Categoria: Exame

  • Haverá ainda uma verdadeira democracia na União Europeia?

    Haverá ainda uma verdadeira democracia na União Europeia?

    A pandemia da covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia foram dois autênticos “terramotos” na vida do Velho Continente, com a União Europeia a assumir um protagonismo nunca anteriormente visto sobre os países-membros e os seus cidadãos. Conseguirá a democracia sobreviver neste processo?


    Num debate organizado pela Cidadania XXI, na passada terça-feira, o advogado José Luís da Cruz Vilaça e a jurista Maria Vieira da Silva discutiram (e discordaram) sobre a actuação da União Europeia (UE) na salvaguarda das liberdades e garantias dos cidadãos. As decisões tomadas durante a pandemia, como a criação do certificado digital, estiveram “sob escrutínio”.

    Especializada em Direito da UE, Maria Vieira da Silva lançou duras críticas à Comissão Europeia e ao Conselho Europeu, e a algumas das suas últimas directivas, comparando mesmo muitas das decisões das instituições comunitárias com as do Partido Comunista Chinês. “Não reconheço a actual UE e é doloroso dizê-lo”, afirmou a jurista, acrescentando que “quando falamos em democracia falamos em separação de poderes, e na UE já não existe essa separação”.

    Debate colocou em confronto as opiniões de José Luís da Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva, em debate moderado por Carlos Gomes.

    Considerando ainda que no seio da UE apenas já se usa a “liberdade como um slogan”, e que se vende os “direitos fundamentais como meras mercadorias a empresas privadas” – citando o exemplo do Facebook –, Maria Vieira da Silva questionou “onde fica a liberdade de expressão” aludindo, como exemplo, à Lei dos Serviços Digitais.

    Recorde-se que esta legislação delega aos proprietários das redes sociais a capacidade de determinar os conteúdos que podem ou não ser publicados. Ou seja, é uma “autoridade extra-judicial, que tem a tarefa de estabelecer o que é falso ou verdadeiro, legal ou ilegal”, destacou Maria Vieira da Silva.

    Posição distinta neste debate teve José Luís da Cruz Vilaça, advogado e antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE, que disse não ter “uma visão apocalíptica do estado de direito“ na principal instituição do Velho Continente. “Não existe um problema sistémico de proteção dos direitos”, defendeu, tendo destacado a importância do Tribunal de Justiça da UE na definição jurisprudencial dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus.

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    No que diz respeito à polémica regulamentação do espaço digital, José Luís da Cruz Vilaça disse que “o problema tem sido o de conciliar os vários direitos fundamentais”, podendo, neste processo, “haver direitos que entrem em confronto“, como a liberdade de expressão e a segurança dos utilizadores.  O advogado ressaltou ainda que se “devem aplicar aos meios digitais os mesmos princípios que se aplicam fora desses meios“.

    Neste debate houve, também, espaço para questionar a integridade da UE, aspecto em que Maria Vieira da Silva acusou a instituição de se deixar corromper pela influência do lobbying: “existem cerca de 30 mil lobistas activos em Bruxelas que exercem mais influência sobre as instituições comunitárias do que todos os eurodeputados”. Para esta jurista, a “UE foi concebida segundo os direitos democráticos, mas foi privada da capacidade de lhes dar resposta”.

    As decisões da UE em reacção à invasão da Ucrânia pela Rússia também estiveram em discussão, merecendo, de igual modo, a reprovação de Maria Vieira da Silva. “Achei escandaloso o facto de a Comissão Europeia suspender os canais russos, só porque Van der Leyen achou que manipulam a verdade dos factos”, considerou.

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    Defendendo a liberdade de expressão como necessária às sociedades democráticas e o artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais, a jurista manifestou ainda preocupação com “o risco de deitarmos fora os valores ocidentais”.

    Por sua vez, José Luís da Cruz Vilaça optou por fazer a apologia de que ”somos todos mais fortes com a UE”, defendendo que essa “cidadania [comunitária] acrescenta muitos mais direitos do que deveres às cidadanias nacionais”. O antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE admitiu, porém, que “a guerra veio alterar um pouco” o panorama jurídico europeu.

    Num ponto houve consenso. Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva posicionaram-se contra o silenciamento mediático daqueles que, por criticarem a gestão da pandemia, foram rotulados com o epíteto de “negacionistas”. Nesse aspecto, o advogado considerou “lamentável que nem todas as pessoas possam exprimir-se da mesma forma”.

  • Paradoxos da pandemia: covid-19 internou 57 mil pessoas em 2020 e 2021, mas ‘tirou’ quase 280 mil doentes dos hospitais

    Paradoxos da pandemia: covid-19 internou 57 mil pessoas em 2020 e 2021, mas ‘tirou’ quase 280 mil doentes dos hospitais

    A gestão da pandemia, com a criação dos “covidários” e o adiamento de muitas intervenções cirúrgicas não aliviou apenas os hospitais; fez “desaparecer” hospitalizações em todas as unidades de tratamento de doenças. Se nas alas covid e nas unidades de cuidados intensivos se deu o ‘litro’, em muitos outros departamentos houve médicos e outros profissionais de saúde que tiveram vida folgada durante a pandemia. Um paradoxo, porque em 2020 e 2021 se registou um acréscimo de mortalidade de 23 mil óbitos em Portugal, dos quase 19 mil atribuída à covid-19, embora para estes casos aplicando-se critérios muito discutíveis.


    A covid-19 causou uma paradoxal redução generalizada dos internamentos em todas as valências hospitalares. De acordo com a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), durante 2020 e 2021 – os dois primeiros anos da pandemia – registaram-se quase menos 280 mil pessoas internadas do que nos dois anos anteriores (2018 e 2019).

    Isto mesmo considerando que a covid-19 – a única doença que integra o grupo de “códigos para fins especiais” –, que só surgiu no final do primeiro trimestre de 2020 contribuiu com 57.227 internados entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2021.

    Um dos aspectos mais surpreendentes destes dados, agora analisados pelo PÁGINA UM, é a forte queda de internamentos por todas as causas, e envolvendo mesmo áreas sem qualquer ligação directa à covid-19.

    Em certa medida, esta redução deveu-se à criação dos “covidários”, para onde seguiam, independentemente da gravidade, todas as pessoas a necessitarem de cuidados médicos, mesmo se sofressem de outros problemas de saúde mais prementes.

    Contudo, também se deveu muito à redução das intervenções cirúrgicas com internamento – que resultaram de uma estratégia política – e, de igual modo, ao medo incutido que afastou muitas pessoas de irem aos hospitais mesmo em caso de sintomas agudos de elevada gravidade. Muitos terão morrido por esta opção. Recorde-se que se registou um acréscimo de mortalidade no biénio 2020-2021, face a 2018-2019, de 23.017 óbitos, sendo que 18.974 foram atribuídos à covid-19.

    A queda no número de internados por todas as causas observou-se de forma marcante logo em Março de 2020. Com efeito, nos três anos anteriores à pandemia, os hospitais do SNS recebiam habitualmente entre 70 mil e 80 mil pessoas a necessitarem de internamento em cada mês, mas no início da pandemia, em Março de 2021, baixou para um pouco menos de 65 mil. Curiosamente, os dados do SNS indicam que houve um doente internado com covid-19 ainda em Fevereiro de 2020.

    Em Abril de 2020 ainda desceu mais: 46.558 pessoas foram hospitalizadas. Nos meses seguintes, e até Dezembro do ano passado, o número de pessoas hospitalizadas por mês nunca recuperaram para os níveis pré-pandémicos.

    Durante a pandemia, o mês com mais internados por todas as causas foi Outubro de 2020 com 67.080 pessoas. Em Dezembro do ano passado foram hospitalizadas apenas de 55.070 pessoas, um valor atípico. Por exemplo, no último Dezembro antes da chegada da pandemia tinham sido internadas 74.087 pessoas.

    Número de pessoas internadas por mês (entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021) por todas as causas em hospitais públicos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    As unidades de tratamento hospitalar das doenças do aparelho respiratório não-covid foram as que mais “beneficiaram” com o surgimento da pandemia, sem prejuízo da covid-19 exigir uma logística e tratamento mais complexo. No entanto, tendo em conta que o SARS-CoV-2, a par com as medidas não-farmacológicas – uma redução substancial (ou desaparecimento efectivo) de vírus e bactérias causadoras de doenças respiratórias, os hospitais acabaram por beneficiar, nesse aspecto, de uma redução significativa da procura para tratamento.

    Com efeito, de acordo com os dados do SNS, no biénio 2020-2021 foram internadas por doenças respiratórias não-covid menos 76.119 pessoas do que em 2018-2019. Significa isto que se se juntar os internados por covid-19 em 2019 e 2020 (um total de 57.227) aos internados por doenças respiratórias não-covid nesse período, então conclui-se que em 2018-2019 as unidades de pneumologia do SNS tiveram um fluxo maior de doentes.

    Número de internados por mês (desde Janeiro de 2017 a Dezembro de 2021) de doenças do aparelho respiratório e de covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Na verdade, embora com taxa de letalidade maior do que a das pneumonias vulgares para as populações mais idosas, a covid-19 não implicou uma pressão descomunalmente superior nos hospitais do SNS, uma vez que se registou uma profunda queda no número de internados por pneumonias e doenças afins.

    Se no período de 2017-2019 o número de internados por mês devido a doenças respiratórias se situava entre os 5.000 e os 15.000 – com os valores mais baixos a ocorrerem no Verão e os mais elevados no Inverno –, este padrão modificou-se substancialmente nos últimos dois anos.

    Com o surgimento da covid-19, mesmo no Verão o decréscimo de doentes foi brutal. E no Inverno, as quedas foram completamente atípicas. Aliás, os dois piores meses da pandemia – Janeiro e Fevereiro de 2021, com 10.137 e 10.457 internados, respectivamente – coincidiram com os mais baixos números de internados por doenças respiratórias: para aqueles dois meses foram de apenas 4.396 e 3.558, respectivamente.

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    Se se comparar o número de internados por doenças respiratórias nos dois primeiros meses de 2021 – um total de 7.954 – com os internados nos meses de Janeiro e Fevereiro 2017 – com um surto gripal relevante, que levou à hospitalizações de 25.821 pessoas –, fica-se com uma ideia clara do impacte ao nível da pressão hospitalar do “desaparecimento” da gripe durante a pandemia.

    No entanto, a pandemia aliviou fortemente outras áreas hospitalares como foram sobretudo os casos das unidades de tratamento de doenças do aparelho circulatório e digestivo e também de neoplasias (cancros).

    Segundo os dados do SNS, confrontando o período 2018-2019 com 2020-2021, houve menos 37.800 internados (redução de 15,7%) por doenças do aparelho circulatório, menos 34.443 internados (redução de 19,5%) por doenças do aparelho digestivo e menos 30.759 internados (redução de 17,4%) por neoplasias.

    Número total de internados por grupo de doenças nos biénios 2018-2019 e 2020-2021. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    O cenário, contudo, foi generalizado para todas as doenças e afecções, mesmo até em internamentos por lesões, acidentes, transtornos mentais e doenças dos olhos. Na análise realizada pelo PÁGINA UM, observam-se nove grupos de doenças com reduções superiores a 20%

    Esse efeito observou-se mesmo nos internamentos relacionados com a gravidez (menos 12,4%), malformações congénitas e similares (menos 17,8%) e condições originadas no período perinatal (-29,0%), mas aí a causa foi outra: as opções da estratégia política do Governo que resultou numa incerteza económica que retraiu os casais na decisão de terem filhos.

  • Correspondência com Agência Europeia de Medicamentos: pela segunda vez em dois meses, Infarmed senta-se no banco dos réus

    Correspondência com Agência Europeia de Medicamentos: pela segunda vez em dois meses, Infarmed senta-se no banco dos réus

    Pela segunda vez em dois meses, o PÁGINA UM coloca um processo de intimação no Tribunal Administrativo contra o Infarmed por recusa na disponibilização de documentos administrativos. Agora está em causa o acesso à correspondência trocada pelo regulador português, criado para defender os interesses dos cidadãos, e a Agência Europeia de Medicamentos. O Infarmed defende que é tudo “confidencial”.


    O PÁGINA UM intentou ontem um novo processo de intimação contra o Infarmed junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. Esta é a segunda vez que o regulador do medicamento terá de se justificar perante a Justiça sobre as razões para não ceder o acesso à consulta de documentos administrativos relevantes na esfera da saúde individual e pública.

    No mês passado, o PÁGINA UM intentou um processo similar porque o regulador recusou o acesso à base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir. Esta decisão do Tribunal Administrativo está prevista para breve, por se tratar de um caso urgente.

    Desta vez, o PÁGINA UM teve de recorrer novamente ao Tribunal porque o Conselho Directivo do Infarmed – liderado por Rui Santos Ivo, que já ocupou o cargo de director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) – se recusou a facultar qualquer tipo de correspondência, desde 2020, entre esta entidade reguladora nacional e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).

    No âmbito deste pedido, o PÁGINA UM também desejava, em concreto, que o Infarmed identificasse, através de cópia da comunicação da EMA, qual o defeito de qualidade detectado no lote 000190A da vacina COVID-19 Spikevax, que foi retirada do mercado em Abril passado, uma vez que o comunicado público transmitido pela entidade chefiada por Rui Santos Ivo referiu apenas que se tratava de um “corpo estranho no frasco da vacina”.

    Este lote continha 746.900 doses e os frascos tinham sido distribuídos pela Noruega, Polónia, Suécia e Espanha a partir de uma fábrica de Málaga. O Infarmed nem sequer quis confirmar se era verdade que fora encontrado um mosquito dentro de um dos frascos, ou se afinal o problema era mais vasto.

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    Apesar do evidente interesse público, ademais tendo o pedido sido feito por um órgão de comunicação social – cujo acesso à informação surge consagrado na Constituição, com um estatuto jurídico muito superior a qualquer decreto-lei –, o regulador declarou ao PÁGINA UM, em final de Abril passado, que o diploma que regula os medicamentos “prevê um dever de confidencialidade que se traduz num regime especial em matéria de acesso a documentos administrativos apresentados ao Infarmed ou a este transmitidos pela Agência ou pela autoridade competente de outro Estado Membro”.

    Saliente-se que o diploma em causa – o Decreto-Lei nº 176/2006 – tem como objectivo, segundo o preâmbulo, “permitir uma maior oferta e concorrência, no mercado nacional”, mas “sem prejuízo da necessidade de assegurar o respeito pela saúde pública e pelos interesses dos consumidores”.

    Ou seja, para assegurar o respeito pela saúde pública e o interesse dos consumidores mostra-se fundamental o acesso às comunicações integrais, sem qualquer censura, entre as entidades nacionais e externas, sobretudo quando estão em causa defeitos em medicamentos que levam mesmo à sua retirada do mercado.

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    O PÁGINA UM poderia ter optado, como habitualmente, por recorrer à Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), mas como o parecer desta entidade não é vinculativo – e o Infarmed já negou uma vez cumprir as determinações daquela entidade –, foi então tomada a decisão de proceder de imediato ao processo de intimação, que é considerado urgente e alvo de uma sentença.

    Este segundo processo no Tribunal Administrativo (Processo 1335/22.7BELSB) foi já distribuído ao juiz João Cristóvão que deverá agora, no início da próxima semana, conceder um prazo de 10 dias para o Infarmed, como réu, se justificar factualmente.

    Recorde-se que os processos de intimação do PÁGINA UM têm tido o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Na próxima semana serão entregues outros processos, em prol da transparência da Administração Pública, a anunciar.


    Para apoios exclusivamente dos custos processuais e de defesa em tribunais, apoie o PÁGINA UM na plataforma do FUNDO JURÍDICO ou contacte através do e-mail geral@paginaum.pt.

  • Elevada pressão nos hospitais durante a pandemia, disseram-nos. Afinal, foi mentira…

    Elevada pressão nos hospitais durante a pandemia, disseram-nos. Afinal, foi mentira…

    São 14 os gráficos. O PÁGINA UM faz nova análise à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desta vez pesquisando um indicador fundamental da pressão hospitalar: o número de dias de internamentos por mês desde 2017. Vimos cada um dos hospitais… em, pois bem, durante os dois primeiros anos da pandemia, houve muitos hospitais do SNS, a começar pelos de Lisboa, que nunca tiveram tanto “descanso”. O Ministério da Saúde fez-nos crer o contrário.


    A pressão hospitalar sempre foi tema quente desde a chegada da pandemia da covid-19 a Portugal. Está de novo na hora do dia, graças a um histriónico director das urgências do Hospital de São João do Porto a pré-anunciar uma catástrofe apenas por um ligeiro acréscimo no fluxo de doentes nas últimas semanas. Como noutras ocasiões, desde Março de 2020.

    A mensagem política e social ao longo da pandemia foi sempre no sentido de a covid-19 não sobrecarregar os serviços hospitalares e sobretudo as urgências, num país com mais de um milhão de pessoas sem médico de família.

    Ficaram mesmo célebres as ambulâncias em frente ao Hospital de Santa Maria. Meta-se as palavras “hospitais” e “entupidos” no Google News, e encontraremos uma lista de notícias, umas mais clássicas anteriores à pandemia, outras mais recentes, de 2020, 2021 e mesmo deste ano.

    Mas será isto mesmo verdade? Teremos médicos, enfermeiros e mesmo administradores hospitalares à beira da exaustão, como se nada houvesse parecido àquilo que sucedeu nos últimos dois anos.

    Fomos fazer contas à vida nos locais onde se evita a morte. Melhor dizendo, o PÁGINA UM foi analisar, em detalhe, um dos indicadores fundamentais da pressão hospitalar: o número de dias acumulados de internamento nas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

    Os dias de internamento constituem não um retrato, como sucede nos picos conjunturais de afluência, mas sim um balanço de um período alargado (geralmente, um mês, um trimestre, um ano), permitindo aferir se existe uma variação relevante na procura de recursos materiais e humanos (médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e auxiliares) para tratamento de doentes em situação mais delicada.

    Para isso, recorremos a dados indesmentíveis – ou, pelo menos não desmentíveis, porque oficiais – pelo Ministério da Saúde ou pela imprensa que segue a “espuma dos dias”: a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

    Independentemente de ter ocorrido, efectivamente, uma maior pressão em diversos sectores hospitalares – sobretudo dos profissionais de saúde que estiveram alocados ao tratamento dos doentes-covid, em grande parte pela maior logística e disponibilidade que exigiu –, os dados do SNS afinal revelam, globalmente, uma evidência que destoa da visão mais “popular”: desde 2017 – período a partir do qual existem registos mensais contabilizando dias acumulados de internamento –, o ano com menor pressão foi o ano passado.

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    Com efeito, no total dos 12 meses de 2021, contabilizaram-se 5.931.618 dias de internamento, o que contrasta com 6.411.908 dias registados em 2020, que incorporou 10 meses (Março a Dezembro) já afectados pela pandemia. Se considerarmos a média mensal de 2020-2021 (cerca de 514.313 dias de internamento) com a de 2017-2019 (597.694 dias), a queda é de 14%.

    Na verdade, antes da pandemia, a pressão hospitalar – medida pela “procura” (ou ocupação) de camas para internamento –, mantinha-se mais ou menos estável, até porque dependia da disponibilidade dos hospitais, tanto em camas “físicas” como em pessoal para tratar os doentes.

    De acordo com a base de dados do SNS, os dias de internamento por mês entre Janeiro de 2017 até Fevereiro de 2020 – em vésperas da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal – variavam entre os 540 mil e os 660 mil, com os valores mais elevados a ocorrerem, geralmente, no primeiro trimestre de cada ano.

    Porém, com a chegada da pandemia em Março de 2020, tudo mudou, sobretudo no mês seguinte, onde quem estava doente via um hospital como se fosse o diabo a ver uma cruz: fugia. Por esse motivo, Abril de 2020 nem sequer contabilizou 440 mil dias de internamento, uma descida de quase 27% face ao mês anterior.

    Número de dias de internamento em cada mês na totalidade das unidades do Serviço Nacional de Saúde desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Nos meses seguintes registar-se-ia um ligeiro aumento do número de dias de internamento, até que em Outubro de 2020 a pressão hospitalar atingiu valores considerados normais.

    Contudo, com a intensificação da pandemia, e sobretudo com o surgimento da pior fase da covid-19 entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, registou-se nova redução neste indicador.

    Mas passada a tempestade, e apesar da manutenção das restrições, justificadas em parte para não sobrecarregar os hospitais com doentes-covid, o número de dias de internamento foram suavemente diminuindo. E mesmo com a chegada do último Inverno. Na verdade, desde Maio de 2021 o número acumulado de dias de internamento estiveram sempre abaixo dos 500 mil por mês. Ora, entre 2017 e 2019 contabilizam-se 16 meses acima de 600 mil dias de internamento.

    As realidades foram, contudo, bastante distintas de unidade de saúde para unidade de saúde.

    Para fazer uma análise mais fina, o PÁGINA UM seleccionou os centros hospitalares ou hospitais que, entre 2017 e 2019, registaram mais de 500 mil dias de internamento. De forma clara, evidenciam, em quase todos, um impacte brutal entre Março e Abril de 2020, no período de maior pânico, mas as evoluções são depois muito distintas.

    Por exemplo, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a queda no internamento foi impressionante. Antes da pandemia, raramente havia um mês com menos de 40 mil dias de internamento. Em Abril de 2020 desceu para apenas 24.393 dias, uma redução da ordem dos 40%.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Ao longo de 2020, a pressão hospitalar, medida por este indicador, aumentou mas nunca chegou ao patamar da “normalidade” anterior à pandemia. Em Dezembro ultrapassou-se ligeiramente os 36 mil dias. Em seguida, ao longo de todo o ano de 2021, observou-se uma tendência de decréscimo, bastante acentuada mês após mês, de sorte que, em Dezembro do ano passado, se atingiu um novo mínimo desde 2017: somente 23.468 dias de internamento.

    Situação ainda mais drástica observou no Centro Hospitalar de Lisboa Central – que agrega, entre outros, os hospitais de São José, D. Estefânia, Curry Cabral e Santa Marta. Com número de dias de internamento por mês a situar-se, geralmente, entre os 30 mil e os 40 mil antes da pandemia, a quebra foi bastante acentuada logo em Abril de 2020: contabilizaram-se um pouco menos de 25 mil. Uma queda de quase 33% face ao mês anterior.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Até Dezembro desse ano, o indicador manteve-se sempre em redor dos 25 mil dias, iniciando depois nova queda acentuada, com excepção de Março de 2021. O mês de Dezembro do ano passado foi um período nunca visto desde 2017: somente 11.566 dias de internamento. Face ao máximo mensal registado no período (40.609 dias em Março de 2018), significa uma queda de 72%.

    O padrão do “vizinho” Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra, entre outros, os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – foi idêntico, embora com uma queda ainda mais acentuada após a chegada do SARS-CoV-2, que trouxe uma debandada geral às unidades de saúde.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Se antes da pandemia, o fluxo de internamentos mensais situava-se entre os 25 mil e os 32 mil, em Abril de 2020 decaiu para baixo dos 16 mil, um tombo de 47% face ao mês anterior. Houve depois uma “recuperação” nos meses seguintes até Outubro desse ano, mas seguiu-se uma acentuada tendência de descida nos dias de internamento, incluindo mesmo nos meses de pico da pandemia do Inverno de 2020-2021, quando o Hospital de Santa Maria era palco mediático de ambulâncias em fila indiana para “despejar” doentes. Problemas de logística, na verdade. Os últimos dois meses de 2021 ficaram ambos abaixo dos 15 mil dias de internamento – valores que representam cerca de metade da “normalidade” pré-pandemia.

    O Centro Hospitalar Lisboa Ocidental destoa deste padrão. Houve efectivamente uma queda abrupta entre Março e Abril de 2020, mas rapidamente se passou para um padrão de “normalidade” pré-pandemia, sobretudo ao longo do ano passado. Porém, até Dezembro de 2021 nunca se chegou a ultrapassar os 20 mil dias de internamento em qualquer mês, algo que sucedeu por vezes no período 2017-2019.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Ocidental desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Fora dos grandes centros urbanos, alguns centros hospitalares também mostraram este padrão. Foi o caso do de Tondela-Viseu. Neste caso, a queda de dias de internamento no início da pandemia foi mais curto – apenas entre Abril e Setembro de 2020 –, mas quando se pensava que os valores deste indicador começariam a estar próximos da “normalidade”, houve nova e mais persistente queda. No último mês do ano passado contabilizaram-se apenas 8.241 dias de internamento, uma queda de 58% face ao mês com maior pressão hospitalar desde 2017 (Julho de 2019).

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Tondela-Viseu desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Muito parecida foi a evolução das unidades de saúde na Região Autónoma da Madeira: uma descida abrupta em Abril de 2020, seguindo-se uma “recuperação” para níveis próximos da “normalidade” pré-pandémica, que perdurou até Março de 2021. A partir desse mês registou-se uma queda acentuadíssima, com o valor de Dezembro do ano passado a rondar apenas os seis mil dias de internamento.

    Número de dias de internamento em cada mês nas unidades de saúde da Madeira desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No concelho do Porto observaram-se duas situação muito díspares. No Centro Hospitalar Universitário do Porto, que integra o Hospital de Santo António, registou-se mesmo, após o “susto” inicial de Abril de 2020, um aumento da média de dias de internamento, com um pico em Outubro daquele ano. Porém, a partir de Agosto do ano passado, este indicador desceu para valores bastante baixos, inferiores a 15 mil dias de internamento.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Porto desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Já no outro hospital da cidade do Porto, o do São João, o cenário foi bastante diferente: apenas os meses de Abril, Maio e Junho de 2020 se registaram dias de internamento abaixo da “normalidade” pré-pandemia, ficando depois sempre em valores sensivelmente idênticos ao período 2017-2019.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de São João desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Na mesma linha se encontra o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – que integra os hospitais de Faro, Portimão e Lagos –, que após uma repentina descida de um pouco mais de 20% nos dias de internamento entre Março e Abril de 2020, foi depois caminho para uma “normalidade” pré-pandémica.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Algarve desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No Hospital Amadora-Sintra a situação também foi quase similar. Se antes da pandemia o número de dias de internamento se situava quase sempre entre os 20 mil e 25 mil dias por mês, a emergência da covid-19 provocou um abaixamento nas hospitalizações, com o mínimo a ser atingido em Junho de 2020 (16.381 dias). A partir desse mês, o crescimento tem sido gradual, mas ainda não chegou sequer aos 23 mil dias de internamento.  

    Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Amadora-Sintra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No Hospital Garcia de Orta, em Almada, a pandemia não trouxe alterações relevantes na pressão hospitalar. É certo que houve uma queda percentualmente relevante logo no início da pandemia (entre Março e Abril de 2020), mas a a seguir as variações estão dentro de um padrão de “normalidade”.

    Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Garcia de Orta (Almada) desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Situação semelhante se viveu no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro – que integra os hospitais de Vila Real, Chaves e Lamego. Houve, efectivamente, uma queda na pressão hospitalar acentuada nos primeiros meses da pandemia, passando de cerca de 14 mil dias de internamento em Março de 2020 para 10 mil em Maio daquele ano, mas depois os valores regressaram aos padrões de “normalidade”.

    Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Por fim, o Hospital de Braga foi o único, de entre os seleccionados, que acabou o ano de 2021 com níveis de pressão, medidos em termos de dias de internamento, ligeiramente acima do “normal” antes da pandemia. No mês de Dezembro do ano passado registaram-se 20.294 dias de internamento, o segundo valor mensal mais elevado desde 2017.

    No entanto, o percurso deste hospital nortenho foi semelhante aos demais com a chegada da pandemia: queda abrupta dos internamentos entre Março e Abril de 2020. Depois continuou sempre em crescimento até atingir valores ligeiramente acima da “normalidade”.

    Número de dias de internamento em cada mês no Hospital de Braga desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em suma, a análise do PÁGINA UM mostra, com base em dados oficiais, que foi criado um mito em redor de uma alegada existência de uma pressão hospitalar incomportável criada pela pandemia, e que justificaria restrições sociais e a suspensão de operações programadas.

    Na verdade, uma das explicações para esta quebra nos internamentos em grande parte dos hospitais será mesmo a redução de intervenções cirúrgicas programadas, e que resultariam em internamentos de recuperação. Quais as consequências destes adiamentos? O Ministério da Saúde poderá, certamente, responder. Ou melhor, deveria responder.

    Será que alguma vez irá responder?

  • Pandemia fez descer mortes por cancros em meio hospitalar para níveis atípicos: parodoxo ou embuste?

    Pandemia fez descer mortes por cancros em meio hospitalar para níveis atípicos: parodoxo ou embuste?

    Os especialistas em oncologia têm estado a alertar para a elevada probabilidade de um aumento significativo de mortes por cancros devido à instabilidade e decisões do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, que levou à redução dos rastreios, diagnósticos e tratamentos. Porém, a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS mostra um surpreendente paradoxo: nunca como nos últimos meses se morreu tão pouco nos hospitais por causa de cancros. Ou os doentes terminais andam a ser enviados para casa ou há embuste…


    Em cerca de dois anos de presença da covid-19 em Portugal, não cessaram os alarmes nos últimos meses sobre as consequências da gestão da pandemia nos atrasos nos diagnósticos de cancros. No final do ano passado, a Organização Europeia contra o Cancro estimou que mais de 100 milhões de rastreios não se tinham realizado ao longo de 2020 e 2021 no Velho Continente.

    Em Portugal, os especialistas na área Oncologia têm alertado para a iminência de uma “pandemia” de cancros, e de mortes, por via da suspensão e atraso de rastreios e diagnósticos, tanto por razões políticas como pelo medo de muitas pessoas em frequentarem unidades de saúde.

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    Porém, Portugal é um país sui generis. De acordo com a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, disponível no Portal da Transparência, o mês com menos mortes causadas por neoplasias foi Janeiro deste ano, o último com informação desde 2017. Mas este não foi caso esporádico.

    De acordo com a análise da informação realizada pelo PÁGINA UM, a redução da mortalidade causada pelos mais diversos cancros tem sido anormalmente baixa desde o início da pandemia da covid-19, em Março de 2020. Com efeito, no período pré-pandemia – e desde Janeiro de 2017, data do início do registo –, os óbitos em meio hospitalar por neoplasias situavam-se entre os 800 e os 1050 por mês. Ou seja, sem grandes oscilações.

    Geralmente, os valores ligeiramente mais baixos observavam-se no Inverno, mas por uma razão simples: devido à fragilidade de muitos doentes oncológicos, muitas mortes são “antecipadas” por outro tipo de doenças, sobretudos infecções respiratórias como as pneumonias. Ora, tal significava que as doenças respiratórias acabavam por ser consideradas, em alguns casos, a causa do óbito, e não os cancros.

    Em todo o caso, com a chegada da covid-19 em território português, as mortes por cancro tiveram uma queda acentuada. Em Março de 2020, os óbitos desceram para 758. Comparando com os meses homólogos do período anterior à pandemia foi uma descida significativa: em 2017 tinham morrido 914, em 2018 foram 873 e em 2019 situaram-se nos 955.

    Óbitos totais por mês, por neoplasias, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em Abril de 2020, os óbitos por cancros registados em meio hospitalar ainda desceram mais: somente 678. Nos meses seguintes, apesar de os valores subirem ligeiramente nunca superaram os 830 óbitos.

    Com o Outono e Inverno de 2020-2021 – que marcaria o período mais crítico da pandemia, com as mortes por covid-19 a subirem, atingindo, em alguns dias de Janeiro valores a rondarem os 300 óbitos –, os desfechos fatais atribuídos aos cancros reduziram ainda mais. No período compreendido entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021, óbitos mensais situaram-se entre os 700 e os 750. No total, neste trimestre registaram-se 2.173 óbitos por cancro, uma descida de 22% em relação ao período homólogo anterior.

    No mês de Fevereiro do ano passado, a queda ainda foi mais notória: 514 óbitos, um valor perfeitamente atípico. Nos meses seguintes, o padrão de anormalmente baixa mortalidade por cancros manteve-se. Sempre abaixo dos 750 óbitos até Agosto, e a partir de Setembro ainda mais baixo. No último mês do ano passado, em Dezembro, as mortes por cancro nas unidades de saúde foi de 554. E em Janeiro deste ano situar-se-ia nos 469 óbitos. Note-se que, nos anos anteriores à pandemia, esta doença matou 900, 967, 980 e 933 pessoas, respectivamente no primeiro mês dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – ou seja, antes da pandemia.

    Óbitos por neoplasias registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    O absurdo está assim instalado em Portugal, e será provável que se mantenha, excepto se o Ministério da Saúde esclarecer este paradoxo, que se pode caricaturar: a pandemia “eliminou” mortes por cancro.

    Obviamente, na verdade, haverá duas possíveis explicações, que poderão estar conjugadas, mas em qualquer dos casos são graves.

    Por um lado, um número muito significativo de doentes oncológicos terminais tiveram – e, provavelmente, em muitos casos de forma injustificada – a covid-19 como causa de morte, inflacionado o impacte da pandemia. E, dessa forma, também de forma injustificada, a estatística dos cancros está enviesada, por subestimada.

    Note-se que, nos três anos anteriores à pandemia, as neoplasias causavam por ano cerca de  11 mil óbitos, sem grandes variações, o que é normal face aos padrões epidemiológicos das doenças oncológicas em Portugal. Porém, em 2020 (com nove meses em pandemia) desceu para os 9.398 óbitos, e decaiu ainda mais em 2021: apenas 8.067 – uma descida de 28% face ao triénio anterior à pandemia. São mais de três mil mortes a menos.

    No entanto, como estas estatísticas se referem somente aos óbitos registados em meio hospitalar – e, portanto, não se inclui as mortes de doentes oncológicos ocorridas em residências e lares –, poder-se-á sempre dizer – à falta da divulgação de dados oficiais pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), apesar da existência do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – que os cancros passaram a dizimar menos nos hospitais, porque os doentes terminais foram enviados para casa.

    Mas, se assim fosse – e significando assim que se abandonariam muito doentes à sua sorte nos derradeiros momentos de vida, o que parece pouco provável do ponto de vista humano –, deveriam então esses dados ser fornecidos de forma clara e transparente, permitindo avaliações independentes sobre o verdadeiro impacte da pandemia na evolução dos cancros.

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    Se assim não for, se não houver transparência, se o obscurantismo continuar a imperar, uma coisa é certa: o Governo vai anunciar daqui a uns tempos, com pompa e circunstância, que nunca como antes os problemas oncológicos estiveram controlados.

    E que o Governo conseguiu recuperar todos os atrasos no rastreio, nos diagnósticos e no tratamento dos cancros. E a Estatística, se o Governo quiser, dirá que as pessoas, de facto, até morrem menos de cancro. Morreram de outras coisas, e cada vez mais, mas não de cancro… E isso será o embuste em todo o seu esplendor.

  • Dois anos de pandemia: afinal, menos óbitos em hospitais. E um em cada três mortos por covid-19 sem certificado de óbito em unidades de saúde

    Dois anos de pandemia: afinal, menos óbitos em hospitais. E um em cada três mortos por covid-19 sem certificado de óbito em unidades de saúde

    O PÁGINA UM começa, a partir de hoje, a apresentar um conjunto de análises à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Neste primeiro artigo revela-se que, afinal, houve muitas mortes por covid-19 que “escaparam” a tratamento hospitalar, e que a pressão sobre o SNS foi, na verdade, com excepção de um curto período (Dezembro de 2020-Fevereiro de 2021), atipicamente baixo nos dois anos de pandemia. E essa situação mostra-se evidente sobretudo a partir de Março do ano passado.


    São dados oficiais. Indesmentíveis pelo Ministério da Saúde. Os registos da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) revelam que, durante os dois anos da pandemia (2020-2021) morreram afinal menos pessoas nos hospitais portugueses do que nos dois anos anteriores (2018-2019).

    E apesar de a covid-19 ter constituído um factor de mortalidade importante (12% dos óbitos nas unidades hospitalares) em 2020 e 2021, estranhamente, ou talvez não, uma parte relevante de doenças mortais acabaram por registar fortes quedas.

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    A análise do PÁGINA UM a esta base de dados do SNS – com informação detalhada por mês e mesmo por unidade de saúde, incluindo internamentos e óbitos ocorridos em unidades de saúde – desencadeia uma reflexão sobre a forma como decorreu a estratégia política de gestão da pandemia.

    Nessa medida, vale a pena olhar para a evolução do registo mensal das mortes em meio hospitalar – que, sem prejuízo do aspecto humano relevante, ademais sabendo-se que houve um acréscimo importante de óbitos fora das unidades de saúde –, pois constitui sempre um indicador fundamental em termos de Saúde Pública. Neste caso, nem que seja por permitir aferir indirectamente o grau de pressão e complexidade dos casos a que sujeita o SNS e os seus profissionais.

    Ora, aquilo que se verificou – pegando nos registos das mortes por todas as causas ocorridas em meio hospitalar – é que, com excepção de um curto período, entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, o SNS não denotou uma sobrecarga. No caso de Janeiro de 2021 houve mesmo um evidente colapso com um recorde de 8.590 óbitos. No período anterior à pandemia – e desde 2017, com informação na base de dados do SNS –, nos piores meses contabilizavam-se cerca de seis mil óbitos em meio hospitalar, sobretudo no mês de Janeiro, estando associado aos surtos gripais (causadores de mais mortes por doenças respiratórias) e ao frio (adjuvante de doenças mortais do aparelho circulatório).  

    Óbitos totais por mês, por todas as causas, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Porém, excluído esse trimestre, ninguém que agora surgisse por aqui sem saber que houve uma pandemia poderia dizer que o SNS esteve sob pressão. Pelo contrário: desde Março do ano passado, o número de óbitos mensais registados nos hospitais do SNS foi sempre atipicamente baixo (sempre abaixo dos 4.000). E esta situação observou-se sobretudo com chegada das estações associadas a uma maior mortalidade (Outono e Inverno). Por exemplo, em Dezembro passado apenas se contabilizaram 3.793 óbitos. No mês homólogo dos três anos anteriores à pandemia, os óbitos em meio hospitalar foram muito superiores: 5.089 em 2017, 4.637 em 2018 e 4.561 em 2019.

    O mês de Janeiro deste ano – que já consta da base de dados do SNS – surge com 3.461 óbitos, um valor extraordinariamente baixo, tanto mais que chega a ser inferior aos meses de Verão pré-pandemia.

    Mas uma análise mais detalhada desta base de dados suscita ainda mais perplexidades, e muitos questionamentos.

    E a começar pelo número de mortes causadas pela própria covid-19. Apesar de ter sido considerada uma doença de elevada infecciosidade – que obrigou, na esmagadora maioria dos casos ao internamento de casos moderados e graves –, constata-se que, afinal, morreram nas unidades de saúde até Dezembro de 2021 um total de 12.837 pessoas devido à acção directa do SARS-CoV-2. Este valor é “apenas” 68% do total dos óbitos contabilizados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em 2020 e 2021. Ou seja, dos 18.974 óbitos por covid-19 contabilizados até 31 de Dezembro de 2021, houve 6.137 que faleceram fora de unidades de saúde, em lares ou nas suas residências.

    Óbitos totais por mês, causados por covid-19 (integrados no grupo “Códigos para fins especiais), registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Saliente-se que, na base de dados do SNS, a covid-19 não surge explicitamente como a causa de morte, mas no grupo das doenças catalogada em “Códigos para fins especiais”. A covid-19 e sequelas associadas (código U) são praticamente as únicas doenças mortais inseridas neste grupo, razão pela qual apenas começaram a surgir a partir de Março de 2020.

    Nesse mês, oficialmente morreram nos hospitais portugueses 147 pessoas com esta doença, chegando às 626 no mês seguinte. O período mais negro surgiu, como conhecido, entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2021: no primeiro mês deste período morreram 1.431, em Dezembro 1.643, em Janeiro 3.320 e em Fevereiro 2.512.

    Até final de 2021, em mais nenhum mês se ultrapassaram os 500 óbitos. Em Janeiro deste ano – quando se registou uma vaga de casos positivos, com quase 1,3 milhões de casos –, nos hospitais morreram 560 pessoas por covid-19. No entanto, a DGS anunciou, para esse mês, um total de 1.002 óbitos, o que significa que 44% terão falecido fora de unidades de saúde. Ou então os números terão sido empolados.

    Se causa estranheza esta relevante discrepância entre óbitos por covid-19 em meio hospitalar e fora das unidades de saúde – o que significará que muitos casos graves causados pelo SARS-CoV, susceptíveis de serem (como foram) letais, não terão assim tido tratamento hospitalar –, maior estupefacção surge quando se confronta a mortalidade por grupos de doenças durante a pandemia com o período homólogo anterior.

    Nesta primeira parte, analisamos primeiro as doenças respiratórias – que, supostamente, “beneficiaram” do desaparecimento da gripe e, segundo a DGS, das medidas não-farmacológicas.

    Óbitos totais por mês, causados por doenças do aparelho respiratório, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No período 2018-2019, segundo a base de dados do SNS, contabiliza-se a ocorrência 27.285 óbitos por doenças respiratórias. Ou seja, ainda sem influência do SARS-CoV-2. Com a pandemia, durante os anos de 2020 e 2021, as doenças respiratórias não-covid decaíram para apenas 21.171, uma estrondosa queda de 22,4%. Ou, se se quiser, em valor absoluto 6.114 pessoas.

    Deste modo, se se juntasse a covid-19 às doenças respiratórias, então durante a pandemia (2020-2021) terão ocorrido em meio hospitalar um total de 34.008 mortes, o que contrasta com 27.285 óbitos no período 2018-2019.

    Nesta medida, só por aqui, o impacte líquido da pandemia será muito menor do que propalado: morreu-se muito por uma nova doença, mas, como em consequência “desapareceram” doenças respiratórias que tinham um impacte letal relevante, o saldo não se mostra assim tão elevado.

    Óbitos por doenças do aparelho respiratório registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Contas feitas, em meio hospitalar, o acréscimo líquido é de 6.723 óbitos. Mas atenção: na segunda parte da análise, amanhã, veremos que é redutor estar apenas a usar, para calcular o impacte líquido do SARS-CoV-2, apenas as doenças respiratórias.

    Aliás, nos últimos meses, a evolução da mortalidade das doenças respiratórias tem sido absurdamente atípica. No ano passado, houve apenas um mês (Janeiro) em que se ultrapassou a fasquia das mil mortes por este grupo de causas. Em 2017 houve sete meses; em 2018 registaram-se oito, em 2019 foram seis, e em 2020 foram apenas três, curiosamente os do primeiro trimestre, ou seja, imediatamente antes e no mês da chegada da covid-19 a Portugal.

    Ou seja, literalmente, a covid-19 “sufocou” uma importante parte das doenças respiratórias.

    No passado mês de Janeiro – que já consta na base de dados do SNS –, por doenças respiratórias não-covid foram contabilizadas 632 mortes, um valor completamente irrisório para um mês de Inverno. A título comparativo, em Janeiro de 2017 registaram-se, em meio hospitalar, 2.169 mortes por doenças respiratórias, ou seja, cerca de três vezes mais.

  • Bastonário urologista ‘não perdoa’ a pediatra por opinar sobre Pediatria

    Bastonário urologista ‘não perdoa’ a pediatra por opinar sobre Pediatria

    A Ordem dos Médicos abriu mesmo um processo disciplinar a Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria, por delito de opinião, através de uma queixa de médicos com ligações à indústria farmacêutica. Amil Dias está obrigado a responder até ao final deste mês. Este é já o segundo processo disciplinar intentado contra este especialista pela Ordem dos Médicos durante o mandato de Miguel Guimarães. Sempre por delito de opinião.


    A Ordem dos Médicos, dirigida pelo urologista Miguel Guimarães, decidiu mesmo dar provimento à queixa de 16 médicos – alguns dos quais com fortes ligações à indústria farmacêutica, como Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas – contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria.

    A queixa já foi “processada” pelo Conselho de Disciplina da Regional Sul da Ordem dos Médicos, presidida por Maria do Céu Machado, ex-presidente do Infarmed, e o PÁGINA UM teve conhecimento que a acusação foi já formulada com vista à aplicação de uma sanção. O pediatra Amil Dias tem até ao final deste mês para apresentar defesa.

    O “crime” deste renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: durante a pandemia da covid-19, tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.

    O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.

    Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.

    Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo. O PÁGINA UM sabe, contudo, que nenhum efeito teria: aquele órgão da Ordem dos Médicos não tem poder para destituir membros de um Colégio da Especialidade.

    Mais do que qualquer castigo relevante que possa atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revela o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.

    Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente, razão pela qual o PÁGINA UM está a preparar um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.

    Um exemplo paradigmático foi o Gabinete de Crise contra a Covid-19, dirigido por Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais relações promíscuas com a indústria farmacêutica. Só este ano, Filipe Froes vai já em 18 mil euros recebidos deste sector, aproximando-se assim dos 400 mil euros declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed desde 2013.

    Miguel Guimarães (à direita), urologista e bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro, um dos subscritores da queixa contra Jorge Amil Dias.

    Embora Miguel Guimarães continue sem impor um código de conduta, optando por rodear-se de médicos com ligações à indústria farmacêutica – e a própria Ordem dos Médicos recebeu, no ano passado, cerca de 430 mil euros deste sector –, a sua veia punitiva não tem deixado de latejar contra quem não segue a sua opinião.

    Além deste processo contra Amil Dias, a Ordem dos Médicos intentou, durante a pandemia, diversos processos a membros do denominado grupo Médicos pela Verdade. Até mesmo Fernando Nobre, fundador da AMI e ex-candidato à Presidência da República, foi alvo de um processo disciplinar com proposta de sanção, estando actualmente em fase de recurso.

    Mas mesmo antes da pandemia, durante o “reinado” de Miguel Guimarães, a Ordem dos Médicos começou a querer punir profissionais que simplesmente davam a sua opinião. Um exemplo, apurou o PÁGINA UM, é a carta-aberta, publicada no jornal Público em Outubro de 2019, de um conjunto de 10 pediatras, entre os quais também Jorge Amil Dias, que criticava a então situação problemática das urgências pediátricas.

  • Utentes no Alentejo que recusem vacinas ‘fora de prazo’ não são vacinados com outros lotes e ficam em lista de espera

    Utentes no Alentejo que recusem vacinas ‘fora de prazo’ não são vacinados com outros lotes e ficam em lista de espera

    Os centros de vacinação COVID (CVC) no Alentejo não dão alternativa imediata a quem não queira ser inoculado com doses de lotes que beneficiaram de extensão ad hoc do prazo de validade. Infarmed diz agora que houve autorização da Agência Europeia do Medicamento, mas não disponibiliza o documento nem apresenta justificação para o secretismo da medida. Ministra da Saúde mantém silêncio, não se sabendo sequer quantas pessoas foram vacinadas nestas condições nem sequer como e quem avaliará eventuais efeitos adversos da decisão de maximizar o uso de vacinas apenas para, supostamente, se poupar algum dinheiro.


    Diversos Centros de Vacinação COVID (CVC) do Alentejo que estão a usar lotes de vacina fora de prazo de validade – cuja administração obteve uma autorização informal do Infarmed, através de um simples e-mail enviado em Março, conforme ontem divulgado pelo PÁGINA UM – estão a recusar uma alternativa imediata aos utentes que não queiram ser injectados nessas condições. Se recusarem, as pessoas não são vacinadas com outro lote, e ficam a aguardar convocatória em data incerta.

    Contudo, não é certo que todos os utentes estejam a ser avisados, uma vez que o consentimento informado para a administração destas vacinas é meramente oral, sem comprovativo escrito sobre as condições das vacinas e efeitos adversos previsíveis apresentados de forma quantitativa.

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    Em causa está assim um número indeterminado de doses pertencentes a três lotes específicos de vacinas contra a covid-19, e que receberam uma autorização ad hoc para continuarem a ser administradas após o prazo de validade. São os casos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer (com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente), e ainda do lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna. Para o lote desta segunda vacina, alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.

    Em circunstâncias normais, os frascos destes lotes deveriam ser imediatamente destruídos após esgotar-se o prazo de validade, segundo as normas do “resumo das características do medicamento” – inseridas no Portal Infomed. Porém, em Março, através de uma simples comunicação por correio electrónico à Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, o Infarmed concedeu uma autorização de prorrogação do prazo de validade .

    Essa autorização especial não consta, porém, em qualquer das habituais circulares informativas do Infarmed nem sequer foi introduzida, com identificação dos lotes em causa, no resumo das características do medicamento.

    Ontem à noite, pelas 22:21 horas, o PÁGINA UM recebeu um esclarecimento do Infarmed – por “solicitação do gabinete de comunicação do Ministério da Saúde”, informando que “a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou, este ano, a extensão do prazo de alguns lotes de vacinas contra a COVID-19, em condições de ultracongelação”, acrescentando ainda que “a extensão de prazo, de três meses e de seis meses aplica-se a todos os Estados-membros e tem efeitos retroactivos relativamente a lotes de injetáveis produzidos antes da aprovação.”

    Em vez de uma circular informativa, que esclarecesse e justificasse a medida de prorrogação do prazo de validade, o Infarmed decidiu apenas comunicar por correio electrónico a sua decisão ad hoc à ARS do Alentejo. Ignora-se quantas doses já foram usadas dos lotes em causa.

    No entanto, apesar de reiterado o pedido de indicação dos lotes autorizados, o Infarmed não respondeu. O PÁGINA UM tentou obter informação no site da EMA, mas sem sucesso. Existem, no entanto, autorizações especiais de prorrogação de prazo para certos lotes da vacina da Pfizer pelo National Health Service (NHS), do Reino Unido, mas nenhum dos lotes são aqueles que o Infarmed autorizou ad hoc para o Alentejo.

    O Infarmed também não quis explicar os motivos para não ter sido produzida qualquer circular – como é habitual sempre que formalmente existe uma decisão do Conselho Directivo – sobre esta matéria.

    No seu esclarecimento de ontem, o INFARMED diz apenas que a decisão de “utilização das vacinas” fora do prazo se baseou em “estudos de estabilidade apresentados pelos laboratórios”, mas não os enviou nem nunca os disponibilizou.

    Após a recepção deste esclarecimento, o PÁGINA UM questionou ainda o Infarmed no sentido de saber se o regulador informou a ministra da Saúde sobre a decisão de administrar vacinas fora do prazo sob autorização “especial”. E questionou também o Infarmed sobre se não se estaria perante um “ensaio clínico” ilegal, porquanto, como o PÁGINA UM salientou ontem, nos e-mails entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde do Alentejo prevê-se a monitorização específica das pessoas injectadas com vacinas fora do prazo inicial de modo a avaliar posteriormente os efeitos adversos e a efectividade vacinal.

    O PÁGINA UM também insistiu, junto dos três assessores de imprensa da ministra da Saúde, Marta Temido, para saber se o Governo tinha conhecimento deste expediente autorizado pelo Infarmed, para conhecer se outras ARS foram abrangidas, quantas pessoas tinham sido vacinadas com estes lotes e se esta estratégia será mantida. Não houve, até agora, qualquer resposta.

  • Infarmed autorizou uso de vacinas (contra a covid-19) fora do prazo de validade, e contrariando normas dos fabricantes.

    Infarmed autorizou uso de vacinas (contra a covid-19) fora do prazo de validade, e contrariando normas dos fabricantes.

    No Alentejo, foram administradas a um número indeterminado de pessoas vacinas contra a covid-19 fora do prazo. A decisão foi tomada no passado mês de Março em articulação entre o Infarmed e a Administração Regional de Saúde daquela região, mas sem base legal e contra as normas dos fabricantes. Apesar de garantir ser um processo seguro, o Infarmed acabou por estabelecer a obrigatoriedade de recolha de informação sobre as pessoas injectadas com estes lotes para posterior avaliação de eventuais acréscimos dos efeitos adversos ou de redução da efectividade vacinal. O PÁGINA UM revela os lotes das vacinas da Pfizer e da Moderna que foram injectadas já depois de expirar o prazo de validade. O Ministério da Saúde (ainda) não comentou se sabia desta decisão nem esclareceu (ainda) se houve mais lotes fora do prazo usados em outras regiões do país.


    O Infarmed autorizou o uso de três lotes de vacinas contra a covid-19 fora do prazo de validade em centros de vacinação do Alentejo durante o mês de Março e Abril, em condições que aparentam um ensaio clínico não autorizado, que não cumpre os mínimos princípios éticos e de consentimento informado.

    De acordo com mensagens electrónicas a que PÁGINA UM teve acesso, na noite de 14 de Março passado a directora do Departamento de Contratualização da Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, Sandra Silva, informou diversos responsáveis daquela região que “tendo em consideração as quantidades de vacinas existentes nas ARS com prazo de validade excedido”, o Infarmed tinha autorizado a sua utilização.

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    Em causa estava um número indeterminado de frascos dos lotes FP9632 e 1F1047A da vacina Comirnaty/Pfizer, com prazo de validade até 14 de Março e 5 de Março, respectivamente, e ainda um lote 000063A da vacina Spikevax/Moderna, sendo que alguns frascos tinham expirado o prazo de validade em 27 de Fevereiro e outros em 4 de Março.

    No e-mail daquela noite, além de acrescentar que seria enviada no dia seguinte “informação mais detalhada”, Sandra Silva transcrevia o parecer do Infarmed, constituído somente por duas frases escritas em português algo macarrónico: “Podem ser utilizadas as referidas vacinas dos lotes abaixo mencionadas por mais 15 a 30 dias apos o prazo de validade expirado de 30 dias referente ao prazo após descongelação, nas condições de 2C a 8C no entanto deverá ser preenchido no sistema Vacinas a administração das referidas vacinas mencionando validade e data de descongelação, de modo a monitorizar reações adversas se as mesmas existirem. Mais se informa que os referidos lotes de vacinas foram avaliados pelo Infarmed no que diz respeito à integridade do mRNA quando libertadas pelo fabricante da vacina”.

    E-mail enviado pela directora do Departamento de Contratualização da ARS do Alentejo na noite de 14 de Março passado, informando sobre a decisão do Infarmed.

    No site do Infarmed não consta qualquer aviso sobre esta matéria. Sobre as condições de conservação das vacinas covid-19, a última actualização é de 3 de Fevereiro deste ano, onde nada consta sobre a possibilidade de alargamento do prazo de validade.

    E no Portal Infomed, e no caso do resumo das características do medicamento da vacina Comirnaty/Pfizer, além de se elencar de forma exaustiva as exigentes condições de conservação, salienta-se que, após descongelação, “os frascos para injectáveis por abrir podem ser conservados durante um total de 10 semanas a uma temperatura entre 2 oC e 8 oC, nunca ultrapassando o prazo de validade (VAL) impresso”.

    No caso especifico da Spikevax/Moderna, o resumo das características do medicamento no Portal Infomed vão no mesmo sentido: “Não utilize esta vacina após o prazo de validade impresso no rótulo após VAL [prazo de validade]. O prazo de validade corresponde ao último dia do mês indicado”.  

    Em todo o caso, nunca fazendo referência às indicações dos fabricantes, na manhã do passado dia 15 de Março, a directora de Inspecção e Licenciamentos do Infarmed, Maria Fernanda Ralha, enviou um e-mail para ARS do Alentejo, explicitando melhor a “autorização” concedida.

    Na mensagem aquela responsável do Infarmed garantia que “os referidos lotes das vacinas Comirnaty adulta e Spikevax mantém-se estáveis assumindo-se que nenhuma das outras condições de conservação/transporte aprovadas foi excedida [e que] poderão eventualmente se manter , por mais 15-30 dias, para além da validade aprovada quando as vacinas forem mantidas entre 2ºC e 8ºC desde a sua descongelação” (sic).

    Maria Fernanda Ralha sugeria também que, “pela natureza destas vacinas COVID-19 e pelos dados de estabilidade disponíveis para outros lotes”, não se antevia para estes lotes fora de prazo “problemas de segurança”, mas em seguida acrescentava que “há no entanto que estar atentos a eventuais notificações de reações adversas em utentes que receberão estas doses pelo que é recomendado o registo deste desvio às condições aprovadas na plataforma Vacinas”. (sic)

    Nessa medida, esta responsável do Infarmed acabou por instruir os responsáveis da ARS do Alentejo para tomarem obrigatórios “procedimentos, tendo em conta a salvaguarda da saúde pública”, entre os quais o registo na plataforma Vacinas da data de descongelação e administração da dose da vacina fora de prazo, de modo a ser possível uma “futura avaliação da efetividade vacinal e eventuais questões de farmacovigilância decorrentes destes desvios”.

    Ou seja, assumia subliminarmente que não existiam certezas sobre a inocuidade do prolongamento do prazo de validade nem tão-pouco se ficaria afectada a protecção vacinal.

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    Esta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo não se deveu a qualquer quebra de stock de vacina. Pelo contrário, tem sido a fraca adesão às doses de reforço, sobretudo da população abaixo dos 50 anos, que tem causado “sobras” e, portanto, risco de partes de lotes expirarem o respectivo prazo de validade. Tanto assim é que a responsável do Infarmed recomendou que “as vacinas descongeladas e cujo prazo de validade aprovado já foi ultrapassado devem ser usadas antes de vacinas descongeladas em qualquer uma das datas subsequentes e só quando terminar o stock existente se passe para as vacinas descongeladas noutros dias”. (sic)

    O PÁGINA UM contactou Maria Fernanda Ralha, directora de Inpecção e Licenciamentos do Infarmed, que não quis fazer comentários sobre este assunto, alegando estar de férias e que todas as informações respeitantes às vacinas contra a covid-19 deveriam ser fornecidas pela Direcção-Geral da Saúde.

    Também o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, foi questionado sobre se tinha conhecimento desta decisão do Infarmed e da ARS do Alentejo, e sobre quantas pessoas tinham sido vacinadas com vacinas fora do prazo de validade. E também se questionou o Ministério da Saúde sobre se noutras regiões se tinha usado similar procedimento, e se sim, se este procedimento seria mantido no futuro. Não houve, até agora, qualquer reacção.

  • Máscaras para que te quero…

    Máscaras para que te quero…

    O fotógrafo André Carvalho percorreu, para o PÁGINA UM, as ruas de Lisboa e Porto à cata de gente. Apanhou céu limpo, azul, e ar limpo; nem tanto assim, porque nas cidades há tráfego e, apesar de preços dos combustíveis de cortar a respiração, gases dos escapes. E gente ainda de máscaras, inspira; muitas máscaras, expira. Ainda. De sentados e de levantados.


    LEVANTAR… INSPIRAR

    SENTAR… EXPIRAR

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