Não se pode falar em Saúde e Medicina em Portugal sem se mencionar o nome do reputado médico Manuel Pinto Coelho. Aos 76 anos (a dias de completar os 77), Pinto Coelho é um dos médicos mais conhecidos do país, sendo o rosto da Medicina anti-envelhecimento em Portugal, defendendo medidas e técnicas de prevenção da doença.
Com 50 anos de prática clínica, Pinto Coelho conta com 16 obras publicadas sobre temas relacionados com a Saúde, incluindo alguns bestseller, através dos quais procura “dizer às pessoas, como é que elas poderão fazer para ter saúde; para não ver mais tarde uma ‘bata branca’”.
O seu livro mais recente é dirigido aos jovens — Eu escolho crescer com saúde!—, mas Pinto Coelho é sobretudo conhecido por trazer para Portugal técnicas e métodos da Medicina anti-envelhecimento, que visam alcançar uma maior longevidade. Técnicas e métodos que ensina nos seus livros e que põe em prática na sua clínica — Pinto Coelho Clinic – Live Longer (antiga Clínica Chegar Novo a Velho) —, a qual comemora este ano 10º aniversário.
Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Pinto Coelho é ainda doutorado em Ciências da Educação e tem uma pós-graduação em Medicina Anti-Envelhecimento pela Universidade Autónoma de Barcelona.
Manuel Pinto Coelho foi entrevistado na sua clínica, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
No início da sua carreira acumulou uma vasta experiência no combate à toxicodependência. Foi o responsável médico da equipa de futebol profissional do Sporting Clube de Portugal em 1881 e 1982. Hoje, é mais conhecido por ter introduzido em Portugal a Medicina Anti-envelhecimento, sendo membro da American Academy of Anti-Aging Medicine e membro da World Society of Anti-Aging Medicine. A sua clínica recebeu, em 2028, o prémio International Award in Excellence and Quality (IAEQ).
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Manuel Pinto Coelho fala sobre a sua carreira, a sua vida e o estado da Saúde em Portugal. Também comenta a mudança benéfica de políticas de Saúde nos Estados Unidos, que já está a gerar mudanças positivas na forma como multinacionais do sector alimentar fabricam os seus produtos.
De resto, Pinto Coelho é em si um exemplo em matéria de saúde após a meia-idade. dedicado à família, teve seis filhos, sendo que duas meninas são fruto do casamento com a sua actual mulher, Daiana. Os restantes são já adultos. Um dos seus filhos, Bernardo, faleceu em Dezembro de 2021 aos 49 anos de idade. Sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica. A sua foto está em destaque junto à sua secretária no consultório onde diariamente atende os seus pacientes.
A Pinto Coelho Clinic comemora este ano o 10º aniversário. /Foto: PÁGINA UM
Cumpre algumas regras e rituais religiosamente, incluindo fazer exercício físico, deitar cedo, acordar cedo e dormir uma breve sesta.
Na sua clínica, em Lisboa, é um ‘entra e sai’ de pacientes, alguns bem mediáticos, em busca dos seus conselhos e tratamentos. Nos livros, transmite os seus conhecimentos e dicas a todos quanto queiram saber mais sobre como ser saudável e prevenir a doença. Espelhados nos seus livros, estão os 11 pilares em que assentam a sua prática clínica, designadamente nutrição, suplementação personalizada, cuidado com a saúde mental e espiritual, e qualidade do sono, além do crucial papel desempenhado pelo intestino.
Num país em que se normalizou que os pacientes saiam das consultas com receitas para ‘aviar’ fármacos nas mãos, alguns dos conceitos médicos de Pinto Coelho valeram-lhe polémicas, chegando mesmo a ter de responder à Ordem dos Médicos. Mas manteve sempre as suas credenciais intactas. “Não tenho uma única sanção disciplinar lá registada”, frisou.
Pinto Coelho sentado em frente à sua secretária no consultório onde atende os pacientes na sua clínica, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
A sua popularidade traz-lhe admiradores e também alguns poucos críticos. Não surpreende. Afinal, Pinto Coelho defende a antiga Medicina, “que era uma Medicina virada para a pessoa no seu conjunto”. Tal como salientou Pinto Coelho ao PÁGINA UM, antes, “havia uma perspectiva holística da pessoa”, em que “na Medicina, olhava-se para a pessoa — para a sua parte física, mas também para a sua parte mental, para a sua parte espiritual, para a sua parte social”.
A ‘velhinha’ batalha entre os que defendem que o mais importante na Medicina é o ‘terreno’ (o paciente) e os que defendem que o mais relevante é o ‘contexto’ (o exterior). Este último conceito tem levado a melhor naquilo em que se tornou a chamada Medicina ocidental, muito comercial, que assenta especialização por partes do corpo e no recurso, muitas vezes abusivos, aos fármacos, sem se conseguir ver o paciente de forma integral. E que procura diminuir disciplinas respeitadas, mas que hoje são denominadas como ‘não-convencionais’ ou ‘alternativas’, como a Medicina Chinesa, a Osteopatia e outras.
Duas das 16 obras publicadas por Manuel Pinto Coelho. / Foto: D.R.
Como salientou Pinto Coelho nesta entrevista, “não é preciso ser agricultor ou lavrador para se perceber que o terreno manda mais do que a semente que lá pôs”. Mas mesmo na agricultura intensiva já se procura adulterar esse conceito numa era em que os agro-químicos e as multinacionais e interesses do sector agro-alimentar se cruzam com farmacêuticas e seus accionistas.
Por isso, Pinto Coelho é um grande defensor de que deve cuidar do sistema imunitário — que é, aliás, tema de um dos seus livros mais conhecidos. Defende que cada um pode “ser gestor da sua saúde”.
Nesta entrevista, deixou críticas à ausência de cadeiras importantes no ensino da Medicina na Universidade. Também abordou o tema da pandemia de Covid-19, a importância da vitamina D como prevenção e de como chegaram a ser censurados conceitos básicos, como o da imunidade natural. Comentou ainda o tema ‘tabu’ das novas vacinas mRNA, que considera serem diferentes das vacinas convencionais, “mais próximas das terapias genéticas do que das vacinas”.
Manuel Pinto Coelho com os seus seis filhos, em Dezembro de 2020. / Foto: D.R.
Sobre o tema das vacinas, deixou um elogio à decisão dos Estados Unidos de reformar a composição do grupo que assessora as políticas em matéria de vacinação no país. Recorde-se que o objectivo do novo secretário de Saúde norte-americano, Robert F. Kennedy Jr., é restaurar a confiança do público nas vacinas em geral, depois do de a confiança ter sido abalada devido aos efeitos adversos provocados pelas vacinas contra a covid-19 e também pela forma coerciva como foi imposta, em muitos casos, a toma daquelas novas vacinas, e sem o devido consentimento informado.
Manuel Pinto Coelho comentou ainda, nesta entrevista, o seu recente envolvimento na política, como mandatário de Joana Amaral Dias como candidata à Presidência da República, com quem partilha ideias similares sobre Saúde. “Ela disse-me que sou o Robert F. Kennedy Jr. português. Tomara eu, um dia, poder ser considerado o Robert F. Kennedy Jr. português”, afirmou Pinto Coelho. “É, de facto, um elogio brutal que me faz, porque eu revejo-me em muita coisa que o Robert F. Kennedy Jr. faz”.
Afastado da política e do espaço mediático há mais de 10 anos, Manuel Maria Carrilho, destacado ex-ministro da Cultura de António Guterres e antigo embaixador de Portugal na UNESCO, tem-se dedicado à escrita através dos livros e do seu blogue Pensar o Mundo, onde dá o seu olhar sobre a actualidade. Em 2023, decidiu escrever sobre o wokismo após o insólito incidente no Teatro São Luiz, em Lisboa, em que Keyla Brasil, identificando-se como “actriz e prostituta”, interrompeu a peça Tudo Sobre a Minha Mãe e invadiu o palco para protestar contra a escolha de uma actriz não-transgénero para o papel de uma pessoa ‘trans’.
O antigo deputado do PS, que completa em breve os 74 anos, chama à ideologia woke “a nova peste”, nome que deu a esta sua 25.ª obra, editada pela Saída de Emergência e apresentada na Feira do Livro no passado dia 7 de Junho – e na qual pretendeu ‘dissecar’ o wokismo com uma profundidade que, em Portugal, ainda nenhum outro autor fez.
Foto: D.R.
Em entrevista ao PÁGINA UM – e naquela que é das suas raríssimas aparições na imprensa desde que foi acusado de violência doméstica em 2013 pela ex-mulher, a apresentadora Bárbara Guimarães –, o também ex-professor universitário de Filosofia Contemporânea explica a essência do wokismo e dos seus dogmas de género, de raça e do feminismo radical. Sem esquecer os efeitos nefastos que esta “fábrica de ignorâncias”, como lhe chama, tem tido na sociedade, passando pela Justiça, a academia, os media e a “esquerda” (o seu espectro político), e deixando também alguns comentários sobre a crise que o PS enfrenta.
No ano passado, Carrilho já tinha lançado Acuso – a parcialidade da justiça e a impunidade de que goza, obra em que critica o momento actual da Justiça e revela os detalhes do longo processo que disputou com a ex-mulher. Uma batalha judicial que, depois de três absolvições, culminou em Março de 2022 com a sua condenação pelo Tribunal da Relação de Lisboa a três anos e nove meses de prisão efectiva caso não pagasse uma indemnização à ex-mulher e à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Questionado sobre se sente que foi, ele próprio, vítima do wokismo, remete para o seu livro Acuso e garante que não se vê como vítima de nada. “Considero a vitimização a forma mais rastejante de cobardia, está nos antípodas dos valores que mais prezo: a responsabilidade e a coragem”, afirmou.
Foto: D.R.
Porque é que o wokismo é “a nova peste”?
A “nova peste” é uma metáfora – em boa medida inspirada no título da obra de Albert Camus, La Peste – que pretende caracterizar a situação em que as sociedades ocidentais têm vivido, sobretudo desde os finais da primeira década deste século, em que se pode dizer que o wokismo ressuscitou o “politicamente correcto” das décadas anteriores, mas em que, diferentemente deste – que visava sobretudo o controlo da linguagem –, se pretende agora controlar tudo: a linguagem, as obras de arte de todo o tipo (literatura, pintura, etc.), o conhecimento, das ciências humanas às ciências exactas, o comportamento humano, as mais variadas instituições, chegando mesmo ao delírio de querer controlar o próprio passado.
Esta diferença corporizou-se numa “ideologia”; isto é, num conjunto dogmático de teses que não se submete a qualquer tipo de debate, que se camufla na sua própria negação – já viu alguém assumir-se como woke? –, generalizando-se através de um fanatismo que se dissemina e impõe recorrendo a acções intimidatórias, persecutórias, censórias, de que dou múltiplos exemplos no meu livro: das perseguições pessoais aos cancelamentos de autores, da censura do conteúdo de obras, através dos sensitive readers, até à arbitrária mudança dos seus títulos, da reivindicação de espaços protegidos (os safe places) até à destruição de estátuas; enfim, um sem números de arbitrariedades, tudo em nome de uma permanente vitimização que se deveria à alegada dominação, histórica e actual, do Ocidente, nomeadamente dos brancos e dos heterossexuais.
No livro, afirma que a ideologia de género é a matriz da ideologia woke, mas que o anti-racismo é o seu motor. Quer explicar?
É simples; em relação à ideologia de género eu falo em matriz porque – e é isso que distingue a “ideologia”, da “teoria” ou “doutrina” de género, que é uma distinção fundamental – foi ela que, estropiando completamente uma ideia original do filósofo John Austin, exposta em How to do Things with Words, de 1962, fez da “performatividade” o argumento chave para recusar a base biológica da diferença de sexos, abrindo assim caminho a tudo o mais que se seguiu, consagrando como um dogma, mesmo um dogma, a afirmação “eu sou aquilo que digo que sou” – afirmação que traduz o apogeu de uma subjectividade tão alucinada como narcísica.
Daqui à identity politics, à política da identidade, que vai estar na origem do novo e radical anti-racismo, é só mais um passo, na verdade um grande passo, porque aqui, sobretudo a partir da criação do movimento Black Lives Matter, em 2013, o wokismo adquire uma crescente dimensão social e política, que atinge o seu auge depois do assassinato pela polícia de Los Angeles de George Floyd, em 2020.
É justamente esta convergência que, como explico no livro, potenciada por uma identificação cega e automática do saber com o poder, vai conduzir à formulação da noção de interseccionalidade, que leva à constituição de uma frente anti-sexista e anti-racista, que assume como inimigo comum e central o homem (ou mulher) branco, a heterossexualidade, o colonialista; de um modo geral, tudo o que tenha a marca do Ocidente. Inimigo multiforme que é sempre essencializado, isto é, a quem é atribuído dogmaticamente um conjunto de características incontornáveis, inalteráveis: todo o branco é, por essência, racista, diga ele o que disser ou fizer, e por aí adiante…
O que daqui resulta é uma perspectiva quase esquizofrénica, que divide o mundo para entre vítimas e algozes, entre dominadores e dominados, uma perspectiva maniqueísta que é o que está na origem do seu colossal fanatismo. E o seu slogan “diversidade, equidade, inclusão”, o famoso DEI, que aparentemente assume valores humanistas inquestionáveis, tornou-se na arma ideológica das mais torpes perseguições, censuras e cancelamentos, tendo liquidado milhares de carreiras profissionais e arruinado inúmeras vidas pessoais.
Por vezes, quem se opõe ao wokismo recusa a existência de “géneros”, porque consideram que se trata de uma invenção dos wokes para que pudessem, primeiro, separar, e depois, desvalorizar totalmente o sexo. Mas no livro, diz que o género é sociologicamente incontestável. A existência de géneros pode ser compatível com a importância irrefutável, e o carácter binário, do sexo, que a ideologia de género rejeita?
O género é o resultado do meio, da família, da escola, da sociedade, em suma, da cultura – no sentido lato do termo – em que cada ser-humano é criado, em que evolui, é aí que surgem e se definem as características de cada um, que podem ser naturalmente muito diversas; o horizonte dos possíveis é muito amplo, conforme os contextos e as circunstâncias em que se viva, ele é, por isso, plural. Mas o sexo é prévio e indiscutível, em 99,98% dos casos. Nasce-se macho ou fêmea, e assim será durante toda a vida, independentemente de quaisquer opções subjectivas, sejam elas mais autênticas ou mais cosméticas. A base biológica da diferença sexual é incontornável, pelo que a tese central da ideologia de género e de todo o feminismo radical, que nega este dado cientificamente inquestionável, e teve o seu expoente máximo em Judith Butler, é completamente anticientífica, releva da mais torpe mistificação, de uma negação da realidade que se situa entre a alucinação e a superstição.
Manuel Maria Carrilho na Feira do Livro de Lisboa, numa apresentação do seu mais recente livro, a qual foi conduzida pelo jornalista Mário Crespo. / Foto: D.R.
O patriarcado é muito atacado pelos wokes e pelas feministas, mas defende que já não existe, ressaltando a cada vez maior representação das mulheres na sociedade. É por isso que diz que o feminismo actual – que designa como neofeminismo ou feminismo radical – já não procura a igualdade de oportunidades, mas sim a indiferenciação entre homens e mulheres?
É, a meu ver, uma hipótese forte. Veja, no Ocidente existe hoje em dia uma completa igualdade de direitos – repito, de direitos – entre homens e mulheres. e existem muitos sectores em que o domínio feminino é até actualmente bem evidente, como seja o da educação, ou o da saúde, é também cada vez mais o caso da justiça, entre outros. Claro que há situações de desigualdade, mas elas são de índole social e – aquilo que o feminismo radical não consegue assumir – de ordem biológica.
E, como diz Emmanuel Todd – e a feminista Camille Paglia tem ideias muito fortes neste ponto – é forçoso reconhecer que muitos dos problemas actuais das mulheres decorrem de elas continuarem a ter de lidar com os problemas femininos de sempre, mas se terem privado da envolvência que tradicionalmente as ajudava a resolvê-los e, além disso, terem, digamos, importado os problemas que eram sobretudo específicos dos homens, a competitividade, a conflitualidade, etc. Deixe-me acrescentar um dado curioso, que acabo de verificar; este vem da temática da transsexualidade, que é o de, num ambiente mediaticamente tão radical-feminista, a mudança de sexo nos adolescentes ser maioritariamente – cerca de 75% – do sexo feminino para o masculino. Há aqui, creio, matéria para muita reflexão…
Fala no “paradigma do ilimitado” e de como ele também originou esta ideologia, que reivindica como direitos todo o tipo de caprichos e desejos, tendo inerente uma desresponsabilização extrema e uma aversão aos deveres. As gerações mais novas, como Y e a Z, por não terem tido que enfrentar as dificuldades que outras gerações anteriores tiveram, foram instrumentais para engrossar as fileiras do wokismo?
Não digo que originou, mas que é nele que, na minha perspectiva, o wokismo se enquadra, nomeadamente pelo ilimitado poder que ele atribui, por um lado à linguagem, por outro à identidade. O paradigma do ilimitado conjuga, deixe-me sublinhar, quatro factores que convergem e se reforçam uns aos outros, o individualismo, a globalização, o financismo e a tecnologia. É ele que configura, dinamiza hoje o nosso mundo, e é nele que as gerações que refere – eu acrescentaria também a geração Alfa, de quem nasceu em 2010 – crescem, numa enorme desorientação de valores e numa angustiante rarefacção de referências, realmente sem precedentes históricos. Dito isto, não diria que tal situação seja necessariamente favorável aos dogmas wokistas, o tempo o dirá, a ver vamos…
Foto: D.R.
Para os wokes, a vítima é uma figura central, assim como o carrasco; numa cosmovisão que divide o mundo entre bons e maus e que, como refere, é movida a ressentimento – pelo homem branco, a heteronormatividade, o colonialismo, o patriarcado, e pelo próprio Ocidente. No livro, diz mesmo que o anti-racismo se tornou, com o wokismo, num novo racismo contra os brancos. Como se explica que uma ideologia tão anti-Ocidente tenha granjeado tantos seguidores, que, paradoxalmente, se abstém de condenar, e muitas vezes até defendem, culturas de outros países onde os direitos humanos, e sobretudo das minorias, são uma miragem?
Talvez porque grande parte dos “inimigos” wokistas do Ocidente estejam dentro dele… O poder woke é um poder que se instalou e disseminou à medida que as sociedades ocidentais se fragmentaram, as maiorias ideológicas que tradicionalmente as sustentavam se esboroaram, e as minorias, em particular as minorias mais activas, com causas mais assumidas – como foi e é o caso da miríade de movimentos anti-racistas e anti-sexistas mais radicais – encontraram nessa situação uma ocasião propícia à sua afirmação, porque passou a ser quase impossível haver qualquer maioria política que não seja uma soma de minorias.
E depois – mas esse ponto exigiria uma conversa só sobre ele –, o paradigma do ilimitado tem um reverso, uma outra face, que é o do conforto, que anestesia as sociedades ocidentais contemporâneas, facilitando a vida ao “minoritarismo”, com as consequências que temos visto, e outras, de momento já no nosso horizonte, que vão dando forma ao que Nathalie Heinich designou como um totalitarismo “de atmosfera”.
Há quem diga que o wokismo chegou ao fim, e que foi derrotado nos Estados Unidos, com a eleição de Trump, e na Europa, com o crescimento da direita. concorda?
Não, não, penso que é o politólogo Yascha Mounk quem tem razão, quando compara o wokismo, a inércia do wokismo se quiser, com o marxismo, e diz que temos wokismo para décadas. Como eu já tinha entregado o livro quando Trump tomou posse, acrescentei um posfácio um mês depois, em que analiso o trumpismo numa tripla perspectiva: como trauma, como acontecimento, e como indício, indício de um novo regime de realidade em que agora, sobretudo sob o prodigioso efeito das plataformas digitais, todos vivemos e que, recorrendo à audaciosa proposta de Jianwei Xun, podemos designar como hipnocracia.
Foto: D.R.
Em algumas passagens, fala na adesão da esquerda ao wokismo, salientando que a esquerda o fez à custa das suas causas tradicionais em prol dos trabalhadores. Agora, vimos que, por um lado, a esquerda sofreu uma pesadíssima derrota nas legislativas, ao passo que a direita cresceu. Foi um erro da esquerda alimentar tanto esta ideologia que, como explica, é autoritária e intolerante, embora seja, muitas vezes, vendida como compassiva e bem-intencionada?
Sim, há muito que tenho assinalado o desaparecimento de causas estruturadas, mobilizadoras, na esquerda; nuns casos, digamos, por boas razões, porque as que tinha em boa parte se concretizaram, nomeadamente no âmbito do Estado providência, mas não soube renová-las em contextos que se alteraram profundamente. Noutros casos, por outras razões, porque abdicou dos seus valores, sobretudo face ao neoliberalismo (que não é senão o liberalismo desterritorializado no mundo da globalização), trocando as causas sociais pelas causas ditas “societais”, minoritárias e predominantemente wokistas.
Sem causas nem povo, é como vejo o socialismo actual. Olhe para o que se passou há dias em Roma, com a primeira-ministra socialista da Dinamarca a coligar-se com Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana, na política de imigração. Estamos a entrar num mundo muito diferente, com problemas inéditos e tensões inesperadas, precisamos de novos conceitos e de novas ideias para lidar com ele, a “reflexão” socialista parece-me pelo que vejo, como direi, muito dinossáurica…
Acha que muitos anos no poder criaram “vícios” e o PS acomodou-se?
A alternância é, em princípio, virtuosa em democracia, mas o que mais recentemente aconteceu, por paradoxal que pareça, e foi fatal para o PS, foi a inesperada maioria absoluta de Março de 2022; obtida sem projecto, sem programa, sem equipa e sem preparação para essa eventualidade. E, depois, foi o desatino que se seguiu, com um governo sem coesão, que desde o primeiro dia parecia desconjuntar-se constantemente… Algo nunca visto, na verdade.
Foto: D.R.
Refere que, em Portugal, o governo da geringonça foi particularmente favorável ao wokismo. Como é sabido, teve um papel importante no PS, tendo sido Ministro da Cultura nos anos de Guterres. Acha que o PS entrou numa deriva mais radical com estes temas identitários, e que isso pode ter contribuído também para o desaire eleitoral de 18 de maio? Ou vê outras razões?
Penso que sim, mas, mais do que uma deriva radical, tratou-se uma deriva para um abismo minoritário, numa cegueira que o impediu de ler com um mínimo – insisto, um mínimo – de lucidez os resultados das eleições do ano passado. Sem afastar o significado que a “oferta” política específica do Chega trouxe à política nacional, é impossível ignorar o papel que, certamente em obediência a uma estratégia traçada pela liderança do PS então, tiveram Ferro Rodrigues e Santos Silva. Por cada minuto de admoestação parlamentar ao líder do Chega, eles propiciaram-lhe horas e horas de propaganda política nos media e nas redes sociais, que é a sua grande especialidade, como se sabia e confirmou. Por isso lhe digo que a deriva foi para um abismo minoritário, de que não vai ser fácil sair…
E a quem atribui a culpa pela deriva para esse abismo minoritário de que não vai ser fácil sair? A António Costa?
Bom, aí tudo vem de mais longe, não se trata de culpas, mas de responsabilidades políticas. E, deste ponto de vista, a “geringonça” de António Costa contribuiu sem dúvida, e muito, para isso, mas Sócrates já lhe tinha aberto as portas e Pedro Nuno Santos não foi capaz de fazer nada; foi, talvez, a liderança mais apagada e incapaz da história do PS. E a decisão dele que levou às eleições deste ano consolida esta ideia, revelou uma completa incapacidade estratégica.
Além da esquerda, os media tradicionais em geral têm sido aliados desta ideologia, e, ao mesmo tempo, parecem cada vez mais divorciados da população, que lhes está a virar costas, levando mesmo à sua falência. Muitas vezes, diz-se até que os media e os comentadores estão numa bolha, completamente alheios aos problemas das pessoas. Concorda?
Concordo, é o que chamo a bolha mediático-reticular, que alargou, generalizou o registo, o espectro do entretenimento, que hoje vai da paródia mais ou menos bacoca até ao “infoentretenimento”. A informação, no sentido rigoroso do termo, realmente quase desapareceu. Mas eu não desvalorizaria o papel dos media e dos comentadores, que agora é sobretudo anestesiante – com as redes sociais e as plataformas digitais – é um dos pilares da hipnocracia, que lhe referi há pouco.
Foto: D.R.
Tendo sido também professor catedrático, e observando a forma como wokismo tomou de assalto as universidades – que, foi aliás, onde cresceu nos Estados Unidos –, viu com particular preocupação todos os casos de represálias contra professores e de repressão do discurso e do livre pensamento quando “infringiam” os dogmas woke?
Mais do que preocupação; com surpresa e revolta. Trata-se de uma inversão completa da missão das universidades, que de instituições de produção e de transmissão de conhecimento, de saberes, de debate sobre tudo e sem quaisquer condicionamentos, se transformaram – sobretudo nas áreas das ciências sociais e humanas, mas o wokismo não fica por aí, ele denuncia a ciência com todos os habituais epítetos injuriosos que dirige a tudo o que é ocidental, nem a matemática escapa – num instrumento de perseguição, de censura, de um fanatismo extremo. Foi essa situação que levou Jonathan Haidt – muito falado agora por causa do seu livro sobre a “A Geração Ansiosa”, a criar há anos a Heterodox Academy, nos Estados Unidos. Devíamos criar algo do género cá em Portugal, já existe em mais de 20 países.
Até a Inteligência Artificial – como o ChatGPT – está contaminada com os dogmas woke, não é?
Está. Como sabe, a Inteligência Artificial não é autónoma, os algoritmos são programados, é com base nessa programação que eles respondem aos prompts. O que se tem visto é que, como diz, eles estão contaminados pelo wokismo, isso é evidente, basta interagir com eles; com o ChatGPT, por exemplo – mas o mesmo se passa com o Gemini ou o Claude, entre outros –, colocar-lhe umas perguntas “sensíveis”, para isso se tornar logo evidente.
Mas tudo depende da programação, vamos ver como evolui a Inteligência Artificial. Tudo isto está a desencadear uma revolução imensa, com consequências no emprego, no ensino, na saúde, na verdade em todos as áreas da actividade humana, que serão muito provavelmente bem superiores às da Revolução Industrial. E só estamos no começo…
Foto: D.R.
Era para isto que os políticos deviam olhar, a pensar no que lá vem, a procurar antecipar os enormes problemas e a preparar as respostas possíveis, mas não se lhes ouve uma só palavra sobre isto. Portugal vive no passado, a própria Europa também, estamos nas mãos do patrões de Silicon Valley. Qualquer guerra precipitada e podemos, por exemplo, ficar sem correio electrónico, a nossa dependência nesta área é total. Os nossos políticos vivem num mundo que está a desaparecer e não compreendem o mundo que está a nascer, é trágico.
Afirma que o wokismo também ‘invadiu’ a justiça, resultando em vários atropelos aos preceitos democráticos, como a presunção de inocência. Vemos, também, que muitas pessoas são judicialmente perseguidas por motivos questionáveis, e no Brasil, por exemplo, um humorista foi agora condenado a oito anos de prisão efectiva por piadas. Acha que o wokismo é, mais do que um fanatismo circunscrito a alguns, uma ameaça real à democracia?
Foi o Léo Lins, inacreditável, não é? Claro que o wokismo é uma ameaça à democracia, desde logo pelo modo como tem levado a justiça a abdicar cada vez mais frequentemente do princípio de presunção de inocência em favor do criminoso – sim, criminoso – princípio de verdade da vítima. Através da vitimização que constantemente tudo transforma numa exigência de reparação sem fim, e da culpabilidade que constantemente injecta no todo social, o wokismo na verdade encurralou a justiça, que abandona cada vez mais, e muito imprudentemente, os seus inalienáveis imperativos de isenção.
Manuel Maria Carrilho no lançamento do livro Sem Retorno, apresentado pelo jornalista Pedro Santos Guerreiro, director executivo da CNN e da TVI, na Livraria Barata (28 de Novembro de 2021). / Foto: D.R.
Mas atenção: como digo no livro, num breve parêntesis creio que no fim do segundo capítulo, penso cada vez mais que o que vivemos é uma crise na democracia – ou seja, do seu funcionamento, com todos os seus impasses e paradoxos – do que uma crise da democracia, no sentido em que ela se debateria com alternativas efectivas enquanto regime político e, mesmo, como forma de vida. Isso, até hoje não aconteceu. Apesar de, segundo os dados recentes do instituto da Universidade de Gotemburgo que há muito estuda a situação das democracias no mundo, este ser o primeiro ano deste século em que há mais regimes autoritários do que democracias no mundo, o que observamos é que em geral o que as pessoas reclamam é, não um outro regime político; o que as pessoas exigem é mais, sempre mais, democracia. A meu ver, é na compreensão desta complexa exigência que está a chave para a resposta a muitos problemas do nosso mundo.
O movimento “Metoo“, que também aborda, parece ter fomentado uma cultura em que a palavra da mulher basta para que se determine a culpa do alegado agressor. Tendo em conta tudo o que aconteceu com o divórcio e a batalha judicial com a sua ex-mulher, muito mediatizados, considera que também acabou por ser vítima do wokismo e da cultura do cancelamento?
Tudo isso é passado, já foi objecto de um livro que publiquei há cerca de um ano, com o título Acuso – A Parcialidade da Justiça e a Impunidade de que Goza, e com ele fechei o assunto. E nunca me considerei vítima de nada, considero a vitimização a forma mais rastejante de cobardia, está nos antípodas dos valores que mais prezo: a responsabilidade e a coragem.
Acredita, ou gostaria, que o ostracismo a que foi votado com todo este processo poderá terminar, precisamente, com este livro, que denuncia a deriva persecutória e de ‘cancelamento’ da sociedade com o advento do wokismo?
Este livro procura analisar com detalhe um dos mais graves e complexos problemas das sociedades ocidentais contemporâneas, o wokismo. E fazê-lo traçando a sua genealogia e apontando as suas consequências, procurando expor a teia das suas múltiplas implicações e dos seus mais invisíveis efeitos – contribuir para isso foi, e é, o seu único objectivo.
Filipe Sousa, 60 anos, foi co-fundador do partido madeirense Juntos Pelo Povo (JPP), que é hoje a segunda força política na Madeira e o líder da oposição, tendo ultrapassado o Partido Socialista.
Nestas eleições legislativas antecipadas, Filipe Sousa, cabeça-de-lista do JPP, está bem colocado para se tornar num dos novos deputados eleitos para o parlamento, pelo círculo da região Autónoma da Madeira.
A acontecer, será uma estreia do JPP na Assembleia da República e um marco de relevo. Trata-se de um partido regional, o único partido com origem na Madeira, fundado em 2015 por dois irmãos — Filipe e Élvio — a partir de um movimento de cariz cívico. De resto, Filipe Sousa opunha-se à criação de um partido político, mas essa era a condição a preencher se o movimento quisesse reforçar a sua posição no panorama político na Madeira.
Isto porque o também presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz trazia na bagagem uma experiência na política que o desiludiu, pois, antes da criação do JPP, tinha sido deputado eleito na Assembleia Regional da Região Autónoma da Madeira, durante seis anos, pelo PS e foi membro deste partido até 2007.
Filipe Sousa na redacção do PÁGINA UM, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
O madeirense, natural de Gaula — motivo pelo qual os dois irmãos são chamados de ‘gauleses’, como referência ao Asterix — foi presidente da Junta de Freguesia de Gaula entre 1997 e 2007. Foi vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz, tendo sido eleito presidente do mesmo município, em 2013, com maioria absoluta, quando se apresentou como cabeça-de-lista pelo movimento que deu origem ao JPP. Em 2017, renovou o mandato à frente da autarquia, mas pelo JPP, feito que repetiu em 2021.
Nesta entrevista, realizada a 3 de Abril na sede do PÁGINA UM, em Lisboa, Filipe Sousa criticou os principais partidos históricos na Madeira de “elitismo” e de tratarem primeiro dos seus interesses ao invés de encontrarem soluções para os problemas do português comum.
Filipe Sousa também aproveitou para comentar a polémica em torno da investigação judicial, anunciada em 2019, por causa de contratos feitos por ajuste directo pelo município de Santa Cruz com a sociedade de advogados Santos Pereira & Associados (SPA), liderada por Miguel dos Santos Pereira (colaborador do PÁGINA UM). O caso acabou por levar a uma auditoria do Tribunal de Contas que enviou para a autarquia liderada por Filipe Santos um conjunto de recomendações para colmatar os atropelos cometidos ao Código dos Contratos Públicos.
“Nós privilegiamos o concurso público […] salvo excepções. Não podia lançar um concurso público para contratar advogados e ainda bem que o legislador prevê o ajuste directo, até um determinado valor, ou a consulta prévia. Optámos pela consulta prévia com a SPA, e ainda bem, até hoje”, disse o autarca.
O que é certo é que o JPP é hoje o principal partido da oposição na Madeira. “Mas não é para ter mordomias”, garantiu, criticando o facto de haver “banquetes enquanto há pessoas [a viver] na miséria”. “Nós fugimos a tudo isso”, frisou.
Sobre as expectativas em relação às legislativas, o candidato do JPP disse que espera ser eleito e ainda que “quem ganhar não terá maioria, irá sempre precisar de fazer alguma coligação”.
Élvio Sousa na tomada de posse na Assembleia Legislativa da Madeira. Out 2023 (Foto: D.R./JPP)
Questionado, disse que o JPP estará disponível para negociar. “Tudo o que for no interesse da Madeira e no interesse nacional, eu acho que sim [estaremos disponíveis para negociar]”. E defendeu que “na politica, temos que olhar para o interesse colectivo”.
Nesta entrevista, deixou elogios ao antigo primeiro-ministro socialista António Costa, considerando que “foi um bom governante”. Também acredita que o partido Livre vai crescer nestas eleições.
Sobre se a possível estreia do JPP na Assembleia da República poderá reverter a crescente desilusão da população face à classe política, reflectida na alta abstenção, afirmou que “uma andorinha não faz a Primavera”. “Mas que seja uma. Elas vão crescer, com certeza”.
Josep Carles Rius, 69 anos, ‘periodista’ catalão, defensor do Jornalismo enquanto serviço de interesse público e impulsionou o lançamento de meios de comunicação de serviço à comunidade na Catalunha.
Também tem investigado e abordado a crise no Jornalismo e na imprensa, sendo autor dos livros ‘Periodismo y democracia en la era de las emociones’, lançado no ano passado, e ‘Periodismo en reconstrucción’, publicado em 2016.
Na sua carreira como jornalista, foi director-adjunto do La Vanguardia, editor do El Noticiero Universal, chefe de redacção do El Periódico de Catalunya, diretor do extinto jornal Publico na Catalunha (2010-2012), e também trabalhou na TVE.
O jornalista também preside ao Conselho de Informação da Catalunha, um órgão de autorregulação dos jornalistas e que garante a aplicação das melhores práticas de ética e deontologia.
Rius, que dirigiu a Associação de Jornalistas da Catalunha, entre 2007 e 2010, tem um doutoramento em Ciências da Comunicação e Jornalismo. Foi também professor de Jornalismo durante 25 anos na Universidade Autónoma de Barcelona.
Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada na sede da Associação de Jornalistas da Catalunha, em Barcelona, o jornalista faz uma análise sobre a evolução da crise que tem vindo a afectar a imprensa e o Jornalismo e os perigos que essa crise traz para a democracia.
Josep Carles Rius alertou que a crise na informação chegou ao “fundo do poço” e isso é positivo porque, por vezes, é preciso ir ao fundo para se começar a reagir.
Defendeu que, no campo da informação, vivemos numa nova era em que é preciso “criar ilhas de credibilidade”, designadamente através de projectos de jornalismo independentes — como é o caso, em Portugal, do PÁGINA UM — para voltar a aproximar o público da imprensa e restaurar a confiança e a credibilidade na comunicação social.
Tem investigado a área do Jornalismo e a crise no sector. Não só investigou os problemas, mas também encontrou soluções. E a partir dessa análise que tem nos seus livros, quando é que começou esta crise de credibilidade da imprensa?
Bom, eu penso que a imprensa escrita tem os seus grandes anos na década de 80 e 90, que, tanto em Espanha como em Portugal, coincidem com a recuperação democrática e são anos em que a imprensa tem um grande prestígio. E é esse o círculo virtuoso de ter uma função de serviço público e, ao mesmo tempo, ser um grande negócio. A imprensa foi um grande negócio. E, ao mesmo tempo, havia alguns editores que tinham uma certa consciência social e deixavam os jornalistas trabalhar.
Penso que foi já nos anos 90 que o Jornalismo deixa de ser um contra-poder e começa a perder essa ligação com os cidadãos. Quer dizer, já não se escreve, já não se faz Jornalismo a pensar nos interesses dos cidadãos, mas nos interesses do próprio poder, porque o Jornalismo já tem os seus próprios interesses.
Então, o que acontece é que chega a crise de 2008 e tudo isto é exposto. As pessoas descobrem que a imprensa não tinha falado, por exemplo, do tema da corrupção financeira e de tudo o que acabou por ser a causa da crise. Descobrem que a imprensa não fez o seu papel. E há uma grande crise de confiança que coincide com uma crise tecnológica. As grandes plataformas começam a ter impacto. O que elas fazem é pegar no negócio da publicidade. O negócio da publicidade sai para um intermediário; aquela publicidade que ia diretamente para os media fica nas plataformas.
Livro de Josep Carles Rius publicado no ano passado. / Foto: D.R.
Sim, na altura era o Yahoo!, por exemplo…
Sim. Tudo isto leva à tempestade perfeita. A soma das crises deixa-nos com a crise dos media em 2008. Há também erros dos grupos de media. No caso de Espanha, a sua aposta na televisão privada, o que lhes causou um desgaste económico muito importante.
A soma de tudo isso faz com que a imprensa esteja muito enfraquecida no momento da crise. Ao mesmo tempo, está a ser gerada toda uma nova geração de meios de comunicação, graças às novas tecnologias. No caso de Espanha, o encerramento do jornal Público, em 2012, levou à criação de 10 projectos jornalísticos diferentes. Isso muda o ecossistema mediático.
Tudo o que aconteceu nessa altura ainda está a ser digerido. E, neste momento, temos mais meios de comunicação do que nunca, mais jornalistas a trabalhar como jornalistas do que nunca. Mas há mais precariedade do que nunca e mais fragilidade do que nunca; uma situação de precariedade e de fragilidade. Isto provoca um risco ético, no sentido em que alguns meios de comunicação social e alguns jornalistas recorrem a más práticas éticas para conseguir audiência ou publicidade. Por exemplo, o que estávamos a falar [antes da entrevista] sobre da mistura de publicidade e informação; não que as pessoas não saibam se estão perante publicidade ou informação.
E agora há esta palavra que é ‘conteúdo’ e que vale para tudo.
Sim, sim. Conteúdo promovido. Tudo o que isto faz é degradar a qualidade dos media, de modo que a recuperação da confiança, que é a chave para realmente sair da crise, tem sido muito difícil e muito, muito complicada.
Mas vocês, aqui na Catalunha, conseguiram algo muito importante, que foi terem avançado para a solução. Disse que, no caso do Público, acabou por gerar 10 projectos que foram criados por jornalistas que saíram do jornal e há muitos mais. Quer falar um pouco sobre o que sucedeu aqui, na Catalunha?
Bem, penso que esta crise é uma crise global da imprensa. Um dos principais países afectados foram os Estados Unidos, que tinham uma rede de imprensa local muito importante e coesa. Cada cidade dos Estados Unidos tinha o seu próprio jornal.
E o seu canal de televisão
De televisão e de rádio e tudo isso unia a comunidade. Eram muito importantes para a comunidade. Esta soma de crises — crise tecnológica, económica, crise social — levou ao encerramento de muitos meios de comunicação social nos Estados Unidos e afectou a coesão da sociedade norte-americana.
Site do Catalunya Plural.
Penso que esta crise dos media acaba por explicar — ou é uma das múltiplas causas — a vitória de Trump em 2016. Como? Foi criado todo um mundo paralelo. Tudo e ninguém é informação. Toda uma onda emocional. Sem intermediários, longe dos meios de comunicação… Quer dizer, os meios de comunicação, como os sindicatos, como as instituições, como as ONGs [organizações não-governamentais], actuam como intermediários entre o cidadão e o poder. Se destróis isto e se substitui por redes sociais…
Que falam diretamente, sem filtro.
Certo. Então, o que é que aconteceu em 2016? Trump tinha toda a grande imprensa contra ele — o The Washington Post, o The New York Times — toda a grande imprensa e a maioria das cadeias de televisão. E, em vez disso, ganhou porque dominou este mundo das redes.
Mesmo numa zona mais obscura da ‘web’, onde existia o fenómeno ‘Q’, que tinha muitos seguidores…
Sim, sim. E o papel que as igrejas evangélicas tiveram. Ou seja, foram muitas as causas, mas estava tudo um pouco fora do sistema que até então conhecíamos. Com toda aquela imprensa contra, ele ganha.
E, naquele momento, aquilo teve um efeito positivo, que foi o de uma parte da população valorizar novamente a imprensa e as assinaturas do The New York Times e do The Washington Post dispararam.
E a vitória de Trump foi considerada um acidente histórico. Mas não foi. É um acidente da história que em 2024 volte a ganhar?
Portanto, já não há qualquer efeito benéfico com as assinaturas de jornais. A sociedade anti-Trump norte-americana está em choque, não está a reagir. A imprensa está em estado de choque.
Jeff Bezos intervém no The Washington Post, mas da primeira vez não interveio. Isto agora é muito mais grave. E é o sintoma de uma situação de uma nova era. Na noite em que ele ganhou as eleições, Elon Musk disse ao público: “agora, vocês são os media”. Claramente, uma declaração de intenções.
Livro de Josep Carles Rius publicado em 2026. / Foto: D.R.
Sim, a era em que os jornalistas não são necessários.
Exacto, o Jornalismo não é necessário. É um ataque directo ao papel do Jornalismo. E isto tem réplicas não só nos Estados Unidos. É um fenómeno totalmente novo, a desinformação, que vai contra o Jornalismo tal como o conhecemos e que deixa o Jornalismo numa posição de fraqueza.
Mas não há aqui também um outro problema, que é o facto de os jornais e da imprensa se terem muitas vezes alinhado com o poder? E de não serem contra-poder, não fazerem o seu trabalho?
Sim, sim. Quando falámos da crise de confiança, o que se tornou evidente em 2008 com a crise, foi que as pessoas descobriram que os media não eram um contra-poder: faziam parte do poder. E, de certa forma, quebrou-se a confiança aqui em Espanha. Quando foi o [Movimento] 15-M, os protestos nas ruas, os jovens diziam: “a imprensa não nos representa”. Era uma crítica ao poder político, mas também aos media. E tudo isto ainda cá está, esta desconfiança.
Nos Estados Unidos, estão a salvar alguns destes meios de comunicação locais muito importantes para as comunidades através de organizações sem fins lucrativos e fundações. No mundo anglófono, há uma grande tradição do papel das fundações e elas estão a voltar ao início, a comprar alguns meios.
Muitas rádios, por exemplo, foram comprada por uma organização do magnata George Soros, na altura destas eleições presidenciais.
Sim, sim. E, por exemplo, o principal jornal de Filadélfia, um jornal histórico, foi salvo por uma fundação.
E isso é importante.
Claro. Havia dois modelos: o modelo do The Washington Post, comprado por um magnata, ou o modelo de The Philadelphia Inquirer, que é o jornal histórico de Filadélfia, que foi comprado por uma fundação.
Quiosque de jornais em Barcelona. A imprensa tem vivido uma forte crise económica que não se deve apenas à concorrência das plataformas tecnológicas. / Foto: PÁGINA UM
Então, se estás nas mãos de um magnata, não és livre, porque no momento-chave em que querias apostar na Kamala Harris, ele não deixa, e depois entra na linha editorial. Foi o que ele fez [Jeff Bezos].
Em vez disso, o The Philadelphia Inquirer continua lá, sem essas interferências. Por isso, é preciso tentar procurar elementos positivos. Penso que entender o Jornalismo não como um negócio, mas como um serviço público, e como um serviço sem fins lucrativos, como um serviço social; isso é positivo e isso é uma lição dessa crise. E foi isso que nós aqui modestamente tentámos fazer.
E também, tecnologicamente, as grandes plataformas foram ou são parte do problema. Mas a revolução tecnológica também faz parte da solução, porque permite o lançamento de pequenos projectos liderados por jornalistas, como o vosso.
Isto é um oceano de desinformação, mas depois é crucial ter ilhas de credibilidade, abrigos, e que o cidadão encontre esses abrigos. E esse oceano de desinformação, nós não o vamos mudar. Isto está cá para ficar. Faz parte das redes, porque aquela utopia em que vivíamos de liberdade de expressão para todos… Eles controlam as redes através de algoritmos, através da forma como manipulam. Mas as redes ainda têm um lado positivo para a liberdade de informação. E o grande dever, a grande responsabilidade dos jornalistas, é criar essas ilhas de credibilidade.
E é por isso que é tão importante que haja projectos e esses projectos são agora tecnologicamente mais viáveis. É possível criar um site na Internet e intervir no debate público sem ter grandes recursos. Não tem de ser um grande jornal ou uma grande revista, uma cadeia de televisão. Mas, claro, é uma luta muito desigual, porque tens de estar aqui a lutar com todas estas tendências.
E com grandes máquinas, grandes máquinas de ataque, de desinformação, de ataque aos jornalistas que querem fazer um trabalho sério.
Claro, essas ilhas de credibilidade são ameaçadas por estas ondas.
Josep Carles Rius alerta que, com a nova Administração Trump, nos Estados Unidos, a liberdade de imprensa está em risco, o que é uma ameaça para a democracia. Mas também aponta ‘culpas’ da crise na imprensa aos jornalistas que se tornaram activistas, seguiram ondas emocionais em vez de fazer Jornalismo, e desiludiram o público. / Foto: Jørgen Håland
Sim. E nós temos visto em Portugal que o PÁGINA UM tem sido alvo de um ataque de desinformação. Porque não querem que façamos Jornalismo. Foi algo que nos impressionou e chocou. Não estávamos à espera. Mas estava a falar aqui de projectos, projectos de Jornalismo para as comunidades. Que projectos são e como o avalias?
Claro, quando falo de ilhas de credibilidade… Por vezes, há ilhas de proximidade. Numa cidade pequena há um meio de comunicação que é o espaço de confiança e credibilidade num determinado território. Há outras ilhas de credibilidade em comunidades. Nós concentrámo-nos nas comunidades que estão na linha da frente na defesa dos direitos humanos, dos direitos essenciais, da Educação, da Saúde e do trabalho digno. Nós temos jornais especializados nestas três temáticas.
A nossa experiência — e já estamos a falar de uma experiência de mais de 10 anos —, é muito positiva em em termos de direitos fundamentais. Estas comunidades compreenderam a nossa intenção. Estamos a criar praças, espaços públicos de confiança, onde podem encontrar informação precisa e rigorosa. E, ao mesmo tempo, um espaço de encontro onde podem debater, publicar os seus blogues, publicar os seus artigos e interagir entre si — ou seja, revistas educativas, tanto em catalão como em espanhol.
E disponibilizam isso?
Claro. É onde as opiniões são trocadas, onde a comunidade se conhece. Veja-se o Diário da Educação: quase 50% do conteúdo é gerado pela própria comunidade através de artigos, blogues, reflexões. Acima de tudo, o nosso valor é criarmos o espaço para que ele seja encontrado. Obviamente, fazemos jornalismo especializado em Educação e damos-lhe essa informação. Mas, além disso, é uma praça pública, um local onde a comunidade se reúne e se encontra num clima de respeito e confiança. Os professores, por exemplo.
A informação que os grandes meios de comunicação produzem sobre Educação é altamente condicionada pela necessidade de obter cliques, para terem audiência. Depois, distorcem a realidade da Educação, ou seja, um problema numa escola é ampliado porque isso dá audiência.
Foto: D.R.
Por outro lado, uma experiência positiva numa escola não acontece, não aparece, porque não recebe cliques e agora tudo isso está a acontecer na imprensa mainstream. É tudo uma questão de cliques.
Depois, tem de se criar estes abrigos, com um espaço onde não julgamos. Não procuramos quantidade, procuramos qualidade. O nosso valor é que sejam públicos de professores, de professores universitários, de mestres, que comunicam.
E não está sujeito a algoritmos nem nada.
Claro. São espaços reservados onde, por exemplo, as newsletters são extremamente importantes, porque permitem aceder diretamente sem passar por uma rede social. Fazemos fóruns de cinema, reuniões, também fazemos de eventos presenciais para que a comunidade se possa reunir.
E que tenham confiança no Jornalismo e nos meios, em termos daquilo que é a qualidade da informação. Uma entidade fidedigna, entidades fidedignas em termos de qualidade da informação, que é algo muito importante.
Claro, claro. Este oceano, este mar imenso de desinformação, de discurso de ódio, manipulação, pós-verdade. Tudo isto está aqui: as redes, o TikTok, ou o que quer que seja.
Estamos em 1984, como no livro.
Sim, sim. Completamente. E vamos continuar. Não vamos conseguir mudar.
Então, o que tem de se fazer é criar ilhas [de informação credível]. E depois, criar também a partir da sociedade. Por isso, é importante a Associação de Jornalistas [da Catalunha], o Conselho de Informação da Catalunha. A partir da sociedade civil também; procurar ter uma cumplicidade da sociedade. Para que a sociedade seja consciente, primeiro temos de dar-lhes instrumentos para que encontre essas ilhas de credibilidade, para que saibam que existem e que se pode refugiar ali.
Depois, do ponto de vista político, temos de ser exigentes e pedir, por exemplo, os meios de comunicação social públicos… É importantíssimo que os meios públicos sejam responsáveis e sejam equitativos, transparentes e não sejam instrumentos do poder. Por isso, tem que se lutar pelos meios de comunicação social públicos.
Sim, porque há algo de confusão entre o que é público e a política e o governo, que são separados. O público somos todos nós. Os que pagam os impostos. Isso é público e é necessário apoiar o Jornalismo por aí também; mas não é o governo ou os políticos. Mas tem havido um pouco de confusão. Um pouco não, muita.
Em Portugal, também..
Então, tem que se ter uma exigência constante.
A evolução da tecnologia também trouxe uma oportunidade aos media, e hoje é possível criar jornais e revistas digitais com baixo orçamento e que servem o interesse público. Foto: D.R.
E acredita que esta experiência que é já um caso de sucesso, porque já tem uma década, é importante que seja um exemplo? Por exemplo, para aquilo que será a importância do Jornalismo para a democracia, que é um tema que falou no seu último livro. Por exemplo, mencionou o caso de Trump, mas temos aqui graves problemas também na Europa. No caso de Trump, temos também o problema com os media mainstream, que diziam, por exemplo, que Biden estava muito bem, o que não era verdade, e todos podiam ver isso. Pensa que os jornalistas também têm de seguir mais esse exemplo seu, e não aquele que foi feito nos últimos anos? Fazer jornalismo, não contra algo, mas pela democracia.
Sim, é assim. Claro. Quando falamos das Ilhas de credibilidade, eu entendo que são ilhas de credibilidade onde o que impera é o Jornalismo. Mas pode-se criar ilhas que são refúgios ideológicos. Quer dizer, eu, diante deste mundo, crio um espaço onde só me comunico com os que pensam como eu e juntos defendemo-nos contra o inimigo, que são os que pensam diferente. O risco — e isso estaria mais no activismo — é que o Jornalismo não crie abrigos de Jornalismo, mas sim abrigos ideológicos. Pode haver ideologias que a ti te pareçam melhor, ou ideologias que consideras que, no caso, por exemplo, da extrema-direita, como o fascismo ou o neonazismo, que atentam diretamente contra a democracia. Por isso, penso que no Jornalismo temos de reivindicar ilhas de credibilidade jornalística.
O que é que se passa aqui, o que é que vivemos? Antes de mais, temos de recordar constantemente é que sem democracia não há Jornalismo e sem Jornalismo não há democracia. Vimos isso na Rússia. Putin eliminou o Jornalismo, não foi? E o risco agora nos Estados Unidos também existe, e na Hungria existe e noutros locais.
Temos que ser muito claros que temos que ser militantes da democracia. A democracia é fundamental, porque se não houver democracia, não há Jornalismo, não há liberdade de informação, nem de expressão. Então, isto é básico.
Qual tem sido o grande problema? Nos últimos anos, tem havido uma série de ondas emocionais, estados de emoção. Nós, na Catalunha, experienciámos isso. Muitos jornalistas aderiram à onda de emoção em vez de dizerem: “não, não, temos de manter aqui o rigor da informação e não nos deixarmos levar por esta onda de emoção”.
O caso do Brexit. O Brexit é um caso de uma onda emocional para os nacionalistas britânicos. Disseram à Europa: “nós somos melhores, Europa fora!” E agora estão arrependidos, mas o mal já está feito. No caso dos Estados Unidos, Trump está a cavalgar uma onda emocional que é toda a crise, certo?
Da crise, da classe média americana, especialmente da América profunda, não das zonas costeiras e assim por diante, que está à procura de inimigos. E isso já aconteceu nos anos 30.
Isto é uma repetição?
Certo, e depois procuras o inimigo, procuras o imigrante. O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais; é preciso enfrentar as ondas emocionais, mesmo que a família, o ambiente, os amigos estejam no meio da onda emocional. O que vivemos aqui na Catalunha com o processo foi uma onda emocional.
Josep Carles Rius defende que se devem criar ‘ilhas de credibilidade’ no espaço digital, onde o público pode encontrar informação credível e fiável. Essas ilhas são, por exemplo, projectos de jornalismo independente. / Foto: D.R.
As famílias divididas.
Sim, sim. Não foi uma só. Depois claro, desde o início que eu disse: “não, não. Cuidado!”
Mas vimos a mesma coisa durante a pandemia ou na questão da Ucrânia ou de Gaza. Quase não se pode fazer perguntas ou pedir dados. Na pandemia, alguém era considerado negacionista e anti-vacinas só por pedir dados! E em relação à Ucrânia, és Putinista e, em relação Gaza, és considerado pró-Israel.
Sim, sim.
E isso é perigoso para o Jornalismo e, especialmente quando se trata de jornalistas, por vezes, ir ao encontro dessas emoções.
Como as emoções têm tanto poder e também agora as pessoas têm tantas formas de se exprimirem, porque às vezes as emoções e a manipulação das emoções, mas agora podem exprimir as vossas emoções imediatamente.
Através do Whatsapp ou de memes.
Estamos numa manipulação das emoções, mas há também mais ferramentas para manipular essas emoções: algoritmos, as redes.
Temos problemas ou situações muito antigas, que fazem parte do ser humano. O ser humano não mudou muito nos últimos 3.000 anos. Só que temos uns instrumentos super poderosos, como a inteligência artificial. Tudo isso torna o desafio, que nós jornalistas temos, muito mais complexo e mais importante para intervir e actuar.
Assisti a alguns jornalistas, não só nos Estados Unidos, mas em Portugal, que confundiram um bocadinho, o ser militante da democracia com ser militante de Biden, ou de Kamala Harris ou de Trump. E a democracia pode ser personalizada assim, em partidos? Como um jornalista pode ser militante da democracia e conseguir ver os factos de uma forma não emocional?
Nós aqui, por exemplo, no Conselho de Informação da Catalunha, fizemos uma declaração muito extensa e contundente quando nas últimas eleições locais a extrema-direita teve muitos votos aqui em Espanha e especialmente na Catalunha. Porque aqui temos dois partidos de extrema-direita: o espanhol e o catalão. E muitos jornalistas, sobretudo dos meios de comunicação locais, tiveram pela primeira vez de lidar com porta-vozes e políticos de extrema-direita. Agora estão presentes em quase todas as câmaras municipais. Os jornalistas locais estavam, pela primeira vez, a lidar com um discurso de extrema-direita.
Penso que um jornalista tem de procurar a justiça, a honestidade, tudo para informar, não para ser um activista de uma causa, mas tem de ser claro sobre onde estão os limites.
Estar informado também.
Nesse caso, fizemos uma declaração muito forte, afirmando que não se pode tratar a extrema-direita como o resto dos partidos políticos, porque a extrema-direita no seu programa, no seu essencial, tem o ódio. Quer eliminar uma parte da população. Recorre a mentiras, nega a Ciência, vai contra todas as evidências de topo o tipo.
Portanto, o jornalista tem de confrontar este discurso, não pode simplesmente pôr o microfone e fazer com que isto saia. Penso que há aqui que estabelecer alguns limites.
A tragédia ocorrida em Valência gerou muita desinformação e foi um ‘abre-olhos’ para muitos, em termos da crise actual de informação que vivemos, segundo Josep Carles Rius. / Foto: D.R.
Isso é algo que os jornalistas têm sempre de fazer, certo?
Sim, sim, mas isto realço isso. É claro que outros podem tentar enganar-nos. Mas isto faz parte da política deles, faz parte do programa deles para enganar.
Temos visto, pelo menos em Portugal, que muitos media se limitam a ser pé de microfone com a generalidade dos políticos. Não é também um mau hábito do jornalista? Porque colocam o microfone e esperam que o político fale. Mas agora o político é outro…
Sim, sim, certo.
Também é um despertar para muitos jornalistas.
Sim, sim. Por isso, no caso da Catalunha, dos jornalistas, sobretudo dos jornalistas mais locais, foi um despertar absoluto. Porque de um dia para o outro encontraram-se com interlocutores que nunca tinham enfrentado antes. Que estavam a quebrar as regras.
Então, o hábito de pôr o microfone e deixá-los dizer o que quiserem, estava a começar a ser perigoso, porque o que eles estavam a defender é a expulsão dos meus vizinhos, que são negros. Cuidado, isto é perigoso.
E muitas vezes com mentiras ou com algo manipulado, com muitas imagens.
Penso que houve uma mudança no caso de Espanha, nas últimas eleições locais, em que a aliança catalã, que é um partido pró-independência, mas de extrema-direita, entrou em cena. E o VOX consegue muitos deputados. Há uma mudança. E nós, no Conselho de Informação da Catalunha, produzimos um documento muito, muito duro e que não foi compreendido por toda a gente. Havia pessoas que diziam: “não, não, não; tens de tratar toda a gente da mesma forma”. Ou dizem que a extrema-esquerda está a fazer a mesma coisa. Não, a extrema-esquerda não quer expulsar os teus vizinhos. Ela pode ser muito rude, mas isto não.
Sim, claro que não é a mesma coisa. Em todo o caso, por exemplo, na pandemia, testemunhámos a existência de discurso de ódio de políticos de extrema-esquerda, de políticos de extrema-direita, de centro, contra grandes cientistas mundiais. Cientistas que alertavam que o caminho a seguir era o da Suécia, que estava a fazer melhor a gestão da pandemia. Depois, as emoções tomaram conta de muitos jornalistas, que deixaram de ser isentos e independentes – um tema de que fala no seu livro. Temos de ter muito cuidado para não emitirmos involuntariamente discursos de ódio com o nosso ‘microfone’.
Sim, sim.
Durante a pandemia, foi um choque ver pessoas a ser vítimas de perseguição e de censura, porque não estavam alinhados com os políticos e com a onda emocional. Para os jornalistas é um desafio.
Sim. Nós vivemos algumas situações que colocaram o Jornalismo à prova.
Mas é positivo. Pensas que há um bom futuro para o Jornalismo e para os jornalistas?
Penso que sim, mas sendo claro que o desafio é muito difícil. Não se pode ser incauto. Isso e vai depender da determinação e da vontade dos próprios jornalistas de encontrarem também cumplicidades com a sociedade, de ser exigentes politicamente.
Agora há uma boa oportunidade com as novas leis europeias. A directiva de liberdade de imprensa [Media Freedom Act] é um bom marco. Mas cada Estado tem de a aplicar e veremos como será aplicada. E aqui temos que ser exigentes, temos de acompanhar e temos feito muitas coisas aqui. Estamos muito envolvidos na tentativa de fazer com que o governo use bem isto, aplique bem este quadro jurídico europeu.
Porque pode ser bem aplicado ou mal, dependendo do uso que o poder político lhe quer dar.
Claro que depende da vontade política.
Para Josep Carles Rius, o jornalista não pode ser apenas um pé de microfone. / Foto: Kane Reinholdtsen.
E com toda esta crise de Informação, esta quebra de confiança que houve entre o público e os meios de comunicação social clássicos, pensa que há um futuro positivo, no sentido em que vamos conseguir sair disto com uma imprensa credível e com a população a entender que tem de a apoiar?
Penso que, às vezes, temos que bater no fundo do poço para começar a agir.
Pensa que chegámos ao fundo do poço?
Penso que sim. Por exemplo, no caso da tragédia de Valência, toda a desinformação que houve… Foi um abre-olhos para muita gente.
No caso do Trump, foi uma desgraça; está a ser um abre-olhos também. A situação na Sala Oval com Zelensky, teve impacto. O papel do Elon Musk também é revelador.
Tem de estar a correr algo muito mal para começarmos a perceber que temos de reagir. E a chave aqui é a Europa. A Europa tem a capacidade de reagir, certo?
Porque, nos Estados Unidos, os democratas e todas as pessoas que sentiram que perderam as eleições ainda estão em choque, mas vão reagir. Acredito que sim, e haverá decisões judiciais. E o The New York Times está a resistir.
Para chegar aos jovens, a melhor forma é através dos professores e da comunidade educativa, designadamente via publicações especializadas, defende Josep Carles Rius.
Mas claro, é preciso de mais pessoas reajam. Aqui, por exemplo, a onda emocional que tivemos com o processo que nos levou a uma situação muito difícil, abriu muito os olhos das pessoas. E penso que a repetição do que aconteceu aqui seria impossível agora, porque muitas pessoas não aceitariam, sentiram-se enganadas.
E o Brexit? O mal está feito, mas a sociedade agora aceita que estavam errados, que foram enganados por tudo isto.
Bem, eu sou um optimista por natureza e penso que a sociedade vai reagir, mas nós temos um papel muito importante, como jornalistas, para manter os padrões éticos e criar estas ilhas de credibilidade.
E os jovens, temos de pensar nos jovens que já não leem os meios de comunicação clássicos, nem veem televisão nem nada; é tudo TikTok.
É por isso que penso que é muito importante chegar aos professores, para ajudar a formar os jovens. Chegar diretamente aos jovens, é muito difícil, mas há pessoas que, durante 6 horas por dia, chegam aos jovens e que são os professores. Por isso, é preciso cuidar dos professores, dar-lhes instrumentos para isso.
Por isso, criámos há mais de 10 anos duas publicações de Educação para os professores, que dão aos professores ferramentas para formarem mediaticamente também os seus alunos. Os jovens que com 15, 20 ou 25 que estão no TikTok, quando chegarem perto dos 30, deixem o TikTok e passem para um jornal ou se informem melhor.
Talvez o jornalismo também possa entrar um bocadinho nessas plataformas.
Sim, sim. Isto é um desafio, mas penso que há três formas de chegar aos jovens: através do TikTok; através das famílias; e através dos professores — do mundo docente, não diria só professores, mas toda a comunidade educativa.
Não se pode dizer que Craig Unger seja um jornalista norte-americano sem currículo. Nasceu a 25 de Março de 1949 e trabalhou, entre outras, em publicações como Vanity Fair, The New Yorker, Esquire, The Guardian, The New York Times, The Washington Post e The New Republic. Em 2004, escreveu o livro “House of Bush, House of Saud”, onde investigou as relações entre a família Bush e a dinastia Saud, da Arábia Saudita.
Anos mais tarde, seguindo o sucesso da primeira obra, assinou, em 2018, o livro “House of Trump, House of Putin”, onde relatou as relações entre Donald Trump e a Mafia russa, tendo ainda escrito, em 2021, “American Kompromat”, onde o agora reeleito presidente Donald Trump era acusado de ter colaborado com os serviços de informação russos e de ter estabelecido uma aliança com pessoas próximas do Kremlin desde os anos 80.
Todos esses livros, de uma forma ou outra, tiveram ampla aceitação e divulgação pública. Entretanto, Craig Unger, lançou recentemente, em Outubro de 2024, a obra “Den of Spies”, que se pode traduzir para algo como “Covil de Espiões”, e tem ainda como subtítulo: “Reagan, Carter e a História Secreta da Traição que Roubou a Casa Branca”. Mas a receção junto da Imprensa, ao contrário dos outros livros, não suscitou grandes linhas de divulgação e análise sobre o seu conteúdo, demonstrando que o tema continua a ser incómodo para a generalidade dos jornalistas.
A Casa Branca. / Foto: D.R.
O jornalista norte-americano, que seguiu ainda as pistas de um falecido jornalista que também dedicou parte da sua vida profissional à investigação do caso, Bob Parry, demonstra como a reeleição falhada do recém-falecido presidente dos EUA, Jimmy Carter, a 4 de Novembro de 1980, foi o resultado de uma traição da parte da candidatura republicana, encabeçada por Ronald Reagan, com o antigo chefe da CIA, George Bush como vice-presidente e o futuro chefe da CIA, Bill Casey, como diretor de campanha.
Craig Unger comprova nesta obra como a crise dos reféns de Teerão, que começou com o assalto à embaixada dos EUA no Irão, a 4 de Novembro de 1980, e deu origem à crise dos reféns, levou a várias negociações secretas entre republicanos e iranianos, no sentido de manter os reféns em cativeiro até às eleições presidenciais de 4 de Novembro de 1980.
O principal responsável, aponta o jornalista, foi o chefe de campanha da candidatura republicana, antigo agente secreto da II Guerra Mundial e futuro chefe da CIA, Bill Casey, que teve reuniões secretas com iranianos em Madrid, em Junho e Agosto de 1980, mais ainda um encontro em Paris, em Outubro, dias antes das eleições de 4 de Novembro de 1980.
O tráfico de armas para o Irão, resultante dessas negociações, era então ilegal quando, a 4 de Dezembro, faleceram em Camarate o primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro e o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, na queda de um avião através da explosão de uma bomba, como ficou demonstrado nas investigações levadas a cabo pelas várias comissões de inquérito da Assembleia da República.
Jornalistas a escutar, em directo, o discurso de Jimmy Carter acerca do salvamento falhado dos reféns no Irão (1980). / Foto: Marion S. Trikosko
Os reféns norte-americanos foram libertados minutos depois da tomada de posse de Ronald Reagan, a 20 de Janeiro de 1981. Segue-se a entrevista com o autor de Den of Spies, feita via telefone, entre Lisboa e Brooklyn, onde Craig Unger reside.
Este livro chama-se Den of Spies [Covil de Espiões], que era o nome dado pelos iranianos à embaixada dos EUA em Teerão, mas era para ter um título diferente: Original Sin [Pecado Original]. Porquê esse outro título e por que não o usou?
Para mim, as palavras mais bonitas da fundação dos Estados Unidos foram escritas por Thomas Jefferson na Declaração da Independência, em 1776: “Todos os Homens são criados de forma idêntica”. É bonita, mas era uma mentira, pois naquele tempo havia escravatura e as mulheres não podiam votar. Jefferson nem sequer deu direitos de igualdade aos seis filhos que teve com uma das suas escravas, Sally Hemings.
Do meu ponto de vista, foi sempre uma mentira. Mesmo depois do fim da Guerra Civil [1861-65], reconstruímos o Sul e tudo iria estar bem com os afro-americanos, e também isso foi uma mentira.
Portanto, no fim, decido não usar o título de Pecado Original por estar demasiado próximo da raça e o meu livro não é sobre isso. Mas acho que o meu país foi fundado em mentiras e sempre as negamos.
Neste livro, como sabe, concentro-me na História Contemporânea, onde os Republicanos, repetidamente — em 1968, em 1972, em 1980, em 2000 e 2016 —, uma e outra vez, levaram a cabo uma espécie de traição.
O antigo presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter com o então primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin (1977). / Foto: Marion S. Trikosko
Esta entrevista acontece poucos dias após a morte do presidente Jimmy Carter, a pessoa que foi mais prejudicada por esta traição. Pensa que ele conhecia toda a verdade quando morreu?
Penso que ele soube o que aconteceu. Mandei-lhe o meu livro e não sei se teve a oportunidade de o ler enquanto estava no hospital. Mas, mesmo em 1981, ele encorajou o Congresso a investigar e foi bastante vocal em relação a isso, e não creio que não o teria feito se não soubesse a resposta.
Vamos então à origem do caso de 1980. No fim de Outubro de 1979, o Xá do Irão, que estava exilado na América Latina desde Janeiro, deu entrada num hospital de Nova Iorque para tratamentos oncológicos. Tanto David Rockfeller como Henry Kissinger foram os principais promotores desse internamento, alegando razões humanitárias. Jimmy Carter opunha-se, pois temia um ataque à embaixada em Teerão. Ora, foi precisamente isso que aconteceu dias depois, a 4 de Novembro, quando os estudantes atacaram a embaixada e derem início à crise dos reféns. O facto de o ataque ter sido a 4 de Novembro, um ano exacto antes das eleições presidenciais de 1980 — data já conhecida no dia do ataque, pois as eleições ocorrem sempre de quatro em quatro anos, na primeira terça-feira de Novembro, entre os dias 2 e 8 — podemos falar de uma coincidência ou de um acto premeditado?
Bem, se estamos a falar do que aconteceu da parte dos iranianos, ao tomarem de assalto a embaixada a 4 de Novembro, isso não sei. Simplesmente não sei. Agora, não há dúvidas de que a vinda do Xá para os Estados Unidos foi o que os levou a atacar a embaixada.
Jimmy Carter estava contra a ideia de admitir a entrada do Xá nos Estados Unidos, mas enfrentou uma poderosa oposição de David Rockfeller, Henry Kissinger, uma grande parte do sistema de serviços de informação e até do seu secretário de Estado, Zbigbnew Brzezinsky.
Pode ter sido uma coincidência que o ataque tenha acontecido a 4 de Novembro. Realmente, não sei dizer, mas foi a partir do momento em que o Xá foi admitido nos Estados Unidos que decidiram tomar a embaixada. E esse é um facto que temos de assumir como verdadeiro. Coincidência ou não, quem sabe?
No livro, diz que não foi a gestão da crise que preocupou os serviços secretos, mas sim o facto de haver uma crise. Pensa que aconteceu porque o presidente dos Estados Unidos era fraco e, se fosse outro presidente, com outro domínio dos serviços secretos, a crise teria sido resolvida de forma diferente?
Jimmy Carter tinha alienado de forma irrevogável a comunidade dos serviços de informação. Parte do problema foi ter nomeado Stansfield Turner chefe da CIA.
Após ter despedido George Bush…
É normal um novo presidente substituir o director da CIA quando assume o cargo. Bush demitiu-se poucos dias antes da tomada de posse de Carter — que aconteceu a 20 de Janeiro de 1977.
Mas o nome de Carter está ainda associado, depois da demissão de Bush, com uma série de despedimentos dentro da CIA, certo?
Certo. Quando Turner era chefe da CIA, mais de 800 pessoas foram demitidas. Foi um ‘massacre’ e alienou completamente a CIA contra Carter. E esse era o verdadeiro problema que o enfraqueceu enormemente.
Foi também com Carter, no início de 1978, que foi nomeado para número dois da CIA, como director-adjunto, uma pessoa chamada Frank Carlucci e que era, desde 1975, embaixador norte-americano em Lisboa. E, durante a sua estadia em Portugal, sempre se suspeitou que ele estava intimamente relacionado com a CIA. Este nome diz-lhe algo?
Escrevi um pouco sobre Carlucci num dos meus primeiros livros, House of Bush, House of Saud, e foi sobre a sua ligação ao grupo Carlyle. Neste livro não.
As circunstâncias em que ocorreu a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, numa explosão do avião em que seguia com o seu ministro da Defesa, suscitam ainda hoje muitas interrogações. / Foto: D.R.
Carlucci não surge neste seu recente livro e a investigação centra-se no papel de Bill Casey, o homem que era o chefe de campanha da candidatura Republicana de Ronald Reagan e George Bush e que, depois das eleições, tornou-se no chefe da CIA. Ele dizia que o mais difícil de provar era o óbvio. É esse o problema deste caso? Ser óbvio?
É uma daquelas coisas inteligentes que se dizem. No prólogo do meu livro menciono a revista satírica The Onion, que no seu número de resumo do século XX, quando se refere ao dia da tomada de posse de Reagan, apresenta uma capa falsa do The New York Times com o título: “Reféns libertados; Reagan apela ao povo americano a não somar dois mais dois”. Claro que toda a gente viu os reféns regressarem aos Estados Unidos, literalmente, cinco minutos após Reagan ter prestado juramento. E, claro, ele não poderia ter negociado a libertação nesses cinco minutos porque estava a fazer o discurso no pódio. E tinha de haver contactos. É difícil acreditar que os iranianos iriam devolver os reféns sem falarem com a administração Reagan. Portanto, a negociação tinha de ter começado mais cedo.
Provavelmente, um jornal satírico como o The Onion estava a dizer mais do que a imprensa de referência. Menciona no livro que, no caso Watergate, Bob Woodward e Carl Bernstein tinham o princípio de escreverem algo que tivesse sido confirmado por duas fontes diferentes. Neste caso, por vezes, havia cinco fontes e nem assim se escrevia a informação. Como explicar o silêncio dos jornalistas em relação a este caso?
Usei esse número quando mencionei a possibilidade de George Bush ter estado na reunião de Paris, entre os dias 18 e 19 de Outubro de 1980. Havia cinco pessoas que me diziam que tinha estado, mas nenhuma como fonte directa. Por exemplo, o espião israelita Ari Ben-Menashe disse-me que ouvira dizer que Bush esteve lá, mas não tinha a certeza. Era um tipo de informação que não era conclusiva e, na altura em que estávamos a fazer essa investigação, Bush era candidato à reeleição e, na época, era necessário ter mais fontes, dependendo do quão sério aquilo era. Continuo a ser agnóstico sobre Bush em Paris.
Mas, no caso de Casey, ele estava em Madrid no Verão de 1980, a negociar com iranianos?
Sim, absolutamente.
E a prova disso, a tal “arma fumegante”, é um telegrama diplomático onde a embaixada norte-americana em Madrid informava o Departamento de Estado sobre a presença de Casey na capital espanhola, numa altura em que, oficialmente, deveria estar a dar uma palestra em Londres, certo?
Certo. E também entrevistei um antigo agente, chamado Robert Sensei, que me confirmou que viajou até Madrid, em Agosto de 1980, com Bill Casey. E Casey tinha três álibis que foram caindo, um por um. Quando isso acontece, aproximamo-nos cada vez mais da verdade. Se eu tivesse de ser presente a um júri diria que, sim, Casey estava no meio do caso e era culpado. Mas, quanto a Bush ter estado na reunião de Paris, isso ainda está por confirmar. Sim, gostaria de ter mais provas.
Talvez os telegramas diplomáticos do embaixador norte-americano em Paris pudessem ajudar a esclarecer isso. Pediu ao Departamento de Estado para os consultar?
Tanto quanto sei, não havia telegramas diplomáticos relacionados com Bush em Paris.
Este livro, ao contrário de outros que já escreveu, não parece estar a ter a mesma divulgação junto da imprensa norte-americana. Porquê?
Penso que este caso é um dos episódios mais escandalosos da história da imprensa norte-americana, mas não é apenas ignorarem a história, mas terem-na tratado da forma errada. Investigaram a história de forma agressiva, como se não quisessem que fosse publicada. E penso que houve duas forças que contribuíram para isso. Uma é aquilo que chamo de “jornalismo de acesso”. Explico no livro que os jornalistas têm um acesso diário a estas pessoas e, por isso, não vão querer dizer nada crítico em relação às pessoas às quais precisam de aceder. Não sei se em Portugal acontece o mesmo…
Sim, em Portugal também temos disso, sim, temos e muito…
Pois (risos)… A segunda força, e uma das conclusões do livro que, para muitas pessoas é difícil de aceitar — e, a propósito, sou judeu e já fui acusado de antissemita por reportar isto — mas não se pode ler o meu livro sem concluir que Israel desempenhou um papel central numa operação secreta de sabotagem nas eleições norte-americanas e isso é uma violação da nossa soberania.
O actual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. / Foto: D.R.
Isso leva-me, então, a uma outra questão: quando juntamos aquilo que escreveu sobre Trump poder estar comprometido com os russos — sobretudo desde o seu casamento, nos anos 80, com uma pessoa oriunda de um País de Leste —, e o facto de Putin, antigo agente do KGB, conhecer como os republicanos conquistaram o poder em 1980 e como, desde então, têm gerido a traição a Carter, então Putin sabe bem como é frágil a democracia norte-americana. Fiz uma leitura correcta da situação actual, não?
Oh, sim! Absolutamente! (Riso nervoso. Isso é o foco do livro. Aquilo que funcionava com o compromisso era o que não se usava, que ficava nos bastidores. Mas Trump é um sem-vergonha e não há nada que lhe faça dano, se percebe o que quero dizer.
Falo agora em relação a Portugal. O meu país investigou um negócio de tráfico de armas para o Irão durante o tempo em que se deu a traição a Jimmy Carter, como parte do móbil do assassinato do primeiro-ministro de Portugal e do ministro da Defesa. E sabemos aqui que houve movimentações nesse sentido. Agora, encontrou algo sobre Portugal na sua investigação?
Não há dúvida de que há um episódio interessante que parece ser mais do que uma coincidência. Henry Kissinger era, claramente, um jogador central ao conseguir que o Xá do Irão fosse admitido nos Estados Unidos. Ele, os Rockfeller com o seu Chase Manhattan Bank e o antigo sistema de informação, pressionaram Carter a admitir o Xá. E, depois, claro, isso desencadeou a crise dos reféns. Então, logo após a vitória de Reagan, em Novembro de 1980, quando é preciso mandar armas para o Irão e Jimmy Carter ainda é presidente, temos Kissinger a fazer uma viagem até Portugal. O que foi ele fazer? Haverá carregamentos de armas para o Irão a chegar através de Portugal e esperamos que os deixem passar? Quem sabe?
Pensa que, com Donald Trump — e vendo as promessas de trazer à luz determinados documentos secretos, como aqueles envolvendo a morte de J.F. Kennedy —, ele poderá revelar algo sobre o que aconteceu em 1980?
Penso que qualquer coisa que ele faça em relação a segredos será para o seu próprio interesse. E penso que não vai abrir a porta para que a nossa democracia fique mais saudável.
À beira dos 60 anos, e perto da reforma, Paulo Carmona recebeu o convite inesperado para ser director-geral de Energia e Geologia. Foi nomeado para o cargo no final de Agosto do ano passado.
A vista do seu gabinete, em Entrecampos, é um espelho do cenário que se vive no sector energético, de transição e transformação. Vê-se o ‘velhinho’ Edifício Marconi que tem, em frente, em construção, o novo edifício da Fidelidade; no quarteirão ao lado, onde estava parte da Feira Popular, está o terreno vazio que será preenchido com um novo edifício do Banco de Portugal.
O telefone tocou diversas vezes durante a entrevista. Deu para sentir a azáfama de quem tem muitas solicitações.
Logo no início da entrevista ao PÁGINA UM, no início de Janeiro, Paulo Carmona confessou que aceitou o convite para este cargo por querer “retribuir” ao país e à sociedade o que de bom recebeu na vida. “Como tive sorte, como fui feliz nesse aspecto, em várias frentes — pessoais, familiares, profissionais — só tenho de estar agradecido e de devolver à sociedade o que fez por mim”. E acrescentou: “é preciso levantarmo-nos do sofá, da zona de conforto, e ir lutar por aquilo que acreditamos”. “É um país fantástico. Pelo menos, digo aos meus filhos: estou a fazer algo pelo vosso futuro”. Isto, apesar de dois dos seus três filhos residirem actualmente no estrangeiro.
Paulo Carmona no seu gabinete na sede da Direcção-Geral de Energia, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
Mas o ter aceite o convite faz parte da postura que adoptou na vida, de se render perante as oportunidades. Foi também, assim, que antes de chegar à liderança da DGEG, aceitou ser coordenador na Estrutura de Missão para o Licenciamento de Projetos de Energias Renováveis 2030. “Nada na minha vida foi planeado. A minha vida é uma sucessão de acasos”, disse.
Antigo dirigente da Iniciativa Liberal, António Carmona, de 59 anos, é licenciado em gestão, administração e gestão de empresas pela Universidade Católica e concluiu ainda programas avançados na Kellogg School of Management e na AESE Business School.
Trabalhou como gestor e consultor, e, entre os vários cargos que desempenhou, foi presidente do Fórum dos Administradores e Gestores de Empresas. Na área de energia, foi ‘chairman’ na National Oil Reserves Agency Association e presidiu à Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis. Mais recentemente, também fundou a Associação Portuguesa dos Contribuintes, que teve de ‘por de parte’ para de dedicar às suas novas funções. Teve também de abdicar de cargos como administração não executivo em quatro empresas nacionais e ao cargo de vice-presidente da Associação Empresarial de Portugal, dona do Centro de Congressos de Lisboa.
Apesar de lamentar ter de deixar os diversos cargos que ocupava em empresas e organizações, pensa que valeu a pena. “Foi por uma boa causa, espero eu”, disse. “As coisas que me acontecem, acontecem sempre por bem, pela positiva”. Como sou uma pessoa com alguma sorte, se vim para aqui é porque os deuses, Deus, a mística (o quis)” , disse.
Foto: PÁGINA UM
Na DGEG, antecipa muito trabalho e a sua prioridade é “organização”. “Não funciona mal, pode funcionar melhor e pode ir no caminho da excelência que é isso que estamos a fazer; a tentar transformar, ao nível de pessoas, ao nível da formação, digitalização, com algum apoio do PRR-Plano de Recuperação e Resiliência, mas sobretudo com organização”, afirmou.
Paulo Carmona garantiu que, para já, não está na mesa a criação de um super-organismo que concentre as várias entidades do sector da energia e da geologia em Portugal. “Estava no programa eleitoral” e, quando Paulo Carmona foi nomeado, “falou-se nisso”, até porque foi gestor. “Mas, para já não está nada, não existe nada, não fui contactado para nada; esse projecto – não digo que está parado – mas não existe, nesta altura, esse conceito de fusão”, asseverou. “Acredito que, mais tarde ou mais cedo possa acontecer”. Mas há muitos outros temas mais “urgentes e prioritários”, como a organização da DGEG.
Lidera a DGEG numa altura em que Portugal, como outros países, de deparam com o ‘trilema energético’, tendo de gerir a transição da descarbonização, a par de garantir a soberania, independência e segurança energética, e, ao mesmo tempo, levar a cabo essas duas metas sem sobrecarregar os consumidores. Até porque “Portugal é um país pobre” e há que pensar nos consumidores. Muitos vivem em situação de pobreza energética, sem aquecimento.
Foto: PÁGINA UM
Por isso, defende a posição do actual Governo que está “entusiasmado” com o Plano Nacional de Energia e Clima 2030, mas não está “excitado”, como o anterior governo de António Costa. “Estar entusiasmado não é estar excitado ao ponto de ficar cego”. disse.
Nesta entrevista, falou também sobre o primeiro leilão de energia eólica offshore do país e sobre a meta de Portugal duplicar a electricidade renovável até 2030, pelo que a DGEG terá de acelerar o licenciamento. E lembrou que “grande parte da nossa política energética é decidida em Bruxelas”.
Mas garantiu: “em termos de políticas energéticas, vamos construir um futuro que será melhor para os portugueses, mas com mais bom-senso, mais ligado à terra.”
Para Paulo Carmona, prosseguir com a descarbonização da economia portuguesa e europeia só faz sentido se a política for acompanhada pelos países que são grandes poluidores, como a China e a Índia. Lembrou que “somos responsáveis por 0,12% das emissões a nível mundial”. Assim, “estamos na linha da frente dos países com mais redução de emissões nos últimos anos”. Também “somos um país com poucas emissões per capita, dentro da Europa, que, por sua vez, no mundo é das das zonas com menores emissões per capita“.
Contudo, defendeu que tem de haver uma maior solidariedade por parte dos grandes poluidores — a China, a Índia, alguns países em África — e que dominam o mercado de matérias-primas. “Temos de nos preocupar mais com o tema da solidariedade mundial porque até poderíamos, eventualmente, descarbonizar tudo em Portugal; seria difícil, com custos […] mas conta com 0,12% das emissões mundiais”, lembrou. “Basta a China abrir uma daquelas mega fábricas de produção de electricidade à base de carvão, lá vão todos os esforços de Portugal em 2 ou 4 anos”, salientou.
Foto: PÁGINA UM
Disse ainda que os manifestantes a favor da descarbonização, “em vez de andar a fazer manifestações ou andarem a pinchar as coisas, deviam fazer manifestações em frente à embaixada dos outros países que poluem mais”.
“O planeta está a ser salvo, aqui na Europa. É onde estão a ser feitos maiores esforços no caminho da transição energética e descarbonização. Não podemos ficar sentados e quietos, não é isso. A chave da descarbornização e transição energética não é na Europa que se decide; é nos outros países mais poluidores, e que nós temos da nossa parte, ou ajudá-los, ou fazer pressão para que deixem de ser poluidores”. No caso de Portugal, “se reduzirmos tudo, 0,12%, o planeta nem nota”.
Mariana Leitão, 42 anos, fez carreira como gestora e assume ter um interesse particular por tecnologia, mas é hoje a líder do Grupo Parlamentar da Iniciativa Liberal (IL) e na última convenção do partido subiu a vice-presidente. É também a candidata da IL à presidência da República, nas eleições do próximo ano.
Licenciada em Relações Internacionais, tem pós-graduações em ‘International Management’ e em ‘Data Science & Business Analytics’. Uma das suas paixões é o ‘bridge‘ e é mesmo jogadora federada desta modalidade. Representou Portugal nos campeonatos da Europa de ‘bridge‘ de 2018 e 2022 e no campeonato do Mundo de 2022.
Nesta entrevista ao PÁGINA UM — realizada em Dezembro, antes da IX Convenção da IL que reelegeu Rui Rocha para a liderança do partido e antes de se saber que seria a candidata da IL na corrida a Belém —, Mariana Leitão falou sobre a sua vida na política e reconheceu que está satisfeita com a profissão: “gosto daquilo que faço”. Destacou que, sobretudo, quer “sentir que está a fazer a diferença na vida das pessoas”.
Mariana Leitão, deputada da Iniciativa Liberal. / Foto: D.R.
Para a deputada, “enquanto líder parlamentar, é um desafio muito grande estar à frente de uma bancada que tem uma visão tão diferente [dos restantes partidos]”. “Defender essa visão para o país é algo que me orgulha bastante e é algo que eu quero deixar; é quase uma marca que eu quero deixar na minha vida”, afirmou. Do que não gosta na vida como deputada? “Da carga burocrática que também existe na política”. Essa não é a sua “zona de conforto”.
Na entrevista, abordou os temas de bandeira da IL, como a necessidade de haver políticas que potenciem o crescimento económico do país e a reforma do Estado. Aqui, defendeu que o “Estado deve ser forte naquilo que é essencial”, mas deve ser “mais leve, menos burocrático”, ficar de fora “das áreas onde não tem de estar”. Também abordou o tema do choque que vai ocorrer entre a revolução digital em curso, com o advento da Inteligência Artificial, e a forma como funciona o Estado e entidades públicas em Portugal.
Sobre a corrida a Belém, a actual candidata à Presidência da República, elencou, na entrevista, os traços do perfil de um bom candidato. “É fundamental que haja um candidato que represente as nossas ideias liberais e esta visão liberal do país. O momento de uma campanha presidencial deve servir também para conseguirmos levar as nossas ideias às pessoas e mostrar que há um país diferente que podemos ter se as nossas ideias conseguirem singrar”, afirmou. Salientou, na altura que, “dos candidatos que se vai falando, não nos parece que nenhum represente este espaço e estas ideias, de liberalismo”.
Foto: D.R.
E sobre o perfil de um Presidente da República? Para Mariana Leitão, “é alguém que é um garante da estabilidade, que tem a noção do seu papel e que não cria situações desnecessárias, mas tem de ser alguém que, do nosso ponto de vista, e daquilo que é o ideal de um Presidente da República para um liberal […] tenha esta convicção de que, efectivamente, o país precisa de um caminho diferente”, um “caminho em que tem de ser potenciando o crescimento económico e garantir políticas que promovam o crescimento económico”. Sempre que houver um desvio desse caminho, o Presidente da República deve alertar para esse desvio.
Na entrevista, a agora vice-presidente da IL frisou que o partido deveria ter “ou um candidato próprio ou alguém que se possa apoiar que represente essas ideias, que as defenda e que as consiga comunicar de forma eficaz”. “[Deve] ser alguém com a consciência da urgência do crescimento económico, de um Estado focado naquilo que é essencial e saindo da frente daquilo que é acessório”. Além disso, deve defender “a desburocratização, a simplificação”. São temas que “o candidato a Presidente da República liberal tem de defender e de ter esta crença de que, desta forma, conseguimos sair desta estagnação em que nos encontramos”.
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos vem reforçar a tendência que se passa na Europa de normalização de uma nova extrema-direita. Para Fernando Rosas, historiador e fundador do Bloco de Esquerda, “o momento é muito preocupante em termos internacionais” e “estamos a viver um período muito semelhante ao de 1939”, que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Mas não vai ser um fascismo igual ao que se assistiu naquela época.
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o professor catedrático emérito da Universidade Nova de Lisboa manifestou preocupação com o que considera ser uma nova era de um regime fascista, com uma nova extrema-direita reconfigurada, e aliada de partidos tradicionais de direita. Além disso, Fernando Rosas sublinhou o apoio que oligarcas financeiros e tecnológicos dão a este novo regime que surge como sendo aparentemente benévolo, para resolver os problemas das populações, mas que irá acabar por se impor como autoritário e levar a um aumento das desigualdades económicas e sociais.
Fernando Rosas, na sua residência, em Lisboa, onde recebeu o PÁGINA UM para esta entrevista. / Foto: PÁGINA UM
O aviso é também deixado por Fernando Rosas no seu mais recente livro ‘Direitas velhas, direitas novas’, no qual analisa a evolução da extrema-direita na Europa ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial.
Para o fundador do Bloco de Esquerda, a Europa está a normalizar a extrema-direita, com a actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a contribuir para essa realidade, através de alianças e políticas que beneficiam grandes grupos económicos e interesses oligárquicos, designadamente a indústria de armamento.
Para o historiador, nesta ascensão da nova extrema-direita reconfigurada, o anti-semitismo nazi foi substituído pelo anti-islamismo, a homofobia, a xenofobia e a repressão sexual.
Mas esta nova “extrema-direita não cai do céu aos trambolhões, não é um fenómeno que [surgiu] de repente”, porque “tem origem na crise sistémica do capitalismo neoliberal”, numa “crise económica, uma crise social e uma crise política”. Isto porque “as instituições desacreditaram-se, porque abandonaram as pessoas e as pessoas respondem com medo e respondem com raiva”. É destas emoções primárias que a nova extrema-direita se alimenta para crescer, defendeu Rosas.
Foto: PÁGINA UM
“[Em] alguns desses partidos será uma direita que se reconfigura, cavalgando esse descontentamento e cavalgando totalmente sem escrúpulos. Explorando os instintos primitivos das pessoas, o racismo, a homofobia, a concorrência desbragada, o messianismo, a aceitação de verdadeiros palhaços, bobos da corte que se apresentam como líderes de opinião”, afirmou.
Alertou que “a mentira, a manipulação e esse cavalgar tem uma grande novidade em relação ao que se passou nos anos 20 e nos anos 30 do século passado, que são os meios que têm, a manipulação algorítmica, através das redes sociais, das vontades”, numa “verdadeira operação de contra-revolução cultural” e de “manipulação das vontades, dos sentimentos”. Porque “os eleitorados não são maioritariamente fascistas ou neofascistas; os eleitorados estão zangados, e há uma parte da extrema-direita que se reconfigurou para cavalgar esse descontentamento”.
Defendeu que com décadas de capitalismo neoliberal, o que temos hoje “são os resquícios de solidariedade social, trabalho coletivo, de espírito de comunidade” porque o lucro se tornou o objectivo central e tudo foi mercantilizado. “A mercantilização é o passar por cima do outro, é o espírito das ‘startups‘, o trepar por cima do outro e fazer o que for preciso para vencer”, disse.
Para Fernando Rosas, a esquerda precisa de “saber estar em minoria e lutar contra a corrente” para combater o novo fascismo e a guerra que se avizinha. “Remar contra a corrente é a história da esquerda”, disse. Lembrou que “a luta económica, a luta política contra a exploração do capital é indissociável de outras lutas que não são propriamente económicas, mas são lutas e ideológicas, são lutas do espírito, são lutas culturais”.
Mas defendeu que também a sociedade civil se precisa de movimentar. “E eu tenho confiança que a cidadania tem força suficiente, se souber caminhar nesse sentido, mas eu diria que o mundo que aí vem é complicado”, avisou.
Pelo meio, deixou fortes críticas à comunicação social, que acusa de contribuir para a ascensão da nova extrema-direita, porque “querem ganhar com a especulação, com as audiências, com o espectáculo” e reproduz o ambiente de normalização de partidos, como o Chega, que “transporta a subversão da democracia”.
Fernando Rosas defendeu que acções como a recente manifestação contra a acção policial na Rua do Benformoso, em Lisboa, são a base para a criação de uma plataforma que una movimentos para combater o que classifica de novo fascismo. / Foto: D.R.
Sobre os Estados Unidos, apontou que o fenómeno do “super-identitarismo” fez com que a “luta deixou de ser entre oprimidos e opressores e passou a ser entre brancos e pretos, mulheres e homens, heterossexuais e transexuais ou homossexuais”, levando à divisão da “frente que tem que haver num objectivo comum: a emancipação política e social”.
Na Europa, incluindo em Portugal, defendeu que deve haver uma plataforma que junte a esquerda, com acções em conjunto que fomentem uma plataforma comum para combater “este novo anti-fascismo”. Mas alertou que esta plataforma “que é preciso construir não pode ter ilusões acerca do capitalismo neoliberal” porque combater a extrema-direita actual “é resolver o problema da habitação, dos salários, do desemprego”. É isso que vai tirar a base e o eleitorado dos novos partidos de extrema-direita, defendeu.
Os novos agricultores vêm dos grandes centros urbanos. Por isso, Jaime Ferreira, presidente da Agrobio – Associação Portuguesa de Agricultura Biológica, não duvida que “o futuro da agricultura está na cidade”. “É da cidade que vão sair as pessoas que vão para os campos. Os futuros agricultores vêm da cidade”, disse o engenheiro florestal em entrevista ao PÁGINA UM. Mas há uma dificuldade que os novos agricultores enfrentam: não encontram terrenos e, sobretudo, a preços razoáveis.
Por isso, nesta entrevista, o presidente da Agrobio também falou sobre a nova lei dos solos, deixando fortes críticas à medida, avisando que “está aberta a porta para usarmos solos que deviam estar guardados para uma função nobre como é a produção dos alimentos”. “Vai aumentar ainda mais os preços da terra e afastar pessoas da agricultura”. “Vai aumentar ainda mais a especulação (imobiliária)”, afirmou, frisando que se trata de “um problema sério de alienação de solos agrícolas”.
Jaime Ferreira, presidente da Agrobio. / Foto: D.R.
O decreto-lei do Governo que alterou o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial foi publicado em Diário da República no dia 30 de Dezembro visando facilitar a reconversão de solos rústicos em urbanos para a construção de habitação. Segundo o Executivo, o objectivo é baixar os preços da habitação, pelo aumento da oferta, através de arrendamento acessível e habitação a custos controlados. A revogação do diploma foi esta sexta-feira debatida no Parlamento, mas um acordo do Governo com o PS permitiu manter as alterações ao RJIGT. O diploma, com alterações propostas, prosseguiu para discussão em sede de especialidade.
Jaime Ferreira alertou que a nova lei tem outras implicações, nomeadamente ambientais e prevenção de catástrofes. Isto porque, por um lado, pode levar a que sejam feita construção de habitação em zonas próximas de rios e zonas de cheia e, por outro, porque promove a densificação, sendo que é mais difícil proteger casas que estejam espalhadas no território, em caso de catástrofes naturais, como nos incêndios. Em termos ambientais, também tem implicações em matéria de saneamento, gastos de energia e transportes, apontou.
Defendeu que a solução para o problema da crise de habitação não deve vir à custa da agricultura. “Um estudo apontou que existem em Portugal três fogos para cada pessoa”, afirmou, indicando que há casas a mais no país, pertencendo muitas delas ao Estado, designadamente autarquias, mas também a entidades como a Santa Casa da Misericórdia, por exemplo.
Fundada em 1985 para divulgar e promover a agricultura biológica em Portugal, a Agrobio conta hoje com 9.200 associados e assume-se como associação de agricultores, consumidores e apoiantes da causa ambiental. Opera 12 mercados semanais de venda ao consumidor, 10 dos quais na área metropolitana de Lisboa. Também presta apoio aos agricultores, promove cursos de formação e iniciativas pedagógicas em torno de agricultura biológica. Mas, para Jaime Ferreira, o objectivo original da Agrobio ainda não está cumprido, “em particular na área da informação”, havendo ainda “muitos mitos” em torno da agricultura biológica.
Apesar disso, Portugal está acima da média europeia de área de cultivo dedicada a agricultura biológica. A meta que Portugal fixou, para 2027, junto da União Europeia (UE), era de 19%. Na UE, foi fixada a média de 25% até 2030. “Portugal está acima da média. Desde 2020 para hoje, 2025, já temos 865 mil hectares em agricultura biológica. Corresponde a cerca de 27% da superfície agrícola útil em Portugal. Já passámos os 25%”, disse Jaime Ferreira.
E há espaço para crescer. A UE disponibilizou 15 mil milhões de euros em fundos para o sector da agricultura, incluindo a conversão de áreas de cultivo convencional para produção biológica. Mas, a nível europeu, apenas 4% dos produtos agrícolas que chegam à mesa dos consumidores são de origem biológica.
A Agrobio inaugurou, no dia 13 de novembro de 2024, o Mercado biológico Agrobio do Fanqueiro, em Loures), junto à Escola Básica do Fanqueiro. Os mercados da Agrobio têm uma frequência semanal e visam aproximar os produtores dos consumidores. / Foto: Agrobio.
Apesar de Portugal estar acima da meta média fixada pela UE em área de agricultura biológica, “70% são pastagens, forragens e culturas arvenses”, o que “quer dizer que estão ligadas à produção animal”. Só que os animais produzidos de modo biológico estão a chegar ao consumidor como sendo de origem convencional. “Há um problema da valorização”, pelo que a Agrobio defende a criação de incentivos para que o produto chegue ao consumidor com certificação “bio”.
Por outro lado, destacou que a agricultura em Portugal tem um problema: “está desligada dos interesses dos consumidores”, que procuram mais legumes, vegetais, leguminosas e frutos secos. Além disso, há que pensar na soberania e na segurança alimentar a nível nacional, numa altura em que a própria UE está deficitária, dependendo de importações para satisfazer as necessidades internas. Nessa matéria, a nível comunitário, “do ponto de vista de produção alimentar, nós regredimos”, avisou.
Mais de 2.100 pessoas assinaram a ‘Petição Por um Programa do Estado Português de Indemnização das Vítimas de Reações Adversas a Vacinas contra a Covid-19’. A autora da iniciativa é a médica cardiologista Teresa Gomes Mota. Em entrevista ao PÁGINA UM, a antiga vogal do conselho de administração da Fundação Portuguesa de Cardiologia alerta que o país está num estado de negação por não reconhecer sequer que existem portugueses que sofreram reacções adversas às vacinas contra a covid-19. Também sublinhou que, nas actuais condições, seria de recomendar que, na hora de vacinarem contra a covid-19, todas as pessoas tivessem acesso aos riscos que incorrem. A cardiologista também deixou fortes críticas à falta de transparência em torno do processo de vacinação contra a covid-19, com o Infarmed a divulgar alguns dados mas sob ordem judicial.
Para a experiente médica, os portugueses que tiveram reacções adversas às vacinas contra a covid-19 foram deixados ao abandono. Portugal é dos poucos países na Europa sem um programa de indemnização àquelas vítimas.
Teresa Gomes Mota, cardiologista, na sede do PÁGINA UM, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM
Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Teresa Gomes Mota destaca que, para já, seria positivo que o país e as autoridades reconhecessem que existem vítimas das vacinas contra a covid. Para a cardiologista, o país está num estado de negação, nem sequer reconhecendo que aquelas vítimas existem.
Por outro lado, também defende que maior transparência em todo o processo de farmacovigilância e criticou o Infarmed, por apenas ter divulgado alguns dados depois de o PÁGINA UM ter avançado com acções na Justiça para aceder a dados do regulador do sector farmacêutico.
Defendeu também a importância de ser dada informação clara aos que decidem tomar as vacinas contra a covid-19, para que possam, verdadeiramente, fazer uma escolha
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