorem. É o deixar andar e quem lá estiver que se resolva. “Eu tenho o meu ordenadozito e chega-me”… E não pode ser.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Não há confiança na classe política?

    Não há. Há uma descrença enorme, e eu posso dizer por mim, o meu exemplo. Eu cheguei a fazer parte da JSD há muitos anos. Portanto, eu tenho 45, faço 46 este ano, e nos meus 18-20 anos, cheguei a fazer parte de uma juventude partidária. E apercebi-me na altura – cheguei a ser deputada municipal na Assembleia Municipal de Peniche, de onde sou e onde nasci – que aquilo não era política. Não se defendia os interesses, naquele caso, da cidade do concelho, mas defendiam-se os interesses partidários, os jogos partidários. E afastei-me. Até que o Tino teve a ideia: “vou criar um partido”. Porque pensa exactamente como eu. E eu, pronto: “então, vamos embora”! E aqui estou.

    E ele criou uma dinâmica de trazer também para a política pessoas que não estão propriamente tanto no meio dos partidos.

    É como ele diz: o povo. O que é o povo? O povo é a pessoa normal, do doutor ao agricultor, uma pessoa normal. A pessoa que trabalha, que paga impostos, que gere a sua vida, que cria os seus filhos. Quando me dizem “mas descreva lá o RIR”, fico assim um bocadinho… Descrever como? Somos pessoas normais, é o que eu digo. Somos pessoas normais, com bom senso, que gostaríamos muito que, na política, os governantes tomassem decisões como nós governamos a nossa casa. Nós, se na nossa casa ganhamos 500, não podemos gastar 1.000, não é? E dos 500 que ganhamos, temos de ter as nossas prioridades. Há os bens essenciais e, se tivermos de ter um gasto mais supérfluo ou acima do orçamento, temos de gerir bem as prioridades. Eu estou certa que, se os governantes agissem desta forma e com este pensamento, a coisa seria melhor, e, se calhar, o RIR não existia.

    E é um partido também que se assume como mais moderado e centrista?

    Centrista, porque nós no fundo… Há uns anos, tínhamos o CDS, que se assumia como centrista, mas tinha aquela conotação cristã. Nós não temos essa conotação, nem exigimos que as pessoas sejam desta ou daquela religião para se assumirem como apoiantes, militantes ou simpatizantes do RIR, nada disso. Mas somos centristas. Nós vamos beber tudo o que é bom da dita esquerda ou da direita.

    Defende uma racionalidade naquilo que é a gestão do país, e não tanto a questão de se é de esquerda ou de direita?

    Um bom senso, sim. E muitas das vezes, se existisse bom senso, equilíbrio, moderação nas decisões a tomar, tudo seria tão mais fácil. Existiria muito mais consenso entre todos os partidos, e a sociedade evoluía e Portugal já estava no topo e não estava a ser ultrapassado por outros países que nunca pensámos que tal seria possível.

    (Foto: PÁGINA UM)

    No entanto, colocam-se também muitos obstáculos aos partidos mais pequenos… O facto é que o vosso partido está a concorrer às eleições legislativas por todos os círculos.

    Vamos por todos os círculos. Aliás, sempre temos ido. Em 2019, foram as primeiras eleições, fomos a todos os círculos, 2022 também, e agora também. Porque temos muitos apoiantes. Aliás, revela-se na expressão do voto, apesar de nas últimas eleições termos descido um bocadinho. Mas foram uns resultados um bocadinho atípicos. A história de voto útil dá-me ideia que deu a maioria absoluta ao PS, mas muita gente se arrependeu. E, daí, estarmos em eleições, novamente. Eu estou convencida que não temos mais expressão, porque, efectivamente, não somos tão conhecidos, porque não nos dão essa oportunidade. Posso dizer que todas as semanas envio comunicados de imprensa aos órgãos de comunicação social, à LUSA – que deveria fazer serviço público –, a todos os meios de comunicação social, e são raras as notícias que saem sobre o RIR e sobre as posições que tem a tomar sobre este ou aquele problema.

    Entende que há um problema de falta de diversidade e pluralismo em termos da cobertura que a comunicação social faz de todo o processo eleitoral e da democracia em Portugal?

    No processo eleitoral e na campanha eleitoral, não podemos dizer que somos afastados. Não podemos dizer isso. Apesar de, por exemplo, nos debates televisivos… E temos de ter em conta que muita gente consome aquilo que a televisão lhes dá e não questiona sequer a existência de outras ideias e de outros partidos. E, nesse aspecto, sim, nós somos atirados ali para um debate de partidos sem representação parlamentar, que, pelo número de intervenientes, nos dá ali cinco minutos para podermos falar, não mais. E, aí, sim, somos discriminados, claramente.

    Partidos de segunda?

    De resto, durante o período de campanha, não podemos dizer que somos totalmente postos de parte. O problema é durante o resto do período, fora de campanha eleitoral.

    Desaparecem?

    Desaparecemos, e por isso as pessoas dizem: “ah, mas vocês só aparecem em tempo de campanha”. Não, não é bem assim. Nós existimos: temos o nosso site, as nossas redes sociais, e acaba por ser a única forma que nós temos para comunicar. Porque os órgãos de comunicação social que nos deveriam ajudar nesse sentido, não o fazem. Há uma grande discriminação. Por exemplo, nas sondagens, também. Não acredito que não haja ninguém nenhum entrevistado que não responda que votou no RIR. Aliás, até lhe posso dizer que, há cerca de três semanas, foi a primeira vez que recebi um telefonema de uma sondagem, sobre a intenção de voto e tudo mais. E respondi: “sim, senhora, eu vou votar, e vou votar no partido RIR”. [E ela respondeu] “Ah pois, mas é só sobre estes que aqui estão na minha lista”. [E eu disse] “Pois, olhe, então ponha aí que eu nesses não vou votar”. [E ela respondeu] “Ah, vou ter que pôr que não vai responder”. Pronto, está bem. Portanto, [isto] é para ver como está tudo enviesado.

    Tino de Rans na entrega da lista da candidatura pelo Partido RIR do círculo eleitoral do Porto (Foto: D.R./RIR)

    As sondagens também acabam por nos influenciar, sabermos as intenções de voto.

    Influencia, claro que sim.  Há uma dificuldade.

    No vosso caso, por exemplo, utilizam também muitos materiais amigos do ambiente na vossa campanha, com cartazes que acabam por reutilizar, reciclar. Também não têm aqueles meios para fazer os grandes outdoors ou grandes campanhas públicas.

    Não temos, nem concordo com isso. Porque essas verbas são financiadas aos partidos que têm representação parlamentar, e são dinheiro dos nossos impostos.

    Pensa que poderiam ser melhor aplicados?

    Muito melhor aplicados. São esbanjados em campanhas com outdoors gigantes, com frases feitas, com chavões. Os outdoors, as canetas, as viagens, as excursões… Isso a mim tira-me um bocadinho do sério, porque é o nosso dinheiro! As pessoas têm que compreender que tudo o que o Estado gasta vem do nosso dinheiro, do nosso trabalho. Nós trabalhamos, descontamos, e é com esse dinheiro que se paga isso tudo.

    Ou seja, não vem de uma entidade abstracta, que é o Estado…

    Não, é nosso! E essa é uma das razões de eu ter ido para a política desde muito cedo, porque tenho a noção de que tudo o que é gasto, é do nosso esforço.

    Ouvimos, muitas vezes, os ministros, o primeiro-ministro, autarcas a dizerem: “demos isto, ou já demos não sei quanto, ou vamos dar, não sei quanto”. Como se fosse o Governo ou a autarquia a dar…

    Exactamente. Mas não. Porque o Governo gere o dinheiro dos nossos impostos, o dinheiro que, eventualmente, vem da União Europeia (UE), mas que a comunidade europeia paga com o dinheiro dos impostos dos europeus. É o nosso trabalho. Por isso é que as pessoas deviam ter mais interesse nesta parte política. Costumo dizer: uma junta de freguesia, ao colocar o banco do jardim naquela esquina e não na outra – isto é política. A política não é um bicho-papão.

    É tomar decisões.

    É o que gere a vida, o quotidiano das pessoas. Nisso, eu, pelo menos em casa, acho que tenho feito um bom trabalho [risos]. Aos meus filhos, tenho-os educado assim e vejo que realmente são interessados, e perguntam e questionam as matérias.

    Márcia Henriques no seu gabinete na sede do RIR, em Lisboa. (Foto: PÁGINA UM)

    Mas ainda agora há pouco tempo, grandes partidos com assento parlamentar acabaram por rejeitar uma proposta que visava criar programas de literacia financeira nas escolas, por exemplo.

    Isso é um handicap que existe, que não é admissível. Não é admissível que um aluno que termine o 12º ano e que vá trabalhar… E isto mesmo já depois da faculdade acontece. Mas pronto, vamos pensar que quem faz a faculdade tenha um bocadinho mais de capacidade ou de vontade de estudar esses assuntos. Mas, alguém que saia da escola secundária e que vá trabalhar, no primeiro ano de trabalho não sabe fazer uma declaração de IRS. Não sabe. Não sabe que despesas pode deduzir, não sabe o que é retenção na fonte. Não sabe analisar um recibo de ordenado, porque é que aqueles 11% são para quê, de desconto para a Segurança Social, se tem desconto de retenção na fonte… As pessoas pensam, por exemplo, que quando recebem o reembolso do IRS, é o Estado que lhes está a dar alguma coisa, quando não é!

    Mais uma vez, o Estado, essa entidade abstracta…

    Pois. E sim, faz muita falta, e isso deveria ser ensinado na cadeira de Cidadania, por exemplo.

    Mas essa ignorância também não favorece o baixo escrutínio?

    Sim, favorece os do costume. O PS e o PSD vivem também um pouco à conta da ignorância das pessoas, isso é visível.

    Falando em números, em termos de dimensão, o que é que nos pode dizer do partido hoje, em termos de apoiantes?

    Somos poucos militantes, mas também nós não exigimos que haja aquela militância e pagamento da quota. E, até há bem pouco tempo, o nosso Estatuto dizia que a quota é livre de ser paga: paga quem quer. Agora, num dos congressos mais recentes, é que dissemos “não, vamos lá mudar isso”, porque temos despesas e vamos ver se os militantes passam a contribuir com uma quota”. Mas temos. E agora, por exemplo, na campanha, é que começámos a ver que nos chegam. Porque lançámos a ideia… E isto ainda retomando um bocadinho o assunto dos outdoors e dos cartazes. O que é que fazemos? Não temos verbas para gastar, para esbanjar. As despesas que temos de fazer, saem um pouco dos nossos bolsos. É o nosso hobby, digamos assim. E [pensámos]: “somos” reciclar, temos “reciclar” no nome e, portanto, vamos aproveitar materiais. E temos feito com papelões. Temos um colega nosso que se predispôs a recolher papelões, a pintar “Vota RIR”, e a espalhar por aí. E é engraçado que temos recebido fotografias de todo o lado do país, de pessoas que já estão a fazer o “Vota RIR”, no papelão, para pôr na janela ou para pôr no portão… E isso dá-nos algum alento. Porque mal ou bem, a nossa mensagem acaba por passar.

    Agarraram na iniciativa e replicaram-na.

    Exactamente. E tem de ser mesmo por aí. Porque, para já, não faz sentido gastar o dinheiro que gastam. E digo-lhe uma coisa: as pessoas também ficam cansadas… Aqui, em Lisboa, então, em cada rotunda que passemos, há outdoors por todo o lado, com as caras de todos e mais alguns. Já cansa, porque tivemos eleições há dois anos, e é repetitivo. E se começarmos a ver, são frases que não nos dizem nada. Onde é que estão as soluções? Afinal de contas, o que é que andaram lá a fazer este tempo todo? Discutem, discutem, discutem… “Apalhaçam” a Assembleia da República, e no que é que se traduz, em termos de soluções? Temos agora o PS congratular-se, que realmente baixámos a dívida pública. Muito bem, excelente. Mas à custa de quê?

    Mais uma vez, também a fraca literacia financeira ajuda a não escrutinar essa afirmação?

    Exactamente. À custa de quê? À custa de um péssimo funcionamento de todos os serviços públicos. Todos. É generalizado. Quando me perguntavam há dois anos: “então, mas as propostas do RIR?”. Eu provavelmente caminhava mais para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), porque tivemos a pandemia há pouco tempo, e estava com problemas. Talvez fosse o sector com mais problemas. Mas, neste momento, é transversal. Temos problemas em todo o lado: na habitação, na saúde, na justiça – que é um tema que quase ninguém fala, mas, como sou advogada, vivo com esse diariamente. É um problema muito grave e que impede o país de evoluir.

    O mediático fundador do RIR, Tino de Rans, ao lado do humorista Herman José. (Foto: D.R./RIR)

    Até pelos custos, os cidadãos não têm um acesso propriamente fácil à Justiça.

    A justiça está com um problema. Não sei, está tudo mal. Já sou advogada há muitos anos e posso-lhe dizer… Converso com outros colegas meus que, há meia dúzia de anos a esta parte, temos vindo a assistir à decadência do sistema judicial. Os funcionários de justiça estão permanentemente em greve, e com razão, porque recebem uma miséria de ordenado. Acho que são os únicos neste país que fazem horas extra e não recebem pelas horas que fazem. Há poucos procuradores, há poucos juízes. E depois, há taxas de justiça muito elevadas. Para o comum do cidadão – que receba 700, 800 ou 1000 euros de ordenado –, que queira socorrer-se a um tribunal para fazer valer um direito que tenha, ter de pagar 300 ou 400 euros de uma taxa de justiça inicial é um absurdo. E dizem-me assim: “mas pode socorrer-se do apoio judiciário e da segurança social”. Será que pode? Não pode, porque um cidadão ou vive abaixo do ordenado mínimo nacional para ter esse apoio, ou não o tem. E, muitas vezes, as pessoas pensam: “para que é que eu me vou chatear? Para que é que eu vou para tribunal? Para que é que eu vou lutar por isto?”. Porque não podem dispor desse dinheiro.

    Não há justiça.

    E quando dizem que há justiça para ricos e para pobres, é verdade. É a pura das verdades. “Mas não é politicamente correcto dizer-se”… Mas tem que se dizer, porque é verdade. Quem tem dinheiro para pagar um advogado e taxa de justiça, consegue um resultado diferente.

    Temos, no jornal PÁGINA UM, essa experiência, esse contacto com a realidade da Justiça. Porque somos o jornal com mais pedidos de acesso a informação, a bases de dados, a informação pública e com recurso à CADA. Percebemos que, pelos custos, a Justiça não é para todos.

    Pois não. E, por exemplo, se a pessoa tiver que socorrer-se de um tribunal administrativo ou fiscal, uma penhora das finanças que a pessoa considere… Não pode. Isto não está correcto. Vai socorrer-se no tribunal administrativo e fiscal, e daqui a 10 anos tem uma decisão. Isto não é justiça. Não é. Portanto, as pessoas preferem pagar e esquecer.

    E há aqueles casos que prescrevem, de corrupção…

    Sim, há casos que prescrevem. E prescrevem porquê? É engraçado. Dizem que temos de alterar a lei. Não, as leis já existem! E até temos um ordenamento jurídico, nesse aspecto, bastante aceitável.

    Faltam os meios, os recursos?

    Sim! Os megaprocessos de investigação criminal: não temos capacidade humana para fazer face a esse tipo de processos. Não há funcionários suficientes para tramitar o processo, não há procuradores suficientes, não há juízes…  E, portanto, claro que prescreve.

    Também falou na questão do SNS. Mesmo antes da pandemia, já assistíamos a um padrão: no Inverno, naquele pico em que há um aumento de doenças do foro respiratório, começam aquelas notícias de que as urgências estão um caos. Isto é cíclico. Como vê esta situação e que soluções é que poderiam ser adoptadas para colmatar ou minimizar o problema?

    O grande problema do SNS, nesse aspecto das urgências e de estarem sempre a colapsar, como vemos nos jornais, as 20 horas de espera… Se formos analisar quem é o português que vai à urgência, muitas vezes não é uma situação de ir à urgência. Mas não podemos dizer à pessoa “olhe, não pode estar aqui”. Temos de dar uma solução. E a pessoa vai à urgência porquê? Porque não tem médico de família. Se precisar de ir ao centro de saúde, se calhar, só daqui a 15 dias é que tem uma consulta. E a pessoa está doente, não quer faltar o trabalho. E, portanto, vai à urgência para ser tratada. Falta reforçar a rede primária nos cuidados de saúde, os médicos de família, ter um serviço de maior proximidade, e mais eficiente na resposta ao cidadão. E, para isso, claro, é preciso manter os profissionais cá. E não é com os ordenados baixos que os médicos de família recebem, que conseguem fixar profissionais: os médicos emigram, os enfermeiros emigram. Toda a gente vai à procura de melhor, porque estamos a tornar-nos no país do ordenado mínimo. O ordenado mínimo subiu. Excelente! Está a subir, toda a gente concorda com isso. O problema é que os ordenados médios estão a colar ao ordenado mínimo. Nós temos de encarar o país. E eu não vejo um político de carreira a falar num projecto a 20, 30, 40 anos. Daqui a 50 anos, como é que queremos ver Portugal? Porque, depois, os problemas acumulam-se todos.

    (Foto: PÁGINA UM)

    E vai-se reagindo e resolvendo só os que surgem no momento, com remendos.

    É. E não pode ser assim.

    Mas, depois há outros projectos: o novo aeroporto, agora, também o TGV…

    E pode ter certeza que daqui a 10 anos vamos estar a falar na mesma, porque não há ninguém que vá tomar uma decisão. Vamos andar eternamente nisto. E pagam-se estudos e mais estudos, sabe-se lá para que empresas. E o dinheiro vai-se gastando, e as obras não se fazem. Nem se vão fazer.

    Estava a falar dos salários. De facto, pode ter subido o salário mínimo, mas o custo de vida também disparou. E temos aqui uma situação que está a levar portugueses a sair do país, o que depois também levanta outras questões. Como é que vê este desequilíbrio entre os rendimentos mínimo e médio dos portugueses e aquilo que é hoje o custo de vida?

    Temos de reforçar a nossa economia. Só assim é que vamos conseguir. Com uma economia mais forte, e mais investimento de empresas que venham dar mais postos de trabalho, é que poderemos começar a aumentar impostos. Mas isto está tudo encadeado, porque não podemos ter uma carga fiscal tão grande. Não podemos exigir que as empresas, para pagarem um ordenado líquido a um trabalhador de 1500 euros, gastem 2000 e tal. Não dá. E as empresas vão para outro lado, e levam os nossos melhores. Acho um disparate, mas há quem se orgulhe de exportamos quadros e jovens, os “melhores” portugueses. Isto devia ser um alerta de que alguma coisa está errada. Devíamos era conseguir fixá-los cá, mas para isso precisamos de atrair as empresas.

    O problema não está só na questão da atracção do investimento, mas também na enorme carga fiscal?

    Sim. Depois, está tudo relacionado, novamente, com a Justiça. Não há nenhuma empresa que venha para Portugal que, por exemplo, queira cobrar uma dívida e que demore três ou quatro anos para conseguir fazê-lo, e que no meio do processo, o devedor apresente insolvência e que se perca tudo.

    Para além de todos os custos que têm que de ter, com as taxas, de que falou há pouco.

    Pois, porque é muito simples: uma empresa tem um crédito espalhado na rua, não lhe pagam, metem uma injunção. Primeiro, que uma injunção se torne título executivo, pode demorar um ano ou dois. E nesse espaço de tempo, o devedor apresenta insolvência. E não há empresas que venham para cá arriscar numa economia e num sistema judicial que não lhes dá garantias, nem respostas. E é a mesma coisa com a habitação. O problema da habitação e das rendas, no meu entender, tem vários pontos. Primeiro: o negócio dos quartos tornou-se atractivo, principalmente nas cidades onde há pólos universitários. Há muitos alunos deslocados e uma pessoa que tenha um T2 ou um T3, tem ali um bom negócio para arrendar quartos. E esse negócio só existe, porque ouvimos os governos a prometer residências universitárias, que não saem do papel. Se essas residências universitárias existissem, o negócio dos quartos descia para metade. Já ficavam mais imóveis livres para arrendar. Depois, temos outro problema, novamente, com a Justiça: um senhorio que tenha uma casa a arrendar e tenha a pouca sorte de ter um inquilino que não lhe pague a renda, para meter uma acção de despejo, pode ter que esperar dois ou três anos para que o inquilino saia da casa. E ainda pode correr o risco de o inquilino sair da casa e deixá-la completamente destruída. Depois, o que recebeu de rendas nem sequer chega para pagar as obras. E depois, as pessoas põem à venda. E vêm grupos económicos grandes que compram e fazem negócio disso.

    Portanto, entende que há soluções, não é um caso perdido, e que há mecanismos que podem ser postos em prática para resolver parte do problema?

    Há. Não vejo que seja tabular rendas, isso não. Porque uma pessoa se trabalha, e consegue comprar um imóvel que daqui a uns anos lhe vai servir para complementar o rendimento da reforma – que não será muito alta –, não se pode impedir que isso aconteça. Ou alguém que herde dos pais, que trabalharam e deixaram uma casa. Não pode herdar o que os pais, que pagam impostos e contribuições, deixaram? Não vamos limitar.

    Então, defendem que haja um incentivo para colocar mais habitação no mercado?

    Sim, mas tem de haver mais habitação no mercado e tem de haver também construção pública. Claro que há muitos agregados que não podem pagar as rendas que actualmente estão a ser praticadas. Tem de haver uma resposta pública nesse sentido. Mas, ao mesmo tempo, tem que haver fiscalização, porque, infelizmente, a ‘casinha’ pública serve para muitos anos e passam por ela muitos descendentes. E pagam rendas de cinco euros. Não pode ser. Tem de haver regras e fiscalização. E claro que se isto tudo existir, os preços acabam por reduzir, porque obrigatoriamente é a lei do mercado a funcionar, não estamos aqui a inventar nada de novo.

    O RIR promove a reciclagem na criação dos seus posters e cartazes de campanha. (Foto: D.R./RIR)

    E já que estamos a falar destes temas que têm estado na ordem do dia, há um outro que também foi agarrado pelo vosso partido: a Educação. E fizeram alguns alertas para o facto de haver problemas naquilo que é a alimentação escolar. Daquilo que tem tido conhecimento, é uma situação que deve ser alvo de forte escrutínio por parte das autoridades?

    Sim. É uma situação grave. E eu tenho tomado conhecimento disso, porque a minha filha anda no 9º ano, numa escola pública, e tem a sorte de só ter que almoçar na escola uma vez por semana. E, coitada, eu tenho pena. Porque a semana passada ela mandou-me uma fotografia do prato de comida, e posso dizer-lhe que os meus cães comem melhor do que aquilo. E, depois, começo a ouvir relatos de pais de tios, de avós, de várias partes do país. O problema aqui é igual. E se virmos, qualquer pessoa consegue ir ao Portal Base e ver os contratos que as câmaras municipais fazem com as empresas que fornecem as refeições… E não é barato. Gastam-se milhares de euros na contratação dessas empresas para fazer refeições. Não há fiscalização? Então fiscalizem, mas não podem dar de comer aquilo às crianças. Aquilo influencia claramente o rendimento escolar dos jovens que têm menos apoio em casa e que têm de comer na escola porque é, muitas vezes, a única refeição que poderia ser mais equilibrada. E não acontece isso. Portanto, há que ter os olhos abertos. E isso nem é tanto um problema do Governo. Será um problema das câmaras municipais, porque isto é gerido pelos municípios. Os presidentes das câmaras, façam o favor de aparecerem de surpresa, sem avisar! Porque já me disseram a mim: “a mãe pode vir cá comer à escola, mas tem é que marcar”. Pois, claro, tem de se marcar para nesse dia a refeição ser melhor… Se perguntarem aos professores de todas as escolas se comem nas cantinas, todos lhe vão dizer que não. Por alguma razão será.

    Portanto, as crianças também não deveriam ter essa alimentação…

    Não pode ser. E depois gastam milhares de euros em campanhas de alimentação saudável, espalhadas por todo o lado. E depois, aos miúdos, dão a comer aquilo. Não pode aparecer na ementa “frango estufado com massa de esparguete”, e ser um prato só de massa e a carne ser um ‘fiozinho’. Arroz de peixe, é só arroz, e onde é que está o peixe? Refeições deslavadas, não há saladas, não há as sopas, não há sobremesa… Não pode ser. Os meus filhos não têm escalão de apoio social. Pago 1,46 euros, salvo erro, por cada refeição. Eu compreendo que, com 1,50 euros, talvez não seja fácil ter uma refeição por aí além. Compreendo que há muitos alunos que beneficiam do escalão e que nem sequer 1,50 euros paguem. Mas prefiro pagar mais – e, de certeza que, como eu, há outros pais que conseguem pagar mais –, mas que deem uma refeição em condições às crianças.

    E os próprios contratos que mencionou, no Portal Base, devem prever um determinado critério de qualidade.

    Sim, e não está claramente a ser cumprido, pelo país todo.

    Ao nível da educação, esse infelizmente não é o único problema. Aliás, tivemos protestos, precisamente devido às condições de trabalho também dos professores, e aos seus rendimentos. Como é que vê isso, já que é apoiante também da escola pública?

    Sou apoiante da escola pública porque sempre estudei em escolas públicas. Inclusivamente, a faculdade, fiz na pública, e os meus filhos também. O meu filho mais velho está a acabar a faculdade também, na pública. Portanto, apoio, e sou apoiante do SNS também. Posso dizer que sempre que precisei, mesmo em casos urgentes, fui bem tratada e fui até salva pelo SNS. Não tenho seguro de saúde. O meu marido tem, eu não tenho, nem quero. Porque eu pago impostos suficientes para receber, em troca, do Estado, alguma coisa.

    Muitos políticos dos partidos com assento parlamentar têm os filhos em colégios privados ou faculdades privadas. Parece haver um sistema de castas. Um distanciamento.

    Há, e esse é um dos grandes problemas da política, porque os políticos de carreira vivem numa bolha. Não conhecem a realidade, porque têm ordenados acima da média que lhes permitem fazer face a todas as despesas. Não passam por dificuldades. Conseguem ter os filhos em escolas privadas, têm o melhor da educação, o melhor da alimentação na escola, conseguem ter acesso a seguros de saúde e são tratados pelos melhores médicos especialistas. Não têm noção da realidade da pessoa normal que o RIR quer representar. E quando me dizem: “mas aquele partido tem quadros”… É uma expressão que me deixa com os nervos à flor da pele [risos]. Porque “são pessoas importantes, têm quadros”… Nós, no RIR, também temos quadros. Bastantes! Para começar, temos quadros técnico-profissionais: do agricultor, ao calceteiro e ao pescador. Esses, então, são essenciais. Depois, para os mais “esquisitos”, também temos os quadros de que eles falam: temos advogados, médicos, professores, filósofos, escritores, contabilistas. Temos tudo; o cidadão normal que trabalha, recebe o seu ordenado, que enfrenta as dificuldades e conhece realidade. E isso faz falta ao político, ao governante. Não é só daquilo que lhe dizem. Nós sabemos da dificuldade. Precisamos de ir levantar uma certidão a uma conservatória, sabemos que temos que esperar horas na fila para conseguir uma certidão. Eles não, o secretário trata de ir buscar por eles. Se há um português que quer cancelar uma matrícula no IMT, porque há uns anos vendeu um carro para a sucata, e afinal, a matrícula não foi cancelada e anda ali todos os anos a pagar IUC, experimentem fazer uma marcação no IMT para cancelar a matrícula… Não conseguem.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Ou tentar ser atendidos na Saúde 24, por exemplo. Muitas vezes, tem que se carregar em algumas teclas para se chegar a algum lado.

    E será uma situação grave: quando se liga para a Saúde 24 é porque se está doente ou tem o filho doente, e precisa de apoio urgente. E quando a própria linha de apoio não sabe qual é o hospital mais próximo? Ainda na semana passada, uma colega me contou que a filha estava com febre, que ligou para a Saúde 24 – ela é residente em Peniche, o hospital mais próximo de pediatria é em Caldas da Rainha – e queriam mandá-la para Coimbra! De Peniche a Coimbra?! “Mas vocês têm noção do que estão a fazer”? Não pode ser.

    A Márcia é de Peniche. Sabe que o país não é só Lisboa, nem só Porto, é muito mais vasto do que isso, e tem muitas realidades diferentes.

    Exacto, e esse também é um dos grandes problemas. Governam a pensar na Área Metropolitana de Lisboa. Sobre a história dos transportes públicos: dizem que as pessoas têm que utilizar para transportes públicos, aceito. Eu trabalho em Lisboa, tenho o privilégio de ter uma profissão que permite não vir todos os dias e não ter que cumprir horários de entrada e de saída. Mas vim estudar para cá, morei cá muitos anos, entretanto, voltei às origens, mas continuo a ter contacto, e por vezes venho a Lisboa de autocarro. E eu moro a 15 km do centro da cidade de Peniche, onde tenho que apanhar o autocarro. Eu não tenho como ir de minha casa para essa paragem de autocarro de carro. Tenho que ir de carro. Portanto, pelo menos 30 km tenho que fazer por dia.  Num trajecto que se faz em menos de uma hora, demoro cerca de duas horas e meia.

    Quem tivesse de fazer esse percurso diariamente, seria quatro a cinco horas por dia.

    Exacto. Não é compatível com uma vida familiar, por exemplo.

    Ou seja, há de facto um défice em termos da disponibilidade de transportes públicos fora dos grandes centros urbanos.

    Completamente. E depois temos valores de combustíveis alucinantes, em comparação com Espanha. São 20 e 30 cêntimos de diferença, que não se compreende. Tudo bem que nos digam que é da guerra. São tudo justificações aceitáveis. Mas quando olhamos para o vizinho ao lado, então como é que eles podem e nós não podemos?

    Pois, a fatura acaba por ser muito diferente se pagarmos em Portugal ou em Espanha.

    Sim, e estamos todos na mesma comunidade europeia. Como é que os espanhóis conseguem pagar o gasóleo a 1,40 euros e nós temos aqui a pagar a 1,80 euros? Há aqui qualquer coisa que não bate certo.

    Hoje, os políticos gostam de falar nas alterações climáticas. E eu, que sou de 1974, sempre ouvi muito falar em ecologia, em protecção do ambiente. E o que é certo é que parece que caiu em desuso falar-se na proteção ambiental e, agora, só se fala em alterações climáticas. Qual é a vossa posição relativamente a isto? Até porque vamos conhecendo casos de problemas, precisamente de não se proteger o ambiente em Portugal, em várias zonas?

    Sim, há grandes problemas; e com fábricas, sempre existiu, com descargas poluentes.

    Pensa que há uma distração dos políticos relativamente a esse tema, e que não há um investimento naquilo que é a proteção ambiental?

    Não sei se será distração, se será um empurrar com a barriga… Sinceramente, não quero saber, mas a proteção ambiental não tem sido uma prioridade. Vivo num concelho que tem praias por todo o lado. E não vejo atenção na limpeza das praias, no recolher do lixo. Muitas vezes, são iniciativas particulares de associações de pessoas que se juntam que vão fazer limpezas à praia. Não há esse interesse dos políticos. Acho que isso não traz votos e, como não traz votos, pode ficar para o lado. Quem quiser que vá, dá-se uns subsídios a umas ‘associaçõezitas’ que fazem o trabalho por nós. E depois, temos indústrias completamente poluentes. Aliás, Lisboa, há umas semanas que cheira a azeitonas, dizem. Não sei se será bem azeitonas, mas que realmente há aqui um cheiro. Tenho ouvido teorias de que será da Margem Sul, de um aterro sanitário. Mas afinal, de onde é que vem? É poluição certamente, mas não se vê isso na agenda de campanha de ninguém. Não traz votos. As alterações climáticas agora estão na moda. Isso leva à história da transição energética que, por um lado, serve para aumentar preços da electricidade e justificar o negócio que existe. Ninguém me tira isso da ideia.

    (Foto: D.R./RIR)

    Até porque o vosso partido defende as energias renováveis…

    Sim. Mas não pode haver uma imposição, de uma forma que não seja, na prática, compatível com a vida das pessoas. Esta imposição das pessoas de terem de optar por carros eléctricos… Podem dizer que é uma grande teoria da conspiração, mas ainda ninguém me convenceu que o carro eléctrico é menos poluente que um carro de combustão. A exploração de lítio também é prejudicial ao ambiente. Não é só o petróleo.

    E quando o veículo já está em fim de vida, como é que se faz?

    Como é que vai ser com a reciclagem das baterias? Alguém explica isto?

    Nas turbinas eólicas, as pás, têm havido essa questão…

    Pois, e isto não está a ser contabilizado. E eu, sinceramente, tenho grandes receios de que isto seja um grande embuste, e que no final de contas, os veículos eléctricos não sejam menos poluentes.

    Acaba por ser mais um negócio?

    Sim.

    A questão ambiental, defende que deve ser vista, neste caso, desde o que é necessário para a sua produção até ao seu fim de vida, e não apenas aquilo que acontece enquanto o veículo está a circular.

    Exactamente. E depois também temos outro problema: se todos os portugueses agora optassem por comprar um carro eléctrico, nós não tínhamos capacidade para abastecer, não tínhamos uma rede. Colapsava tudo. Portanto, há que haver um bocado de bom senso e de equilíbrio nas propostas; não podem só impor e obrigar. Eu não gosto que obriguem a fazer.

    Mas tem havido muito esse “caminhar”. E começámos por falar do recuo do nível de democracia a que temos assistido nos últimos anos. E tem havido essa imposição de medidas, uma forma de estar na política e na gestão da vida pública no caminho de imposição. Medidas que muitas vezes nem sabemos bem de onde vêm, nem com que objectivo, e impostas também ao nível comunitário, algumas positivas, outras um bocadinho mais duvidosas.

    Exactamente. Pelo menos expliquem às pessoas o racional, justifiquem a razão de ser desta ou daquela medida. E o que me deixa mais triste no meio disto é que a maioria das pessoas não questiona a razão de ser das coisas; não querem saber. É por isso, também, que eu ando nisto: para alertar, tentar abrir as mentes das pessoas, porque não se podem resignar desta forma que se vê.

    Praticamente sem meios para a campanha, o RIR apela ao voto no partido usando os meios que tem ao alcance. (Foto: D.R./RIR)

    Mas tem havido uma crescente imposição de políticas que vão muito para além daquilo que é o espectro económico, digamos assim, da UE. E mesmo agora, depois da pandemia, tem estado a ser negociado ao nível da Organização Mundial de Saúde, um novo Tratado Pandémico. Não vemos muito na política, e nos portugueses, noção de como na esfera internacional já há uma grande influência naquilo que são as medidas políticas, das alterações climáticas à gestão da saúde.

    Sim, em tudo. Estamos agora o ter o exemplo dos agricultores, que estão em protesto. Mas se as medidas são todas tomadas pela Europa, nós temos de ter ministros que se tentem impor e defender os nossos interesses um bocadinho mais. Como as políticas de pesca, que também são todas implementadas a nível europeu.

    Ou seja, haver cooperação, mas também haver um cuidado com a realidade do país.

    Exactamente. Temos de ter noção que também temos a nossa soberania e temos o nosso interesse. Portugal é o país que mais mar tem; toda a gente vem cá buscar, e não nos podemos impor? Há aqui qualquer coisa que não está bem. Temos de valorizar aquilo que somos e os nossos interesses. Claro que, depois, passam todos por uma negociação, mas nós não podemos ser o típico bom aluno do “sim, senhor professor” e aceitarmos o que nos dão, e apenas ‘mendigar’. E atenção, que eu sou europeísta; não me vejo fora da União Europeia, acho que não fazia sentido absolutamente nenhum.

    Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

    Sim. Temos de ter noção que não somos assim tão insignificantes. Toda a gente gosta de Portugal, vêm todos cá passar férias, temos um clima fantástico. E, portanto, temos que nos saber impor um bocadinho.

    Uma das políticas que existe e também tem estado na ordem do dia, também ao nível europeu, é a questão da imigração.  Qual é a vossa postura relativamente àquilo que deve ser a política de Portugal de receber imigrantes de os proteger e de os integrar bem, visto que uma das vossas bandeiras é também o combate à discriminação?

    Sem dúvida. Não somos nada contra imigrantes. Aliás, Portugal sempre foi conhecido como um país de emigrantes. Os portugueses sempre procuraram melhor lá fora, desde muito cedo. Portanto, venham, mas venham cumprir regras e cumprir a lei. E o que notamos, neste momento, é que a imigração está descontrolada. E isso traz-nos, obviamente, problemas a nível europeu, e Portugal acompanha. E isso nota-se nos cuidados de saúde. Se nós formos procurar um médico, há muito estrangeiro e muito imigrante a fazer a mesma procura: no acesso aos serviços públicos, conservatórias, juntas de freguesia…

    (Foto: D.R./RIR)

    Ou seja, não está a ser acautelada a vinda de imigrantes e a capacidade de resposta dos serviços?

    Não está. Não estamos a conseguir dar resposta. Primeiro que tudo, não está a ser fiscalizada a entrada dos imigrantes em Portugal. Tem condições para vir, cumpra as regras. Tem contrato de trabalho? Se não tem, vai morar onde? É o mínimo que se pode fazer.

    E em que em condições…

    Sim, porque senão depois é o que nós assistimos: temos 20 pessoas a morar no T1.

    E muitas vezes, infelizmente, a ser alvo de redes de exploração.

    Sim! É isso que nós queremos em Portugal? Temos, espalhados pelos campos do país, milhares de estrangeiros que trabalham a 3,50 euros à hora. E dizem “os portugueses não querem fazer o trabalho”; pois, claro que não! Mas ninguém deveria fazer por esse valor! É a mais pura das explorações. Mas toda a gente sabe isto. Aliás, há presidentes de junta que têm explorações agrícolas, que contratam esses serviços, e sabem isto.

    Aproveitam a vulnerabilidade.

    Sim, é negócio. Isso não pode ser. Claro que a imigração faz-nos falta, até para equilibrar a segurança social, porque nós estamos a envelhecer. A sociedade está a envelhecer, e precisamos de reformas, e alguém tem de sustentar isso. Mas não pode ser como estamos a ver. Acabaram com o SEF, porque existia corrupção. Criaram a Agência para a Integração, Migrações e Asilo [AIMA], mas está a ser um autêntico desatino. Um estrangeiro que queira renovar a autorização de residência não consegue uma marcação em nenhuma conservatória do país. Não dá, o sistema não funciona.

    Ou seja, mesmo que queira seguir as regras, não há resposta.

    Sim, mesmo que queira continuar legal, arrisca-se a que o cartão perca a validade e que deixe de ser um cidadão exemplar, porque o sistema português não dá resposta. Venham, são todos bem-vindos, mas cumpram regras e a lei. Nesse aspecto, eu sou muito legalista. Se todos cumprirem a lei, conseguimos mais ou menos conviver saudavelmente dentro da sociedade portuguesa. E tem de haver um respeito. Os meus sogros foram imigrantes no Canadá e eles dizem, tiveram de se adaptar à realidade deles e de cumprir os seus hábitos. E tudo correu bem. E isto é o que milhares de pais e de avós também fizeram. Portanto, não temos de ser contra, não temos de discriminar; pelo contrário. O que vemos agora é os nossos filhos a emigrarem, à procura de algo melhor noutro país. Portanto, ser contra a imigração é completamente descabido.

    Imagem de campanha do RIR. (Foto: D.R./RIR)

    Tem é de haver regras?

    Sim, e também cabe ao Estado controlar o que se passa, e não permitir que negócios paralelos sobrevivam à conta disto. Porque depois, isto beneficia quem explora campos agrícolas, quem tem barcos de pesca. E com os salários que são pagos… Nas habitações, é muito mais atractivo arrendar a 100 euros por pessoa e ter 20 numa casa, do que arrendar a uma família a 500 ou 600 euros de renda. E já é uma renda alta. Portanto, isto tudo está a desequilibrar a sociedade. Faltam regras, falta fiscalização, falta tudo. Mas porque é que não fazem? Não sei.

    Em termos de objectivos do partido, o que é que pode nos dizer, não só sobre estas eleições, mas para o futuro? Como é que vê o RIR? O que é que gostariam de alcançar?

    Gostava muito, ficava muito contente, se conseguíssemos eleger um só deputado. Era o suficiente, porque eu tenho a certeza que a partir do momento em que lá chegássemos, já não saíamos.

    Seria uma voz activa?

    Sim, de bom senso e de equilíbrio, de tentar construir consenso. Porque se formos ver, neste momento, as mensagens de todos os líderes dos partidos são exactamente iguais. As promessas… “Temos de melhorar isto e aquilo”. Todos dizem o mesmo. E a pessoa fica a pensar: então, quais são as diferenças? O problema é que depois, na prática, não o fazem. Temos o factor favorável de, efectivamente, viver a realidade, de termos pessoas de várias áreas nos órgãos do partido. As nossas reuniões partidárias são verdadeiras tertúlias. E temos consciência da realidade, porque são pessoas de todo o país. E isso faz falta dentro do Parlamento. Nem tinha de ser eu, qualquer um deputado eleito pelo partido RIR era importante.

    Imagem de campanha do RIR. (Foto: D.R./RIR)

    Sente que a democracia em Portugal sairia reforçada se houvesse uma maior diversidade e um maior número de partidos representados?

    Sem dúvida. Nesse aspecto, a Iniciativa Liberal [IL] foi o partido que tentou dar algum contributo, com o círculo de compensação nacional, que não é nenhuma invenção. Nos Açores têm e funciona. Portanto, não era nada de extraordinário. E fazendo um círculo de compensação nacional, muitos dos votos não seriam desperdiçados. Acabava a história e a propaganda do voto útil. Porque eu não posso aceitar que o voto seja diferente – quando votam no partido do poder, é um voto útil. O voto no RIR é um voto “inútil”? Não é. É um voto igual ao outro e, portanto, são todos úteis. Há que transparecer na Assembleia aquilo que as pessoas escolhem, e que querem que se faça sentir. E, se isso tivesse sido aprovado – a proposta da IL – o RIR estava no Parlamento desde 2019.

    Portanto, é algo que defende que deveria voltar a estar em cima da mesa?

    Devia. Aliás, todo o sistema deveria ser revisto, porque eu tenho a certeza absoluta que nem o líder do PS, nem o líder do PSD, sabem montar uma candidatura eleitoral. Não sabem que passos têm que dar e a burocracia que existe. São processos da Idade da Pedra, tudo em papel. E basta falarem com o escrivão de um tribunal, com um juiz, e vejam como é um sistema totalmente ultrapassado. Isso, e o voto: porque é que não existe o voto electrónico, se nós temos nos nossos telemóveis o banco, as Finanças, os nossos documentos oficiais? Já assinamos digitalmente tudo e mais alguma coisa, porque é que não podemos votar electronicamente? Portanto, há muito para evoluir.


    Pode consultar AQUI o programa do RiR para as Legislativas de 2024.


  • ‘A extrema-direita é só um sintoma de um modelo bipartidário PS-PSD’

    ‘A extrema-direita é só um sintoma de um modelo bipartidário PS-PSD’

    Ana Carvalho e Duarte Costa partilham a liderança do Volt Portugal, um partido de cariz federalista, que defende a criação de uma União Europeia mais forte, a funcionar a uma só voz. Ana Carvalho, tem 27 anos, é engenheira electrotécnica de formação e faz investigação na área das energias renováveis. Entrou no Volt em 2018, quando estudava na Alemanha, e teve um papel-chave no lançamento do Volt Portugal, tendo, em 2022, sido eleita co-presidente do partido. Duarte Costa, tem 35 anos, é especialista em alterações climáticas. Juntou-se ao Volt em 2021 e já foi candidato à Assembleia da República pelo círculo da Europa nas eleições legislativas de 2022. Actualmente, é também candidato às Europeias de 2024. Esta é a segunda entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE ANA CARVALHO E DUARTE COSTA, CO-PRESIDENTES DO VOLT, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Como é que o Volt Portugal vê o seu potencial para crescer no país, numa altura em que existem muitos partidos, mas que também há muito destaque que é dado a alguns mais do que a outros, em termos daquilo que é a percepção do público, nomeadamente nos media?

    ANA CARVALHO: Desde já deixe-me começar por agradecer ao PÁGINA UM o vosso convite. É óptimo, de facto, darem esta visibilidade aos partidos sem assento parlamentar. É um pouco o combater esta inércia democrática que há, de dar sempre a visibilidade aos mesmos. Só ouvimos falar dos mesmos partidos, não damos oportunidade aos portugueses de saberem que há alternativas àqueles que já lá estão.

    Quanto ao Volt, e a como nós estamos a planear crescer, a verdade é que nós temos aqui uma vantagem, porque o Volt é um partido europeu e, portanto, já somos um partido enorme. Somos um partido com mais de 30.000 membros em toda a Europa. Estamos presentes em 31 países, já temos eleitos a todos os níveis, desde o Parlamento Europeu, desde o Parlamento nacional, por exemplo, da Holanda e da Bulgária. E a nível municipal, também temos vários por toda a Europa. Mais de 100 eleitos, na verdade. E, portanto, o Volt Portugal – nós chamamos-lhe este “capítulo” do Volt Europa – também ganha com este crescimento.

    Ana Carvalho, co-presidente do Volt Portugal (Foto: PÁGINA UM)

    Em Portugal, há quatro anos éramos menos de 50 pessoas e já estamos na ordem de grandeza dos 500, por exemplo. Este crescimento tem sido exponencial. Agora, na altura das eleições, temos tido também imensa atenção, muito graças a podcasts e a iniciativas como a vossa, as quais agradecemos. E a verdade é que bebemos desse crescimento europeu. O movimento progressista está a crescer muito e aqui os portugueses estão a aderir a ele também. O Volt Portugal está a crescer um pouco por todo o país. Por exemplo, nestas eleições legislativas, vamos pela primeira vez participar em círculos eleitorais a que não tínhamos participado antes, como é o caso da Madeira.

    Participam em quase todos.

    ANA CARVALHO: Participamos em quase todos. Tivemos ali um azar e por falta de tempo não conseguimos ir ao círculo eleitoral de Bragança. É o único que nos falta; em todos os outros apresentámos lista. E, portanto, nos Açores, Madeira, fora da Europa… Em todos os distritos de Portugal continental, os portugueses vão poder votar no Volt.

    Vão aparecer no boletim de votos nesses círculos. E quais são as vossas ambições para estas eleições? Preveem que possa haver, de facto, um espaço para eleger candidatos?

    ANA CARVALHO: Sim, a resposta é clara. Nós queremos eleger a nossa candidata nacional, a Inês Bravo Figueiredo. Estamos a trabalhar para isso e até agora temos tido resultados muito bons.

    O partido, sendo um partido jovem, em Portugal já existe desde 2017, embora em termos oficiais exista desde 2020. Mas é um partido também que, pela sua liderança e não só, tem bastante jovens. Também as profissões e as áreas de formação… Estamos a falar, no caso da Ana, de engenharia e investigação e, no caso do Duarte, é um especialista em alterações climáticas. Estamos a falar de um partido, como diriam os jovens na minha época, “muito à frente”, face aos restantes?

    DUARTE COSTA: Sem dúvida. De novo, parabéns por esta iniciativa. Eu acho que o Volt é a maior inovação política desde o 25 de Abril em Portugal. Ou seja, em Portugal, e, já agora, também no resto da Europa. Nunca tivemos na Europa e em nenhuma parte do mundo europeu, pessoas de vários países a fazerem política em conjunto. A grande novidade que o Volt traz a Portugal é de termos políticas que foram pensadas por europeus de toda a Europa; e termos por aí a possibilidade de trazer boas práticas para Portugal. Acho que, estamos a um mês das eleições legislativas, esta é uma grande sede dos portugueses.

    Ana Carvalho e Duarte Costa, co-presidentes do Volt Portugal (Foto: PÁGINA UM)

    Temos problemas crónicos do século XX ainda no século XXI: a questão da desigualdade, a questão dos baixos salários, o tema da habitação que agora está ao rubro, porque não temos acesso à habitação para o poder de compra que temos, e uma série de outros problemas também de burocracia de um Estado ineficiente, a somar aos problemas do século XXI. O caso das alterações climáticas, que é um tema que me trouxe ao Volt e à política, mas também os outros temas do nível global, como a ameaça de guerra na Europa… A questão da economia global, que está a alimentar desigualdades e que temos grandes corporações que conseguem fugir aos impostos.

    Para nós darmos resposta a tudo isto, achamos, no Volt, que as estruturas tradicionais dos partidos nacionais e até de um modelo muito baseado nas fronteiras territoriais nacionais de soberania nacional, para dar resposta, é insuficiente. E essa insuficiência está à vista, porque não estamos a conseguir, na Europa, dar resposta a estes problemas. As pessoas estão incomodadas e desconfiadas até dos partidos tradicionais e isso leva ao quê? Ao crescimento dos populismos, que é outra das grandes marcas desta eleição em Portugal e que tem sido uma das grandes marcas das eleições nacionais que temos visto por toda a Europa, nos últimos anos. E é justamente para isto que o Volt quer ser uma solução, mas para isso precisa do apoio das pessoas em Portugal, em toda a Europa, que querem essas soluções, que querem essa mudança.

    Digamos assim, então, que o vosso adversário nestas eleições são os grandes partidos ou a abstenção? Ou ambos?

    DUARTE COSTA: Nós começámos esta campanha com uma ideia, como disse há pouco, muito para a frente. E que foi: nós propusemos uma frente progressista, ou seja, nós propusemos aos partidos novos progressistas que têm uma base, que são plurais… Não são próximos necessariamente uns dos outros, mas têm uma base comum.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Fala da Iniciativa Liberal, do Livre …

    DUARTE COSTA: E o PAN e o Volt. Estes quatro partidos são os partidos mais recentes em Portugal e, de facto, têm aqui uma forma de fazer política diferente. Querem mudar, querem trazer uma agenda própria, seja de baixar os impostos e simplificar o Estado, seja nas causas ambientais, seja nas causas sociais. O Volt fala muito bem com todos estes e queria, desta forma, que colaborássemos na nossa polaridade e nos apresentámos em conjunto para termos um peso eleitoral que possa, por um lado, romper com este bipartidarismo do PS e do PSD, que não está a dar resposta aos problemas dos portugueses e, por outro lado, ter um peso de travão ao crescimento do populismo, em especial da extrema-direita. E achamos que é nesta união, neste diálogo e nesta cooperação que nós podemos – progressistas e, como nós dizemos na nossa campanha, cidadãos de bom senso – ter peso nas matérias.

    Mas, infelizmente, essa frente progressista não foi avante porque nenhum dos três outros partidos quis avançar com ela. Alguns nem sequer nos responderam de todo. E, portanto, estamos aqui a lutar pelo nosso lugar na Assembleia da República, para ser essa força no Parlamento que coloca os outros partidos a colaborar e a fazer frente a estas duas ameaças, que é, obviamente, a extrema-direita e o populismo que ameaça mesmo as estruturas da democracia. Mas isto é só um sintoma; a extrema-direita é só um sintoma de um modelo bipartidário PS-PSD. E nós podemos tratar os sintomas ou podemos tratar a doença. E nós, neste caso, queremos tratar a doença.

    Também temos boas relações com o PS e com PSD, também temos um sentimento de gratidão porque são dois partidos responsáveis por trazerem a democracia a Portugal, porque foram os primeiros partidos do centro moderado no pós-25 de Abril. Mas não estão à altura dos desafios e mesmo as novas lideranças mudaram, e nós vemos, não somos só nós, acho que os portugueses em geral… Vemos nas ruas, nas redes sociais, que não há grande vontade de continuar com estes dois partidos. E nós estamos aqui para justamente começar a criar uma nova alternativa política a tudo isto, ao bipartidarismo, e ao populismo e radicalismo de direita. Também um pouco de esquerda, mas esse não está a ter tanto crescimento como o da direita. Portanto, o da direita é mais preocupante.

    Inês Bravo Figueiredo e Luís Almeida Fernandes, representantes nacionais do Volt Portugal nas eleições legislativas de 2024 (Foto: PÁGINA UM)

    Tem havido um recuo grande no nível de democracia nos países do Ocidente, incluindo ao nível comunitário, com políticas que têm anulado direitos civis, liberdades. Também tem havido casos de negócios opacos, falta de transparência… O PÁGINA UM, por exemplo, tem acompanhado a contratação pública, em Portugal. Sentem que existe uma desconfiança face aos partidos que têm governado e que isso tem afastado as pessoas da política? Porque, apesar desses partidos que referiu terem contribuído e terem estado no início do nosso processo democrático, o que é certo é que isso também já foi há bastante tempo. Também se criaram vícios e temos os muitos casos de corrupção. Mas não só em Portugal. Mesmo ao nível da União Europeia, tem havido investigações e casos de corrupção. Como é que o vosso partido pode lidar com esta desconfiança e dizer aos portugueses “somos diferentes, não temos estes vícios e não estamos alinhados com este recuo da democracia que tem existido”?

    DUARTE COSTA: Acho que o Volt é um partido diferente de outros partidos também pela sua composição. Ou seja, quem é que tem reconhecido valor no Volt? Nós vemos, como disse no início, pessoas com quadrantes profissionais diferentes, pessoas com uma faixa etária diferente.

    Ou seja, não são os típicos carreiristas que vêm desde as jotas e que “nunca trabalharam”, como se costuma dizer.

    DUARTE COSTA: Exactamente. Enquanto noutros partidos há uma atracção por pessoas que estão à procura de uma carreira política, no nosso caso, como ainda não oferecemos carreiras políticas – isso depende daquilo que os portugueses nos quiserem dar -, oferecemos é um projecto político europeu que quer mudar a forma como fazemos política e como a política traz soluções para as pessoas. Eu sei que isto são frases vagas, depois podemos materializar com conceitos concretos. E eu acho que isso é uma grande diferença do Volt.

    Duarte Costa em campanha pelo Volt Portugal. (Foto: D.R./Volt)

    O outro aspecto é que somos um partido que quer aprofundar o projecto europeu. E agora, até como candidato às europeias em Portugal, e dando-lhe uma resposta à sua pergunta, uma das propostas que temos para as próximas eleições europeias… Para quem conhece o Volt, sabe que o Volt quer avançar para um modelo mais federal da União Europeia. Isto não significa perder soberania nacional. Na verdade, o que queremos é mais soberania e essa soberania é maior se for partilhada a 27, porque vamos ser mais. Mas no modelo federal nós temos duas coisas: nós temos mais democracia; portanto, temos os portugueses e os outros europeus a decidir os rumos comuns da Europa, e não apenas alemães ou franceses ou países mais influentes. E, por outro lado, temos uma estrutura política e jurídica para isso.

    Por exemplo, gostávamos de ter uma Constituição Europeia. Já temos o Tratado de Lisboa, que já tem um peso, mas gostávamos de ter um Tribunal Constitucional Europeu, que permite justamente garantir esses direitos e essas garantias e liberdades próprias de uma democracia liberal que promove os direitos humanos, e a sustentabilidade do Estado de Direito. Neste momento, nos Estados-membros e não só – muitas vezes até ao nível regional e local -, temos abusos desses direitos e não temos instrumentos jurídicos do nível europeu para garantir essa uniformidade. E é aí que um projecto europeísta verdadeiramente democrata e federalista faz toda a diferença.

    Claro que não é do dia para a noite que se muda a Europa para uma Federação, mas achamos que é esse o caminho. É esse o próximo passo orgânico para a União Europeia conseguir ser aquilo que nós queremos que ela seja, que é um espaço da democracia e da sustentabilidade do Estado de Direito e da influência destes valores no mundo inteiro.

    E em Portugal, têm várias propostas concretas, não só para desafios que são mais mediáticos, como a crise na habitação, a crise no Serviço Nacional de Saúde, mas também alguns aspectos que já falou; a necessidade de melhorar os rendimentos das famílias, a necessidade de também olhar para a questão fiscal. Quer detalhar algumas dessas vossas propostas? Nomeadamente, a questão de melhorar os rendimentos dos portugueses e aproximá-los daquilo que são os rendimentos a nível europeu, que seria muito bom. Não há nenhum português que não concordasse com essa medida.

    DUARTE COSTA: Sim, é uma das favoritas.

    ANA CARVALHO: No que toca às nossas propostas, e voltando aqui a esta componente europeia que temos, a verdade é que nós, para fazer as nossas políticas a nível nacional, vamos também buscar as boas práticas europeias e trazê-las para aqui. Por exemplo, mencionou o tema da habitação. Nós temos experts e contactos; outros “capítulos” do Volt, por exemplo, em Viena, na Áustria, em que a habitação pública está muito bem desenvolvida. E se forem ver o nosso programa eleitoral para as legislativas, vão lá encontrar esta boa prática de Viena, que é termos pelo menos 60% de habitação pública, muito baseada na prática das cooperativas. E, portanto, usar estes pequenos exemplos de como é que as coisas funcionam lá fora para aplicar aqui, a verdade é que funciona.

    (Foto: D.R./Volt)

    Que, aliás, é algo que já existiu em Portugal e que continua a existir, mas que depois se foi perdendo.

    ANA CARVALHO: Exactamente. Por vezes, não é preciso inventar a roda novamente. É preciso simplesmente que haja continuidade das medidas. Isto é um problema em Portugal, porque o facto de as legislaturas serem quatro em quatro anos e estarmos constantemente em rotação bipartidária destrutiva – porque os partidos que vêm a seguir aos outros não constroem sobre si próprios – não permite que haja crescimento global. E, às vezes, não é preciso reinventar a roda. É simplesmente voltarmos a ver o que é que funcionou, vermos o que é que está a funcionar lá fora e aplicar aqui.

    E em relação aos rendimentos, isso acontece também. Para já, o salário mínimo em Portugal é baixíssimo comparado com o resto da Europa. E procurar trazer o salário mínimo de forma a equilibrar com o resto da Europa, pelo menos com o nosso vizinho Espanha, seria uma boa ideia. Mas no nosso programa focamo-nos mais naquilo que chamamos o salário médio, que no fundo é elevar os salários em geral das pessoas. Temos várias medidas, como por exemplo, incentivos às empresas que tenham salários mais elevados, de forma também a diminuir o fosso salarial entre gestores de topo e os empregados dessas pessoas. E isto, mais uma vez, são práticas europeias que nos outros países vemos salários muito mais elevados do que aqui. No fundo, é procurar aplicar que funciona lá fora a Portugal. A nossa proposta é em 10 anos levar os portugueses a ter salários europeus.

    E também batalhando muito contra a questão de burocracia e do excesso de custos que tudo isso traz, e que também depois acaba por envolver uma outra proposta que têm, que é a questão de ajudar à criação de empresas; um empreendedorismo, e do contributo que isso terá também para o crescimento económico, não é?

    DUARTE COSTA: Sim, na verdade, para termos salários europeus, precisamos de ter uma economia que gera valor acrescentado no nível que outras economias europeias geram. E isto é muito importante para Portugal e para cada português, que tem um salário muito abaixo da média nacional. Não é uma questão de retirar impostos, porque se nós não pagássemos nenhuns impostos, iríamos ganhar ainda assim 12.000 euros abaixo da média europeia. Portanto, precisamos de gerar mais riqueza.

    Mas isto também é muito importante para a União Europeia. Porque a União Europeia, para ser um bloco económico influente e que ter tracção na economia global, não pode ser uma economia onde temos 12 países que que geram alta riqueza, que são muito prósperos, e depois temos 15 países que estão para trás, como Portugal. Portugal, e aqui falo sobretudo para os portugueses que estão em regiões que também estão a vê-los abaixo da média nacional – são essas as regiões que nós queremos pôr a União Europeia a desenvolver a um passo acelerado. Porque é aí que a União Europeia também, como um bloco, pode cada vez mais ser aquilo a que ela se propõe e cada vez mais influente. E esse ponto que mencionou do empreendedorismo, empreender significa realmente propor-se a criar algo novo, a inovação, propor-se a criar mais valor acrescentado. Temos várias ideias concretas. E agora, passando também para as europeias, mas para nós elegermos europeias, vamos precisar de eleger nas legislativas. Portanto, faz sentido falar de europeias.

    Inês Bravo Figueiredo, Mágui Lage (cabela-de-lista por Leiria) e Duarte Costa. (Foto: D.R./Volt)

    Mas as europeias estão aí já à porta também.

    DUARTE COSTA: São em Junho, não nos esqueçamos delas. Mas para as europeias queremos justamente dar um passo muito importante neste mercado comum que temos na Europa. Ou seja, todos sabemos que podemos viajar, podemos abrir empresas, podemos trabalhar muito facilmente na Europa, mas não temos um sistema interoperacional entre os países. Isto é um bloqueio.

    Por exemplo, se uma start-up portuguesa, por causa dos bloqueios administrativos e burocráticos, por causa das legislações nacionais, não tem acesso a um mercado de 450.000.000 de europeus, que é o espaço único da União Europeia, e da área económica exclusiva. Neste caso, as empresas têm um problema de competitividade em relação, por exemplo, a uma empresa americana ou chinesa que está a operar no mesmo mercado global, mas não tem o mesmo mercado doméstico. Provavelmente, tem um mercado doméstico de 10 milhões.

    Queremos uniformizar e criar uma one stop shop, ou seja, uma forma em que qualquer empresa, em qualquer ponto da Europa, consiga resolver os seus trâmites administrativos de forma coordenada. E isso é uma vantagem, termos uma União cada vez mais federal. Depois, queremos colocar também a União Europeia a triplicar o seu investimento em Ciência e em Investigação.

    Infelizmente, saiu há pouco uma notícia que o orçamento para o Horizon Europe, que é o principal programa de investimento em investigação em Ciência, vai reduzir porque não há dinheiro para investir em tudo o que é necessário neste momento, entre ajudar a Ucrânia e o Horizon Europe. E somos completamente a favor de ajudar a Ucrânia, mas precisamos do apoio dos portugueses e dos Europeus para realmente dar força à União Europeia e isto significa trazer mais financiamento para a União Europeia.

    Até porque a União Europeia tem perdido muito. Eu lembro-me de a União Europeia ser líder dos países europeus, mesmo na Escandinávia, líder em tecnologia, nomeadamente o sector das telecomunicações, tínhamos de facto aí uma pegada. E agora estamos muito aquém. E é bom que os europeus, e os portugueses, tenham consciência do que é que isso significa.

    DUARTE COSTA: Sem dúvida. Eu acho que a União Europeia, para seu próprio benefício, como eu estava a dizer, para ser relevante, precisa de alavancar a economia em países como Portugal. E precisa de fazê-lo, independentemente de se os nossos políticos nacionais sabem ou não sabem fazê-lo.

    Porque o que se passa com Portugal é que, apesar de nós termos milhares de milhões de investimento da União Europeia, como esses investimentos são decididos pelo nível nacional e muitas vezes com interesses eleitorais, esse dinheiro não está a fazer a diferença nas nossas vidas. Queremos que a União Europeia, independentemente da qualidade dos nossos políticos nacionais, consiga fazer isso por ela própria. Porque desenvolver Portugal e dar salários europeus aos portugueses é fundamental para que a Europa seja relevante no mundo inteiro. E isso passa, lá está, por esta questão da aposta na inovação, por esta questão de conseguir que quem cria uma empresa em Portugal consiga de facto ter acesso ao mercado de 450 milhões de habitantes.

    Depois, há todo o aspecto também da sustentabilidade e da neutralidade carbónica. E, de novo, esta é a área que me apraz. Costumo dizer quando comento estes temas na televisão ou na imprensa ou nas minhas redes sociais, que as alterações climáticas preocupam-nos muito, até porque nós vemos os impactos que elas têm, mas elas também são na verdade, a oportunidade e o apelo a criarmos aquele mundo que sempre sonhámos ter. Ou seja, uma economia verdadeiramente sustentável que não derruba a natureza e os limites do planeta.

    E aqui, achamos que esta transição climática, para a Europa, é uma oportunidade de ser líder no mundo. Já somos líderes no mundo, apesar de não estarmos à altura daquilo que é necessário. E isso significa todo um novo mar de oportunidades, de novas tecnologias, de novos negócios, de novas formas de nos relacionarmos com a natureza e que também tem um valor económico que também vai dar resposta aos desafios do emprego, do emprego com qualidade na relação qualidade/vida pessoal, também na questão dos rendimentos. E a Europa tem conseguido fazer essa evolução e nós queremos estabelecer metas ambiciosas.

    Queremos descarbonizar até 2040, queremos neutralidade até 2040, o que é antecipar em 10 anos o objectivo actual. Isso significa antecipar… Às vezes algumas pessoas quando falam comigo ficam um pouco preocupadas, porque isso vai ser mau ou uma pressão demasiado grande, ou vai ser muito caro, oneroso. Na verdade, não. Antecipar significa realmente colocarmo-nos já a ter esses benefícios que só podemos ter lá para a frente. Significa acelerar esta transição, o que significa termos mais rendimentos, mais empresas verdes, mais empregos, mais bem pagos. E termos esse mundo de sonho que eu estava a dizer, antecipadamente.

    (Foto: PÁGINA UM)

    Há muitos anos que se ouve falar em ecologia e na necessidade de proteger o ambiente, e na questão do impacto da acção do Homem. Mas o que vemos, hoje, no discurso político, é: impostos e condicionar a vida das pessoas, enquanto as grandes indústrias, os grandes poluidores, os grandes interesses podem, de certa maneira, até lucrar. Estamos a ver isso no caso dos automóveis. Não se fala tanto num investimento forte em transportes públicos, na prática, nomeadamente fora dos grandes centros urbanos. Mas o que se fala é em trocar um veículo por outro. Para pessoas da minha idade, já olhamos um bocadinho com desconfiança para algumas destas políticas. Como é que pode um partido como o vosso, também trabalhar nesta vertente, de que haja uma garantia de que na política não há uma corrupção ou promiscuidade, ou uma tentativa de ir taxar as famílias, taxar o consumidor? Como é que se pode ter políticas sérias no combate às alterações climáticas e proteçcão do ambiente?

    DUARTE COSTA: Isso é outra inovação – e agora falo mesmo aqui a título pessoal – que eu encontrei dentro do Volt. Ou seja, como especialista em alterações climáticas e pessoa que está muito interessada nessa transição, aquilo que eu via e às vezes até pessoalmente me poderia agradar, eram estas políticas muito verdes e quase até proibitivas. E o que eu encontrei no Volt que gostei mais ainda, foi, cá está, é um partido que tem uma agenda muito ambiciosa, mas que não quer de todo ter uma agenda proibitiva. Ou seja, que tem uma lógica muito de incentivar o que está certo. A partir do momento em que temos os incentivos certos, podemos eventualmente penalizar o que está errado por forma a gerar receitas para financiar o que está certo.

    Mas é as grandes indústrias ou penalizar a família, o indivíduo?

    DUARTE COSTA: Não. Achamos, por exemplo, na questão dos transportes públicos, que não dá para penalizar o uso do carro se não houver uma alternativa de transportes públicos. Na questão da alimentação, não dá para penalizar a alimentação de base animal, por exemplo, que sabemos que tem um impacto mais negativo nos ecossistemas e no sistema climático, se não houver alternativas.

    Por exemplo, nestas eleições eu não vi ainda na comunicação dos outros partidos, sobretudo o Livre e o PAN que são partidos que têm uma agenda ambiental também como a nossa, bastante ambiciosa… Mas eu vejo que somos o único partido, até agora, que já está a comunicar o tema da alimentação como uma das nossas oito principais bandeiras; está nas nossas redes sociais, vão lá ver: nós queremos um Programa Nacional de Alimentação Vegetal. O que é que isto significa? Queremos que haja formação de chefs para que em todos os restaurantes um chef saiba preparar uma boa refeição vegana para que, independentemente de se a pessoa é ou não vegana todos os dias, possa fazer essa opção. E só fazendo essa opção, já está a ajudar muito, de certa forma.

    Queremos incentivos fiscais para os restaurantes e os estabelecimentos que já estão a trabalhar para que haja uma alimentação do futuro, uma alimentação climática, uma alimentação alinhada com a sustentabilidade. Queremos programas que ajudem a sensibilizar crianças nas escolas e novas ementas nos espaços públicos; sobretudo que são abastecidos pelo Estado, para que tenham essa alimentação de acordo com aquelas que são as metas do próprio Estado. Está na Lei de Bases do Clima, está nos discursos dos políticos, mas não está na ementa da escola primária pública, onde se calhar, o meu filho ou a minha filha estudam.

    (Foto: D.R./Volt)

    Que, aliás, comem muitas vezes é massa com massa, e não há verde nenhum, nem fruta.

    DUARTE COSTA: Exactamente, e acabam por não ter uma alimentação sequer equilibrada.

    Sim. E o que queremos é: se nós sabemos que do ponto de vista da Ciência, o que está não está bem, e Portugal de facto, neste campo da alimentação, as coisas não estão nada bem… Somos o país da União Europeia, com Espanha, que come mais carne por ano e por pessoa. Temos um impacto gigante na saúde das pessoas, nos nossos ecossistemas em Portugal, nos ecossistemas dos outros países ao estarmos a importar ração dos outros países, por exemplo, da Amazónia e do Brasil, que causam deflorestação, para alimentar os nossos animais em Portugal. Sobretudo quando temos uma situação de seca, ou seja, temos menos pastos, temos de gastar mais dinheiro em ração, estamos a aumentar as nossas importações e a perder dinheiro da nossa economia, para alimentar um hábito que nem sequer nos faz bem.

    Claro, isto está muito enraizado e se calhar, algumas pessoas estão a ouvir e estão a pensar “pronto, lá vem o discurso vegano, vão proibir de comer carne”. Não, não queremos proibir, o que queremos é que toda a gente tenha acesso. E quando eu digo acesso, significa que as alternativas vegetais têm de ter o mesmo preço ou ser mais baratas que as animais e têm que ter um sabor, uma experiência de alimentar gastronómica, digamos assim, tão bom ou melhor. Isto é possível e há imensas empresas e imensos negócios em Portugal e no mundo inteiro que estão a trabalhar nesta linha. E isto é um óptimo sector do futuro para nós apostarmos, e é isso que nós queremos que Portugal inicie.

    Ou seja, o Volt não está contra podermos ter o cozido à portuguesa, o que defende é, se calhar, mais couve no cozido à portuguesa.

    DUARTE COSTA: E, por exemplo, ter um cozido à portuguesa com enchidos veganos, com seitan, com outras experiências. Qualquer vegetariano e vegano em Portugal já há muitos anos que sabe como comer uma boa receita portuguesa “veganizada”. Sou vegano há quatro anos, e há três anos ou quatro anos, aliás, que o meu Natal é vegano. E partilho nas redes sociais o desafio vegetariano – que já agora, recomendo toda a gente a ir ver – e é possível ter um tofu com broa ou migas de tofu ou um tofu com todos saboroso e bom. A minha família, que não é vegana, come e gosta. E isto é só de Natal, mas há várias receitas que são possíveis. E eu acho que é por aí o caminho. Pelo planeta, pela nossa saúde, pela nossa economia. É já agora, também pelos animais.

    Então deduzo também – agora aqui uma provocação – que o Volt não estará muito contente com algumas das mais recentes políticas da União Europeia, nomeadamente a aprovação, por mais uma década do uso, do Roundup, o glifosato. E também a questão de um recuo grande naquilo que é o uso dos pesticidas, também um forte lobby, porque infelizmente também existem cada vez mais lobbies fortes ao nível da grande indústria a vários níveis, nomeadamente indústria farmacêutica e também na área agroalimentar. No tema de poder haver uma redução das restrições a nível comunitário dos organismos geneticamente modificados, que são três temas aqui, que se calhar não estão muito satisfeitos com o rumo que está a ter na Europa.

    DUARTE COSTA: Acho que essa pergunta é mesmo importante, porque é preciso que as pessoas saibam o que é que se passa no Parlamento Europeu, porque lhes diz respeito diariamente. Diz respeito ao que está no prato delas. Portugal é União Europeia. E a minha co-candidata Rhia Lopes trabalha no Parlamento Europeu, é assistente parlamentar nos Verdes Europeus. E aliás, essa é a motivação dela para ser candidata, porque há muita coisa que é aprovada no Parlamento Europeu sujeita a lobbies que, se a maioria das pessoas soubessem, jamais votariam esses partidos. E aqui falo, e é preciso mencioná-los, no caso de Portugal, tem sido o PSD, e se elegermos o Chega nas próximas eleições, vai ser igual. Aliás, em matéria agrícola, o PSD alinha-se com o Chega, ou seja, alinha-se com a extrema-direita. Qual é a sua lógica? Não é uma agricultura que beneficia as pessoas. A lógica é uma agricultura que beneficie certos agricultores. Estamos a falar dos grandes agricultores. E, se temos um pesticida que ajuda a ter mais lucro porque elimina doenças, elimina perdas de produtividade, mas com um custo enorme demonstrado pela ciência nos cidadãos, o Parlamento Europeu, por esses partidos que têm essa visão, aprova decisões que beneficiam esses agricultores, mas prejudicam a saúde de milhões de pessoas. Isto está documentado na Ciência, está documentado nos estudos, teve forte e reação e contraposição da parte dos Verdes Europeus – da família onde o Volt que já tem um parlamentar, se situa e de outras famílias – mas, infelizmente, ainda é essa família do centro-direita e da extrema-direita, aliás, neste momento do centro-direita do PPE, que tem mais peso.

    Portanto, de novo, se queremos melhor comida nos nossos pratos, temos de nos envolver na política europeia. Temos de votar nas eleições europeias, e não é só votar. Temos de mobilizar as pessoas à nossa volta – os nossos pais, os nossos avós, os nossos amigos – a perceber que têm de votar e têm de votar em projectos políticos – o Volt é um deles, mas há outros – em projectos políticos que os ajudem a ter uma vida melhor. Inclusive, o que é que está no prato, como é que conseguimos ter salários do nível que queremos, como é que conseguimos viajar na Europa de comboio em vez de avião. Uma série de questões, como é que conseguimos garantir a paz no nosso Continente…

    E ter saúde. Devo dizer, aqui é uma observação, mas para mim, com 49 anos, cresci muito com o tema da ecologia na escola. Quando andei na escola primária, falava-se na palavra ecologia e na defesa do ambiente. E estou chocada como é que, em 2024, como é possível estarmos, na Europa… Quando era pequena, pensávamos que, em 2024, já íamos ter os carros voadores. E não só não temos carros voadores ou algo do género, como ainda temos uma discussão de retrocesso ao nível de ainda estarmos a falar deste tipo de pesticidas, e de diminuir restrições ao nível dos organismos geneticamente modificados… Para a minha geração, é um choque.

    ANA CARVALHO: Por acaso, é interessante esta questão da geração, porque temos notado até, nos últimos tempos, uma crescente de membros que se juntam ao partido, não só em Portugal, mas também no resto da Europa, de pessoas mais velhas. No início, começámos a dizer que somos um partido jovem e a verdade é que os nossos representantes, eu e o Duarte, os nossos candidatos, somos pessoas mais jovens. Mas a nossa base partidária está muito baseada também em pessoas de gerações mais velhas que vêm ter connosco com esta conversa do clima e de proteger o planeta, que já tem ouvido falar durante tantos anos e que não têm tido, não têm visto uma acção na prática. Vêm ter connosco a dizer “eu estou um pouco farto que isto aconteça, quero de facto construir um mundo melhor para os meus netos ou para os meus filhos”. E há muita gente mais velha que tem vindo ter connosco, porque vê esta acção europeia climática que temos e que veem no Volt uma mudança, no fundo, para a acção climática concreta.

    Colocação de cartazes do Volt Portugal junto ao Saldanha, em Lisboa. (Foto: D.R./Volt)

    E eu, falando aqui das pessoas mais “velhas”, o que posso dizer é que é um contrassenso a Europa ter um discurso – e em Portugal, alguns partidos terem um discurso – tão forte ao nível da questão do combate às alterações climáticas, sempre dito num tom muito grave e muito sério – que é “a maior ameaça de todos os tempos” –, mas, depois, estão a discutir a ou ponderar questões tão graves como estas dos pesticidas, ou estão a prolongar por mais uma década um pesticida que é perigosíssimo. Há aqui um contrassenso, e a nível europeu temos um problema, ou não?

    DUARTE COSTA: Sim, eu acho que esta incoerência que eu estou a ouvir nas suas palavras é uma incoerência também a nível nacional. Temos um partido como o PS, que traz os temas climáticos, esteve associado a instrumentos legais como a Lei de Bases do Clima, e que, nas palavras, está no caminho certo e se calhar, quem conhece o PS sabe que não é só na área climática, em várias áreas. Ou seja, na comunicação, até faz sentido, mas, depois, assim que há um problema… Por exemplo, assim que tivemos o problema da invasão da Ucrânia, que levou ao aumento do preço dos combustíveis, uma das primeiras coisas que desapareceu de imediato foi a taxa do carbono e a taxa do carbono é o que está a financiar o Fundo Ambiental, que está a permitir que as pessoas possam ter bicicletas e bicicletas eléctricas a preços descontados, que está a permitir às pessoas poderem investir em eficiência energética nas suas casas, painéis solares…

    Portanto, quando de imediato favorecemos o preço dos combustíveis perante a transição climática há uma questão de incoerência. Aquilo que precisamos enquanto cidadãos – se calhar, nem todos vão concordar com esta visão, é normal, em democracia há uma pluralidade –  , mas aqueles que concordam, que não dá para continuar com o mesmo modelo económico, não dá para continuar a achar que, baixando o preço dos combustíveis a nossa sociedade vai funcionar melhor… Precisamos, sim, de libertar as pessoas da dependência do carro, de ter que ter uma factura de combustível todos os meses.

    (Foto: D.R./ Volt)

    Eu fico chocado em campanha, quando me desloco, sobretudo fora de Lisboa, e vejo pessoas que ganham o salário mínimo, mas que precisam de ter um carro e de gastar, se calhar, 300 euros do seu salário mínimo para ir trabalhar. E não vivem numa aldeia perdida no interior. Não. Trabalham, por exemplo, num centro comercial no Algarve. Podiam, perfeitamente, ter um transporte público e não têm, porque não existe, do ponto de vista nacional, sequer políticas para conseguirmos ter as deslocações intermunicipais asseguradas com transportes regulares. Acho que aí há uma crítica a apontar ao atual Governo e ao PS.

    Há uma falta de coerência que está a fazer aumentar este descontentamento com a classe política e até com os dois partidos de governo e está a alimentar os votos de protesto. O que o Volt quer é mostrar que o voto de protesto não vai ajudar nada, antes pelo contrário, é pior ainda, porque são pessoas muito menos preparadas. O que precisamos é de partidos que queiram trabalhar, que queiram, que tenham soluções. E temos várias e estamos a tentar comunicá-las às pessoas para que elas  deem a sua confiança e depois nós possamos fazer esse trabalho para elas.

    E, ao nível dos transportes têm propostas concretas para essas áreas. Até porque em algumas zonas – não estamos a falar só de Lisboa e temos no PÁGINA UM, leitores e ouvintes de todo o país – onde a pessoa, mesmo tendo acesso a transportes públicos, pode ter uma fatura superior a 100 ou 150 euros por mês para utilizar os diferentes transportes necessários para chegar ao trabalho.

    DUARTE COSTA: Sim, e na maior parte do país, fora de Lisboa e é mais vantajoso andar de carro, ter um carro do que andar de comboio. O Volt é muito ambicioso na questão do comboio em toda a Europa. Ser ‘volter’ quase significa ser um amante do comboio, porque nós temos mesmo políticas muito detalhadas. A nível europeu, queremos uma Agência Europeia para as ligações entre países de comboio e que seja a União Europeia a assegurar essa alta velocidade entre todos os países para que nós não precisemos de usar o avião em toda a Europa. Essa é uma meta que temos.

    (Foto: D.R./Volt)

    E,  a nível nacional, no nosso programa para as legislativas, desafio todas as pessoas, sobretudo aquelas que adoram comboios e que sonham com Portugal em alta velocidade e não só com ligações de comboio, a ver o nosso programa, porque, é revolucionário.

    Queremos ligar a linha do Oeste diretamente à Gare do Oriente e, com isso, ter um tempo de viagem de comboio – quem está em Torres Vedras, quem está em Mafra, quem está na região Oeste –  para Lisboa, e não precisar do carro e ser muito mais rápido, sem trânsito e muito mais barato.

    Na região Centro, queremos ligar Viseu, ter finalmente uma linha, uma estação de comboio e ligá-la à rede ferroviária nacional. Queremos fazer ligações paralelas. Por exemplo, quem está em Tomar e quiser ir a Leiria, não consegue fazer uma ligação direta, tem que vir até ao Entroncamento, trocar. Leva muito mais tempo. Faz todo o sentido ligar Tomar, Ourém, Leiria, Batalha, ligar a linha do Oeste.

    Temos várias propostas. No Algarve, temos uma linha fantástica, linha que liga Lagos a Vila Real de Santo António. É fantástica, mas tem um perfil muito lento. Vai ser eletrificada, mas com isso ganha apenas cinco minutos de viagem. O que precisamos é de duplicar estas linhas. Precisamos de ter comboios mais “expresso”, para que as pessoas possam ir de comboio e levar muito menos tempo do que ir de carro, com menos custos e, obviamente, sem emissões. E depois, obviamente, a alta velocidade é uma prioridade.

    Queremos uma terceira travessia também em Lisboa, para o Barreiro. Seria uma travessia ciclo-ferroviária, para bicicletas e para comboios. Essa travessia, só por termos um traçado muito mais lógico, para chegar a Espanha, ao Algarve e ao Alentejo, ia reduzir em 30 minutos o tempo de viagem. Porque a travessia actual é muito mais longa, mas também essa nova linha ia permitir que a margem Sul – quem está no Seixal Montijo, Barreiro –  tivesse muito mais acesso pelo comboio a toda a malha metropolitana de transportes públicos de Lisboa. E podia continuar a falar aqui do resto da país…

    ANA CARVALHO: O nosso programa é quase que um sinónimo de ferrovia para todos. Políticas que vão à região, à cidade. Repito aqui o desafio do Duarte: quem gosta de ferrovia, leiam nosso programa. Estamos à espera de feedback, também coisas que possamos melhorar.

    (Foto: D.R./Volt)

    Falaram há pouco da questão de desburocratizar, mas também têm propostas naquilo que é a adoção das melhores tecnologias e da Ciência, daquilo que se sabe, de evolução… Ainda não teremos os tais carros voadores que foi “prometido” um bocadinho à minha geração, mas já poderemos ter, pelo menos, algumas coisas diferentes no funcionamento em Portugal.

    ANA CARVALHO: Sim, é isso em todos os sectores. Por exemplo, há pouco falávamos do setor empresarial. No nosso programa apostamos muito também na digitalização, na desburocratização, e isto iria ajudar ao crescimento da economia, no sentido em que, num tecido empresarial em que temos 99% de pequenas e médias empresas, a verdade é que facilitar a vida às empresas é facilitar a vida aos portugueses, aos indivíduos.

    No nosso programa temos medidas como este Administrador Público de Empresa, que, no fundo, seria uma figura central que ajudaria a desburocratizar todo o processo de criação de empresas. No fundo, a ligação entre empresas e Estado.

    Também aplicamos a digitalização no setor da Saúde. Queremos muito maior digitalização no que toca à administração do Serviço Nacional de Saúde. E digitalizando um pouco em todos os setores, a verdade é que temos, não só, vantagens a nível climático, mas também vantagens para as pessoas, optimização de processos.

    Na questão da saúde, todos os anos há uma crise em Portugal. Chega o Inverno, somos sempre apanhados de surpresa com o mês de Janeiro. Somos sempre apanhados de surpresa com o pico de doenças do foro respiratório e é sempre o caos e é sempre uma surpresa. Têm propostas também para resolver… Passa em parte pela digitalização também?

    ANA CARVALHO: Passa muito pela digitalização, passa muito por tirar trabalho administrativo aos médicos e contratar mais pessoas administrativas que permitam que os médicos estejam a exercer o seu papel de medicina. Mas sim, digitalização do sistema do Serviço Nacional de Saúde.

    DUARTE COSTA: E depois passa também por apostar muito no nível local de atendimento, nas unidades de saúde familiar, que são fundamentais a para desobstruir as urgências. Como é que queremos fazer isto? Não é preciso reinventar a roda. Há muito trabalho que os médicos têm de fazer – profissionais de saúde, em geral, médicos e enfermeiros e outros, técnicos e auxiliares. Quem devia estar a cuidar dos utentes está muitas vezes a trabalhar com burocracia.

    Aliás, há alguns estudos que mostram que é no privado, a mesma pessoa, o mesmo médico, mesmo enfermeiro, consegue ter um atendimento que, às vezes, é mais do dobro ou do triplo de pessoas no público. Porquê? Porque no privado existe uma eficiência de administração maior do que no público. Também somos favoráveis a parcerias público-privadas na saúde, que funcionam. Há várias. Funcionam bem. Há outras que funcionam mal. É preciso avaliar o que está a funcionar bem, o que está a funcionar mal, criar regras muito rigorosas nesses contratos entre o Estado e os prestadores de serviços e garantir que, no final, as pessoas têm acesso a um cuidado a um atendimento célere.

    E eu acho que este aspecto da saúde digital é muito importante. Até pela nossa experiência noutros países. Na Europa é normal conseguir marcar uma consulta online. Em Portugal, no SNS ainda não é possível, em muitos casos. Nuns é, noutros não é, são regras que variam. Marcar uma consulta online, o médico ter acesso aos nossos resultados, sem nós termos que ir lá, mostrar os resultados de umas análises. Se conseguirmos aproveitar as novas tecnologias… Mesmo as teleconsultas, de telemedicina… Se o médico não precisar de nos ver fisicamente, nós poderíamos usar o tempo dos profissionais de saúde de uma forma mais inteligente e mais eficiente. E, na verdade, quando falo com médicos e enfermeiros e profissionais de saúde, normalmente a resposta que eu tenho é, por exemplo, nas urgências: temos médicos suficientes para atender aquilo que são urgências. O problema é que as urgências estão a fazer o trabalho dos centros de saúde e dos médicos de família.

    Pegando nesse tema da saúde, alguns países estão a ficar de pé atrás relativamente ao processo de introdução de alterações ao Regulamento Sanitário Internacional que está a ser feito em paralelo com a criação de um Tratado Pandémico. A pandemia trouxe a necessidade de reforçar a colaboração entre os países e de optimizar algumas formas de funcionar. Contudo, a pandemia foi gerida de forma desastrosa em alguns países, o que é visível nos números do excesso de mortalidade, em que Portugal, infelizmente, é campeão, e é algo muito mau para nós. As alterações propostas reforçam os poderes da Organização Mundial de Saúde (OMS), uma organização supranacional. E tudo pode ser uma crise sanitária: desde um fenómeno meteorológico, uma guerra… Como é que um partido como o vosso, que defende uma Europa mais forte, vê uma discussão em que a OMS, que tem a influência política de diversos países e é altamente financiada por privados, fica com mais poder? A Europa não fica fragilizada?

    DUARTE COSTA: Para que a Europa possa assegurar a defesa dos seus interesses, precisamos de funcionar mais como um bloco. Obviamente que não somos um bloco heterogéneo, ou seja, somos um bloco com muita diversidade. O que o Volt defende é que haja cada vez mais um espaço democrático e de debate interno para que consigamos, depois, ter uma posição global, uma posição de peso em órgãos internacionais, como  a OMS, e que representa esse interesse coletivo. Isto, obviamente, não é fácil, mas é justamente tendo processos como partidos como o Volt que estão em vários países e que constroem as suas políticas em conjunto, que isso pode ter cada vez mais peso.

    Se tivermos mais partidos nos outros espaços políticos, para além do nosso que é liberal, social, verde, que são pan-europeus, a Europa pode ser mais democrática. Neste caso, em concreto, é aqui um equilíbrio difícil. Porque a OMS, por um lado, tem essas influências de grupos de interesse. Por outro lado, é também uma organização que tem uma base científica muito importante, naquilo que é a avaliação de crises sanitárias e de problemas de saúde de nível global.

    Para nós, no Volt, é muito importante, na tomada das decisões, avaliar o que é que a Ciência diz sobre estes elementos. Como vimos na pandemia, nem sempre é possível ter o conhecimento científico porque há muitas coisas que vão além daquilo que é o nosso conhecimento. Neste caso concreto, o que acho que a União Europeia precisa de garantir é de ser essa influência a nível global, que garanta que as decisões da OMS são pautadas por Ciência e não por interesses económicos, seja de grupos farmacêuticos ou de outros. E isso é um papel muito importante e que muitas vezes a gente não se apercebe.

    Tem que haver escrutínio. Ou seja, uma das preocupações é que a OMS não tenha escrutínio. Não existe no Tribunal que possa depois escrutinar. A ação da OMS tem de haver da parte da Europa estar atenta e escrutinar é isso.

    DUARTE COSTA: A OMS tem a sua Assembleia composta pelos ministros da Saúde dos seus membros, que são os países do mundo inteiro. Tem um mandato com uma legitimidade democrática. Quer dizer, ninguém elege um ministro da Saúde. É apontado por um governo que, na maior parte dos países como o nosso, também não é eleito. O Parlamento é que é eleito. Se queremos aumentar o escrutínio ou se queremos aumentar a legitimidade democrática da OMS, talvez deveríamos ter as decisões que são feitas ao nível da OMS depois ratificadas pelos parlamentos. No meu entendimento,  tudo o que sejam decisões que venham do nível internacional para depois ser implementadas a nível nacional, passam pelos parlamentos, passam pela Assembleia da República. Acho que isso tem esse nível de legitimidade democrática.

    O que é importante na sua pergunta que me despertou a atenção é esta questão de as decisões que vamos tomar numa matéria tão importante, como saúde Internacional, têm por base o conhecimento científico ou estão sujeitas a lobbies e interesses de grandes grupos e muito influentes. E, isso, o que eu acho, é que a União Europeia tem que ser um garante internacional, quando muitos outros países, na esfera internacional, não são garante da democracia e da Ciência e do Estado de Direito, a União Europeia tem que sê-lo. E há muitos outros países fora da União Europeia e, sobretudo, países com os quais temos relações de proximidade muito grandes, porque temos laços históricos, sobretudo na América Latina, em África – estes países também esperam que a Europa tenha essa liderança de garantir esse primado da Ciência, da democracia, do Estado de Direito. Porque, para outros países, isso não existe, outros países que são autocracias, que são ditaduras. É o caso da China, o caso da Rússia. É até dos países que são democracias, como os Estados Unidos. Muitas vezes estamos a ver uma situação onde podemos ter um Presidente dos Estados Unidos nada alinhado com estes valores da democracia e dos direitos humanos e do Estado de Direito.

    Em todo o caso, tenho encontrado muitos testemunhos de desconfiança em relação ao processo democrático, às decisões políticas, devido ao rotundo falhanço da União Europeia na gestão da pandemia. Há países na Europa com um nível de excesso de mortalidade aterrador enquanto países que recusaram seguir o protocolo alterado da OMS, como a Suécia, têm um excesso de mortalidade residual. Depois, há os negócios opacos, as mensagens escondidas da presidente da Comissão Europeia sobre a compra de vacinas. Houve uma sensação, da parte de alguns europeus, do falhanço da Europa enquanto farol de respeito pelos direitos civis, pelo Estado de direito, pela democracia. Tivemos um certificado digital, apesar de não ter base científica absolutamente nenhuma. Estamos a falar de uma desconfiança que pode ser prejudicial também para o futuro.

    DUARTE COSTA: Não estou tão seguro que haja essa desconfiança em relação à União Europeia no que diz respeito à pandemia. Acho que a União Europeia deu um passo enorme para aquilo que é o seu modo de operação. A União Europeia, até 2019-2020, era uma União Europeia muito de base nacional. Como costumo chamar, era uma associação de primeiros-ministros. Portanto, temos ali 27 primeiros-ministros, líderes de governo, que se reuniam no Conselho da União Europeia e que tomavam decisões entre si, unânimes e a União Europeia vai seguir essas decisões. E, pela primeira vez, no meu entendimento –, e não foi só na pandemia, depois repetiu-se com Ucrânia… Também o Green Deal é um exemplo desse esforço da União Europeia de começar a ter uma voz de bloco. Na gestão da pandemia, comprámos vacinas em conjunto. Investimos em Ciência antes de termos as vacinas, fomos um dos maiores investidores em investigação para chegarmos à vacina com outros parceiros globais, o Canadá, os Estados Unidos, o Japão, outros parceiros da Europa.

    Campanha do Volt Portugal de apoio à comunidade LGBTQIA+. (Foto: D.R./Volt)

    Portanto, a Europa actuou a uma só voz e é visto pelo Volt como positivo.

    DUARTE COSTA: Eu acho que precisamos de ser pragmáticos em como avaliamos a União Europeia. A União Europeia não é perfeita, tem muitas imperfeições, sobretudo derivado desse modelo atual que nós queremos mudar no Volt que é: se for uma União Europeia que fale em nome de todos, mas esses todos são os 27 primeiros-ministros, portanto, não têm uma estrutura de mandatar a liderança Europeia a partir da decisão dos Europeus. Portanto, uma democracia europeia essencialmente, ou seja, com um Parlamento eleito pelos europeus, mas também por um Conselho da União Europeia que queremos que seja um Senado eleito pelos europeus, com um Presidente eleito ou uma Presidente eleita pelos europeus. E, portanto, que haja um compromisso de quem lidera a União Europeia com os europeus e não com necessariamente os primeiros-ministros. Os primeiros-ministros têm importância, são líderes nacionais e têm o seu trabalho a fazer e tem a sua influência nos processos europeus. Nós achamos que a União Europeia deve ter uma relação directa com os cidadãos e é isso que vai reforçar e melhorar a qualidade das decisões que são tomadas.

    Na pandemia, acho que houve coisas que ficaram aquém, mas acho que, no global, foi um momento em que a Europa se uniu. Porque percebemos que, para combater a pandemia, podemos combatê-la aqui em Portugal, mas se noutro país ao lado ou até distante, mas que está nas nossas relações, não combater efetivamente o vírus, vai afetar-nos na mesma. Portanto, demos as mãos, mostrámos união. Essa compra conjunta garantiu que países ricos não estavam mais à frente do que países mais pobres para ter acesso a uma vacina para proteger as pessoas. As decisões foram tomadas sempre com base no melhor conhecimento científico possível. Claro que há sempre coisas a aprender para trás, há casos de corrupção ou suspeitas de corrupção que são perigosos.

    (Foto: D.R./Volt)

    E censura de jornalistas e de cientistas. E assim se conseguiu criar um falso consenso, não só nessa questão da pandemia. Também na área de proteção ambiental e das alterações climáticas há alguns “consensos” em torno de alguns temas porque há estudos e há cientistas que são censurados. E isso na pandemia foi evidente. O epidemiologista mais citado do mundo, John Ioannidis, o mais conceituado, logo desde o início deu uma opinião diferente daquela que estava a ser imposta, nomeadamente em Portugal. Foi censurado, foi perseguido, foi ameaçado. Estou a dar este exemplo, mas poderia falar de outros cientistas sérios e independentes, ou seja, que não são pagos pela indústria farmacêutica. E há jornalistas premiados que alertaram precisamente para os fortes lobbies. Como é que a Europa se pode proteger, sobretudo em situações de crise, dos oportunistas? Como é que partidos como o Volt podem ajudar a combater esse vírus que é a promiscuidade, a corrupção, os lobbies que existem para que as políticas sejam feitas, muitas vezes com fins que não são para o bem público?

    ANA CARVALHO: É preciso votar em partidos diferentes. E voltamos ao início: se continuarmos a votar nos mesmos de sempre, não vamos ter ideias diferentes. Aliás, isto até é uma das leis da termodinâmica. Estamos aqui como um partido que traz ideias novas, traz pessoas novas. Somos pessoas com os nossos vários backgrounds, várias experiências, que não têm os vícios partidários e os dogmas ideológicos que outros partidos já com assento parlamentar…

    E os lobbies

    ANA CARVALHO: Exatamente. E que não sofremos impacto de lobbies. Votar no Volt é, de facto, trazer uma força política diferente à política portuguesa. E que tem práticas e políticas concretas baseadas na evidência, baseadas em boas práticas europeias. E e com isso, vamos melhorar a vida dos portugueses, de certeza.

    DUARTE COSTA: Sim, é só para complementar, em relação a esta parte dos lobbies, da corrupção e, já agora, falou aí do silenciar de jornalistas – e isso é uma coisa que me faz abrir os olhos e preocupar bastante, porque o jornalismo livre é um pilar, tem uma democracia liberal e isso para nós é muito importante no Volt. A nível europeu, para combater a corrupção e, sobretudo para combater esse lobby negativo, digamos assim, esse lobby com intenções privadas e não do interesse público, precisamos de transparência. Defendemos que todas as reuniões que são feitas com lobistas sejam registadas e que se conhece as influências que se está a tentar obter através dessas reuniões e nos processos legislativos em curso. Isto é muito importante, porque há lobbies que se estão a lutar por uma causa particular. Sobretudo, o enriquecimento ilícito, e por aí fora, e a lavagem de dinheiro – isso não é, de todo, aceitável e é um lobby ilegal.

    Mas há outras formas de lobby, por exemplo, quando nós temos ONGs [organizações não governamentais] a puxar para que a União Europeia seja mais ambiciosa na transição climática, esses lobbies são muito bem-vindos. É importante também para as pessoas que nos estão a ouvir perceber que fazer lobby não é necessariamente mau. O que é mau, é as intenções com que se aproxima de um decisor político para influenciar a sua decisão. Temos isso bastante claro, queremos transparência. Não queremos estas portas giratórias, como se costuma dizer – a pessoa que exerce um cargo, no seguimento de um cargo político, não pode exercer um cargo de direção, um cargo altamente remunerado, numa empresa ou numa área de decisão que vai beneficiar do facto de ter sido um decisor em nome de todos. Isso também é outra área muito clara.

    Finalmente, para salvaguardar o jornalismo livre, isto é muito importante. E também achamos que a União Europeia deve ter aqui garantias, porque vemos, em vários países, em vários Estados membros da União Europeia, abusos sérios e até diria que, nalguns casos, mais graves do que tem acontecido em Portugal, que também tem havido problemas contra jornalistas. Temos até o caso mais grave em Malta, de uma jornalista que foi assassinada e isto não pode acontecer num Estado de Direito. O que queremos é ter uma União Europeia que tem regras. Queremos ter órgãos de comunicação social europeus, trans-europeus, para que os europeus, em toda a Europa, possam saber o que é que se passa na sua União e não ter esta monotonia, digamos assim, esta exclusividade – se sou português, eu sei o que é que se passa em Portugal e, se calhar, se for ler online, vou saber um bocadinho [sobre o que se passa a nível] internacional. Não. Eu posso ter acesso, através de órgãos europeus, a saber o que é que se passa nos outros países e, com isso, ter aqui um contraditório, ou uma versão paralela daquilo que é que está a ser comunicado a nível nacional.

    O meu apelo, que faço aqui mesmo, importante – e para quem se revê nestas ideias –, não basta, hoje, em dia, votarmos no partido que queremos. Precisamos de fazer campanha por ele, precisamos de sair às ruas, nas nossas redes sociais, com os nossos amigos, com a nossa família, mobilizar toda a gente a votar – não é num partido qualquer – é num partido que se alinha com as nossas ideias. E a democracia precisa disso, porque quem está a lutar contra a democracia está a fazer esse trabalho. Está a fazer um trabalho muito bem feito. É preciso que se diga, infelizmente, fazem um bom trabalho para um projeto terrível e nós, do nosso lado, temos que fazer o mesmo para assegurar a nossa liberdade e o nosso futuro.


    Pode consultar AQUI o programa do Volt Portugal para as Legislativas de 2024.


    N.D. Por um mal-entendido, do qual o PÁGINA UM será o único responsável (e mais ainda o seu director, o qual se penitencia), foi realizada uma primeira entrevista aos representantes oficiais do Volt Portugal para as eleições legislativas de 2024, Inês Bravo Figueiredo e Luís Almeida Fernandes. Contudo, a ideia fundadora do projecto HORA POLÍTICA era entrevistar apenas os líderes dos partidos políticos, independentemente de serem candidatos nas próximas legislativas, da sua posição nas listas ou de integrarem coligações. Daí, por exemplo, se ter entrevistado os actuais (reconhecidos) líderes do PURP (Rui Lima) e do MAS (Gil Garcia) – que não concorrerão às legislativas de Março – e ter-se convidado os líderes de todos os partidos que integram a Aliança Democrática (AD), a Coligação Democrática Unitária (CDU) e a Alternativa 21. Embora assumindo o melindre da situação, propôs-se a realização de uma nova entrevista, desta vez aos co-presidentes do Volt, Ana Carvalho e Duarte Costa, aos quais agradecemos a aceitação nas circunstâncias de sermos ‘obrigados’ a descartar, por agora, a divulgação da entrevista feita a Inês Bravo Figueiredo e Luís Almeida Fernandes. Pedimos desculpa a todos os envolvidos por esta situação.

  • ‘Portugal tem de decidir o seu rumo, o seu destino, e tem sobretudo de estar aberto para o Mundo’

    ‘Portugal tem de decidir o seu rumo, o seu destino, e tem sobretudo de estar aberto para o Mundo’

    Nascida em Luanda em 1977, Ossanda Liber iniciou a sua experiência política na Aliança, onde chegou a assumir a vice-presidência, mas desfiliou-se em Fevereiro de 2022, já depois de se candidatar como líder do movimento independente “Somos Todos Lisboa” às autárquicas de Setembro do ano anterior. Num processo com alguns percalços no Tribunal Constitucional, conseguiu criar a Nova Direita ainda a tempo das próximas eleições legislativas. Assumidamente soberanista, critica sem contemplações a esquerda e os ‘velhos’ partidos, e considera essencial um controlo total da imigração. Esta é a primeira entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.


    OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE OSSANDA LIBER, PRESIDENTE DA NOVA DIREITA, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


    Qual a sensação de criar um partido novo, um partido também que quer ser disruptivo num certo comodismo que por vezes existe na cultura portuguesa?

    É um grande desafio. Nem sei se tinha noção exacta do quão desafiante era criar um partido quando decidi iniciar o processo. Mas, felizmente, não estou a trabalhar sozinha, e isso ajuda bastante nos momentos difíceis para seguir em frente e manter o foco e o objectivo, que nos segurou e permitiu que tê-lo criado a tempo para concorrer a estas eleições, que são de grande importância para nós. Mas não é nada que não acontecesse já com os outros partidos, na maior parte das vezes; entre recolher os apoios… Nós recolhemos 10 mil assinaturas. Foram validadas somente sete mil e qualquer coisa, 7700, se não me engano; mas foram 10 mil pessoas a assinar. E numa altura em que a política está a cair em descrédito total, é mesmo muito difícil ter as pessoas a apoiar-nos. Não fosse o facto de as pessoas estarem com um sentimento de necessidade de mudança, teria sido quase impossível. As pessoas não querem ouvir falar em política, estão muito desiludidas, muito chateadas. Mas foi imposto aqui quase um sentimento de “olha, vamos testar outras propostas; não vamos ser nós a impedir que isso vá para frente”. E depois há uma questão muito portuguesa, que eu aprecio imenso: as pessoas gostam imenso de ajudar. Então, podem estar muito contrariadas, muito chateadas, desiludidas com a política, mas no final, com um belo sorriso, lá se vai conseguindo fazer com que as pessoas cedam. Esse foi naturalmente o maior dos nossos desafios: reunir essas assinaturas.

    Em todo o caso, já tinha também experiência na política. Foi vice-presidente do Aliança, também foi candidata em Lisboa. E essa experiência também lhe traz algum conhecimento para este novo desafio…

    Sim, para esta fase, em toda a preparação do processo, definitivamente. Assemelha-se muito ao processo necessário para a candidatura independente em Lisboa. Quando nos candidatámos como independentes, ao contrário do que acontece com os partidos (estão criados, indicam candidatos e já está), como independentes temos também de recolher muitas assinaturas. São 4.500 ou quatro mil, se não me engano, e recolhemos cinco mil assinaturas. Portanto, essa foi a primeira abordagem que eu tive com a política: ir à rua e convencer as pessoas de que tinha um programa simpático e, enfim, que era diferente. Tinha uma visão muito própria, e que contava com o apoio dessas pessoas para ajudar a levar essa visão à frente e apresentá-los portugueses. Então, essa experiência serviu-nos bastante agora, porque já sabíamos quais eram os pontos de resistência, como abordar as pessoas. Aprende-se muito com acção. É nisso que acredito. E nós começamos logo com uma acção com uma ousadia, de nos candidatarmos à Câmara Municipal de Lisboa. E isto valeu-nos imenso, de outra forma. Estou convencida que não teríamos conseguido criar o partido nos timings em que criámos – até porque basta ver os vários movimentos que, já há alguns anos, tentam criar um partido e não conseguem, simplesmente por não conseguirem reunir as assinaturas – sem essa experiência. Mas politicamente falando, as experiências anteriores permitiram aperfeiçoar a forma como devemos fazer políticas, adaptar ao nosso programa aquelas que são efectivamente as necessidades e expectativas das pessoas. Foi um processo de aprendizagem que agora vai continuar, mas chegámos a um ponto de maturidade que permite estar no combate.

    Falou do aparente divórcio entre os portugueses e a política. Há um descontentamento, uma tristeza e um afastamento. Entende existirem motivos para isso? Sente esse divórcio?

    Sim, claro que sim. Como não? Eu também sou cidadã. Antes de ser a responsável política por um partido, sou cidadã. E eu também partilho, com as pessoas, essa frustração. Por isso mesmo decidi convidar um grupo de pessoas para criar um partido político. Os partidos do arco da governação, vamos dizer assim, já não têm nada a oferecer, não conseguem. E isso não tem nada a ver com a qualidade das pessoas em si, individualmente. Eu prefiro não atribuir necessariamente a isso. Atribui-se ao facto de já ser impossível gerir partidos com aquela dimensão, com aqueles vícios de 50 anos de poder, sem alguma vez terem sido questionados. Houve sempre uma alternância, que garantiu poder, para uns e para os outros; portanto, para o PS e o PSD. E durou 50 anos. Portanto, o que é que isso faz? Cria vícios estruturais, nas próprias estruturas locais dos partidos, e dá aquilo que estamos a ver hoje: líderes que já não conseguem dirigir os seus partidos, já não mandam efectivamente nos partidos. Não conseguem levá-lo para um caminho. E, além disso, há o facto, também, de as pessoas dos partidos terem apostado estrategicamente – às vezes acho que erroneamente, mas ainda assim, fazem isso nos últimos anos – em líderes que, eu diria, são incapazes, fracos. Talvez precisamente para poder ir ao encontro de todos os interesses partidários, para não contrariar aquela via partidária. Talvez seja por isso, acredito que sim. Não temos, na política, coragem, não temos bravura, não temos espírito de combate. Ainda há dias ouvi o líder do PSD dizer: “eu não estou aqui na política para ser combatente”. Olha, que pena! Os portugueses precisam é de combatentes, de líderes que combatam pelo país. Portanto, essa desilusão [dos portugueses] está absolutamente justificada. Agora, há uma postura possível, e há muita desilusão. É desistir do país e dizer: “olha, paciência, entrego o país a quem quiser ficar com ele”. Ou então dizer: “não, este país também é meu e eu sou tão cidadão quanto estas pessoas; há pessoas certamente capazes, alternativas capazes aqui, vamos dar oportunidade a essas alternativas; não temos rigorosamente nada a perder”. Nós estamos numa fase em que devemos dar o benefício da dúvida, e é isso que eu tenho falado sempre quando estou na rua a recolher os apoios; é isso que transmito às pessoas, e elas percebem, por isso é que dão as assinaturas. É porque lhes digo: “não vamos desistir do país, porque o país é nosso, de todos nós, individualmente; cada um de nós tem um bocadinho desse país”. Não votar e não aceitar novas propostas, é exactamente isso que os partidos estabelecidos querem, aqueles que tanto mal têm feito a Portugal nos últimos anos. Não devemos ir por aí, e esta campanha também vai ser sobre isso; sobre explicar às pessoas que não devem desistir de Portugal, de forma alguma.

    Podemos depreender que, como líder da Nova Direita, acredita ser possível quebrar este círculo de poder que tem sido dividido entre os grandes partidos.

    Não só acredito, como eu acho que está em curso, sinceramente.

    Estamos aqui num fim de ciclo, numa mudança de regime, numa mudança?

    Eu acho que sim. Acho que estamos a iniciar. Atenção, não me parece que vão ser já nestas eleições que se definirá essa ruptura, mas parece-me que vai acontecer. É só observar a forma como as pessoas têm já dado crédito aos novos partidos, àqueles que emergiram nos últimos anos. Já é a demonstração de as pessoas começarem a abrir a mente. E é esse o mérito que eu atribuo, aliás, a esses partidos mais recentes: abrirem a mente dos portugueses, abrirem o coração, a alma dos portugueses, levá-las a pensar: “olha, vejam lá, não é assim, há aqui possibilidades e propostas”. Eu penso que é por aí.

    Olhando para o vosso programa, têm propostas muito específicas em várias áreas. Senti, pelo menos ao ler algumas das propostas, que traz algo de novo, qno debate em torno de alguns temas que se tornaram tabu.

    É verdade…

    Seja porque temos uma imprensa, em geral, muito conivente com aquilo que são as políticas dos partidos do poder, e, portanto, com esta cultura que se instalou, há temas que não é possível debater. E sabemos que, se tocamos nesses temas, saem logo os chavões, uns nomes, umas acusações, que certos temas são de extrema-direita. E há que desmontar um bocadinho isto e perceber ser possível debater-se. Aliás, é saudável em democracia. Quer falar de alguns temas? Por exemplo, o combate à cultura do cancelamento, ao combate ao denominado wokismo. O seu partido quer dar um murro na mesa e a trazer obrigatoriamente esses debates para cima da mesa?

    Sim, sim. Aquilo tem acontecido é que a esquerda tem imposto uma agenda. E tudo aquilo que sai da agenda determinada, decidida pela esquerda – socialismo e a extrema-esquerda também –, tudo que sai disso, é extremado, é adjectivado, é insulto. Isto é inaceitável. Quer dizer, o que é que é a política, senão um debate de ideias? É isso que é a política. É uma pessoa dizer: “olha, eu sou contra o aborto”; e outra dizer: “não, eu sou a favor”, e depois chegamos a um consenso que, de certa forma, acomode as expectativas dos portugueses. Portanto, é isso que deve ser a política. Não deve ser individualizar as coisas, não deve ser insultar as pessoas por trazerem esse debate. E depois, o que é que acontece? A direita não tem, nos últimos anos, sabido defender-se. A direita vai à boleia daquilo que é a agenda da esquerda, vai sempre em reacção. Não sou pessoalmente uma pessoa de reacção. Eu sou uma pessoa que olha para as coisas, com pragmatismo, e identifica os problemas e procura soluções. Portanto, sempre foi assim a minha vida; tanto na minha vida pessoal, como na minha vida profissional, sempre foi esse o meu papel: encontrar soluções. E os temas têm de ser abordados, porque senão vamos ficar esse tempo todo a perpetuar esse estado de bullying social, se quisermos, em que uns são os bonzinhos e outros são os maus da fita, porque falam nos temas. E isto é inaceitável. Por isso, eu e o meu partido vamos dar o nosso contributo nesse sentido. E esta questão do wokismo é uma delas. A partir do momento em que a esquerda defina que o caminho é um, aquilo passa a ser incontestável, e quem vier contestar é fascista, é extremista. Quer dizer, onde é que estamos? A esquerda tornou-se divisionista, tornou-se bastante sectária.

    Ossana Liber com dirigentes da Nova Direita, aquando da entrega das listas para as próximas eleições legislativas.

    E lucra com isso.

    Lucra em votos, é a forma de se manterem. Não têm ideias concretas para aquilo que as pessoas precisam efectivamente de resolver. A agenda deles passa por desestabilizar para depois aparecer como o salvador da pátria, o salvador das pessoas, o salvador dos desgraçadinhos. E então, de repente, acaba por colocar as pessoas num canto, as pessoas que supostamente defende, todas elas, desde os homossexuais, por exemplo – que dizem defender, mas, na verdade, só extremam mais a posição relação a essas pessoas. Ou em relação às crianças, que eles julgam que precisam da defesa, mas não dos pais nem da família, mas sim da escola ou dos partidos. Enfim, e até a questão racial que eles instrumentalizam e colocam as pessoas numa situação de exclusão social, porque estão todos os dias a gritar: “vocês são negros, vocês são coitados e, portanto, precisam da nossa proteção; nós estamos aqui para isso”, quando, na prática, a vida dessas pessoas não mudou em nada nos últimos anos. Aparecem lá para ver essas pessoas a solicitar o voto por altura das eleições. Ao longo do ano ninguém aparece. Este é um facto que eu digo com propriedade, porque conheço; conheço a situação. No fundo, é uma falácia, uma mentira, é uma agenda que não está aqui para salvar ninguém para defender ninguém; está só para defender os interesses políticos. Quando já não houver divisionismo, quando já não houver racismo, quando já não houver discriminação, que eles tanto impulsionam, já não há extrema-esquerda. Isto é uma agenda que precisa ser contrariada. E o que vemos na Assembleia da República? Vemos um partido à direita, no caso o PSD, que não se defende, que vai respondendo ocasionalmente às situações; a maior parte das vezes até por abstenção, por incrível que pareça. Nem sequer capaz é de se manifestar claramente contra essa ofensiva. E depois, por outro lado, temos o Chega que fala de forma inaudível. Ou seja, acaba por desacreditar aquilo que pretende defender, porque às pessoas aquilo soa a populismo. Atenção, eu não sou, como deve saber, a pessoa mais crítica relativamente ao trabalho do Chega; acho importante que exista, mas, de facto, não temos equilíbrio, não temos, naquela Assembleia da República, racionalidade à direita; não existe, não existe firmeza, firmeza nas convicções, não existe determinação. É fazer aquele espectáculo triste diariamente, como se fosse um circo, literalmente. A Assembleia da República está transformada círculo pelo qual todos contribuem e, no final do dia, não sai dali nada para resolver os nossos problemas, que se vão arrastando. Problemas essenciais arrastam, como a Saúde, a Educação, as forças de segurança, que estão neste momento na rua. Está tudo a arrastar, tudo aquilo que é importante; e estamos a discutir género. Nós pretendemos trazer uma abordagem simples e de soluções para a Assembleia da República. Há um problema: vamos à procura da solução. Esse é o papel dos políticos.

    E sem tabus e sem agendas, não é?

    Nenhuns. Falar sobre os temas todos, como eles são. Sobretudo fazer uma coisa que até agora a direita não foi capaz: é preciso denunciar essa investida da extrema-esquerda, o impacto que tem nas nossas famílias, na estabilidade, nos nossos miúdos, que estão totalmente baralhados. Neste momento, já põe as crianças contra os pais. Repreender um filho ou contrariar qualquer coisa já é um crime. Onde é que vamos parar? Que sociedade é está? A forma tradicional como vivemos, como educamos o nosso filho, agora está tudo errado. Nós somos todos maus da fita, os pais não estão à altura, não temos capacidade de cuidar dos nossos filhos. Isto não é viável. A esquerda [Bloco de Esquerda] tem o slogan: “não lhes vamos dar descanso”. Espero chegar ao ponto em que a Nova Direita esteja na Assembleia da República, e pode ter a certeza de que quem não lhes vai dar descanso somos nós.

    Quais são os seus objetivos actuais? Conseguir chegar à Assembleia da República? E para o futuro?

    O normal seria, para um partido que tem pouco tempo [inscrito no Tribunal Constitucional em Janeiro deste ano], embora estejamos a trabalhar há já algum tempo, esperar um resultado adequado ao tempo que estamos na política. Porém, há vários fatores e variáveis. Nós temos um programa, e o país precisa de um programa, as pessoas precisam de um partido que lhes diga: “olha, vamos falar sobre esses assuntos, estão aqui as soluções, vamos debater isso, vamos discutir, vamos levá-la à Assembleia da República”. As pessoas precisam disso e, por incrível que pareça, a esta data [N. D. a entrevista foi realizada a 30 de Janeiro], nenhum partido de direita… por acaso não é verdade; acho que foi há dois dias, se não me engano, se começou a apresentar os programas da direita; e à esquerda também foi no final da semana passada. Portanto, estamos a um mês e pouco das eleições e ninguém tem um programa sério. Quando se vai ver o programa que lá está, é mais do mesmo: não dá esperança, não dá futuro, não há nada.

    Mas perguntava-lhe quais são exactamente os vossos objectivos nestas eleições…

    Há um partido novo que já vem com as ideias muito consolidadas, não é? Mas também há sobretudo aqui uma urgência em reforçar a direita. E eu penso que os portugueses precisam disso, porque há alternativa à esquerda é a direita. Não há meio termo. E essa alternativa não se está a fazer, por motivos absurdos, por uma questão de egos dos líderes dos dois partidos da direita que estão na Assembleia da República, que não se entendem, que têm aqui uma oportunidade de ouro de contribuir para virar o país, e começar a dar uma outra perspectiva, um outro caminho ao país. Mas não fazem por uma questão de egos. Simplesmente, definiram linhas vermelhas, sabe-se lá porquê, como se, de facto, esse partido alguma vez tivesse estado no poder. No caso do PSD, está a fazer linhas vermelhas para o Chega; o Chega diz depois ao PSD, muito bem, se vocês forem para o poder, nós até podemos viabilizar, mas depois mandamos abaixo na primeira oportunidade. Quer dizer, que loucura. Claramente, não há, a esta data, se a configuração for essa, se eles assumirem a palavra que deram, que não se vão coligar, é inviável imaginar um Governo da direita. Daí que até pode se fazer um Governo, porque o PSD até vai procurar os seus parceiros que, atenção, já não acrescentam nada ao país, que já deram tudo aquilo que o país já rejeitou, inclusive nas últimas eleições, mas ainda assim investiu nesses parceiros. Mas não vai ser estável, porque, não há dúvida nenhuma, a direita vai crescer, toda junta. Portanto, alguém acreditar que seja possível um Governo de direita com um só partido não é viável. Daí que, voltando à questão das nossas expectativas, estamos a mais ambiciosos do que simplesmente fazer um caminho normal. Sabemos ser absolutamente imprescindível que a Nova Direita entre para a Assembleia da República, precisamente para criar essa ponte entre esses dois partidos, são duas máquinas que aí estão, mas que não nos servem para nada, não estão a servir os interesses de Portugal. Eu sei da minha capacidade de fazer pontes, e de fazer as pessoas sentarem-se à mesa, e conversarem por um interesse maior, que é o interesse do país. Espero somente que tenhamos o tempo e oportunidade de chegar ao máximo de portugueses possível para nos darem esse voto de confiança, e aí sim viabilizar essa mudança, porque, de outra forma, já sabemos o que vai acontecer daqui a dois anos, se tanto: novas eleições. E isto não é método, não é? E o país continua parado, estagnado, enquanto brincamos aos políticos. Nós temos a ambição de um resultado suficientemente expressivo para poder influenciar este Governo de direita que, provavelmente, se vai proporcionar, e sobretudo dar-lhe estabilidade. E também dar visão, que é tudo o que as pessoas precisam; uma visão de futuro, uma visão para jovens, uma visão para os velhos, uma visão para vida, para as famílias. Estamos expectantes que algumas pessoas que tivemos oportunidade de contactar e de conhecer o nosso programa votem em nós.

    Sente que a Nova Direita tem de desmontar um pouco a ideia de que a direita é má? Tem havido muito essa tentativa de colocar na população a ideia de que tudo o que é de direita é má. E hoje quase não se fala em direita. Tudo aquilo que não seja a agenda da esquerda e da extrema-esquerda, acaba rotulado de extrema-direita, e nem sequer se pensa mais nisso. O que é um absurdo…

    Isso é a propaganda, a máquina de propaganda da esquerda, que tem o controlo das nossas instituições. É terrível. Não se fez o 25 de Abril para isso, não é? A esquerda tem, de facto, o controlo de todas as instituições, das universidades, das escolas, das da imprensa; enfim, eles controlam tudo, é uma máquina autêntica, máquina de controlo e de propaganda. E, portanto, é natural que assim seja. A direita não tem tido lideranças, salvo algumas exceções, capazes de mobilizar o eleitorado da direita, de mantê-lo unido por forma a fazer frente a isso, porque as nossas liberdades estão em causa. Estão sempre apontar o dedo por causa das nossas escolhas, mas que coisa é esta? Como é possível que a esquerda venha dizer ao eleitorado: “vocês são todos uns idiotas, porque votam naquele partido; nós não queremos saber de vocês: vocês são os maus do país”? Onde é que estamos, não é? Qual é a diferença entre isto e um país do Terceiro Mundo, onde há um controlo absoluto.

    Temos cartazes [do Chega] a serem queimados, não é?

    Mas é exactamente isso: cartazes a serem queimados, pessoas a serem canceladas nas redes sociais. Quantas vezes tentaram fazer isso a mim? Eu vou logo avisando: não tentem cancelar-me, porque não vai acontecer; a mim não me cancelam. Eu tenho a minha palavra, sou livre, absolutamente livre. Felizmente, não tenho ‘malas’ políticas nenhumas, não tenho nenhum passivo político, não dependo da política para viver; portanto, comigo estão tramados, e não vai haver isso, não me vão cancelar e não me vão calar. Eu vou defender os meus interesses e os interesses daquelas pessoas que eu me proponho representar. Eu não quero que os portugueses se sintam intimidados, com medo no seu próprio país, porque existe um grupo de pessoas que não suporta a diferença, que não suporta as diferenças, que não suporta o debate, que tem medo de debater. Isso não é aceitável numa democracia, e eu espero a poder levar a minha voz corajosa para precisamente defender estas pessoas.

    E o acto de queimar cartazes, por exemplo, também é uma forma de intimidar a população…

    Claro que sim. Isso é um acto de desespero absoluto. A esquerda está a ver o que está a acontecer. Nós estamos a ver, eles também estão a ver. Esta é uma forma de intimidar, sem dúvida, mas a esquerda só trabalha assim, com a intimidação, não é com a com a esperança que trabalham; é com a intimidação.

    Com o medo…

    É com medo, é com: “olhem isto”. Aquela imagem é forte, é uma imagem num cartaz a queimar, a incendiar; é forte. No limite, as pessoas ficam com medo de ir votar. Pode ter impacto sobre algumas pessoas, que pensam: “se calhar não vou votar, e se calhar até queria votar naquele partido, mas não vou”.

    Vai dar confusão…

    Exactamente. E sobretudo distrai também. No partido Nova Direita, estamos a tentar passar aqui uma palavra, debater a limpo – ou seja, está aqui proposta, vamos falar sobre os temas que estão aqui em causa – e acabamos depois por não ter espaço, porque depois o espaço mediático é todo ocupado com esse tipo de coisas.

    Com este fumo…

    Puro fumo, não tem interesse nenhum na vida das pessoas.

    Então vamos falar das vossas propostas da Nova Direita. Tem um programa extenso. Há alguns temas que são mais mediáticos actualmente, e que são, se calhar um bocadinho mais centrais nas preocupações dos portugueses. Por exemplo, a crise do Serviço Nacional de Saúde, também a crise na habitação. Começando por estes dois temas, quais são em concreto as propostas que destacaria para resolver os problemas na Saúde e na habitação?

    Relativamente à saúde, o diagnóstico é relativamente simples: não há capacidade do Serviço Nacional de saúde para fazer face à demanda [procura]. E depois tem diante de si um serviço privado, que é bom; felizmente, até há uma alternativa privada, mas ao qual nem toda a gente consegue aceder. Se existe uma alternativa ao [sector] público, que permita efectivamente ser um complemento ao público, para ajudar o sistema nacional de saúde a fazer face à demanda, qual é a solução? Casar os dois; é ter a excelência em termos de capacidade – e até a capacidade de crescer, de se pagar, que normalmente o privado tem. Portanto, a ideia aqui é conciliar os dois [sistemas] para que nós, como cidadãos, possamos realmente escolher para onde é que queremos ir, se queremos ir para o público ou se para o privado. E como isso se faz? Através da cobrança de uma taxa moderadora para quem quiser ir para os privados – uma taxa razoável, 20 euros, já muito perto do que já estivemos a pagar nos hospitais públicos. Felizmente, há muita gente que tem a possibilidade de pegar nesses 20 euros, e depois o resto, naturalmente, seria um contributo do Serviço Nacional de Saúde. Isto automaticamente descongestionava e deixava espaço ao público para atender todas as outras pessoas, todas aquelas que, por um qualquer motivo, até mesmo por uma questão, não possam ir para o privado. E também para aquelas especialidades que são normalmente garantidas pelo público, porque o privado não faz tudo. E de repente tínhamos um serviço de saúde a funcionar. Aliás, só não se faz isso por uma questão ideológica, porque vende às pessoas que o Estado tem de fazer rigorosamente tudo. É isso que alimenta o socialismo, a ideia de que o Estado tem de fazer tudo, o Estado é o pai da Nação e que faz tudo pelas pessoas. Mas não é verdade. Temos aqui serviços privados fantásticos. Até porque o [Governo do] Partido Socialista, neste momento, já está a fazer isso. Não sei se já lhe aconteceu assim, mas a mim já, ter um serviço marcado no público e, de repente, recebo uma mensagem a dizer: “olhe, sua consulta afinal está marcada no hospital privado tal, a consulta ou exame, o que for. Portanto, neste momento, por baixo da mesa – como muito faz o socialismo quando não quer assumir publicamente que errou ao terminar com as com as parcerias público-privadas [PPP] – fazem isso, porque a situação está a chegar a um ponto inacreditável. A direita não tendo esse problema [ideológico], não tendo esse tabu de fazer recurso aos privados para ajudar, tem condições para implementar isso muito rapidamente. E isto felizmente é consensual à direita e, portanto, penso que a partir do dia 10 de Março seja possível implementar esta medida. E isto faz-se muito rapidamente: os privados estão muito habituados, já têm recebido pessoas do Serviço Nacional de Saúde. Temos serviços de excelência, temos empresários fantásticos nesta área e, portanto, pensamos que esta é a solução rápida, imediata, para resolver a questão, porque aquela história de tentar competir, para onde vão os médicos; os médicos são sempre tentados a ir para o privado, têm outro tipo de condições, têm mais vida, têm mais tempo para as suas famílias. As condições são, normalmente muito atractivas. O [sector] público dá outro tipo de estabilidade, mas o privado tem outro tipo de condições.

    Quanto à questão da habitação, esta é uma área que eu conheço. E é simples: não há casas suficientes, não há outra regra na habitação que determina os preços que não seja a lei da procura e da oferta. Na verdade, o problema é simples: não há casas suficientes, o mercado está esgotado, há muito mais gente à procura do que a oferta de casa. Portanto, tem de se fazer mais casas. É verdade que há outras pequenas medidas que podem ajudar – a descentralização e propor às pessoas irem viver para outras zonas –, mas Portugal está centralizado, neste momento, nas grandes cidades. E não é possível no imediato resolver desta forma, por isso temos de facilitar a construção, porque não nos falta espaço para construir, felizmente. Temos de encontrar aqui uma forma, um compromisso, com o Estado e com os privados, para que possam construir mais, construir em boas condições. Facilitar e desburocratizar os licenciamentos e atrair investidores do mobiliário, que é um sector muito difícil. Atenção, há momentos muito bons, mas há momentos muito difíceis para o sector imobiliário, para o sector da construção; portanto, é preciso também trazer alguns incentivos, trazer estabilidade legislativa. É preciso que as leis sejam estáveis e que não mudem todos os dois anos conforme a necessidades eleitorais do Partido Socialista. Não pode ser assim; tem de haver estabilidade para as pessoas investirem, porque realizar o lucro nesse sector leva tempo. Os incentivos que existem hoje são muito curtos. E a partir daí entram rapidamente casas para o mercado e resolvemos o problema. Vejamos: um senhorio só joga com os preços se souber que a pessoa que procura não tem escolha, porque senão ele é obrigado a baixar; isto não é mistério nenhum. Nós queremos sempre ter as casas arrendadas, quando somos proprietários das casas; se eu não tiver pessoas à procura, naturalmente baixo preço. E havendo pessoas a entrar para Portugal todos os dias, novas pessoas, então a única solução é haver mais casas. Esta é a abordagem que queremos ter na política: o problema é este, e a solução até já existe. Não estamos a inventar nada. Não é a Ossanda e a Nova Direita que estão a inventar essa solução: é a procura versus oferta, que se tem de resolver.

    Na Educação também tem uma proposta que passa pela implementação de um cheque-ensino, ou seja, que os portugueses possam também ter a possibilidade de escolha entre o ensino público e o ensino privado.

    O conceito é exatamente o mesmo. Na origem dos problemas está exactamente a mesma coisa: o Estado não tem essa capacidade para gerir tudo, para gerir tanta gente, não tem capacidade de ser tão competitivo nas condições que oferece a muitos professores. Há boas escolas privadas. A Saúde e a Educação são sectores que o Estado tem mesmo de assumir – eu sou por um Estado Social –, só que não vai assumir tudo sozinho porque não é capaz.

    E a verdade é que a elite política, e não só, recorre na Saúde e na Educação aos sistemas privados.

    Exacto. E então por que não se dá essa possibilidade aos portugueses? Não sou apologista de que as pessoas estejam a beneficiar de uma tarifa ou de propina quando têm possibilidade de pagar por inteiro. Eu acho que tudo tem de ser adequado às necessidades das pessoas, porque não tem de ser de forma discriminado. Nós vivemos num sistema social de solidariedade social e eu não me importo de pagar impostos, desde que sirvam precisamente para esse tipo de objectivos: garantir que as pessoas que não conseguem sejam ajudadas, e as que conseguem são capazes de contribuir.

    Hoje parece existir um sistema de castas, com uma parte da população que mal tem acesso a Saúde e à Educação dentro do que existe, e depois uma outra casta, digamos assim, que tem acesso ao ensino e à saúde no sector privado.

    Quando me falam em discriminação, muitas vezes é isso que eu digo. Nós temos um problema de grande discriminação social, porque quem não tem dinheiro tem mesmo muita dificuldade em crescer, em educar os seus filhos em condições minimamente compatíveis com as possibilidades do país. Portanto, na verdade, o que se faz é isto: esta pessoa nasce naquele bairro, cresce naquela escola – aquela escola onde, quando faltam professores, é mesmo dela que vamos tirar, porque está ali escondida, ninguém diz nada – tem um centro de saúde que é uma desgraça, mas não há problema; a pessoa está ali no seu gueto e, portanto, está tudo bem. É como se nada como fosse. Esse é o grande problema a resolver no mundo ocidental, que já não é aceitável. Sabe, eu nasci num país [Angola] que não é ocidental e que, ainda por cima, vinha de uma guerra e depois da independência começou uma guerra civil. Ainda apanhei na minha primeira infância, um serviço ainda bom, porque ainda era aquilo que vinha do tempo colonial, as coisas ainda estavam mais ou menos orientadas. Depois, a guerra veio interromper isso e deixou-se de formar pessoas, então era tudo mau. Sei muito bem o que é serviços que não funcionam. Eu sei muito bem o que é não ter hospitais em condições. Eu sei muito bem o que é as pessoas terem de esperar nos corredores. E eu nem era sequer de uma família particularmente pobre. Era uma família normal angolana, não há nada de espectacular, mas de facto imagino como seria com as pessoas que ainda tinham mais dificuldades do que a minha família. Portanto, eu sei o que é haver escolas que acabam por não ter um banco ou acabam por não ter um ar condicionado com aquele calor que faz. Ainda há dias denunciaram na imprensa uma escola que não tem sequer condições para aquecer as turmas e os miúdos têm de ir com cobertor. Eu vi tanto isso em África que, confesso, não estava à espera, de todo, em encontrar isso em Portugal. Quando cheguei a Portugal há 20 anos, não era nada disso. Os serviços do Estado sempre falham de alguma maneira, mas com os meus filhos eu tinha condições para os levar ao privado, mas eu optava por os levar ao [Hospital] Dona Estefânia, e quando estava em Coimbra, levava-os ao hospital de Coimbra. Estava contente, contentíssima, até porque meu pai é médico [cardiologista] e eu sempre tinha aquela cultura de que os hospitais públicos são melhores do que os privados. Hoje, se calhar, já não é razoável pensar assim. Mas eu, com as crianças, com aquelas doenças respiratórias, cheia de medos nos primeiros filhos, então sentava-me ali na Dona Estefânia, esperava minha vez e saía de lá com aquilo resolvido. Portanto, eu assisti a essa degradação e hoje chegamos a um ponto em que eu estou a fazer quase um déjà vu daquilo que vi na minha infância. É inaceitável para este país. Se havia algo que funcionava aqui, eu falava com o meu pai médico – faleceu há pouco tempo – e ele dizia-me: há pessoas que dizem que este país é pobre, mas quem dera a muitos ter a pobreza desse país. Porque tinha de facto a Saúde e a Educação que funcionaram muito bem durante muitos anos. E de repente…

    É uma questão de gestão de recursos?

    É uma questão de opções políticas, simplesmente. Isto é que custa mais. Não é por ser o pobre. Todos os dias dizem que o país cresceu; ainda hoje disseram que cresceu dois e não sei quantos por cento. Então, e para onde vai esse dinheiro? E serve a quem? Se não temos essa capacidade de segurar aqueles serviços básicos, que é para isso que pagamos os impostos. É isso que tem de mudar. Essas decisões políticas estão a condicionar a vida das pessoas, e eu espero que aquele eleitorado que tem alimentado, de forma inconsciente, naturalmente, mas que tem alimentado, esta máquina socialista, essa esquerda – que fazem mil e uma promessas e acabam por segurar as pessoas por meia dúzia de tostões –, e que agora estão a ser vítimas desta situação, se dêem conta daquilo que estiveram a alimentar durante esse tempo todo.

    Mas existem alternativas, ou seja, a resposta não passa só pelos grandes partidos, não é?

    Claro que claro que não, mas principalmente pelo facto de hoje os partidos grandes, nem que tivessem vontade, já não conseguem reformar. Todos os escândalos que se vêem na televisão é porque já não há controlo nenhum. São verdadeiras máfias instaladas localmente, e não e não há nada que se possa fazer porque já estão demasiado instaladas. Daí ser importante um recomeço. Esse recomeço tem de acontecer e só os partidos mais recentes, que não têm esse passivo nem esses compromissos, como é o caso da Nova Direita, podem efectivamente ainda fazer reformas, porque não devem favores a ninguém. Veja, por exemplo: em tempos houve uma situação de um de um deputado que saiu de um partido para o outro; e no dia em que sai, descobre-se que andava a declarar fazer falsas declarações de morada. Acha que o partido não viu? Acha que o PSD não sabia disso? E por que não fez nada? Só se lembrou de denunciar isso quando, por vingança, ele saiu? Porque está assim, porque é assim que está feito, neste momento, para assegurar aquela máquina. Os líderes partidários têm de fechar os olhos. Eles sabem que isso está a acontecer. Por isso é que é inviável pensar que são estes partidos que vão trazer as soluções. Não podem.

    Também é uma questão moral…

    Não é só moralidade, é soluções. Eu acho muito importante a manutenção dos valores morais, falo muito neles, mas neste momento de resolver os assuntos, sanar, pôr um travão a essa usurpação do país pelos partidos, porque os partidos enriqueceram. Desde o 25 de Abril enriqueceram, estão todos ricos, todos fantásticos, cheios de imóveis e tal. Quem empobreceu foi o povo. Por isso, fazemos algumas propostas. Isso levaria um programa a falar sobre elas, mas do ponto de vista da democracia, em si, também consideramos que passa por aí, uma espécie de reset, de recomeço. Pensarmos se queremos mesmo um sistema assente nos partidos e na sua agenda partidária ou se não valia a pena adoptarmos um sistema presidencial em que confiamos os destinos do país a uma pessoa que tenha, em princípio, um tipo de compromisso para com o país. Contra mim falo, não nasci em Portugal, pelo que, de acordo com a lei atual não poderia ser Presidente. Portanto, digo-lhe isto com franqueza, porque acredito que é necessário fazer esta reforma.

    Um outro tema no vosso programa é a reforma, digamos assim, da política de migração. E estamos a falar tanta da ‘fuga’ de jovens portugueses para fora, de jogos e pessoas com qualificações, como o inverso, isto é, pessoas que fogem de países onde há problemas. E aqui há uma política que se tem tentado fazer ao nível de uma inclusão destes imigrantes no mercado de trabalho e na cultura em Portugal. Qual é a vossa postura relativamente àquilo que deve ser a política em torno da imigração, ou seja, da entrada deste fluxo?

    Eu vou usar uma expressão popular: Portugal não é a casa da Mãe Joana. Percebe o que eu quero dizer. Todos os países soberanos têm de ter uma estratégia migratória.

    Mas essa posição é hoje muito mal vista…

    Temos pena, mas nós vamos falar sobre esse assunto. E, uma vez mais, eu tenho legitimidade. Eu sou uma portuguesa originária da imigração, portanto estou muito à vontade para falar sobre isso.

    Defende, portanto, algum controlo…

    Algum controlo, não; total controle. Soberania significa muita coisa. Não está só escrita num papel. Também significa que as instituições do país determinam aquilo que querem que aconteça no país, têm um plano e um projeto para o país, e que o respeitem. Neste momento não existe uma estratégia de migração, que pense em vários fatores, como a pertinência económica dos imigrantes. Como vamos alojar estas pessoas? Onde as vamos pôr? Como vamos incluí-las na sociedade? Como vamos garantir que são pessoas que não trazem problemas de criminalidade para Portugal? Isto tem de ser pensado, como é que isso se faz, para antecipar problemas.

    Pensa que há mesmo um descontrolo actualmente?

    Total, total. Começamos a ter algum retorno desse descontrolo quando se identificam pessoas de alta criminalidade. Se investigar, vai saber que a polícia tem identificado casos, porque há pessoas que podem ficar cinco anos em Portugal e ninguém saber que estão cá. Temos de ter um controlo, independentemente de estarmos inseridos num espaço comum, sobre quem entra em Portugal. Desde a origem, devemos saber se aquela pessoa, aquele candidato a imigrante, digamos, é pertinente para Portugal, porque assim evita aquelas questões: “olha, os estrangeiros estão a roubar o nosso trabalho; olha, nesta área, agora estão a privilegiar os estrangeiros, quando eu estou aqui e posso fazer esse trabalho, e por que foram buscar lá fora”. Enfim, esse tipo de discurso – às vezes exagerado, e muitas vezes exagerado – tem, em algumas situações, fundamento porque realmente não há uma estratégia. Uma vez mais, eu gosto de mencionar as minhas experiências. Quando eu cresci em Angola, e julgo agora também – já estou fora há muitos anos –, havia isso [controlo de imigração], sabe? E nunca ninguém chamou Angola de país racista. Experimente ir morar para Angola e vai ver as dificuldades para conseguir um título de residência. Eu não estou a dizer que seja ideal ser assim, mas, de facto, se aquele país, apesar de todos os problemas, se manteve seguro – é um país seguro, tem os seus problemas de criminalidade, como todos os outros, mas é sobretudo interna que acontece nos países que têm bandidos –, nunca teve grandes problemas de criminalidade porque soube sempre quem estava em território nacional. Sempre fez um filtro, sempre tinha uma estratégia clara de imigração. O país era muito apetecível na altura, e então, de facto, determinaram se algumas regras para que os interesses dos imigrantes não se sobrepusessem aos interesses dos próprios cidadãos. E é isso que nós temos de fazer em Portugal, simplesmente.

    Além da questão das grandes redes de criminalidade…

    Não só. Não estamos a falar só da criminalidade. Felizmente, há instituições externas que também controlam isso, e acho que aí mesmo a Polícia Judiciária e as nossas forças de segurança, apesar de tudo, vão conseguindo gerir, talvez por isso também estejamos ainda com alguma segurança.

    Mas Portugal precisa de imigração, de mão-de-obra, não é?

    Aquilo que estamos a propor é definir, primeiro, que imigração Portugal precisa do ponto de vista da pertinência económica. Qual o perfil dos imigrantes de que precisamos e queremos. Segunda, o critério da proximidade cultural, que parece um critério banal, mas não: garante a coesão social e garante que as pessoas vêm para cá por serem mais próximas. Se nós privilegiarmos quem é mais próximo culturalmente de Portugal, porque fala a língua, porque tem uma história em comum; se nós privilegiamos essa imigração, menos problemas teremos. Os nossos problemas de imigração só começaram quando começou a haver emigração do resto do Mundo, porque enquanto foram dos PALOPs, nunca Portugal se queixou da imigração.

    Mas isso não contraria aquilo que tem sido também a política ao nível da União Europeia, que tem levado os países a aceitar um ‘pacto’ no sentido da entrada em massa de imigrantes?

    Nós estamos a ver agora o resultado. Os países estão em pânico. Não há nenhum tema que se sobreponha, neste momento, ao tema da imigração na política europeia, mas isso tem um motivo: aquilo que se fez ao longo dos anos foi receber de qualquer maneira, sob pretexto de sermos a zona geográfica mais inclusiva, a mais amiga dos refugiados. E não é só por isso; também se deve ser a alguma dívida moral do Ocidente para com determinados países, acabando por abrir as portas de qualquer maneira. Mas isso não é justo, não é bom, e também lhe digo: não conheço nenhum imigrante em Portugal ou algum português proveniente da imigração que tenha interesse de que o país passe a ser inseguro. Aquilo que a esquerda diz é que falar agora da imigração é ser discriminatório, é ser racista. Eu convido-a, com seu microfone, a ir a um bairro de imigração perguntar se, para aquelas pessoas, interessa que Portugal receba pessoas de qualquer maneira, quando elas mandam os filhos de manhã para escola no autocarro, se elas têm receio que rebente uma bomba, que uma menina que venha da escola possa ser violada. Ou que o próprio emprego dessa pessoa – que já está aqui, que já está integrada, que está bem – seja posto em causa, porque, de repente, abre-se o país de qualquer maneira e entram números descontrolados e depois não temos controlo sobre o que essas pessoas requerem como habitação. Eu não sou apologista de que, neste preciso momento, seja este o maior dos problemas, mas pode vir a tornar-se. Está tudo muito centralizado nas grandes capitais, portanto é natural que quanto mais pessoas estiverem [cá], pior será o problema de habitação. Como não se tem nada disso em conta. Perguntem às pessoas se querem isto. Nós temos de falar claro.

    Temos conhecido algumas situações terríveis de imigrantes alvo de redes, que são trazidas para cá e depois vivem em condições de quase de escravidão, sem condições de habitação…

    Mas essa é a questão. Quem está, de facto, a ser racista, sabe quem é? É precisamente a esquerda, que abre as portas de qualquer maneira e não se importa se as pessoas vão viver para a rua. Isto não é contraditório o que eles dizem? Defendem tanto, tanto os interesses, mas não querem saber. As pessoas chegam e estão a morar em tendas; e sem falar que também já há portugueses a morar em tendas. Há imigrantes a morar, aos 15 num apartamento. Num apartamento não; quem dera!; num quarto. Num quarto moram 15 pessoas, 20 pessoas. Mas é isto que Portugal quer? É isso que é fazer bem? Não é. Com certeza que não é. A nossa proposta é: vamos controlar; é normal que os países controlem. É assim que é. Os países soberanos têm mesmo de definir as suas leis de imigração. E não é a Europa que nos tem de impor, não é a agenda europeia que deve contar. Nós temos os nossos próprios interesses, temos os nossos eixos de interesses, que não são necessariamente os dos outros países. [A imigração dos] PALOPs nós facilitámos, eu acho muito bem que assim seja, E depois a Europa pôs-se a gritar, que já não achava bem, quando, na realidade, quem traz para o território europeu grande parte da emigração problemática não é Portugal ainda. Mas neste momento está a começar, porque eles saem desses países, porque começa a haver movimentos contra essa migração de massas em todos os países. E onde se vêm refugiar, neste momento? A Portugal. Então, nós vamos ter esse problema em breve, e para sanar isso, para terminar isso, temos de começar já a definir regras nos nossos serviços diplomáticos. É para isso que servem, neste momento. Pagamos tanto por serviços diplomatas, mas não sabemos muito bem para servem, porque os portugueses que recorrem a esses serviços não são atendidos atempadamente. Muitas vezes preferem vir tratar do cartão de cidadão a Portugal, porque não conseguem tratar lá [nas embaixadas ou consulados], porque não os atendem? Portanto, não sei o que estão a fazer, se não controlam a imigração para Portugal, se não prestam serviço aos portugueses, eu não sei o que estão a fazer. Como vê, há muita reforma a fazer, mas tudo é exequível; só é preciso ter os políticos certos nos lugares certos.

    Algumas das medidas que têm falado, também são medidas que contrariam muito daquilo que tem sido a cultura e as políticas da União Europeia e da Comissão Europeia em concreto. E falou numa questão de soberania, e não é só na União Europeia e na Comissão Europeia que tem havido sempre pressão sobre os países para impor determinadas políticas. Por exemplo, temos, ao nível da Organização Mundial de Saúde a proposta de alterações ao Regulamento Sanitário Internacional. Também a criação do Tratado Pandémico, e há, de facto, muitas dúvidas, e determinados defensores dos direitos humanos e dos direitos civis estão a colocar muitos pontos de interrogação devido à possibilidade de se criar um quadro que pode retirar soberania aos países para gerir, por exemplo, crises sanitárias. E vindo uma nova pandemia haver uma dificuldade de os países poderem tomar as suas próprias decisões. Como lida o vosso partido com tipo de intromissão?

    A intromissão, nesse aspecto, na questão sanitária, mas em todas, na questão militar, simplesmente põe em causa a soberania dos países. Vamos lá ver: a União Europeia era para ser uma União e não uma Fusão. É muito diferente. E uma União significa que os países mantêm a sua soberania, e depois partilham interesses comuns.

    E não é isso que está a acontecer…

    Há uma tentativa clara de uma fusão. Transferiu-se a soberania dos países para Bruxelas; Bruxelas decide a nossa vida e sem que sejamos chamados a opinar. Impõe as regras cá dentro. Nós somos claramente um partido soberanista. Portugal tem de decidir o seu rumo, o seu destino, e tem sobretudo de estar aberto para o Mundo.

    E integrado na União Europeia…

    Sim. Não ponho em causa, porque… a única coisa que nós exigimos é voltar àquilo que esteve na génese da União Europeia: era uma União Económica, se bem se lembra; não era para transferir o poder para lá. Hoje, ouço os nossos eurodeputados dizerem: “olha, aconteceu isso em Portugal; eu vou-me queixar à União Europeia”. Mas estamos a brincar ou quê? Então, mas é cidadão português ou cidadão de Bruxelas? Quem são aqueles burocratas de Bruxelas para decidirem aquilo que se passa em Portugal? Muitos deles nunca puseram cá os pés, nem sabem onde é que isto é. Portanto, nessa questão, nós somos absolutamente soberanistas… Sabe, fomos atraiçoados um bocado pelos acontecimentos, mas, de facto, a nossa primeira campanha teria sido para as eleições europeias de 9 de Junho. E agradava-nos muito, porque temos uma visão muito clara sobre como queremos ver Portugal, por uma razão: Portugal acomodou-se nessa questão da União Europeia, basicamente cedeu em soberania para ganhar dinheiro, um dinheiro que claramente serviu certamente para muita coisa, mas não serviu para o país se tornar soberano e próspero.

    Para poder resolver estas situações de crises que temos tido…

    É só mesmo isso para apagar fogos. É isso que tem sido. Houve algum desenvolvimento de infraestruturas, mas, se reparar, os grandes hospitais, por exemplo, não foram, foi depois do 25 de Abril que foram feitos. Nós temos uma visão muito própria sobre isso e a nosso caminho era para passar pela União Europeia e ir impor uma voz firme; dizer: “oh, meus senhores, Portugal existe; Portugal é um país soberano; e muito bem, nós estamos aqui para debater os temas de interesse comum, mas quem manda em Portugal são os portugueses”. Isso não significa fechar o país. Quando muita gente ouve falar em soberania, pensa que é fechar o país. Não, não, pelo contrário. Por acaso, eu até quero essa liberdade para Portugal por uma razão: isso vai permitir que Portugal reate o seu eixo histórico. Por exemplo, tem o seu eixo europeu – a União Europeia, estamos geograficamente aqui –, tem o eixo regional – que é a Península Ibérica, muito mal explorado precisamente por causa da União Europeia – e também tem o eixo histórico, toda essa portugalidade que anda por aí pelo Mundo, que nós abandonamos, que o país abandonou. Em muitos casos isso acontece porque estamos todos virados para a Europa, uma Europa francamente decadente, francamente decadente economicamente, em termos de valores e de segurança. É totalmente dependente, como vimos agora da guerra da Ucrânia, sem lideranças. E é esta que está, de certa forma, a gerir as nossas vidas.

    Está muito refém dos Estados Unidos…

    É verdade. Ela própria [União Europeia] também não é tão soberana quanto isso, porque depois vai a boleia da agenda americana. Isto não é método, e sobretudo numa fase em que o Mundo está a mudar, e está a mudar mesmo. É um facto; isso já não é uma miragem, não é algo que vá acontecer no futuro.

    Aliás, o vosso partido tem propostas – e não chegamos a falar nisto ainda – de haver um Ministério do Futuro e trazer para Portugal as tecnologias, as novas inteligências artificiais…

    Exacto. Esse sector é um dos reflexos, um dos testemunhos de que a Europa está enganada, está atrasada naquilo que está a acontecer no Mundo, não está a ver bem as coisas. Não existe uma grande tecnológica europeia. Não é inacreditável que, com 400 milhões de habitantes e sendo a segunda maior economia mundial, a Europa não tenha uma grande tecnológica? Aquilo que se faz na Europa são de empresas americanas. Portanto, a Europa está a ficar para trás. Portugal tem de olhar para isto e dizer: “ui, pronto, muito bem, não vamos abandonar os nossos compromissos, necessariamente, nós queremos continuar unidos aqui com os nossos irmãos geográficos; é fantástico, adoro viajar pela Europa, não ter de apresentar passaporte, gosto muito dessa ligação de estudantes; mas não parece que seja o melhor para Portugal, de facto, ceder a soberania, as decisões do rumo que Portugal quer dar ao país”. Acho que temos que reatar relações com o eixo histórico – estou sempre a referir esse eixo histórico, porque o capital de portugalidade que está a ser desperdiçado é inacreditável.

    Um Portugal mais forte vai também ajudar a criar uma Europa mais forte? Acredita que esse cada um dos países europeus tornar-se mais forte é positivo?

    É muito positivo. Aliás, o facto de a Europa estar a absorver a soberania é precisamente por causa do desequilíbrio que existe. Há dois ou três países, se quisermos, que alimentam a Europa toda. Não é razoável. Por isso é que a Europa não tem fundamentos para nos fazer acreditar que vai perdurar tal e qual ela como está hoje, em termos de União. Não é sustentável, dois ou três países a Europa.

    E já tivemos o Brexit…

    Sabemos que agora há movimentos, há políticos a emergir, a favor da saída da União Europeia. Não é o nosso [Nova Direita]. Por acaso não é o nosso. Nós consideramos ser possível ainda ir negociar as condições da nossa permanência na União Europeia. Mas não há como manter isto assim nesse estado. Para a nossa prosperidade, se me perguntar: “então, como vê a economia portuguesa?” Eu vou dizer-lhe, como toda a gente diz: “olhe, temos de baixar imediatamente impostos…

    … é uma das vossas propostas…

    E temos, e temos; é incomportável, até porque será um estímulo à produtividade, um estímulo ao mercado, um estímulo à economia, desanuvia as empresas, enfim, tem uma série de vantagens.

    Mais em concreto, pretendem baixar em 5 pontos percentuais o IRS, que é aplicado ao rendimento, e também uma forte redução da carga fiscal para as empresas…

    Exatamente, porque isto vai permitir que as empresas tenham alguma folga, tenham tesouraria, para pagar atempadamente. Temos de pensar que a base é muito má. As empresas portuguesas não têm dinheiro, e assim vai permitir dar outra dinâmica, dinamizar a economia. Mas não vai acrescentar valor, não vai dar riqueza, é preciso não nos iludirmos. Aquilo que vai dar riqueza e encontramos fontes de rendimento, o país tem de ganhar dinheiro, tem de produzir dinheiro. E como se faz no estado actual das coisas? Nada. Não temos nenhuma indústria, não temos indústria. Portanto, é preciso reindustrializar Portugal, em primeiro lugar; segundo lugar, em termos de recursos… Lembre-se que a guerra que está a acontecer hoje no Mundo é uma guerra de recursos. Países que têm recursos são os que vão mandar no Mundo. Ponto. É o caso da Rússia, com a sua energia; a China com recursos humanos; [os Estados Unidos da] América, que tem os seus recursos naturais. Esses é que vão sobreviver. É disso que se trata. A Europa é, infelizmente, pobre em recursos e em pessoas. E então como se sobrevive nesta transformação geopolítica? Criando, uma vez mais, uma certa soberania económica. E soberania económica não se traduz em dizer que só vamos viver do que se faz em Portugal. Isso não é viável, não é. Já chegámos a um ponto de organização a económica do Mundo em que isso já não é possível, mas podemos olhar para aquilo que nós temos, e pensar onde vamos buscar. É como fazemos nas nossas casas quando o dinheiro está a faltar. Dizemos: “eh pá, onde é que eu vou buscar? Qual é o recurso que eu tenho? Está a faltar a comida, e vou raspar ali o frigorífico ou produzir pão; não sei, mas tenho que dar de comer aos meus filhos”.

    Optimizar…

    Tem de se ter essa visão. Em concreto, propomos um recurso daquilo que nós já temos: o nosso mar, que hoje serve essencialmente para deslumbrar os nossos olhos e serve para turismo, mas pode servir para muito mais do que isso. Temos uma vasta área da Zona [Económica] Exclusiva e podemos aproveitar para várias coisas, para o sector naval, que já foi próspero, mas que agora se resume a uma indústria de mil e qualquer coisa funcionários. É absurdo. Estamos numa posição geográfica que nos permite, de facto, trabalhar na manutenção da náutica, e costumamos ser muito bons em tudo que é especialidade. Acredito que podemos desenvolver-nos a partir da:, temos em Viana do Castelo o estaleiro que nos permite também, se quisermos, arrancar com um projeto dessa natureza. Temos a questão da energia. A Europa – agora já menos claro, porque é flagrante a mentira – tem feito acreditar que é com as turbinas de vento e o sol, que é absolutamente intermitente, que vamos resolver os problemas energéticos. É uma grande mentira. Não vai acontecer. Nós propomos a energia nuclear, porque temos a matéria para isso. E sobretudo, porque é duradoura, que é estável, e permita a reindustrialização. Se tivermos uma energia barata teremos condições de sustentabilidade de todo este projeto que estamos aqui a apresentar. Mas ainda no mar – e saindo da energia nuclear –, temos a possibilidade de produzir energia através do mar. Ou seja, o mar serve para alimento – de facto, hoje comer peixe é para ricos, essa é que é a verdade – e serve para nos dar energia e serve também para o desenvolvimento da indústria farmacêutica, que é uma indústria muito rentável. Muitas das maiores empresas mundiais são farmacêuticas. E, de facto, há matéria-prima proveniente do mar que permite desenvolver a indústria farmacêutica. Enfim, temos aqui o nosso mar, e não usamos para quase nada, o que é totalmente absurdo. Portanto, é possível sair da situação em que estamos com os nossos próprios recursos.

  • ‘O meu conselho para os jovens: votem com os pés. Saiam do país. Portugal não vos vai dar um futuro decente’

    ‘O meu conselho para os jovens: votem com os pés. Saiam do país. Portugal não vos vai dar um futuro decente’

    Já vai na quarta edição e é o livro do momento, mas deveria ser o ‘livro de sempre’. As causas do atraso português, escrito por Nuno Palma, economista e professor na Universidade de Manchester, merecia lançar o país numa discussão assaz pertinente: porque é que Portugal não sai da cepa torta? Porque divergiu da Europa Ocidental, e parece não haver meio de acertar o passo, estando até a ser ultrapassado pelos países do antigo Bloco de Leste? Sendo obra de divulgação histórica e científica, o livro choca de frente com muitas ideias e ‘mitos’. Em entrevista ao PÁGINA UM, Nuno Palma falou sobre algumas das ideias mais polémicas, como a considerável recuperação económica durante o Estado Novo e a “maldição” do ouro no Brasil no século XVIII, que equipara aos fundos europeus. E, claro, aborda, de forma desassombrada, os impostos, o Estado, a corrupção, a censura à imprensa pelos reguladores, e até os principais problemas da ‘direita’ portuguesa. Quase nada fica por dizer, e o que diz é para fazer (uma merecida) ‘mossa’, nem que seja nas consciências.


    Em As causas do atraso português defende que “não podemos deixar a memória colectiva nas mãos dos que nos têm falhado”. Este livro constitui uma tentativa de resgatar essa memória colectiva, ‘desfazendo’ muitos mitos sobre o atraso de Portugal em relação ao resto da Europa Ocidental?

    O meu livro tem o objectivo de fazer divulgação científica de certas matérias; algumas delas que já eram conhecidas dos especialistas das diferentes épocas, porque têm sido publicadas em revistas científicas internacionais. Mas a natureza desses estudos é foco numa época específica, e numa pergunta específica. E o que eu tento fazer no livro é um esforço de síntese, em que, no fundo, as diferentes peças do puzzle são reunidas de forma a dar uma imagem completa da história de Portugal nos últimos séculos, até ao presente. E de quais as origens históricas de o país ser tão atrasado; porque não era tão atrasado, em termos relativos, em séculos anteriores. E o país, a certa altura, perdeu um comboio de desenvolvimento, e eu explico quais foram as causas históricas.

    Relativamente à questão dos mitos: num país que se torna tão atrasado, os diferentes regimes tentam construir narrativas para explicar quais os motivos do atraso, e muitas dessas narrativas têm motivações políticas. E, normalmente, tentam desresponsabilizar quem está no poder, arranjando bodes expiatórios. Isso acontece claramente no presente. Para este regime, que temos vivido nas últimas décadas, o principal bode expiatório é o regime imediatamente anterior. O Estado Novo é o culpado por tudo o que está mal no país. E essa é uma opção, do meu ponto de vista, preguiçosa, porque tenta desresponsabilizar várias gerações de eleitores e de políticos que, nas últimas décadas, têm governado o país, e que nos têm falhado. E, como tal, precisam de arranjar desculpas para o seu falhanço, e a forma mais fácil de o fazer é dizer “a culpa é dos que vieram antes de nós, eles é que deixaram isto tudo mal”. E se o Estado Novo é efectivamente culpado num plano político, por ser um regime que oprimia a liberdade, na minha ótica – e toda a evidência científica que nós temos o sugere –, não foi, de todo, um regime responsável por atrasar o país; pelo contrário. Em termos económicos, foi o regime no qual se deu a grande recuperação do país relativamente à Europa; que não foi “completa”, nem podia ter sido, mas foi uma grande recuperação parcial. Portanto, pôr a culpa do atraso no regime que foi responsável pela grande recuperação é bizarro e tem uma motivação óbvia. Assim, o que eu tento fazer é livrar a História da propaganda; é despolitizar a História. É isso que eu tento fazer neste livro, com base na investigação científica e nos dados concretos que existem.

    Falou do Estado Novo, e de como, ao contrário do que se diz, este regime não foi responsável pela divergência do país no contexto europeu. Na sociedade portuguesa, seja na Academia ou mesmo nos comentadores convidados para os órgãos de comunicação social, acha que a ideologia é muitas vezes um entrave a uma análise rigorosa dos factos?

    Todos nós temos, de alguma forma, as nossas ideologias. Isso é natural. Uma ideologia tem a ver com a forma como nós interpretamos o mundo, e até mesmo a evidência científica rigorosa que exista. Uma coisa são os factos, e outra coisa é, depois, a interpretação que damos aos factos. Agora, há casos em que a ideologia toma completa precedência sobre os factos, e são dadas opiniões e são defendidas posições que não têm qualquer base factual. Há outros casos em que há uma forma transparente, em que há uma interpretação com base nos factos rigorosos que, em princípio, são largamente independentes da ideologia, mas que, depois, pode ir além dos factos em si. Ou seja, eu posso interpretar, por exemplo, factos sobre as desigualdades. Digamos que um país é muito desigual, e isso é um facto, que pode medir-se com índices como o Índice de Gini. Podemos medir se um país é mais ou menos desigual nos rendimentos ou na riqueza ou em várias outras dimensões. Mas, depois, o que é que nós devemos fazer quanto a isso? E se isso é um problema, como resolver esse problema? Nem sempre há uma resposta científica absoluta, até porque às vezes há trade-offs, entre termos uma sociedade mais rica, mas mais desigual, ou uma em que, em média, as pessoas são mais pobres, mas há mais igualdade. Nem sempre estes trade-offs existem, mas em certas circunstâncias podem ocorrer. E, portanto, aí entra a ideologia; dás mais valor à igualdade, sendo todos pobres, ou dás mais valor a uma sociedade mais rica, em média, mas mais desigual? E as pessoas podem ter, e é legítimo que tenham, preferências, e a democracia também serve para que nós colectivamente, façamos uma escolha sobre essas matérias.

    Agora, no caso dos comentadores, sobretudo em Portugal, dá-se uma situação algo estranha e que não é normal noutros países, especialmente noutros países ocidentais ricos e mais desenvolvidos, e que é os comentadores serem eles próprios políticos, ou quererem ser políticos. A maior parte deles. E, portanto, eles estão a defender interesses e lobbies que normalmente não declaram. Quando alguém vai falar nos meios de comunicação social, aparece denominado como “comentador”, quando deveria aparecer “militante do Partido X ou Y”, porque é isso que eles são e é esse o papel que estão a fazer. Toda esta cultura dos comentadores – o próprio Presidente da República é presidente por ter sido comentador – é uma coisa, a meu ver bizarra. Eu próprio tenho muitas vezes convites para ir à Televisão, e em 90% dos casos rejeito. Não me interessa ir “mandar umas bocas”, ou uns soundbites para a Televisão; não é uma discussão séria sobre os assuntos. E, portanto, acho que toda essa cultura também reflecte o baixo capital humano da população portuguesa, que nem sempre é capaz de separar o trigo do joio e de perceber que aquelas pessoas não são comentadores independentes, nem estão a fazer uma análise independente da sociedade. Na esmagadora maioria dos casos, estão a defender interesses específicos, sendo pagos para isso directa ou indirectamente, ou consideram que a sua própria progressão política ou sucesso financeiro depende do sucesso com que passem a sua mensagem.

    Em relação à Academia, depende muito das áreas. Em certas áreas das ciências sociais, na minha óptica, o que se faz não é Ciência, é ideologia disfarçada. Em Economia também existe, por vezes, isso, mas em muito menor grau, e há muitas pessoas que estão a fazer um trabalho sério e objectivo. No meu caso pessoal, por exemplo, é ao contrário o que eu tenho descoberto em termos científicos tem, de alguma forma, moldado a minha ideologia, se entenderes “ideologia” como uma compreensão sobre quais as políticas públicas certas para desenvolver uma sociedade. Ao longo dos anos, mudei de ideias sobre certas coisas, por compreender melhor o processo de desenvolvimento económico e o processo histórico de desenvolvimento. E na minha óptica, é assim que deve ser. Mas reconheço que é verdade que, na maior parte das chamadas “Ciências Sociais” e “Humanidades”, especialmente fora da Economia, a ideologia cega é completamente dominante em relação à evidência científica. E a meu ver, as pessoas não estão lá para fazer Ciência, nem para compreender melhor, e de forma objectiva, a sociedade, mas para defender interesses políticos e tentar empurrar a sua agenda ideológica, que normalmente é bastante à esquerda. E, portanto, diria que o trabalho supostamente científico que fazem tem muito pouca qualidade.

    Aponta, como um factor central do nosso atraso, a denominada “Maldição dos Recursos”, e que remonta à descoberta do ouro no Brasil. Argumenta que, para Portugal, a descoberta do ouro teve efeitos mais nefastos do que benéficos, resultando, por exemplo, na desindustrialização do país. Em que consiste este fenómeno, que ‘transforma’ uma enorme abundância em algo tão pernicioso?

    Talvez ajude começarmos com um exemplo contemporâneo: a Venezuela. Vamos imaginar uma Venezuela que não tinha petróleo: estaria hoje melhor ou pior do que está? Um momento de reflexão leva-nos facilmente à conclusão que a Venezuela está muito pior do que teria estado sem petróleo. E este fenómeno da maldição dos recursos está bem estudado na Economia do Desenvolvimento – existem outros casos para além da Venezuela –, e tem uma dimensão económica e uma dimensão política. A dimensão económica tem a ver com estes países que concentram recursos naturais ou dinheiro, em grandes quantidades, através de uma fonte específica. Isso distorce o sistema produtivo das suas economias, levando a que seja muito mais fácil para estes países importar bens, e muito mais difícil exportá-los. Portanto, torna-se uma economia menos competitiva; o que se chama o sector transacionável – das exportações – torna-se menos competitivo. Os economistas falam disto em termos de os bens transacionáveis e os não transacionáveis; dá-se uma subida de preço relativo dos bens não transacionáveis, como por exemplo o imobiliário, relativamente aos bens transacionáveis, como é o caso do sector exportador da economia. Portanto, isto é um mecanismo bem estudado, e é um dos dois principais mecanismos da “maldição dos recursos”, que tem a ver com a transformação da economia. E, depois, há um mecanismo político que, a meu ver, talvez seja ainda mais importante, que tem a ver com a captura do Estado por interesses: torna-se mais fácil, neste tipo de economias, certas elites políticas tomarem conta do Estado, usando-o a seu favor para se manterem no poder. Portanto, são sociedades em que os ‘freios e contrafreios’ – os checks and balances anglo-saxónicos – se tornam menos relevantes, e quem manda no Estado pode utilizar esses recursos adicionais para pagar a clientelas para se manter no poder.

    Esse mecanismo, que é absolutamente evidente na Venezuela, nas últimas décadas, é condicional à sociedade que recebe esses fundos; a forma como opera na Venezuela, na Nigéria, ou em Angola, não é igual à forma como opera na Noruega, por exemplo, que também teve muitos fundos de petróleo. Porque a Noruega tinha instituições políticas fortes e capital humano, e os níveis de literacia, inclusive a literacia económica e política da população, é suficiente para a Noruega conseguir utilizar bem os fundos do petróleo, investindo num fundo soberano, não gastando tudo de uma vez, e investindo o dinheiro de forma diversificada. Ou seja: há sempre uma condicionalidade na forma como fundos desta natureza destroem, ou não, uma sociedade.

    No caso de Portugal, no final do século XVII, havia ainda um sistema político que, para a época, até não estava atrasado. Mas claro que, como qualquer sistema político da altura, era ainda muito menos desenvolvido do que o que veio a acontecer nos séculos seguintes. Mas existiam checks and balances; eu mostro no meu livro que nas décadas finais do século XVII, a indústria portuguesa das manufacturas estava-se a desenvolver, e também o sistema político tinha estes freios e contrafreios, existiam parlamentos, as cortes reuniam e tinham poder, o Rei não podia pôr e dispor, ou fazer o que queria.  E tudo isto vai desaparecer no século XVIII, porque todas estas receitas do ouro do Brasil vão distorcer a Economia e o sistema político, fazendo com que, nomeadamente, o Rei não precisasse de negociar e tivesse acesso directo a dinheiro de impostos. Não só o quinto, que é um dos impostos mais conhecidos; houve outros. A própria base da Economia cresceu durante algum tempo, em termos líquidos; isto é sempre um efeito líquido. Foi possível ter a Indústria a ser destruída, mas ao mesmo tempo, em termos líquidos, estava a entrar mais dinheiro, portanto no curto ou médio prazo a Economia até estava aparentemente a enriquecer, havendo mais rendimento por pessoa. Mas, a prazo, isto levou à concentração do poder e ao aparecimento do absolutismo, e foi isso que “estendeu o tapete” para alguém como o Marquês de Pombal aparecer, e que, eu argumento, foi talvez o pior político da nossa História, e o mais directamente responsável pelo atraso profundo do país em termos educativos nos séculos seguintes.

    Então, na sua opinião, não deveríamos ter uma estátua do Marquês de Pombal numa praça de Lisboa [risos].

    Em geral, eu sou contra deitar estátuas abaixo, pelo menos de uma forma pouco reflectida, como muitas vezes se faz. Mas reconheço que houve casos históricos em que se deitaram estátuas abaixo com legitimidade. Aconteceu, por exemplo, no caso das revoluções que acabaram com o comunismo na Europa Central e do Leste; atiraram-se muitas estátuas abaixo de forma espontânea. A seguir ao 25 de Abril também se acabou com estátuas que havia, pelo menos havia uma, de Salazar, e mudou-se o nome da ponte Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril. Parece-me legítimo em certos contextos. Neste caso, ter numa rotunda com uma importância tão simbólica para o país uma estátua do político mais directamente responsável pelo nosso atraso, e que mais mal nos fez, parece-me, de facto, despropositado.

    Referiu que as receitas e os recursos de um país não bastam para explicar um eventual atraso, e que é preciso ter em conta também a qualidade das suas instituições e a capacidade de gerir os recursos. Se Portugal sofreu, nos últimos séculos, uma certa “corrosão” das suas instituições, os fundos europeus – dos quais é muito crítico – funcionam agora como uma espécie de novo ouro do Brasil?

    Eu não quero fazer uma analogia absolutamente directa, porque a Economia e o sistema político hoje são muito diferentes do que eram no século XVIII; mas a analogia é simplesmente sugestiva. Tal como o ouro do Brasil não desenvolveu a economia portuguesa, e teve exactamente o efeito contrário ao que se poderia esperar; foi dinheiro “caído do céu”, digamos, de forma um pouco simplista… E é o que está a acontecer agora com os fundos europeus. Supostamente, o objectivo dos fundos é fazer o país convergir com a média europeia; mas Portugal está a receber estes fundos há quatro décadas, e nessas quatro décadas, não convergiu. Tem estado até a divergir, já há algumas décadas. Portanto, quando é que nós dizemos “se calhar, é melhor mudar a estratégia”? Porque esta estratégia claramente não está a resultar. E não digo só que não está a resultar: está até a ter o efeito contrário ao desejado. Esta política de ajudas europeias é uma das causas que está a impedir a convergência. E está a impedi-la, exactamente pelo mesmo tipo de mecanismos que o ouro do Brasil atrasou a economia no século XVIII, e que depois foi uma maldição que, aliás, continuou a ter efeitos indirectos nos séculos seguintes.

    Os fundos europeus distorcem o sistema produtivo da economia portuguesa, transformando e “inchando” o sector não transacionável. Portanto, têm um efeito negativo na competitividade externa da economia, por um lado, e por outro lado, ajudam quem está no poder a manter-se no poder, a ter dinheiro para distribuir às suas clientelas e para pôr pensos rápidos em várias partes da economia. Dinheiro que devia sair do Orçamento do Estado, mas que o Orçamento do Estado não teria capacidade de pagar porque a Economia não tem a capacidade produtiva para pagar, porque as políticas públicas são más e muitas são feitas, de facto, para avançar certas agendas políticas e não para desenvolver a sociedade. Por isso, têm efeitos muito negativos na Economia e prejudicam as pessoas e, em particular, os jovens, que praticamente não têm voz em Portugal. Porque o apoio ao partido dominante do regime vem de uma população muito envelhecida, e as estatísticas mostram-no de forma absolutamente clara. E, portanto, quem está a ser mais prejudicado não tem voz mas, depois, as consequências disso na população não se sentem de forma tão aguda como se iriam sentir, porque o Estado tem dinheiro para ir pondo pensos rápidos e dar “aspirinas” que escondem os sintomas da doença e as consequências das más escolhas que estão a ser feitas. Assim, como o povo não sente na pele, suficientemente, as más decisões que são tomadas, as coisas vão andando, e vão votando nos mesmos. A abstenção é muito alta, cerca de 50% nas legislativas, e portanto, um partido pode ter maioria absoluta com cerca de um quarto da população, apenas, a votar nesse partido.

    E esse dinheiro muitas vezes acaba por ser canalizado de forma duvidosa. No livro dá alguns exemplos dessa má utilização, que inclui a construção de estádios que ficam vazios, ou a imensa rede de estradas do país. No PÁGINA UM, fazemos um escrutino diário aos contratos públicos e conseguimos ver, precisamente, casos de má gestão, despesismo ou favoritismo, através de um recurso frequente a ajustes directos, que sempre dão menos trabalho do que os concursos públicos…

    E não é só dar mais trabalho. Abrir concursos também implica alguma meritocracia a quem são dados os projectos, quando o objectivo é exactamente o contrário: é “pagar” apoios e “premiar” pessoas de confiança política. E em alguns casos, pode ser mesmo corrupção. Se houver concursos, não pode ser, tão facilmente, assim. Isso acontece não só nesses ajustes directos, mas também no caso das contratações. Foi o caso da CReSAP [Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública]; a CReSAP é uma boa ideia do ponto de vista teórico, mas depois transformou-se numa coisa a fingir. A CReSAP, o MENAC [Mecanismo Nacional Anticorrupção]… É tudo a fingir. Estas instituições existem no papel, na lei, mas depois são completamente subvertidas e transformadas numa coisa só para inglês ver. Ou para União Europeia ver [risos].

    Falemos agora no Portugal do pós 25 de Abril. Argumenta que a revolução criou um ambiente hostil à iniciativa privada e à concorrência, e tornou a direita muito ‘tímida’, com medo de se posicionar, devido ao preconceito que se entranhou. Compara até com o caso da Espanha, que teve uma transição mais negociada e, portanto, não sofreu tanto esses “efeitos colaterais”. Se não tivéssemos feito um corte tão radical com o regime anterior, considera que o país teria evoluído mais?  

    Sim, genericamente, mas tenho de fazer uma ressalva: também é preciso reconhecer que a direita em Portugal muitas vezes também não é uma direita muito liberal. Ou seja, é uma direita que frequentemente confunde liberalizar com privatizar, o que não é a mesma coisa. Porque, por exemplo, uma empresa pública que seja privatizada, e passe de ser um monopólio público para ser um monopólio privado, isso não é necessariamente bom para os consumidores. É preciso é promover a concorrência, porque a livre concorrência é que, em última análise, vai beneficiar os consumidores. E esta concorrência, já agora, e falo disto no contexto do PÁGINA UM, às vezes implica não deixar haver censura. Porque parece-me absolutamente claro, em Portugal, que uma entidade como Entidade Reguladora para a Comunicação Social [ERC], na prática, muitas vezes é isso que faz. Noutros países da Europa, desconheço entidades equivalentes que estejam a fazer o mesmo tipo de papel que a ERC tenta fazer em Portugal, que, muitas vezes, é censurar. A ERC não serve para garantir concorrência no mercado – isto é competência da Autoridade da Concorrência – nem para garantir acesso a conteúdos digitais, que é da ANACOM. Logo, tudo indica que o real propósito da ERC é a promoção da falta de concorrência. Serve para manter as rendas protegendo os meios de comunicação tradicionais, muitos dos quais têm, a meu ver, baixa qualidade mas se consideram como “de referência”. Certas entidades, nos moldes actuais, como a ERC e até a LUSA, são, na minha óptica, antidemocráticas, e não deviam existir; pelo menos, não nos moldes em que existem. Porque estão a fazer um papel de Ministério da Verdade, querendo determinar o que é ou deixa de ser “desinformação”, e isso parece-me uma coisa bastante antidemocrática.

    Mas, para concluir a questão anterior, eu acho efectivamente que se Portugal tivesse tido uma transição negociada, ou se Marcello Caetano tivesse conseguido fazer uma transição para a democracia; se o próprio regime tivesse sido capaz de se reformar, as coisas teriam acontecido de forma diferente. Talvez se Marcello Caetano tivesse acabando com a ditadura e com a polícia política, e convocando eleições livres… Hoje seria um herói; não teria de se ter exilado no Brasil, porque nunca mais pôde voltar ao país. Claro, tinha de ter acabado com a guerra, porque não era possível continuar com aquela guerra num contexto democrático, de certeza. Até porque já durava há muito tempo, e não havia solução à vista. Mas não sei se essa transição seria possível politicamente, e não é por acaso que ele não a fez; portanto, isto são contrafactuais difíceis de avaliar, podíamos estar aqui uma hora inteira só a falar disto. Mas o ponto é: se a transição tivesse sido negociada, como foi em Espanha, ou se o próprio regime tivesse conseguido reformar-se e transitar para uma democracia, parece-me que a História do país, nas décadas seguintes, teria sido muito diferente. A natureza da revolução que existiu, que foi uma revolução a sério, apesar de com pouco sangue; foi um corte radical. E por ter sido um corte radical – como disse e bem, não sei se usei essa palavra no livro, mas foi bem escolhida – criou um ‘preconceito’ contra a direita. Criou a ideia de que a direita não quer desenvolver o país, e que o quer atrasar, portanto, em Portugal há preconceito contra ser-se de direita. Quando devia ser evidente para qualquer pessoa que a direita e a esquerda em si – que até são termos que eu nem gosto muito de usar, são um bocado limitados, mas enfim, para simplificar -, nenhuma delas é moralmente superior à outra, nem nenhuma é naturalmente mais a favor do desenvolvimento económico do que a outra, ao contrário do que tanta gente pensa em Portugal – país onde a esquerda considera ser moralmente superior. Esquerda e direita têm, isso sim, diferentes estratégias de como desenvolver uma sociedade. E, normalmente, digamos assim, a esquerda é mais “romântica”, acha que as intenções vão muito longe. A direita é tendencialmente mais cínica, ou realista, em relação à natureza humana.

    Mais pragmática?

    Mais pragmática e tenta julgar as políticas pelos seus resultados, e não pelas suas intenções, porque nós sabemos o que é que está cheio de boas intenções…

    [risos] No livro defende que a verdadeira dicotomia está no quanto um regime é favorável ou desfavorável à concorrência, e que tanto a esquerda como a direita, muitas vezes, são desfavoráveis à concorrência. A direita supostamente é mais ‘amiga’ da concorrência, mas acaba por fomentar a criação de monopólios ou oligopólios. Nesse sentido, a nossa direita pós 25 de Abril é muito corporativa?

    Sim, antes de mais, é uma direita envergonhada, como estávamos a dizer. Muitas vezes, não quer assumir as suas posições de forma clara. Certamente não quer dizer que é de direita, e isto é sistemático nos líderes do chamado “centro”; no máximo, diz-se “centro-direita”, mas às vezes nem isso. Muitas vezes, o partido que em Portugal é de centro-direita, o PSD, vemos constantemente os seus líderes dizerem que é um partido de esquerda.  Aconteceu com Sá Carneiro, recentemente Balsemão disse o mesmo… E isto não é normal, a nível europeu. No actual Parlamento, que agora acabou, só há um partido que se assume como sendo de direita, e é um partido, a meu ver, bastante populista e um bocado extremista em certas coisas, que é o Chega. Por aí se vê logo que é uma situação anormal a nível europeu, entre os oito partidos no Parlamento, apenas haver um que se diz de direita; não conheço casos equivalentes na Europa. Aliás, na verdade, conheço: existe o efeito “espelho” disto, que é em vários países da Europa do Leste, não haver ‘esquerda’. Ou seja, países que tiveram longas ditaduras numa direcção, muitas vezes são atirados para a direcção contrária em termos políticos e culturais. Na Polónia, por exemplo, a oposição é entre o que seria o PSD e o Chega locais, com as devidas diferenças; o ponto é que há uma direita moderada contra uma direita radical. Portanto, nestes países não existem partidos comunistas, ou “bloquistas”, com peso relevante, porque eles foram ‘vacinados’ contra essas loucuras. E Portugal é um país onde, culturalmente, as pessoas não estão bem informadas, vivem no seu contexto e ouviram as histórias familiares, por aí fora… Muitas vezes deixam-se influenciar por esses exércitos de comentadores e por essas elites todas, a meu ver um bocado patéticas, na maior parte dos casos. Portanto, gerou-se um ambiente cultural que, 50 anos depois do 25 de Abril, continua muito vivo, e que romantiza excessivamente a intervenção do Estado. Aliás, por isso é que as taxas de vacinação em Portugal eram tão altas durante a covid; resulta dessa grande confiança que a população portuguesa tem no Estado, que claramente não acontece da mesma forma na Europa do Leste, em que há uma muito maior desconfiança em relação às boas intenções do Estado. Em Portugal, as pessoas confiam muito no Estado, e a meu ver, confiam demasiado. Até porque existe uma certa contradição em confiarem no Estado mas não nos políticos.

    O nosso Partido Socialista, por vezes, é criticado pela ‘esquerda’, e acusado de ser, na verdade, de centro ou de direita. No seu entender, Portugal é um país mais à esquerda ou à direita? Ou é difícil encaixá-lo num dos rótulos?

    Não, sem qualquer dúvida que o regime é à esquerda, e até a direita é bastante à esquerda. Mas, em cima disso, a direita também é bastante corporativa. É este o ponto; é muito contrária à concorrência. E isto não é uma questão de opinião, eu gostaria de ser absolutamente claro: o meu livro cita estudos científicos que medem os níveis de concorrência na economia portuguesa, e os níveis são baixos. Em certos sectores, são bastante baixos até. E as pessoas conseguem ver isso, nos preços dos bens e serviços. Os preços em Portugal são bastante altos relativamente à qualidade dos produtos e aos salários das pessoas, que não só são baixos em termos nominais, como também em termos reais. O que é que esses salários conseguem comprar? Eu posso dar exemplos quanto à baixa concorrência de vários sectores da nossa economia, mas hesito um bocadinho, porque senão parece que só estou a pôr ênfase num ou noutro em específico, quando na verdade isto é bastante transversal – apesar de também ser verdade que há áreas em que a concorrência funciona melhor que outras. As elites rentistas vivem dessa baixa concorrência, que prejudica a população como um todo. Quem beneficia dessas rendas tem um grande incentivo a manter essas rendas intocadas, para que as coisas fiquem como estão. Portanto, há um grande incentivo para fazer lobbying, inclusivamente através da proximidade ao poder politico, enquanto a população paga esse custo. E embora o custo colectivo seja enorme, o custo individual, para cada pessoa, é relativamente pequeno. Portanto, a situação acaba por se ir arrastando durante anos e décadas, infelizmente. 

    E para criar riqueza já afirmou que não é suficiente baixar impostos, como a direita, sobretudo a mais liberal, costuma a defender. Acredita que a solução passa mais por empreender reformas e discutir como se pode aumentar o ‘bolo’, e não apenas por reduzir a carga fiscal?

    Exactamente, porque isso é pôr a carroça à frente dos bois. Faz-me muita impressão como em Portugal se fala tanto de distribuição, e tão pouco de criação de riqueza. Porque se houver criação de riqueza, cresce o bolo, e depois já haverá mais para distribuir, mais fatias para todos. Não precisam de estar todos a lutar por uma fatia um bocadinho maior que a do vizinho. Todos a lutar também destrói o bolo [risos]. Em vez de falarmos tanto de distribuição, vamos falar de criação de riqueza. Quais são as políticas que podem fomentar a criação de riqueza? Muitas vezes, o problema é que as políticas que podem tornar o bolo maior, vão dar fatias mais pequenas a certas pessoas que estão a comer fatias muito maiores do que deviam. E lá está, essas pessoas têm todo o incentivo para fazer lobby, para que tudo se mantenha igual.  

    Mas sobre os impostos, eu sou bastante crítico em relação ao ênfase que se dá a essa questão, em Portugal. Genericamente, a ‘direita’, e a Iniciativa Liberal… O liberalismo não é uma ideologia de esquerda ou de direita na maior parte dos países europeus. Aliás, o liberalismo é considerado uma ideologia centrista, centro-esquerda, mais ou menos; tanto que, no Parlamento Europeu, senta-se ao centro-esquerda. Enquanto no Parlamento português, senta-se quase à extrema-direita, em termos físicos. Mais uma vez, isto tem a ver com a conversa que estávamos a ter. Mas isto para dizer: esta ênfase nos impostos, do PSD e da IL, pode valer votos, há pessoas que estão cansadas de pagar tantos impostos, e eu compreendo isso.

    Sobretudo tendo em conta a pobre qualidade dos serviços que recebem por eles…

    Exactamente, é isso que eu tenho sempre dito. A carga fiscal em Portugal está a níveis normais em termos europeus, e em percentagem do PIB [produto interno bruto]. Há uma medida alternativa que é o “esforço fiscal”, mas é um bocadinho obscura. Lá está; num contexto de maior crescimento económico, o esforço fiscal português não seria assim tão alto. Essa é que é a discussão importante. Porque, para já, quando se fala em baixar impostos, nem sempre é explicado como é que isso vai ser feito na prática. Parece que, por magia, pode-se baixar impostos e o crescimento que isso vai gerar, sem fazer reformas fundamentais, vai ser suficiente para compensar a perda de receitas. E isso não tem qualquer credibilidade. Portanto, a Iniciativa Liberal tem uma postura anticientífica quando argumenta isso. A Curva de Laffer, como os economistas lhe chamam, tem a ver com a possibilidade de estarmos para além de um ponto em que, ao descer os impostos, na verdade as receitas fiscais sobem ou ficam inalteradas; porque as pessoas fazem mais esforço, trabalham mais, etc. Empiricamente, não há qualquer possibilidade de isso poder acontecer num país como Portugal. Portanto, eles têm que dizer claramente, em troca da descida de impostos, quais são os cortes ou as reformas que vão fazer, que de forma credível, gerem um crescimento que compense essa perda de receitas fiscais. E se são reformas, então essa é que é a discussão fundamental, e a dos impostos é secundária; ainda que acabar com a burocracia e confusão das taxas e taxinhas fosse sem dúvida positivo. Ou então, têm que assumir que vão aumentar o défice, ou a dívida, ainda mais, para as gerações futuras. E eles não fazem isso. Portanto, parecem-me pouco sérias as propostas que normalmente são feitas à ‘direita’. E mais uma vez, estou a simplificar com o termo ‘direita’, a referir-me ao PSD e à IL. Porque o Chega, em termos económicos, tudo o que diz é pouco sério, portanto, nem vale a pena falar disso.

    Mas, portanto, parece-me que há um grande equívoco. Aquilo que tem de se falar não é descidas de impostos, embora eu acredite que isso valha votos. Enquanto outros temas muito mais importantes para a sociedade portuguesa se calhar não valem tantos votos, e é o caso da reforma dos tribunais e da Justiça, que é absolutamente essencial… Mas a maior parte das pessoas não tem um conctacto muito directo com a Justiça, por isso não estão tão conscientes do profundo atraso em que o país está nestas matérias. Eu aconselho sempre às pessoas a lerem Nuno Garoupa, e tudo o que ele diz e escreve sobre estas matérias – a ineficiência da justiça portuguesa é uma causa absolutamente essencial do atraso no país. Mas os partidos políticos não falam com seriedade destas matérias, até porque, lá está, não valem tantos votos a curto e médio prazo. Os partidos políticos estão sempre muito focados em tentar ganhar as próximas eleições, ou em ganhar mais deputados. Portanto, têm uma grande miopia em relação às políticas que possam fazer desenvolver o país a prazo.  Preferem alimentar as suas clientelas e arranjar tachos [risos]. E não digo que, nalguns casos, também não possam acreditar realmente que as políticas que defendem possam desenvolver o país, mas em muitos casos estão enganados. Objectivamente, em matéria de impostos, as receitas que Portugal tem está a níveis normais em termos europeus. Mas  depois, se virmos o que os cidadãos recebem em troca dessa receita pública, efectivamente a qualidade dos serviços públicos tem-se estado a deteriorar muito. A qualidade da escola não era má em termos pré-universitários; em termos universitários, sempre foi má. Portugal é um país desastroso em termos universitários, embora haja, evidentemente, excepções. É evidente que há exceções, mas em termos médios, estatísticos, Portugal continua a ser um desastre. No ensino pré-universitário, o país até não estava a fazer uma evolução má, agora já tem estado outra vez a piorar. Mais uma vez: isto não são opiniões minhas. Há estudos científicos internacionais que eu cito no livro, que mostram isto através de estatísticas comparadas. Recentemente, as estatísticas dos testes PISA mostraram o mesmo.

    Em relação ao Serviço Nacional de Saúde, efectivamente não funciona bem. Há milhares e milhares de pessoas sem médico de família. Por exemplo, aqui no Reino Unido, ir ao dentista faz parte do Serviço Nacional de Saúde, e em Portugal não faz. Está a começar agora, mas de uma forma muito ineficiente. Mais uma vez, tudo é anunciado e prometido, tudo existe no papel, mas nada existe na realidade, nada sai das gavetas. Como os pacotes anticorrupção, que já foram uma data deles, mas a sua aplicação efectiva, é esperar para ver. Até anunciarem o próximo daqui a uns anos. Tudo serve para fazer capas de jornais, é tudo a fingir. Em suma, o problema está no que os cidadãos recebem em troca dos impostos que pagam. Eu até reconheço que são altos, e as taxas marginais são bastante altas. Em relação ao Reino Unido, não só são mais altas as taxas de IRS, no escalão mais alto, mas também o nível de rendimento a partir do qual se começam a aplicar as taxas mais altas, é muito inferior em Portugal. Portanto, o Estado é mais pesado nos impostos em Portugal, sem dúvida, mas isso resulta da falta de capacidade da Economia criar crescimento. Os governos têm de arranjar maneira de conseguir arranjar receitas fiscais e, portanto, vão aumentando os impostos, vão inventando taxas e taxinhas. Mexer nos IVAs, nos indirectos, nos directos, o IRC… Tudo isso são formas de continuar a alimentar a máquina do Estado; em grande parte, altamente ineficiente, que não dá às pessoas o que elas precisam, mas que compra clientelas políticas e vai aguentando o barco para quem está no poder.

    Tem sido uma pescadinha de rabo na boca [risos]. Achei curioso que diga no livro que Portugal tem uma Constituição “terceiro-mundista”, que cria expectativas irrealistas na população em relação ao Estado, por prometer demasiado. Face a esta cultura, e ao acentuado envelhecimento do país, não consegue ver uma luz ao fundo do túnel, num futuro próximo?

    O meu conselho, em Portugal, para os jovens, é: votem com os pés. Saiam  do país se querem um futuro melhor para vocês. Portugal não vos vai dar um futuro decente. Aproveitem o facto de serem cidadãos da União Europeia, que vos dá oportunidades diferentes. Eu sei que implica uma certa coragem sair; não é fácil, tanto em termos familiares como financeiros, também. Há custos. Mas em Portugal, o único elevador social que me parece que está a funcionar neste momento, é o dos tachos dos partidos políticos. As pessoas muitas vezes vão para a política, não como um acto cívico, que é o que a política devia ser – uma profissão nobre -, mas como forma de elevador social. Mas aqui também há uma selecção negativa: as pessoas que não têm escrúpulos, por não os terem, são as que muitas vezes têm sucesso na política. Especialmente em certos partidos, mas repare-se que até o partido supostamente do mérito, que era a Iniciativa Liberal, as figuras tristes que tem feito, com perseguições por delito de opinião, a quem não segue cegamente o líder, como Carla Castro, e foi corrida dos lugares elegíveis das listas, de uma forma muito antiliberal, por um partido que de liberal só tem o nome. Isto não é para atacar um partido em particular, mas o que eu estou a dizer é que o contexto explica muito do país.

    Em Portugal, muitas vezes, a tal direita está convencida de que a fonte de todos os problemas é o Partido Socialista. Mas o Partido Socialista reflecte também o que é o país, tal como a direita, incluindo a Iniciativa Liberal – e é por isso que digo isto – também reflete o que é o país. Reflectem forças mais fundamentais que muitas vezes tomam precedência sobre qualquer ideologia, por isso, a natureza profundamente iliberal da sociedade portuguesa, sente-se até na própria Iniciativa Liberal [risos]. Mas isto não tem saída, o país está bloqueado e não há desbloqueios à vista. Jovens, se tiverem coragem de o fazer, saiam do país, porque vão ter uma vida melhor assim. Para as pessoas mais velhas, o meu conselho é: se querem a vossa família, os vossos jovens ao pé de vocês, têm de reflectir sobre a forma como votam. Pensar melhor nas pessoas que põem no poder, porque se não exigem mais dos políticos e se não exigem escolhas melhores e políticas públicas melhores, Portugal vai tornar-se um país absolutamente lamentável, envelhecido e triste.  

  • ‘Nos últimos dois anos de vida, Salazar viveu num mundo de fantasia’

    ‘Nos últimos dois anos de vida, Salazar viveu num mundo de fantasia’

    Como seria a autobiografia de Salazar, se existisse? Não sabemos, e apenas podemos imaginar. Foi o que fez Carlos Ademar, historiador, escritor e antigo inspector da Polícia Judiciária, que ‘encarnou’ o antigo chefe do Estado Novo e escreveu um livro de memórias na primeira pessoa. Mas com um twist. Nesta Autobiografia do doutor Oliveira Salazar, encontramos o ditador num estado vulnerável, perto do fim, a confrontar-se com o passado e com os seus fantasmas – que são muitos, e implacáveis. O PÁGINA UM falou com o autor sobre esta obra que alia factos com ficção, e que, apesar do título, tem um objectivo bem delineado, muito além do seu cariz biográfico: “destruir” o mito por trás do homem.


    Sei que a ideia para este livro surgiu da Autobiografia do General Franco, de Manuel Vázquez Montalbán, lançada há uns bons anos. Durante este tempo, foi amadurecendo o “projecto”?

    Sim; na verdade, o ‘clique’, digamos assim, foi-me dado pelo Montalbán, quando li essa obra, já para aí há uns 15 anos. Como é natural, eu não queria replicar totalmente a sua ideia. Aquilo que retirei foi confrontar o nosso “ditador-mor”, como eu lhe costumo chamar. E de facto tem razão, porque ao longo dos anos eu andei à procura de… também andei à procura de tempo, que não tinha [risos], porque é uma obra muito exigente em termos de pesquisa. E, portanto, não era coisa que se fizesse em três ou quatro meses. Precisava de muito tempo, e só agora há dois anos, quando mudei de estatuto profissional, é que passei à disponibilidade [risos].  Ainda não estou reformado, mas estou a caminho da reforma.

    Como inspector da Polícia Judiciária?

    Sim. Eu estava na Escola, no agora Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. E dos vários projectos que tinha em mente, agarrei-me a este porque era o mais apaixonante. Foi aquele que me seduziu mais, não obstante o trabalho que teria pela frente. Ao longo dos anos, fui burilando a ideia, para arranjar uma forma de a trabalhar, e não replicar exactamente aquilo que o Montalbán fez. Ele pôs o general Franco a fazer o discurso oficial do regime, e eu também o fiz relativamente ao meu “Salazar A”. Depois, o Montalbán faz o contraditório do discurso. E eu encontrei aqui uma fórmula que acho que não me correu mal, modéstia à parte, porque me agarrei a um facto da vida real do Salazar, que tem a ver com aquele período de 1969/70. Ele fica doente em 1969, e está no hospital durante largos meses, e em Fevereiro regressa a São Bento, já não como Presidente do Conselho. Mas pensa que ainda é, e morre depois em Julho de 1970. Aquele é um período em que ele anda entre a lucidez e a perturbação. Tem momentos de lucidez, que lhe permitem dar entrevistas, designadamente a que deu ao jornalista do L’Aurore, em Agosto de 1969, e preparar com o seu próprio punho um pequeno discurso para dirigir aos portugueses por ocasião do seu 80º aniversário. E eu explorei esta fase da sua vida, colocando-o a fazer o discurso oficial quando está lúcido, e o contraditório quando está perturbado. Portanto, podemos dizer que temos uma autobiografia na verdadeira acepção da palavra, ainda que sempre com aspas, obviamente [risos]. Porque apesar de ser ficção, é sempre a personagem, Salazar, a escrever em ambos os discursos.

    E preferiu fazer esta autobiografia ficcional, em vez de uma biografia, como já fez, por exemplo, com o ‘capitão de Abril’ Vítor Alves?

    Sim. Biografias, já há várias de Salazar. Aliás, saiu agora uma recentemente, da qual soube já depois de publicar o meu livro. Mas há muitas, e há uma monumental que me serviu, de facto, de base de trabalho. Foi feita por alguém insuspeito, no sentido em que era um incondicional apoiante de Oliveira Salazar, e foi seu ministro dos Negócios Estrangeiros na década de 1960; estou a falar de Franco Nogueira. Franco Nogueira tem uma obra monumental de seis volumes grossos só sobre a vida de Salazar. E apesar de ser um seu admirador e da sua obra, não se coibiu de contar determinados episódios que não abonam muito a seu favor. Eu usei sobretudo os dois primeiros volumes da obra, que se reportam às primeiras décadas de vida, e particularmente o primeiro volume, que vai até ao momento em que ele chega a Ministro das Finanças, e não há assim tanta coisa escrita sobre esse período. Esse primeiro volume foi muito importante para encontrar determinadas histórias e episódios que me foram muito úteis para fazer o próprio contraditório; para contrariar o discurso social de Oliveira Salazar.

    Nesse ‘contraditório’, Salazar é muito duro consigo próprio; como se se achasse uma fraude absoluta, desde a sua aparente modéstia às origens humildes. Para construir este monólogo interno, embora se trate de ficção, serviu-se de alguns factos? Há motivos para crer que ele se sentia assim?

    Nós, obviamente, nunca saberemos, porque ele não deixou memórias. Deixou os seus discursos; mas relativamente a essa questão, nunca saberemos. Agora, do ponto de vista da pessoa interessada por este período e por esta personagem, pelo seu tempo e por aquilo que fez e não fez, penso que não é completamente descabido pensar que neste período, particularmente em 1969/70, em que ele estava muito abandonado…  Ele, de facto, nos últimos dois anos de vida, viveu num mundo de fantasia. Havia ministros antigos dele que iam a São Bento pedir autorização para fazer uma viagem a Londres, por exemplo. Esta é uma história contada pelo Joaquim Vieira, se não estou em erro, no livro sobre a governanta de Salazar, a dona Maria. Salazar não diz nada, está naqueles momentos em que está em baixo, e é a dona Maria que se aproxima dele, lhe segreda algo ao ouvido, e depois diz ao ministro que está autorizado a ir a Londres. E ele está sujeito a isto.  Digamos que não ‘enobrece’ muito uma pessoa chegar ao fim de vida e passar por estas situações.  

    Mas relativamente ao que me perguntou, eu não tenho dúvidas de que ele próprio, neste isolamento e solidão, se tenha debatido com determinadas coisas que fez ou que não fez. Sobre o facto de ele ser dissimulado, isso não há dúvida absolutamente nenhuma, e basta dar-lhe o exemplo do assassinato de Humberto Delgado. O livro do Fernando Dacosta, Máscaras de Salazar, fala neste episódio, e depois há o Joaquim Vieira, no livro sobre a Micas, que era uma das raparigas que foi viver lá para casa e manteve uma relação de proximidade com Salazar, que conta a mesma história. Portanto, digamos que há várias fontes que dão a mesma informação.

    Em que caso, por exemplo, isso se observa?

    No caso do assassinato de Humberto Delgado, há um telefonema que Salazar recebe na madrugada, pelas 2 hora ou 3 horas. Ninguém telefonava para São Bento a essa hora. E é a dona Maria que vai atender, e quem estava do outro lado era o Jorge Silva Pais, o director da PIDE. E ele diz que precisa de falar urgentemente com o senhor Presidente do Conselho. Entretanto, a dona Maria chama o doutor Salazar, e uma hora depois estão os dois sentados no gabinete a conversar sobre o que se terá passado naquele dia; coisa tão grave que levou, primeiro ao telefonema, e depois à viagem do Silva Pais a São Bento, e fez levantar Salazar e vestir a sua farpela, porque o recebeu de fato e gravata àquelas horas da madrugada. O que é certo é que Salazar ordena silêncio total sobre o assunto; não se fala nisso, acabou, não sabemos de nada. Entretanto, cerca de um mês e meio depois, os corpos do General Humberto Delgado e da sua secretária aparecem em Espanha e são identificados. E Salazar faz um discurso na televisão dirigido à Nação, dizendo que não sabe nada, e que a ‘nós’ não nos interessava a morte dele; a outros, sim, poderia interessar, mas ‘nós’ não sabemos nada. Ou seja, sobre o ser dissimulado que ele era, não há absoluta dúvida. Sempre foi assim. Aliás, a alcunha que o ‘Salazar B’ lhe aplica, muitas vezes, no livro, é o ‘Manholas’, que era a alcunha do pai dele, António ‘Feitor’. Feitor, porque era feitor da família mais rica entre Coimbra e Viseu, os Perestrelo. Mas ele, além de feitor, também era comerciante, e vendia propriedades num bairro que estava a nascer à volta da estação de comboios da CP de Santa Comba. Comprava e vendia terrenos, e a alcunha de Manholas vem daí.  E depois, penso que é o Henrique Galvão que lhe adapta, e chama a Salazar o ‘Manholas filho’. E eu uso muito, porque de facto, se alguma coisa o caracteriza é isto. Era um ser muito dissimulado, calculista. Conhecia e sabia ler muito bem – enfim, mérito dele – os homens, e sabia muito bem o que fazer e o que não dizer. A gestão dos silêncios, tudo isto ele fazia muito bem, sempre com o objectivo de levar a água ao seu moinho.

    Como foi o exercício de se colocar na ‘cabeça’ de Salazar?

    A parte menos agradável foi fazer o discurso oficial. Mas até isso me deu algum gozo. O discurso oficial é baseado, naturalmente, nos seus discursos, ou de pessoas que estavam muito próximas; no fundo, eram as ideias defendidas e aplicadas pelo Estado Novo. Mas, sobretudo quando estava a rever texto, deu-me algum gozo porque quase que estava a ouvir a voz dele, aquela sibilante que ele tinha por ser de lá de cima da zona de Viseu. Mas muito mais gozo deu-me fazer o contraditório, como será bom de ver.

    E porquê?

    Porque eu sou um amante da liberdade e da democracia, e dá sempre algum prazer arranjar argumentos para destruir determinadas teses. E neste caso, não era muito difícil. Portanto, conseguir ‘destrunfá-lo’, desarmá-lo, e provar por A mais B que ele era mentiroso, aldrabão… Desde logo, tendo em conta o exemplo que lhe dei, e muitos outros episódios. Deu-me, de facto, muito prazer. Enfim, estamos a falar nisto e estão a aparecer-me algumas histórias e descobertas que eu fiz; quer dizer, quem tenha lido a biografia do Franco Nogueira sabia. Eu não sabia porque nunca a tinha lido e li-a de propósito para este trabalho. Mas descobrir que Salazar tinha sido um poeta, nos seus primeiros tempos de professor, e chegou até a publicar um livro de poesia. Eu dou alguns exemplos, que fui também buscar ao Franco Nogueira…

    Essa é uma faceta pouco conhecida dele…

    Pois é [risos]. E aquilo era tão mau [risos]. Ele era um escritor exímio, um grande prosador. Aliás, António José Saraiva tem um texto num extinto jornal, se não estou em erro, em que o elogia como um grande prosador da política portuguesa, talvez o maior, dizia ele. E isso é inquestionável. Mas depois vamos ver aquela poesia, e aquilo é uma coisa aflitiva, até. E desmascará-lo, colocar essa poesia aí, é interessante. Porque ele teve o cuidado, quando começou a perceber que podia vir a ter um futuro político – ele era um tipo inteligentíssimo, obviamente… Estava inserido no meio católico, e começa por fazer o seminário, como é sabido, e depois vai dar aulas para um colégio religioso em Viseu enquanto está à espera de ter idade para tomar as ordens maiores. Depois acaba por não as tomar, e vai para Coimbra para fazer o curso de Direito, e aí já está convencido de que o seu futuro não é ser padre. Ele achava que poderia ser muito mais útil à Igreja na vida política, do que propriamente na vida eclesiástica. E não quer dizer que tenha sido só ele a autoconvencer-se; o director do seminário e do colégio são pessoas com alguma influência na Igreja, e encaminham-no nesse sentido.

    Quando ele chega a Coimbra, leva cartas de referência desta gente toda e é inserido no meio católico de Coimbra, que também era um meio muito forte, sobretudo a Universidade e a Faculdade de Direito, onde ele vai estudar. Rapidamente se destaca, e cá está a vertente “manholas” a vir ao de cima mais uma vez. E veja este exemplo. No primeiro ano em que chega a Coimbra, não tem praticamente contactos nenhuns em na política. Eu recordo que, quando ele chega a Coimbra, estávamos no início da Primeira República, instaurada a 5 de Outubro de 1910, e ele começa as aulas em meados desse mês. Como sabemos, a República caracteriza-se por um sentimento anticlericalista do mais feroz que possamos imaginar. E todo aquele núcleo católico une-se em torno de um inimigo comum, que é a República. No primeiro ano, ele não faz grandes contactos, é sobretudo estudar e aplicar-se para que, no fim do ano, quando as notas fossem conhecidas, ele entrar naquele meio já ‘por cima’; ou seja, não como um soldado raso, mas já um ‘oficial de topo’. Porque ao aperceberem-se das notas e do potencial daquela figura, havia que o catapultar. E ele quando adere, já é reconhecido como alguém que pode vir a ter um futuro na vida política, em defesa da Igreja, para tentar repor o domínio da Igreja, que a existia até à implantação da República, em praticamente toda a sociedade. O papel de Salazar vem a ser este. E à medida que se vai destacando, vai sempre subindo na hierarquia do grupo católico de Coimbra; ao ponto de, já enquanto professor, a Igreja o convidar para abrir e encerrar sessões. Davam-lhe sempre o papel principal, e ele era um ‘mero’ professor de Direito. Portanto, a Igreja tem um papel fundamental na sua ascensão.

    Foi o calculismo de Salazar, como diz, aliado ao seu conhecimento do povo português, que lhe permitiu ser um ditador bem-sucedido?

    Sim, não tenho dúvida absolutamente nenhuma. Eu já fiz essa referência relativamente ao conhecimento do Homem e do povo português, particularmente. Porque ele usa, e bem, o facto de termos vivido uma primeira República muito tumultuosa. Foram 16 anos de verdadeiro tumulto, com 40 e tal governos; não havia estabilidade, e isto foi péssimo para a democracia e para a liberdade. Os republicanos não souberam aproveitar a oportunidade que tiveram e desperdiçaram-na, e ele aproveitou isso. De facto, ele é quem acaba por encabeçar esse movimento. A astúcia dele passa por aí. Quando chama Estado Novo ao regime que criou em 1933, já é um bocadinho isso; ou seja, é acabar com o “estado velho” para começar uma coisa nova. É o mesmo exemplo do que o Sidónio Pais tinha feito, quando tomou o poder num golpe de Estado em 1917 e chamou ao seu regime ‘República Nova’. Esta ideia de começar de novo. E Salazar não escolheu a palavra “República”, porque não o deixava muito confortável. Porque grande parte dos apoiantes dele nem republicanos eram, eram monárquicos [risos]. De facto, quem faz o 28 de Maio, que depois acaba por levá-lo ao poder, é uma mescla, gente de variadíssimas tendências: monárquicos, fascistas, até republicanos moderados havia. Portanto, ele procura não beliscar as sensibilidades que lhe estão mais próximas, e de quem mais o apoia.

    Por volta do 28 de Maio de 1926, ele vai escrevendo também para jornais católicos, vai fazendo crítica particularmente à política económica e financeira, e vai-se tornando também notado pelos escritos que vai produzindo. E há uma altura já em plena ditadura, em que Portugal precisa desesperadamente de um empréstimo. E esse empréstimo é negociado à exaustão, as exigências são muitas porque ninguém confia na ditadura, nem na política económica que estava a ser seguida pelos generais, e o empréstimo acaba por não chegar. Mas ao longo deste processo, Salazar vai sempre criticando duramente o empréstimo. Quando ele é convidado para ser Ministro das Finanças, a Igreja tem um papel importante a catapultá-lo. Mas ele depois vai ter um outro apoio muito importante, que é o Presidente da República, o general Óscar Carmona, que quando vê nele uma solução, afasta os militares das Finanças, e mete Salazar como ministro das Finanças. E quem disse que a pessoa ideal para ocupar o lugar era o Dr. Oliveira Salazar, foi nem mais nem menos do que o Cardeal de Lisboa de então – que ainda não era Manuel Gonçalves Cerejeira, que só vem mais tarde –, António Belo. Mas quando Salazar começa a trabalhar, rapidamente se apercebe que o empréstimo dava muito jeito. Ele tinha escrito vários artigos contra o empréstimo, e para não ficar mal na fotografia, fala com o seu mais antigo e fiel amigo, Mário Figueiredo; um verdadeiro nazi, como se veio a saber pela altura da Segunda Guerra Mundial. Salazar incumbe-o de fazer um périplo pelas principais capitais europeias, no sentido de conseguir o tal empréstimo. Mas tudo em segredo. A verdade é que as coisas não correm bem, e o empréstimo acaba por não vir na mesma. E era suposto que ninguém soubesse, mas alguém soube desse pedido de empréstimo, e fez sair um artigo em Espanha, ao nível das elites. E soube-se assim que Salazar tinha feito aquilo que tanto tinha condenado. E isto é mais uma demonstração da sua forma de ser. Era um tipo que não olhava a meios para atingir os fins, e que tudo fazia para salvaguardar a sua imagem – isso para ele é que era o fundamental. A imagem do pobre, honesto, era sagrada.

    Quando é que acha que ele percebeu que podia mesmo ter um papel importante nos destinos do país?

    É um processo progressivo, que demora algum tempo, mas ele à medida que se vai envolvendo nos meandros políticos de Coimbra, tem um grande amigo que é também um dos grandes responsáveis pela sua inteligência e por aparecer como um hipotético Salvador da Pátria: o então padre Cerejeira. Mal ele acaba o curso de Direito, Cerejeira convida-o para ir para o antigo Convento dos Grilos – que os saudosistas continuam a chamar uma “república”. Mas esse Convento não tem nada a ver como uma república; era uma casa muito grande, cada um tinha o seu espaço, salas de estudo, e ali recebiam amigos e convidados, faziam reuniões do Movimento Católico… Portanto, aquilo era muito mais, e tinha mais condições do que qualquer república coimbrana. Salazar vai para lá por volta de 1915/16 e só sai em 1928. E à medida que se vai percebendo que poderia vir a ser alguém, o padre Cerejeira terá convencido Salazar a procurar o livro de poesia que ele tinha publicado com tanto amor e carinho, e que se chamava “Ais”… E ele recupera os livros todos que consegue, e destrói aquilo. Ao ponto de, quando Franco Nogueira faz o primeiro volume da biografia dele em 1977, ter andado à procura de um livro para ter um poema ou outro para decorar a biografia, e já não encontrou. Falou com velhos camaradas de Coimbra; um ou outro lembrava-se do livro, mas disseram-lhe que tinha desaparecido. E então, os poemas com que Franco Nogueira nos dá uma amostra das “capacidades poéticas” de Salazar, vai buscá-los aos jornais para onde ele tinha escrito alguns poemas. Enfim, este aspecto ilustra bem a importância que a preservação da imagem tinha para Salazar. Ele convenceu-se de que aquele livro poderia prejudicá-lo.

    Não se queria expor ao ridículo…

    A última coisa que ele quereria era isso!

    Recomendaria este livro a alguém que simpatize com Salazar?

    Eu, francamente, recomendaria este livro a muita gente, particularmente a quem nós vamos chamando de ‘saudosistas’. Porque, de facto, de há uns anos a esta parte, está a crescer uma onda de saudosismo, como se o regresso ao passado e a emergência de uma figura do tipo de Salazar fosse a Salvadora da Pátria; como dizem que ele foi quando entrou em 1928. Obviamente, este livro nunca pretendeu ser um livro académico, é um livro de ficção. Embora eu não tenha gostado da palavra “ficção”, que está na capa, e que foi uma exigência do departamento comercial. Mas a verdade é que era preciso pôr ali qualquer coisa para que as pessoas nas lojas soubessem onde arrumar o livro. Romance não era, ficção histórica também não, e então ficou só ‘ficção’ debaixo do título. Mas nunca me agradou.

    Mas se tem uma componente ficcional…

    De ficção só tem a estrutura, tudo o resto é História. Não consultei arquivos, mas fui consultar o que está publicado, e tive o cuidado de ir buscar autores que foram amigos dele e pessoas que colaboraram com ele, assim como pessoas que não gostavam dele. E, portanto, além de serem muitas as fontes, são diversificadas também a este nível. Respondendo à sua pergunta, o livro é recomendado a todos porque de facto dá-nos uma imagem muito mais real do Salazar do que o mito que foi criado. Daí que eu goste de dizer que o livro desconstrói o mito do Salazar. De facto, é disso que se trata. E nos dias de hoje, este livro também nasceu para fazer frente à tal onda de saudosismo que está instalada e que tem vindo a crescer nos últimos tempos. Por isso, para quem quiser conhecer melhor o Dr. Oliveira Salazar – é a minha opinião e eu sou suspeito porque sou o autor –, é um livro altamente recomendado.

  • ‘Portugal, a partir da descolonização, ficou uma potência europeia de terceira classe’

    ‘Portugal, a partir da descolonização, ficou uma potência europeia de terceira classe’

    O novo romance de Jaime Nogueira Pinto leva-nos até ao fim da Guerra Fria, nos anos 1980, para adentrarmos no empolgante e misterioso mundo dos operacionais da CIA. Os passageiros da Sombra é sobre um grupo de agentes que se vê, inesperadamente, numa delicada operação para descobrir os responsáveis pela morte de um representante da Agência na África do Sul, em pleno conflito entre as forças do MPLA e da UNITA. Aquilo que venham a desvendar poderá mesmo pôr em causa o apoio dos americanos aos rebeldes em Angola. Para montar o enredo, que passa também por cidades como Lisboa, Roma e Paris, o escritor, politólogo e historiador recorreu às suas próprias experiências, misturando-as, no entanto, com uma boa dose de imaginação. Afinal, trata-se de ficção. E é através da ficção, aliás, que prefere dar a conhecer o seu passado, já que se diz supersticioso em relação à escrita de memórias. O livro foi o pretexto para uma conversa com o PÁGINA UM, que desembocou num tema no qual é ‘especialista’: a direita, ou “as direitas”, o momento que atravessam em Portugal e na Europa, e o papel que poderão desempenhar em cenários políticos próximos.


    Para este seu segundo romance, porque optou por um enredo assim, envolvendo espiões da CIA?

    Por várias razões da minha vida, nos anos 1980-90, ainda antes do fim da Guerra Fria, com as questões todas ligadas às lutas em África… Aliás, o meu livro Jogos Africanos tem essas histórias todas que serviram um bocadinho de fundo a isto. E eu confesso que a ficção foi uma coisa que eu demorei muito tempo a arriscar-me a escrever, porque tinha a ideia de que a ficção, ou é, de facto, aqueles grandes escritores, como Tolstói, Dostoiévski, Dickens, Balzac, Scott Fitzgerald, Faulkner, enfim, todos esses “grandes”; ou, então, é estas coisas que às vezes vendem muitos livros, mas que a gente lê meia dúzia de linhas e põe de lado. E não me achava nem tão bom como uns, nem tão mau como outros, portanto, nunca me meti nisso. Mas depois, por circunstâncias da minha vida, de certo modo, precisei de escrever um bocado mais sobre a minha história. E escrevi o Novembro. Enfim, estas coisas da ficção… Enquanto nós, na História, na História das ideias e de Portugal – e eu já publiquei muita coisa sobre a História de Portugal do século XX –, temos um guião, e não temos de o inventar, apenas de dar-lhe forma e às vezes investigar alguns pontos; na ficção, somos livres, temos um poder quase divino porque podemos dar largas à imaginação. E este não é propriamente um livro só de imaginação, mas também, e sobretudo, um livro que tem algum conteúdo histórico internacional de todos aqueles finais da Guerra Fria em África, nomeadamente em Angola. E, portanto, a intriga anda toda muito centrada nisso. E a partir daí, falo de mundos, de pessoas, e lugares que eu conheci, e que para a ficção, reinventei. Como dizia Cervantes, do Dom Quixote, na poesia somos livres. Na História, não; temos de seguir os acontecimentos rigorosamente.

    E, portanto, isto é uma mistura, porque também há História, e há personagens aqui que são históricas. Aliás, algumas personagens são figuras públicas, da política. E que, em dadas alturas, ocupavam certos cargos, ou morreram, e por aí fora. Portanto, isso também é uma espécie de pano de fundo. E depois, a intriga, com aquelas cinco ou seis personagens principais, essas são inventadas por mim. São inspiradas, pelo menos em parte, em pessoas parecidas com aquilo; e em meios, ambientes, perfis…. Mas fui eu que as criei, sou eu que as ponho a falar e a pensar, dando-lhes depois uma coerência interna. Como viu, o sistema da divisão da história é assumindo cada uma dessas personagens, em diferentes momentos, e a pessoa sabe que a partir dali, é como se nós fôssemos essa personagem. Achei que era um material com algum interesse, embora eu já o tivesse tratado em livros anteriores, nomeadamente em Jogos africanos, que é um livro de História que vai desde esse período da Independência de Angola e Moçambique até ao fim da Guerra em Angola; portanto, cobre esses 20 anos.

    Mas as personagens também foram inspiradas em pessoas que conheceu?

    Sim, conheci pessoas assim. Depois, há sempre um “problema” para o autor, que acaba por estar um bocado “metido” nas personagens. É quase impossível desvincularmo-nos. Aliás, é aquela coisa que o Prémio Nobel Orhan Pamuk dizia: a ficção ou o romance têm a vantagem de podermos contar as histórias passadas connosco como se tivessem passado com outros, e as histórias passadas com os outros como se tivessem passado connosco. Eu comecei a escrever este livro há cerca de cinco anos, mas depois pelo meio escrevi e publiquei outras coisas; publiquei a biografia do António Champalimaud, um sobre as pestes na altura da covid-19…

    O Contágios.

    Sim. E escrevi um último chamado Hegemonia – 7 Duelos pelo Poder Global. E, portanto, interrompi a escrita deste livro, e entre o ano passado e este, acabei-o. E pronto, como se costuma dizer, está “a andar”.

    Os seus romances acabam por servir um pouco como “memórias”?

    Sim, eu tenho um bocadinho de superstição com as memórias. E acho que esta forma da ficção, que, aliás, já no Novembro usei, dá alguma defesa também. De certo modo, é uma forma de expormos mais facilmente os nossos pontos de vista sobre algumas coisas e de imaginar situações. E a ficção acaba por ser muito criativa. No fundo, cria mundos; o problema, depois, é encontrar essa coerência interna, com as personagens, que às vezes não é fácil. Mas de um modo geral, as coisas que contei, conheci os sítios, os países, conheci pessoas assim – não quer dizer que correspondam exactamente a estas personagens. As personagens juntam pessoas reais e depois acrescentam-se coisas, bem ou mal, piores ou melhores, porque há essa liberdade. Eu, por exemplo, para esta intriga, arranjei um fim que é completamente ficcionado; não aconteceu nada assim. Quer dizer, o livro começa com o aparecimento de um cadáver de um branco numa zona em que não era suposto aparecer, e depois vem-se a saber que ele era uma espécie de representante de uma agência americana de segurança e espionagem. E isso nunca aconteceu, não houve nenhuma pessoa morta nessas condições [risos]. Portanto, isso é completamente ficcionado.

    Este livro também acaba por reflectir os jogos de poder dos bastidores, com os serviços secretos americanos. No fundo, as decisões que são tomadas nas sombras.

    É; sobretudo, as pessoas aqui têm a noção de que as conclusões a que eles cheguem, no fim, têm de as transmitir aos decisores políticos. No fundo, nesta história, vê-se que toda a equipa do Hector Gordon, a equipa que está a trabalhar neste inquérito, para saber o que se passou e perceber como é que lhes desapareceu o representante… Eles sabem que, depois, a decisão política – neste caso, se continuavam ou não o apoio aos rebeldes –, não vão ser eles que a vão tomar. Eles limitam-se a fazer uma investigação, a dar uma opinião, mas, em último caso, é o poder político que decide.

    Durante este período da Guerra Fria, tinha uma postura crítica sobre a política externa norte-americana?

    Vamos lá ver: é evidente que, na Guerra Fria, as pessoas que gostam de viver em liberdade, melhor ou pior, preferiam que acontecesse o que aconteceu, ou seja, que fossem os Estados Unidos a ganhar a Guerra, e não a União Soviética. Isso é uma motivação forte. Quer dizer, se estivéssemos num mundo dominado pela União Soviética, não era possível estar a escrever um livro com críticas à União Soviética [risos].

    Mas como defensor que sempre foi do Império português…

    Sim, isso está reflectido, mas pronto, desapareceu. Portanto, esse também é um ponto importante. Eu fui defensor de Ultramar e fiz questão de lá servir. Mas isso acabou, não vou ressuscitar o Império português. No livro, há uma personagem, o português da história, o Carlos, que de certo modo, claro, encarna alguns pontos de vista meus; alguns pontos de vista até críticos do anterior regime, e de várias coisas… Depois, há um luso-americano, o Frank, mas a personagem portuguesa é o Carlos, que é um conservador que esteve na Guerra do Ultramar, e que depois é apanhado nesta missão toda; está numa “prateleira”, num banco onde está bem, mas não tem nada que fazer. E também teve um problema na sua vida pessoal, portanto, está disponível para se meter nesta aventura. Depois, os outros são americanos, a maioria das personagens.

    E, por exemplo, no livro, quando Carlos critica o “discurso dominante” para o qual diz que os americanos contribuíram, com a exaltação do bloco central, e a “mediocridade” que aponta a esse paradigma… Isto reflecte o seu sentimento pessoal?

    Sim, nós sentimos isso, eu tenho isso até muito tratado, em ficção, no Novembro. A seguir ao 25 de Novembro, quer a Europa quer os Estados Unidos, o que queriam em Portugal era o que aqui está já há 50 anos: o bloco central. Não queriam outra coisa. Não queriam radicalismos, nem uma coisa que fosse para a direita nem para a esquerda, mas exactamente o bloco central, muito representado neste livro pelo doutor Mário Soares.

    E a sua discordância desse sistema não o fez ressentir os Estados Unidos?

    Quer dizer, para os interesses dos Estados Unidos, naturalmente, isso funciona, para o interesse dos portugueses não [risos]. Mas quem tinha o poder… Até porque Portugal, a partir da descolonização, fica uma potência europeia de terceira classe; nem é de segunda, é mesmo terceira classe. Portanto, já não tem capacidade para ter grandes independências nesse sentido. Na Guerra Fria, o dilema era entre os soviéticos e esta solução. Aos soviéticos, de facto, também não lhes interessava muito ter aqui uma espécie de Cuba na península, mas isso foi uma coisa que eu tratei longamente em ficção no Novembro. O Novembro é muito isso, mas aí as personagens são praticamente todas portuguesas. Mas há aqui uma referência, quando o Hector Gordon conheceu o Carlos, exactamente nessa altura em que ele esteve a servir em Espanha, onde coordenava as operações da Agência para Portugal. Foi uma altura em que houve aqui uma intervenção grande dos soviéticos, e dos americanos também; e, depois de outros países europeus, dos franceses, dos alemães. Portanto, andaram aqui muito em cima; a ajudar uns e a contrariar outros, mas foi uma altura muito internacionalizada.

    Agora, aliás, faleceu, Henry Kissinger, uma figura incontornável desta altura, e não só, e que também surge no livro…

    Certo. Eu estive com ele duas vezes em reuniões grandes, mas conheci bem foi o seu mentor, o Dr. Fritz Kraemer, nos anos 1980. É engraçado, escrevi também uma crónica no Observador sobre ele. É um personagem muito interessante, e foi o homem que, de certo modo, descobriu o Kissinger. Como sabe, o Kissinger era judeu alemão e foi com a família em 1938 para os Estados Unidos. E depois, durante a guerra, naturalizou-se americano, alistou-se no exército americano, e veio combater para a Europa. E o Fritz Kraemer, que também teve o mesmo percurso, também era judeu luterano, foi para os Estados Unidos em 1939. O Kraemer era superior do Kissinger, era mais velho, e disse, aliás, uma coisa muito engraçada sobre ele. Quando o conheceu – na altura o Kissinger tinha 19 anos e o Kraemer 36 –, disse que ele ainda não sabia nada e já percebia de tudo. É uma frase gira. E quando o Kraemer morreu, estavam de relações cortadas, mas o Kissinger fez-lhe uma grande homenagem.

    A opinião que tem do Kissinger é mais favorável ou desfavorável?

    É favorável, é um realista político, um teórico do realismo político. Talvez o livro mais interessante dele seja a sua tese de doutoramento, em que ele escreve sobre o Congresso de Viena: chama-se A world restored. E ele presta uma grande homenagem ao Metternich, naquele sentido de Estado. Portanto, no fundo, é um realista político. E tinha, digamos, a ‘carga’ e a tradição alemã, embora ele tivesse saído da Alemanha muito novo, com 15 anos, quando foi para os Estados Unidos com os pais e com o irmão. O Nixon ficou muito impressionado com um livro dele chamado Poder Nuclear e Política Externa, um dos primeiros livros do Kissinger. E o Nixon quis conhecê-lo, e depois quando foi para presidente, chamou-o para National Security Adviser. E já em 1973, passou a secretário de Estado. E serviu também com o Gerald Ford, que era o vice-presidente do Nixon, depois do Watergate; e foi quem ficou quando o Nixon saiu. O Kissinger teve coisas fundamentais, bem-sucedidas, como por exemplo aquela abertura à China. Depois teve também coisas mal-sucedidas, como os acordos de Paris e do Vietname. Passado um ano ou dois dos acordos, os norte-vietnamitas invadiram e conquistaram tudo, portanto… Ele teve êxito nalgumas coisas, noutras não teve, mas tinha de facto uma grande capacidade pensante. Isso também é importante, e actualmente não me parece que exista muito.

    Mas merecia, por exemplo, ter recebido o Nobel da Paz, como recebeu?

    Ele ganhou o Nobel da Paz, mas não só a guerra continuou, como os americanos perderam. Recebeu-o juntamente com o colega dele norte-vietnamita, só que os norte-vietnamitas ganharam a guerra pouco tempo depois. Enfim, eu pensei sempre que este era um mundo bastante interessante, e que eu por várias razões tive oportunidade de conhecer bem.

    Agora estou a escrever um livro sobre os valores europeus, e é uma espécie de cartilha, ao longo da história, da literatura, da política; tenho um guião, não vou inventar. A ficção, claro que também parte sempre da nossa experiência do mundo, quer aquela que é directa, como aquela que é a experiência dos outros, através da leitura, do cinema, do teatro, através de tudo.

    Falemos agora da direita, e do momento que atravessa, começando pela Europa.   

    Hoje, na Europa, há fundamentalmente duas famílias de direita. Ambas são nacionalistas, no sentido em que o valor nação e a independência nacional são denominadores comuns de todas as direitas. E, portanto, até em contraponto com uma certa tendência ou vocação “federalizante” da União Europeia. Esse aspecto nacional é importante. E, depois, acho que há essencialmente duas linhas bastante marcadas nessas direitas. Uma que eu chamaria nacional conservadora, e está mais ligada a valores religiosos, o conceito de família, e é mais tradicionalista. É, por exemplo, o caso dos polacos, que estão muito nessa linha. Portanto, têm muito essa preocupação com esses valores de família, a não permissão do aborto, e da eutanásia, o casamento ser entre um homem e uma mulher, e não ser dois homens ou duas mulheres. Essas coisas tradicionais.

    E depois, há uma direita mais popular, ou populista, se quiser, que está mais preocupada, por exemplo, com questões de imigração e de segurança. É uma direita que eu vejo muito aparecer com estes partidos que têm ganho agora eleições, como o Partido da Liberdade na Holanda, do Geert Wilders, os democratas suecos, ou até mesmo o Rassemblement National, da Le Pen. Esta direita não está muito preocupada com as questões mais tradicionais. Para mim, são estas duas as famílias significativas que aparecem. A grande diferença destas direitas em relação às direitas tradicionais, é que as direitas tradicionais eram muito cépticas e críticas da democracia partidária. E estas não são, pelo contrário. Estas, estão muito preocupadas em dizer que são elas, essencialmente, que representam o povo e o voto popular.

    Mas são acusadas de fascismo.

    Ah, isso os inimigos chamam-lhes de tudo. Mas a direita já há muito tempo que faz parte de governos, nomeadamente na Hungria e na Polónia, e nunca acabou com as eleições. Tanto que na Polónia, agora, perderam as eleições e vão sair. Portanto, isso é uma treta. Os movimentos fascistas tinham a preocupação exactamente de dizer que eram contra a democracia, porque a democracia não era uma expressão da vontade popular, mas sim de grupos de interesses, de oligarquias, e das oligarquias do poder. E as de hoje não, e têm cumprido. Nos Estados Unidos, o Trump esteve quatro anos no poder e não acabou com a democracia. Perderam as eleições e saíram. Podem ter protestado, enfim, alegadamente, que houve fraude, mas na hora de sair, saíram. Portanto, não me parece que essa agenda anti-democrática esteja de pé.

    Quais considera serem os principais factores que explicam este crescimento da direita?

    Este crescimento da direita tem essencialmente a ver com o facto de os partidos tradicionais, e até os partidos conservadores tradicionais, incluindo os democratas-cristãos, não se terem adaptado nem encontrado respostas para problemas novos. E, na Europa, há dois problemas muito fortes – um deles é a desindustrialização, com o fim da Guerra Fria, e a migração praticamente das indústrias todas para fora da Europa, algo que se deu em quase todos os países, com a Alemanha a ser uma das excepções, porque ainda guardou uma certa capacidade industrial, nomeadamente no ramo automóvel. Mas de um modo geral, o aparecimento e o sucesso de novos partidos repousa essencialmente, sobretudo hoje, que não há propriamente grandes influências internacionais… Não há União Soviética, e os Estados Unidos continuam a existir, mas não estão propriamente a fazer partidos onde não faz sentido existirem. Portanto, a força dos novos partidos resulta essencialmente de um vazio criado anteriormente. E aqui em Portugal, lá está, as pessoas também estão um bocado fartas do centrão. Quer dizer, já há 50 anos que o poder tem sido ou dos socialistas, ou do PSD, e a situação também não é brilhante. Se formos ver, há 50 anos, a ordem, até do ponto de vista económico… Nós hoje estamos muito mais para trás. Já fomos ultrapassados por quase todos os países que estavam no âmbito soviético. Portanto, não podemos dizer que toda esta governação tenha sido brilhante. Assim, não é de estranhar que surjam novas forças. Aliás, embora nós não tenhamos em Portugal, pelo menos por enquanto, aqueles problemas que na Europa geraram essa grande força dos novos partidos, como o problema de uma imigração massiva.

    Mesmo assim, a imigração não pára de aumentar…

    Começa a estar um bocadinho, mas ainda estamos muito longe disso. Não temos os problemas de uma imigração, culturalmente, de difícil integração, como a França tem, ou os suecos têm. Não temos isso, e também não temos um problema, por exemplo, de separatismo como tem a Espanha, que dá origem ao Vox. O Vox é exactamente uma resposta dos espanhóis, digamos, “zangados” com o separatismo catalão e achando que o Partido Popular não está a defender capazmente essa unidade da Espanha.

    E em Portugal, o Chega surgiu também como uma forma de a direita se afirmar, depois de décadas de “timidez”?

    É curioso, porque o partido Vox em Espanha nasceu essencialmente de políticos e quadros médios do Partido Popular, e que saíram por não estarem contentes. E aqui, o doutor Ventura vem do PSD. Nestas coisas da política, vai-se também buscar exactamente onde há vazios e, de facto, em Portugal havia um vazio à direita muito grande, que vinha já desde há quase 50 anos. Portanto, nesse aspecto o Chega foi pegar numa série de questões… Enfim, também são partidos de protesto. Às vezes, pode até nem ser tanto o que eles significam do ponto de vista do que querem fazer, mas que aparecem como protesto ao que está. E, portanto, à medida que a situação se agrava, normalmente esses partidos também vão crescendo. É natural, é o que está a acontecer na Europa toda.

    Mas acha que as propostas que apresentam podem realmente solucionar os problemas?

    As propostas são mais ou menos todas iguais. Se for ver o que os partidos dizem que vão fazer, a parte técnica de soluções é mais ou menos igual. O que interessa aqui, acima de tudo, para fazer a distinção da política, são os valores e princípios políticos. Portanto, por exemplo, se é mais partidário da independência nacional ou é mais europeísta, ou se aceita a eutanásia ou se é contra. São essas questões, umas de costumes, outras de política. Porque hoje, há duas coisas que não estão muito em questão, e uma delas é o modelo democrático. Aliás, é muito engraçado, porque os partidos de esquerda, o Bloco e o Partido Comunista, cujas ideias já foram várias vezes postas em prática, não têm essas acusações. Quer dizer, o comunismo teve 70 anos na União Soviética, e não fez grande coisa. Mas aparecem, de certo modo, como se nunca tivessem sido experimentadas. E os partidos que aparecem à direita com alguma radicalidade são imediatamente acusados de fascistas ou de nazis, ou reacionários, extrema-direita. É engraçado, porque não há direita, só extrema-direita, passa-se do centro para a extrema-direita…

    [risos] E parece-lhe que essa retórica, que tem predominado, vai acabar?

    Já acabou. E como vamos ter no próximo ano o aniversário dos 50 anos do 25 de Abril numa situação pós-eleitoral que deve ser relativamente complicada, pode ser uma situação interessante.

    Tem algum palpite em relação ao resultado das legislativas?

    Eu não tenho muitos palpites [risos]. Não, não tenho. Essas sondagens que aparecem valem o que valem, mas não me parece também que sejam absurdas. Ter os dois partidos principais, PSD e PS, mais ou menos empatados, haver uma subida forte do Chega e uma quebra do Partido Comunista, uma manutenção, mais ou menos, dos outros… Parece-me relativamente normal que sejam essas as posições.

    Se Portugal seguisse a tendência da Europa, o Chega talvez acabasse por formar governo… 

    Não sei não, porque na Europa, governos dessa linha da direita só há na Itália, na Hungria… Na Holanda ainda não fizeram Governo, mas é natural que consigam também, têm 37 deputados mais ou menos.  

    E na Alemanha, a direita também está a crescer…

    Sim, na Alemanha o AfD também subiu bastante. O que vamos assistir é uma coisa muito interessante, que é: fora da esquerda, não se poderá fazer governos sem esses partidos de direita entrarem ou a apoiarem. Essa é que será a situação. Não quer dizer que eles sejam Governo, mas não se vai governar sem eles, e isso é um ponto interessante. Essa é que é será a novidade.

    As fotografias são da autoria de Rui Ochoa