Categoria: Exame

  • Pandemia tornou enfermeiros mais hipocondríacos

    Pandemia tornou enfermeiros mais hipocondríacos

    A resiliência é uma das melhores características dos enfermeiros, mas o medo das doenças também os atinge. Um estudo minucioso num hospital iraniano avaliou a sua saúde mental durante a pandemia, e apurou que oito em cada 10 enfermeiros desenvolveram algum grau de hipocondria. Em Portugal, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros confirma que a saúde mental destes profissionais está mais fragilizada.


    Como soldados numa frente de guerra, as enfermeiras e enfermeiros estiveram na linha da frente nos hospitais durante a pandemia. Uns mostraram-se resistentes heróis, mas outros também soçobraram e ficaram até hipocondríacos. Um estudo realizado no hospital iraniano de Hazrat Ali Asghar, e publicado na revista BMC Nursing em Novembro passado, avaliou o impacte da avalanche de desafios no pessoal de enfermagem: elevadas cargas horárias, constantes mudanças de protocolos, fadiga e, em muitos casos, um isolamento forçado do seu núcleo familiar, devido ao receio de os infectar.

    Em situações normais, já se sabia que estes profissionais de saúde estavam mais susceptíveis a sofrer stress, problemas mentais e até hipocondria, mas confirmou-se agora que essa propensão piorou na gestão da covid-19.

    woman in blue t-shirt holding brown cardboard box

    O estudo baseou-se num inquérito a 312 enfermeiros de um hospital de referência no tratamento desta doença, dividido em três partes. A primeira centrava-se nas características pessoais dos enfermeiros, a segunda aferia o seu nível de resiliência e, por fim, a terceira tentava apurar o grau de hipocondria. Para esta última fase foram criados cinco grupos: saudável (sem qualquer hipocondria), hipocondria ambígua (borderline), ligeira, moderada e severa.

    Para surpresa dos investigadores, os valores da hipocondria atingiram níveis elevadíssimos: oito em cada 10 enfermeiros (81,4%) estavam com receio de se infectar, sendo que em mais de metade dos casos esse medo era moderado. De acordo com outras avaliações similares antes da pandemia, citadas pelos investigadores do estudo, os níveis de hipocondria andavam, em geral, entre os 18% e os 45%.

    Por outro lado, e associado à hipocondria, o nível médio de resiliência já se revelou moderado. A capacidade de ser resiliente pode definir-se pelo grau de adaptabilidade e flexibilidade perante situações adversas e de crise.

    Neste aspecto, cerca de metade dos enfermeiros mostrou níveis razoáveis de resiliência. A confiança nos instintos individuais, o nível de instrução, a adaptação à mudança, o sexo, a intensidade de trabalho e até a espiritualidade foram considerados pelos investigadores os factores determinantes para uma maior ou menor resiliência.

    Os enfermeiros mais espirituais detinham, por outro lado, duas a seis vezes menor probabilidade de sofrer de doenças mentais. Já as enfermeiras apresentaram uma maior propensão para a hipocondria. Os investigadores referem que esse facto pode dever-se às dificuldades acrescidas das mulheres em conjugar as responsabilidades do lar e do cuidado dos filhos com o trabalho.

    A pressão e a intensidade também se mostraram relevantes. Os enfermeiros com mais de 20 turnos por mês – que perfaziam 45% do total – e com mais de três pacientes ao seu cuidado, registaram uma menor resiliência e maiores sinais de hipocondria. Mais trabalho e menos tempo com a família foram causas apontadas pelos investigadores para a deterioração do estado mental e emocional.

    Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros.

    Outro elemento digno de nota foi o nível de educação. Os enfermeiros com mestrado (cerca de 11%) apresentaram níveis mais baixos de hipocondria do que os licenciados. Com frequência, os cargos mais elevados – como de chefes ou supervisores – são ocupados pelos mais instruídos, e assim o facto de esses enfermeiros terem menor contacto directo com doentes pode ter contribuído para um menor stress. Além disso, de acordo com os investigadores, os seus salários mais elevados terão feito sentirem-se mais seguros, aumentando a sua resiliência.

    Por fim, a idade e a experiência também pareceram ser preponderantes. Os enfermeiros mais velhos, e com carreiras mais longas, revelaram maior capacidade de lidar com trabalhos mais complexos. Em todo o caso, em termos globais, o impacte da pandemia atingiu a maioria das equipas de enfermagem, uma vez que os jovens, mais propensos à hipocondria, eram o grupo maioritário neste hospital. Com efeito, a maioria tinha menos de trinta anos.

    Em declarações ao PÁGINA UM, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, diz que o tema da hipocondria entre a classe nunca “veio à baila” durante a pandemia, mas admite que a saúde mental destes profissionais, sendo já habitualmente frágil, se agravou durante a crise sanitária.

    Segundo Ana Rita Cavaco, antes da pandemia, “um em cada cinco enfermeiros estavam a trabalhar em esgotamento (burnout) e dois terços com grande stress“, situação que se agudizou em 2020. “Os nossos enfermeiros foram os mais expostos, estiveram muito próximos dos doentes”, salienta a bastonária, relevando também as condições económicas e de condições de trabalho que levaram mais de dois mil enfermeiros portugueses a emigrarem nos últimos dois anos.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Secretismo da Direcção-Geral da Saúde vai acabar

    Secretismo da Direcção-Geral da Saúde vai acabar

    Graça Freitas tem sido acérrima defensora do secretismo na gestão da pandemia. O PÁGINA UM tem recorrido sistematicamente à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), um diploma com mais de 25 anos, criado para mudar a postura obscurantista da Administração Pública. Um processo lento, porque a comissão que regula este diploma demora meses a emitir um parecer, que nem sequer é vinculativo. O Tribunal Administrativo pode ter de ser o passo seguinte, mas com custos e maiores adiamentos.


    A Direcção-Geral da Saúde (DGS) tem de ceder ao PÁGINA UM todos os pareceres e comunicações dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), criada em Novembro de 2020, determinou a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em parecer emitido na passada quinta-feira.

    Embora este parecer da CADA não seja vinculativo – podendo o processo “subir” ao Tribunal Administrativo –, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, fica mais pressionada a mudar a sua atitude de secretismo em redor da gestão da pandemia.

    Esta decisão da CADA surge no decurso de um requerimento do PÁGINA UM de Outubro passado – ainda antes do polémico programa vacinal das crianças –, e abrange assim a necessária disponibilização da totalidade dos documentos emanadas pela CTVC, pelos seus membros e pela própria DGS.

    Primeira página do parecer da CADA.

    Significa assim que, de acordo com o pedido do PÁGINA UM – considerado legítimo pela entidade presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, a DGS terá de revelar tanto os pareceres da CTVC, sobre todos os assuntos, como também os ofícios enviados por esta entidade ao Ministério da Saúde, “contendo o(s) dito(s) parecer(es) e recomendações, e também todos e quaisquer documentos escritos ou sob a forma áudio ou audiovisual de especialistas consultados pela CTVC”. Também no caso de existirem actas das reuniões, estas devem ser também disponibilizadas.

    Essa consulta permitirá, deste modo, e pela primeira vez, um escrutínio transparente e independente desta comissão, que esteve sempre envolvida em polémica, sobretudo a partir do Verão passado, quando a vacinação de menores de idade foi colocada em cima da mesa.

    Graça Freitas tem sido uma adepta tenaz e incondicional do secretismo e obscurantismo do Governo em matérias relacionadas com a gestão da pandemia, recusando sistematicamente disponibilizar informação ou responder a pedidos de esclarecimento sobre matérias mais sensíveis.

    Nos últimos meses, o PÁGINA UM enviou já uma dezena de requerimentos à DGS, nunca tendo obtido qualquer resposta favorável. A única informação que o PÁGINA UM recebe da DGS são os monótonos diários dos casos, dos óbitos e dos números de vacinação contra a covid-19, de utilidade reduzida para aferir a qualidade da gestão da pandemia.

    Mesmo no recente e polémico episódio dos pareceres da CTVC sobre o programa vacinal de crianças, na primeira quinzena de Dezembro passado, Graça Freitas sempre defendeu a não-divulgação de documentos, justificando serem “internos”, e que “o habitual é não serem divulgados”. Somente após pressão política, a DGS acabaria por disponibilizar o parecer integral da CTVC, incluindo outros dois pareceres: um de um grupo de pediatras e outro de uma jurista de bioética.

    Graça Freitas, directora-geral da Saúde.

    Devido à divulgação integral daqueles documentos administrativos, o PÁGINA UM pôde então revelar, em artigo publicado em 12 de Dezembro passado, que os membros da CTVC admitiam que “os riscos, a longo prazo, associados à administração da vacina, nas idades 5-11 anos, não são ainda definitivamente conhecidos”.

    Além disso, ficou também a saber-se que os membros da CTVC, alguns dos quais distintos professores universitários, usaram relatórios não publicados e outros sem revisão científica (peer review), sendo que, em todo o caso, estes abordavam impactes em grupos etários mais velhos.

    Perante o conteúdo do parecer da CADA agora conhecido, o PÁGINA UM já solicitou à DGS para indicar hora e local para a consulta da documentação em causa.

    Caso Graça Freitas mantenha a postura de secretismo, então apenas o Tribunal Administrativo a poderá obrigar a agir de forma diferente, mais transparente e prestativa perante os cidadãos.

    Quando o PÁGINA UM obtiver toda esta documentação da CTVC, irá disponibilizá-la imediatamente no seu servidor, para acesso geral e universal, excepto se a DGS o fizer, entretanto, no seu site.

  • Ordem dos Médicos tem de ceder documentos de donativo milionário da Merck, mas acusa PÁGINA UM de comportamento criminoso

    Ordem dos Médicos tem de ceder documentos de donativo milionário da Merck, mas acusa PÁGINA UM de comportamento criminoso

    Parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos determina que Miguel Guimarães deve permitir consulta a todos os documentos relacionados com a doação de máscaras no valor de 380.000 euros por uma farmacêutica norte-americana. A Ordem dos Médicos critica os pedidos do PÁGINA UM, considerando-os que integram “a prática de crimes” contra bastonário e alguns dos médicos seus membros.


    A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) considera que a Ordem dos Médicos “deve facultar o acesso” ao protocolo entre aquela entidade, presidida por Miguel Guimarães, e a farmacêutica Merck, bem como a todos os documentos que comprovem a aplicação de um donativo em género (máscaras FFP2) no valor de 380.000 euros. Este montante é o maior registado em 2021 na Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    Saliente-se que, de acordo com esta base de dados, a Ordem dos Médicos recebeu só no ano passado um total de 448.326 euros de diversas farmacêuticas, um montante jamais visto anteriormente. No período anterior à pandemia, e desde 2013, esta instituição nunca tivera mais de 75 mil euros num ano provenientes deste sector empresarial.

    O parecer da CADA – que funciona junto da Assembleia da República e é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira –, enviado hoje e emitido na quinta-feira passada, resulta de um pedido do PÁGINA UM em 10 de Novembro à Ordem dos Médicos.

    Primeira página do parecer da CADA sobre o acesso a processo do donativo da Merck à Ordem dos Médicos no valor 380.000 euros.

    Nesse requerimento solicitava-se, além do protocolo, “documento administrativo que confirme a recepção do donativo da Merck S.A. para a Ordem dos Médicos em numerário (por transferência bancária ou cheque) ou em género (máscaras propriamente ditas), documento(s) administrativo(s) que comprove(m) a distribuição das ditas máscaras FFP2 pelas diversas entidades, e correspondente identificação das entidades e quantidades, no âmbito da campanha Todos por Quem Cuida, e ainda o “relatório de execução, ou outro qualquer documento administrativo”, sobre a execução plena desta iniciativa.

    Recorde-se que esta campanha – fomentada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e APIFARMA – pretendia angariar dinheiro, material e equipamentos de combate à pandemia para depois distribuir por “profissionais que estão na linha da frente dos consultórios, hospitais, farmácias, lares e de todos os outros locais”, de acordo com um site específico.

    Até ao momento, a campanha terá recebido 1.401.545 euros, que beneficiou 1.238 entidades, mas os promotores não as identificam (nem os montantes financeiros ou géneros recebidos que cada uma recebeu), nada dizem sobre os critérios de distribuição nem se existiram fees arrecadados pelas duas Ordens e pela Apifarma.

    A campanha Todos por Quem Cuida contou com o apoio de inúmeras figuras públicas, entre as quais o próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que prestou um depoimento audiovisual. O site ainda está activo, embora a última informação nas redes sociais (Facebook) seja de Fevereiro do ano passado, e a conta bancária de angariação já foi eliminada, conforme confirmou o PÁGINA UM.

    Apesar de o PÁGINA UM ter invocado uma legislação de “arquivo aberto” com mais de 25 anos – promotora da transparência e administração aberta da res publica –, para o processo da CADA, que viria a determinar um parecer favorável às justas pretensões do PÁGINA UM, a Ordem do Médicos teceu um feroz ataque à liberdade de imprensa.

    Com efeito, de acordo com este organismo presidido por Miguel Guimarães, o “reclamante [jornalista e director do PÁGINA UM] (…) desde há vários meses, tem vindo a adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes [não especificados] para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros, que, no tempo e lugar próprio, serão objecto da respectiva avaliação”.

    Financiamento anual (em euros) das farmacêuticas à Ordem dos Médicos desde 2012. Fonte: Infarmed.

    A Ordem dos Médicos acusa mesmo o PÁGINA UM de ter uma “atitude de manifesta animosidade”, a qual “pretende instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os seus objectivos”. Como não explicita quais são esses objectivos, presume-se que sejam o direito de informar, previstos, consagrados e defendidos pela Constituição da República Portuguesa.

    Tendo chegado a exigir prova documental do estatuto de jornalista ao director do PÁGINA UM – algo que poderia ser confirmado em segundos no site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista –, a Ordem dos Médicos também defendeu junto da CADA que, “atento até o volume de documentos que têm sido solicitados pelo Requerente, não está obrigada (…) a permitir o acesso ao solicitado”. Saliente-se que o PÁGINA UM apenas fez mais outro requerimento à Ordem dos Médicos nos últimos quatro meses.

    No seu parecer, aprovado por unanimidade, a CADA acaba por refutar toda o argumentário da Ordem dos Médicos. Confirmando que o director do PÁGINA UM, que possui a carteira profissional 1786, jamais sequer estava obrigado a provar o seu estatuto de jornalista, a CADA defende que se está perante documentos de “livre acesso”, ou seja, qualquer cidadão os poderia requerer.

    Por outro lado, quanto aos alegados pedidos de acesso reiterados – na verdade, dois requerimentos em quatro meses –, a CADA conclui que o comportamento do PÁGINA UM não “evidencia prosseguir finalidades que não se enquadrem nas razões do regime aberto – de garantia da transparência, do controlo da atividade administrativa, da participação dos cidadãos na vida pública – ou se apresenta de tal modo desproporcionado entre a vantagem que concede ao interessado e o sacrifício que impõe à entidade requerida.” Ou seja, como seria de esperar, legitima a acção do PÁGINA UM e do jornalismo de investigação independente integrado num sistema democrático.

    António Guterres depôs em campanha que a Ordem dos Médicos quer esconder de escrutínio.

    A CADA também relembra à Ordem dos Médicos, face à ameaça da instituição presidida por Miguel Guimarães de se reservar “o direito de continuar a recusar o acesso à documentação (para além daquela que se encontra publicada no seu site)”, que essa postura não pode ser pré-anunciada, mas sim, “sempre devidamente fundamentada”, feita “na sequência da apreciação de cada caso concreto, não sendo, por conseguinte, generalizável para pedidos ainda não formulados”. Ou seja, as recusas da Ordem dos Médicos não podem ser justificadas por caprichos ou baseando-se na falácia do argumentum ad hominem.

    Aliás, sobre as queixas da Ordem dos Médicos contra o alegado mau comportamento do PÁGINA UM, a CADA defende que não lhe cabe “pronunciar-se”, por serem assuntos fora do âmbito da questão essencial: o acesso a documentos administrativos.

    Como o parecer da CADA não é vinculativo, a Ordem dos Médicos tem agora um prazo de 10 dias para comunicar ao PÁGINA UM “a sua posição final fundamentada”. Em caso de manter a recusa, somente através de uma acção no Tribunal Administrativo o bastonário da Ordem dos Médicos de um país democrático poderá ser mesmo obrigado a abrir as portas à transparência e escrutínio independente. Algo que o PÁGINA UM, se necessário for, fará.

  • Milhões gastos em ‘testes à discrição’ davam para quatro anos do Plano de Saúde Gratuito prometido por Moedas

    Milhões gastos em ‘testes à discrição’ davam para quatro anos do Plano de Saúde Gratuito prometido por Moedas

    O município de Lisboa tem decidido pagar testes de antigénio aos residentes e não-residentes da capital – que permite assim que qualquer pessoa possa, no limite, fazer 14 testes por mês –, através da contratação de uma empresa ligada à Associação Nacional de Farmácias. Em apenas dois contratos nos últimos nove meses, o município agora liderado por Carlos Moedas gastou 9 milhões de euros, mais do que todas as outras autarquias juntas gastaram para o mesmo fim. Na capital portuguesa vive 5% da população do país.


    Desde Maio do ano passado, a Câmara Municipal de Lisboa gastou 9 milhões de euros no financiamento de testes de diagnóstico da covid-19, um montante que daria para quatro anos do Plano de Saúde Gratuito prometido por Carlos Moedas aos munícipes carenciados da capital com mais de 65 anos. Ainda sobraria um milhão para financiamento de um ano da Fábrica de Empresas, o hub criativo de startups anunciado pelo novo presidente da autarquia.

    Este gasto foi, até agora, consubstanciado sobretudo em dois contratos, ambos assinados entre a Câmara de Lisboa e a Farminvest – uma empresa pertencente à Associação Nacional de Farmácias –, e que está na base da generalização dos testes gratuitos em farmácias da capital.

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    Estratégia de testagem massiva em Lisboa não encontra paralelo em outro qualquer município.

    Os detalhes dos contratos com a Farminvest, sempre por ajuste directo – ou seja, sem qualquer concorrência nem avaliação de preços de mercado –, não estão ainda sequer no Portal BASE, mas a atender a outro contrato similar concretizado entre aquela empresa e o Instituto de Administração da Saúde da Madeira, cada teste de antigénio deverá ter custado 15 euros.

    Este é, aliás, o valor máximo fixado numa portaria do secretário de Estado da Saúde, Diogo Serra Lopes, em 3 de Dezembro passado. O Estado português garante, em qualquer região, a comparticipação integral de quatro testes por mês a cada pessoa.

    O primeiro contrato, assinado em 26 de Maio, ainda no tempo de Fernando Medina à frente dos destinos da edilidade lisboeta, a Farminveste recebeu 5.699.885 euros, para garantir testes gratuitos aos munícipes durante seis meses em farmácias aderentes.

    Na quarta-feira passada, dia 19, foi concretizado um novo contrato, desta vez com o valor de 3.225.000 euros e uma duração de 120 dias, ou seja, até meados de Maio.

    Em termos globais, significa que a Câmara Municipal de Lisboa gastará, nos 300 dias dos dois contratos, uma média diária de quase 30 mil euros.

    Recorde-se que a Câmara Municipal de Lisboa decidiu reforçar a “comparticipação” – leia-se, pagamento integral – de testes rápidos de antigénio na rede de farmácias aderentes da Associação Nacional das Farmácias, para além dos quatro testes mensais suportados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). E alargou também esse “direito” aos não-residentes. Cada pessoa poderá fazer um teste a cada três dias, o que tem vindo a ser utilizado massivamente sobretudo por jovens na sexta-feira, com ajuntamentos à porta destes estabelecimentos. No limite, qualquer pessoa em Lisboa consegue assim fazer 14 testes de antigénio por mês.

    Esta estratégia de testagem massiva em Lisboa é ímpar a nível nacional. Embora desde o início da pandemia se contabilizem dezenas de autarquias que optaram por reforçar a comparticipação do SNS, pagando testes à população, a edilidade da capital portuguesa tem-se esmerado e destacado, oferecendo testes “à discrição”.

    Gastos totais e per capita nos 10 municípios com maior despesas em contratos de testes de diagnóstico da covid-19

    Contabilizando todos os contratos para a realização de testes PCR e de antigénio (rápidos), incluindo compra de reagentes, constantes no Portal BASE, o PÁGINA UM apurou que 59 Câmaras Municipais gastaram já 16.486.928 euros, sendo que a autarquia de Lisboa foi responsável por quase 55% do total.

    A autarquia de Cascais – que tem sido uma das que mais tem gastado na luta contra a covid-19 – pagou 1.925.730 euros em testes de diagnóstico à presença do SARS-CoV-2, enquanto a autarquia do Porto despendeu 1.032.400 euros. Em montantes menos elevados, acima dos 100.000 euros (mas inferiores a 400.000 euros) encontram-se mais 11 autarquias: Albufeira, Amadora, Oeiras, Loulé, Braga, Vila Nova de Gaia, Vizela, Guimarães, Vila Franca de Xira, Loures e Castelo Branco).

    Em termos relativos, o gasto da autarquia alfacinha também se salienta em comparação com as demais autarquias, caso se se considere a população de cada concelho, de acordo com os recentes Censos do ano passado. Com efeito, no lote das 10 autarquias que mais gastaram em contratos para testagem desde o início da pandemia, a autarquia de Lisboa pagou 16,5 euros por cada um dos seus 545.923 munícipes, quase o dobro da segunda mais gastadora, Cascais (9,0 euros). O Porto despendeu, até agora, 4,5 euros por munícipe e Vila Nova de Gaia – o terceiro mais populoso concelho do país – nem chega ao um euro por munícipe (74 cêntimos).

    Note-se que a autarquia de Sintra, a segunda do país com mais população, não consta da lista de adjudicante em contratos de testes, havendo apenas contratos feitos pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento destinados ao rastreio de funcionários.

  • Contratos das vacinas infantis salvam Pfizer do pagamento de indemnizações

    Contratos das vacinas infantis salvam Pfizer do pagamento de indemnizações

    O carácter voluntário da toma das vacinas contra a covid-19 e as cláusulas de exclusão de responsabilidades em anteriores contratos dificultarão sobremaneira eventuais pedidos de indemnização por lesões e outros danos pessoais às farmacêuticas e mesmo aos Estados. O secretismo do Infarmed na divulgação dos critérios para inclusão dos eventos adversos confirmados também não ajudarão quem se considerar lesado.


    A Direcção-Geral da Saúde recusa esclarecer se o contrato das vacinas da Pfizer em crianças contém a mesma cláusula de exclusão de responsabilidade dos dois primeiros contratos assinados em 9 de Dezembro de 2020 e em 18 de Janeiro do ano passado.

    O contrato para a compra de 700 mil doses para crianças à farmacêutica norte-americana, também por ajuste directo, terá sido assinado em Novembro passado, antes mesmo da elaboração do parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), com prazos de entrega em Dezembro de 2021 e no presente mês de Janeiro, conforme anunciou o Diário de Notícias.

    Por lei, este contrato já deveria constar do Portal BASE, mas inexplicavelmente a DGS não explica a razão pela qual não o enviou para registo ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade gestora daquela base de dados da contratação pública.

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    Em todo o caso, o PÁGINA UM sabe que não houve qualquer alteração do enquadramento jurídico dos contratos das vacinas contra a covid-19, no seguimento do acordo global de compra (Advanced Purchase Agreement) assinado entre a Comissão Europeia e as diversas farmacêuticas, entre as quais a Pfizer. A partir desse acordo, cada país ficou apenas incumbido de indicar as doses e os prazos de entregas, mas sem a inclusão de quaisquer cláusulas de responsabilidade civil para as empresas produtoras das vacinas. Ou seja, em caso de problemas de saúde para quem tomar as vacinas, as farmacêuticas descartam-se do pagamento de indemnizações.

    A mesma desresponsabilização sucederá com os diversos Estados da União Europeia, como Portugal, que até agora não impuseram a vacinação obrigatória. Independentemente das pressões sociais e políticas sendo a vacinação voluntária e havendo um consentimento informado oral, assume-se que as pessoas vacinadas e os pais dos menores assumiram os riscos, pelo que quaisquer danos físicos ou não-patrimoniais nunca serão, em princípio, garantidos pelo Estado.

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    Nos dois contratos conhecidos entre a DGS e a Pfizer/BioNTech – o primeiro para a compra de 4.540.805 doses ao preço de 12 euros, em Dezembro de 2020; e o segundo para a compra de 2.220.596 doses ao preço de 15,5 euros, em Janeiro de 2021 – ficou assumido que “as circunstâncias de emergência” implicavam que o Estado português “reconhecia que a vacina, e os materiais relacionados com as vacinas, e seus compostos e materiais constituintes, estão a ser desenvolvidos rapidamente”. E, por esse motivo, “o Estado Membro Participante [o Estado português, neste caso] reconhece ainda que os efeitos a longo-prazo e a eficácia da vacina não são actualmente conhecidos.”

    Esta autêntica cláusula de exclusão de responsabilidades também se reforçava na frase seguinte do contrato, onde se refere que “o Estado Membro Participante reconhece que a vacina não deve ser serializada.”

    Mesmo sabendo-se que as vacinas têm chegado a Portugal em lotes e com número de série, a excepção expressa no contrato das vacinas contra a covid-19 – ou seja, a serialização não é assumida formalmente – pode ser outro entrave adicional a eventuais pedidos de indemnização.

    Trecho do contrato (APA) entre a Comissão Europeia e a Pfizer que desresponsabiliza a farmacêutica de pagar indemnizações civis por danos nos vacinados

    Os contratos das outras farmacêuticas, como a Moderna, não têm cláusulas de exclusão de forma tão explícita, mas remetem para o acordo (APA) feito pela Comissão Europeia.

    Em Julho do ano passado, eurodeputados da Esquerda Unitária Europeia (The Left) – que congrega o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista – salientavam num relatório que os contratos com os fabricantes das vacinas continham cláusulas que “protegiam as companhias de qualquer risco financeiro de responsabilidade civil”.

    Mesmo a eventualidade de responsabilização do Estado português necessitará da associação inequívoca entre a toma das vacinas e os danos. Nesse aspecto, será sempre necessário que o Infarmed certifique, através da farmacovigilância, a existência de uma relação directa entre a vacina e o dano, mas esta entidade tem recusado sequer informar sobre os critérios para a inclusão dos eventos adversos na sua base de dados. O Estado português pode sempre também defender-se através do carácter voluntário, e que as pessoas vacinadas tomaram uma decisão individual livre.

  • Editores de uma das principais revistas médicas mundiais criticam farmacêuticas de obscurantismo e falta de transparência

    Editores de uma das principais revistas médicas mundiais criticam farmacêuticas de obscurantismo e falta de transparência

    Editorial de uma das prestigiadas revistas médicas do Mundo – a BMJ – apela para a necessidade imperiosa de serem disponibilizados dados brutos de fármacos contra a covid-19 para escrutínio independente, recordando o escândalo do Tamiflu há 13 anos. Farmacêuticas e entidades reguladoras tentam adiar esse acto.


    Três editores da prestigiada revista científica BMJ – Peter Doshi, Fiona Godlee e Kamran Abbasi – apelaram ontem para a urgência de serem disponibilizados os dados brutos relacionados com as vacinas contra a covid-19, receando que se esteja a repetir a situação de fraude ocorrida com o Tamiflu – um antiviral produzido pela Roche contra a pandemia da gripe de 2009, que mais tarde se apurou afinal ter resultados decepcionantes.

    Num editorial extremamente crítico, os três cientistas censuram a Pfizer por não facultar os dados detalhados dos ensaios clínicos antes de Maio de 2025, acusando também de estar em conluio com outras farmacêuticas, de modo a dificultarem o acesso à informação a investigadores independentes.

    A Moderna, uma das outras produtoras de vacinas contra a covid-19, também já informou que apenas libertará dados dos ensaios clínicos em bruto a partir de finais de Outubro deste ano. No entanto, esses dados estarão apenas disponíveis “mediante solicitação e sujeitos a revisão assim que o estudo estiver concluído”. No caso dos ensaios clínicos da AstraZeneca, a farmacêutica anglo-sueca prometeu ceder informação detalhada a partir do início de 2022, mas os editores da BMJ receiam que “na verdade, a obtenção de dados pode ser lenta”. Aliás, acrescentam que o site da empresa explica que “os prazos variam de acordo com a solicitação e podem levar até um ano após o envio completo da solicitação”.

    Tamiflu foi um antiviral para combater a pandemia de 2009, que afinal se mostrou ineficaz. Portugal pagou 23 milhões de euros à Roche.

    Também os ensaios de outros fármacos associados à luta contra a covid-19 sofrem de similares males. Os relatórios publicados do estudo de fase III da farmacêutica Regeneron sobre os anticorpos monoclonais REGEN-COV afirmam taxativamente que não serão disponibilizados quaisquer dados em bruto.

    Quanto ao polémico remdesivir, comercializado pela Gilead, os editores da BMJ referem que as autoridades sanitárias norte-americanas, que co-financiaram o estudo sobre os seus efeitos contra o SARS-CoV-2, criaram um novo portal para compartilhar dados, mas com conteúdos muito limitados.

    Em suma, como avisam estes investigadores, na verdade só se encontram disponíveis as publicações científicas de autores associados às farmacêuticas, defendendo ser essa situação extremamente preocupante para “os participantes dos estudos, os investigadores, os médicos, os editores de periódicos científicos, os formuladores de políticas e o público”.

    E avisam também que esta prática de não divulgação dos dados em bruto em simultâneo com o envio e aprovação dos artigos científicos, contrariando o que é norma em Ciência, se deveu a pressões derivadas da emergência pandémica. “Os periódicos que publicaram esses estudos primários podem argumentar que enfrentaram um dilema embaraçoso, entre disponibilizar rapidamente os resultados resumidos e defender os melhores valores éticos que apoiam o acesso oportuno aos dados subjacentes”, referem os editores da BMJ, para em seguida sentenciarem: “Em nossa opinião, não há dilema; os dados anonimizados de participantes individuais de ensaios clínicos devem ser disponibilizados para escrutínio independente.”

    Estes responsáveis científicos da BMJ criticam também a postura da Food and Drug Administration – a agência que regula os medicamentos nos Estados Unidos – que, após uma decisão judicial ao abrigo da liberdade de informação, apenas tem estado a libertar “ 500 páginas por mês” sobre os ensaios da Pfizer, ritmo que a manter-se levará décadas para ser concluído.

    Saliente-se, contudo, que há cerca de uma semana um juiz federal no Texas determinou que a FDA deve, até o final deste mês, tornar públicas 12.000 páginas dos dados que usou para tomar decisões sobre aprovações da vacina da Pfizer/BioNTech, e depois libertar 55.000 páginas por mês até que todas as 450.000 páginas solicitadas sejam públicas.

    Peter Doshi, Fiona Godlee e Kamran Abbasi recordam ainda o caso do Tamiflu, um fármaco produzido pela Roche para combater a gripe H1N1, que facturou cerca de 3 mil milhões de dólares só em 2009. Afinal, relembram os editores da BMJ, o medicamento “não demonstrou reduzir o risco de complicações, internamentos hospitalares ou morte”, acrescentando que “a maioria dos ensaios que sustentaram a aprovação regulatória e o armazenamento governamental de oseltamivir (Tamiflu) foram patrocinados pelo fabricante; a maioria era inédita, os que foram publicados foram escritos por autores pagos pelo fabricante, as pessoas listadas como autores principais não tinham acesso aos dados brutos, e os académicos que solicitaram acesso aos dados para análise independente não receberam nada”.

    Saliente-se que, no caso do Tamiflu, o Estado português comprou 2,5 milhões de doses deste ineficaz antiviral, pagando 23 milhões de euros. Acabou por gastar ainda mais 6 mil euros para incinerar tudo em finais de 2018.

    Editorial integral da BMJ


    Nota: Adicionada informação sobre decisão do juiz federal às 18:40 de 21/01/2022.

  • Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    A mais recente vaga de casos positivos de covid-19, muito superior às anteriores, está a causar constrangimentos económicos e de logística nunca vistos. Se a vacina mostra fortes sinais de reduzir significativamente o risco de hospitalização e de morte, sobretudo nos mais idosos, o SARS-CoV-2 está, paradoxalmente, a “entrar” mais facilmente na comunidade vacinada, mesmo usando valores padronizados. Existem várias explicações para este aparente paradoxo, segundo um relatório da Agência de Saúde Sanitária do Reino Unido. Uma delas é tema tabu em Portugal, e a Direcção-Geral da Saúde recusa dar informações ao PÁGINA UM: a imunidade natural dos recuperados – que integram muitos dos não-vacinados – poderá ser afinal muito superior à imunidade vacinal.


    É um dos paradoxos do momento: com 71% da população vacinada e mais de 54% com dose de reforço, o Reino Unido está a enfrentar uma vaga avassaladora de casos positivos de covid-19 – e essa variável está a contribuir para uma significativa queda da mortalidade –, mas a “culpa” parece ser afinal dos vacinados que apresentam incidências muito superiores aos dos não-vacinados. A situação deverá ser idêntica em outros países. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde nunca divulga dados sobre estas matérias, embora constem do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).

    Apesar desta situação não beliscar os benefícios da vacinação na população mais idosa – cuja taxa de mortalidade nos maiores de 80 anos vacinados é de apenas 20% face à dos não-vacinados do mesmo grupo etário –, em causa estará um dos benefícios da vacina prometidos pelas farmacêuticas: uma maior protecção contra a infecção, mesmo em recuperados.

    blue and white plastic bottle

    Recorde-se que a recente vaga de infecções, sobretudo no Hemisfério Norte, tem colocado uma pressão suplementar na gestão logística e económica da pandemia, com cada vez mais pessoas a serem obrigadas a confinamento por causa de testes positivos, mesmo os assintomáticos. Por exemplo, o Reino Unido conta, neste momento, com cerca de 3,6 milhões de casos activos, representando 5,5% do total da população. Este valor é cerca do dobro do pico registado em Janeiro do ano passado. Em Portugal, há um ano, cerca de 1,4% da população estava como “caso activo”; agora são 3,5% (356.477 pessoas).

    A última actualização do relatório periódico da Agência de Saúde Sanitária (ASS) do Reino Unido – um dos mais completos e transparentes sistemas mundiais de gestão da pandemia – revela que o grupo populacional que mais tem contribuído para esta vaga explosiva de casos é, afinal, o dos vacinados.

    A entidade estatal do Reino Unido apresenta, no seu relatório de vigilância epidemiológica, vários indicadores relacionados com o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19, tanto estratificados por idades como também por estado vacinal. E mostra agora que, no caso da incidência, os vacinados estão em larga maioria, tanto em número – compreensível porque são mais –, mas também em termos relativos ou padronizados – isto é, em casos no grupo em relação à totalidade de pessoas do grupo. A situação evidencia-se especialmente na população adulta activa.

    De facto, nos menores de 18 anos, a incidência dos não-vacinados ainda é superior à dos vacinados (3.376 por 100.000 pessoas vs. 2.357), mas inverte-se, de forma evidente, nos grupos etários mais velhos. Nos jovens adultos (18-29 anos), a incidência nos vacinados chega a ser praticamente o dobro face à nos não-vacinados. Nos grupos etários seguintes (30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos e 60-69 anos), as incidências nos vacinados são ainda superiores: mais 133%, mais 145%, mais 127% e mais 110%, respectivamente.

    Incidência cumulativa bruta no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Este crescimento em grupos etários até aos 70 anos – que representaram mais de 75% da população do Reino Unido – justifica, só por si, o aumento galopante dos casos activos, embora sem reflexo em termos de mortalidade. Isto porque a vulnerabilidade à doença na população adulta em idade activa sempre foi bastante baixa mesmo antes da criação das vacinas.

    No caso dos maiores de 70 anos, a incidência nos vacinados continua a ser superior à dos não-vacinados, mas em dimensão menor: mais 82% no grupo dos 70 aos 79 anos, e mais 31% nos maiores de 80 anos.

    A ASS do Reino Unido salienta que, na base desta surpreendente discrepância, estará o facto de “as pessoas totalmente vacinadas estarem mais preocupadas com a saúde e, portanto, estando mais propensas a realizar o teste para a covid-19, acabarem por ser mais identificadas” quando estão infectadas. Esta justificação não deixa de ser curiosa, porque significaria então que a comunidade vacinada aparenta não confiar demasiado na eficácia das vacinas na sua protecção.

    A mesma entidade defende que a diferença da incidência se possa dever, para além de condicionalismos de idade e ocupação, também à sua maior exposição, ou seja, “as pessoas vacinadas e não-vacinadas podem comportar-se de maneira diferente, especialmente no que respeita às interacções sociais”.

    Por fim, last but not the least, o organismo britânico considera que, entre os não-vacinados, estarão pessoas recuperadas que não se vacinaram, mas que apresentam “imunidade natural ao vírus”. Ou seja, esta entidade acaba por admitir implicitamente que a imunidade natural, pelo menos no que diz respeito à (re)infecção, será superior à vacinal.

    Taxa bruta de mortalidade por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Apesar desta vaga de casos, a mortalidade total atribuída à covid-19 tem estado, quase na generalidade da Europa, em nível relativamente baixo para um Inverno anterior à pandemia. No Reino Unido, o registo de óbitos diário (em média móvel de 7 dias) situava-se nos 273 em 17 de Janeiro, correspondente a cerca de 40 óbitos em Portugal. Este valor é um quarto (24%) do valor homólogo em 2021.

    Segundo o último relatório da ASS do Reino Unido, actualizado ontem, a mortalidade mostra-se bastante mais baixa nos vacinados em relação aos não-vacinados, embora de forma bastante diferenciada em função da idade. No período entre 13 de Dezembro de 2021 e 3 de Janeiro deste ano, de acordo com este relatório, a taxa de mortalidade por covid-19 (ao fim de 60 dias) era de 54,3 óbitos por 100.000 pessoas vacinadas, enquanto a dos não-vacinados do mesmo grupo etário se situava em 262,2, ou seja, quase cinco vezes mais.

    A proporção nos grupos etários inferiores é sensivelmente idêntica, mas pouco relevante se se usar, em vez da unidade “por 100.000 habitantes”, a mais usual percentagem (por 100 habitantes). Nesse caso, o risco de morte de pessoas na faixa etária dos 30 aos 39 anos foi, no período em análise, de apenas 0,0005% se vacinada, e de 0,0017% para os não-vacinados do mesmo grupo etário.

    No caso dos jovens adultos dos 18 aos 29 anos, as percentagens são, respectivamente, de 0.0001% e 0,0006%. Ou seja, o risco sobe seis vezes, mas mantém-se muitíssimo baixo. No caso dos menores de idade, nenhum jovem vacinado morreu (0,0%) no período em análise, enquanto a taxa de mortalidade para os não-vacinados foi de 0,0001%.

    Taxa bruta de hospitalização por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Em relação às hospitalizações, o relatório da ASS mostra também uma menor necessidade nos vacinados, mas, mais uma vez, essa diferença só é relevante nos mais idosos – e também mais vulneráveis à doença. Para as pessoas com mais de 80 anos, o rácio de internamentos dos vacinados foi de 88,7 por 100.000, enquanto o dos não-vacinados se situou em quase 263.

    Esta diferença também se apresenta significativa nos grupos etários entre os 50 e 79 anos, com o risco de internamento a ser cerca de cinco vezes superior nos não-vacinados face aos vacinados.

    Essa proporção mantém-se até nos menores de idade, mas com um aspecto relevante: nestas idades o risco de internamento é incomensuravelmente inferior ao dos mais idosos. O risco de hospitalização por covid-19 num vacinado com mais de 80 anos é oito vezes superior ao de um menor não-vacinado, o que confirma, mais uma vez, que a covid-19 não constitui um problema com relevância em idades pediátricas.

  • Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Milhares de entradas nas urgências com cardiopatias isquémicas deram muitas centenas de óbitos “carimbados” com covid-19. O PÁGINA UM, continuando a dissecar a base de dados dos internados nos primeiros 15 meses da pandemia, detectou que cerca de 10% dos hospitalizados e 10% dos mortos sofreram cardiopatias isquémicas. Muitos tiveram ataques cardíacos, alguns fulminantes, mas todos levaram com o selo “covid”. Bastou um teste positivo, mesmo se o doente agonizava sem qualquer sintoma de infecção por SARS-CoV-2.


    Vários milhares de pessoas com sintomas graves ou moderados de cardiopatias isquémicas do coração – entre as quais enfartes do miocárdio, anginas de peito e aterosclerose neste órgão – acabaram classificados como doentes-covid pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas porque tiveram, na admissão hospitalar, um teste positivo. Em caso de desfecho fatal, a DGS anunciava-as como vítimas da pandemia.

    Na análise da base de dados do Ministério da Saúde abrangendo os internamentos dos primeiros 15 meses da pandemia, a que o PÁGINA UM teve acesso, confirma-se que independentemente do grau de gravidade de doenças cardíacas, um teste positivo foi o suficiente para ficar nas “malhas” das estatísticas da covid-19. Em centenas de casos, o SARS-CoV-2 nem sequer teve tempo de se manifestar, porque algumas dezenas faleceram no próprio dia ou no dia seguinte à admissão nos serviços de urgência hospitalar. E centenas no prazo de uma semana. Em condições naturais, antes da pandemia, todos estes óbitos teriam considerado estas cardiopatias como a causa.

    doctors doing surgery inside emergency room

    No período de Março de 2020 a Maio de 2021, envolvendo mais de 50 mil doentes-covid, o PÁGINA UM contabilizou, em mais de 50 mil internados, um total de 5.193 pessoas com referências, nos respectivos boletins clínicos, a uma ou mais cardiopatias isquémicas. Este número representa quase 10% do total de doentes-covid internados neste período. Contabilizando os desfechos fatais de pessoas oficialmente classificadas de doentes-covid, houve 1.757 que morreram após ataques cardíacos ou outras cardiopatias isquémicas, ou seja, 10% do total até Maio do ano passado.

    Não se consegue, neste universo, e com os dados disponíveis, quantificar com rigor absoluto o contributo destas doenças isquémicas para os desfechos fatais, nem sequer a percentagem de casos mortais em que a covid-19 pode ter desencadeado o evento cardíaco.

    Infelizmente, a base de dados é, de forma inexplicável, omissa sobre a data em concreto da ocorrência do evento cardíaco, informando apenas a ordem dos diagnósticos (que, em cada indivíduo, começa no 0). Por norma, primeiro, registam-se todas as doenças e problemas relevantes no momento da admissão hospitalar – e que a justificam – , e em seguida as comorbilidades e os aspectos relevantes da evolução clínica.

    Contudo, como não existe na base de dados dos doentes-covid uma separação entre as doenças e afecções antes da admissão e durante o internamento, apenas por dedução – mesmo com consulta individual dos mais de 50 mil doentes registados – se consegue determinar, sem demasiado erro, o número de doentes em que o evento cardíaco foi a causa directa do internamento.

    doctor performing operation

    Assim, quando pelo menos um registo destas isquemias – com os códigos I20 a I25 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI) – surgia nas primeiras posições da ordem do diagnóstico (entre 0 e 6), o PÁGINA UM considerou que estas constituíram a causa directa do internamento.

    Saliente-se que a referência à covid-19 (com o código U071) aparece, em muitos destes casos, com um número de ordem do diagnóstico superior ao das cardiopatias, o que significa, nestas circunstâncias, sem qualquer dúvida, que a admissão foi muito urgente, e só depois houve confirmação de teste positivo ao SARS-CoV-2.

    Assim, considerando este método, o PÁGINA UM identificou um total de 2.186 doentes-covid hospitalizados neste período que terão tido uma ou mais cardiopatias isquémicas como evidente causa de internamento, e não tendo ainda sintomas de infecção pelo SARS-CoV-2. Destes, 672 morreram.

    Também pelo tempo de estadia hospitalar se confirma que mesmo cardiopatias agudas fulminantes acabaram anunciadas como mortes-covid. Os casos mais chocantes observam-se com os enfartes do miocárdio – vulgarmente conhecidos por ataques cardíacos e com o código I21 da CDI. Entre Março de 2020 e Maio de 2021, e segundo o critério definido pelo PÁGINA UM, contabilizam-se 949 pessoas com este gravíssimo problema cardíaco, sendo que 206 tiveram diagnóstico de ordem 0 (100% de certeza de ter sido causa de internamento), e 657 com registo de ordem 6 ou inferior. Portanto, sete em cada 10 destas pessoas terão sofrido ataques cardíacos antes de qualquer teste positivo à covid-19.

    De entre estes casos, 40 pessoas morreram no próprio dia do internamento – ou seja, o ataque cardíaco foi mesmo fulminante –, 123 em três ou menos dias, e 253 antes de completado o sétimo dia de internamento. No total, a taxa de mortalidade destes doentes foi de 43%, ou seja, cerca de 20 pontos percentuais acima do rácio médio dos doentes-covid sem esta comorbilidade.

    Saliente-se, contudo, que a média das idades foi geralmente, nestes casos, bastante elevada (76 anos). Nos muito idosos (mais de 80 anos), a taxa de sobrevivência foi de apenas 44%. Ao invés, a taxa de mortalidade dos menores de 60 anos foi de 13%. Três dos mortos de ataque cardíaco com covid-19 no certificado de óbito tinham menos de 50 anos.

    person in white face mask

    Se se considerar todas as 2.186 cardiopatias isquémicas com ordem de diagnóstico de 6 ou inferior – ou seja, os eventos que terão sido a causa determinante de internamento –, além dos 949 ataques cardíacos, contabilizam-se ainda 78 anginas de peito (código I20), 381 aterosclerose do coração (código I251). Nas restantes de doenças cardíacas crónicas, destacam-se 335 casos de sequelas provenientes de ataques cardíacos antigos (código I252) e 221 cardiomiopatias isquémicas (código I255).

    As taxas de mortalidade hospitalar variaram muito neste tipo de cardiopatias. Nas anginas de peito foi de 24%, próxima daquela contabilizada para a generalidade dos doentes-covid, nas ateroscleroses do coração rondou os 26% e atingiu os 34% nas cardiomiopatias isquémicas.

    Contudo, para a DGS foi tudo “varrido” a covid-19.

  • Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    A Direcção-Geral da Saúde determinou que se alguém falecesse com um teste positivo ao SARS-CoV-2 levava automaticamente com o carimbo de “morte covid”. Os registos dos internados na primeira fase da pandemia, que o PÁGINA UM tem dissecado, mostram 250 casos suspeitos que podem ter sido apenas anormais reacções a procedimentos médicos, ou pura negligência médica. Um total de 88 pessoas morreram nestas circunstâncias. Como raramente houve autópsias, a morte morreu solteira.


    Um erro na operação de intubação numa unidade de cuidados intensivos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte contribuiu para a morte de um doente de 61 anos em Abril de 2020. Este evento trágico foi único, mas o PÁGINA UM detectou muitos mais casos suspeitos de erros e negligência médica que estarão a ser escondidos sob o carimbo da covid-19, uma vez que, por regra, não são feitas autópsias nos óbitos confirmados por esta doença.

    Estas suspeitas advêm da consulta à base de dados do Ministério da Saúde sobre os internamentos de doentes-covid, a que o PÁGINA UM teve acesso, e detecta-se através da codificação feita segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI).

    Aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esta codificação não apresenta apenas as doenças e comorbilidades de cada doente no seu processo clínico; também identifica, por exemplo, complicações de actos médicos e cirúrgicos, acidentes, erros, negligência e reacções inesperadas.

    medical professionals working

    Este tipo de situações recebe, por norma, os códigos Y62 a Y84 da CDI, consoante a sua tipologia. Não estão aqui incluídos, embora haja largas dezenas de casos, os acidentes em hospitais como quedas da cama ou em casas de banho em doentes-covid, alguns fatais.

    Numa análise detalhada à base de dados dos internamentos nos primeiros 15 meses da pandemia, entre Março de 2020 e Maio de 2021, contabilizam-se 250 doentes-covid com registos de reacções adversas após procedimentos médicos. Em alguns casos estar-se-á perante eventuais erros ou negligência médica. De entre os pacientes afectados, 88 morreram, ou seja, 35% – um valor cerca de 12 pontos percentuais acima da taxa de mortalidade dos internados sem este tipo de registos.

    Nem todos os desfechos fatais terão sido devidos apenas a reacções adversas dos doentes ou a erros médicos – até pela grande debilidade e elevada idade de muitas das vítimas –, mas todos acabaram classificados como mortes por covid-19. Muito provavelmente as famílias nem sequer souberam aquilo que se passou dentro das portas do hospital.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    O caso do doente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que agrega o Hospital de Santa Maria – é um exemplo paradigmático.

    À entrada nos cuidados intensivos em 22 de Abril de 2020, a sua situação já era grave: diabético tipo II, vinha com insuficiência respiratória e síndrome de desconforto respiratório decorrente de covid-19 diagnosticada, mas os médicos terão tido dificuldade em o intubar (surgindo essa referência com o código T884 da CDI) e o tubo orotraqueal acabou por ser mal colocado (código Y653). O homem sofreu um choque não especificado (R579) e morreu no dia seguinte ao internamento.

    A esmagadora maioria dos registos mostra-se, porém, com referências extremamente vagas sobre a origem exacta do erro, acidente ou reacção anormal, não sendo assim possível concluir se se está perante uma situação incontornável ou imprevista, ou se se tratou de erro médico.

    Por exemplo, na base de dados surgem 44 casos classificados com o código Y848, que se refere a procedimentos médicos que causaram reacções adversas tardias mas não especificadas. Noutros casos especificam-se a causa, embora pouco concretizando, como são as 32 reacções contabilizadas no decurso de procedimentos radiológicos (Y842) e as 32 reacções devidas a cateteres urinários (código Y848).

    Existem também registos de efeitos adversos que, de forma clara, nada tiveram a ver com a covid-19, porque se deveram sim a actos cirúrgicos decorrentes de outros problemas. São exemplo disso os 16 casos classificados com o código Y831 (implantes de dispositivos médicos) e os 13 casos com o código Y832 (bypass gástricos com anastomose). Problemas na área da gastroenterologia, aliás, mostraram-se relativamente frequentes.

    A falta de informação sobre o verdadeiro contributo destes procedimentos médicos para as eventuais mortes dos pacientes acaba, contudo, por ocultar eventuais negligências, tanto mais que o “carimbo” da covid-19 levou a que se prescindisse, na esmagadora maioria dos casos, à realização de autópsia. Uma morte com covid-19 foi, para a Direcção-Geral da Saúde, sempre uma insuspeita morte exclusivamente causada pelo SARS-CoV-2.

    Aliás, na base de dados surgem nove estranhos casos com o código Y66, que significa que houve falta de administração de cuidados médicos e cirúrgicos. Destes nove, oito acabaram por morrer, sendo que sete foram no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

    O Hospital de Coimbra é aquele que contabiliza maior número de mortes atribuídas à covid-19 de pessoas com registo de reacções adversas ou eventuais erros médicos. No total, nos primeiros 15 meses da pandemia, contam 24 mortes, mas pelo código da CDI conclui-se que foram problemas decorrentes de cirurgias cardíacas ou de gastroenterologia. Nos hospitais de Lisboa registaram-se 22 mortes deste género, das quais nove no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Todas classificadas como covid-19.

  • Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Tribunal diz que não vale tudo para criticar terapias alternativas – que até são praticadas em hospitais públicos – e condenou o médico João Júlio Cerqueira por difamar Pedro Choy em 18 publicações nas redes sociais durante quase dois anos. O autor do blogue Scimed defendia que Choy deveria “encaixar” as críticas, mas não está disposto agora a “encaixar” a condenação e vai recorrer da sentença. Se transitar em julgado, Cerqueira terá de pagar uma indemnização de 15.000 euros e mais 3.000 euros de multa.


    Por difamação agravada – e não por qualquer delito de opinião sobre medicinas alternativas –, o médico João Júlio Cerqueira foi esta manhã condenado em primeira instância a pagar 15.000 euros a Pedro Choy, um dos rostos mais conhecidos da medicina tradicional chinesa em Portugal.

    Em causa esteve em conjunto de 18 publicações e republicações deste médico da região do Porto no seu blog e na sua página do Facebook denominados Scimed – e que se auto-intitula “Ciência Baseada na Evidência” – e no seguimento de um escaldante programa Prós & Contras na RTP1 em 1 de Abril de 2019, em que esteve em representação da Ordem dos Médicos. Além de criticar as práticas seguidas por Pedro Choy, Cerqueira adornou-o com epítetos como “desonesto”, “burro”, “ignorante” “vigarista”, “Chop Choy” e “palhaço”, classificando-o ainda de “vendedor de carros em segunda mão” e “costureiro de pele”.

    Pedro Choy e João Júlio Cerqueira debateram ideias no Prós & Contras de 1 de Abril de 2019. A partir daí, o médico montou uma campanha de difamação cerrada contra as práticas do acupunctor português de mãe chinesa.

    A juíza do processo 7660/19.7T9LSB também aplicou a João Júlio Cerqueira uma multa de 300 dias à taxa diária de 10 euros, perfazendo 3.000 euros. A magistrada avisou que, se o processo transitar em julgado e não for feito o pagamento ou solicitado troca por trabalho comunitário, a multa “é passível de ser convertida em pena de prisão […] cumprida em estabelecimento prisional”.

    Apesar de defendido por Francisco Teixeira da Mota – um dos mais prestigiados advogados de direitos humanos e patrono de Rui Pinto, fundador do Football Leaks – e ter contado com testemunhas de relevo (como Carlos Fiolhais, David Marçal e Nuno Lobo Antunes), a juíza considerou que João Júlio Cerqueira não esteve sentado no banco dos réus por discordar das práticas da medicina chinesa. Foi sim pelas expressões reiteradamente usadas ao longo de dois anos.

    Nas sessões deste julgamento, iniciado em Setembro do ano passado, João Júlio Cerqueira e as suas testemunhas abonatórias sempre tentaram justificar as expressões, agora consideradas difamatórias pelo tribunal, como sendo um alerta para a suposta perigosidade das terapias alternativas na saúde dos pacientes.

    No seu blog e página de Facebook, João Júlio Cerqueira mimoseou Choy com várias expressões consideradas agora difamatórias pelo tribunal.

    Porém, a juíza clarificou, durante a sentença, que nunca esteve em julgamento comparar a eficácia entre a medicina convencional e as terapias alternativas, embora tenha relembrado que a acupuntura, mesmo podendo ser criticável, é uma competência acreditada na Ordem dos Médicos e usada em hospitais públicos.

    Saliente-se, aliás, que a mãe de João Júlio Cerqueira, a também médica Berta Nunes – actual secretária de Estado das Comunidades e ex-presidente da autarquia de Alfândega da Fé – é uma reputada especialista em Antropologia Médica, tendo lecionado esta disciplina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua tese de doutoramento, publicada em livro sob o título “O saber médico do povo”, abrange “a cultura e as práticas do cuidado do corpo e da saúde de uma população rural” transmontana, demonstrando a “importância do conhecimento e valorização dos saberes locais pelo saber oficial”, ou seja, pela medicina convencional. Berta Nunes já participou mesmo no conhecido Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.

    A juíza também não se mostrou sensível aos apelos das testemunhas de Cerqueira de ele usar certas expressões por ser “um homem do Norte”, defendendo que tal suposto estatuto nunca poderia legitimar ofensas. Aliás, a magistrada demonstrou que o médico nortenho tinha consciência de as suas palavras poderem resultar em processos judiciais, razão pela qual recorreu ao Patreon para obter financiamento, junto dos seus apoiantes, para sua defesa em casos de litígio. Saliente-se que a sua página no Facebook tem, neste momento, cerca de 79 mil seguidores.

    João Júlio Cerqueira reagiu já à condenação na sua página do Facebook.

    Pedro Choy manifestou ao PÁGINA UM alívio e satisfação pelo veredicto, embora não total, alegando que João Júlio Cerqueira teve também intenção de “achincalhar a medicina tradicional chinesa, ainda mais deturpando afirmações minhas”. Choy diz que, “tendo em conta aquilo que tem sido a interpretação dos tribunais para casos deste género, a sentença pode ser vista como uma condenação pesada”.

    Embora se queixe do “sofrimento, reclusão, vergonha e noites sem dormir” que todo este processo lhe causou, Pedro Choy tem esperanças de que o médico nortenho “reveja a sua forma de estar no mundo e aprenda a expressar as suas opiniões sem ofender as pessoas”.

    O estilo provocatório de João Júlio Cerqueira aparenta, contudo, manter-se incólume mesmo após esta sentença. Nas redes sociais, o médico anunciou esta manhã que “esta página [Scimed] pertence, a partir de hoje, a um criminoso (ainda passível de recurso)… Faz cuidado!”

    Em sede de julgamento, João Júlio Cerqueira defendeu que Pedro Choy deveria ter tido “poder de encaixe” perante as suas frases, mas aparentemente não quer “encaixar” a sentença. O seu advogado Teixeira da Mota já anunciou que vai recorrer da condenação para o Tribunal da Relação.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira