Categoria: Exame

  • Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa

    Imaginemos, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da taxa de afogamentos para níveis próximos de zero. Nessa linha, impunham que toda e qualquer pessoa, em qualquer circunstância, teria de usar braçadeiras e bóias. No limite, mesmo que não estivesse próxima de algum espaço aquático, não fosse, por exemplo, uma conduta de água rebentar acidentalmente e causar uma inundação. Mesmo um Michael Phelps seria obrigado a usar bóia e braçadeiras; todos os nadadores, mesmo em provas olímpicas. Quem não aceitasse, seria discriminado.

    girl swims on swimming pool

    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável das mortes por afogamento das pessoas que não sabiam nadar. Porém, para o extenso grupo de pessoas que sabia nadar, a aplicação destas medidas nenhum benefício traria; e talvez mesmo causasse transtornos e prejuízos. Acidentes, até. Não será, por certo, fácil conduzir um carro com braçadeiras e bóia.

    Imaginemos também, por absurdo, que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução da incidência de melanomas para níveis próximos de zero. E decretavam então que todos as pessoas, desde os mais esbranquiçados celtas até aos negros do Senegal, tivessem obrigatoriamente de usar protector solar factor 50, tanto no Verão como no Inverno, tanto nas chuvosas terras de Albion como na arizonense Yuma, conhecida por ser a mais soalheira cidade do Mundo. Quem não aceitasse, seria discriminado.

    No final, a avaliação desta política revelaria, por certo, uma diminuição considerável dos cancros de pele, mas introduziria um desperdício de recursos económicos incomportável e desnecessário. Sem contar, tendo em conta o uso massivo e intenso desses produtos, com os efeitos adversos, desde a simples irritação e acne até outros problemas dermatológicos mais graves.

    Agora, por fim, imaginemos que os governos mundiais decidiam implementar uma política de redução, para níveis próximos do zero, da taxa de mortalidade de uma certa infecção viral, que se manifesta(va), em termos de agressividade, de formas muito distintas. Ou seja, a maior ou menor susceptibilidade depende da idade, do sexo, das comorbilidades associadas e até das condições vivenciadas nas diferentes comunidades.

    Ora, dever-se-ia, nesse caso, depois de se fabricar um fármaco em tempo recorde, inocular toda e qualquer pessoa? Forçar todas pessoas a tomarem uma vacina, acenando ser voluntária, mas recorrendo depois a mecanismos pouco ortodoxos de coacção e discriminação?

    A resposta a estas perguntas deveria ser dada enquanto ainda se reflectisse sobre os exemplos das bóias e do protector solar.

    O risco e a incerteza

    As vacinas contra a covid-19 são, tecnicamente, medicamentos profilácticos que protegem cada pessoa inoculada de desenvolver doença grave ou de morrer. Não concedem imunidade de grupo. São como a bóia para quem não sabe nadar; o protector solar para quem é caucasiano. Talvez sejam um pouco mais: reduzem a transmissibilidade se o vacinado ficar infectado – embora num período muito curto –, mas trazem consigo uma desvantagem: a incerteza sobre os efeitos a longo prazo.

    Em Saúde Pública – que é uma vasta área que depende de muitas especialidades, e talvez, na verdade, até mais de Ciências Sociais do que de Medicina (no sentido de prática clínica) –, importam sobretudo dois aspectos fundamentais: a prudência e os custos-benefícios-incerteza, estando estes todos associados de forma íntima. E importa também, no meio de tudo isto, uma adequada gestão de recursos financeiros. O dinheiro, parecendo, não é elástico.

    Manda sempre a prudência – aplicada tantos aos cuidados de saúde como à gestão do quotidiano – que se pondere se uma solução no presente não se transforma num problema futuro. Note-se que a prudência tem em conta tanto o risco como a incerteza – que, muitas vezes, de forma equívoca, são considerados sinónimos. Não são. Muito pelo contrário.

    man standing on rock in the middle of clip

    Um risco constitui uma probabilidade conhecida em relação ao futuro. A incerteza mede o grau de ignorância sobre o futuro. O risco é uma probabilidade; tem sempre um número a si associado. Se não tem, é uma falácia. Quanto à incerteza, não se consegue quantificar, e muitas vezes nem se sabe muito bem o que seja ou possa vir a ser. É um buraco negro, mesmo se desconfiarmos daquilo que tenha dentro.

    Por exemplo, podemos hoje conhecer, com base no passado, qual o risco de ataque cardíaco de uma pessoa de determinada idade que andou a comer fast food durante anos. Por uma simples razão: existe um histórico; sabe-se que, no passado, X pessoas de um grupo de Y com maus hábitos alimentares tiveram essa consequência.

    No caso das vacinas contra a covid-19 – ainda mais por a maioria usar uma tecnologia nunca aplicada em larga escala em humano – , esse histórico é pequeno, demasiado curto. Tem pouco mais de um ano. Ou seja, no curto prazo até podemos estimar, com razoabilidade, uma razão custo-benefício muito favorável ao benefício, mas o longo prazo é uma incógnita absoluta.

    A história das outras vacinas não conta. Em Ciência, como na teologia, o hábito não faz o monge. Não houve tempo suficiente de observações empíricas. Ponto. O longo prazo é, assim, incerto. Pode ser nada; pode ser tudo. É como se aceitássemos um benefício (não ter doença grave ou evitar a morte numa certa probabilidade) por troca da compra de um bilhete para se jogar roleta russa no futuro, não se sabendo sequer se haverá revólver, se existe gatilho ou se afinal, dramaticamente, o carregador está cheio de balas. Há quem aposte, se o benefício em causa for relevante; outros não, se o ganho potencial poder ser muito menor do que a perda hipotética. A Psicologia e a Economia têm tratados sobre o assunto.

    Além de tudo isto, devemos enquadrar o conceito de longo prazo. Em Economia, o longo prazo são cinco anos. Em Saúde, ou em Demografia, aos 85 anos de idade, o longo prazo já nem quase faz sentido. Ultrapassado o limiar da esperança de vida, cinco anos pode ser muito. Para um adolescente de 15 anos, o longo prazo mede-se por década, podem ser 20, 30 ou até 70 anos. “Que se tenha noção”, como diria o outro.

    Perante isto, mas reconhecendo uma emergência sanitária decorrente desta pandemia (ou já endemia), que fazer se se tem um fármaco disponível, como as actuais vacinas, e impactes muitos distintos da covid-19 nos diferentes grupos populacionais? E que fazer quando a incerteza de longo prazo não aconselharia uma vacinação massiva?

    Ora, dever-se-ia olhar para os seus benefícios, analisar o custo-benefício, ponderar com prudência sobre as incertezas. Tudo em função do custo e do benefício, das opções individuais, mais ainda após se constatar que a imunidade de grupo se tornou uma quimera. Enfim, raciocinar e debater.

    Algo que jamais sucedeu quando se decidiu implementar os programas vacinais contra a covid-19. A politização da ciência e a ciência política dominaram e, hélas, tiraram aquilo que mais nobre tinha a Ciência: o permanente debate e questionamento.

    gray monkey under sunny sky

    A gravidade da covid-19 sempre foi apresentada – pelas autoridades de saúde, seus peritos, e pela imprensa mainstream – como se fosse similar para qualquer pessoa. Como se o risco fosse quase semelhante. Não é, nem nunca foi. Nesta, e em qualquer outra doença.

    A iliteracia científica permitiu, em parte, esta situação. Achou-se que, se qualquer pessoa podia ser infectada pelo SARS-CoV-2, então qualquer pessoa pode morrer de covid-19. E pode: só que entre o pode e o não vai morrer surge um fosso enorme quando olhamos individualmente as pessoas ou os grupos etários.

    Na verdade, felizmente, a covid-19 não apresenta um padrão extraordinário. A sua taxa de letalidade mostra uma perfeita diferenciação em função da idade, do sexo e das comorbilidades (que entram em linha com a idade e o sexo). Entre países haverá, por certo, idiossincrasias, talvez por razões genéticas, também porventura por motivos meteorológicos. E há também razões sociais: basta olhar para as taxas de mortalidade diferentes nos Estados Unidos entre brancos, hispânicos e negros. Ou entre os Estados mais ricos do Brasil e os mais pobres.

    Porém, em cada país ou região, há padrões facilmente identificáveis. A covid-19, em termos globais, de impacte, não é surpreendente, nem registou uma evolução que cause espanto. Aliás, como todos os outros vírus, o SARS-CoV-2 adaptar-se-á aos seres humanos; não os extinguirá nem matará uma franja significativa da população. Esquecemo-nos que vivemos na melhor época da Humanidade para enfrentarmos uma pandemia. Graças à Ciência.

    Portanto, nesse aspecto, se colocarmos a letalidade da covid-19 por idade ao lado do quociente de mortalidade no prazo de um ano também por idade, veremos curvas praticamente paralelas. A covid-19 tem-se mostrado, neste aspecto, muito previsível. Quase não mata população jovem; mata que se farta pessoas muito, muito idosas. Mata sobretudo pessoas que ultrapassaram a expectativa de vida. Há um sem-número de outras doenças e afecções com padrões similares, garanto.

    Em Portugal, no caso de um idoso de mais de 80 anos, sabe-se hoje que a taxa de letalidade atribuída à covid-19 ronda os 15% (em cada 100 casos positivos, morrem 15). Convém referir que, antes da pandemia, a probabilidade de morte nessas idades era praticamente semelhante. Uma pessoa de 90 anos tem um risco de morte de 20% no prazo de um ano.

    Voltando à covid-19. No grupo etário dos 70 aos 79 anos, a taxa de letalidade já anda pelos 5,6%. E baixa ainda mais à medida que se caminha para os jovens e crianças. Na faixa dos 30 aos 39 anos é somente de 0,027%. Nos 20 aos 29 anos é de 0,07%. E mais se reduz nos menores de 20 anos. Neste grupo não é um risco que se veja. A pneumonia, sendo rara nestas idades, chega a ser mais perigosa.

    A probabilidade de morte (risco) por covid-19 de um idoso com mais de 80 anos é, assim, mais de 4.000 vezes superior ao de um menor de 10 anos. E chega a ser superior a 9.500 vezes se confrontada com o grupo dos 10-19 anos. São dados nacionais, oficiais, indesmentíveis. Já escrevi sobre isto.

    Significa então que o risco é zero nos mais jovens? Não. Como nunca houve com nenhuma outra doença anterior à pandemia.

    A vida abre a possibilidade de se ficar morto – eis a célebre verdade do senhor de La Palice, cujos soldados cantaram a sua morte dizendo que ele ainda respirava antes mesmo de ficar morto. Mas a probabilidade de tal suceder é incomensuravelmente diferente em função da idade ou de outras características. Actualmente, a probabilidade do Michael Phelps morrer afogado não é zero, mas é tão improvável que seria estúpido obrigá-lo a munir-se de uma bóia na piscina. Mas se calhar, quando ele tiver uns 100 anos, porventura já será uma ideia a ponderar, embora talvez não seja eticamente muito correcto forçá-lo a tal.

    Uma análise comparativa

    Vou agora assumir uma premissa temerária para justificar a razão do título deste texto, porque necessito da argumentação das autoridades de saúde, dos muitos peritos e da imprensa mainstream. Fiz então um exercício académico, mas útil, assumindo ser a vacina eficaz, e a única causa para se registar agora uma variação muito favorável na mortalidade por covid-19 entre o ano de 2020 e o ano de 2021. E assumo também que esse efeito é global e se estende, por igual, a todos os grupos etários.

    Não vou sequer, portanto, sugerir que haja agora uma menor virulência do SARS-CoV-2, nem que há factores meteorológicos explicativos nem que a população potencialmente de maior vulnerabilidade, sobretudo idosos, foi em parte fatalmente “eliminada ao longo” de dois anos de pandemia, marcada também por um excesso na mortalidade por todas as causas. E nem sequer irei discutir se foram alterados os critérios para se “decretar” a covid-19 como causa de morte.

    Para esse exercício, não me bastou assim analisar e comparar valores absolutos. Morrer uma pessoa num grupo de 10 é pior do que morrerem 10 num grupo de um milhão. Por isso, além de desagregar os óbitos por covid-19, por grupo etário e sexo (porque o impacte desta doença é muito distinto entre homens e mulheres), procedi a uma padronização. Essa operação permite criar uma taxa de mortalidade, tendo como unidade o número de óbitos por 100.000 habitantes em cada um dos grupos. Isto possibilita assim comparações diacrónicas, entre grupos etários e entre sexos.

    Peguei assim nas estimativas da população, por grupo etário e sexo, feitas pelo Instituto Nacional de Estatística para os anos de 2019 e 2020, e apliquei-as, respectivamente aos anos de 2020 e 2021, para determinar, com base no número de óbitos por covid-19, as taxas de mortalidade desta doença. Em cada um dos anos e em cada grupo etário e sexo. Fiz isso para três períodos distintos: 13-26 de Dezembro (duas semanas), Dezembro (26 primeiros dias) e Novembro (30 dias).

    Taxa de mortalidade por covid-19 por grupo etário e sexo em Dezembro (até dia 26) de 2020 e 2021 (unidade: óbitos por 100.000 habitantes do grupo etário) – Fontes: INE e DGS.

    Ora, este “trabalho” – que demora não demasiado tempo – permite logo fazer luz sobre uma evidente, mas “escamoteada”, verdade: a vacina pode até ser eficaz e justificar-se em idades mais avançadas, mas um programa vacinal massivo nas populações mais jovens constitui um desperdício de recursos. E também introduz uma incerteza desnecessária.

    Os resultados que obtive para os três períodos são proporcionalmente similares, por isso decidi somente apresentar e escalpelizar o mês de Dezembro (até ao dia 26).

    Desde logo se constata, muito facilmente, uma acentuadíssima descida da taxa de mortalidade por covid-19 entre 2020 e 2021, mas somente nos grupos dos maiores de 65 anos.

    No caso dos homens de mais de 80 anos, em Dezembro de 2020 registaram-se 265 óbitos em cada 100.000 habitantes (nesse grupo etário) – ou seja, 0,265% –, enquanto em 2021, no período homólogo, se contabilizaram apenas 50. É uma redução relativa superior a 80%, o que é muito – e é muito bom. São 215 óbitos a menos por cada 100.000 pessoas.

    No grupo das mulheres desta faixa etária, a diferença também se mostra muito relevante, embora inferior: de quase 178 no ano de 2020 passou-se para 28 óbitos por 100.000 habitantes em 2021, ou seja, uma redução de 150 vidas por 100.000 habitantes.

    No grupo dos 70 aos 79 anos, tanto no caso dos homens como nos das mulheres, a redução foi inferior, embora ainda significativa, também porque a letalidade é muito menor. Entre 2020 e 2021, para o período analisado do mês de Dezembro, os óbitos nos homens desceram de 63 para apenas 17 por 100.000 habitantes; nas mulheres de 26 para 8.

    Nas faixas etárias subsequentes, a diferença começa a ser cada vez menos expressiva. Nos homens entre os 60 e 69 anos, a variação entre 2020 e 2021 foi quase de 13 mortes por 100.000 habitantes, sendo de apenas 1,7 no grupo dos 50 aos 59 anos. No caso das mulheres, este rácio ainda é mais baixo: entre os 60 e os 69 anos a diferença entre os dois anos foi apenas de 4,2 por 100.000 pessoas, e desceu para 1,7 entre os 50 e 59 anos.

    Abaixo dos 40 anos, a diferença entre 2020 (ainda sem vacina) e 2021 (com vacina) é estatisticamente nula, ou seja, nem sequer chega à unidade por 100.000 habitantes. No grupo dos 20 aos 29 anos, bem como nos menores de 10 anos, tanto nos homens como nas mulheres, a diferença é mesmo zero: quer em 2020 quer em 2021, durante o mês de Dezembro (até ao dia 26) não morreu ninguém por covid-19.

    Diferença de número de óbitos (por 100.000 habitantes), em Dezembro (até dia 26), entre os anos de 2020 (sem vacinas) e 2021 (com vacinas). Fontes: INE e DGS.

    Se considerarmos os valores absolutos em Dezembro de 2020 e 2021, o risco de morte por covid-19 antes dos 40 anos é ínfima, para não dizer praticamente improvável, sobretudo quando comparado com o risco em idades mais velhas.

    Por exemplo, no mês de Dezembro de 2021 (até ao dia 26) morreram por esta doença 70 homens com mais de 80 anos, sendo que este é um grupo constituído por cerca de 243 mil pessoas. No caso das mulheres – que são mais resistentes –, é certo que morreram em maior número absoluto neste período (99), mas também são muitas mais (cerca de 436 mil pessoas), portanto o risco relativo até foi bastante inferior ao dos homens da mesma idade.

    No total, nos 26 primeiros dias de Dezembro de 2021 morreram, no conjunto, 169 idosos com mais de 80 anos, numa população de mais de 681 mil pessoas. Significa isto que, em quase um mês, se registou uma taxa de mortalidade de 0,025%. No mesmo período de 2020, a taxa foi de 0,202%. Ou seja, sem dúvida, a situação no período “com vacina” foi claramente melhor do que no período “sem vacina”.

    Vamos então assumir que isto sucedeu apenas por causa da vacina, e sigamos na análise.

    Se, para o mesmo período, confrontarmos então estes números dos mais idosos com, por exemplo, os adultos entre os 30 e 39 anos, já olharemos para o impacte das vacinas com outros olhos. Neste grupo de jovens adultos apenas se registaram três óbitos por covid-19 em Dezembro de 2020 (até dia 26) e no mês de Dezembro de 2021 apenas um óbito. Isto tudo num grupo constituído por cerca de 1,2 milhões de pessoas, o que dá assim uma taxa de mortalidade atribuída a covid-19 de 0,00024% em Dezembro de 2020, e de 0,00008% no mesmo período de 2021.

    Foi por causa da vacinação que se passou de 0,00024% para 0.00008%? Se sim: bravo!

    Não valerá muito a pena “massacrar” com os valores para os grupos etários ainda mais jovens, porque apresentar as taxas de mortalidade quer em 2020 quer em 2021 necessitaria de muitas casas decimais antes de surgir um outro algarismo que não o zero para as quantificar. Em alguns grupos etários até é zero para ambos os anos.

    man standing in the middle of woods

    Enfim, julgo que este exercício servirá sobretudo para uma conclusão.

    Se se defende que a vacinação contra a covid-19 é o principal motivo para a descida acentuada da mortalidade dos mais idosos – e, pessoalmente, julgo que contribui, mas não é o factor único –, então dever-se-ia concluir, seguindo a mesma linha de raciocínio, não ser sequer razoável, do ponto de vista da Saúde Pública (e mesmo de protecção individual), um processo massivo de vacinação da população mais jovem.

    De facto, sendo certo que há sempre vidas que se podem salvar da covid-19 – mas nos menores de 40 anos poucas serão, porque poucas estiveram efectivamente em risco mesmo antes das vacinas –, também não é menos verdade que os custos de toda a ordem para potencialmente se salvar tão poucas vidas (de jovens) não compensa. E essa ausência de benefício nada tem a ver com a desconsideração pelas vida perdidas para a covid-19. Não, não e não. Tem a ver com as vidas suplementares que se podem salvar se os investimentos financeiros para a Saúde forem reorientados para onde possam alcançar melhores resultados. Mais vidas mantidas.

    Sejamos claros: vacinar ou não vacinar não é um acto “inócuo”. Estou, desta vez, a falar em Economia. E em Saúde. Vacinar massivamente tem custos enormes. Brutais. Por exemplo, se os montantes dispendidos nos programas de vacinação contra a covid-19 em menores de 40 anos, em situação saudável, fossem destinadas para outras áreas da saúde em défice, garanto que se salvariam mais vidas, dar-se-iam mais anos de vida a muita gente, e de uma forma mais sustentável.

    Não se está a ser demagógico, mas sim realista. Os menores de 40 anos são um grupo populacional de 4,25 milhões de pessoas, mais de 40% da população portuguesa. Quase a sua totalidade sobreviverá à covid-19 sem vacina – e aquelas que estão em risco, por comorbilidades prévias, podem e devem ser vacinadas. A vacina, para este vasto grupo, apenas constituiu uma despesa pública inútil, e nunca um investimento de protecção da vida e da promoção da Saúde Pública. Os custos de internamento por covid-19 dos menores de 40 anos são uma gota de água, porque os doentes que são internados são extremamente minoritários. Convinha, em todo o caso, o Ministério da Saúde mostrar-nos a “factura”, jogar o “jogo da transparência democrática”.

    Imaginem assim que se desviava, suponhamos, o dinheiro de seis milhões de vacinas – ou seja, neste grupo etário, não se inoculavam três milhões de pessoas – para outros sectores de Saúde, desde a pediatria até à geriatria. Não estou a contabilizar a poupança em termos logísticos. O processo de vacinação, incluindo pagamentos a empresas que forneceram pessoal de enfermagem, custou muitos milhões de euros.

    Deste modo, teríamos assim à “disposição”, assumindo um preço de 20 euros por dose, pelo menos 120 milhões de euros. Isto sem falar em doses de reforço. Que “milagres” se poderiam concretizar com 120 milhões de euros no sector da Saúde?

    Talvez dar médicos de família a muita gente que ainda não tem. Talvez reforçar os exames e cirurgias que deixaram de se realizar durante a pandemia. Talvez humanizar mais os lares de idosos. Talvez abandonar as políticas discriminatórias e de aberrante autoritarismo que envergonham a Democracia. Talvez decidir que, afinal, o Michael Phelps não precisa de bóia para entrar na piscina. Talvez começar a pensar com racionalidade. Talvez viver sem pânico.

  • Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    Hospital de Cascais recebeu elogios no combate à pandemia mas silenciou surtos descontrolados de sépsis

    A unidade de saúde de Cascais, integrada no SNS, mas gerida pelo Grupo Lusíadas, registou o pior desempenho no controlo de infecções hospitalares durante o primeiro ano da pandemia. O risco de morte de doentes com covid-19 que desenvolveram sépsis triplica em comparação com os outros. O ex-director da Visão, Pedro Camacho, foi uma das vítimas mortais.


    O Hospital de Cascais recebeu em Dezembro do ano passado um destaque da Federação Internacional dos Hospitais – ficando integrado numa lista de 103 unidades de saúde mundiais que prestariam “serviços de excelência no combate à pandemia” –, mas estava então a atravessar, no denominado “covidário”, um surto de septicémia – uma gravíssima infecção geralmente nosocomial (de origem hospitalar) da corrente sanguínea – que se prolongaria até Fevereiro deste ano.

    Na esmagadora maioria dos casos desta infecção de elevada letalidade – associada, em parte, a deficiências de higienização hospitalar – não foi identificada a bactéria na sua origem. Existem, porém, vários registos de sépsis causada por Escherichia coli, Staphylococcus aureus, pseudomonas e enterococos.

    De acordo com registos anonimizados do Hospital de Cascais, a que o PÁGINA UM teve acesso, contabilizam-se 119 doentes internados com covid-19 que desenvolveram sépsis entre Março de 2020 e Abril deste ano. Grande parte destes doentes eram idosos (mediana de 73 anos), havendo 78 homens e 41 mulheres. O mais novo doente tinha 31 anos e o mais idoso contava 98. Ao longo destes 14 meses, no decurso dessas altamente letais infecções, acabariam por morrer 72 destes doentes, mas a covid-19 ficou com a “culpa” exclusiva.

    Hospital de Cascais é gerido em PPP pelo Grupo Lusíadas Saúde.

    O impacte de uma sépsis num doente-covid – tal como em outros doentes internados com o sistema imunitário debilitado – é geralmente devastador, tanto mais que a sua evolução é “silenciosa”, e muitas das bactérias causadoras são multirresistentes a antibióticos.

    No caso particular dos doentes-covid internados no hospital de Cascais, a taxa de mortalidade daqueles que não tiveram sepsis foi de 19%; com sépsis subiu para 61% – ou seja, três vezes mais.

    Considerando a totalidade dos hospitalizados por covid-19 em Cascais entre Março de 2020 e Abril de 2021 (cerca de 1.400 doentes), a probabilidade de desenvolver sépsis foi de 8%. A nível nacional, segundo apurou o PÁGINA UM, a esmagadora maioria dos hospitais do SNS registou uma taxa de prevalência de sépsis a rondar os 2%. Ou seja, a prevalência, ou risco, nesta unidade de saúde da Grande Lisboa foi quatro vezes superior.

    Os casos fatais de sépsis no “covidário” do Hospital de Cascais começaram desde o início da pandemia, sempre em enfermaria – isto é, não estiveram associados às unidades de cuidados intensivos (UCI) –, mas em número diminuto. A situação agudizou-se sobretudo em Novembro do ano passado. Nesse mês já se registaram cinco mortes de doentes-covid associadas a sépsis – em parte de pessoas ainda internadas em Outubro. A partir de Dezembro aumentaram ainda mais. No último mês de 2020 contabilizaram-se nove óbitos, subindo para 15 em Janeiro deste ano. Em Fevereiro fixaram-se em 12.

    Nos meses seguintes, em parte também pela redução significativa dos internamentos, os óbitos associados à sépsis em doentes-covid desceram para seis e dois, respectivamente em Março e Abril.

    Uma das vítimas destes surtos no Hospital de Cascais terá sido o conhecido jornalista Pedro Camacho, ex-director da Visão e então director de inovação e novos projectos da Lusa. Falecido em 5 de Dezembro de 2020, após um longo internamento de cinco semanas por covid-19, as notícias de diversos órgãos de comunicação social – como o Público e o Expresso – revelaram que o seu estado clínico se agravara fatalmente “por duas infecções causadas por bactérias hospitalares”. Foi, no entanto, considerado um óbito por covid-19.

    Registo de doentes-covid com sépsis por data de início de internamento e número de óbitos.

    O PÁGINA UM apurou que, de facto, após ter sido internado no Hospital de Cascais em 29 de Outubro do ano passado, Pedro Camacho sofreu diversas complicações não directamente associada à covid-19, entre as quais duas septicémias distintas, incluindo um choque séptico.

    Os dados anonimizados que o PÁGINA UM consultou não permitem identificar em concreto as datas de detecção destas infecções nosocomiais, mas, mesmo que tal fosse possível, não seriam obviamente aqui reveladas.

    Em parte por ter sido um período crítico de internamentos, e de ainda estar em curso um problema de higienização, o mês de Janeiro deste ano foi aquele com maior número de internados por covid-19 que desenvolveram depois sépsis. No total contabilizaram-se 31 casos, mais 13 do que em Dezembro de 2020 e mais 14 do que em Fevereiro deste ano. Em Março e Abril, os casos passaram a ser pontuais. A partir desse período, o PÁGINA ainda não conseguiu obter mais dados.

    Oficialmente denominado Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, esta unidade de saúde é gerida pelo Grupo Lusíadas Saúde, através de uma parceria público-privada (PPP) desde 2010. Este contrato deveria terminar dentro de dias, no final deste mês, mas foi prolongado por mais um ano por Resolução do Conselho de Ministros com um custo máximo para o erário público de 80 milhões de euros.

    Recorde-se, no entanto, que em Maio deste ano, em comunicado, Lusíadas Saúde anunciara não estar interessada em concorrer ao novo concurso de gestão no âmbito da PPP nos moldes estabelecidos num despacho de Maio do ano passado dos Ministérios das Finanças e da Saúde, por não ser possível “construir uma proposta sustentável que assegure a qualidade e excelência de cuidados que pautam a atuação do Grupo”.

    O PÁGINA UM enviou um conjunto de seis questões à administração do Hospital de Cascais, presidida por José Bento, mas não obteve qualquer reacção.

  • Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    O empresário Lourenço Rosa transformou uma empresa de brindes e estampagem de t-shirts numa máquina de facturação de milhões que começou em contratos por ajuste directo com a autarquia de Cascais para aquisição de material de protecção contra a covid-19. Viralizou a sua actividade para o sector público, sempre sem visto do Tribunal de Contas e sem pormenores no portal BASE. Estendeu o negócio para o privado. Acabou o ano passado com um lucro de 18 milhões de euros, quase 60 vezes o valor registado em 2019. Quer que a pandemia acabe, para bem dos seus filhos, mas, enquanto tal não sucede, participa no próximo mês, pela segunda vez, no Rally Dakar. Tem um bom patrocinador: a ENERRE Pharma, a sua empresa.


    Três dias antes do anúncio da primeira morte oficial por covid-19, em 16 de Março do ano passado, Lourenço Rosa usava a sua página pessoal do Facebook para vender álcool gel estilizado em garrafinhas e canetas gravadas com marca da sua empresa. Prometia entregar qualquer encomenda, mesmo a particulares, no prazo de uma semana, e até respondia pessoalmente às (poucas) solicitações sobre entregas ao domicílio. Fornecia até o seu e-mail profissional da empresa – lourenco.rosa@enerre.com – a quem desejasse mais informações sobre onde e como comprar.

    A empresa em causa – a ENERRE criada em 1976 pelos pais de Lourenço Rosa, actual administrador único – sempre laborara em torno da produção e comercialização de brindes, têxteis e estampagem de t-shirts e outros artefactos de merchandising. Com armazém, loja e escritório na Matinha, em Lisboa, a ENERRE fazia pela vida. Em 2019, imediatamente antes da pandemia, registou um volume de negócios de cinco milhões de euros, e um lucro de 310 mil euros – ou seja, um pouco mais de 25 mil euros por mês. Não era mau, mas, em termos fiscais, estava classificada como “pequena entidade”.

    Lourenço Rosa, administrador único da ENERRE

    Pequena também, aparentemente, seria a qualidade apercebida de alguns dos seus serviços. Pelo menos a atender ao nível de satisfação dos clientes. Embora na página do Google sobre a ENERRE já constem agora algumas boas classificações (sem comentários), as “análises” anteriores à pandemia eram arrepiantes. Um dos clientes afiançava que «a qualidade dos produtos é baixa, [e] os atrasos são constantes”, acrescentando: “o atendimento ao cliente é péssimo”. Outro, assegurava que na ENERRE, “pensam em tudo, menos no cliente», dando uma dica: “se quiserem estampados em preto, peçam em branco”.

    As queixas não eram apenas de índole cromática. Um outro cliente lamentava que «sempre que a roupa é lavada, a roupa encolhe cada vez mais”, aditando que “só com 5 ou 6 lavagens, uma sweat tamanho L já está mais pequena do que roupa de 14 anos”. E, para terminar, mais um decepcionado cliente acusava a ENERRE de vender gato por lebre: “Tshirts? Parecem tops…”.

    A Câmara Municipal de Cascais – que apenas tivera um contacto em 2019 com a ENERRE para a produção de brindes – terá pensado de forma diferente. Na segunda quinzena de Março do ano passado – poucos dias, portanto, após o post de marketing de Lourenço Rosa –, a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras nem tempo quase teve de pestanejar entre contratos com a ENERRE para aquisição de material de protecção, máscaras e termómetros no valor total de 2.200.400 euros.

    Em menos de uma semana daquele mês foram três, todos por ajuste directo: o primeiro em 17 de Março por uma verba de 361.500 euros; o segundo três dias depois pelo montante de 1.178.900 euros; e o terceiro no dia 23 por um montante de 600.000 euros. Apesar dos contratos constarem no portal BASE, não estão incluídos os anexos que os integram, que listam a quantidade e preços unitários dos materiais comprados. Aliás, a exclusão de elementos essenciais sobre prestações de serviços ou aquisição de bens nesta base de dados começa a ser uma prática cada vez mais frequente – e aceite pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, que gere o portal BASE –, o que facilita a manutenção de negócios obscuros.

    Primeira página do contrato assinado entre a ENERRE e a Câmara Municipal de Cascais publicado no portal BASE

    Durante Abril do ano passado, ao segundo mês da pandemia, a autarquia de Cascais continuou a comprar materiais à ENERRE como se não houvesse amanhã. E com ajustes directos cada vez mais chorudos. Nesse breve período foram mais oito contratos relacionados com o combate à pandemia. Factura total: 6.474.900 euros. Também nestes casos se ignora detalhes das compras, por não constarem no portal BASE. Ou seja, em menos de 50 dias, o município de Carlos Carreiras – que tem uma população de 214 mil habitantes – despachou para a ENERRE cerca de 8,7 milhões de euros, portanto 40 euros por munícipe.

    No entanto, embora a Câmara Municipal de Cascais continue a ser um cliente privilegiado da ENERRE – até hoje foram assinados 24 contratos por ajuste directo relacionados com a pandemia no valor de 13.639.935 euros –, Lourenço Rosa já deixou há muito de ter necessidade (e interesse) em fazer marketing no seu mural da rede social de Zuckerberg. Nem tempo.

    Na verdade, nos primeiros meses da pandemia, a ENERRE não teve mãos a medir. Lourenço Rosa começou a despachar contratos num ritmo que se assemelhou ao da chegada de encomendas com máscaras e outros materiais da China, por avião ao aeródromo militar de Figo Maduro. Talvez não por acaso – porque, no mundo dos negócios, raramente há acasos –, o Estado-Maior-General das Forças Armadas também contratou, logo em Março, por ajuste directo, “equipamento de protecção individual (COVID)” no valor de 1.065.850 euros. No portal BASE, esta instituição tutelada pelo Ministério da Defesa “descartou-se” de elencar aquilo que se comprou, e meteu mesmo uma cláusula de sigilo com duração de cinco anos.

    Com o prolongamento da pandemia, o EMGFA ainda faria mais compras à ENERRE (já gastou, até agora, em mais de 2,2 milhões de euros), e a apetência pelos materiais contra a covid-19 pela empresa de Lourenço Rosa alastrou aos outros ramos: o Estado Maior da Força Aérea já lhe fez compras de 433.761 euros. A Marinha foi mais modesta: “apenas” 92.750 euros.

    Porém, ao nível da contratação pública, as autarquias e os hospitais são os principais clientes da ENERRE. Digamos que os contratos viralizaram a partir de Cascais. Desde Março de 2020, até ontem, a ENERRE assinou 217 contratos públicos com 66 entidades distintas num total de 31.645.963 euros – uma média mensal de 1,4 milhões de euros.

    No caso de hospitais e outras entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde, a ENERRE engordou a sua carteira de clientes em 24, e os seus cofres com 9.912.807 euros em contratos por ajuste directo. O Hospital Amadora-Sintra (2,1 milhões de euros), a empresa pública Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (1,7 milhões de euros) e o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (1,6 milhões de euros) foram os mais generosos para a saúde da empresa de Lourenço Rosa. Registam-se ainda mais cinco hospitais ou centros hospitalares com contratos entre 500 mil e um milhão de euros: Espírito Santo (Évora), Barreiro-Montijo, Garcia de Orta (Almada), Coimbra e Divino Espírito Santo (Ponta Delgada).

    Lucro de um ano vale 60

    Se a ENERRE já chegou a ser acusada por um cliente insatisfeito de vender t-shirts que se transformavam em tops, a sua influência comercial no apetecível mundo autárquico esbijou muito nos últimos dois anos. Depois de Cascais, Lourenço Rosa alargou o seu portefólio de máscaras e outros apetrechos a mais 17 concelhos, através de 37 contratos no valor total de quase 3,3 milhões de euros. Atrás da autarquia de Carlos Carreiras, surgem agora os municípios de Lisboa (cerca de 1,6 milhões de euros) e de Albufeira (quase 500 mil euros). Aveiro, Sintra e Porto contabilizam contratos entre 100 mil e 400 mil euros. Tudo por ajuste directo e contornando o visto do Tribunal de Contas. O regime de excepção por causa da pandemia tudo permitiu.

    Antes deste período, a ENERRE não era assim tão afortunada no universo público: entre 2010 e 2019 apenas conseguiu contratos públicos, grande parte dos quais por concurso, num total de 3.069.168 euros – portanto, em 10 anos, uma média mensal de pouco mais de 25 mil euros. De entre estes, destacam-se dois contratos com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de compra de brindes de promoção dos jogos no valor de cerca de 2,3 milhões de euros, contratualizado em 2015. Outros tempos, antes de uma pandemia “conceder” uma espécie de “euromilhões” a Lourenço Rosa.

    Não se pode dizer, em abono da verdade, que a ENERRE andou a viver exclusivamente à custa do Estado. Embora Lourenço Rosa não tenha reagido sequer às questões colocadas pelo PÁGINA UM, as demonstrações financeiras da empresa no ano passado mostram que a janela aberta pelos contratos públicos abriu portas no sector privado. Em 2020, segundo a contabilidade da empresa, as receitas e prestação de serviços atingiram os 68,8 milhões de euros.

    Tendo em conta os ajustes directos com entidades públicas atingiram, no primeiro ano da pandemia, cerca de 24 milhões de euros, significa então que dois em cada três milhões facturados vierem do sector privado. Recentemente, a CNN Portugal revelou que a ENERRE é o fornecedor principal de material médico relacionado com a covid-19 dos principais hipermercados do país.

    Em todo o caso, tenha o dinheiro vindo de onde se quiser, o contabilista da ENERRE já não trabalha em euros como unidade; já digita milhões. O volume de negócios da empresa da Matinha – que continuou, estranhamente, a reger-se pela norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades – aumentou 14 vezes entre os anos de 2019 e 2020. E a margem de lucro subiu estrondosamente, porque a ENERRE serviu sobretudo como mero importador de produtos fabricados na China – o que deveria levar a uma reflexão sobre as razões do Estado português nunca ter accionado uma central de compras públicas durante a pandemia.

    Com efeito, a ENERRE conseguiu um “milagre de produtividade” com a graça da pandemia. Mantendo quase os mesmos custos com pessoal (subiram de 916 mil euros em 2019 para 1,17 milhões euros em 2020), Lourenço Rosa logrou transformar aquilo que comprou por um pouco menos de 44 milhões de euros em vendas de quase 69 milhões. Uma deliciosa receita que, deduzidos outros gastos e despesas, bem como impostos, lhe deu um lucro líquido no ano passado de 18.198.324 euros. E mais 28 cêntimos.

    Se Lourenço Rosa mantivesse a ENERRE com um desempenho ao ritmo de 2019 (lucro anual de cerca de 300 mil euros), teria de trabalhar quase 59 anos seguidos para alcançar o que na realidade obteve no primeiro ano da pandemia. Como tem 44 anos, teria de passar esse objectivo aos filhos.

    De Reguengos até ao Dakar

    Os negócios da ENERRE estão agora, mais do que nunca, de vento em popa, e Lourenço Rosa não tem parado de expandir a sua actividade. Em Fevereiro passado anunciou a construção de um edifício de raiz para a sua nova sede, no Prior Velho. Montou também uma unidade de produção de máscaras com capacidade de 40 mil por dia. E tem também projectada uma fábrica de luvas biodegradáveis em Grândola. Já recebeu entretanto subsídios estatais de 1,44 milhões de euros. Os resultados de 2021 não são ainda conhecidos, obviamente, embora seja de esperar que tenham superado largamente os já extraordinários registados no primeiro ano de pandemia.

    Apesar disso, em declarações recentes à CNN Portugal, Lourenço Rosa diz ansiar pelo fim da pandemia. “Sinceramente, queria que isto acabasse já. Não é vida para ninguém. Tenho filhos e não quero que eles vivam com este horror”, garantiu então o empresário.

    Porém, quem o vir em muitos vídeos pelo Youtube e posts da sua página do Facebook Lourenço Rosa – Adventure, com cerca de dois mil seguidores, não terá essa percepção.

    O sucesso empresarial em redor da pandemia empurrou, por exemplo, o seu hobby de piloto amador para planos estratosféricos. Em Maio de 2019 entretinha-se ele pela Baja TT Reguengos de Monsaraz, por pachorrentas terras alentejanas, mas agora apresta-se para o seu segundo Rally Dakar pelas areias da Arábia Saudita. Na primeira aventura, tripulando um veículo SSV (side-by-side) classificou-se em 15º lugar na categoria. Irradiava de felicidade quando saiu de Portugal no dia a seguir ao Natal do ano passado em direcção à mítica prova, enquanto, ao lado do seu navegador, gravava uma live no interior do aeroporto de Lisboa… sem máscara.

    Há dois meses, esteve também no Rally de Marrocos, e já passou pela Baja Hail, nos desertos árabes. Em todas as suas imensas lives e fotos, vestido à piloto profissional, nada nele transparece o “horror” destes tempos em que vivem os seus filhos. Talvez, porque as suas aventuras automobilísticas, aos comandos de um vistoso Can-Am Maverick XRS, estejam a ser suportado pelo patrocinador, ostensivamente mostrado no seu veículo: a ENERRE Pharma.

    Lourenço Rosa, com o seu navegador Joaquim, ambos sem máscara, no aeroporto de Lisboa, de partida para o Rally Dakar de 2021

    Esta empresa, como o nome indicia, pertence também a Lourenço Rosa. Tem sido, aliás, a ENERRE Pharma que tem ele usado na maioria dos contratos públicos desde Setembro último. Funcionando assim como uma espécie de “subsidiária” de produtos médicos da empresa-mãe, a ENERRE Pharma, deu pelo nome de Brindextil Print Solutions Lda. até 2019, tendo então atingido vendas de 79 mil euros e um lucro de 10 mil.

    No ano passado, apresentando as contas já como ENERRE Pharma, os resultados ainda foram mais modestos: 9.200 euros de receitas e um prejuízo de 483 euros. Apesar disso, teve “capacidade” para patrocinar as aventuras do seu proprietário Lourenço Rosa. Não em um Dakar, mas dois Dakar.

    E mais haverá, por certo, mais ainda, sobretudo se houver mais pandemia. Mesmo se o horror para os seus filhos se mantiver. E, claro, se se mantiverem os habituais contratos por ajuste directo, sem qualquer visto nem controlo com o Estado e as autarquias portuguesas.

  • Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Nunca é tema fácil, mas acaba por ser reconfortante saber que a perda prematura de bebés, crianças e adolescentes é cada vez mais rara. A evolução médica e das condições de vida transformaram um triste “hábito” ancestral – pais a assistirem à morte de filhos – numa raridade. No momento em que, muito por pânico, dezenas milhares de pais anseiam por vacinar as suas crianças contra a covid-19 – que ainda não matou nenhuma em Portugal –, o PÁGINA UM analisa um tema pouco apetecível mas necessário para um debate sobre Saúde Pública, e onde se revela que a gripe e as pneumonias, apesar de muito pouco frequentes, já causaram mais “baixas” nos mais jovens do que o SARS-CoV-2.


    Neste fim-de-semana, os pais de cerca de 77 mil crianças portuguesas correram a vacinar os seus filhos contra a covid-19. Correram, em sentido literal, porque a esmagadora maioria acha que estão em perigo de vida.

    Uma questão inquietante, no meio deste movimento social de forte pendor psicológico, e que levou muitos progenitores à beira de um ataque de pânicos, ou de nervos, deve ser colocada: esse perigo, decorrente de um risco, é real?

    A resposta é fácil: não.

    Neste momento, o risco de uma criança dos 5 aos 11 anos de morrer por covid-19 é zero, porque o risco é uma probabilidade. Até agora, desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território nacional em Março de 2020, a pandemia não matou qualquer criança (entre os 5 e os 11 anos), o grupo agora prioritário no programa vacinal. As taxas de internamento situam-se em números baixíssimos: 0,2% dos casos positivos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde.

    Não há, porém, risco zero absoluto. Donde existe uma incerteza quanto ao futuro. E pode sempre dizer-se que pode (ou não) ocorrer mortes de crianças dos 5 aos 11 anos, se até já se registaram três mortes de menores de idade: dois recém-nascidos e um bebé de quatro anos. Mas todos com gravíssimas comorbilidades.

    Poder, pode sempre. Ou não. Na verdade, pode sempre especular-se, mas até aí deve fazer-se com algum critério científico. Uma doença não deve ser olhada apenas em si mesma, mas também na pessoa que “ataca”, sobretudo porque a incidência e a letalidade variam. Por exemplo, no caso da covid-19 não é a mesma coisa estar a investir para se evitar uma infecção em crianças ou em idosos. Mil infectados com mais de 85 anos não-vacinados resulta, segundo dados oficiais, em 15% de mortes; no caso de menores de idade é necessário usar três casas decimais para evitar o 0%.

    Sendo certo que uma vida é uma vida, outra questão mais perturbadora tem, em todo o caso, e obrigatoriamente, que se colocar: deve lutar-se com todas as “armas”, a todo e qualquer custo, para salvar mais de 600 mil crianças de um desfecho fatal que é um pouco mais do que hipotético?

    A resposta é também deveria ser simples, mas foi complexificada com a covid-19. Uns defendem que sim; outros que não. Qualquer que seja, tem que haver sempre um “mas”.

    Com efeito, qualquer decisão para um programa vacinal deveria ter em consideração não apenas o risco absoluto de uma doença, mas também o seu risco comparativo em relação a outras doenças. Ora, a covid-19 até pode hipoteticamente matar, mas será a única com “capacidade” de tirar uma vida a quem agora começou essa “viagem”? Ou seja, será que, tendo em consideração as limitações da vacina contra a covid-19, se justifica priorizar a vacinação quando existem outras doenças que até matam, e onde haveria melhor retorno (em vidas) com maior investimento?

    Para haver esse debate teria de se conhecer melhor um tema tabu: as mortes dos recém-nascidos, bebés, crianças e jovens adolescentes, para em seguida saber qual a margem de melhoria que se tem. E o que é necessário fazer, se for possível.

    Uma evolução espectacular

    Não é um tema particularmente delicioso e atraente, confessa-se. Mas é necessário conhecer-se, saber-se. Até para enquadrar a covid-19 na sua verdadeira dimensão em relação aos mais jovens. E para saber se se justifica todo o pânico criado nos últimos meses junto dos pais e da sociedade em geral.

    Mas o PÁGINA UM meteu mãos à obra neste pouco apetecível tema, e foi desvendar como tragicamente podem morrer as crianças em Portugal, e também como tem sido a evolução nas últimas décadas e nos anos mais recentes.

    Comece-se então por uma boa notícia: nunca como nos últimos anos – e anos desta pandemia incluídos – se perderam tão poucas vidas de bebés, crianças e adolescentes jovens.

    Na verdade, seguindo a feliz tendência de decréscimo da mortalidade nestas faixas etárias, fruto da melhoria dos diagnósticos de detecção de malformações, da evolução da medicina – incluindo a proliferação de programas vacinais eficazes e comprovadamente seguros – e da melhoria das condições de vida, Portugal apresenta invejáveis indicadores de saúde. Encontra-se no clube dos países, quase todos europeus, com melhores indicadores de saúde, medidos por taxas de mortalidade. Neste aspecto, Portugal consegue estar muito melhor do que países mais ricos, como os Estados Unidos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 nascimentos) neonatal e infantil em Portugal entre 1970 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Por exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o nosso país apresentou em 2019 uma taxa de mortalidade neonatal de dois óbitos por 1.000 nascimentos. Os Estados Unidos tinham praticamente o dobro (3,7) e o Brasil quatro vezes mais (7,87). Países como a Índia e Angola estavam noutro “desgraçado campeonato”: no país asiático morreram quase 22 em cada 1.000 bebés, enquanto no país africano 28.

    Nas idades subsequentes, esta relação mantém-se similar. Os últimos dados da UNICEF colocam Portugal também no “primeiro mundo”, com taxas muito baixas de mortalidade infantil (3,05 óbitos até aos 5 anos por 1.000 nascimentos) e de crianças e jovens adolescentes (0,78 óbitos entre os 5 e os 14 anos por 1.000 crianças com 5 anos). Neste último indicador, os Estados Unidos apresentam quase o dobro desta taxa (1,37) e o Brasil três vezes mais.

    Se os pais portugueses com crianças e adolescentes podem dormir mais descansados do que os norte-americanos, e ainda mais em comparação com os dos países menos desenvolvidos, então nem vale a pena recuar para o tempo dos respectivos pais e avós. E muito menos olhar para passados longínquos. Em finais do século XIX, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil chegava a ultrapassar os 30% – ou seja, havia 300 mortes em cada 1.000 nascimentos. O risco de um bebé morrer naquela altura era pelo menos 100 vezes superior ao dos nossos dias. Eram outros tempos.

    Porém, mesmo nos tempos modernos, chamemos assim, a morte esteve bem mais presente sobre os berços e pequenas camas do que hoje. Em Portugal, a taxa de mortalidade neonatal era em 1970 de 23,7 em 1.000 nascimentos, ou seja, 12 vezes superior à de 2019. No caso da taxa de mortalidade infantil, a descida foi ainda mais acentuada: em 1970 situava-se nos 55,7 óbitos por 1.000 nascimentos – significando que quase 6 em cada 100 crianças sucumbiam antes de perfazerem 5 anos –, enquanto agora está em aproximadamente três óbitos em 1.000 nascimentos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 crianças com 5 anos) no grupo etário 5-14 anos em Portugal entre 1900 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Embora a UNICEF não apresente dados anteriores a 1990 para a taxa de mortalidade no grupo etário dos 5 aos 14 anos, a evolução nas últimas três décadas impressiona: passou de 3,9 óbitos em 1.000 crianças (com 5 anos) para apenas 0,8. Estamos a falar de uma descida de 80% numa taxa de mortalidade já então bastante baixa em 1990.

    Em Portugal, a pandemia da covid-19 trouxe, quer directa quer indirectamente, praticamente zero impacte na sobrevivência de bebés, crianças e jovens adolescentes. Ou mesmo talvez tenha trazido um paradoxal benefício. Com efeito, em 2019 morreram 265 bebés com menos de um ano, e no ano passado apenas 214. Este ano, até 17 de Dezembro, foram registados 183 óbitos, devendo assim ser o ano menos mortífero em termos absolutos desde que há registos estatísticos.

    O número de óbitos na faixa etária seguinte – entre 1 e 4 anos – deverá em 2021 ser ligeiramente superior ao ano passado (53 mortes), mas ainda inferior a 2019. Nesse ano registaram-se 87 mortes neste grupo, enquanto este ano, até 17 de Dezembro, já se registaram 53.

    Apenas no caso do grupo etário das crianças entre os 5 e os 14 anos se verificará previsivelmente um ligeiro agravamento em relação ao período de 2019. Neste momento, os anos de 2021 e 2019 contabilizam o mesmo número de desfechos fatais em crianças, o que significa que, pelas lamentáveis leis na probabilidade, o presente ano terminará com um pouco mais de 90 óbitos neste grupo etário. Em todo o caso, no primeiro ano da pandemia, em 2020, tinha-se registado um número bastante baixo de óbitos (apenas 75).

    Enfim, mesmo num período distópico em que nunca se falou tanto em morte, “que se tenha noção” – como diria, embora noutra circunstância, o jornalista da SIC Rodrigo Guedes de Carvalho – de que se antes era frequente os pais verem filhos morrer, agora esses pais, como avós, raramente assistem a um desfecho fatal dos seus netos.

    Sempre más, mas raras

    Sigamos para a parte mais lamentável deste longo artigo: as causas das sempre e mais compreensivelmente tristes mortes de bebés, crianças e jovens adolescentes. Defenda-se, contudo, desde já que sendo certo serem todas as horas de vida importantes para todas as pessoas de todas das idades – como defendeu o vice-almirante Gouveia e Melo –, a razão dirá, se não se quiser ser populista ou demagógico, que as muitas e muitas horas já vividas por um idoso a morte não as tirará. Porém, ceifando a morte uma criança, muitas e muitas horas de vida, e de esperança, serão perdidas por aqueles que mereciam chegar a velho, tendo uma vida plena. Triste não é ser velho: triste é não chegar a velho.

    Não por acaso, aliás, os estatísticos – sempre classificados de insensíveis – usam um indicador aparentemente frio, mas que mostra bem o estado das políticas de saúde de um país: a taxa de anos perdidos por 100.000 habitantes. Quem deixa morrer as suas crianças, por um lado tem menos gente a chegar a velha, e a que chega maltratada será até à morte.

    Enfim, mas afinal, vejamos, em concreto, quais são as malfadadas doenças e enfermidades que ainda matam, por ano, algumas centenas de bebés e várias dezenas de crianças e jovens adolescentes – ao contrário da covid-19, que, em abono da verdade, e apesar do alarme social ceifou três vidas de menores de idade em quase dois anos.

    De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos últimos cinco anos com registos (2015-2019) faleceram 1.314 bebés com menos de um ano. A parte substancial destas mortes são derivadas de afecções originadas no período perinatal (775) – que corresponde ao período entre as 22 semanas de gestação e a primeira semana após o nascimento – ou de malformações congénitas de anomalias cromossómicas (313). Por causas mal definidas foram reportados 41 óbitos.

    Em todo o caso, estas mortes – que se diriam quase inevitáveis – têm registado um decréscimo acentuado, em parte como reflexo da melhoria na detecção de malformações em ecografias e outros diagnósticos complementares durante as gravidezes, mas também pela evolução da medicina.

    girl and boy playing on bed

    Com efeito, os óbitos perinatais eram ainda bastante elevados há algumas décadas. Por exemplo, em 1989 contaram-se 1.919 óbitos perinatais, segundo dados do INE, mas desde 1997 baixaram a fasquia dos mil. Em 2019 já foram apenas 104, o que representa uma evolução positiva espantosa.

    Por outro lado, torna-se notório que algumas afecções graves já não matam agora tantos bebés como no início do século XXI, mesmo se os primeiros 12 meses de vida continuam a ser “delicados”. Na verdade, a taxa de mortalidade nestes “primeiros passos” é similar à das pessoas com 51 anos.

    Se se comparar as causas dos óbitos infantis em 2002 com os registados em 2019 constata-se uma redução muito significativa naqueles associados à duração da gravidez e ao crescimento fetal (passaram de 83 para apenas oito), à hipoxia intra-uterina e asfixia ao nascer (passaram de 49 para 3) e a uma infinidade de outras enfermidades ou malformações congénitas. Segundo os dados do INE, os óbitos infantis entre aqueles dois anos reduziram-se de 580 para 255. Convém referir, no entanto, que no início do presente século nasciam ainda mais de 110 mil crianças por ano, cerca de 40% superior ao número que se registará este ano. De facto, tendo em conta os nascimentos até Outubro, nascerão este ano menos de 80 mil bebés, o valor mais baixo desde que meados do século XIX.

    Se excluirmos as causas decorrentes de malformações e doenças congénitas fatais nos primeiros meses, os óbitos de bebés com menos de um ano são cada vez mais uma raridade. No quinquénio 2015-2019, as doenças do sistema nervoso e dos órgãos encabeçam o grupo de enfermidades mais fatais, embora com um número muito baixo: 36 óbitos, o que representa cerca de sete por ano. Seguem-se as doenças do aparelho respiratório (29, no quinquénio), das quais 16 por pneumonia. Isto é, a pneumonia causou, em média anual, a morte de três menores de um ano – um valor muito baixo, mas superior ao registado para a covid-19 na mesma faixa etária.

    As causas externas – grosso modo, ferimentos de origem diversa – são outra relevante causa de morte, no período analisado, com 41 óbitos. Destes, 23 deveram-se a acidentes (ou suas sequelas), dos quais quatro foram acidentes de transporte. Houve também três mortes por agressão.

    Ultrapassado o primeiro ano de vida – em que as malformações mais graves acabam lamentavelmente por levar os mais infelizes na “sorte da vida” –, os óbitos decaem bastante na faixa etária até aos quatro anos: apenas 300 registos no quinquénio 2015-2019. E começam então a ganhar preponderância relativa outras causas, embora seja importante não esquecer que este grupo etário não pode ser comparado directamente com os bebés menores de um ano, uma vez que agregando crianças de 1, 2, e 4 anos – ou seja, é um grupo etário de quatro vezes superior. E há outro factor: os menores de um ano são muitíssimo mais frágeis. Mas mesmo muito mais.

    2 girls sitting on floor

    Se seguirmos as tábuas completas de mortalidade do INE, em cada 100.000 crianças nascidas nos anos mais recentes, 99.703 ultrapassaram o primeiro ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade é de 0,30%. Já entre o primeiro e o segundo ano de vida, essa taxa desce muito: em 100.000 bebés com 1 ano, 99.968 completam o segundo ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade já só é de 0,032%. E continua a descer até estabilizar em redor dos cinco anos, aumentando a partir daí, mas até à próximo da idade da reforma com grande suavidade.

    Por exemplo, aos 20 anos, a probabilidade de se chegar aos 21 anos continua a ser quase total: 99,98% alcançam essa meta, o que significa uma taxa de mortalidade de 0,02%. Aos 30 anos essa taxa continua quase inalterada, situando-se em 99,96%. E aos 40 anos é de 99,91%. Somente a partir dos 67 anos, a taxa de sobrevivência ao fim de um ano fica abaixo dos 99%, embora no caso das mulheres essa fasquia ocorra em idade mais avançada. Os homens, apesar dos músculos, são na verdade o sexo fraco em termos de sobrevivência.

    Depois dos 70 e sobretudo dos 80 anos, convenhamos que a vida começa então a andar para trás. Por cada 1.000 idosos com 80 anos haverá cerca de 38 que não chegam aos 81. E por aí fora, crescendo abruptamente à medida que se ultrapassa a esperança média de vida. Dos felizardos que chegam aos 100 anos – na verdade, apenas 0,62% das pessoas que nasceram há 100 anos –, as probabilidades já são muito tramadas: um pouco mais de metade (52%) não vai festejar o próximo aniversário.

    Mas voltemos à infância. E às malfadadas mortes dos mais pequeninos, até aos quatro anos. Embora praticamente já todos sobrevivam, o INE ainda contabilizou 300 mortes ao longo de todo o quinquénio 2015-2019. Todas contam, apesar de, em abono da verdade, constituírem eventos trágicos muito raros face ao período (cinco anos) e à população abrangida (cerca de 425 mil pessoas).

    Sendo certo que nesta faixa etária (1-4 anos) as malformações e outras causas congénitas ou mal definidas continuam, em conjunto, a ser o principal risco de morte – embora com apenas por 70 óbitos no quinquénio em análise –, os tumores infantis sobressaem. Entre 2015 e 2019 sucumbiram 57 neste grupo etário. No caso de leucemias – sempre uma temida e mediática doença nestas idades, mas muitíssimo rara – registaram-se 21 mortes neste período.

    Os acidentes e suas sequelas seguem atrás: 55 óbitos no quinquénio – ou cerca de 10 por ano. De entre estas, o INE reporta 17 mortes por acidentes de transporte e cinco por agressões. As doenças do sistema nervoso e afins causaram, neste grupo, 32 mortes, enquanto as doenças do aparelho respiratório provocaram 20 óbitos.

    Curiosamente, três dessas mortes no quinquénio foram directamente por gripe (influenza) e 10 por pneumonias. Mesmo considerando-se que estamos perante um período de cinco anos – e os “danos” destas doenças respiratórias são baixíssimos em termos relativos –, estramos perante números superiores aos da covid-19. Recorde-se que nunca houve qualquer programa intensivo de vacinação contra a gripe em crianças, sendo que apenas em casos especiais (comorbilidades graves se recomenda, sem alarido, a toma de vacina). E relembre-se ainda que em quase dois anos, a infecção causada pelo SARS-CoV-2 foi considerada como responsável pela morte de uma única criança de quatro anos.

    silhouette of man carrying child

    Os desfechos demasiado precoces da vida de crianças e jovens adolescentes (grupo etário dos 5 aos 14 anos) são também, felizmente, muito escassos. O INE aponta 452 óbitos entre 2015 e 2019, ou seja, menos de uma centena por ano. Os tumores representaram 30% do total. As leucemias causaram 42 mortes nestes cinco anos, embora este grupo etário ronda as 850 mil pessoas.

    Os acidentes, embora também muito raros, constituem um risco relevante nestas idades. No período em análise, faleceram 99 crianças e adolescentes deste grupo etário, dos quais 38 de acidentes de transporte e sete de agressões. Embora com um valor estatisticamente residual, impressiona saber-se que entre 2015 e 2019 houve seis crianças e/ou adolescentes desta faixa etária que morreram por “lesões autoprovocadas intencionalmente”.

    Por outro lado, as malformações congénitas como causa de morte perdem peso neste grupo, o que se mostra compreensível, uma vez que os casos mais graves têm desfechos fatais em idades mais jovens. Em todo o caso, os dados do INE revelam a ocorrência de 45 óbitos resultantes deste tipo de afecções naquele quinquénio.

    Menos letais neste grupo etário são as doenças do aparelho respiratório. Em cinco anos, e para uma faixa etária de 10 anos, apenas originaram 16 mortes, sendo cinco por gripe (influenza) e oito por pneumonias. Embora trágicos para as vítimas, familiares e comunidade próxima, estes valores são bastante baixos do ponto de vista de Saúde Pública, e sobretudo reflectem uma excelente evolução da medicina e da Ciência.

    Poderiam ser mais baixos? Claro que sim. É para isso que as políticas públicas servem. Aliás, a evolução das últimas décadas, que aqui se retratou, demonstram que pode sempre melhorar-se quando o risco, mesmo que baixo, se pode reduzir ainda mais. Com investimento e estratégias adequadas.

    Porém, no caso da covid-19, pouco ou nada se pode baixar, em parte devido a uma relativa benignidade do SARS-CoV-2 nas idades mais jovens. Porém, mesmo assim, o Governo preferiu investir um programa de vacinação de muitos milhões de euros – talvez mais de 10 milhões (não foram ainda tornados públicos os contratos com a Pfizer) – para afinal combater uma doença que não matou qualquer pessoa no grupo etário jovem que neste fim-de-semana começou a ser vacinado.

    Será que não haveria outras prioridades em sectores onde se pudesse obter melhores desempenho do ponto de vista do investimento por redução potencial de mortes? A resposta parece, mais uma vez óbvia: sim, havia. Como parece lógica.

    Mas a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 já nos mostrou à saciedade que a lógica é já uma batata. Podre.


  • Nobel da Paz reconheceu jornalismo corajoso e independente

    Nobel da Paz reconheceu jornalismo corajoso e independente

    Maria Ressa, co-fundadora do site noticioso Rappler, tornou-se a primeira cidadã filipina a receber o Prémio Nobel da Paz de 2021. Compartilhou o prestigioso galardão com Dmitry Muratov, editor-chefe do jornal russo Novaya Gazeta. Breves perfis de dois jornalistas sem-medo num mundo onde a independência e a liberdade de expressão se pagam muitas vezes com a vida.


    Nos últimos anos, a jornalista Maria Ressa tem andado num constante e perigoso jogo do cão e do gato com o presidente filipino Rodrigo Duterte. Ou talvez melhor dizendo, ambos estão numa batalha naval, o que melhor se coaduna até com o título do seu jornal digital, fundado em 2012: Rappler, junção de rap (falar, em inglês) e ripples (levantar ondas).

    Ressa tem levantado mais do que ondas. Tem sido um autêntico tsunami na política e sociedade das Filipinas. E as suas “ondas” atingiram todo o Mundo, razão para ter recebido este mês o Prémio Nobel da Paz, em conjunto com o russo Dmitry Muratov. Foi a primeira vez que o comité norueguês atribuiu este prestigiante galardão a profissionais da imprensa.

    Desde o início do mandato presidencial de Duterte, o jornal de Ressa tem denunciado os abusos de poder e arbitrariedades do governo filipino perpetradas em nome de uma suposta “guerra contra as drogas”. As retaliações não se fizeram esperar, sobretudo com a abertura de processos judiciais demandados pelo próprio Governo ou de pessoas próximas de Duterte. Alguns casos têm sido arquivados, mas sobre a jornalista pende já uma ameaça de prisão de seis anos, actualmente em recurso.

    Maria Ressa na capa da Time em 2018

    Para além das batalhas judiciais, a jornalista é constantemente assediada. Maria Ressa já revelou ter chegado a receber “noventa mensagens de ódio por hora, noventa ameaças de violação por minuto”, e confessou mesmo que ser repórter de guerra “era mais fácil”. Acrescem também as campanhas de pressão nas redes sociais. As querelas entre o governo filipino e a fundadora do Rappler são o foco do documentário A Thousand Cuts, realizado em 2020.

    Apesar destas contrariedades, Maria Ressa nunca esteve sozinha. Sobretudo nos últimos três anos recebeu vários prémios internacionais pelo seu trabalho, entre os quais o Golden Pen of Freedom Award da Associação Mundial de Jornais. Em 2018, a revista Time escolheu-a para capa na edição que divulgou as 100 personalidades mais influentes do Mundo.

    No início deste ano, a advogada Amal Alamuddin – famosa defensora dos direitos humanos, e que juntou Clooney ao seu apelido em 2014 – veio em defesa de Ressa, acusando o governo filipino de orquestrar uma “campanha cada vez mais evidente” para silenciar a incómoda jornalista. A advogada de origem libanesa tem liderado a defesa do Rappler na justiça filipina após a imputação de mais um crime de “ciberdifamação”. Duterte tem insistido na ideia de o Rappler ser “um órgão noticioso falso que veicula notícias falsas e que pertence aos americanos”.

    A vida de Maria Ressa poderia ter sido muito diferente, se não tivesse optado por se meter no “olho do furacão” de um dos mais violentos países asiáticos. Embora nascida nas Filipinas, viveu desde a infância nos Estados Unidos, onde a sua família se refugiou após a instauração da lei marcial em 1972 por Ferdinando Marcos.

    Na Universidade de Princeton começou a estudar Biologia Molecular, mas transitou para o curso de Inglês, terminado com a distinção de cum laude. Foi classmate de Michelle Robinson – mais tarde, Mrs. Obama, a antepenúltima First Lady dos Estados Unidos da América. Passou ainda pelo mundo das artes, como aluna de teatro e dança, mas decidiu em 1986 retornar a Manila, sua cidade natal. Esse regresso coincidiu com a revolução popular que destituiu Marcos, e Ressa iniciaria a partir daí um caminho, muitas vezes sinuoso, pelo jornalismo.

    Durante duas décadas, foi correspondente da CNN no Sudeste Asiático, tendo investigado a presença de células da Al-Qaeda no continente asiático. Publicaria dois livros sobre esta organização terrorista.
    No próximo ano está já prometida a publicação daquela que, para a jornalista filipina, constitui uma grande ameaça mundial: a “guerra digital” pelos factos, que pode deturpar mesmo as democracias. O título é sugestivo: How to Stand Up to a Dictactor.

    Maria Ressa considera a desinformação o “novo terrorismo”, e tem lutado abnegadamente contra a propagação de fake news no universo virtual, e o Facebook tem sido um dos seus alvos. Após o anúncio do Prémio Nobel da Paz, em Outubro passado, a jornalista filipina acusou a gigante tecnológica de Mark Zuckerberg de construir algoritmos que “priorizam a disseminação de mentiras odiosas”.

    Da Rússia com ódio

    Haverá agora também um Prémio Nobel da Paz nos corredores do Novaya Gazeta, jornal russo fundado em 1993, mas por lá entraram já também cabeças de porco decepadas e ratazanas esquartejadas. Dmitriv Muratov, seu co-fundador e editor-chefe, já viu de tudo. Até facas e mensagens ameaçando matar todos, “desde a empregada da limpeza ao editor-executivo”. Não foram ameaças vãs. Desde que Vladimir Putin tomou as rédeas do poder no início de 2000, cinco repórteres e colaboradores do Novaya Gazeta foram assassinados no decurso de investigações jornalísticas: Igor Domnikov (2000), Yuri Shchekochikhin (2003), Anna Politkovskaya (2006), Anastasia Baburovafoi e Natalia Estemirova (ambas, em 2009). Além destes, em cenário de guerra morreu Victor Popkov (2001).

    Não admira assim que Muratov tenha assumido, aquando do anúncio do Prémio Nobel da Paz, que o galardão não era seu, mas sim dos companheiros caídos. E anunciou ainda que o montante do prémio atribuído pelo Comité Nobel – cerca de 500 mil euros, sendo que outro tanto foi entregue à filipina Maria Ressa – será distribuído pela redacção do Novaya Gazeta.

    Avesso a honras e distinções – apesar de ter já recebido em 2007 o Prémio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) e a Legião de Honra de França, em 2010 –, Muratov tinha prometido a si mesmo a reforma em 2017, após liderar por mais de duas décadas a redacção do Novaya Gazeta. Retomou, porém, a luta jornalística em 2019. E fez bem, porque, aos 60 anos, o Nobel da Paz tem agora um novo ânimo, e já garantiu mais e melhor. “Daqui para a frente cada palavra tem de ser medida”, assegurou.

    Maria Ressa e Dmitry Muratov na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz em Oslo, no dia 10 de Dezembro (© Nobel Prize Outreach. Foto: Jo Straube)

    Nascido no Outono de 1961, em Samara – a sexta maior cidade da Rússia e o local onde Estaline mandou instalar um bunker –, Dmitry Andreyevich Muratov chegou a alistar-se no exército soviético, após cursar Filologia na universidade da sua cidade natal. Porém, o “bichinho” do jornalismo falou mais alto. Estava como editor do Komsomolskaya Pravda quando, em 1993, fundou com mais meia centena de colegas o Novaya Gazeta.

    Os primeiros anos do Novaya Gazeta, pela sua postura independente, foram difíceis, com parcos recursos, até surgir um “balão de oxigénio” através do auxílio financeiro de Mikhail Gorbatchov, último presidente da União Soviética (1988-1991), também galardoado com o Nobel da Paz (1990), que ainda hoje mantém uma pequena quota.

    O resto é, digamos assim, conhecido: investigação, denúncias, perseguições, mortes, e mais investigação. E agora, também um Prémio Nobel da Paz.

    A profissão (quase) mais perigosa do Mundo

    Nascidos para investigar e expor os abusos de poder, a corrupção e as violações de direitos humanos, a vida de Dmitry Muratov e Maria Ressa – agora reconhecidos através do Prémio Nobel da Paz – conseguiram dar ainda mais destaque, por um lado, à importância da imprensa, e também, por outro, aos perigos de uma profissão, quando exercida com independência e coragem. Berit Reiss-Andersen, porta-voz do Comité Norueguês do Nobel, bem sintetizou o papel dos jornalistas: “sem a imprensa, não podemos ter uma democracia forte”. Mas o preço é alto para muitos destes profissionais.

    Ainda este mês, o CPJ revelou que ao longo do ano de 2021 foram assassinados 24 jornalistas em todo o Mundo, e contabilizam-se ainda 293 detidos, com o destaque negativo para a China, Myanmar, Egipto, Vietname e Bielorrússia.

    white ceramic bowl on black table

    De acordo com uma base de dados desta organização independente, sempre em actualização, desde 1992 foram assassinados 1.422 jornalistas por causa dos seus trabalhos. Outros 578 morreram por motivo ainda não determinado. Incluindo casos confirmados e suspeitos, e se juntarem ainda outros trabalhadores dos media, o total de mortos ascende às 2.115 pessoas.

    Quase nove em cada 10 desses homicídios ficaram impunes, de acordo com a CPJ. No seu Índice Global de Impunidade – que mede os casos não resolvidos de homicídios de jornalistas em função da população –, a Somália destaca-se na primeira posição, seguindo-se a Síria, Iraque, Sudão do Sul e Afeganistão.
    O Brasil integra também o top 10 deste trágico índice, na oitava posição, a seguir ao México e às Filipinas, e antecedendo Paquistão e Rússia. Embora pouco referido, o Brasil é, de facto, um dos países mais perigosos do Mundo para os jornalistas, contabilizando 58 mortes nas últimas duas décadas, das quais 18 desde 2015.

    O último caso no Brasil registado pelo CPJ – que classifica como imprensa mesmo as publicações noticiosas em redes sociais – foi o homicídio de Leonardo Pinheiro, em 13 de Maio de 2020. Este líder comunitário e social, que detinha uma página de notícias no Facebook chamada A Voz Araruamense, foi executado com um tiro na cabeça, depois de ajoelhado, alegadamente por dois polícias militares desta cidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira


  • Parecer admite desconhecimento dos efeitos em crianças e usa estudos não publicados nem revistos

    Parecer admite desconhecimento dos efeitos em crianças e usa estudos não publicados nem revistos

    O cenário mais favorável da eficácia do programa vacinal proposto pela Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) empola o número previsível de infecções, de modo a maximizar os benefícios absolutos da vacina nas crianças. Na verdade, se a actividade viral for baixa durante o próximo Inverno, a “cura” pode vir a ser pior do que a doença para os mais novos. O PÁGINA UM analisou com detalhe o parecer da CTVC, que admite que os riscos a longo prazo das vacinas para crianças não são conhecidos, e utiliza apenas estudos, incidindo em adolescentes, que nem sequer estão publicados ou revistos por cientistas independentes. A CTVC também não garante que o programa de vacinação das crianças salvará qualquer vida. Neste caso, por uma razão simples: mesmo sem vacinação, até agora nenhuma criança morreu por causa da covid-19.


    A Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) recomendou a vacinação universal de crianças apesar de admitir que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”. Esta incerteza está discretamente inserida no final da página 18 do parecer (com um total de 32), no capítulo intitulado “Sinal de Segurança: Miocardites e Pericardites”.

    Apenas divulgado na tarde da passada sexta-feira pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – após fortes críticas ao secretismo que Graça Freitas desejava –, o parecer da CTVC confessa, de forma taxativa, que recomendou as vacinas em crianças mesmo ignorando as consequências a longo prazo. Isto para um grupo etário que não regista até agora qualquer morte.

    Mesmo assim, a CTVC disserta sobre a segurança baseando-se em estudos e ensaios aplicados a adolescentes. Porém, esses estudos não estão sequer publicados nem acessíveis, mesmo a investigadores, ou ainda nem foram sujeitos à revisão pelos pares (peer review) – um processo imprescindível em Ciência para garantir o seu rigor e integridade.

    a boy crying tears for his loss

    Um dos casos passa-se com o estudo intitulado “SARS-CoV-2 Vaccination and Myocarditis in a Nordic Cohort Study of 23 Million Residents”, cujo primeiro autor somente é identificado no parecer da CTVC pelo seu apelido. Será eventualmente o fármaco-epidemiologista norueguês Øystein Karlstad, que estudou este ano os efeitos de tromboembolismos e eventos similares causados pela vacina da AstraZeneca em adultos escandinavos.

    De acordo com o parecer da CTVC, uma equipa liderada por Karlstad terá concluído existir um risco acrescido de miocardite em adolescentes do sexo masculino com um excesso de 2,2 e 36,5 casos por 100 mil doses passados 28 dias do início do esquema vacinal, respectivamente para as vacinas da Pfizer (Comirnaty) e da Moderna (Spikevax). No entanto, como esse risco terá sido estudado apenas em jovens entre os 12 e os 15 anos, não se aplica obviamente às crianças.

    Um outro estudo citado pela CTVC, da responsabilidade do Ministério da Saúde de Israel, sofre do mesmo problema: apresenta resultados de farmacovigilância da vacina da Pfizer apenas em adolescentes vacinados, com idades entre os 12 e 15 anos.

    Um terceiro estudo, realizado no Canadá, e também referenciado pela CTVC, segue o mesmo padrão. Liderado por Jennifer Pillay, do Departamento de Pediatria da Universidade de Alberta, o estudo – que consiste sobretudo numa “revisão sistemática rápida” – conclui que a vacina da Pfizer causa uma maior incidência de miocardites em homens dos 12 aos 29 anos. Nada diz sobre crianças (5 aos 11 anos). E salienta mesmo que “pesquisas futuras são necessárias para examinar outros factores de risco e efeitos de longo prazo”.

    Este estudo tem outra “deficiência”: encontra-se publicado apenas no medRxiv – um site da Internet que distribui versões pré-publicadas de artigos científicos sobre ciências da saúde.

    Como habitualmente sucede, um aviso de entrada neste site alerta que o artigo em causa “não foi revisto pelos pares”, acrescentando-se ainda que se está em face de “novas pesquisas médicas que ainda não foram avaliadas e, portanto, não devem ser usadas para orientar a prática clínica”. Para os peritos da CTVC este aspecto não será relevante. Mas é.

    Um quarto estudo referenciado pela CTVC é, como os outros, uma análise do impacte de curto prazo em não-crianças, podendo-se somente saber o que sucedeu num grupo etário “próximo”: adolescentes e jovens adultos dos 12 aos 29 anos. Desenvolvido em França, este estudo também não está revisto pelos pares.

    Quase por ironia, o estudo francês encontra-se publicado no site do EPI-PHARE, uma entidade criada em 2018 pela Agência Nacional para a Segurança de Medicamentos e Produtos de Saúde (ANSM) e pelo Seguro Nacional de Saúde (CNAM), em consequência do escândalo do Mediator, e para melhorar a farmacovigilância.

    Recorde-se que este medicamento, da farmacêutica Servier, destinava-se inicialmente para tratamento de diabetes, mas passou a ser comercializado como produto de emagrecimento. Acabou suspenso em 2009 por se provar ter causado a morte de entre 1.500 e 2.100 pessoas.

    O julgamento deste processo ficou concluído em Março deste ano, tendo-se sentado no banco dos réus os responsáveis da Servier, por manipulação de informação sobre segurança, e a própria ANSM, por não ter actuado em devido tempo. A farmacêutica foi condenada a pagar indemnizações no valor de 2,7 milhões, e a agência estatal foi multada em 303 mil euros.

    Estimativas vista à lupa

    Os benefícios da vacinação de crianças em Portugal previstos pelos peritos da CTVC constitui também um exercício interessante de análise. O PÁGINA UM meteu-se nesta tarefa.

    Assumindo que “os benefícios da vacinação dependem da incidência da infecção por SARS-CoV-2” –, a CTCV propôs três cenários: optimista, mediano e pessimista, em função da actividade viral ao longo da pandemia. Curiosamente, o período em análise foi de apenas quatro meses, indiciando-se assim que a CTVC não acredita que eficácia da vacina se prolongará por mais do que esse período, necessitando de novo reforço no final da Primavera.

    Outro facto estranho: a CTVC considera, como efeito adverso das vacinas, o risco de miocardites e pericardites em crianças, mas para estimar o seu número potencial utiliza as incidências conhecidas em adolescentes. Essa extrapolação coloca sérias dúvidas de índole científica e mesmo ética.

    Assim, face aos pressupostos teóricos da eficácia do programa vacinal para as crianças – cobertura de 85%, uma efectividade vacinal contra infeção entre 70% e 85% e uma efectividade contra doença grave de 95% –, a CTVC compara, para cada um dos cenários, duas situações distintas: sem vacinação e com vacinação.

    person pulling cart with boy

    Deste modo, no cenário optimista sem vacinação, a CTVC aponta para a possibilidade de ocorrência de 5.551 casos positivos entre Dezembro de 2021 e Março de 2022, que desceria para apenas 1.540 casos naquele período se 85% das crianças fossem vacinadas.

    No cenário pessimista – ou seja, com elevada incidência –, sem vacinação a CTVC estimou que houvesse 45.442 casos positivos, reduzindo-se para 18.404 com o programa de vacinação. No cenário intermédio (mediano) foi estimado pela CTVC a existência de 21.189 casos positivos sem vacinação, baixando para 7.681 casos com vacinação.

    Estranhamente, a CTVC não explica no parecer a razão para, assumindo similar capacidade das vacinas em evitar as transmissões, se estimarem reduções relativas diferentes nos diversos cenários. Com efeito, para o cenário optimista com vacinação, a redução estimada das infecções é de 72% face à situação sem vacinação, mas desce apenas para os 64% no cenário mediano e para os 61% no cenário pessimista.

    Compreensivelmente, o cenário pessimista, que representa uma maior actividade viral no próximo Inverno, é aquele que mostra um maior benefício absoluto das vacinas. A razão é simples: se houver mais infecções, numa situação sem aplicação do programa vacinal em crianças, em termos absolutos maiores serão, em princípio, as hospitalizações e os internamentos em unidades de cuidados intensivos (UCI), e assim maior o diferencial quando se confronta com a situação de vacinação de 85% deste grupo etário.

    Contudo, o cenário mais pessimista (45.442 infecções) – aquele em que a vacinação potencialmente trará mais vantagens, com menos 147 hospitalizações, menos 16 internamentos em UCI e menos 15 casos de síndrome inflamatório multissistémico (MIS-C) – mostra-se muito pouco provável. Com efeito, face ao período considerado na avaliação da CTVC (Dezembro de 2021 a Março de 2022), significaria a ocorrência de 11.360 casos positivos por mês em crianças se o plano de vacinação não avançasse, mais do dobro da actual média mensal ao longo de 2021 (4.674 casos positivos) para este grupo etário.

    Mais sensato aparenta ser o cenário mediano. Neste caso, a média mensal é de quase 5.300 casos positivos, um valor mais consentâneo com a realidade e a época do ano (Inverno). Porém, com menos infecções, também os benefícios potenciais se tornam bem mais modestos. De facto, neste cenário os peritos da CTVC já só antevêem uma redução de 51 hospitalizações e de cinco internamentos em UCI.

    Se o cenário (mais) optimista estimado pelo CTVC se concretizasse – ou seja, uma menor actividade viral durante o próximo Inverno –, o programa vacinal ameaçaria então “parir um rato”. Nesse cenário, o programa vacinal – que poderá atingir um investimento superior a 10 milhões de euros, no pressuposto do preço unitário da dose infantil ser metade da dos adultos –, a vacina apenas causaria uma redução de nove hospitalizações, um internamento em UCI e um evento de MIS-C.

    man in blue and red polo shirt holding a pen and a brown bear plush toy

    Em todo o caso, saliente-se que não é líquido que um maior número de infecções resulte num aumento proporcional de hospitalizações e internamentos em UCI. Ou seja, mesmo que a variante Ómicron ganhe prevalência, e um maior número de casos, tal não significará automaticamente um aumento proporcional de internamentos.

    Aliás, essa questão revela-se mesmo na página 10 do parecer da CTVC, onde se compara as hospitalizações em idade pediátrica em 2020 (quando a variante dominante era a Alfa) e em 2021 (com a Delta já dominante). Em todos os grupos etários a percentagem de hospitalização em função dos casos positivos diminuiu consideravelmente. Nas crianças (5-11 anos) passou de 0,61% (112 hospitalizações em 18.358 casos) em 2020 para apenas 0,21% (84 hospitalizações em 39.215 casos) este ano.

    Ou seja, numa faixa etária em que a prevalência de assintomáticos ou de sintomatologia ligeira é muito elevada, a subida de casos positivos em crianças pode estar intimamente associada sobretudo à estratégia de testagem. Em suma, se se aumentar consideravelmente a realização de testes em crianças sem que estas estejam com sintomas, o potencial aumento de casos positivos poderá estar relacionado sobretudo à maior detecção de assintomáticos, e sem necessidade de hospitalização.

    Ora, neste caso, uma consequência imediata é a redução da percentagem das hospitalizações (internamentos por 100 casos positivos), mesmo se houver um aumento absoluto no número de internados em relação ao período anterior, tal como se evidencia na situação das crianças quando se compara o ano de 2020 com 2021.

    Um último aspecto particularmente estranho das estimativas da CTVC observa-se também em relação às miocardites vacinais – que, recorde-se, são reportadas à incidência conhecida em adolescentes, e não a crianças. Embora todos os três cenários estabelecidos pelos peritos pressupõem uma cobertura vacinal de 85%, o número estimado de miocardites vacinais é de 12 para o cenário pessimista, mas de sete para os cenários mediano e optimista.

    Como as miocardites vacinais são, como a denominação indica, um efeito adverso apenas associado à vacina – e nada tem a ver com a maior ou menor actividade viral –, esse número distinto entre os cenários poderá ser ou um engano absurdo – por o parecer ser assinado por 13 peritos – ou uma forma de mascarar uma possibilidade atroz. De facto, se o SARS-CoV-2 estiver pouco activo neste Inverno – e se concretizar o cenário optimista –, a “cura” (leia-se, a vacina) será pior do que a doença.


  • Autora de parecer de bioética para a vacinação de crianças com ligações ao Partido Socialista e a hospitais privados

    Autora de parecer de bioética para a vacinação de crianças com ligações ao Partido Socialista e a hospitais privados

    A Direcção-Geral da Saúde preferiu ouvir Helena Pereira de Melo, vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, do que pedir parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. A jurista tem ligações ao Partido Socialista e é presidente de uma associação em consórcio com o Grupo José de Mello.


    A conselheira de bioética da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que proferiu um parecer favorável para a vacinação universal de crianças – sem sequer analisar as incertezas a longo prazo e as questões éticas que tal encerra –, tem fortes ligações ao Partido Socialista e também ao Grupo José de Mello, que integra a CUF, gestora de 14 hospitais e clínicas privadas.

    A alegada inexistência de problemas éticos, assumida no parecer final da CTVC, terá sido um dos aspectos determinantes para a decisão esta semana da Direcção-Geral da Saúde (DGS) em aprovar a vacinação universal de crianças.

    Recorde-se que, até ao momento, nenhuma criança entre os 5 e os 11 anos morreu em Portugal por causa de covid-19. Além disso, apenas 0,21% dos casos positivos nesta faixa etária tiveram necessidade de hospitalização ao longo deste ano, uma significativa redução na gravidade em relação a 2020, que apresentou um rácio quase três vezes superior (0,61%), de acordo com dados divulgados no recente parecer da CTVC.

    Helena Pereira de Melo

    Uma investigação do PÁGINA UM descobriu que a autora do parecer de bioética, a jurista Helena Pereira de Melo – cuja identidade apenas foi revelada ontem com a divulgação a contragosto de todos os documentos do polémico parecer integral da CTVC –, foi indicada em 2019 pelo Partido Socialista para integrar o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.

    No ano anterior integrou também, por convite do Governo socialista, a comissão para a revisão da Lei de Bases da Saúde, presidida por Maria de Belém.

    Além das suas funções académicas e como vice-presidente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, esta jurista é ainda preside à ABIO – Associação para o Estudo do Biodireito. Criada em 2016, esta associação surge apresentada como um “consórcio entre a José de Mello Saúde e a Universidade Nova de Lisboa”, que inclui a TAGUS Tank – Tagus Academic Network for Knowledge, com actividades na área da Medicina e apoio à investigação.

    Apesar de também acumular a vice-presidência da Associação Portuguesa de Bioética, Helena Pereira de Melo não integra a lista obrigatória de consultores da DGS, segundo confirmado pelo PÁGINA UM no site da DGS. Ou seja, o pedido de parecer solicitado pela CTVC terá sido pontual e específico para o fim em vista.

    Saliente-se que, por obrigação legal, os consultores da DGS não podem ser membros de órgão social de sociedade científica, associação ou empresa privada que tenham recebido financiamento superior a 50 mil euros por ano (em média no último quinquénio) de empresa produtora, distribuidora ou vendedora de medicamentos ou dispositivos médicos.

    Em todo o caso, refira-se que, apesar da directora-geral Graça Freitas ter nomeado por despacho os membros da CTVC, não os obrigou a apresentar qualquer declaração de incompatibilidades. Assim, de entre os membros desta comissão, apenas Manuel do Carmo Gomes e Válter Fonseca o fizeram, por já serem consultores da DGS há vários anos. Todos os outros – Ana Maria Correia, António Sarmento, Diana Costa, João Rocha, Luís Graça, Luísa Rocha, Maria de Fátima Ventura, Maria de Lurdes Silva, Marta Valente, Raquel Guiomar e Teresa Fernandes – não apresentaram qualquer documento desta natureza. Por exemplo, Luís Graça, imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, recebeu este ano um pouco mais 7.000 euros de farmacêuticas, dos quais 2.050 euros da AstraZeneca.

    No entanto, aquilo que mais poderá chocar no parecer de Helena Pereira de Melo é a ligeireza na abordagem da ética na vacinação de crianças, porque nada refere sobre a incerteza e os efeitos a longo prazo.

    white and clear syringe on blue textile

    No seu texto de apenas três páginas, a jurista ocupa grande parte do espaço a apresentar uma mera síntese de documentos enviados pela DGS e a expor uma súmula da “leitura dos relatórios que nos foram facultados, da autoria do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) e da Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Lista depois os “efeitos benéficos prováveis”, e acrescenta existirem “benefícios para a saúde mental da criança decorrentes de ser vacinada, uma vez que, se não for infectada, não sofrerá os efeitos negativos associados a uma ou várias situações de confinamento”.

    Um artigo publicado em 5 de Outubro passado na revista Nature, que cita David Eyre, epidemiologista da Universidade de Oxford, revelou que o efeito benéfico da vacina na transmissão da variante Delta diminui para níveis quase insignificantes pouco tempo depois. Por exemplo, em pessoas que sejam infectadas já com a vacina da Pfizer em acção (duas semanas após a tomada das doses), o risco de contaminar outra é de 42%, aumentando para 58% pouco mais tarde. O risco de um não-vacinado contaminar outra pessoa é de 67%.

    Ou seja, se o objectivo for beneficiar as crianças vacinadas em detrimento das não-vacinadas – um aspecto polémico do ponto de vista legal e ético, e ainda não decidido pelo Governo à data do parecer –, não mandando para quarentena os primeiros, os efeitos da medida serão nulos do ponto de vista epidemiológico.

    Na verdade, sobre questões concretas de bioética, o parecer de Helena Pereira de Melo elenca só os mais básicos princípios da bioética, que se podem encontrar num simples manual académico.

    Com efeito, a jurista escreve em apenas um breve parágrafo que a vacinação de crianças contra a covid-19 cumpre os “três princípios da não-maleficência (não causa, previsivelmente, prejuízo à sua vida, à sua saúde e à sua integridade pessoal), da beneficência (apresenta probabilidade elevada de prevenir a contração da doença e contribui, deste modo, para a saúde física e mental da criança), e da justiça (contribui para a quebra das cadeias de transmissão da doença, pelo menos relativamente às variáveis conhecidas, em particular a Delta (…)”. E justifica isto com “os dados epidemiológicos [que] revelam uma alta transmissibilidade da doença nesta faixa etária, em Portugal”.

    grayscale photography of girls

    Por fim, destaca ainda que o princípio da autonomia nem sequer merece discussão no caso das crianças, porque “este grupo etário não goza de maturidade indispensável para consentir ou não consentir na administração da vacina em causa”.

    No seu parecer, Helena Pereira de Melo não apresenta sequer uma reflexão teórica nem uma única referência bibliográfica sobre bioética e vacinas, e especialmente sobre vacinas contra a covid-19 e aplicadas a crianças – um dos temas sociológicos actualmente em ebulição nas ciências sociais.

    Por exemplo, uma consulta breve ao Google Scholar identifica cerca de 18.200 artigos científicos que debatem as questões de ética relacionados com a vacinação (obrigatória ou não), incluindo largas centenas sobre a vacinação contra a covid-19, a aplicação de certificados de acesso, a eventual vacinação universal obrigatória e a discriminação de não-vacinados. Temas nem sequer foram aflorados neste parecer da professora de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Recorde-se que anteontem, em declarações à rádio TSF, Maria do Céu Patrão Neves, presidente da Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – que seria o organismo “natural” para emitir um parecer ético desta natureza – defendeu “o maior interesse das crianças”, pelo que “ponderar a vacinação em termos de proteção dos adultos não é aceitável do ponto de vista ético”.

    Esta professora catedrática de Ética na Universidade dos Açores, e também consultora do Presidente da República para a Ética da Vida – e que foi eurodeputada do PSD entre 2009 e 2014 – considerou que a decisão de se avançar, nas actuais circunstância, para um programa de vacinação neste grupo etário deveria ser tomada “na sua dimensão física, psicossocial, afectiva, ou seja, uma forma holística”.


  • Zero mortes, 0,5% de hospitalizações e 0,03% de internamentos em cuidados intensivos

    Zero mortes, 0,5% de hospitalizações e 0,03% de internamentos em cuidados intensivos

    O PÁGINA UM revela as taxas de internamento e apresenta os casos clínicos mais graves em crianças durante o primeiro ano da pandemia. Num grupo que envolve mais de 600 mil pessoas, por agora contabilizam-se zero mortes, uma taxa de hospitalização que rondará os 0,5% dos infectados (quase 37 mil entre Março de 2020 e Abril deste ano) e um rácio de internamento em cuidados intensivos de 0,03%. Este é o cenário de uma faixa etária que pouco tem a beneficiar de um programa de vacinação em massa. Apenas ganha incerteza no longo prazo.


    No primeiro ano da pandemia, nenhuma criança morreu em Portugal por causa da covid-19, e apenas 11 – num total de quase 37 mil que testaram positivo à covid-19 entre Março de 2020 e 21 de Abril deste ano – tiveram necessidade de cuidados intensivos. Por outro lado, cerca de 995 em cada 1.000 crianças (com idades entre os 5 e os 11 anos) com teste positivo ao SARS-CoV-2 apresentaram sintomas ligeiros ou manifestaram-se assintomáticos, uma vez que somente 179 precisaram de internamento por curtos períodos (0,49% do total dos infectados.

    Confirma-se assim o muito reduzido risco da covid-19 – quase irrelevante – para um grupo etário que estará agora sujeito à campanha de vacinação decidida esta semana pelo Governo.

    Esta informação – até agora desconhecida pelo público em geral, e apenas acessível a um estrito grupo de peritos – obtém-se pelo cruzamento de duas bases de dados: o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e o registo das hospitalizações de doentes-covid.

    man in blue denim jeans standing on brown hays during daytime

    A primeira base de dados identifica todos os casos positivos, desagregados por idade, sexo e concelho. O segundo elenca, após anonimização, os internamentos de todas as pessoas, incluindo idade, sexo, unidade de saúde, período de internamento, eventual encaminhamento para cuidados intensivos (UCI), desfecho (outcome) e também as comorbilidades e/ou agravamentos no decurso da hospitalização.

    A Direcção-Geral da Saúde (DGS), autoridade com a máxima responsabilidade na gestão da pandemia, tem recusado a conceder acesso a informação essencial para calcular o risco e taxas de internamento e de letalidade de forma estratificada. Contudo, o PÁGINA UM obteve acesso confidencial a estas duas bases de dados, embora contendo apenas informação até 21 de Abril deste ano.

    Em todo o caso, o reduzido impacte dos primeiros 14 meses da pandemia sobre as crianças – e muito provavelmente sem alterações relevantes nos últimos sete meses – mostra-se sobretudo numa taxa efectiva de internamento muito baixa.

    CASOS POSITIVOS E INTERNAMENTOS EM CRIANÇAS – MARÇO DE 2020 E ABRIL DE 2021
    (Fonte: Ministério da Saúde; dados tratados por PAV)

    Enquanto até Abril deste ano, este rácio rondava os 6% para toda a população (cerca de 54 mil internamentos em cerca de 834 mil infectados, até àquela data), no grupo das crianças situou-se entre um mínimo de 0,27% (aos 7 anos) e um máximo de 0,7% (aos 8 anos). Globalmente, apenas aproximadamente 0,5% das crianças infectadas precisaram de tratamento hospitalar.

    Considerando os casos de maior gravidade, a necessitarem de cuidados intensivos, não existe qualquer justificação para alarmismos. De acordo com o registo de internamentos, até Abril deste ano passaram por UCI um total de 5.458 pessoas, ou seja, cerca de 10% do total das hospitalizações e 0,65% das pessoas infectadas. No caso das crianças, essas taxas situaram-se em 6% e 0,03%, respectivamente.

    No entanto, a esmagadora maioria dos casos de hospitalização de crianças, e sobretudo daquelas que necessitaram de cuidados intensivos, envolveram comorbilidades graves de natureza diversas. Por exemplo, de entre os 11 internamentos de crianças em UCI – apenas em hospitais da Grande Lisboa e no hospital de São João, no Porto –, somente quatro não tinham um quadro prévio de enfermidades graves.

    TAXA DE LETALIDADE (%) DA COVID-19 POR GRUPO ETÁRIO (até 9 de Dezembro de 2021)
    (Fonte: Direcção-Geral da Saúde; dados tratados por PAV)

    Nem todos – incluindo os quatro que registaram síndrome inflamatório do sistema múltiplo ou miocardites, efectivamente associados a complicações da covid-19 – tiveram necessidade de ventilação, tendo bastado um acompanhamento contínuo de monitorização do estado de saúde. Todos estes 11 casos clínicos mais complexos tiveram desfecho favorável: nenhuma destas crianças morreu. E os internamentos foram, por regra, de curta duração, inferior a duas semanas. Apenas um menino de 8 anos, que sofria já de um melanoma maligno, teve um internamento mais prolongado (41 dias), em parte para recuperar de uma infecção bacteriana apanhada no hospital (ver lista em baixo).

    Embora se ignore os dados de internamentos posteriores a Abril deste ano, certo é que a faixa etária dos 5 anos 11 anos continua sem registo de mortes atribuídas à covid-19. Até agora, apenas se contabilizam dois óbitos de bebés com menos de 1 ano, e de outra com menos de 4 anos. Além destes, contam-se duas mortes de jovens com 19 anos. Todos apresentavam gravíssimas comorbilidades.

    Nesse sentido, o grupo etário que o Governo se apresta a vacinar – envolvendo mais de 600 mil crianças, com um investimento ainda desconhecido, uma vez que o contrato com a Pfizer não consta ainda do Portal BASE – apresenta assim uma taxa de letalidade ainda de 0%.

    Mesmo agregando as idades, segundo os grupos etários usados pela DGS, o risco de morte nas faixas dos 0-9 anos e dos 10-19 anos é incomensuravelmente inferior aos dos mais idosos. Por exemplo, observando a taxa de letalidade da covid-19 para os maiores de 80 anos (15,1% até à data), conclui-se que a probabilidade de um desfecho fatal naquela faixa etária é mais de 4.000 vezes superior ao de um menor de 10 anos. E chega a ser superior a 9.500 vezes se confrontada com o grupo dos 10-19 anos.


    LISTA DE CASOS DE INTERNAMENTO DE CRIANÇAS EM CUIDADOS INTENSIVOS

    CASO 1

    Idade: 8 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
    Período de internamento: 19/04/2020 – 29/05/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: melanoma maligno do couro cabeludo e do pescoço; e infecção bacteriana por Staphylococcus aureus
    Outcome: Alta médica

    CASO 2

    Idade: 10 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte
    Período de internamento: 15/05/2020 – 25/05/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: hipopotassemia; miocardite infecciosa
    Outcome: Alta médica

    CASO 3

    Idade: 5 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental
    Período de internamento: 01/06/2020 – 07/06/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: defeito do septro ventricular, insuficiência (da válvula) aórtica, insuficiência congénita da válvula aórtica e anemia.
    Outcome: Alta médica

    CASO 4

    Idade: 10 anos
    Sexo: Feminino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central e Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental
    Período de internamento: 15/06/2020 – 27/06/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: miocardite aguda; e cardiomiopatia dilatada.
    Outcome: Alta médica

    CASO 5
    Idade: 10 anos
    Sexo: Feminino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
    Período de internamento: 13/10/2020 – 03/11/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: Distúrbios do metabolismo das proteínas plasmáticas; e anemia.
    Outcome: Alta médica

    CASO 6

    Idade: 8 anos
    Sexo: Feminino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte
    Período de internamento: 01/11/2020 – 17/11/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: síndrome inflamatório do sistema múltiplo (associado à covid-19), síndrome de choque tóxico e pericardite viral
    Outocome: Alta médica

    CASO 7

    Idade: 11 anos
    Sexo: Feminino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte
    Período de internamento: 21/12/2020 – 28/12/2020
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: anemia hemolítica auto-imune
    Outcome: Alta médica

    CASO 8

    Idade: 10 anos
    Sexo: Feminino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
    Período de internamento: 24/01/2021 – 05/02/2021
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: síndrome inflamatório do sistema múltiplo (associado à covid-19); insuficiência ventricular esquerda; taquicardia supraventricular; e choque cardiogénico
    Outcome: Alta médica

    CASO 9

    Idade: 8 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
    Período de internamento: 25/01/2021 – 26/01/2021
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: diabetes mellitus tipo 1
    Outcome: Alta médica

    CASO 10

    Idade: 11 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
    Período de internamento: 30/01/2021 – 11/02/2021
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: paralisia cerebral quadriplágica espástica; doença de refluxo gastroesofágico sem esofagite, alimentado por gastrostomia
    Outcome: Alta médica

    CASO 11

    Idade: 5 anos
    Sexo: Masculino
    Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
    Período de internamento: 12/02/2021 – 03/03/2021
    Principais comorbilidades e/ou agravamentos associados: aneurisma, hipotensão, trombocitopenia, hiperlipidemia e sepsis
    Outcome: Alta médica


  • Negócio dos testes já movimentou pelo menos 1,3 mil milhões de euros em Portugal

    Negócio dos testes já movimentou pelo menos 1,3 mil milhões de euros em Portugal

    Os testes PCR e de antigénio ultrapassaram este mês, pela primeira vez, a fasquia dos 100 mil por dia. Até ao final do ano, a manter-se o ritmo, Portugal atingirá os 18 milhões de testes desde o início da pandemia. Agora sem mãos a medir, as dezenas de laboratórios não se podem queixar: 2021 será um excelente ano. E muito superior ao de 2020. O PÁGINA UM foi “visitar”, como amostra, as demonstrações financeiras do ano passado de duas das principais empresas: Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. e o Dr. Joaquim Chaves – Laboratório de Análises Clínicas S.A.. Não se saíram nada mal.


    A estratégia de gestão da pandemia assente na massificação de testes PCR e de antigénio estará a resultar num aumento brutal dos lucros dos principais laboratórios de diagnóstico. Numa altura em que o número de testes em Portugal atinge valores próximos de 120 mil por dia – em parte pelo efeito da obrigatoriedade de testagem para acesso a determinados espaços públicos e privados –, o ano de 2021 poderá terminar com mais de 18 milhões de testes PCR e de antigénio processados.

    Este ano, até 3 de Dezembro, a Direcção-Geral da Saúde indica que já se realizaram 15.884.737 testes, dos quais 39% de antigénio – quase o triplo dos de 2020, em que se processaram 5.695.754 testes, quase todos de PCR. Se se considerar um preço unitário (em valores modestos) de 80 euros para os testes PCR e de 10 euros para os testes de antigénio, este mercado já terá movimentado perto de 1.300 milhões de euros. Ignora-se a parte desta colossal verba que foi assumida pelo Estado ou autarquias, sob a forma de comparticipação ou pagamento integral, e nessa medida também se desconhece o montante já despendido pelas famílias e empresas privadas.

    green pink and purple plastic bottles

    O crescimento na testagem em Portugal terá como consequência uma previsível subida substancial dos lucros dos principais laboratórios e também das farmácias, e até de outros estabelecimentos comerciais, que têm visto nos testes um “negócio da China”. Esse impacte nas contas dos laboratórios foi já bastante visível no ano passado, que compensou largamente a quebra de diagnósticos médicos requisitados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) após o surgimento da pandemia em Portugal há pouco mais de 20 meses.

    Por exemplo, o Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. – fundado por este antigo bastonário da Ordem dos Médicos – mais que quadruplicou os seus resultados operacionais em 2020 em relação ao ano anterior, passando de 8,1 milhões de euros para os 31,1 milhões. Em termos de lucro quase tiveram idêntico desempenho: subiram de 6 milhões em 2019 para o 23,2 milhões. Para este extraordinário desempenho bastou à empresa duplicar o valor das vendas e serviços prestados (de 35,7 milhões de euros, em 2019, para 74.4 milhões, em 2020).

    Situação similar, embora inferior em montante absoluto, registou a empresa Dr. Joaquim Chaves S.A., também um dos principais laboratórios de análises e diagnósticos clínicos a nível nacional. No ano de 2019, antes da pandemia, obteve um resultado operacional próximo dos 8 milhões e um lucro líquido de 2,8 milhões. Em 2020, os resultados operacionais atingiram os 16,5 milhões de euros, enquanto os lucros mais do que quadruplicaram em relação ao ano anterior, aproximando-se dos 11.7 milhões de euros.

    Em 2021, os lucros destes e de muitos outros laboratórios serão certamente superiores, tanto mais que o SNS reforçou o pedido de diagnósticos não-covid adiados ao longo do ano anterior por razões de estratégia política do Ministério da Saúde.


  • Pandemia não inverteu crise crónica

    Pandemia não inverteu crise crónica

    𝑂𝑠 𝑗𝑜𝑟𝑛𝑎𝑖𝑠 𝑒 𝑎𝑠 𝑟𝑒𝑣𝑖𝑠𝑡𝑎𝑠 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑖𝑛𝑢𝑎𝑚 𝑎 𝑑𝑒𝑠𝑎𝑝𝑎𝑟𝑒𝑐𝑒𝑟 𝑑𝑎𝑠 𝑏𝑎𝑛𝑐𝑎𝑠, 𝑒 𝑎𝑠 𝑎𝑠𝑠𝑖𝑛𝑎𝑡𝑢𝑟𝑎𝑠 𝑑𝑖𝑔𝑖𝑡𝑎𝑖𝑠 𝑛𝑎̃𝑜 𝑐𝑜𝑚𝑝𝑒𝑛𝑠𝑎𝑚 𝑎 𝑝𝑒𝑟𝑑𝑎 𝑑𝑒 𝑙𝑒𝑖𝑡𝑜𝑟𝑒𝑠. 𝐸𝑚 2001, 𝑎 𝑟𝑒𝑣𝑖𝑠𝑡𝑎 𝐵𝑎𝑡𝑎𝑡𝑜𝑜𝑛 𝑣𝑒𝑛𝑑𝑖𝑎 𝑚𝑎𝑖𝑠 𝑑𝑜 𝑞𝑢𝑒 ℎ𝑜𝑗𝑒 𝑜 𝐷𝑖𝑎́𝑟𝑖𝑜 𝑑𝑒 𝑁𝑜𝑡𝑖́𝑐𝑖𝑎𝑠 𝑒𝑚 𝑝𝑎𝑝𝑒𝑙 𝑒 𝑓𝑜𝑟𝑚𝑎𝑡𝑜 𝑑𝑖𝑔𝑖𝑡𝑎𝑙. 𝐶𝑜𝑛𝑓𝑖𝑟𝑎 𝑐𝑜𝑚𝑜 𝑒𝑣𝑜𝑙𝑢𝑖́𝑟𝑎𝑚 𝑎𝑠 𝑣𝑒𝑛𝑑𝑎𝑠 𝑑𝑜𝑠 𝑝𝑟𝑖𝑛𝑐𝑖𝑝𝑎𝑖𝑠 𝑝𝑒𝑟𝑖𝑜́𝑑𝑖𝑐𝑜𝑠 𝑝𝑜𝑟𝑡𝑢𝑔𝑢𝑒𝑠𝑒𝑠 𝑑𝑒𝑠𝑑𝑒 𝑜 𝑖𝑛𝑖́𝑐𝑖𝑜 𝑑𝑜 𝑠𝑒́𝑐𝑢𝑙𝑜. 𝐴 𝑐𝑢𝑙𝑝𝑎 𝑑𝑜 𝑒𝑣𝑖𝑑𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑑𝑒𝑠𝑎𝑠𝑡𝑟𝑒 𝑠𝑒𝑟𝑎́ 𝑑𝑜𝑠 𝑙𝑒𝑖𝑡𝑜𝑟𝑒𝑠 𝑜𝑢 𝑑𝑜 𝑗𝑜𝑟𝑛𝑎𝑙𝑖𝑠𝑚𝑜?


    Apesar do fluxo noticioso da pandemia, os principais títulos da imprensa generalista portuguesa mantêm-se num processo de declínio profundo, que nem as subscrições digitais conseguem mitigar.

    De acordo com os dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), de entre as publicações de âmbito nacional, todos os quatros diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e os três semanários – Expresso, Sábado e Visão – venderam menos exemplares impressos no terceiro trimestre deste ano em comparação com o período homólogo de 2019.

    Circulação paga impressa (papel) – número médio no 3º trimestre (APCT; dados tratados por PAV)

    A maior queda registou-se no Diário de Notícias (-45%), seguindo-se a revista Sábado (-41%) e o Jornal de Notícias (-37%). A menor queda foi a do Expresso, com as vendas em banca a retraírem 11% nos últimos dois anos. Em termos absolutos, no conjunto destas publicações foram vendidos por edição menos 77.143 exemplares em papel. O jornal mais penalizado foi o Correio da Manhã (-22.310 exemplares vendidos em banca), embora continue a ser a publicação de informação generalista com maiores vendas por edição em papel.

    A situação não é mais grave porque as assinaturas digitais têm amenizado a crise, não apenas por os leitores terem mudado de hábitos de compra em quiosques e papelarias, no decurso da pandemia, mas também pelas fortes campanhas de marketing com preços bastante reduzidos. Assim, somando as vendas em papel e as assinaturas digitais, o cenário torna-se um pouco menos sombrio, com o Público e o Expresso a recuperarem leitores em comparação com o período homólogo de há dois anos.

    No primeiro caso, o diário da Sonae passou de uma circulação total (impressa e digital) de 34.280 exemplares por edição no terceiro trimestre de 2019 para 50.763 no último trimestre, sobretudo por ter mais do que duplicado as assinaturas digitais (crescimento líquido de 22.154).

    Circulação paga total (impressa e digital) – número médio no 3º trimestre (APCT; dados tratados por PAV)

    No caso do semanário da Impresa, o crescimento foi mais modesto: no terceiro trimestre de 2019 teve uma circulação paga total de 85.292 exemplares por edição; no último trimestre foi de 97.150, muito por força do incremento líquido de mais de 18 mil assinaturas digitais. As outras publicações (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Sábado e Visão) não conseguiram fazer compensar com as assinaturas digitais as perdas em banca. Com efeito, ao contrário do Expresso e do Público, a sua expressão no mundo digital ainda é pouco relevante.

    Porém, estes números das principais publicações generalistas, e ainda mais comparando um período de tempo tão curto, não revelam toda a profunda crise da imprensa portuguesa, afectando todos os segmentos. Analisando todas as publicações auditadas pela APCT, no terceiro trimestre do presente ano já nenhuma ultrapassou uma circulação paga superior a 100 mil exemplares.

    Vendas totais no 3º trimestre de 2001 (Fonte: APCT)

    O Expresso esteve próximo dessa fasquia no mais recente trimestre, embora a tenha superado ligeiramente na primeira metade do ano de 2021. Por outro lado, somente mais quatro publicações pagas ultrapassaram os 50 mil exemplares vendidos por edição: Continente Magazine (62.660, sendo aquela com maior circulação paga impressa), Maria (59.595), Correio da Manhã (55.517) e Público (50.763). No total, de entre as publicações do top 20 encontram-se cinco com vendas totais inferiores a 20 mil exemplares por edição.

    O contraste com o início do século é tremendo. Não apenas existiam muitas mais publicações – a APCT auditava então 145, enquanto agora rondam a meia centena – como as vendas, todas em banca, eram espantosamente maiores. Considerando o terceiro trimestre de 2001, havia 13 publicações com vendas superiores a 100 mil exemplares e mais 15 com vendas entre 50 mil e 100 mil.

    A revista Maria estava no topo com vendas de 326.757 exemplares por edição. Embora agora esta popular revista do outrora pujante Grupo Impala ainda ocupe a terceira posição das publicações com maiores vendas, em termos relativos vende agora menos de um quinto (18%) do que vendia há 20 anos.

    As revistas do segmento do lazer e televisão eram então rainhas e senhoras. No terceiro trimestre de 2001, as revistas Nova Gente, Tempo Livre, Selecções do Reader’s Digest, Telenovelas, TV 7 Dias, Caras e Ana vendiam, cada uma, mais de 100 mil exemplares por edição. Mas mesmo os jornais de informação generalista ou especializada não se portavam nada mal. O Expresso atingiu, nesse período, vendas da ordem dos 137 mil exemplares – mesmo assim já longe do seu máximo esplendor: no terceiro trimestre de 1995, o semanário fundado por Pinto Balsemão – e que teve Marcelo Rebelo de Sousa como director entre 1979 e 1981 – alcançou os 169.454 jornais vendidos por edição.

    Vendas totais no 3º trimestre de 2021 (Fonte: APCT)

    A revista Visão e os diários Jornal de Notícias e Correio da Manhã superavam também a barreira dos 100 mil exemplares vendidos. E mesmo os desportivos estavam num paraíso. Por exemplo, mesmo com concorrência acérrima, o Record chegou aos 118 exemplares vendidos por edição.

    Além da extinção de títulos icónicos – como os diários 24 Horas, A Capital, o Comércio do Porto, os semanários Independente, Focus e Euronotícias, e a revista mensal Grande Reportagem –, as últimas duas décadas mostraram-se dramáticas para os periódicos ainda “sobreviventes”.

    Dos principais periódicos generalistas, em 20 anos o Público foi aquele que menos perdeu em vendas (cerca de 10%), embora a queda seja brutal se se considerar somente as vendas em banca (-78%). A revista Visão e o Jornal de Notícias perderam ambos 72% do número total de vendas, o Correio da Manhã 46%, e o Expresso 30%. A actual versão da revista Sábado não era ainda publicada em 2001.

    O símbolo máximo da crise da imprensa tradicional em Portugal acaba por ser o Diário de Notícias. No primeiro trimestre de 2001 vendeu 65.382 exemplares por edição, fechando o top 20 dos periódicos mais vendidos. No apuramento mais recente da APCT surge apenas com 2.969 exemplares vendidos em banca e mais 1.958 assinaturas, ocupando a 42ª posição, atrás mesmo do seu homónimo da Madeira.

    Será que todo este cenário negro se deveu somente à mudança de hábitos e à introdução de novas tecnologias? Ou foi também o jornalismo – e a qualidade dos jornalistas?