Categoria: Exame

  • Contratos das vacinas infantis salvam Pfizer do pagamento de indemnizações

    Contratos das vacinas infantis salvam Pfizer do pagamento de indemnizações

    O carácter voluntário da toma das vacinas contra a covid-19 e as cláusulas de exclusão de responsabilidades em anteriores contratos dificultarão sobremaneira eventuais pedidos de indemnização por lesões e outros danos pessoais às farmacêuticas e mesmo aos Estados. O secretismo do Infarmed na divulgação dos critérios para inclusão dos eventos adversos confirmados também não ajudarão quem se considerar lesado.


    A Direcção-Geral da Saúde recusa esclarecer se o contrato das vacinas da Pfizer em crianças contém a mesma cláusula de exclusão de responsabilidade dos dois primeiros contratos assinados em 9 de Dezembro de 2020 e em 18 de Janeiro do ano passado.

    O contrato para a compra de 700 mil doses para crianças à farmacêutica norte-americana, também por ajuste directo, terá sido assinado em Novembro passado, antes mesmo da elaboração do parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), com prazos de entrega em Dezembro de 2021 e no presente mês de Janeiro, conforme anunciou o Diário de Notícias.

    Por lei, este contrato já deveria constar do Portal BASE, mas inexplicavelmente a DGS não explica a razão pela qual não o enviou para registo ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade gestora daquela base de dados da contratação pública.

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    Em todo o caso, o PÁGINA UM sabe que não houve qualquer alteração do enquadramento jurídico dos contratos das vacinas contra a covid-19, no seguimento do acordo global de compra (Advanced Purchase Agreement) assinado entre a Comissão Europeia e as diversas farmacêuticas, entre as quais a Pfizer. A partir desse acordo, cada país ficou apenas incumbido de indicar as doses e os prazos de entregas, mas sem a inclusão de quaisquer cláusulas de responsabilidade civil para as empresas produtoras das vacinas. Ou seja, em caso de problemas de saúde para quem tomar as vacinas, as farmacêuticas descartam-se do pagamento de indemnizações.

    A mesma desresponsabilização sucederá com os diversos Estados da União Europeia, como Portugal, que até agora não impuseram a vacinação obrigatória. Independentemente das pressões sociais e políticas sendo a vacinação voluntária e havendo um consentimento informado oral, assume-se que as pessoas vacinadas e os pais dos menores assumiram os riscos, pelo que quaisquer danos físicos ou não-patrimoniais nunca serão, em princípio, garantidos pelo Estado.

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    Nos dois contratos conhecidos entre a DGS e a Pfizer/BioNTech – o primeiro para a compra de 4.540.805 doses ao preço de 12 euros, em Dezembro de 2020; e o segundo para a compra de 2.220.596 doses ao preço de 15,5 euros, em Janeiro de 2021 – ficou assumido que “as circunstâncias de emergência” implicavam que o Estado português “reconhecia que a vacina, e os materiais relacionados com as vacinas, e seus compostos e materiais constituintes, estão a ser desenvolvidos rapidamente”. E, por esse motivo, “o Estado Membro Participante [o Estado português, neste caso] reconhece ainda que os efeitos a longo-prazo e a eficácia da vacina não são actualmente conhecidos.”

    Esta autêntica cláusula de exclusão de responsabilidades também se reforçava na frase seguinte do contrato, onde se refere que “o Estado Membro Participante reconhece que a vacina não deve ser serializada.”

    Mesmo sabendo-se que as vacinas têm chegado a Portugal em lotes e com número de série, a excepção expressa no contrato das vacinas contra a covid-19 – ou seja, a serialização não é assumida formalmente – pode ser outro entrave adicional a eventuais pedidos de indemnização.

    Trecho do contrato (APA) entre a Comissão Europeia e a Pfizer que desresponsabiliza a farmacêutica de pagar indemnizações civis por danos nos vacinados

    Os contratos das outras farmacêuticas, como a Moderna, não têm cláusulas de exclusão de forma tão explícita, mas remetem para o acordo (APA) feito pela Comissão Europeia.

    Em Julho do ano passado, eurodeputados da Esquerda Unitária Europeia (The Left) – que congrega o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista – salientavam num relatório que os contratos com os fabricantes das vacinas continham cláusulas que “protegiam as companhias de qualquer risco financeiro de responsabilidade civil”.

    Mesmo a eventualidade de responsabilização do Estado português necessitará da associação inequívoca entre a toma das vacinas e os danos. Nesse aspecto, será sempre necessário que o Infarmed certifique, através da farmacovigilância, a existência de uma relação directa entre a vacina e o dano, mas esta entidade tem recusado sequer informar sobre os critérios para a inclusão dos eventos adversos na sua base de dados. O Estado português pode sempre também defender-se através do carácter voluntário, e que as pessoas vacinadas tomaram uma decisão individual livre.

  • Editores de uma das principais revistas médicas mundiais criticam farmacêuticas de obscurantismo e falta de transparência

    Editores de uma das principais revistas médicas mundiais criticam farmacêuticas de obscurantismo e falta de transparência

    Editorial de uma das prestigiadas revistas médicas do Mundo – a BMJ – apela para a necessidade imperiosa de serem disponibilizados dados brutos de fármacos contra a covid-19 para escrutínio independente, recordando o escândalo do Tamiflu há 13 anos. Farmacêuticas e entidades reguladoras tentam adiar esse acto.


    Três editores da prestigiada revista científica BMJ – Peter Doshi, Fiona Godlee e Kamran Abbasi – apelaram ontem para a urgência de serem disponibilizados os dados brutos relacionados com as vacinas contra a covid-19, receando que se esteja a repetir a situação de fraude ocorrida com o Tamiflu – um antiviral produzido pela Roche contra a pandemia da gripe de 2009, que mais tarde se apurou afinal ter resultados decepcionantes.

    Num editorial extremamente crítico, os três cientistas censuram a Pfizer por não facultar os dados detalhados dos ensaios clínicos antes de Maio de 2025, acusando também de estar em conluio com outras farmacêuticas, de modo a dificultarem o acesso à informação a investigadores independentes.

    A Moderna, uma das outras produtoras de vacinas contra a covid-19, também já informou que apenas libertará dados dos ensaios clínicos em bruto a partir de finais de Outubro deste ano. No entanto, esses dados estarão apenas disponíveis “mediante solicitação e sujeitos a revisão assim que o estudo estiver concluído”. No caso dos ensaios clínicos da AstraZeneca, a farmacêutica anglo-sueca prometeu ceder informação detalhada a partir do início de 2022, mas os editores da BMJ receiam que “na verdade, a obtenção de dados pode ser lenta”. Aliás, acrescentam que o site da empresa explica que “os prazos variam de acordo com a solicitação e podem levar até um ano após o envio completo da solicitação”.

    Tamiflu foi um antiviral para combater a pandemia de 2009, que afinal se mostrou ineficaz. Portugal pagou 23 milhões de euros à Roche.

    Também os ensaios de outros fármacos associados à luta contra a covid-19 sofrem de similares males. Os relatórios publicados do estudo de fase III da farmacêutica Regeneron sobre os anticorpos monoclonais REGEN-COV afirmam taxativamente que não serão disponibilizados quaisquer dados em bruto.

    Quanto ao polémico remdesivir, comercializado pela Gilead, os editores da BMJ referem que as autoridades sanitárias norte-americanas, que co-financiaram o estudo sobre os seus efeitos contra o SARS-CoV-2, criaram um novo portal para compartilhar dados, mas com conteúdos muito limitados.

    Em suma, como avisam estes investigadores, na verdade só se encontram disponíveis as publicações científicas de autores associados às farmacêuticas, defendendo ser essa situação extremamente preocupante para “os participantes dos estudos, os investigadores, os médicos, os editores de periódicos científicos, os formuladores de políticas e o público”.

    E avisam também que esta prática de não divulgação dos dados em bruto em simultâneo com o envio e aprovação dos artigos científicos, contrariando o que é norma em Ciência, se deveu a pressões derivadas da emergência pandémica. “Os periódicos que publicaram esses estudos primários podem argumentar que enfrentaram um dilema embaraçoso, entre disponibilizar rapidamente os resultados resumidos e defender os melhores valores éticos que apoiam o acesso oportuno aos dados subjacentes”, referem os editores da BMJ, para em seguida sentenciarem: “Em nossa opinião, não há dilema; os dados anonimizados de participantes individuais de ensaios clínicos devem ser disponibilizados para escrutínio independente.”

    Estes responsáveis científicos da BMJ criticam também a postura da Food and Drug Administration – a agência que regula os medicamentos nos Estados Unidos – que, após uma decisão judicial ao abrigo da liberdade de informação, apenas tem estado a libertar “ 500 páginas por mês” sobre os ensaios da Pfizer, ritmo que a manter-se levará décadas para ser concluído.

    Saliente-se, contudo, que há cerca de uma semana um juiz federal no Texas determinou que a FDA deve, até o final deste mês, tornar públicas 12.000 páginas dos dados que usou para tomar decisões sobre aprovações da vacina da Pfizer/BioNTech, e depois libertar 55.000 páginas por mês até que todas as 450.000 páginas solicitadas sejam públicas.

    Peter Doshi, Fiona Godlee e Kamran Abbasi recordam ainda o caso do Tamiflu, um fármaco produzido pela Roche para combater a gripe H1N1, que facturou cerca de 3 mil milhões de dólares só em 2009. Afinal, relembram os editores da BMJ, o medicamento “não demonstrou reduzir o risco de complicações, internamentos hospitalares ou morte”, acrescentando que “a maioria dos ensaios que sustentaram a aprovação regulatória e o armazenamento governamental de oseltamivir (Tamiflu) foram patrocinados pelo fabricante; a maioria era inédita, os que foram publicados foram escritos por autores pagos pelo fabricante, as pessoas listadas como autores principais não tinham acesso aos dados brutos, e os académicos que solicitaram acesso aos dados para análise independente não receberam nada”.

    Saliente-se que, no caso do Tamiflu, o Estado português comprou 2,5 milhões de doses deste ineficaz antiviral, pagando 23 milhões de euros. Acabou por gastar ainda mais 6 mil euros para incinerar tudo em finais de 2018.

    Editorial integral da BMJ


    Nota: Adicionada informação sobre decisão do juiz federal às 18:40 de 21/01/2022.

  • Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    Vacina reduziu mortes, mas Reino Unido enfrenta “pandemia de vacinados”

    A mais recente vaga de casos positivos de covid-19, muito superior às anteriores, está a causar constrangimentos económicos e de logística nunca vistos. Se a vacina mostra fortes sinais de reduzir significativamente o risco de hospitalização e de morte, sobretudo nos mais idosos, o SARS-CoV-2 está, paradoxalmente, a “entrar” mais facilmente na comunidade vacinada, mesmo usando valores padronizados. Existem várias explicações para este aparente paradoxo, segundo um relatório da Agência de Saúde Sanitária do Reino Unido. Uma delas é tema tabu em Portugal, e a Direcção-Geral da Saúde recusa dar informações ao PÁGINA UM: a imunidade natural dos recuperados – que integram muitos dos não-vacinados – poderá ser afinal muito superior à imunidade vacinal.


    É um dos paradoxos do momento: com 71% da população vacinada e mais de 54% com dose de reforço, o Reino Unido está a enfrentar uma vaga avassaladora de casos positivos de covid-19 – e essa variável está a contribuir para uma significativa queda da mortalidade –, mas a “culpa” parece ser afinal dos vacinados que apresentam incidências muito superiores aos dos não-vacinados. A situação deverá ser idêntica em outros países. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde nunca divulga dados sobre estas matérias, embora constem do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).

    Apesar desta situação não beliscar os benefícios da vacinação na população mais idosa – cuja taxa de mortalidade nos maiores de 80 anos vacinados é de apenas 20% face à dos não-vacinados do mesmo grupo etário –, em causa estará um dos benefícios da vacina prometidos pelas farmacêuticas: uma maior protecção contra a infecção, mesmo em recuperados.

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    Recorde-se que a recente vaga de infecções, sobretudo no Hemisfério Norte, tem colocado uma pressão suplementar na gestão logística e económica da pandemia, com cada vez mais pessoas a serem obrigadas a confinamento por causa de testes positivos, mesmo os assintomáticos. Por exemplo, o Reino Unido conta, neste momento, com cerca de 3,6 milhões de casos activos, representando 5,5% do total da população. Este valor é cerca do dobro do pico registado em Janeiro do ano passado. Em Portugal, há um ano, cerca de 1,4% da população estava como “caso activo”; agora são 3,5% (356.477 pessoas).

    A última actualização do relatório periódico da Agência de Saúde Sanitária (ASS) do Reino Unido – um dos mais completos e transparentes sistemas mundiais de gestão da pandemia – revela que o grupo populacional que mais tem contribuído para esta vaga explosiva de casos é, afinal, o dos vacinados.

    A entidade estatal do Reino Unido apresenta, no seu relatório de vigilância epidemiológica, vários indicadores relacionados com o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19, tanto estratificados por idades como também por estado vacinal. E mostra agora que, no caso da incidência, os vacinados estão em larga maioria, tanto em número – compreensível porque são mais –, mas também em termos relativos ou padronizados – isto é, em casos no grupo em relação à totalidade de pessoas do grupo. A situação evidencia-se especialmente na população adulta activa.

    De facto, nos menores de 18 anos, a incidência dos não-vacinados ainda é superior à dos vacinados (3.376 por 100.000 pessoas vs. 2.357), mas inverte-se, de forma evidente, nos grupos etários mais velhos. Nos jovens adultos (18-29 anos), a incidência nos vacinados chega a ser praticamente o dobro face à nos não-vacinados. Nos grupos etários seguintes (30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos e 60-69 anos), as incidências nos vacinados são ainda superiores: mais 133%, mais 145%, mais 127% e mais 110%, respectivamente.

    Incidência cumulativa bruta no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Este crescimento em grupos etários até aos 70 anos – que representaram mais de 75% da população do Reino Unido – justifica, só por si, o aumento galopante dos casos activos, embora sem reflexo em termos de mortalidade. Isto porque a vulnerabilidade à doença na população adulta em idade activa sempre foi bastante baixa mesmo antes da criação das vacinas.

    No caso dos maiores de 70 anos, a incidência nos vacinados continua a ser superior à dos não-vacinados, mas em dimensão menor: mais 82% no grupo dos 70 aos 79 anos, e mais 31% nos maiores de 80 anos.

    A ASS do Reino Unido salienta que, na base desta surpreendente discrepância, estará o facto de “as pessoas totalmente vacinadas estarem mais preocupadas com a saúde e, portanto, estando mais propensas a realizar o teste para a covid-19, acabarem por ser mais identificadas” quando estão infectadas. Esta justificação não deixa de ser curiosa, porque significaria então que a comunidade vacinada aparenta não confiar demasiado na eficácia das vacinas na sua protecção.

    A mesma entidade defende que a diferença da incidência se possa dever, para além de condicionalismos de idade e ocupação, também à sua maior exposição, ou seja, “as pessoas vacinadas e não-vacinadas podem comportar-se de maneira diferente, especialmente no que respeita às interacções sociais”.

    Por fim, last but not the least, o organismo britânico considera que, entre os não-vacinados, estarão pessoas recuperadas que não se vacinaram, mas que apresentam “imunidade natural ao vírus”. Ou seja, esta entidade acaba por admitir implicitamente que a imunidade natural, pelo menos no que diz respeito à (re)infecção, será superior à vacinal.

    Taxa bruta de mortalidade por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Apesar desta vaga de casos, a mortalidade total atribuída à covid-19 tem estado, quase na generalidade da Europa, em nível relativamente baixo para um Inverno anterior à pandemia. No Reino Unido, o registo de óbitos diário (em média móvel de 7 dias) situava-se nos 273 em 17 de Janeiro, correspondente a cerca de 40 óbitos em Portugal. Este valor é um quarto (24%) do valor homólogo em 2021.

    Segundo o último relatório da ASS do Reino Unido, actualizado ontem, a mortalidade mostra-se bastante mais baixa nos vacinados em relação aos não-vacinados, embora de forma bastante diferenciada em função da idade. No período entre 13 de Dezembro de 2021 e 3 de Janeiro deste ano, de acordo com este relatório, a taxa de mortalidade por covid-19 (ao fim de 60 dias) era de 54,3 óbitos por 100.000 pessoas vacinadas, enquanto a dos não-vacinados do mesmo grupo etário se situava em 262,2, ou seja, quase cinco vezes mais.

    A proporção nos grupos etários inferiores é sensivelmente idêntica, mas pouco relevante se se usar, em vez da unidade “por 100.000 habitantes”, a mais usual percentagem (por 100 habitantes). Nesse caso, o risco de morte de pessoas na faixa etária dos 30 aos 39 anos foi, no período em análise, de apenas 0,0005% se vacinada, e de 0,0017% para os não-vacinados do mesmo grupo etário.

    No caso dos jovens adultos dos 18 aos 29 anos, as percentagens são, respectivamente, de 0.0001% e 0,0006%. Ou seja, o risco sobe seis vezes, mas mantém-se muitíssimo baixo. No caso dos menores de idade, nenhum jovem vacinado morreu (0,0%) no período em análise, enquanto a taxa de mortalidade para os não-vacinados foi de 0,0001%.

    Taxa bruta de hospitalização por covid-19 no período entre a semana 50 de 2021 e a semana 1 de 2022 (por 100.000 habitantes). Fonte: ASS (Reino Unido)

    Em relação às hospitalizações, o relatório da ASS mostra também uma menor necessidade nos vacinados, mas, mais uma vez, essa diferença só é relevante nos mais idosos – e também mais vulneráveis à doença. Para as pessoas com mais de 80 anos, o rácio de internamentos dos vacinados foi de 88,7 por 100.000, enquanto o dos não-vacinados se situou em quase 263.

    Esta diferença também se apresenta significativa nos grupos etários entre os 50 e 79 anos, com o risco de internamento a ser cerca de cinco vezes superior nos não-vacinados face aos vacinados.

    Essa proporção mantém-se até nos menores de idade, mas com um aspecto relevante: nestas idades o risco de internamento é incomensuravelmente inferior ao dos mais idosos. O risco de hospitalização por covid-19 num vacinado com mais de 80 anos é oito vezes superior ao de um menor não-vacinado, o que confirma, mais uma vez, que a covid-19 não constitui um problema com relevância em idades pediátricas.

  • Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Direcção-Geral da Saúde culpou coronavírus até por ataques cardíacos fulminantes em doentes assintomáticos

    Milhares de entradas nas urgências com cardiopatias isquémicas deram muitas centenas de óbitos “carimbados” com covid-19. O PÁGINA UM, continuando a dissecar a base de dados dos internados nos primeiros 15 meses da pandemia, detectou que cerca de 10% dos hospitalizados e 10% dos mortos sofreram cardiopatias isquémicas. Muitos tiveram ataques cardíacos, alguns fulminantes, mas todos levaram com o selo “covid”. Bastou um teste positivo, mesmo se o doente agonizava sem qualquer sintoma de infecção por SARS-CoV-2.


    Vários milhares de pessoas com sintomas graves ou moderados de cardiopatias isquémicas do coração – entre as quais enfartes do miocárdio, anginas de peito e aterosclerose neste órgão – acabaram classificados como doentes-covid pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas porque tiveram, na admissão hospitalar, um teste positivo. Em caso de desfecho fatal, a DGS anunciava-as como vítimas da pandemia.

    Na análise da base de dados do Ministério da Saúde abrangendo os internamentos dos primeiros 15 meses da pandemia, a que o PÁGINA UM teve acesso, confirma-se que independentemente do grau de gravidade de doenças cardíacas, um teste positivo foi o suficiente para ficar nas “malhas” das estatísticas da covid-19. Em centenas de casos, o SARS-CoV-2 nem sequer teve tempo de se manifestar, porque algumas dezenas faleceram no próprio dia ou no dia seguinte à admissão nos serviços de urgência hospitalar. E centenas no prazo de uma semana. Em condições naturais, antes da pandemia, todos estes óbitos teriam considerado estas cardiopatias como a causa.

    doctors doing surgery inside emergency room

    No período de Março de 2020 a Maio de 2021, envolvendo mais de 50 mil doentes-covid, o PÁGINA UM contabilizou, em mais de 50 mil internados, um total de 5.193 pessoas com referências, nos respectivos boletins clínicos, a uma ou mais cardiopatias isquémicas. Este número representa quase 10% do total de doentes-covid internados neste período. Contabilizando os desfechos fatais de pessoas oficialmente classificadas de doentes-covid, houve 1.757 que morreram após ataques cardíacos ou outras cardiopatias isquémicas, ou seja, 10% do total até Maio do ano passado.

    Não se consegue, neste universo, e com os dados disponíveis, quantificar com rigor absoluto o contributo destas doenças isquémicas para os desfechos fatais, nem sequer a percentagem de casos mortais em que a covid-19 pode ter desencadeado o evento cardíaco.

    Infelizmente, a base de dados é, de forma inexplicável, omissa sobre a data em concreto da ocorrência do evento cardíaco, informando apenas a ordem dos diagnósticos (que, em cada indivíduo, começa no 0). Por norma, primeiro, registam-se todas as doenças e problemas relevantes no momento da admissão hospitalar – e que a justificam – , e em seguida as comorbilidades e os aspectos relevantes da evolução clínica.

    Contudo, como não existe na base de dados dos doentes-covid uma separação entre as doenças e afecções antes da admissão e durante o internamento, apenas por dedução – mesmo com consulta individual dos mais de 50 mil doentes registados – se consegue determinar, sem demasiado erro, o número de doentes em que o evento cardíaco foi a causa directa do internamento.

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    Assim, quando pelo menos um registo destas isquemias – com os códigos I20 a I25 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI) – surgia nas primeiras posições da ordem do diagnóstico (entre 0 e 6), o PÁGINA UM considerou que estas constituíram a causa directa do internamento.

    Saliente-se que a referência à covid-19 (com o código U071) aparece, em muitos destes casos, com um número de ordem do diagnóstico superior ao das cardiopatias, o que significa, nestas circunstâncias, sem qualquer dúvida, que a admissão foi muito urgente, e só depois houve confirmação de teste positivo ao SARS-CoV-2.

    Assim, considerando este método, o PÁGINA UM identificou um total de 2.186 doentes-covid hospitalizados neste período que terão tido uma ou mais cardiopatias isquémicas como evidente causa de internamento, e não tendo ainda sintomas de infecção pelo SARS-CoV-2. Destes, 672 morreram.

    Também pelo tempo de estadia hospitalar se confirma que mesmo cardiopatias agudas fulminantes acabaram anunciadas como mortes-covid. Os casos mais chocantes observam-se com os enfartes do miocárdio – vulgarmente conhecidos por ataques cardíacos e com o código I21 da CDI. Entre Março de 2020 e Maio de 2021, e segundo o critério definido pelo PÁGINA UM, contabilizam-se 949 pessoas com este gravíssimo problema cardíaco, sendo que 206 tiveram diagnóstico de ordem 0 (100% de certeza de ter sido causa de internamento), e 657 com registo de ordem 6 ou inferior. Portanto, sete em cada 10 destas pessoas terão sofrido ataques cardíacos antes de qualquer teste positivo à covid-19.

    De entre estes casos, 40 pessoas morreram no próprio dia do internamento – ou seja, o ataque cardíaco foi mesmo fulminante –, 123 em três ou menos dias, e 253 antes de completado o sétimo dia de internamento. No total, a taxa de mortalidade destes doentes foi de 43%, ou seja, cerca de 20 pontos percentuais acima do rácio médio dos doentes-covid sem esta comorbilidade.

    Saliente-se, contudo, que a média das idades foi geralmente, nestes casos, bastante elevada (76 anos). Nos muito idosos (mais de 80 anos), a taxa de sobrevivência foi de apenas 44%. Ao invés, a taxa de mortalidade dos menores de 60 anos foi de 13%. Três dos mortos de ataque cardíaco com covid-19 no certificado de óbito tinham menos de 50 anos.

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    Se se considerar todas as 2.186 cardiopatias isquémicas com ordem de diagnóstico de 6 ou inferior – ou seja, os eventos que terão sido a causa determinante de internamento –, além dos 949 ataques cardíacos, contabilizam-se ainda 78 anginas de peito (código I20), 381 aterosclerose do coração (código I251). Nas restantes de doenças cardíacas crónicas, destacam-se 335 casos de sequelas provenientes de ataques cardíacos antigos (código I252) e 221 cardiomiopatias isquémicas (código I255).

    As taxas de mortalidade hospitalar variaram muito neste tipo de cardiopatias. Nas anginas de peito foi de 24%, próxima daquela contabilizada para a generalidade dos doentes-covid, nas ateroscleroses do coração rondou os 26% e atingiu os 34% nas cardiomiopatias isquémicas.

    Contudo, para a DGS foi tudo “varrido” a covid-19.

  • Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    Covid-19 estará a esconder mortes por erros, negligência e acidentes em hospitais

    A Direcção-Geral da Saúde determinou que se alguém falecesse com um teste positivo ao SARS-CoV-2 levava automaticamente com o carimbo de “morte covid”. Os registos dos internados na primeira fase da pandemia, que o PÁGINA UM tem dissecado, mostram 250 casos suspeitos que podem ter sido apenas anormais reacções a procedimentos médicos, ou pura negligência médica. Um total de 88 pessoas morreram nestas circunstâncias. Como raramente houve autópsias, a morte morreu solteira.


    Um erro na operação de intubação numa unidade de cuidados intensivos do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte contribuiu para a morte de um doente de 61 anos em Abril de 2020. Este evento trágico foi único, mas o PÁGINA UM detectou muitos mais casos suspeitos de erros e negligência médica que estarão a ser escondidos sob o carimbo da covid-19, uma vez que, por regra, não são feitas autópsias nos óbitos confirmados por esta doença.

    Estas suspeitas advêm da consulta à base de dados do Ministério da Saúde sobre os internamentos de doentes-covid, a que o PÁGINA UM teve acesso, e detecta-se através da codificação feita segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI).

    Aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esta codificação não apresenta apenas as doenças e comorbilidades de cada doente no seu processo clínico; também identifica, por exemplo, complicações de actos médicos e cirúrgicos, acidentes, erros, negligência e reacções inesperadas.

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    Este tipo de situações recebe, por norma, os códigos Y62 a Y84 da CDI, consoante a sua tipologia. Não estão aqui incluídos, embora haja largas dezenas de casos, os acidentes em hospitais como quedas da cama ou em casas de banho em doentes-covid, alguns fatais.

    Numa análise detalhada à base de dados dos internamentos nos primeiros 15 meses da pandemia, entre Março de 2020 e Maio de 2021, contabilizam-se 250 doentes-covid com registos de reacções adversas após procedimentos médicos. Em alguns casos estar-se-á perante eventuais erros ou negligência médica. De entre os pacientes afectados, 88 morreram, ou seja, 35% – um valor cerca de 12 pontos percentuais acima da taxa de mortalidade dos internados sem este tipo de registos.

    Nem todos os desfechos fatais terão sido devidos apenas a reacções adversas dos doentes ou a erros médicos – até pela grande debilidade e elevada idade de muitas das vítimas –, mas todos acabaram classificados como mortes por covid-19. Muito provavelmente as famílias nem sequer souberam aquilo que se passou dentro das portas do hospital.

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    O caso do doente do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que agrega o Hospital de Santa Maria – é um exemplo paradigmático.

    À entrada nos cuidados intensivos em 22 de Abril de 2020, a sua situação já era grave: diabético tipo II, vinha com insuficiência respiratória e síndrome de desconforto respiratório decorrente de covid-19 diagnosticada, mas os médicos terão tido dificuldade em o intubar (surgindo essa referência com o código T884 da CDI) e o tubo orotraqueal acabou por ser mal colocado (código Y653). O homem sofreu um choque não especificado (R579) e morreu no dia seguinte ao internamento.

    A esmagadora maioria dos registos mostra-se, porém, com referências extremamente vagas sobre a origem exacta do erro, acidente ou reacção anormal, não sendo assim possível concluir se se está perante uma situação incontornável ou imprevista, ou se se tratou de erro médico.

    Por exemplo, na base de dados surgem 44 casos classificados com o código Y848, que se refere a procedimentos médicos que causaram reacções adversas tardias mas não especificadas. Noutros casos especificam-se a causa, embora pouco concretizando, como são as 32 reacções contabilizadas no decurso de procedimentos radiológicos (Y842) e as 32 reacções devidas a cateteres urinários (código Y848).

    Existem também registos de efeitos adversos que, de forma clara, nada tiveram a ver com a covid-19, porque se deveram sim a actos cirúrgicos decorrentes de outros problemas. São exemplo disso os 16 casos classificados com o código Y831 (implantes de dispositivos médicos) e os 13 casos com o código Y832 (bypass gástricos com anastomose). Problemas na área da gastroenterologia, aliás, mostraram-se relativamente frequentes.

    A falta de informação sobre o verdadeiro contributo destes procedimentos médicos para as eventuais mortes dos pacientes acaba, contudo, por ocultar eventuais negligências, tanto mais que o “carimbo” da covid-19 levou a que se prescindisse, na esmagadora maioria dos casos, à realização de autópsia. Uma morte com covid-19 foi, para a Direcção-Geral da Saúde, sempre uma insuspeita morte exclusivamente causada pelo SARS-CoV-2.

    Aliás, na base de dados surgem nove estranhos casos com o código Y66, que significa que houve falta de administração de cuidados médicos e cirúrgicos. Destes nove, oito acabaram por morrer, sendo que sete foram no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

    O Hospital de Coimbra é aquele que contabiliza maior número de mortes atribuídas à covid-19 de pessoas com registo de reacções adversas ou eventuais erros médicos. No total, nos primeiros 15 meses da pandemia, contam 24 mortes, mas pelo código da CDI conclui-se que foram problemas decorrentes de cirurgias cardíacas ou de gastroenterologia. Nos hospitais de Lisboa registaram-se 22 mortes deste género, das quais nove no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Todas classificadas como covid-19.

  • Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Opinião sim, insultos não: filho de secretária de Estado das Comunidades condenado a pagar 15 mil euros a Pedro Choy

    Tribunal diz que não vale tudo para criticar terapias alternativas – que até são praticadas em hospitais públicos – e condenou o médico João Júlio Cerqueira por difamar Pedro Choy em 18 publicações nas redes sociais durante quase dois anos. O autor do blogue Scimed defendia que Choy deveria “encaixar” as críticas, mas não está disposto agora a “encaixar” a condenação e vai recorrer da sentença. Se transitar em julgado, Cerqueira terá de pagar uma indemnização de 15.000 euros e mais 3.000 euros de multa.


    Por difamação agravada – e não por qualquer delito de opinião sobre medicinas alternativas –, o médico João Júlio Cerqueira foi esta manhã condenado em primeira instância a pagar 15.000 euros a Pedro Choy, um dos rostos mais conhecidos da medicina tradicional chinesa em Portugal.

    Em causa esteve em conjunto de 18 publicações e republicações deste médico da região do Porto no seu blog e na sua página do Facebook denominados Scimed – e que se auto-intitula “Ciência Baseada na Evidência” – e no seguimento de um escaldante programa Prós & Contras na RTP1 em 1 de Abril de 2019, em que esteve em representação da Ordem dos Médicos. Além de criticar as práticas seguidas por Pedro Choy, Cerqueira adornou-o com epítetos como “desonesto”, “burro”, “ignorante” “vigarista”, “Chop Choy” e “palhaço”, classificando-o ainda de “vendedor de carros em segunda mão” e “costureiro de pele”.

    Pedro Choy e João Júlio Cerqueira debateram ideias no Prós & Contras de 1 de Abril de 2019. A partir daí, o médico montou uma campanha de difamação cerrada contra as práticas do acupunctor português de mãe chinesa.

    A juíza do processo 7660/19.7T9LSB também aplicou a João Júlio Cerqueira uma multa de 300 dias à taxa diária de 10 euros, perfazendo 3.000 euros. A magistrada avisou que, se o processo transitar em julgado e não for feito o pagamento ou solicitado troca por trabalho comunitário, a multa “é passível de ser convertida em pena de prisão […] cumprida em estabelecimento prisional”.

    Apesar de defendido por Francisco Teixeira da Mota – um dos mais prestigiados advogados de direitos humanos e patrono de Rui Pinto, fundador do Football Leaks – e ter contado com testemunhas de relevo (como Carlos Fiolhais, David Marçal e Nuno Lobo Antunes), a juíza considerou que João Júlio Cerqueira não esteve sentado no banco dos réus por discordar das práticas da medicina chinesa. Foi sim pelas expressões reiteradamente usadas ao longo de dois anos.

    Nas sessões deste julgamento, iniciado em Setembro do ano passado, João Júlio Cerqueira e as suas testemunhas abonatórias sempre tentaram justificar as expressões, agora consideradas difamatórias pelo tribunal, como sendo um alerta para a suposta perigosidade das terapias alternativas na saúde dos pacientes.

    No seu blog e página de Facebook, João Júlio Cerqueira mimoseou Choy com várias expressões consideradas agora difamatórias pelo tribunal.

    Porém, a juíza clarificou, durante a sentença, que nunca esteve em julgamento comparar a eficácia entre a medicina convencional e as terapias alternativas, embora tenha relembrado que a acupuntura, mesmo podendo ser criticável, é uma competência acreditada na Ordem dos Médicos e usada em hospitais públicos.

    Saliente-se, aliás, que a mãe de João Júlio Cerqueira, a também médica Berta Nunes – actual secretária de Estado das Comunidades e ex-presidente da autarquia de Alfândega da Fé – é uma reputada especialista em Antropologia Médica, tendo lecionado esta disciplina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua tese de doutoramento, publicada em livro sob o título “O saber médico do povo”, abrange “a cultura e as práticas do cuidado do corpo e da saúde de uma população rural” transmontana, demonstrando a “importância do conhecimento e valorização dos saberes locais pelo saber oficial”, ou seja, pela medicina convencional. Berta Nunes já participou mesmo no conhecido Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.

    A juíza também não se mostrou sensível aos apelos das testemunhas de Cerqueira de ele usar certas expressões por ser “um homem do Norte”, defendendo que tal suposto estatuto nunca poderia legitimar ofensas. Aliás, a magistrada demonstrou que o médico nortenho tinha consciência de as suas palavras poderem resultar em processos judiciais, razão pela qual recorreu ao Patreon para obter financiamento, junto dos seus apoiantes, para sua defesa em casos de litígio. Saliente-se que a sua página no Facebook tem, neste momento, cerca de 79 mil seguidores.

    João Júlio Cerqueira reagiu já à condenação na sua página do Facebook.

    Pedro Choy manifestou ao PÁGINA UM alívio e satisfação pelo veredicto, embora não total, alegando que João Júlio Cerqueira teve também intenção de “achincalhar a medicina tradicional chinesa, ainda mais deturpando afirmações minhas”. Choy diz que, “tendo em conta aquilo que tem sido a interpretação dos tribunais para casos deste género, a sentença pode ser vista como uma condenação pesada”.

    Embora se queixe do “sofrimento, reclusão, vergonha e noites sem dormir” que todo este processo lhe causou, Pedro Choy tem esperanças de que o médico nortenho “reveja a sua forma de estar no mundo e aprenda a expressar as suas opiniões sem ofender as pessoas”.

    O estilo provocatório de João Júlio Cerqueira aparenta, contudo, manter-se incólume mesmo após esta sentença. Nas redes sociais, o médico anunciou esta manhã que “esta página [Scimed] pertence, a partir de hoje, a um criminoso (ainda passível de recurso)… Faz cuidado!”

    Em sede de julgamento, João Júlio Cerqueira defendeu que Pedro Choy deveria ter tido “poder de encaixe” perante as suas frases, mas aparentemente não quer “encaixar” a sentença. O seu advogado Teixeira da Mota já anunciou que vai recorrer da condenação para o Tribunal da Relação.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira

  • Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer

    Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer

    No segundo ano da pandemia, as farmacêuticas “insuflaram” quase 1,3 milhões de euros para os “pulmões” da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. A norte-americana Pfizer deu uma “ajuda” de cerca de 370 mil euros, quase tudo para uma campanha generalizada de promoção de uma vacina – a pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde só recomenda para maiores de 65 anos e grupos de risco.


    A Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu 320.000 euros da Pfizer, na segunda metade do ano passado, destinada a desenvolver uma campanha de promoção da vacinação contra a pneumonia pneumocócica em pleno processo de vacinação contra a covid-19 entre a população jovem. Este apoio financeiro é o maior jamais concedido a uma sociedade médica por parte da indústria farmacêutica para um só “evento”, de acordo com os dados da Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, uma base de dados que compila este tipo de informação desde 2013.

    A mensagem da campanha – “Sou maior e quero ser vacinado” – remete exclusivamente para a vacina contra a pneumonia pneumocócica, cuja vacina é comercializada em Portugal sobretudo pela Pfizer (sob a marca Prevenar) e, em menor quantidade, pela Merck (sob a marca Pneumovax). Porém, a sua leitura remetia de imediato para a vacinação contra a covid-19. A campanha decorreu até à segunda quinzena de Dezembro, recorrendo aos órgãos de comunicação social, a outdoors e ao online. Os canais televisivos e as rádios acabaram por beneficiar bastante com os spots publicitários.

    Campanha decorreu entre Setembro e Dezembro do ano passado

    Saliente-se que a Pfizer já assegurou em Portugal a venda de vacinas contra a covid-19 no valor de 88.909.898 euros, de acordo com o Portal Base, mas em virtude da redução da actividade gripal – que “abre portas” para infecções bacterianas, como a causada pelo Streptococcus pneumoniae –, as vendas da sua vacina pneumocócica têm-se reduzido, embora nunca tenham ultrapassado muito os cinco milhões de euros por ano.

    Ou seja, o financiamento da Pfizer à SPP para o desenvolvimento da campanha de promoção da vacinação pneumocócica – que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) apenas recomenda a maiores de 65 anos e a grupos de risco maiores de 18 anos –, surge algo desfocada face aos montantes envolvidos e à população-alvo (toda a população) que supostamente pretende alcançar.

    A pneumonia pneumocócica foi a causa de morte de 4.700 pessoas em 2019, mas 96% dos óbitos ocorreu em maiores de 65 anos. Na população com menos de 35 anos – que representa 34,9% da população portuguesa – registaram-se 12 mortes (0,26% do total), seis das quais com menos de 15 anos.

    Um outro aspecto incomum desta campanha da SPP – presidida por António Morais, pneumologista do Hospital de São João (Porto), e que tem Filipe Froes como coordenador do Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória – é o reforço da parceria comercial com a Pfizer.

    Em Portugal, esta farmacêutica atribuiu verbas para marketing às sociedades médicas através de duas subsidiárias: a Pfizer Biofarmacêutica Sociedade Unipessoal e a Laboratórios Pfizer. Entre 2017 e 2019, ambas deram à SPP apenas uma média anual de 10.183 euros. No primeiro ano da pandemia (2020), esse valor subiu para apenas 12.000 euros. No ano passado (2021) disparou para 358.500 euros – ou seja, cerca de 30 vezes mais do que o habitual.

    Filipe Froes coordena o Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória da SPP.

    Além da campanha de promoção da vacinação em 2021, a Pfizer atribuiu também um inédito apoio à SPP de 35.000 euros para o 37º Congresso Nacional de Pneumologia, que se realizou em Novembro passado na cidade de Albufeira, e que registou até um surto de covid-19 que atingiu 15 médicos, conforme noticiou o Observador.

    O valor atribuído pela Pfizer num só ano à SPP não encontra paralelo em nenhum outro ano nem com outra qualquer farmacêutica. Antes de 2021, o valor máximo conseguido por esta sociedade médica de uma só farmacêutica situava-se em 205.338 euros, atribuído em 2017 pela italiana A. Menarini.

    O ano de 2021 foi, aliás, bastante favorável financeiramente para a SPP, que parece ter encontrado um filão monetário com o surgimento da pandemia da covid-19. Embora fosse já uma das sociedades médicas portuguesas mais beneficiadas pelas farmacêuticas – que ajustam as verbas de marketing em função da facturação –, o ano passado foi excepcional: 1.298.422 euros, de acordo com o levantamento exaustivo feito pelo PÁGINA UM, tendo assim ultrapassado pela primeira vez a fasquia de um milhão de euros. Em relação ao ano anterior (2020), o crescimento destas receitas foi de 65%.

    A Pfizer foi, com grande destaque, a farmacêutica mais generosa para a SPP em 2021, mas mesmo assim ainda nem sequer atinge o pódio no período 2017-2021. A alemã Boehringer Ingelheim ocupa a primeira posição, tendo doado 524.668 euros nos últimos cinco anos. Por exemplo, para patrocínio do recente Congresso Nacional de Pneumologia foram 113.400 euros. Segue-se a helvética Novartis, que deu uma média de quase 91 mil euros por ano no último quinquénio, e um total de 454.572 euros no período. Fecha o pódio de “mecenas” da SPP a portuguesa BIAL com 446.181 euros ao longo dos últimos cinco anos.

    Verbas concedidas pelas farmacêuticas e empresas de produtos médicos à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021 (Fonte: Infarmed)

    No total, de entre 30 farmacêuticas e empresa de produtos médicos, a SPP recebeu 4.349.011 euros no período 2017-2021.

    No âmbito da investigação que o PÁGINA UM está a desenvolver sobre o financiamento das sociedades médicas, a SPP não mostrou disponibilidade, mesmo com insistência, para responder a um conjunto de questões nem quis fornecer informação financeira sobre as suas relações comerciais com farmacêuticas.

    Artigo com colaboração de Maria Afonso Peixoto

  • Morreram mais de 1.300 pessoas que apanharam covid-19 nos hospitais durante a primeira fase da pandemia

    Morreram mais de 1.300 pessoas que apanharam covid-19 nos hospitais durante a primeira fase da pandemia

    Os hospitais salvaram muitos doentes, mas também foram locais de surtos e muitas infecções por covid-19. O PÁGINA UM analisou a base de dados dos registos hospitalares nos 15 primeiros meses da pandemia e encontrou indícios da existência de, pelo menos, 4.140 infecções nosocomiais de covid-19, que resultaram em 1.326 mortes. O Hospital Pedro Hispano, onde trabalha o médico Gustavo Carona – que confessou em livro ter ido trabalhar com sintomas – foi um dos três piores do país entre Março de 2020 e Maio de 2021. E a Direcção-Geral da Saúde nada diz.


    Ao longo dos primeiros 15 meses de pandemia, pelo menos 4.140 doentes-covid terão sido infectados pelo SARSC-CoV-2 nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde após a sua admissão por outras causas. Através da análise de uma base de dados do Ministério da Saúde com informação clínica sobre internamentos por covid-19, a investigação do PÁGINA UM mostra que os surtos desta doença em meio hospitalar (infecção nosocomial) foram bastante frequentes em algumas unidades de saúde. Em todo o país, entre Março de 2020 e Maio de 2021, quase 8% do total dos internados foram infectados nos hospitais. Não estarão aqui incluídos os infectados, sobretudo idosos em lares, que tenham estado em tratamento hospitalar e recebido alta ou aqueles em tratamento ambulatório.

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    Nos centros hospitalares com mais de 500 doentes-covid durante os primeiros 15 meses da pandemia, nove registaram mais de 10% de internados-covid com “versão” nosocomial: Centro Hospitalar do Oeste (13,1%), Hospital Beatriz Ângelo (12,8%), Unidade de Saúde Local de Matosinhos, que agrega o Hospital Pedro Hispano (12,5%), Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim/Vila do Conde (12,4%), Centro Hospitalar Universitário de São João (11,9%), Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (11,7%), Hospital Garcia de Orta (11,5%), Centro Hospitalar Universitário do Porto (11,3%) e Hospital de Cascais (10,3%).

    Note-se, porém, que em termos de gravidade relativa, a pior situação registou-se no IPO de Lisboa, que teve um surto relevante conhecido em Novembro do ano passado, mas que já não foi inédito: entre Março de 2020 e Maio de 2021, de entre os 64 doentes-covid, metade (32) foram infectados naquela unidade hospitalar.

    O melhor desempenho nas grandes unidades de saúde observou-se no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, com apenas 2,4% dos doentes-covid com a “versão” nosocomial. Igual desempenho tiveram o Hospital da Figueira da Foz e a Unidade Local de Saúde do Nordeste. Por sua vez, o Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira teve apenas cinco doentes-covid nosocomial em 480 internados. Note-se, contudo, que nem todos os hospitais terão feito registos correctos de infecções nosocomiais causadas pelo SARS-CoV-2, como parece ser o caso das unidades de saúde da Madeira, que não apontam qualquer caso em 527 internados durante o período em análise (ver texto em baixo).

    Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra registou um dos melhores desempenho no controlo da covid-19 nosocomial.

    Face à maior prevalência de comorbilidades e ao estado mais vulnerável dos pacientes já internados, com a média de idades mais elevada do que na comunidade, a taxa de mortalidade dos doentes-covid-19 em “versão” nosocomial foi de quase um terço (32%): dos 4.140 internados, 1.326 morreram. Os doentes-covid que foram infectados na comunidade tiveram no mesmo período, uma taxa de mortalidade hospitalar de cerca de 22%, ou seja, menos 10 pontos percentuais. Saliente-se, contudo, que o desfecho fatal, em qualquer caso, pode não ter sido devido às complicações decorrentes da infecção pelo SARS-CoV-2, decorrendo sobretudo dos discutíveis critérios seguidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Em todo o caso, encontram-se registos de 27 doentes com covid-19 já estavam admitidos no hospitais – alguns há muitos meses ou mais de um ano – quando o SARS-CoV-2 foi identificado em Portugal no início de Março de 2020. Destes, 11 acabaram mesmo por morrer.

    Podem ser várias as causas para os distintos graus de infecções nosocomiais de covid-19 nas diversas unidades de saúde em Portugal, mas quase todas radicam no maior ou menor cumprimento das regras de prevenção activa e passiva em meios hospitalar.

    Número de casos de covi-19 nosocomial em hospitais, centros hospitalares (CH e CHU) e em unidades locais de saúde (ULS) entre Março de 2020 e Maio de 2021 (excluindo unidades com menos de 20 casos)

    Apesar de, em teoria, as normas da DGS obrigarem a isolamento profiláctico dos profissionais das unidades em caso de contactos de alto risco – que é elevado nos chamados “covidários” ou sempre que ocorrem descuidos –, tal raramente sucedeu em muitos casos, se não houvesse sintomas. O objectivo terá sido o de evitar a falta de recursos humanos.

    Porém, o reverso da medalha foi a multiplicação de surtos causados sobretudo por profissionais de saúde que atingiram potencialmente doentes fragilizados por outras doenças.

    Um dos casos mais evidentes desses descuidos de alguns profissionais de saúde soube-se publicamente através de um relato, sob a forma de livro, de um mediático médico do Hospital Pedro Hispano.

    No seu livro “Diário de um médico no combate à pandemia”, o anestesiologista Gustavo Carona chegou a afirmar que “no meu hospital, ou pelo menos no meu serviço, a política foi só nos testarmos se tivéssemos sintomas. Nós tivemos um milhão de vezes em contacto próximo com doentes covid, e, por vezes, havia uma falha aqui ou outra ali”.

    Relatando no livro o caso pessoal de uma “falha”, este médico – que exerce sobretudo funções de medicina intensiva – escreve mesmo que “os isolamentos profilácticos eram um luxo ao qual nós não nos podíamos dar, só nos testávamos se tivéssemos sintomas”, acrescentando que, após um contacto de alto risco (com um doente confirmado e sintomático), “segui a minha vida à espera de ter ou não sintomas e afastei-me da minha mãe.”

    No seu relato supostamente verídico, o médico – que tem manifestado a defesa intransigente de todas as medidas estatais relevantes – admite ter acordado em data incerta de Janeiro do ano passado com sintomas compatíveis com covid-19, mas foi trabalhar nesse dia, e somente soube no final do turno, por teste, que estava infectado.

    Gustavo Carona, médico no Hospital Pedro Hispano (ULS de Matosinhos)

    Paula Carvalho, assessora de imprensa do Hospital Pedro Hispano – cuja administração se recusou a dar informações detalhadas e mais precisas sobre infecções nosocomiais naquela unidade de saúde no período em que o médico Gustavo Carona esteve a trabalhar infectado, com e sem sintomas , diz que “questões como a da testagem [transcritas no livro] podem ser facilmente explicadas e compreendidas, no contexto das normas e orientações da altura.”

    A DGS, por sua vez, mantém o silêncio absoluto sobre todas as questões e pedidos de esclarecimento do PÁGINA UM. Em 10 de Dezembro foi-lhe enviado um pedido expresso, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, para se obterem dados oficiais e reconhecidos sobre “surtos de covid-19 em unidades de saúde, eventualmente discriminadas por unidade e mês”, bem como o “número de infecções (casos positivos)” e o “número total de óbitos”.

    A directora-geral da Saúde Graça Freitas nunca respondeu, e seguiu, entretanto, uma (habitual) queixa para a Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos.

    O PÁGINA UM vai continuar, em todo o caso, a divulgar informação verídica e fundamental para esclarecer todos os meandros da gestão da pandemia.


    Metodologia para detecção de covid-19 nosocomial

    Nem sempre a referência à existência de covid-19 nosocomial consta expressamente na síntese dos boletins clínicos – convenientemente anonimizados, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística.

    Nesta base de dados, os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento seguem os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As doenças e outros problemas, para cada doente, estão ordenados cronologicamente, sabendo-se apenas que o diagnóstico principal de admissão tem o número 0 e corresponde à data de internamento.

    Os restantes registos constituem o complemento dos problemas que levaram aos internamentos, e também da evolução clínica, geralmente os agravamentos ou outras evidências relevantes. Ora, se a covid-19 – que tem o código U071 da CDI – surge nos primeiros lugares da ordenação, depreende-se que seja a causa directa do internamento (e é mesmo se tem o número 0) ou que o teste foi positivo no momento da admissão.

    Assim sendo, o PÁGINA UM considerou que se estaria sempre perante uma infecção nosocomial se a covid-19 (U071) estivesse na posição 6 ou superior. Note-se que a mediana da posição do diagnóstico da covid-19 (U071) dos 4.140 internados que se assumiu terem sido infectados em meio hospitalar é de 10, sendo que em 351 doentes a covid-19 aparece na posição 20 ou superior na ordem de diagnóstico.

  • Segundo Inverno de pandemia menos mortífero do que invernos com gripe

    Segundo Inverno de pandemia menos mortífero do que invernos com gripe

    Sem gripe e com a covid-19 a mostrar menor letalidade, o Inverno de 2021-2022 está muito menos mortífero do que em períodos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2. O excesso de mortalidade ao longo da pandemia e o tempo mais ameno podem ser uma explicação, mas mostra-se evidente uma falta de adesão entre a realidade e a sua percepção pública e política.


    O período invernal em curso, iniciado no dia 21 de Dezembro do ano passado, está a ser um dos menos mortíferos da última década, sobretudo se se considerar o processo de envelhecimento populacional. Esta situação contrasta com um ambiente de pânico na sociedade portuguesa no decurso de um forte aumento do número de testes positivos com covid-19.

    Segundo a Direcção-Geral da Saúde, estão actualmente infectados quase 265 mil portugueses, quando em igual período do ano passado rondava os 110 mil, ou seja, um aumento de cerca de 140%. Contudo, ao nível de óbitos atribuídos à covid-19, a situação é agora oposta: a média móvel da última semana é de 19 – com tendência estável –, enquanto há um ano atingia já os 104, e então com uma forte tendência de subida. No Inverno passado, de acordo com dados oficiais, chegou-se perto dos 300 óbitos por dia (média móvel) no pico da mortalidade por covid-19.

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    A actual diminuição dos desfechos fatais directamente associados à pandemia acompanha também uma redução na mortalidade por todas as causas. De acordo com o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que agrega todas as causas de desfechos fatais –, o actual Inverno (com 21 dias, até 10 de Janeiro) regista já 7.444 mortes, uma média de 354 por dia, o que é o quinto valor mais baixo da última década e o segundo nos últimos seis anos. Se se considerar que a população idosa com mais de 85 anos – onde se concentra uma parte considerável das mortes por todas as causas (cerca de 40% do total) – teve um crescimento de 44% entre 2011 e 2020 (passando de 237 mil para mais de 333 mil –, a situação deste período invernal manifesta-se francamente favorável do ponto de vista de Saúde Pública.

    Com efeito, face à menor letalidade da covid-19 nesta fase pandémica, à contínua ausência de actividade dos vírus influenza (causador das gripes) e à menor prevalência de outras infecções respiratórias, o período invernal em curso apresenta mortalidade total por todas as causas 6% inferior à média. Esta redução será maior se indexada à taxa de mortalidade no grupo etário dos mais idosos, porque são agora muitos mais.

    Saliente-se, contudo, que a mortalidade nos Invernos ao longo dos anos regista sempre valores muito extremados. Antes como agora, o período invernal é muito mortífero ou pouco letal em função directa da “agressividade” da gripe, das infecções respiratórias, da meteorologia, bem como da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.

    Mortalidade média diária por todas as causas entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022 (Fonte: SICO).

    Por exemplo, no Inverno passado – com surtos de covid-19 acompanhados de um período de frio extremo –, a mortalidade total entre 21 de Dezembro de 2020 e 10 de Janeiro de 2021 situou-se nos 466 óbitos por dia, mais 112 do que em período homólogo do actual Inverno. Recorde-se que, em Janeiro do ano passado, a situação ainda piorou nos dois últimos terços do mês, com diversos dias de mortalidade acima de 700. Por agora, no mês de Janeiro em curso, apenas no dia 1 se ultrapassou os 400 óbitos, o que se deve considerar uma situação excepcionalmente favorável.

    Com efeito, seguindo os dados do SICO, a mortalidade total do presente Inverno está em níveis muito próximos de anos de fraca actividade gripal, como os Invernos de 2019-2020 ou 2015-2016. Neste último caso, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) considerou que “a actividade gripal foi de baixa intensidade” e que “não se observaram excessos de mortalidade semanais durante o Outono e Inverno”. No período em análise (21 de Dezembro de 2015 até 10 de Janeiro de 2016) apenas morreram, em média, 322 pessoas por dia.

    Se se comparar o presente Inverno com outros anteriores à pandemia, a situação mostra-se também muito mais favorável em relação sobretudo aos anos de 2016-2017 – que registou uma mortalidade média diária de 455 óbitos – e de 2017-2018 – com mortalidade diária de 395 óbitos.

    Variação absoluta da mortalidade total entre 21 de Dezembro e 10 de Janeiro no período 2009-2010 até 2021-2022, tendo como referência o período de menor actividade gripal (2012-2013) (Fonte: SICO).

    A época gripal nestes dois períodos foi particularmente agreste. Segundo o INSA, na época de 2016-2017 (que compreende o período entre meados de Outubro e Maio seguinte) estima-se que a gripe, por via directa e indirecta, causou a morte de 4.472 pessoas, enquanto na de 2017-2018 foi de 3.700.

    Comparando o período invernal desde 2009-2010 – tendo como referência o ano de menor actividade gripal (2012-2013), e portanto de menor mortalidade –, o actual Inverno apresenta um excesso de 738 óbitos, mas não se tem aqui em conta que no final de 2012 viviam cerca de 244 mil pessoas com mais de 85 anos e agora vivem mais de 333 mil.

    Mesmo assim, esse acréscimo é substancialmente inferior ao Inverno passado (2020-2021), que registou 3.089 óbitos em excesso em relação ao ano de referência, ou seja, mais 147 óbitos em cada dia. E também muito mais baixo do que os números registados nos Invernos pré-pandemia de 2014-2015, 2016-2017, 2017-2018 e 2018-2019.

    Porém, estas evidências estatísticas – dir-se-iam científicas – não estão espelhadas no presente ambiente de quase estado de sítio, onde imperam ainda fortes medidas de lockdown económico e de discriminação social.

  • Conselho Superior da Magistratura exige justificação absurda ao Página Um para ponderar autorização de consulta a documentos públicos

    Conselho Superior da Magistratura exige justificação absurda ao Página Um para ponderar autorização de consulta a documentos públicos

    Um longo parecer do Conselho Superior da Magistratura, advoga que os jornalistas têm de justificar qual a finalidade dos documentos que desejam consultar para que se pondere uma autorização. A autora desta temerária tese num país democrático é filha de Vítor Manuel Wengorovius, que durante mais de duas décadas defendeu a imprensa como advogado do Sindicato dos Jornalistas e foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.


    Em 27 de Fevereiro de 2020, a juíza Ana Sofia Wengorovius – adjunta do Conselho Superior de Magistratura (CSM) – considerou, em apenas três páginas, que esta entidade nem sequer deveria pronunciar-se sobre um projecto de lei para a regulamentação da actividade de lobbying e para a criação de registo de transparência e de mecanismo de pegada legislativa.

    Menos de dois anos depois, a mesma juíza – destacada como Encarregada da Protecção de Dados do CSM – deu-se ao trabalho de elaborar um extenso parecer de sete páginas para exigir que o PÁGINA UM justificasse “a finalidade do acesso” a documentos administrativos relacionados com a Operação Marquês. Ou seja, que justificasse aquilo que é o direito e o dever de um jornalista: informar sem amarras num país democrático, sem censura nem condicionalismos. Como argumento, a juíza expôs seis diplomas legais, a Constituição, um acórdão judicial e ainda um regulamento e uma directiva europeia.

    Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, exigindo que jornalistas expliquem os motivos para a consulta.

    Em causa estava somente um habitual pedido de um jornalista para consulta de documentos administrativos, neste caso o processo de averiguação sumária nº 2018-346/AV. Em concreto, trata-se do inquérito do CSM relativo aos procedimentos que nortearam a distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre –, que o ex-primeiro-ministro José Sócrates quis ver no ano passado. Numa primeira fase, os conselheiros do CSM recusaram essa pretensão, alegando “segredo de justiça”, mas Sócrates apresentou queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que lhe veio a dar razão em 13 de Outubro do ano passado, como o PÁGINA UM deu em primeira-mão.

    Considerando que “um documento administrativo [a averiguação sumária nº 2018-346/AV], ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”, a CADA – presidida pelo juiz desembargador Alberto Oliveira – recomendou que o CSM entregasse ao antigo governante uma cópia daquele inquérito à Operação Marquês, o que terá sucedido no mês passado.

    Perante o parecer da CADA, o PÁGINA UM decidiu também solicitar, no passado dia 2 de Novembro, o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês – ou seja, os mesmos documentos concedidos a José Sócrates –, bem como o “acesso aos documentos administrativos elaborados na [sua] sequência”.
    Após uma troca de e-mails, em que o PÁGINA UM foi logo convidado a “esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados, o CSM acabou por elaborar um parecer, assinado por Ana Sofia Wengorovius.

    Ana Sofia Wengovorius, juíza de direito e adjunta do CSM (foto do site da CSM)

    Esta juíza – que de acordo com uma nota curricular, em Diário da República, concluiu a licenciatura em Direito na Universidade Lusíada (privada) em 1994 com 13 valores – defende que, mesmo após o arquivamento de um inquérito – que não teve qualquer sanção –, este é “confidencial”, porque se deve ter “em vista assegurar a defesa dos direitos fundamentais de personalidade como o direito ao bom nome e à reputação”, invocando a Constituição.

    Nem sequer justificando como o acesso a documentos administrativos por parte de um jornalista poderia violar ou afectar “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” – conforme estabelece o tal artigo da Constituição –, Ana Sofia Wengorovius salienta ainda que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

    Ora, o PÁGINA UM invocou, implicita (porque o pedido foi feito por um jornalista) e explicitamente (repetindo, por palavras, quais as funções de um jornalista). Com efeito, não apenas a Constituição Portuguesa, a Lei da Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas concedem direitos inalienáveis de acesso livre à informação para um jornalista como também a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos determina que “todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo.”

    Mesmo no caso de documentos com dados nominativos – como sejam moradas, e-mails, números de cartão de cidadão ou fiscal, mas não abrangendo o nome –, a lei concede legitimidade a um jornalista, uma vez que este “demonstra ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”. Mas mesmo que assim não fosse, a legislação determina que haja “comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada.” Ou seja, no máximo, se o inquérito tivesse, por exemplo, o número de telefone pessoal de alguém, bastaria “apagar” essa informação e libertar o acesso.

    Primeira página do parecer do CSM enviado ao PÁGINA UM.

    No seu parecer, Ana Sofia Wengorovius faz também interpretações pouco ortodoxas do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Com efeito, a juíza chega a invocar como justificativa da não-cedência sem condições de documentos administrativos a um jornalista, um artigo da lei de execução do RGPD que estipula exactamente o contrário daquilo que ela defende.

    De facto, esse normativo destaca sim que “a proteção de dados pessoais (…) não prejudica o exercício da liberdade de expressão, informação e imprensa, incluindo o tratamento de dados para fins jornalísticos e para fins de expressão académica, artística ou literária”. Ou seja, o direito de informação está acima da protecção de dados pessoais, mesmo se existem depois normas que devam ser cumpridas, mas que um jornalista que cumpra princípios deontológicos sabe bem.

    De facto, as normas do RGPD apenas consubstanciam aquilo que o Código Deontológico dos Jornalistas já prevê, como por exemplo, o respeito, quando estejam em causa dados pessoais, pelo “princípio da dignidade humana previsto na Constituição da República Portuguesa, bem como os direitos de personalidade nela e na legislação nacional consagrada”, ou ainda as restrições de divulgação de “moradas e contactos, à excepção daqueles que sejam de conhecimento generalizado”.

    Porém, esses aspectos nem sequer estarão em causa nos documentos solicitados pelo PÁGINA UM que, enfim, se referem a um simples inquérito do CSM, e já arquivado e sem sanções, no decurso da Operação Marquês.

    Certo é que, apesar de uma reclamação do PÁGINA UM a considerar ser absurdo explicar, numa democracia, as razões de um jornalista – que se identifica como tal – para consultar documentos administrativos, Ana Sofia Wengorovius manteve a sua posição num segundo parecer, mais curto, assinado em 28 de Dezembro passado.

    A juíza – numa longa frase sem vírgulas – diz que “em face da resposta apresentada explicito que o requerente não atentou nos fundamentos do parecer querendo transpor o seu pedido para o campo dos documentos administrativos em geral sem curar na especificidade dos documentos constantes do procedimento especial de inquérito e escudando-se num parecer emitido pela CADA numa situação em que o requerente era parte nos autos o que não sucede no caso pois ainda que possa invocar as prorrogativas de ser jornalista não deixa de ser um terceiro em relação ao processo.” (sic)

    person covering the eyes of woman on dark room

    Saliente-se que a Lei do Acessos aos Documentos Administrativos abrange todos os documentos administrativos independentemente da entidade pública, não discriminando qualquer tipo. Apenas os documentos classificados como “segredo de Estado ou por outros regimes legais relativos à informação classificada”, com legislação própria e procedimentos especiais – têm restrições de acesso, o que não é o caso de um simples inquérito administrativo de uma entidade como o CSM.

    Nesse seu segundo parecer, Ana Sofia Wengorovius mostra mesmo pretender condicionar o livre exercício da actividade dos jornalistas, ao defender que “o acesso e/ou recolha solicitada só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitima, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”.

    Ora, como o PÁGINA UM se recusa a informar a juíza ou o CSM sobre se vai, ou como vai, fazer uma notícia com base em documentos que ainda nem sequer consultou, seguiu uma queixa para a CADA, sobretudo para defesa da liberdade de imprensa e contra obstáculos ao seu exercício pleno.

    Ana Sofia Wengorovius é filha de Vítor Manuel Wengorovius – fundador, com Jorge Sampaio, do Movimento de Esquerda Socialista (MES) –, que foi advogado do Sindicato dos Jornalistas durante mais de duas décadas, entre 1970 e 1991, tendo falecido em 2005. Considerado um homem “generoso, solidário, tribuno empolgado”, Wengorovius foi agraciado, em 1998, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.