O partido Reagir Incluir Reciclar (RIR) concorre pela primeira vez a eleições para o Parlamento Europeu. Na estreia, o partido tem como cabeça-de-lista a sua presidente, Márcia Henriques. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a líder do RIR acusa Portugal de estar a falhar na recepção aos imigrantes e refugiados, devido à desorganização e burocracia. O partido defende que sejam aplicadas penalizações aos Estados-membro que falhem nos procedimentos de recepção aos imigrantes. Outra das propostas do RIR é que haja uma harmonização dos horários de trabalho entre sector público e privado, em Portugal, e também a nível comunitário. Márcia Henriques aproveitou para deixar críticas aos principais canais de televisão, por discriminarem os partidos sem assento parlamentar. O RIR foi um dos partidos que reclamou junto da Comissão Nacional de Eleições, a qual deu razão às diversas forças políticas. Esta é a terceira entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.
Para o partido RIR-Reagir Incluir Reciclar, estas eleições para o Parlamento Europeu representam uma estreia. É a primeira vez que o partido concorre às eleições europeias. Para Márcia Henriques, presidente do RIR e cabeça-de-lista nestas eleições, trata-se de “um marco histórico” para o partido.
O partido considera o tema das migrações como o principal, nestas eleições, e deixa críticas a Portugal nesta matéria. Segundo Márcia Henriques, “não somos um exemplo” em matéria de acolhimento de imigrantes e refugiados.
“Primeiro, e antes de tudo, nós temos de conseguir colocar a AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] a funcionar”, afirmou em entrevista ao PÁGINA UM. Também defendeu que Estados-membro “que não cumpram a legislação e não deem resposta eficaz e rápida aos pedidos de asilo e autorizações de residência” sejam penalizados, eventualmente com “retenção de fundos” europeus. O RIR considera que Portugal deve ter como prioridade o “reforço de meios” para ajudar à integração de imigrantes.
Márcia Henriques, presidente do partido RIR. (Foto: PÁGINA UM)
Outras das prioridades apontadas pelo RIR é a harmonização dos horários de trabalho a nível comunitário. “Acho que é importante a necessidade de convergência dos horários de trabalho das pessoas. Já a nível interno existe uma diferença entre o sector público e o sector privado”, com os funcionários públicos a trabalhar 35 horas semanais face às 40 horas praticadas nas empresas privadas.
Por outro lado, o RIR defende também que haja um foco no combate à corrupção em Portugal e ao nível da União Europeia. “O grau de corrupção é grande. Tem que ser combatida e tem que ser falada”, disse Márcia Henriques.
Em termos de cobertura da imprensa nestas eleições, o RIR foi um dos partidos que reclamou junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) devido à discriminação feita pelos principais canais de televisão, que chamaram para debates apenas os partidos com assento parlamentar em Portugal, mesmo aqueles que não têm representação no Parlamento Europeu. A CNE tem dado razão às diversas forças políticas, já que as estações de TV estão a violar a Constituição aproveitando a existência de uma lei que é vista como inconstitucional.
“A CNE acabou por nos dar razão, [diz que] constitucionalmente é um atropelo, mas o efeito prático disso é nenhum porque as televisões dizem que é um critério editorial e que não podem deixar de fora partidos com assento parlamentar, porque têm uma grande percentagem dos votos. Estamos sempre de mãos atadas”, afirmou a presidente do RIR.
(Foto: PÁGINA UM)
Se, da parte dos canais privados, o RIR entende a posição, já “da parte da RTP não compreende”. Márcia Henriques apontou que a RTP apenas faz o debate dos pequenos partidos “só para não ser atacada”. “Numa corrida, partimos todos da linha de partida. Aqui não. Está inquinado”, desabafou. Comentando também o facto de grandes órgãos de comunicação social ignorarem alguns acontecimentos de relevo, incluindo internacionais, Márcia Henriques foi taxativa: “os meios de comunicação social acabam também por governar os países”.
Esta é a terceira entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.
N.D.: Uma falha técnica do equipamento de gravação afectou algumas das entrevistas do HORA POLÍTICA. A gravação da entrevista à cabeça-de-lista do RIR é uma das que apresenta pequenas falhas pontuais. Pelo facto, pedimos as nossas desculpas aos leitores e à entrevistada.
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Especialista em alterações climáticas e sustentabilidade, Duarte Costa, 35 anos, é co-presidente do Volt Portugal e primeiro candidato na lista do partido nas eleições europeias de 2024. Fervoroso defensor de uma União Europeia federal, é também um dos embaixadores do Pacto Europeu para o Clima e adepto das políticas de sustentabilidade. Para combater a pobreza, defende a criação de um Rendimento Básico Europeu que complemente os rendimentos dos trabalhadores com baixos salários. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o candidato do Volt Portugal deixa fortes críticas à imprensa, incluindo pela discriminação que faz no âmbito dos debates relativos às eleições europeias. Esta é a segunda entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.
Uma União Europeia federal e mais democrática. Esta é uma das máximas do programa eleitoral do Volt Portugal que concorre às eleições europeias de 2024. Para Duarte Costa, co-presidente do partido e cabeça-de-lista do Volt Portugal às europeias, só com uma União Europeia federal se pode, não só melhorar o nível democrático, mas também, por exemplo, combater a corrupção a nível europeu e nos Estados-membro.
Segundo Duarte Costa, não se trata aqui de diluição da soberania nacional de cada país, mas a “passagem para um nível partilhado de um conjunto de responsabilidades públicas e dos Estados, que não são mais eficazes se forem tomadas a nível nacional”.
Defende que, com uma União Europeia federal, “nós ganhamos em democracia e ganhamos em eficácia”. Isto porque, para o Volt, “falta substrato democrático na União Europeia”, a começar pelo facto de existir uma Comissão Europeia que não é eleita e que tem muito poder. Por isso, para Duarte Costa, o “federalismo” permite que os portugueses de mais europeus tenham “uma voz mais directa na União Europeia”.
Ainda no âmbito do reforço da democracia, o Volt propõe a “criação de assembleias de cidadãos deliberativas”, com poder vinculativo, e que permitirão a verdadeira “criação de uma democracia europeia”, que irá proteger “a União Europeia de avanços populistas de que a Europa está cada vez mais refém”.
Mas o partido defende outras medidas, como a introdução de um Rendimento Básico Europeu para apoiar pessoas que trabalham mas que têm rendimentos baixos que as colocam num nível de pobreza. Segundo Duarte Costa, seria abrangida 13% da população da União Europeia e, a nível nacional, a medida iria beneficiar “quatro milhões de portugueses”.
Duarte Costa, Volt Portugal. (Foto: PÁGINA UM)
Outra das bandeiras do Volt é na área da defesa da sustentabilidade e de combate às alterações climáticas. O partido defende medidas que assentem numa transição justa para uma economia descarbonizada e em metas específicas para a diminuição das emissões.
Mas Duarte Costa considera que, apesar de o Volt apresentar medidas concretas no seu programa eleitoral, não as consegue transmitir através dos media mainstream. “Em Portugal tem havido uma barreira muito blindada contra o Volt, para que as pessoas não possam conhecer o Volt”, acusou o dirigente político.
Lembrou que o partido apresentou uma queixa junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) contra as três estações de televisão generalistas e a CMTV por excluírem o Volt dos debates eleitorais. “A CNE emitiu um parecer que nos foi favorável de que há um tratamento desigual da imprensa que é inconstitucional”, frisou. Mas vale pouco, já que, após a entrevista ao PÁGINA UM, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) descartou qualquer intervenção do regulador para alterar a composição dos debates.
“Há partidos que têm muito mais cobertura que outros. A CNE deu-nos razão mas continuamos na mesma”, afirmou o candidato. Assim, o Volt admite que pode vir a “fazer uma denúncia na Comissão Europeia contra o Estado português por não estar a assegurar igualdade de cobertura de candidaturas num acto eleitoral”.
“Tem faltado levarmos o estado de direito a sério”, indicou, acrescentando que é visível que há “candidatos associados a cadeias de TV”, nomeando o caso de Sebastião Bugalho, cabeça-de-lista da coligação Aliança Democrática, que entende que foi favorecido em pelo menos um debate.
Duarte Costa e Rhia Lopes, cabeças-de-lista do Volt Portugal nas eleições europeias de 2024. (Foto: D.R./Volt Portugal)
Duarte Costa lamentou o facto de “o jornalismo estar muito dependente de um conjunto de órgãos [de comunicação social] muito reduzido, que por vezes têm interesses políticos estabelecidos”. E afirmou: “nestas eleições para mim está muito claro que os critérios editoriais não têm o nível de imparcialidade que é esperado”.
Para que exista mais pluralidade nos media na Europa, o Volt defende que “a União Europeia avance para criar um canal europeu”, com informação e outros tipos de conteúdos que contrarie o actual “centralismo de órgãos de comunicação social e narrativa única sobre as coisas”, que criam um “campo aberto para a manipulação de massas”. Para Duarte Costa é necessário garantir que existam na Europa “múltiplas fontes de informação e ninguém a conseguir controlar a narrativa”.
Esta é a segunda entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.
N.D.: Por motivos técnicos, a gravação apresenta falhas pontuais breves. Pelo facto, pedimos as nossas desculpas aos leitores e ao entrevistado.
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Nascida em Luanda há 47 anos, Ossanda Liber lidera a mais jovem força partidária em Portugal. O partido Nova Direita foi inscrito junto do Tribunal Constitucional em Janeiro deste ano, ainda a tempo das legislativas do passado mês de Março. Nesta entrevista, a cabeça-de-lista do Nova Direita ao Parlamento Europeu defende um modelo de defesa comum na União Europeia e uma independência face ao poder dos Estados Unidos. Também alerta para a tentativa de erosão da soberania dos países europeus. Pelo meio, deixa fortes críticas aos maiores órgãos de comunicação social, acusando-os de estarem a boicotar os partidos de direita de modo “propositado”. Esta é a primeira entrevista da HORA POLÍTICA que pretende conceder voz aos cabeças-de-lista dos 17 partidos e coligações que concorrem às Europeias, em eleições marcadas para 9 de Junho. As entrevistas são divulgadas, seguindo a ordem crescente de antiguidade, na íntegra em áudio, através de podcast, no jornal e na plataforma Spotify.
Sem ‘papas na língua’, Ossanda Liber é directa nas críticas ao actual panorama político em Portugal e na União Europeu, e deixa um alerta sobre uma “tentativa de erosão da soberania dos países europeus”.
Para a cabeça-de-lista do partido Nova Direita às eleições europeias, há uma ideia de se criar “uma espécie de Estados Unidos na Europa”, uma visão federalista da União Europeia que o seu partido rejeita.
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, para a secção da HORA POLÍTICA, Ossanda Liber elege a defesa da soberania como a primeira bandeira do Nova Direita. A segunda bandeira é a criação de uma política comum de defesa a nível comunitário, e a terceira é a defesa da liberdade de expressão.
“As pessoas não se dão conta da transferência de poder [para a União Europeia] que fizemos ao longo dos anos em troca de dinheiro. No fundo, estamos a ser pagos para nos calarmos e para não fazermos nada”, afirmou.
Em matéria de defesa, a líder do Nova Direita quer uma “NATO Europeia” complementada com acordos bilaterais, nomeadamente com os Estados Unidos. Ossanda Liber destacou que a “NATO é financiada e dominada pelos Estados Unidos” e que “serve os interesses estratégicos e orçamentais” daquele país. Por isso, defende que, na Europa, “temos de ter a nossa própria defesa e fazer acordos bilaterais”. Por outro lado, rejeita que a União Europeia “seja arrastada para guerras”.
Ossanda Liber (Foto: PÁGINA UM)
Destacou que a sua “terceira grande preocupação é a liberdade de expressão”, apontando que “a supressão do debate de ideias é algo que se sente diariamente”. Contudo, acredita que a cultura de censura e cancelamento tem os dias contados: “o ciclo da loucura e da irracionalidade, está a acabar, com a emergência de movimentos conservadores”.
Aliás, para a líder do Nova Direita, “há pânico na Europa de que o equilíbrio do poder mude”, com os votos a penderem para a direita conservadora, o que pode levar a que comece a emergir informação sobre mais casos de opacidade. Neste ponto, alertou que está a haver uma normalização da corrupção e da falta de transparência na política em Portugal e na União Europeia que “está a ser vítima de grandes movimentos de corrupção”, incluindo Qatargate, além da investigação que tem como alvo a própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Sobre o cenário político nacional, Ossanda Liber defende que Portugal ficou dominado nos últimos anos por uma ideologia de esquerda radical que tomou conta de instituições e dos maiores órgãos de comunicação social. E foi particularmente dura nas suas críticas à imprensa mainstream, acusando-a debloquear as visões e ideias de partidos da direita: “a imprensa não está a prestar um bom serviço à democracia”.
Outras prioridades do Nova Direita passam por uma mudança na política energética, já que o partido defende a opção do uso da energia nuclear, e também porque considera que as metas propostas no âmbito de políticas de sustentabilidade ambientais são impossíveis de alcançar, como o fim dos carros a gasolina e gasóleo.
(Foto: PÁGINA UM)
Nesta entrevista, Ossanda Liber comenta ainda alguns episódios mediáticos em que se viu envolvida, incluindo o mais recente nas redes sociais, após ter feito uma publicação com uma foto sua empunhando uma arma, tirada nas comemorações do Dia da Marinha, em que sugeria que a sua missão é “fuzilar a esquerda”.
Esta é a primeira entrevista do HORA POLÍTICA, que visa entrevistar os 17 cabeças-de-lista dos partidos que concorrem às eleições europeias que, em Portugal, têm data marcada para o dia 9 de Junho. A publicação obedece a uma ordem cronológica, do partido mais jovem ao mais antigo.
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Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
O silencioso flagelo que é a violência obstétrica ganhou mediatismo com a pandemia da covid-19 – uma altura em que a Direcção-Geral da Saúde emitiu recomendações que violaram grosseiramente os direitos das grávidas, sem qualquer fundamento científico e até em contracorrente com a Organização Mundial da Saúde. Além de ter sido vedado às grávidas o direito a um acompanhante, tiveram ainda de suportar o trabalho de parto de máscara, e muitas foram até separadas dos seus bebés. Mas ainda hoje a DGS emite orientações sobre procedimentos no parto que configuram violência obstétrica. Contudo, como explica a advogada e activista Mia Negrão, as grávidas já há muito que eram sujeitas a protocolos e intervenções desadequadas, tendo, em alguns casos, sofrido danos físicos ou emocionais permanentes. A autora do livro O meu parto, as minhas regras e fundadora do projecto Nascer com Direitos pretende devolver a todas as futuras mães a possibilidade de fazer escolhas informadas para que a gravidez, o parto, e o pós- parto sejam menos traumáticos e medicalizados, e mais humanos e respeitados.
Como advogada e activista, fundou o projecto Nascer com Direitos e lança agora o livro O meu parto, as minhas regras, que pretende consciencializar as mulheres para os seus direitos na gravidez e no parto. Porque é importante falar sobre isto?
Em primeiro lugar, porque a violência obstétrica existe, e as mulheres estão muito pouco informadas. Estamos em 2024 e já se fala de violência obstétrica noutros países, como a Venezuela, desde 2007, e nós só começámos a falar sobre isto mais ou menos em 2020; portanto, estamos com algum atraso. As mulheres vão para os hospitais sem saberem quais são os direitos que têm na gravidez e no parto, e até depois no pós-parto, pelo menos durante o tempo em que estão internadas, naqueles dois a três dias após o parto ou cesariana. E, no fundo, isto é importante porque quando as pessoas não conhecem os seus direitos, também não sabem que opções têm, e acabam por fazer aquilo que está protocolado pelos hospitais e pelos profissionais de saúde sem questionarem. E, depois, quando sentem as consequências disso, nomeadamente para a própria saúde ou para a saúde dos bebés, é que percebem que foram vítimas de violência obstétrica ou de violência neonatal e que, afinal, tinham direitos e que esses direitos não foram respeitados.
O termo violência obstétrica é, provavelmente, ainda desconhecido por muitas pessoas. Também é algo polémico entre os profissionais de saúde. Como é que se pode definir a violência obstétrica?
A violência obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres. Na lei venezuelana de 2007, eles conceptualizam a violência obstétrica – e foi a primeira lei a conceptualizá-la –, e dizem que é feita por profissionais de saúde. Ou seja, é a apropriação dos corpos e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde. Não concordo que seja só por profissionais de saúde, na medida em que temos entidades de saúde que também praticam violência obstétrica, porque são elas que emitem as recomendações, orientações, etc., e que muitas vezes já estão a limitar os direitos das grávidas, e até dos bebés, e já estão a protocolar situações que não deviam estar protocoladas, nomeadamente, tudo aquilo que tem a ver com intervir em gravidezes ou partos de grávidas de baixo risco, como acontece hoje. Ainda agora, há dois ou três dias, foi actualizada uma orientação da Direcção-Geral da Saúde [DGS], em que continuam a recomendar, por exemplo, a episiotomia [corte cirúrgico no períneo], a canalização da veia, ou outras coisas para as quais não há evidência de que haja benefícios em gravidezes de baixo risco. Obviamente, o que devíamos fazer era uma aferição do risco à partida, para podermos distinguir uma grávida de risco e uma grávida de baixo risco. E as grávidas de risco, de facto, podem ter de ter algumas intervenções. Mas não sei até que ponto devem estar protocoladas porque, na verdade, mesmo nas grávidas de risco, há muitos aspectos em que o risco pode ser diferente. Por exemplo, uma pode precisar de um antibiótico, e outra precisar só de uma vigilância mais apertada. Portanto, protocolar estas coisas nem sempre é boa ideia.
Até porque, como refere no livro, uma primeira intervenção que até não seria de facto necessária, muitas vezes dá azo a uma “cascata de intervenções” – e é algo que pode começar com uma coisa aparentemente tão simples como confinar a grávida à cama, certo?
Sim, e é uma coisa muito comum nos hospitais em Portugal. Aliás, eu ainda há pouco tempo contava esta história: tenho uma amiga que estava grávida e quando fui ter com ela estava com outra amiga que já tinha tido um bebé no hospital onde ela também ia ter o bebé. E eu disse que nesse hospital há muita violência obstétrica, e que eu conheço bem, e a outra rapariga disse que tinha adorado o parto e que foi maravilhoso, foi muito respeitada, e foi tudo como ela quis… E eu perguntei-lhe em que posição é que tinha parido – que escolheu para parir – e ela ficou a olhar para mim sem perceber muito bem a pergunta, e lá disse que tinha sido numa posição “normal”, ou seja, deitada. Na verdade, ela nem sequer conhecia outras opções. Portanto, como é que ela acha que a vontade dela foi respeitada? O que aconteceu foi que afunilaram todas as opções e levaram-na a acreditar que aquela era a única opção que ela tinha. E, como ela não tinha outras ideias, conhecimento, nem qualquer tipo de informação, achou que aquilo era o normal. Ela não sabe que a experiência de parto dela podia ter sido muito melhor se ela tivesse mais informação, porque depois, claro, fizeram uma episiotomia, e o bebé foi tirado com ventosas, etc., mas “correu tudo bem”. Ela teve uma experiência positiva, e ainda bem, porque há muitas experiências com violência obstétrica que são positivas na mesma; a violência obstétrica é objectiva, mas a experiência de parto é subjectiva. Portanto, ela teve uma experiência boa, mas houve violência obstétrica, porque ninguém a informou de nada. Basicamente, obrigaram-na àquilo; só que ela não se sentiu obrigada, porque como ela não conhecia outras opções, e foi jogando o jogo deles.
E porque é que acha que as normas não são actualizadas de forma a corresponderem às evidências científicas actuais? Porque é que as nossas autoridades de saúde não alteram os protocolos?
Porque nós estamos muito atrasados relativamente às evidências científicas. É muito difícil actualizarmos profissionais mais antigos, que estão habituados a fazer as coisas de uma certa forma, porque aprenderam daquela forma. Os jovens que estão agora a acabar o curso de medicina ou de especialidade já vêm com outras ideias e já querem mudar um bocadinho as coisas. Mas, efectivamente, continuamos a ter muitos médicos que ainda fazem as coisas à maneira antiga. Portanto, ou nós temos uma renovação de gerações, ou então é muito difícil que estas gerações mais antigas de profissionais de saúde consigam actualizar-se, porque eles não sabem fazer as coisas de outra forma. Aprenderam assim, e acham que é assim que está correcto. É muito difícil, por exemplo, dizermos a um obstetra que não deve fazer episiotomia, porque não basta não fazer episiotomia. E o que eles dizem é que ela é necessária, e que sempre que fazem é por necessidade. E eu acredito que eles acreditam nisso! Porque se eles não mudarem toda a assistência ao parto, aquela episiotomia, para eles, vai ser necessária, efetivamente, porque eles não conhecem estratégias. Se têm mulheres sempre a parir em posição sempre litotómica – ou seja, deitadas – é óbvio que eles vão achar que a episiotomia é necessária, porque não sabem que há uma alternativa – que é terem as mulheres em liberdade, a parir na posição em que elas escolhem, e darem informação a estas grávidas para elas saberem que podem escolher e que têm direitos.
Os jovens que estão agora a formar-se já se actualizam mais, procuram as evidências científicas, e já vivem num mundo também mais digital, onde podemos encontrar mais facilmente essas evidências. Para eles, é mais fácil alterarem as práticas; até porque já temos vários obstetras no Instagram, no YouTube e noutras plataformas, a informar sobre um parto respeitado – aquilo a que se chama o parto humanizado – e uma boa assistência ao parto baseada em evidências. Portanto, fazendo esses cursos e tendo acesso a essa informação, eles mais facilmente transpõem isso para a sua prática clínica. Pelo contrário, os profissionais mais antigos têm muito mais dificuldade, por um lado, em encontrar esta informação, e depois em aplicá-la, porque é muito difícil mudarmos os protocolos que aplicámos a vida toda e que achamos que têm sucesso porque as pessoas dizem que estão satisfeitas. Só que agora temos cada vez mais grávidas a conhecer os seus direitos, e que estão insatisfeitas e reivindicam e dizem que não querem assim. E esses médicos, depois, não ficam muito contentes com isto. E também por isso há tantas cesarianas.
Aliás, salienta que este é um problema sistémico e não individual, já que os profissionais de saúde não têm consciência de estarem a praticar violência obstétrica porque estão a fazer aquilo que acreditam ser o correcto. Também será assim com o consentimento informado, que crítica no livro, dizendo que não devia resumir-se a assinar um papel? Como é que acha que deveria funcionar o consentimento informado no parto?
Não sou eu que acho; isto consta em legislação nacional, internacional e em convenções – o consentimento informado é um direito humano. O consentimento informado parte da premissa de que temos direito a não ser sujeitos a tratamentos indesejados. E indesejados abrange tudo, independentemente de aquilo me salvar a vida ou não – se eu não quiser aquele tratamento, eu tenho direito a recusá-lo. O que acontece é que, para haver consentimento informado na área da saúde, a pessoa precisa de ter informação para tomar decisões, e, logicamente, uma pessoa não tem de saber tudo sobre aquela área de especialidade – neste caso, obstetrícia. E a questão aqui é: onde é que a pessoa vai buscar informação, se os profissionais de saúde se recusam a dar informação, como acontece, muitas vezes, ao longo da gravidez? Quando a grávida quer falar sobre o parto na consulta, os médicos dizem-lhe que ainda é muito cedo, que ainda faltam muitas semanas, e mais tarde falarão sobre isso. E depois, nunca querem falar. Isto acontece imenso. Portanto, não há informação. As grávidas muitas vezes vão até buscar informação à Internet, e não se sabe se as fontes são fidedignas, e se aquilo é aplicável àquele caso, porque as grávidas são todas diferentes. E às tantas, como os profissionais de saúde não querem dar informação isenta e cientificamente válida, há aqui uma colisão, porque as grávidas também não têm a certeza daquilo que leram. Muitas vezes, têm planos de parto em que não sabem muito bem o que aquilo significa, mas como têm medo, escrevem que não querem um determinado procedimento, e depois isto é um grande problema. Portanto, cabe aos profissionais de saúde dar informação às grávidas para elas poderem decidir se querem ou não aquelas intervenções.
Além disso, é necessário que haja espaço e tempo para que elas possam decidir o que querem, porque se chegarem ao pé de uma grávida no momento do parto e perguntarem-lhe se quer fazer um procedimento, a grávida não tem tempo para pensar e está a sentir-se pressionada. O modelo ideal é que o médico lhe dê informação com tempo e espaço para ela decidir. E claro que a informação que tem a ver com o parto deve ser dada durante a gravidez, já que nós sabemos que o parto terá de acontecer; se não for um parto, será uma cesariana. E é preciso prestar esclarecimentos: se a grávida sentir que não dispõe de toda a informação para decidir, e precisa de saber mais, o profissional de saúde tem de esclarecer a grávida, e de respeitar, depois, a decisão dela. Se ela não quiser uma intervenção, ela não lhe pode ser feita. O que acontece nos hospitais em Portugal é que dão-nos um formulário de consentimento informado quando entramos na maternidade e dizem que é obrigatório assinarmos para nos poderem internar. E a grávida assina o papel, que às vezes até está em branco e só apontam depois o que é que fizeram, como ventosas, cesariana, ou seja o que for. Mas aí, a grávida já assinou, e muitas vezes nem sequer leu porque estava com contracções e assinou sem saber sequer o que está a assinar. Aquilo que lhe disseram é que é necessário para ela ficar internada. Ora, isto não é consentimento informado de forma alguma.
Também refere no livro um inquérito da The Lancet, de 2021, em que Portugal surge mal posicionado, entre 12 países europeus, na qualidade dos cuidados maternos e neonatais durante a pandemia. Este é, de facto, um problema maior em Portugal do que noutros países?
Sim; esse inquérito é o espelho daquilo que se passa em Portugal. Neste momento, estamos no pódio dos piores, embora a Ordem dos Médicos e os próprios médicos queiram continuar a dizer que somos dos melhores países em termos de competências a nível obstétrico. E somos, tecnicamente; temos profissionais muito bons, mas que estão a ser mal utilizados porque utilizam-nos em partos de grávidas de baixo risco. Em partos de alto risco é óptimo termos obstetras tão qualificados – porque os temos –, mas não precisamos deles nos partos em que não é necessário sequer ter obstetras. E o problema é que isto leva à medicalização e à instrumentalização do parto; e temos ainda uma taxa altíssima de partos instrumentados e de episiotomias. Nesse inquérito da Lancet, aparecemos como os piores também a nível do consentimento informado – as mulheres não são envolvidas nas escolhas, tudo lhes é imposto. Ou seja, apresentam-lhes as intervenções como obrigatórias, e normalmente é isso que fazem. Até porque as grávidas, quando apresentam um plano de parto, há sempre quem lhes diga que, se o querem dessa maneira, têm de procurar outro hospital, porque naquele não fazem assim; e que ali é obrigatório fazer isto ou aquilo. E não é assim. Em Saúde, nada é obrigatório; nós é que decidimos, o corpo é nosso. Mas em Portugal ainda temos muito esta ideia das intervenções obrigatórias. Só que as grávidas têm estado cada vez mais informadas e, portanto, a recusar cada vez mais procedimentos que sabem não serem necessários; ou que, pelo menos, à partida não são necessários. E isto tem criado algum backlash por parte dos profissionais de saúde, porque as grávidas estão a fazer exigências às quais eles não conseguem dar resposta nos hospitais que temos hoje. E está a ser difícil porque temos um desencontro de gerações. A geração que está agora a ter bebés é a geração dos millennials, e a geração que está a prestar apoio ao parto é muito mais velha, são os boomers. Portanto, nós temos informação e queremos fazer uso dela, mas depois quando chegamos aos hospitais, eles dizem que não vão fazer assim, porque não sabem sequer fazê-lo.
E esta iliteracia que ainda existe sobre estas matérias, não começa desde logo na pouca informação que existe sobre a saúde feminina e o ciclo menstrual? Porque o conhecimento sobre os ciclos, por exemplo, é importante até para datar a gravidez de forma rigorosa. Se for mal datada, pode criar ansiedade e a grávida e os profissionais de saúde podem achar, por exemplo, que já se ultrapassou as 41 semanas de gravidez, e querer induzir o parto, quando não é esse o caso, e não haveria realmente necessidade de intervir.
Sim, sobre o ciclo menstrual e tudo o resto. Agora, as coisas já estão a mudar um bocadinho, até porque a Patrícia Lemos, por exemplo, escreveu um livro infanto-juvenil sobre o período, e esta informação já tem chegado mais às camadas mais jovens… Mas, de facto, ainda vivemos numa sociedade extremamente católica, em que nos incutem este nojo do nosso próprio corpo. O nosso corpo acaba por ser para o desfrute alheio, para outras pessoas; primeiro, para servir de cabide, porque temos de ser bonitas e usar roupas bonitas, justinhas, mas também não demasiado, porque senão, enfim, vamos para o inferno e coisas assim do género. E, depois, incutem-nos muito esta coisa de não nos podermos tocar, não podermos olhar para o sangue menstrual, não podermos cozinhar quando estamos menstruadas… Enfim, é tanta coisa. E o que é facto é que quando eu comecei nesta área, há quase uma década, lembro-me de as grávidas dizerem, muitas vezes, que não queriam ter um parto vaginal, ou que tiveram um parto vaginal e sabiam que as coisas depois nunca mais voltam a ser iguais no sexo. Porque, supostamente, ficam com a vagina muito larga; diziam elas que é porque a vagina dilata até 10 centímetros. E eu explicava-lhes que não é assim, é o colo do útero que dilata, mas a vagina até pode dilatar mais, e não é por aí. Mas isto para dizer que as mulheres não sabem a distinção entre vagina, colo do útero, útero. Então, quando alguém diz que uma grávida está com uma dilatação de cinco ou seis centímetros, elas não sabem, na verdade, o que é que está a dilatar. Elas nunca tocaram, nunca viram o colo do útero nem sabem para que serve. Então, é sempre esta coisa de só os médicos é que veem e que tocam, e nós estamos completamente na ignorância.
Claro que se nós, desde miúdas, aprendemos que é nojento tocar no corpo, e que o sangue menstrual é nojento; e só podemos aprender as coisas que lemos naquele caderninho da marca de tampões que na altura era a mais utilizada, e que dizia que o ciclo menstrual é assim: ovulamos no dia 14 e depois vamos menstruar no dia 28… Isto não é conhecimento absolutamente nenhum. Eu cresci nos anos 90, e ainda me lembro de querer imenso saber como é que funcionava o ciclo menstrual, e de ir ver às revistas para tentar perceber, e dizerem sempre que ovulamos no dia 14. E eu pensava, como é que isto pode ser assim? Será que somos todas assim tão certinhas? E então, quando há um atraso, é uma coisa anormal, é um problema de saúde? Até que depois vim a descobrir que isto não é verdade, não é assim que funciona; o corpo não é propriamente um relógio que está todo cronometradinho, a ovular e a menstruar como se fossemos todas iguais. Mas sim, eu abordei a questão da data prevista de parto porque as pessoas ainda confiam muito nesta sabedoria de que nós ovulamos todas no 14º dia do ciclo. E eu tenho uma amiga que engravidou e ovulou por volta do 46º dia do ciclo, porque teve um ciclo muito mais longo devido a uma questão de saúde. E os profissionais de saúde olharam para ela com imenso desdém, disseram que era impossível. E ela sabia que estava certa, mas, por causa disto, toda a gravidez dela foi mal datada porque os médicos não acreditaram no que ela disse. Ela sabia exactamente quando é que tinha ovulado e engravidado, mas os médicos fizeram tábula rasa disso, fizeram as contas deles, depois acertaram pela ecografia, e mesmo pela ecografia aquilo não batia certo com as contas dela. E isto no final da gravidez é um problema, porque há um protocolo de indução – que não acontece só em Portugal – às 41 semanas e, portanto, quando chegou a essa altura – nas contas dos médicos –, na verdade ainda não eram 41 semanas. E depois há muita pressão. Portanto, é importante sabermos também que não existe um deadline, e atingir as 41 semanas não significa que o bebé fique logo em maior risco. Até porque, de facto, eu diria que na maioria das vezes a gravidez não está bem datada.
Refere também que a violência obstétrica pode mesmo tornar o parto numa experiência traumática para as mulheres. Ao longo destes anos em que prestou apoio, viu muitos casos desses?
Sim, a maioria tem stress pós-traumático; sonha ou tem pesadelos com a situação, e revive muito estas situações também nos aniversários dos filhos, porque apesar de ser o dia do nascimento do filho, também é o aniversário de uma experiência absolutamente traumática. Eu tenho clientes em que os danos que têm são, muitas vezes, até mais psicológicos do que físicos. Porque os físicos, podem ser, por exemplo, questões relacionadas com a episiotomia, ou até neurológicas, mas há muitos mais casos de danos psicológicos. Temos mulheres que não conseguem conectar-se com os seus próprios filhos, nem criar uma ligação com eles; ou mulheres que desistem de amamentar porque sentem que aquele filho não é delas. Tenho até clientes que acham que o filho foi trocado na maternidade, que não pode ser delas, têm mesmo dúvidas e pedem o processo clínico porque querem ter a certeza de que é impossível ter havido trocas. Ou seja, há aqui um corte naquilo que é a fisiologia e a biologia tão natural no parto, no pós-parto e na amamentação. E quando isto é cortado, depois, tem efeitos nocivos não só para a saúde mental da mãe, mas também para os bebés. Porque são bebés que, depois, não têm uma mãe responsiva, não têm contacto de pele com pele 24 horas por dia, porque as mães não sentem que é o filho delas; ou têm uma mãe que não os amamenta porque simplesmente não consegue sentir essa ligação. E temos bebés que são desmamados precocemente ou que nunca mamaram sequer, e isto é um problema de saúde pública, porque sabemos que os bebés que não são amamentados terão, no futuro, um maior risco de obesidade, de diabetes, de doenças autoimunes, de asma, etc. E na primeira infância também, portanto, é efectivamente um problema de saúde pública. Por isso, devíamos proteger muito mais a gravidez, o parto, o puerpério e amamentação – e ainda não o fazemos em Portugal.
Durante a pandemia, inclusivamente, foram aplicadas medidas que incluíram a proibição de as grávidas poderem ter um acompanhante, a separação das mães dos seus bebés e o uso obrigatório de máscara durante o trabalho de parto. E estas orientações da Direção-Geral de Saúde não tiveram qualquer base científica. Foi um período em que os direitos das grávidas foram violados de forma mais intensa que o normal?
Eu não diria que foram violados de uma forma mais intensa. O que eu diria é que efectivamente estes direitos já não eram respeitados, mas com a pandemia houve maior visibilidade para estas situações. Se antes havia pessoas que não reclamavam porque tendiam a relativizar e a desvalorizar as situações, durante a pandemia, como tudo isto foi noticiado e as regras estavam em todo o lado, as pessoas começaram a questionar-se e a pensar que aquilo não fazia sentido nenhum – quer dizer, uma grávida não podia ter acompanhante durante o parto, mas assim que saísse, iria estar com ele, e tinha estado com ele também antes de entrar no hospital! Depois, o facto de não poderem amamentar o bebé e não poder estar com ele também não fazia sentido absolutamente nenhum. Até porque a evidência que tínhamos – e a Organização Mundial da Saúde [OMS] foi peremptória nisto –, desde o início, era que os benefícios da amamentação ultrapassavam aquilo que pudessem ser os riscos da covid-19. Aliás, já se tinha percebido que os bebés, à partida, nem sequer eram afectados, ou particularmente afectados; não eram um grupo de risco. Portanto, a amamentação prevalecia e seria sempre mais importante o contacto pele com pele com a mãe; e isto é uma questão de saúde pública, repito. E enquanto a OMS esteve muito bem nisto, e fez vídeos a promover a amamentação e o alojamento conjunto, a verdade é que a maioria das pessoas não tem acesso a esta informação. A informação a que tinham acesso era aquela que estava nos media, e os media passavam a informação dada pela DGS. Portanto, na pandemia, todo o país ficou a acreditar que as mães não podiam ver os seus bebés, nem amamentar – isto é problemático, é violência obstétrica, e também violência neonatal, feita pela DGS. Podem dizer que a DGS é composta por profissionais de saúde, e é, mas não exclusivamente.
Mas, acho que naquela altura, como houve mais mediatismo relativamente àquilo que estava a acontecer nos hospitais, os casais também começaram a revoltar-se mais e começaram a procurar saber se havia alguma lei que os protegesse e a questionar-se sobre quais eram os seus direitos. E começaram a fazer imensas reclamações. Foi, de facto, uma altura muito boa para as pessoas perceberem que têm direitos; também se fizeram algumas reportagens sobre isto. E foi bom porque as outras pessoas, que ainda não estavam grávidas, e que agora eventualmente estão a engravidar ou a pensar em ter bebé, já estão mais informadas e já sabem que têm direito a ter três acompanhantes, e têm uma série de direitos que efectivamente não foram cumpridos durante a pandemia, e continuam a não ser em muitos hospitais. Ou, quando são, é de uma forma muito difícil.
E todas essas regras sem nexo, e até prejudiciais para as mulheres e para os próprios bebés, acabam por ter uma impunidade; não houve, nem há ainda, consequências para as autoridades de saúde por essas práticas?
Depende do que as pessoas fazem. Muitas vezes, as pessoas não reclamam; quando dizem que reclamam, é porque reclamaram na caixinha de comentários do Instagram de alguém que falou sobre o assunto. Para elas, isso já é reclamar porque já tiraram aquilo do peito, mas isso não é reclamar, efectivamente. Depois, há pessoas que só reclamam a alguém no hospital, mas isto também não é uma reclamação – a reclamação tem de ser formalizada. Eu até lancei um guia prático porque percebi que as pessoas não sabem como fazer reclamações, nem a quem dirigir as reclamações, nem o que devem dizer, ou como é que a reclamação deve estar estruturada. Então, lancei esse guia para as pessoas conseguirem orientar-se e poderem reclamar sozinhas, porque não é preciso advogados para fazer as reclamações todas. Mas, de facto, as pessoas ainda reclamam pouco. Quando me chegam, muitas vezes, é porque percebem que querem reclamar, e não querem fazê-lo sozinhas porque têm medo de eventuais represálias, e querem perceber qual é a melhor forma de o fazer, e também se judicialmente podem ter algum ganho ou vantagem; se é possível ganharem aquele caso. E, efectivamente, nem sempre é possível. Nem sempre temos casos assim tão fortes que seja possível levar para tribunal.
Ainda assim, é útil reclamar, porque tanto a Entidade Reguladora da Saúde [ERS] como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde acabam por guardar registos. E depois, por exemplo, a ERS faz um relatório trimestral, se não estou em erro, em que colocam lá todas as reclamações que são feitas, ou as mais importantes; e também já temos lá reclamações por violência obstétrica, embora não seja a própria ERS a classificá-la dessa forma. São as pessoas que classificam como violência obstétrica; e isto é bom porque, por um lado, notifica-se os próprios serviços de bloco de partos e obstetrícia do que correu mal e do porquê de aquela grávida ter ficado insatisfeita, e do que podem melhorar na equipa – se eles quiserem ter essa discussão em equipa, porque podem não querer. Mas as administrações hospitalares também ficam a perceber o que se passa no bloco de partos, por exemplo; e a ERS tem uma noção de quantas queixas existem pelos mesmos motivos naquele hospital, ou em todos os hospitais do país. Portanto, as queixas muitas vezes têm resultado – podem é não ter o resultado mais imediato. E, claro, depois, tudo o que seja judicial, que é a parte de receber indemnizações, e de fazer a queixa-crime, etc., aí já é tudo muito mais lento. Mas mesmo muito, muito mais lento.
Tendo em conta que vivemos numa altura em que se fala muito de feminismo e dos direitos das mulheres, parece-lhe que este tema é suficientemente falado ou, pelo contrário, ainda se discute pouco, nomeadamente em círculos feministas?
Penso que agora já começa a ser abordado, finalmente. Até 2021, nem por isso, principalmente em Portugal. E desde que temos o Observatório de Violência Obstétrica, que veio fazer imenso pelo movimento, temos cada vez mais associações feministas a referirem a violência obstétrica, e temos mais eventos sobre isso. Neste momento, penso que já não há nenhuma associação feminista em Portugal que não saiba o que é violência obstétrica, e que não a inclua também em todo o tipo de violência de género ou contra as mulheres. Penso que já está mais do que estabelecido que, efectivamente, isto é violência institucional de género, e os movimentos feministas falam cada vez mais sobre isto. Alguns, se calhar, não têm ainda tanta noção do que é, mas estão a começar a apalpar terreno e a tentar perceber; até porque isto veio dar nome àquilo que muitas mulheres já sentiam, e sabiam que tinham passado por isto, mas sem terem ainda um nome para o qualificar. Eu lembro-me que quando se começou a falar mais sobre isto, e quando surgiu o Observatório de Violência Obstétrica, até nas primeiras manifestações que foram feitas, havia mulheres já com filhos da minha idade – na casa dos 30 – a dizer que passaram por tudo aquilo, mas que na altura não sabiam que tinha um nome. E que ainda hoje têm dores da episiotomia que foi feita, ou ainda têm pesadelos… Portanto, isto fica para sempre; não é por não falarmos nisto que as coisas desaparecem. Simplesmente, não tínhamos um nome para este tipo de violência, e ainda bem que agora temos, e temos pessoas que se identificam c om isto. E há até apoiantes do Observatório de Violência Obstétrica que são mulheres que já passaram pela menopausa, mas que sabem que foram vítimas, e só agora é que perceberam qual era o nome para aquele tipo de violência que sofreram já há 30 ou há 40 anos.
As fotografias de Mia Negrão são da autoria da fotógrafa Sónia Brito
A Justiça britânica reconheceu, esta terça-feira, que o pedido de extradição do jornalista Julian Assange por parte dos Estados Unidos viola o direito à liberdade de expressão, expõe o fundador da WikiLeaks à pena de morte e também à possibilidade de ser prejudicado no julgamento devido à sua nacionalidade. O tribunal deu aos Estados Unidos até ao dia 16 de Abril para apresentar garantias de que aqueles receios não se cumpram. Na sequência desta decisão de hoje, o PÁGINA UM republica a entrevista a Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, divulgada no dia 5 de Março. Na entrevista, Stella afirmou não ter dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, disse que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?
Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.
Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM. (Foto: PÁGINA UM)
Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?
Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.
Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?
Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.
Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.
Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.
Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)
E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?
Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.
Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.
Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.
Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.
E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.
Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.
Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.
E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?
Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…
Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)
Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?
Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.
É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.
Entrevista traduzida e editada para português
A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube
Prematuramente falecido aos 54 anos, em 1998, Francisco Lucas Pires é hoje um dos históricos do CDS-PP, a par de Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira. Mas deixou sobretudo um legado de intelectual, visionário, percursor da direita liberal em Portugal que o advogado e escritor Nuno Gonçalo Poças quis perpetuar através de uma biografia. Para esta extensa biografia do antigo presidente do CDS-PP, que se destacou também como eurodeputado, o seu biógrafo acompanha a vida de Lucas Pires desde que o político conimbricense veio ao mundo, em 1944, até à data da sua morte. Com este O Príncipe da Democracia, Nuno Gonçalo Poças pretende ressuscitar o pensamento e ideais de Lucas Pires para o debate público.
Francisco Lucas Pires foi presidente do CDS-PP e teve um papel importante na direita portuguesa, mas não é um nome tão sonante como Sá Carneiro ou Adelino Amaro da Costa, por exemplo. Ainda assim, a sua relevância política é comparável?
Eu não tenho bem a certeza das razões pelas quais ele não é tão lembrado como o Sá Carneiro ou o Adelino Amaro da Costa. Consigo imaginar… As pessoas quase que ainda se lembram mais do Adelino Amaro da Costa do que do Freitas do Amaral, por causa da questão da morte; acho que tem mais a ver com isso. E o Lucas Pires também não foi assim tão recordado pelo CDS porque saiu do partido. Portanto, acho que isso também pesou um bocadinho. Mas, de qualquer das formas, diria que o legado político e partidário, e até mais mediático, do Lucas Pires não é comparável ao de Sá Carneiro, de Mário Soares, de Freitas do Amaral ou até o do Álvaro Cunhal; porque foram as figuras de destaque num período, não de transição, mas de afirmação da democracia. Por isso, apesar de tudo, Lucas Pires foi, politicamente, uma figura mais secundária, e só se tornou uma figura de primeira linha quando se tornou presidente do CDS, pela própria inevitabilidade da posição que tinha. Contudo, intelectualmente, filosoficamente e ideologicamente, acho que ele foi, para o campo da direita democrática, muito mais importante do que qualquer um dos outros.
Era um política que valia sobretudo pelas suas ideias?
Sobretudo por causa daquilo que pensava e escrevia, e da maneira como o transmitia. Mas se hoje olharmos para aquilo que foi o programa político da coligação PàF em 2015, do PSD em 2011, e do CDS em 2011, em 2009, em 2005, e em 2001-2, quando o Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, que tinha um programa mais liberal, e até para o programa da Aliança Democrática [AD] em 2024, não é muito diferente daquilo que era o programa do Grupo Ofir de 1985 – a matriz está lá toda. Depois, há uma série de propostas em concreto que são adaptadas aos tempos, mas a matriz ideológica vem sobretudo dali. E acho que o grande mérito dele é esse, e por isso é que também acho que é importante recuperá-lo. Para quem quiser perceber qual é o campo da direita democrática, ideologicamente e politicamente, e sobretudo numa altura em que a direita se voltou a abrir mais à direita, digamos assim, acho que é importante recuperar a ”fonte” disto tudo. Obviamente que não foi o Lucas Pires que inventou o liberalismo, mas…
Nuno Gonçalo Poças
Se fosse vivo, acha que ele poderia identificar-se com um partido como a Iniciativa Liberal?
Acho que não.
Porque apesar de ser da direita liberal, tinha ideias mais conservadoras?
Sim; e antes de mais, o Lucas Pires era católico e tinha uma presença cristã muito forte na vida dele. Acho muito difícil colar um rótulo ao Lucas Pires; é mais fácil dizer que era uma pessoa de direita, e que era liberal, mas isso é uma simplificação muito grande daquilo que era o pensamento dele. Porque acima de tudo, acho que foi um actor político intelectual mais do que a maioria dos políticos foram. A maioria dos políticos que tivemos foram mais intérpretes do que actores, e ele foi um actor e um criador.
Lucas Pires já defendia, por exemplo, a criação de um Tribunal Constitucional.
Sim, ele defendia a criação do Tribunal Constitucional já antes do 25 de Abril. E ele tem também um texto interessante sobre o poder local e a maneira como as autarquias se organizam.
Onde até critica o Partido Socialista?
Sim, e aquilo é um texto de 1976 que continua actualíssimo, porque não mudou rigorosamente nada. Todas as críticas que ele fazia naquela altura continuam actuais. E esse pensamento parte de uma base liberal no sentido em que, para o Lucas Pires, toda a base do pensamento é o homem enquanto centro da actividade política.
A tal antropocracia que defendia?
Exactamente; a ideia da soberania do Homem antes da soberania do Estado. Por exemplo, em relação a essa questão do poder local, [ele] parte desse princípio da soberania do Homem e da maneira como as próprias cidades e comunidades são organizadas, e de que o homem é o centro do poder político. E, ao mesmo tempo, parte de uma matriz quase social-cristã daquilo que ele acha que deve ser a organização de uma sociedade. Portanto, há aqui uma mistura de influências e também um lado criativo que o leva a apresentar propostas, na maioria das vezes, antes do tempo; antes delas sequer chegarem a ser equacionadas ou implementadas. E estamos a falar de coisas com 10, 20 ou 30 anos de antecipação, e que a maioria delas continua muito actual. Acho, por exemplo, que não teria havido a revisão constitucional de 1982 sem ele; não teria havido o fim do Conselho da Revolução e o regresso dos militares aos quartéis sem o seu papel e sem a força do pensamento dele; e não teria havido a revisão constitucional de 1989, com o fim da irreversibilidade das nacionalizações e a liberalização do sector económico. Portugal também não teria aderido à moeda única sem o papel que ele teve. Talvez tivesse aderido à Comunidade Europeia porque foi uma coisa um bocadinho mais consensual, mas ainda assim, o papel dele foi bastante importante. Em 1974-75, ele era das poucas pessoas que, de facto, entendia que Portugal já estava num bloco europeu e que Portugal devia ser um país europeu. E nessa altura, o país ainda não estava propriamente aí; uma boa parte das pessoas achava que Portugal devia estar sob a esfera da União Soviética, e outra parte do país – talvez uma minoria mais ruidosa – achava que Portugal devia estar na rota do Terceiro Mundo, quase.
Era um europeísta convicto, e nesse aspecto, até se distanciou de uma direita mais nacionalista?
Ou de uma direita mais soberanista, que apareceu quase por oposição a ele. Ou seja, se calhar, há uma inversão de termos. Mas acho que o europeísmo dele também partia exactamente desse princípio da soberania do Homem e não da soberania do Estado. E no fundo, ele achava que a construção de uma democracia europeia não podia ser uma democracia com um cariz tecnocrático, e que o Parlamento Europeu devia ter muito mais relevância, muito mais força e mais competências; muito mais poder decisão do que tinha, e até ainda do que tem hoje, precisamente com base nessa lógica – o Parlamento Europeu era, de facto, quem representava o povo europeu directamente, e não os governos representados proporcionalmente no Conselho Europeu.
Acha que ele veria com bons olhos a União Europeia actual? Corresponde ao modelo que ele defendia?
Acho que não. Isto é um bocadinho contrafactual e tentar-me pôr na cabeça de uma pessoa que morreu há 25 anos, e já aconteceram imensas coisas que ele não viu. Mas, tendo em conta aquilo que ele pensava e que deixou escrito nos últimos anos, acho que ele não teria deixado de ser um europeísta.
Ele defendia uma União Cultural da Europa, certo?
Sim, e percebia que a Europa podia ser um mercado único, mas não podia ser só um mercado único.
Era apologista de um Estado federal da Europa?
Não era bem um Estado federal. Acho que, mesmo aqui, reduzir o Francisco Lucas Pires a um federalista também é um bocadinho redutor; porque a visão dele para a Europa é uma visão absolutamente criativa e inovadora, que foge a essa disputa dos soberanistas e dos federalistas. Ele percebia que conseguia afirmar uma espécie de nacionalismo através de uma federação de Estados, numa lógica em que Portugal estaria muito mais representado no espaço europeu, no Parlamento Europeu, do que não estando lá. Ou seja, num mundo em processo de avanço da globalização e de grandes blocos políticos, económicos e até militares, ele percebia que a grande força da Europa dos portugueses só podia ser veiculada dessa maneira. E há algumas coisas interessantes. Por exemplo, aquilo que ele dizia relativamente à necessidade de a Europa ter um poder militar por ela própria e não ficar dependente da NATO, e da importância que isso tinha relativamente àquilo que a Rússia podia vir a sentir à medida que a NATO se ia alargando a Leste – é uma coisa muito interessante, e não é um texto, foi um relato oral que ele fez para uma rádio em 1995. 30 anos depois, estamos exactamente aí.
E ele começa a divergir do CDS, e sai do partido, em 1991, em colisão com Manuel Monteiro, que tinha uma visão muito mais eurocéptica?
Ele sai do CDS ainda antes de Manuel Monteiro ser presidente. Ele percebe que o CDS, para continuar a existir naquela altura, tinha de passar a ser outra coisa completamente diferente. Portanto, percebendo que o rumo do CDS só podia ser esse e que ele não se identificaria com ele, resolve sair. E depois, Manuel Monteiro foi eleito presidente e apostou numa política um bocadinho mais soberanista, contra o Tratado de Maastricht, que até acaba por ter sucesso eleitoral. Porque em 1995 o CDS recupera muitos deputados que tinha perdido em 1987 e 1991.
Quando Lucas Pires esteve à frente do CDS, entre 1983 e 1985, as eleições legislativas não lhe correram muito bem.
Sim, em 1985. Mas depois foi candidato às eleições europeias em 1987 e teve um bom resultado. Houve eleições legislativas e europeias no mesmo dia e o CDS, com ele, faz uma campanha quase unipessoal, e para as europeias consegue 16 ou 17%, e nas legislativas, no mesmo dia, tem só 4%. Houve claramente uma divergência eleitoral muito grande. E em 1987, como dizia José Miguel Júdice, ele era visto quase como o político do século seguinte. Era a pessoa mais fresca, que trazia mais novidade e mais adaptada ao tempo e àquilo que o futuro aparentava ser.
E também sofreu um bocado precisamente por ter esse lado visionário, foi mais incompreendido?
Eu acho que isto é uma coisa muito triste de se dizer, mas em política, normalmente, quem tem razão antes do tempo não ganha nada com isso. Mais vale não ter razão do que ter razão antes do tempo. Mas isso também é o que o distingue, porque o Lucas Pires não foi só um político – foi um político e um intelectual ao mesmo tempo. E não houve muitos. E ele conseguiu sê-lo, ainda por cima, à escala Europeia. Acho que a grande dificuldade dele tem um bocadinho a ver com isso… O Jacinto Lucas Pires [filho de Francisco Lucas Pires] disse-me que ele sofreu sempre um bocadinho porque na política foi sempre visto como um intelectual, e no campo académico mais intelectual, foi sempre visto como um político. E as pessoas em Portugal tendem a deixar estas coisas mais estanques, divididas em caixotes – um académico é um académico, não vai para os jornais dar entrevistas e para as ruas distribuir panfletos, ou discursar para o Parlamento e coisas do género. E na política é exactamente a mesma coisa; parte-se do princípio que um político não está a reflectir sobre o futuro e sobre a organização do Estado, porque, no fundo, está a resolver problemas do quotidiano. Nós criámos um bocado essa imagem e acho que também se percebe isso à medida que se acompanha o percurso dele e o percurso do país: criámos a perspectiva do político como uma espécie de intérprete, de um executante, um director-geral.
Um burocrata?
Sim; um tecnocrata, um burocrata, um director-geral que é eleito em vez de ser nomeado ou escolhido por concurso. E que é uma coisa um bocado estranha. Quando se fala da profissionalização da política, acho que é um conceito mais difícil de se materializar… Quer dizer, o Lucas Pires fez política desde 1976, ininterruptamente, até 1998. E podia-se considerar, nesse sentido, que seria um profissional da política, embora não tivesse feito só política; foi jurisconsulto e continuou a dar aulas, etc. Mas a profissionalização da política não tem tanto a ver com o tempo que se dedica à actividade política em si; tem a ver, sobretudo com a forma como ela é exercida. E acho que, nesse aspecto, ele nunca foi um profissional da política. Tal como também foi um líder que nunca teve um ”ismo” atrás dele – o ”pirismo” nunca existiu. Embora houvesse piristas, talvez; pessoas que lhe eram muito leais e que o seguiam com muita dedicação. Mas o pirismo enquanto doutrina, quase como o cavaquismo, o suarismo, ou o passismo, acho que nunca existiu. Porque o Lucas Pires tinha essa condição de personalidade; no fundo, era alguém que prezava a liberdade acima de qualquer outra coisa, e isso incluía necessariamente a liberdade dos outros e o respeito pela opinião dos outros. E esse tipo de personalidade torna muito difícil que uma pessoa seja líder de um movimento seguidista.
No livro até se diz que ele tinha um “tique do contraditório”.
Sim, e há uma expressão engraçada que ele tem sobre isso; dizia que a política e a vida, no fundo, era quase como ter uma laranja na mão, uma coisa esférica, e aquilo vai-se rodando e o propósito é mesmo esse: ficar a olhar para uma coisa, rodá-la e perceber que ela pode ser vista de vários prismas, de várias maneiras. E não há uma maneira absolutamente mais certa do que a outra. E ele conseguiu afirmar as suas ideias e, ao mesmo tempo, ter essa noção de que a opinião do outro era importante. Era por isso, também, que ele tinha o hábito de ler os jornais do Avante ao Diabo; e de tentar perceber a perspectiva dos outros, até como fórmula para enriquecer as suas próprias ideias e, depois, tentar responder a isso.
Era alguém que fazia pontes e era até amigo próximo de comunistas, como Vital Moreira, e de pessoas que tinham visões muito diferentes...
Sim, mas acho que isso até na faculdade já se notava muito.
Conseguia não ser ostracizado pelas esquerdas?
Sim. Aliás, se fizermos um balanço, até acho que, durante muito tempo, talvez a esquerda o tenha admirado mais, embora tenha discordado sempre dele. E a direita, embora tenha concordado mais com ele – embora nem sempre – o admirava menos. Porque – e talvez esta expressão não seja a mais correcta – ele era menos fiável, no sentido em que não era um chefe de claques. E as pessoas na política gostam muito disso – de sentir que aquela pessoa é um chefe de claques, e não é alguém que está lá para fazer perguntas, para interrogar e fazer ver o outro lado. E é uma qualidade que eu aprecio particularmente – se alguém está com mais de 20 pessoas à mesa, e disser A, e toda a gente a seguir também disser A, eu provavelmente faria o mesmo: teria necessidade de dizer ”então e se fosse B?”. E ele tinha essa capacidade, mas, politicamente, eu percebo que isto possa não ser uma grande vantagem comparativa.
Mas ele nunca se importou com isso, não tinha uma ambição tão grande de ser um político profissional, como disse, e de ter cargos de maior destaque?
Eu acho que ele teve essa ambição. Aliás, acho que ele foi talvez o único presidente do CDS que teve a real ambição e perspectiva de liderar o maior partido à direita. Talvez tenha sido mesmo o primeiro presidente do CDS que quis ser primeiro-ministro e não vice-primeiro-ministro – mas exactamente por causa da necessidade de afirmação das suas ideias; por acreditar que aquilo em que tinha pensado, as propostas que tinha e as ideias que tinha desenvolvido com outras pessoas, deviam ser implementadas. E, na verdade, muitas foram. Embora não tenha sido, obviamente, apenas mérito dele porque houve muito mais pessoas envolvidas nos processos.
E foi também coordenador da primeira AD.
Sim, embora esse lugar tenha sido um bocadinho vazio de conteúdo; foi quase oferecido para o manter dentro sem lhe dar demasiado gás – para usar uma expressão mais corriqueira.
Mas, de qualquer maneira, as suas ideias foram fazendo caminho?
Eu acho que fizeram sempre; embora muitas delas, ainda não. Em boa parte, acho que o legado político-ideológico do Lucas Pires ainda está por cumprir – ao nível das estruturas do Estado, mas também ao nível das estruturas mentais do próprio país, ou da comunidade portuguesa. Há uma série de coisas que estão por cumprir.
E quais é que destacaria?
Há uma expressão engraçada, que não sei se é bem dele, mas que acho que fica muito clara em 1985, quando ele se candidata contra o Cavaco Silva. Ele parte do princípio, em quase tudo – mesmo naquilo que é mais discutível – que para o ser-humano ser o mais livre possível, isso traz necessariamente uma responsabilidade acrescida. Portanto, que as pessoas são directamente responsáveis pelos seus actos, escolhas e decisões; e não é o Estado que decide, escolhe e pensa em função delas. Não é o Estado que decide aquilo que as pessoas devem ou não fazer, ou ambicionar. E acho que a vitória do Cavaco em 1985 foi muito por causa disso – porque ofereceu uma visão alternativa a essa, que fazia quase um intermédio entre aquilo que era a visão mais estatista do PS – porque o PS na altura também tinha virado muito à esquerda com Almeida Santos – e do PCP, com a visão mais liberal do CDS. Portanto, aquilo que o Cavaco garantia é que o país podia sofrer uma mudança suave. E esse discurso até voltou um bocadinho, recentemente. Acho que o Cavaco corresponde muito mais àquilo a que eu chamo as pequenas ambições do português médio, e o Lucas Pires estava noutro patamar: aquilo que queria dar às pessoas era total liberdade e total responsabilidade. E acho que continuamos ainda nesse ponto; não somos um país com especial apreço pela liberdade e por assumir a nossa própria responsabilidade. É sempre mais fácil ter o Estado, o burocrata, alguém a decidir aquilo que é melhor para nós, para depois, nós podermo-nos queixar de outra pessoa, e não de nós próprios. Por isso é que digo que, em termos estruturais, da mentalidade colectiva, isso continua por mudar. Tal como também continua por mudar outra coisa de que ele falava: a necessidade de uma revolução cultural para acabar com a “mendicidade rica“, que era a cultura do compadrio e das cunhas. Como vemos, as coisas continuam exactamente na mesma. Mas acho que nunca chegámos aí, também porque o país, e o Estado, nunca fez alterações políticas institucionais que permitissem fazer com que esse espírito de liberdade fosse mais comum do que é.
Ele também criticava a importância excessiva que se dava aos líderes, e não àquilo que efectivamente se queria para o país.
Sim, a pergunta do quê, e não do quem. E nós estamos sempre a perguntar pelo quem. Acho que isso ainda hoje é muito evidente. Continuamos sempre a ver quem é o candidato mais simpático…
Ou o mais carismático…
Sim, o mais carismático, aquele que está melhor nos debates, ou aquele que está pior… No fundo, não há uma discussão séria sobre aquilo que os candidatos, ou os políticos, defendem.
Olha-se mais para a embalagem, não tanto para o conteúdo.
Exactamente; discute-se o rótulo mais do que o produto, como dizia Lucas Pires.
E como surgiu este título? Porque é que Lucas Pires foi o príncipe da democracia?
O título surgiu num brainstorming. Eu tinha uma lista muito grande de títulos e não estava especialmente contente com nenhum, e acho que este faz muito sentido e adapta-se muito bem. Primeiro – se quisermos ser um bocadinho mais redutores –, porque o príncipe não governa; e ele, na verdade, nunca governou. Mas se pensarmos naquilo que é a figura de um príncipe, no sentido da elegância, da elevação, da capacidade de unir, de representar – acho que ele foi tudo isso. E da democracia, porque foi na democracia que ele viveu e foi para isso que, essencialmente, contribuiu. E acho que é “O“ príncipe e não “Um“ príncipe, precisamente por causa daquilo que eu estava a dizer no início: em Portugal, em 50 anos, não houve ninguém, excepto ele, que tenha conseguido ser simultaneamente actor, intérprete, e criador da maneira como ele foi. Nesse aspecto, acho que foi um político absolutamente singular.
Lucas Pires faleceu com apenas 53 anos, em 1998. Acredita que se tivesse vivido mais tempo, teria conseguido materializar mais aquela que era a sua visão, ou o país nunca estaria preparado para as suas ideias?
Eu acho que continua a não estar. Mas em termos mais práticos… Um antigo secretário-geral do Partido Popular Europeu que eu também entrevistei, diz que se ele não tivesse morrido naquela altura, teria sido provavelmente, o primeiro, e até agora único, presidente português do Parlamento Europeu. Além disso, eu não ponho de parte a hipótese de ele poder ter sido, pelo menos, candidato a Presidente da República; e talvez até tivesse tido sucesso.
Acha que ele poderia ter sido Presidente da República?
Acho que podia ter essa ambição, e era um lugar em que talvez até encaixasse melhor.
Ele defendia, aliás, que o Presidente da República deveria ter um papel mais decisivo.
Sim, e no meio de tudo aquilo que era o pensamento dele, o Presidente da República encaixava quase como uma espécie de representação do espírito do país e daquilo que achava que o país devia ser. O Presidente da República não tem de ter um programa político eleitoral, no sentido em que não tem de pôr em prática propostas políticas concretas, de resolução de pequenos problemas ou de transformações estruturais do Estado e da sociedade; mas deve ter um programa político lato sensu. Tem de ter uma visão do Estado e da sociedade e deve corporizá-la.
Nuno Gonçalo Poças, ao centro, na sessão de lançamento da biografia de Lucas Pires. Ao seu lado direito, Martinho Lucas Pires e Francisco Camacho (editor da Oficina do Livro); e ao seu lado esquerdo, os políticos Francisco Assis e Paulo Rangel.
Não tem de estar tão agarrado àquilo que são as ideias de um partido.
E nem ter de estar agarrado à espuma dos dias – tem de perceber que tipo de país é que gostava de ter, e no fundo, exercer a sua função nesse sentido. Obviamente, o Presidente da República é uma figura de pontes e de elaboração de consensos, mas também pode ser o contrário. Por isso é que é importante que tenha uma posição política, porque não é neutro; não é a Rainha de Inglaterra.
No livro, refere que o responsável de marketing da Margaret Thatcher chegou a dizer que achava Lucas Pires demasiado inteligente para liderar a direita em Portugal. Era demasiado inteligente para ser líder da direita, mas poderia almejar ser Presidente da República?
Se Lucas Pires tivesse mesmo sido Presidente da República, isso teria muito a ver com as dinâmicas eleitorais presidenciais dos anos, em concreto, em que houve eleições: 2001 e 2006. E também não dou por garantido que ele fosse eleito, mas acho que podia ser candidato a Presidente da República. Mas eu percebo o argumento: por causa da barba e por ser demasiado inteligente, não podia liderar a direita em Portugal. Percebo, porque para ter sucesso na política – não só no sentido da ambição pessoal, mas também a nível da implementação de políticas –, acho que é preciso ser inteligente, mas talvez não ajude ser muito inteligente.
Pois, ser-se um intelectual pode não ser uma vantagem. Talvez seja mais útil ser-se “esperto“.
Sim, mais hábil, como agora se diz, não é?
Pois. Como intelectual, deixou um legado de ideias e propostas, que ficaram por concretizar.
Sim, acho que esse talvez seja o legado mais importante de Lucas Pires. Hoje, 25 anos depois de ter morrido, e quase 80 anos depois de ter nascido, para mim o mais interessante é pegar nisto e perceber que praticamente tudo aquilo que ele escreveu nos últimos 60 anos continua actual.
Algumas coisas talvez até mais actuais agora do que antes.
Sim, algumas até mais actuais do que na altura em que ele escreveu.
Ele já falava, por exemplo, no envelhecimento da população portuguesa…
Exacto. E também introduziu a questão do direito constitucional europeu, que foi uma coisa que só se discutiu quase 20 anos depois, e mesmo assim não foi uma discussão muito profunda. Em Portugal, foi absolutamente a primeira a pessoa a escrever sobre direito constitucional europeu; e na Europa, se não foi a primeira, foi das primeiras. Quase tudo aquilo que ele trouxe foi novo, e em 2024 é absolutamente actual. É quase como se fosse um futurista na política; alguém que tem um pensamento absolutamente contemporâneo, e que consegue compreender o seu tempo. Mas lá está: para alguém ter sucesso na política, é preciso compreender o seu tempo, e para alguém ser Francisco Lucas Pires, é preciso compreender o seu tempo e para onde se caminhará consoante as decisões que sejam tomadas. E acho que isso é aquilo que o distingue de todos os outros. De resto, era uma pessoa muito apreciada por quase toda a gente.
Não era alguém que semeasse ódios?
Não, mas como morreu precocemente, as pessoas têm muita dificuldade em criticar quem já cá não está. Mas ele teve os seus conflitos partidários, e, tal como também dizia, o CDS não é um clube de escoteiros. Portanto, essas coisas fazem parte, e ele teve as suas zangas e conflitos; é normal. Mas, feito um balanço, creio que toda a gente reconhece que o lugar dele é inquestionável. Também por isso é que resolvi escrever o livro – acho que é importante recuperá-lo nesta fase da nossa vida colectiva, e quase obrigar as pessoas a olhar para isto e perceber que, se calhar, há uma série de coisas que podíamos ter feito de outra maneira e não fizemos. No final dos anos 1990, antes de morrer, ele diz que, pela maneira como as coisas estavam a nível europeu e português, muito provavelmente daqui uns tempos nós estaríamos a queixar-nos por não termos feito as reformas necessárias para entrarmos na moeda única, e que estaríamos a queixar-nos do Banco Central Europeu [BCE] em vez de nos queixarmos de nós próprios por causa daquilo que não fizemos. Acho que isso é muito evidente e, de facto, essas coisas aconteceram. Portugal continua a fazer exactamente a mesma coisa que ele sempre apontou. Nós preferimos sempre escudarmo-nos nos outros, pelas nossas próprias falhas; continuamos a não fazer aquilo que é preciso fazer para sermos um país com mais sucesso, e apontamos sempre a responsabilidade por essas falhas a terceiros: à crise financeira internacional, aos mercados, ao BCE, à Comissão Europeia, às agências de rating, aos imigrantes, ou seja ao que for. E não somos capazes de perceber que, se as coisas não resultaram, foi por responsabilidade nossa, porque nós não fizemos esse trabalho. Porque há outros países que fazem.
Há uma desresponsabilização crónica na sociedade portuguesa?
Sim; por isso é que o princípio dele é sempre este: o Homem é o centro da vida colectiva, da actividade política, e é mais do que o Estado. O Estado é uma construção filosófica, e só existe depois do Homem. O Estado existe porque o Homem pensou nele enquanto mecanismo de organização colectiva. E, seguindo esta lógica, não faz sentido que seja o Estado a decidir como vai ser a vida das pessoas, precisamente porque o Estado não é uma entidade abstracta; são outras pessoas. São burocratas, tecnocratas, etc., a decidir por terceiros aquilo que é melhor para a vida das pessoas.
Em Portugal, o Estado ainda tem muito peso.
Sim, nós estamos em 2024 e continuamos a discutir exactamente isso. Esse talvez seja o grande ponto da campanha eleitoral de 2024: é estatismo contra a contra o não estatismo, digamos assim.
Por falar na campanha eleitoral para estas legislativas, e é uma questão meramente especulativa, mas tendo em conta aquilo que já sabe sobre Lucas Pires, acredita que se ele fosse vivo, seria um dos apoiantes desta nova AD? Tendo ele sido um inconformado, talvez esta AD ainda não materialize o fundamental das suas ideias…
Talvez não, mas eu acho que ele sempre compreendeu também em que ponto é que o país estava, e qual era a direita possível. Penso que ele não era um liberal no sentido mais libertário, precisamente por causa da influência cristã na vida dele; tinha uma perspectiva mais liberal-conservadora do que liberal-liberal. Por outro lado, não era de todo um autoritário; era um cosmopolita, um europeísta, e não era estatista. Portanto, em 2024 – digo eu, mas é uma opinião muito pessoal –, não faça uma manchete a dizer que Lucas Pires votaria na AD, porque não sei se é verdade, mas acho que fosse talvez o campo mais natural; e até porque a AD representa um campo de maior amplitude ideológica, cabe lá muita gente. E nós vimos isso ao longo da campanha: a AD vai de Rui Rio, que dizia que o PSD é um partido de centro-esquerda, a Adolfo Mesquita Nunes – essas pessoas estão todas no mesmo sítio. Portanto, tem uma amplitude ideológica grande o suficiente para eu achar que ele podia lá caber. Mas acho muito arriscado responder a isso [risos].
E como foi o processo de escrita do livro?
Foi uma viagem muito gira. Eu tinha alguma admiração por ele, já conhecia os trabalhos do Grupo de Ofir… Demorei dois anos e meio a escrever, porque também tenho de trabalhar. Mas falei com muita gente e conheci a família dele. E no final, a sensação que eu tenho, é de ter ganhado, talvez não um amigo, mas pelo menos um professor, um mestre-escola; aprendi imenso com ele, directamente: a ouvir aquilo que dizia, a ler aquilo que escrevia. Durante este período todo, houve uma fase em que eu simplesmente deixei de trabalhar porque já não suportava ouvir a voz dele, aquilo já me cansava, de tão absorvido que estava. Mas depois reequilibrei-me. Porque no início começa-se com muito entusiasmo, sempre a recolher informação, e ganha-se um fascínio muito grande. É quase como os casamentos, mas há que saber sobreviver a isso, e criar uma relação um bocadinho mais estável. Às vezes, quase que me é natural tratá-lo por Francisco, como se tivesse andado na escola com ele.
Mas não por Chico? [risos]
Não, não chega a tanto. Acho que só as pessoas que estiveram com ele em Coimbra, e que o conhecem na fase de adolescente ou jovem adulto, é que o tratam por Chico Lucas Pires; como o José Miguel Júdice, ou alguns amigos mais antigos como o Vital Moreira, o Luís Cunha, e a irmã também o trata por Chico às vezes, mas é muito raro. A maior parte das pessoas trata-o por Francisco, e nos casos de maior formalidade, por Lucas Pires. Mas isso é muito giro de observar. Já não sei quantas pessoas entrevistei ao todo, mas foi muito giro perceber as dinâmicas pessoais entre os que o rodeavam. Algo comum que percebi é que toda a gente o admirava muito; alguns sentiam quase um fascínio, e outros menos, também por causa da questão política, nomeadamente aqueles que estavam em campos opostos. Também foi giro entrar na dinâmica familiar. Ele tem quatro filhos, e entrevistei os quatro, para além da mulher e da irmã.
No campo da direita, pelo menos, não houve nenhum outro líder em Portugal como Lucas Pires?
Eu acho mesmo que não. Daqui a 50 anos, se alguém quiser olhar para trás e ver quem foram as pessoas realmente importantes da democracia, acho que são o Soares e o Cavaco. O Cavaco governou 10 anos, foi primeiro-ministro no período de maior transformação e crescimento da economia nos primeiros 50 anos de democracia, e o Soares foi o responsável pela afirmação da democracia do tipo ocidental e não soviético. Portanto, são, talvez, as duas grandes figuras. Depois, há uma série de figuras secundárias, que foram importantes em alguns momentos, e nas quais se inclui, por exemplo, Sá Carneiro. Sá Carneiro foi importante na afirmação de uma alternativa ao poder do PS e do fim da tutela militar. O Freitas do Amaral também teve uma importância em todos estes momentos. Mas, o Lucas Pires tem outra coisa a favor dele: foi, de longe, o mais criativo. E não me admirava que, daqui a 50 anos, se voltasse a pegar nisto, percebesse que a maioria das coisas que ele dizia continuariam actuais.
Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, não tem dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, afirma que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. A decisão na Justiça britânica será conhecida em breve, enquanto o estado de saúde físico e mental do jornalista se deteriora devido às condições de detenção. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?
Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.
Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM. (Foto: PÁGINA UM)
Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?
Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.
Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?
Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.
Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.
Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.
Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)
E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?
Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.
Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.
Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.
Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.
E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.
Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.
Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.
E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?
Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…
Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)
Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?
Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.
É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.
Entrevista traduzida e editada para português
A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube
O Partido Comunista Português (PCP) foi o primeiro partido a ser inscrito junto do Tribunal Constitucional, no pós 25 de Abril de 1974. Paulo Raimundo, 47 anos, assumiu o cargo de secretário-geral do PCP em Novembro de 2022, sucedendo a Jerónimo de Sousa naquela função. Como é habitual, nas eleições legislativas, o PCP integra a coligação CDU, junto com o Partido Ecologista Os Verdes. Depois de o partido ter ficado com apenas seis deputados na Assembleia da República nas últimas eleições – com o PEV a deixar de estar no hemiciclo –, o PCP pretende ver reforçada a sua representação parlamentar. Mas também já pensa nas eleições europeias, e Paulo Raimundo defende que será com mais eurodeputados comunistas que a Europa pode enfrentar a ascensão da direita e de partidos populistas. Esta rubrica do PÁGINA UM teve como objectivo conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal. A entrevista com Paulo Raimundo é a última publicada no âmbito desta iniciativa, em que apenas cinco partidos estiveram ausentes: Livre, Bloco de Esquerda, PS, PSD e PPM.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE PAULO RAIMUNDO, SECRETÁRIO-GERAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Têm afirmado que pretendem eleger mais deputados nestas eleições e voltar a ter uma posição mais forte no Parlamento. Nesta altura, até tendo em conta também as sondagens, que sabemos que nem sempre acertam, o que nos pode dizer dos vossos objectivos?
Em relação às sondagens, nós temos afirmado – e é uma convicção profunda que tenho e, aliás, comprovada em todos os actos eleitorais – que elas condicionam muito e acertam pouco. Tem sido sempre assim e foi assim também há bem pouco tempo, na Madeira e nos Açores. Também diziam que nós íamos desaparecer e foi tudo ao contrário. A CDU cresceu, de forma mais expressiva na Madeira, e de forma menos expressiva nos Açores. Mas ficámos a 85 votos de eleger um deputado – que tanta falta fazia ao povo açoriano.
Mas, voltando à sua pergunta, aquilo que achamos que o nosso povo, os trabalhadores e o país precisam é que a CDU se reforce – que tenha mais votos e mais deputados. E estamos muito convencidos de que é possível; não para nós ficarmos todos contentes no Domingo à noite, a agitar as nossas bandeiras – porque não é esse o objectivo – mas porque achamos que mais votos e mais deputados da CDU determinará o caminho futuro a partir do dia 11 de Março.
Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP. (Foto: D.R./PCP)
E porque considera importante que haja mais deputados do PCP na Assembleia da República [AR]?
Eu vou responder-lhe de forma sucinta, com exemplos concretos. Uma boa parte das nossas propostas – que são isso mesmo, propostas, e não um conjunto de promessas vãs e ocas – , nem são grande novidade. Nós levámo-las, neste mandato, à Assembleia da República; nomeadamente medidas sobre os salários, as pensões, o reforço do Serviço Nacional de Saúde, medidas concretas para pôr a banca a pagar o aumento das taxas de juro, o travão para as rendas e os direitos dos trabalhadores por turnos.
Nós propusemos um conjunto de medidas, e vamos voltar a propô-las; e elas só não foram aprovadas porque nós não tínhamos a força necessária para as fazer aprovar e para impor a sua concretização. E se nós tivéssemos tido a força necessária para isso, a vida das pessoas hoje estaria diferente – e a ideia que temos é que estaria melhor.
E a razão de fundo é que nós precisamos de mais votos e mais deputados, porque é isso que vamos decidir no dia 10 de Março: é número de deputados que cada força elege, e é a partir dessa correlação de forças que se determinará cada uma das propostas e cada uma das soluções. E nós nunca faltaremos às soluções positivas, nem para convergir e para propor – como fizemos nestes últimos anos. Mas precisamos de mais força para que elas se concretizem. Esse é que é o grande objectivo. E não é indiferente nós termos mais ou menos deputados, porque isso condicionará as respostas que são necessárias, desde as pensões, ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] à habitação e a uma coisa que nós estamos a dar uma grande e justa centralidade, que é os direitos dos pais e das crianças. E essa é uma grande vantagem daqueles que confiam na CDU.
Depois, na situação que enfrentamos, é de salientar que não há força mais consequente ou com mais experiência acumulada e mais provas dadas de combate à direita do que a CDU, e em particular o PCP. E mesmo para aqueles que estão a apelar ao voto para combater a direita, convenhamos que essa garantia é dada pela CDU e pelo PCP de uma forma incomparável em relação aos outros partidos.
(Foto: D.R./PCP)
Falou em algumas medidas e, de facto, o PCP e a CDU têm apresentado propostas muito concretas, nomeadamente, como referiu, o travão das rendas. Há muitas famílias em Portugal a passar muitas dificuldades pelo aumento das taxas de juro e do custo de vida. Quer recordar aqui duas ou três propostas que sejam cruciais, no ponto de vista da CDU, para melhorar a vida dos portugueses?
Aquilo que nós temos colocado como a grande emergência nacional, e a primeira medida que é preciso responder, é o aumento geral e significativo dos salários – esta é a grande questão central para dar resposta. E tem de ser um aumento geral e significativo, agora, e não só para 2028 ou 2030 – é agora que faz falta, para fazer duas coisas. Desde logo, para responder aos problemas que mencionou: o aumento do custo de vida e a pressão brutal da grande maioria. E, depois, para responder a uma questão elementar, que é a justiça – e em particular a justiça na distribuição da riqueza que é criada todos os dias. Não podemos viver sabendo que há 3 milhões de trabalhadores no nosso país que ganham até 1.000 euros de salário bruto; com o que isso implica na vida de cada um. E esta é a primeira grande medida.
Mas, depois, também é preciso responder a outros problemas concretos – alguns que terão possibilidades de resposta a médio e longo prazo, mas onde são precisas medidas concretas agora. Um deles é a habitação, e nós propomos uma lei-travão ao aumento das rendas. Iniciámos este ano com 7% de aumento das rendas, um aumento que soma a tudo o que tudo o que aumentou também, como a electricidade, o gás, e o custo de vida que aumentou de forma brutal.
E a alimentação também.
E a alimentação tem um peso determinante, em particular naqueles que têm menos rendimentos, e que gastam cerca de 40% do seu rendimento em alimentação. Veja-se o impacto que tem na vida das pessoas de cada vez que a Sonae – e todas as outras distribuidoras – encaixam mais uns milhões de lucros. Este é um outro problema.
Mas, como nós dizemos, os lucros da banca deviam suportar o aumento das taxas de juro. Porque com a situação que nós temos hoje, eu até fico pasmado como é que ninguém para além de nós vem ‘a jogo’. A banca, hoje, encaixa por dia 6,5 milhões de euros, só em comissões e taxas; não é em lucros de operação financeira. Ora, nós propomos que esses 6,5 milhões de euros em taxas e comissões sejam um elemento para suster o aumento das taxas de juro que sejam creditados nas prestações de cada um – no crédito à habitação, mas também em quem tem o seu pequeno negócio. Porque os pequenos e médios empresários também estão muito aflitos.
Depois, há uma outra medida – esta de médio a longo prazo – para aumentar a oferta de habitação, que é um investimento público musculado, de forma a que cheguemos ao fim dos próximos quatro anos com mais 50 mil habitações disponibilizadas. A habitação pública – que não resolve tudo, mas responde a algumas necessidades que existem… E certamente que assim conseguiremos baixar a especulação.
É esta conjugação de duas medidas com consequências imediatas e um projecto de futuro a médio e longo prazo que vai alterar o paradigma deste sector, que é o mais desregulado e mais liberalizado da nossa economia, que é a habitação, e que está nas mãos da banca e dos fundos imobiliários.
(Foto: D.R./PCP)
De facto, tem-se assistido a uma grande ‘financeirização’ desse sector, apesar de ser fundamental haver habitação para a população Mas hoje, é um sector que os investidores olham como um mero jogo, como se fossem acções na bolsa.
Sim; é exactamente assim como está a descrever. É um negócio. Transformámos um direito constitucionalmente consagrado, que é o direito à habitação – ‘transformámos’, salvo seja – num negócio de milhões. E a grande questão com que estamos confrontados neste caminho, e que é preciso interromper, é que hoje é assim com a habitação, amanhã é a saúde, e depois é tudo. E a nossa grande prioridade é interromper esse caminho.
E está disponível para apoiar algum governo do PS? Até porque muitas das medidas que está a mencionar provavelmente vão encontrar resistência, sobretudo à direita.
Como se costuma dizer, essa é a questão de um milhão de dólares, porque essa pergunta tem de ser devolvida com outra: vamos convergir para quê? Qual é a política? Quais são as respostas, as soluções, e as medidas concretas? E a experiência que nós temos, em particular nestes últimos dois anos, é que a maioria absoluta do Partido Socialista não deu resposta a nenhuma destas questões de que falámos: nem nos salários, não na saúde, nem na habitação e nas outras.
Portanto, para nós, há uma coisa que é evidente: o PS, por sua iniciativa, nunca dará as respostas que são necessárias. Daí a nossa ideia de que a única possibilidade de trazer o PS para as soluções, não é dando força ao PS – é dando mais força à CDU, com mais votos e mais deputados. E, como aconteceu naquele tempo, ainda que limitado, em que travámos o percurso desastroso do PSD e do CDS, e recuperámos uma parte muito roubada ao nosso povo – não recuperámos tudo, é verdade, mas fomos mais além nas creches, nos manuais escolares gratuitos, no passe de transportes – uma medida de grande dimensão –, no aumento extraordinário das reformas, no fim do PEC [pagamento especial por conta]para os pequenos e médios empresários. Tudo isto onde fomos mais além não foi por vontade própria do PS – que não só não tinha vontade, como resistiu. A única forma de isto ter sido garantido – e voltamos sempre à primeira questão – foi a correlação de forças, o número de votos e de deputados que a CDU teve, e a força que obrigou o PS.
Portanto, é como lhe digo: nós não descartamos nenhuma possibilidade de convergência, mas não passamos cheques em branco, por um lado, e não falamos nisso no abstrato, falamos no concreto. Se é para aumentar salários, não falharemos; se é para reforçar o número de profissionais e respeitar os profissionais do SNS, não falharemos; se é para pôr a banca a cobrir o aumento das taxas de juro, não falharemos. E por aí fora. É no concreto.
(Foto: D.R./PCP)
Temos as eleições europeias à porta e também tem-se assistido a grandes recuos na Europa em termos do nível de democracia, e a uma ascensão de medidas mais de direita, com grandes multinacionais com grandes lucros. Olhando para estas eleições europeias, quais são as pretensões do PCP?
Nós enfrentamos de facto grandes perigos. Por que razão cresce esta ou aquela força, ou esta ou aquela tendência mais extremista e perigosa? Cresce porque as políticas não dão resposta à vida das pessoas. E esse é um problema que é nacional, mas é um problema também à escala das nações e da União Europeia. Porque aquilo a que temos assistido é, como disse, é a uma brutal e constante concentração da riqueza às mãos de uns poucos, das grandes multinacionais; e à perda constante de soberania dos países.
Temos o caso da TAP, por exemplo. Até acho extraordinário o que aconteceu. Veja o ponto a que chegámos: a UE permitiu que o Estado português pegasse em dinheiro, que é de quem trabalha no nosso país, para salvar TAP – como aconteceu com todas as empresas de aviação do mundo –, mas com uma condição. O Estado português só podia pôr dinheiro público na sua empresa pública se, no fim do processo, fosse no sentido da sua privatização. Ora, isto é o fim da picada. É o fim da soberania total, e não há nenhuma possibilidade de nós nos desenvolvermos assim.
Há uma coisa que nós sabemos: há grandes perigos, de facto, mas também há grandes potencialidades. E, tal como em todos os momentos da História – seja no nosso país, ou em todos os países deste mundo fora e da União Europeia – em última instância, o povo terá a força suficiente para alterar este rumo. Porque este rumo não serve os povos; pode servir as multinacionais, o Banco Central Europeu, e os grandes negócios, mas este caminho que está em curso não serve os povos. E os povos, mais cedo ou mais tarde, vão ter de travar isso. E eu estou convencido que é possível, também no quadro da batalha para o Parlamento Europeu, dar um sinal nesse sentido – e era um sinal de grande importância, que nós precisávamos todos; cada um dos povos nos seus países, a União Europeia no seu conjunto, e naturalmente, também nós aqui no nosso país.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto.
Veja AQUI a página na Internet com informação do PCP e programa da coligação CDU.
Depois de uma surpreendente ausência de assento parlamentar decorrente das eleições legislativas de 2022, o CDS-PP tem garantia de regresso à Assembleia da República, ou mesmo até ao Governo, onde já esteve diversas vezes em democracia, a última nos Governos de Passos Coelho. Integrado na ‘nova’ Aliança Democrática, o líder dos centristas, Nuno Melo, está optimista numa vitória e lança críticas aos radicalismos de uma possível ‘geringonça 2.0’ e do populismo do Chega, que diz nada ter de direita. Nuno Melo é o único líder dos três partidos da Aliança Democrática que aceitou ser entrevistado para a HORA POLÍTICA, depois das recusas de Gonçalo da Câmara Pereira (PPM) e Luís Montenegro (PSD). Esta rubrica do PÁGINA UM teve como objectivo conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal. Amanhã esta rubrica será fechada com a entrevista (já) concedida por Paulo Raimundo, secretário-geral do Partido Comunista Português.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE NUNO MELO, PRESIDENTE DO CDS-PP, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Como é que tem sido o feedback da população relativamente às propostas da coligação de que faz parte o CDS-PP, a Aliança Democrática [AD]? Está optimista?
Sim, estou realmente muito optimista. Hoje, além da razão para optimismo que resulta da própria candidatura em si mesma desta AD que junta três partidos – sendo que sempre que o PSD e o CDS se juntaram nas legislativas, nunca perderam eleições – também temos uma reacção na rua que nos permite medir o acolhimento junto das pessoas. E, de facto, esse acolhimento tem sido muito impressionante; quer dizer, basicamente não notamos rejeição, notamos muito apoio e entusiasmo, e tem sido assim invariavelmente de Norte a Sul. Por isso, eu estou muito confiante em relação ao resultado – que também resulta da necessidade de uma alternativa a estes oito anos. Ou seja, basicamente aquilo que vai estar em causa já não é tanto uma disputa entre partidos ou coligações, mas uma opção entre aqueles que não se resignam e que acham que é possível conseguir muito melhor, e os outros, que acham que está tudo bem. Pedro Nuno Santos vai a debates perguntar “afinal, o que é que não funciona?”. É um bocadinho isso que está em causa, e eu acredito que a grande maioria das pessoas vai querer mudar. E a alternativa ao PS é, realmente, a AD.
Aliás, o lema que tem usado para chamar os portugueses a votar nesta coligação é precisamente que esta é a coligação que pode mudar Portugal. Vê, de facto, a AD como a verdadeira alternativa?
Sim. Nós temos um facto que é inquestionável: durante oito anos, o Partido Socialista [PS] governou com várias maiorias, primeiro a geringonça, depois com outra maioria e com um apoio no Parlamento, embora não escrito, e por fim, com a maioria absoluta. Teve os meios e os instrumentos e teve péssimos resultados em todas as áreas sectoriais. Portanto, aqui chegados, a alternativa a este PS está necessariamente naquilo que são os partidos do arco da governabilidade – que têm credibilidade, são previsíveis e estáveis. São partidos que têm grande experiência; e que já estão no país inteiro, em coligação, a gerir com muita competência os destinos das pessoas. Recordo que são mais de 40 autarquias que o PSD e o CDS gerem em conjunto, e estão juntos também no governo regional dos Açores e da Madeira. E tudo isto, a meu ver, faz desta coligação – com respeito por todos os outros adversários – a mudança lógica, e essa alternativa útil que pode ser transformadora. Depois, temos os extremismos, que hoje são corporizados, quer à nossa esquerda, quer no espaço do populismo radical. Porque à esquerda, o próprio Pedro Nuno Santos, que traduz o pior do Governo do doutor António Costa – ele próprio remodelado -, verbaliza a opção de uma geringonça 2.0 que levará ao Governo o Bloco de Esquerda e o PCP; ou seja, aqueles dois partidos que durante a geringonça, apoiavam o PS no Parlamento com o Pedro Nuno Santos, estarão no Governo, numa versão muitíssimo mais radicalizada, levando os extremismos para dentro da governação. Por outro lado, há, uma outra expressão que é populista, radical, que manipula emoções e que não é de direita, e que promete tudo a todos.
Fala do Chega.
Sim, basicamente; mas enfim, o Chega de direita realmente não tem nada. E é profundamente radical. Mas um partido que propõe mais taxas, mais impostos, mais Estado e que quer a TAP nacionalizada a viver com os impostos contribuintes, que quer transformar o PRR em subsídios, que quer o Estado a ser fiador de empréstimos de privados, que quer as polícias a fazerem greve, ou que possam ter dentro dos quarteis secções partidárias… Obviamente que isto de direita, não tem nada – é um populismo muito radical, e com um programa que, curiosamente, em larga medida, está seguramente muito mais próximo Bloco de Esquerda e do PS do que da AD.
Esse radicalismo à esquerda que refere também se reflectiu em relatórios que indicam que Portugal foi um dos países que recuou no seu nível de democracia, e temos também alguns problemas na própria União Europeia [EU], com alguma legislação comunitária que até vem condicionar um pouco a liberdade de imprensa. Nesse sentido, a AD promete ser mais moderada, com um programa e propostas que respondem às necessidades dos portugueses?
Portugal recuou nos níveis de democracia e caiu nos rankings da pobreza. Note que, neste momento, Portugal tem perto de 4 milhões de pessoas que vivem no limiar da pobreza sem prestações sociais. Um em cada três jovens é forçado a sair do país, convivem com uma taxa de desemprego em Portugal superior a 20%, e com salários genericamente muito baixos. Mas, em cima disso, Portugal é um país que, em oito anos, foi ultrapassado por vários outros países de Leste, desde a Polónia à Hungria, e agora recentemente também pela Roménia – países que eram mais pobres na altura da adesão à UE, e que aderiram muito mais tarde, mas que tiveram outras opções do ponto de vista daquilo que são as apostas na sociedade e na economia, e que fizeram com que conseguissem muito melhores resultados. Portanto, diria que também essa expressão acaba por trazer um certo descrédito às instituições democráticas. E estes anos foram terríveis, com estas substituições sucessivas de governantes – todas elas à volta de incidentes que, do ponto de vista institucional, preocuparam também o Presidente da República muitas vezes – e, de resto, o Primeiro-Ministro acaba a demitir-se. Tudo isto são sinais de uma degradação muito acentuada, e crescente, que fez com que este Governo caísse por si, apesar dessa maioria absoluta. E isso também é muito impressionante.
Tem mencionado algumas propostas da AD, mas quer destacar algumas que podem de facto ter um efeito positivo para colmatar algumas das crises que nós vivemos, nomeadamente na habitação, nos baixos salários, nos impostos e no próprio Serviço Nacional de Saúde [SNS]?
Sim; sumariamente, e começando pela Saúde, porque é realmente fundamental retirar-se a ideologia do Serviço Nacional de Saúde. O Ministro Manuel Pizarro é o Ministro da Saúde, não é o Ministro do SNS. Mas aquilo que o Governo conseguiu nestes oito anos, por causa da ideologia, foi transformar hospitais bem geridos em hospitais cheios de problemas, desde Braga a Loures; por causa do preconceito ideológico de uma ministra que fazia questão de dizer que ouvia a Internacional quando se sentia tensa. E este Governo é um governo que extingue parcerias-público privadas de Braga e de Loures, e transformaram hospitais premiados e bem geridos em hospitais cheios de problemas. Hoje, sabemos que há 1.700.000 pessoas sem médico de família – muitas mais do que antes, quando, em 2016, o doutor António Costa dizia que todos os teriam. Temos urgências fechadas, muitas vezes há dificuldade em conseguir consultas e cirurgias de que dependem a vida dos doentes. Portanto, há muita coisa que tem de ser feita; inclusive ao nível da gestão e, por isso, muitas destas parcerias fazem realmente sentido. Porque se o Governo diz – e em alguns casos é verdade – que investiu muito mais no sector da saúde, mas os resultados são muito piores, isso significa que há uma perda da eficácia naquilo que é gestão a diferentes níveis. E os hospitais têm de ser eficazes na gestão, que vive de recursos que são escassos. Depois, temos de acabar com um preconceito à esquerda, porque o Ministro não é ministro do SNS; ganhando complementariedade entre os sectores público, social e privado. Porque onde o Estado não consiga, o sector social e o sector privado conseguem ajudar. E isto, claro, tendo o doente como escopo, que beneficiará dessa interacção. Há muita coisa a fazer, do ponto de vista da garantia de que se as pessoas não podem ter um tratamento a tempo e horas, o tratamento será feito noutro local que não no SNS, através de vouchers, mas dando resposta aos seus problemas. Também há questões que têm a ver com a dignificação salarial de profissionais de saúde – e refiro-me a médicos, enfermeiros e técnicos de saúde. Também há muitas coisas a fazer, por exemplo, na escola pública, que se degradou muito em oito anos: os professores perderam muita autoridade, os alunos caíram nos rankins – que mostram que, apesar da covid, Portugal teve um pior desempenho dos alunos comparando com outros alunos da União Europeia. E, também no que tem que ver com a Educação, nós propomo-nos a devolver, faseadamente, tempo que foi retido aos professores, e a garantir que não há – como hoje acontece – uma escola para ricos e outra para pobres, numa fractura que põe em causa o próprio elevador social, e onde os alunos de famílias mais desfavorecidas não conseguem aceder a boas ofertas de ensino privado. Também temos respostas para a habitação, por exemplo, entre outras coisas, garantindo que muito daquilo que é o património degradado do Estado pode ser entregue para o mercado através de parcerias com privados, que ajudarão à recuperação desse património e serão ressarcidos do seu investimento. Obviamente, terão lucros, porque nós valorizamos a iniciativa privada, mas o Estado ficará com esse património recuperado. Nós queremos que os jovens fiquem cá, não queremos que saiam, e por isso, logo no primeiro emprego, nós propomos o IRS jovem, que garante uma taxa de IRC de 15% para os jovens até aos 35 anos. E, por outro lado, também no que tem que ver com a juventude, queremos isentar, na compra da primeira habitação, os jovens em cinco anos de IMT e de imposto de selo. Temos também medidas que são fundamentais para alavancar tudo isto, para que seja possível devolver rendimentos às famílias e às empresas: a AD irá reduzir as taxas de IRS em todos os escalões e retomar uma reforma do IRC – que já tinha estado pactuada com o PS e depois foi rasgada pelo doutor António Costa – que permitirá uma redução faseada mas progressiva dessa taxa de IRC. E isto significa que, tendo mais rendimentos, as famílias poderão ter maiores possibilidades de investimento e de consumo, e as empresas terão maior liquidez para criar postos de trabalho, para se renovarem, para se modernizarem, e para aumentarem salários. Ou seja, é uma questão do modelo económico e do modelo social, que está aqui muito em causa nesta disputa entre o Partido Socialista e a Aliança Democrática.
Resumindo, o que propõe é, de facto, retirar aquela questão ideológica de muitas das medidas e políticas que têm existido em Portugal?
Sim; se há uma marca registada deste Partido Socialista, eu diria que assenta na “entrega” de ideologia para tentar resolver problemas, mas por essa via, apenas os agravou – foi assim na saúde, com o fim de parcerias-público privadas, foi assim na educação, com o fim dos contratos de associação, foi assim na habitação, com o programa Mais Habitação, que, como bem sabe, no limite, defendeu e prevê arrendamentos compulsivos; coisa que eu já tinha visto nos espaços socialistas, mas muito pouco nas democracias ocidentais civilizadas. Portanto, há realmente essa diferença e essa fronteira entre a AD – que privilegia o mercado com coesão social, a liberdade e a livre iniciativa, e que acredita no dinamismo da sociedade – e a esquerda, particularmente o PS, que acreditam numa estatização da sociedade e da economia, numa perspectiva que é paternalista, e que diz às pessoas o que podem e não podem fazer, ou onde podem e não podem investir. E, enfim, em relação a esta última estratégia, depois de oito anos… Na verdade, se pensarmos que o PS, nos últimos 27, governou 20, e teve sempre todos os meios; nós achamos que isto não resulta, mas é uma opção legítima para quem queira. Quem não se resigna, e acha que Portugal pode ser muito melhor, tem uma outra estratégia, que é a AD – uma possibilidade que eu acredito que sairá vencedora e, no final, mostrará a todos em Portugal um futuro muito melhor.
Para terminar: antevê que esta coligação pode continuar, nomeadamente para as europeias e para futuras eleições?
Sim. Esta é uma coligação que foi feita para as eleições legislativas, com incidência de Governo, bem como para as eleições europeias, e vai até às eleições autárquicas; muito embora nas eleições autárquicas, naturalmente, com respeito também por aquilo que são as prorrogativas próprias das estruturas locais. E, portanto, aí, sem que seja numa base impositiva, mas com total abertura para que a coligação funcione sempre que seja desejável.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto.
Veja AQUI a página na Internet com informação do CDS-PP.
Veja AQUI o programa da coligação Aliança Democrática.
Num momento em que a Justiça britânica está a decidir se extradita para os Estados Unidos o jornalista Julian Assange, o fundador da Wikileaks, o PÁGINA UM entrevistou a sua mulher Stella Assange. A advogada e activista dos direitos humanos não tem dúvidas de que o pico da era de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão no mundo ocidental já passou e avisa que o mundo ocidental tem vindo a cair numa espiral de censura, cada vez mais sofisticada. Julian Assange, actualmente com 52 anos, foi detido há quase cinco anos, encontrando-se numa prisão de alta segurança em Londres e num estado muito debilitado, física e psicologicamente. O pedido de extradição dos Estados Unidos serve para julgar Assange por ter publicado em 2010 no Wikileaks informação confidencial que denunciava crimes de guerra. Um dos desejos de Stella, confessou ao PÁGINA UM, depois da desejada libertação de Julian Assange – que recentemente recebeu o apoio do chanceler alemão Olaf Scholz – será uma visita conjunta a Portugal.
O PÁGINA UM divulga já na íntegra o vídeo da entrevista a Stella Assange conduzida pela jornalista Elisabete Tavares, em inglês, estando também na plataforma Spotify. Ainda hoje, o PÁGINA UM publicará a entrevista editada em português, em formato de texto.
Veja aqui o vídeo completo da entrevista a STELLA ASSANGE conduzida pela jornalista Elisabete Tavares.
Se preferir, pode ouvir aqui a entrevista integral a STELLA ASSANGE no Spotify.
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