Categoria: Exame

  • Mesmo quando as temperaturas são amenas, há excesso de  mortalidade. Média diária anda nos 328 óbitos, mais 53 do que no ano passado

    Mesmo quando as temperaturas são amenas, há excesso de mortalidade. Média diária anda nos 328 óbitos, mais 53 do que no ano passado

    Governo, certos peritos e media mainstream insistem na tónica do excesso de mortalidade causada pelas temperaturas elevadas. E se é certo que o calor extremo pode, em muitas circunstâncias, contribuir ainda mais para piorar a situação, uma análise estatística do PÁGINA UM comprova, analisando somente os dias sem “anomalias térmicas”, que o excesso de mortalidade é estrutural. Mesmo sem tempo quente, o morticínio vai continuar. Até quando? Até quando o silêncio do Governo? Até quando o silêncio (cúmplice) da Procuradoria Geral da República?


    Nem um milagre livrará já Portugal de chegar ao final de Julho com o nono mês consecutivo sempre com a mortalidade total acima da fasquia dos 10 mil óbitos – um fenómeno inédito na História de Portugal, e que não está relacionada com qualquer fenómeno meteorológico, revelando sim um gravíssimo problema estrutural de Saúde Pública ignorado e “abafado” pelo Governo.

    De acordo com a análise estatística do PÁGINA UM, mesmo faltando contabilizar cinco dias para se concluir Julho, está garantido que a mortalidade por todas as causas ficará bem acima dos 10.000 óbitos. E será praticamente garantido que superará Julho de 2020 – já então marcado por uma mortalidade inusitada devida, apenas em parte, ao tempo quente.

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    O Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) indicava, até ao dia de ontem, 9.036 óbitos acumulados no mês em curso, um valor superior em 243 mortes ao então registado há dois anos entre 1 e 26 de Julho. Mesmo assumindo um forte abaixamento da mortalidade diária entre hoje e domingo, para níveis em redor do primeiro quartil deste mês (318), o total deverá rondar os 10.600 óbitos – algo inimaginável nesta época do ano, ainda mais tendo em conta a sucessão de meses em excesso de mortalidade.

    Há dois anos Julho terminou com 10.425 óbitos, ultrapassa-se pela primeira vez este limiar. Saliente-se que, por norma, os meses de Verão são pouco “letais”, sendo Setembro aquele onde se regista um menor número de mortes.

    Mortalidade total no mês de Julho (até dia 26) entre os anos de 2009 e 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    As análises do PÁGINA UM também demonstram ser uma perigosa falácia manter a ideia de ser o tempo quente – e as alterações climáticas – que justificam o excesso de mortalidade, porque tal percepção faz transparecer a ideia de que, terminando as temperaturas elevadas, a situação se “regularizará”. Não é verdade, de todo, em especial quando se cruza a mortalidade diária com os valores do Índice Ícaro.

    Calculado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), entre Maio e Setembro de cada ano e – ainda disponível, desde 2020, no Portal da Transparência do SNS, podendo ser a qualquer momento retirado para “análise interna” por iniciativa de algum burocrata –, este índice apresenta o risco potencial de morte associado a elevadas temperaturas.

    Mortalidade total nos últimos nove meses em Portugal. Mês de Julho é uma estimativa com valores reais até dia 26 e assumindo que os restantes cinco dias terão, em média, o valor do primeiro quartil deste mês (311 óbitos). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Contudo, permite também análises interessantes quando se confrontam períodos em que esse índice é zero – ou seja, quando não há qualquer efeito do calor extremo associado à mortalidade. Deste modo, consegue-se, de uma forma simplista mas rápida, conhecer a “mortalidade base” expurgada da meteorologia, comprovando assim a existência ou não de um problema estrutural de Saúde Pública.

    Ora, cruzando os valores diários do Índice Ícaro com a mortalidade, desde 1 de Maio até 26 de Julho, observa-se que, efectivamente, o ano de 2022 está a apresentar um perfil de temperaturas elevadas bastante superior ao ano passado, mas apenas ligeiramente acima de 2020. Com efeito, este ano já se contabilizaram 34 dias com o Índice Ícaro acima de 0, cinco dias mais do que em 2020, e 17 dias mais do que em 2021. No caso de dias com o Índice Ícaro acima de 0,40, no ano passado não se contabilizou nenhum, enquanto este ano já se observaram sete dias, enquanto em 2020 foram cinco.

    Distribuição dos óbitos diários em função dos valores do Índice Ícaro entre 1 de Maio e 26 de Julho para os anos de 2020, 2021 e 2022. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.

    Contudo, sendo certo que um Índice Ícaro efectivamente resulta num incremento da mortalidade – empiricamente, valores acima de 0,40 resultam numa mortalidade diária acima de 350 óbitos, e acima de 0,80 podem ultrapassar os 400 –, também relevante se mostra observar o “perfil de mortalidade diário” quando as temperaturas são normais e amenas. Ora, e é aqui que o ano de 2022 mostra que algo está mesmo muito anormal.

    Com efeito, desde Maio deste ano, mesmo quando o Índice Ícaro está em zero, a mortalidade diária ultrapassou quase sistematicamente os 300 óbitos diários. Este ano, desde Maio, só houve ainda sete dias abaixo desta fasquia, sendo que se registaram 55 dias com Índice Ícaro igual a zero. No ano passado houve 64 dias com mortalidade abaixo de 300 em 71 dias com Índice Ícaro de zero, enquanto em 2020, de entre os 58 dias com temperaturas normais, contabilizaram-se 33 com mortalidade inferior a 300 óbitos.

    Diagramas de caixa para para os dias com Índice Ícaro zero (1 de Maio a 26 de Julho) em 2020, 2021 e 2022, com indicações dos valores extremos, primeiro quartil, mediana e terceiro quartil. Fonte: SICO e Portal da Transparência do SNS. Análise: PÁGINA UM.

    A profunda anormalidade deste ano – que não é fruto de qualquer anomalia meteorológica, apenas se agrava ainda mais quando ocorre uma onda de calor – também se observa numa simples análise estatística descritiva. Com efeito, contabilizando somente os dias com Índice Ícaro zero, constata-se que em mais de 75% dos dias (entre Maio e 26 de Julho), a mortalidade esteve acima de 311 óbitos, enquanto que em 2020 – para similar “perfil de temperaturas” – a mortalidade acima de 311 óbitos registou-se apenas em 25% dos dias.

    Se compararmos medianas da mortalidade diária para os três anos – lidas como representando o valor a partir do qual se observou em metade dos dias – para os períodos em que o Índice Ícaro foi de zero, então ainda se constata que o Portugal de 2022 está estruturalmente doente. Com efeito, este ano, a mediana da mortalidade nesta condições (tempo normal sem excesso de mortalidade associado ao tempo quente) é de 312 óbitos (um valor absurdamente alto), que compara com 296 em 2020 e com apenas 276 em 2021.

    A mortalidade média está com valores próximos da mediana: 328 para este ano, sendo de 275 no ano passado e de 293 em 2020. Em anos com maior prevalência de dias de excessivo calor mostra-se habitual a ocorrência de mortalidade ainda excessiva nos períodos subsequentes, mas nunca na dimensão que está a suceder este ano.

  • Corpo Nacional de Escutas exigia certificado digital ou teste em mega-acampamento, mas afinal agora só é uma “recomendação”

    Corpo Nacional de Escutas exigia certificado digital ou teste em mega-acampamento, mas afinal agora só é uma “recomendação”

    Na próxima segunda-feira, inicia-se o 24º acampamento de escuteiros em Idanha-a-Nova. E o Corpo Nacional de Escutas quis ser, em matéria da gestão da covid-19, mais “papista” do que a própria Direcção-Geral da Saúde, impondo “controlo sanitário” prévio de entradas, com distinção entre vacinados/recuperados e não vacinados. Mas, afinal, confrontada pelo PÁGINA UM por via da ilegalidade desta discriminação e falta de sustentação legal e epidemiológica, a organização diz agora que, afinal, não passa de uma “recomendação”.


    O lema cunhado durante a pandemia, “seja um agente de Saúde Pública”, está a fazer escola, e agora multiplicam-se os casos de “exageros de autoridade”, onde entidades sem funções públicas exigem o cumprimento de regras que nem sequer encontram respaldo nem na Ciência nem em normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e muito menos na legislação.

    É o caso do Corpo Nacional de Escutas (CNE) que, num mega-acampamento (ACANAC) em Idanha-a-Nova entre 1 e 7 de Agosto, decidiu implementar plano de contingência “fora-da-lei”.

    Foto: ©Agência Ecclesia

    De acordo com os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, a organização deste evento escutista internacional nomeou um número indeterminado de responsáveis com a função de “assegurar que haja um responsável sanitário (poderá ser o responsável de contingente ou não, mas que deverá estar presente em Campo) que se certifique que cada participante do contingente tem pelo menos uma das seguintes condições: certificado de vacinação completo, ou certificado de recuperação válido, ou teste antigénio negativo 24h [24 horas] antes da entrada no ACANAC”. Esse responsável estaria obrigado a assinar um termo de responsabilidade.

    Em e-mail enviado aos pais dos jovens escuteiros, a que o PÁGINA UM também teve acesso, é salientado o facto de se estar perante um “evento privado e como tal, em articulação com as autoridades de saúde pública locais, considerou-se que seria uma mais-valia para a segurança de todos os participantes que fossem cumpridas algumas regras para entrada” no acampamento.

    Sucede, porém, que tanto em eventos privados como públicos, estas exigências não têm já qualquer enquadramento legal nem introduz qualquer benefício sanitário. Um detentor de certificado digital pode estar, no momento da sua exibição, infectado, pelo que a sua entrada sem teste num acampamento – assumindo-se que os testes em assintomáticos são formas eficazes de prevenção epidemiológica – seria até “perigosa”, ao contrário do que sucederia com um não-vacinado a quem se faria um teste para confirmar que estava negativo.

    Idanha-a-Nova vai receber escutistas a partir de segunda-feira.

    Além disso, recorde-se que, actualmente, o detentor de um certificado digital válido não tem já, na prática, e dentro do território nacional, qualquer “direito suplementar” ou benefício face às pessoas não-vacinadas ou que, sendo recuperadas ou recebido doses de vacinas, excederam o prazo do certificado. Todas as normas – algumas de constitucionalidade duvidosa e de eficácia preventiva questionável – que limitavam o acesso apenas a detentores do certificado válido e/ou exigiam, em complemento ou alternativa, um teste ao SARS-CoV-2 foram caindo nos últimos meses.

    Mesmo desde o dia 1 deste mês, por despacho governamental “deix[ou] de ser exigido aos passageiros que entrem em território nacional a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou a apresentação de certificado digital COVID UE ou de certificado de vacinação ou recuperação emitido por países terceiros, aceite ou reconhecido em Portugal”.

    Confirmando ao PÁGINA UM as exigências para a entrada no acampamento que se inicia na próxima segunda-feira, o coordenador de comunicação externa do CNE, Henrique Ramos, diz que a organização pretendeu “garantir o cumprimento de todas as condições de segurança para os participantes, sendo aplicadas e postas em prática pela Equipa Organizadora e de Serviço, todas as medidas que o possam garantir”.

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    Henrique Ramos acrescenta ainda que “quer na preparação quer na realização do ACANAC 2022”, se pretendeu que fossem “implementadas todas as medidas vigentes à data”, daí que “com o objetivo de diminuir o risco de contágio entre os participantes, decidiu a Equipa Organizadora do ACANAC solicitar aos agrupamentos participantes que se certificassem que cada participante do seu contingente não constituísse um risco para os restantes participantes.”

    Porém, o porta-voz da CNE acaba por admitir que, “como estas condições não serão confirmadas pela organização, esta solicitação [exigência de certificado ou de teste prévio para acesso ao acampamento] assume na prática a forma de recomendação, sendo que por esse motivo nenhum participante será impedido de participar na maior festa do escutismo em Portugal.”

    O PÁGINA UM contactou a DGS para comentar esta situação, mas mesmo com insistências, não obteve resposta, como quase sempre sucede.

  • Bancos “estrangulam” empresas de criptomoeda

    Bancos “estrangulam” empresas de criptomoeda

    Intensifica-se o boicote da banca às empresas de criptomoedas, mesmo se estas têm licença do Banco de Portugal para actuar no mercado nacional. As contas bancárias são encerradas sem justificação plausível e algumas empresas de activos virtuais já ficaram impedidas de trabalhar por não conseguir fazer movimentos bancários. A instituição liderada por Mário Centeno diz que, “sem prejuízo do acompanhamento que está a fazer ao assunto”, nada pode fazer, porque a decisão de abrir ou manter contas bancárias cabe aos bancos. A Caixa Geral de Depósitos coloca as empresas de criptomoedas ao nível dos dealers.


    Têm licença do Banco de Portugal para operar, mas os bancos ‘cortam-lhe as pernas’: recusam abrir contas bancárias ou, permitindo a sua abertura, acabam por as encerrar. O problema não é de hoje e atinge as empresas relacionadas com a atividade de criptoativos, mas o “boicote” de bancos tem-se vindo a intensificar este ano, de forma inaudita, segundo as sociedades registadas em Portugal.

    No geral, já todas as empresas licenciadas tiveram que lidar com a rejeição de bancos, mas insistem em prosseguir. Atualmente, são cinco as sociedades que detêm licença para operar em Portugal: a Luso Digital Assets; a Criptoloja, a Mind the Coin, A Bison Digital Assets e a UTrust.

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    Desde setembro de 2020, este tipo de empresas tem de se registar junto do Banco de Portugal, que, tal como sucede com a banca tradicional, tem a responsabilidade de supervisionar as sociedades gestoras de ativos virtuais na prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo (BC/FT).

    Aqui estão abrangidas empresas que operem nas áreas de “serviços de troca entre ativos virtuais e moedas fiduciárias ou entre um ou mais ativos virtuais”. Na prática, passaram a estar sob supervisão da instituição liderada por Mário Centeno as empresas que prestem “serviços de transferência de ativos virtuais e serviços de guarda ou guarda e administração de ativos virtuais ou de instrumentos que permitam controlar, deter, armazenar ou transferir esses ativos, incluindo chaves criptográficas privadas”.

    Uma das empresas já registadas, a Mind The Coin, sedeada em Braga, foi forçada a parar a sua atividade durante dois meses, entre Abril e Maio deste ano, por não conseguir ter uma conta bancária em Portugal. O facto de ter licença e de ser supervisionada em termos de BC/FT não convenceu os bancos. “Ter o selo do Banco de Portugal vale zero para os bancos”, disse Pedro Guimarães, co-fundador da empresa, ao PÁGINA UM.

    Apesar do mito de ser um mundo anónimo, em Portugal para deter conta e comprar criptomoedas mostra-se necessário registos complexos que obrigam à introdução de elementos identificativos controláveis pelo Estado.

    Esta sociedade conseguiu voltar ao ativo após ter conseguido abrir conta num banco no Reino Unido, depois de “correr todos os bancos” em Portugal. “Falámos com o Banco de Portugal várias vezes e respondem com a linguagem legal específica, e a nossa posição não é protegida”, frisa o gestor.

    Nesta matéria, a posição do Banco de Portugal mostra-se clara. Em resposta a questões do PÁGINA UM, o supervisor financeiro indicou que “sem prejuízo do acompanhamento que o Banco de Portugal está a fazer ao assunto, importa ter em conta que as suas competências em matéria de exercício de atividades com criptoativos se circunscrevem à Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (e regulamentação que a concretiza), não se alargando, por isso, a domínios que extravasem a prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo”.

    A instituição liderada por Mário Centeno lembra que “a proteção referente ao acesso a contas detidas junto de uma instituição de crédito, (…) não se aplica às entidades que exerçam atividades com ativos virtuais, pelo que a decisão de abrir ou manter contas bancárias depende, nestes casos, das políticas de gestão do risco que cada instituição bancária entenda empreender”. Na prática, o que o supervisor diz é que não pode obrigar bancos a abrir portas a empresas de ativos virtuais legalmente licenciadas e supervisionadas pelo Banco de Portugal.

    Mesmo assim, algumas das empresas de criptomoedas com licença para operar em Portugal ainda têm contas abertas em bancos no país, mas com mudanças de estratégia. “Já tivemos contas a serem fechadas em quase todos os bancos. Agora temos parceiros bancários em Portugal”, afiançou Ricardo Felipe, co-fundador da Luso Digital Assets e vice-presidente da Associação de Blockchain e Criptomoedas. Mas o risco de poderem ver as suas contas encerradas está omnipresente.

    Banco estatal é o mais radical

    Apesar de se estar, na verdade, perante empresas registadas e supervisionadas pelo Banco de Portugal, os bancos continuam a usar como principal argumento o alegado “perigo” de branqueamento de capitais para recusar a abertura ou manutenção de contas daquelas empresas. 

    Em alguns casos, os bancos nem sequer explicam por que recusam a abertura de conta ou por que motivo a encerram. “Não lhes compensa o tempo e os recursos que teriam de gastar para reforçar as medidas de diligência. Pensam que iríamos dar-lhes muito trabalho”, salienta Pedro Guimarães.

    Responsáveis das empresas apontam que já falaram com todos os bancos no país. As que conseguem ter conta aberta, anseiam pelo futuro. O caso mais estranho é o da Caixa Geral de Depósitos que colocou nos seus “Princípios de Aceitação de Clientes”, a proibição da abertura de contas a empresas de ativos virtuais. No documento do banco, estas empresas – mesmo estando licenciadas pelo Banco de Portugal, e sob sua supervisão – estão incluídas numa lista que inclui empresas com “atividades ligadas ao entretenimento de adultos” e entidades “ligadas à produção e comércio de drogas”.

    Postura da Caixa Geral de Depósitos, um banco público, é irredutível, por agora: empresas de criptomoedas não entram.

    Em declarações ao PÁGINA UM, um porta-voz do banco público respondeu que “a atividade de emissão e comercialização de moedas virtuais não é ilegal ou proibida, mas estes ativos virtuais não são garantidos por qualquer autoridade nacional ou europeia”.

    Ou seja, a sua aceitação pelo valor nominal não é obrigatória e, por isso, “as respetivas transações podem ser utilizadas indevidamente, em atividades criminosas, incluindo de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo (BC/FT)”, acrescenta a mesma fonte.

    “Por outro lado, a competência exercida pelo Banco de Portugal relativamente às entidades que exerçam as atividades com ativos virtuais acima referidas se circunscreve à prevenção do BC/FT, não se alargando a outros domínios, de natureza prudencial, comportamental ou outra”, adiantou.

    Não sendo tão “radical” como a CGD, o Santander tem sido um dos bancos que está a recusar abrir ou manter contas de empresas de criptomoedas. Ao PÁGINA UM, uma fonte oficial desta instituição financeira indicou que “relativamente à abertura e manutenção de contas, o banco age de acordo com a sua perceção de risco, aplicando as medidas e os procedimentos necessários para dar cumprimento ao regime legal vigente, no estabelecimento de novas relações de negócio e na manutenção das atuais”. “Nessa medida, na decisão de abrir ou manter uma conta são devidamente considerados diversos factores directa e indirectamente relacionados com cada potencial cliente”, frisou.

    A situação tem-se tornado assim paradoxalmente caricata.

    As empresas do sector das criptomoedas com licença do Banco de Portugal podem operar em Portugal? Sim.

    São supervisionadas em matéria de prevenção de BC/FT? Sim.

    Então conseguem operar normalmente em Portugal? Não.

    “O Estado obriga-nos a ter uma licença e a pagar uma auditoria caríssima. Aquilo que se está a passar é um escândalo”, sintetiza Pedro Borges, fundador e CEO da Criptoloja.

    “Sem conta bancária, como pago a fornecedores, como contrato pessoas, como pago impostos?” questiona, por sua vez, Filipe Castro, co-fundador da Utrust, uma plataforma de pagamentos em criptomoedas. O empreendedor relembra que o Banco de Portugal leva quase um ano para atribuir licenças a empresas de criptomoedas, num processo moroso que custa milhares de euros. “O processo não serve, afinal, para nada”, lamentou.

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    Para Ricardo Felipe, na prática, “a lei não prevê a garantia de viabilidade” das empresas de criptomoedas que se registam em Portugal face à atitude da banca tradicional.

    No busílis desta questão está sempre o tema do branqueamento de capitais, em parte devido ao mito da “facilidade” em esconder “dinheiro” das autoridades, embora acabe por se revelar se (e quando) houver conversão para uma moeda fiat, por exemplo, euros ou dólares.

    De facto, as moedas digitais podem ser atractivas para criminosos. O uso de criptomoedas para práticas ilícitas atingiu um novo recorde histórico em 2021, com endereços ilícitos a receber 14 mil milhões de dólares (13,7 mil milhões de euros) naquele ano. O valor é quase o dobro dos 7,8 milhões de dólares (7,6 mil milhões de euros) observados em 2020, ano em que o crime baseado em criptomoedas afundou, segundo o mais recente relatório anual sobre crime envolvendo criptomoedas, elaborado pela consultora Chainalysis.

    No entanto, o sector da banca também tem sido um veículo privilegiado no branqueamento de capitais. Por exemplo, uma análise da agência Moody’s concluiu que grandes bancos europeus foram alvo de multas de 16 mil milhões de dólares (actualmente, o equivalente a 15,7 mil milhões de euros), entre 2012 e 2018, por estarem envolvidos em lavagem de dinheiro e quebra de sanções.

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    Mais bancos foram multados desde então acusados de lavagem de dinheiro. Recentemente, foi a vez do Credit Suisse de receber uma sentença da Justiça e ter de pagar uma multa de dois milhões de francos suíços por ter ajudado uma rede de tráfico de droga búlgara a lavar dinheiro. Outra forma utilizada para branquear capitais pode ser o imobiliário, cujos preços em Portugal beneficiaram ao longo de anos do boom do programa de Vistos Gold e do turismo local.

    Recorde-se, aliás, que o Banco de Portugal divulgou recentemente que abriu no último semestre 28 processos contra instituições bancárias por infracções a deveres relativos à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

    Também as off-shores, em articulação com instituições financeiras, são veículos com gigantescas dimensões e tentáculos no mundo da lavagem de dinheiro, como ficou bem patente num extenso relatório da União Europeia concluído em 2017, no decurso dos Panama Papers, um escândalo que envolveu mesmo líderes e ex-líderes internacionais.


    N.D. A jornalista não detém atualmente quaisquer activos virtuais. O director do PÁGINA UM controla uma carteira em Bitcoin e Monero (donativos destinados para o PÁGINA UM) num valor, à data de hoje, de apenas 115,84 euros. A empresa que detém o jornal PÁGINA UM tem como sócio (Luís Gomes) um dos co-fundadores da Criptoloja. Luís Gomes, que também é colunista (pro bono) do PÁGINA UM, detém uma quota de 5% do capital do Página Um, Lda., no valor de 500 euros.

  • Nos dois primeiros anos de pandemia, lucros da Germano de Sousa pulam 490%

    Nos dois primeiros anos de pandemia, lucros da Germano de Sousa pulam 490%

    A testagem massiva, por vezes sem critério e a preços exorbitantes, faz de Portugal um dos países que mais gastou à “cata” do SARS-CoV-2, embora os valores não estejam apurados. Sabe-se, contudo, que cerca de dois em cada três testes feitos ao longo da pandemia foram processados apenas nos últimos sete meses, para apanhar a variante Omicron, mais transmissível, mas muito menos letal. Para os laboratórios pode-se dizer que, na verdade, “ficou tudo bem”. Venderam mais, aumentaram margens de lucro, e foi “dinheiro em caixa”. O Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. é um bom exemplo. Para os seus accionistas, claro.


    A estratégia de massificação de testagem à covid-19 seguida por muitos países, sobretudo com o surgimento da variante Omicron, tem enchido os cofres dos laboratórios de análises clínicas. De acordo com dados do Worldometers, Portugal é o sexto país, de entre os 78 com mais de 10 milhões de habitantes, com o maior número de testes. Desde o início da pandemia terão sido realizados cerca de 43,5 milhões de testes, o que significa que cada português realizou, em média, um pouco mais de quatro testes (4,3).

    Este indicador é apenas ultrapassado – no grupo dos 78 países de média e grande dimensão – pelos Emirados Árabes Unidos (17,3 testes por habitante), Espanha (10,1), Grécia (8,5), Reino Unido (7,6) e República Checa (5,2).  

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    Embora não existam números concretos dos gastos com a testagem – nem tão-pouco da distribuição entre gastos do Estado, das autarquias, das empresas e dos particulares –, o PÁGINA UM estimava em Dezembro passado que este mercado já deveria ter movimentado perto de 1.300 milhões de euros em Portugal. No entanto, esses cálculos baseavam-se na quantidade de testes então feitos até 3 de Dezembro de 2021 – um total de 15.884.737, dos quais 39% de antigénio. Esse era já um número quase o triplo dos de 2020 – em que se processaram 5.695.754 testes, quase todos de PCR.

    Deste modo, quase dois terços dos testes (PCR e de antigénio) realizados em Portugal acabaram por ser realizados nos últimos sete meses, sendo que a intensidade de testagem assumiu contornos inimagináveis em Janeiro com uma média diária de cerca de 250 mil testes por dia.

    Em certa medida, essa corrida aos testes observou-se também pela obrigatoriedade de testagem em determinados períodos dos “estados de excepção” e pela “liberalidade” do Estado e de muitas autarquias comparticiparem testes. Por exemplo, em Lisboa houve períodos no início do ano em que era possível realizar até 14 testes por mês, dos quais uma dezena pela autarquia.

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    Saliente-se que a estatística diária da testagem – como muita outra informação ao longo da pandemia – foi “descontinuada” pela Direcção-Geral da Saúde, ou seja, foi intencionalmente retirada por esta autoridade, como já tem sido uma norma para obstaculizar qualquer comparação ou análise cronológica.

    Em todo o caso, sendo evidente que o ano de 2022 será ainda um “ano de ouro” para os principais laboratórios de análises clínicas, certo é que a pandemia lhes tem concedido lucros surpreendentes.

    O PÁGINA UM analisou o relatório e contas do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A. – um dos maiores do país, fundado por este antigo bastonário da Ordem dos Médicos – que viu os seus lucros “explodirem” com a pandemia.

    Em 2018 e 2019 registou lucros de, respectivamente, cerca de 3,9 milhões e 6,0 milhões de euros. Com o primeiro ano da pandemia (2020), os resultados operacionais quase quadruplicaram face ao ano anterior, passando de 8,1 milhões de euros para os 31,1 milhões. O lucro teve idêntico desempenho, atingindo os 23,2 milhões em 2020.

    O ano de 2021 ainda foi melhor. Os resultados operacionais subiram para 48,4 milhões de euros e os lucros atingiram os 35,1 milhões.

    Comparando os dois anos anteriores à pandemia (2018 e 2019), do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa S.A., com os dois primeiros anos em pandemia (2020 e 2021), os lucros pularam de um total de 9,9 milhões de euros para uns impressionantes 58,4 milhões de euros. Ou seja, um crescimento de quase 490% comparando os dois períodos homólogos (2018-2019 e 2020-2021).

    No entanto, também fantástica foi a subida da margem de lucro que, de uma forma simplificada, mede a percentagem retirada por cada euro de vendas ou prestação de serviços. De facto, sendo certo que os laboratórios de Germano de Sousa “venderam” quase três vezes mais nos dois anos da pandemia do que nos dois anos anteriores (189,8 milhões de euros vs. 66,2 milhões), o grande sucesso veio da subida impressionante da margem de lucro.

    Em 2018 foi de 12,7%, passou no ano seguinte para 16,8%, e depois pulou nos anos da pandemia: 31,3% em 2020 e 30,4% em 2021. A venda de testes terá contribuído fortemente para este desempenho financeiro, o que basicamente significa que os preços de venda estiveram fortemente inflacionados.

    O ano de 2022 deverá continuar a reflectir ainda o “bom” efeito-pandemia para os laboratórios.

  • António Morais “descartado” do Infarmed mas Ministério da Saúde “fecha-se em copas”

    António Morais “descartado” do Infarmed mas Ministério da Saúde “fecha-se em copas”

    De forma discreta, o Ministério da Saúde “livrou-se” de António Morais, o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia que se manteve como consultor do Infarmed enquanto mantinha relações milionárias com a indústria farmacêutica. O Ministério da Saúde mantém o silêncio sobre medidas para acabar com a promiscuidade entre médicos e o sector dos medicamentos.


    O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, deixou de ser, desde a passada quinta-feira, consultor do Infarmed. Alvo de um inédito processo de contra-ordenação – o primeiro a ser aplicado a um presidente de uma sociedade médica por violação do regime de incompatibilidades –, António Morais era consultor da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde desde Abril de 2016, tendo este afastamento sido confirmado ao PÁGINA UM apenas ontem à noite pelo conselho directivo do Infarmed.

    O despacho desta cessação como consultor deste pneumologista, que preside à SPP desde início de 2019, foi publicado no Diário da República na passada quarta-feira, dia 13, tendo a assinatura do secretário de Estado-adjunto e da Saúde, o também médico Lacerda Sales.

    António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

    Nessa decisão não consta o motivo daquela cessação, que também abrangeu João Almeida Lopes Fonseca – professor da Faculdade de Medicina do Porto e fundador da MEDIDA, uma spin-off daquele estabelecimento de ensino superior – e a farmacêutica Maria Piedade Braz Ferreira, directora do serviço de gestão técnico-farmacêutica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

    O Infarmed não quis adiantar se o afastamento está directamente relacionado com a abertura do processo contra-ordenacional decidido pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) contra António Morais no decurso das investigações jornalísticas do PÁGINA UM.

    Durante o seu 37º Congresso, em Novembro do ano passado, a SPP publicou um jornal diário. Na edição nº 2, António Morais cumprimenta o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, que agora lhe fez o despacho de cessação de funções.

    Por seu turno, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) somente respondeu ao PÁGINA UM após a publicação da primeira versão desta notícia, pelas 21:21 horas, por e-mail, informando que António Morais deixou de ser consultor em 2018, “informação que foi comunicada à IGAS”.

    No entanto, o seu nome continuava a constar hoje como especialista em doenças do interstício pulmonar do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias. Tanto a DGS como António Morais tiveram diversas oportunidades de esclarecer o PÁGINA UM sobre esta matéria, além de terem a obrigação de manterem dados administrativos actualizados.

    Recorde-se que António Morais está acusado pela IGAS de violar o regime de incompatibilidades, uma vez que se manteve como consultor enquanto presidia a SPP.

    Tal acumulação só seria possível se esta sociedade médica recebesse menos de 50 mil euros por ano, em média no último quinquénio, do sector farmacêutico. Porém, a SPP é uma das sociedades médicas com maiores relações comerciais com esta indústria.  

    No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais, situando-se nos 870.512 euros por ano.

    Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros. Uma parte considerável (320.000 euros) foi um patrocínio único da Pfizer para a promoção da vacina contra a pneumonia pneumocócica em plena campanha de vacinação contra a covid-19, da qual a farmacêutica norte-americana muito beneficiou.

    Este ano, em menos de sete meses, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP já amealhou 541.228 euros – ou seja, uma verba mais do dobro daquela que a SPP poderia receber em cinco longos anos para que António Morais pudesse manter-se como consultor da DGS e do Infarmed.

    António Morais está apenas sujeito a uma multa máxima de 3.500 euros – que, grosso modo, corresponde a três webinares pagos por uma farmacêutica –, mas as implicações legais serão maiores, uma vez que os despachos que tiverem na base as suas recomendações são assim nulos.

    Contudo, este processo coloca ainda maior ênfase na promiscuidade cada vez maior entre certos médicos, a Administração Pública e o sector farmacêutico.

    Filipe Froes é um activo consultor da Direcção-Geral da Saúde, integrando a equipa responsável pelas terapêuticas contra a covid-19, mas só este ano foi já consultor de medicamentos da Gilead, da AtraZeneca e da Merck Sharp & Dohme.

    O PÁGINA UM questionou hoje o Ministério da Saúde se retirava alguma ilação deste processo contra António Morais, e se iria manter como consultores da DGS ou do Infarmed os médicos que são simultaneamente consultores (advisory board) em farmacêuticas. Um exemplo paradigmático dessa situação é o do pneumologista Filipe Froes – e um membro destacado da SPP – que se mantém como consultor da DGS, integrando mesmo a equipa responsável pelas terapêuticas contra a covid-19, enquanto se multiplica em consultadoria de medicamentos em diversas farmacêuticas.

    Froes, que este ano já recebeu quase 30 mil euros de farmacêuticas, exerce as funções de consultor da Gilead (especificamente para o anti-viral contra a covid-19), da AstraZeneca e da Merck Sharp & Dohme.  

    O Ministério da Saúde não respondeu quer ao pedido de esclarecimento enviado ontem quer ao pedido de comentário endereçado hoje. Aliás, um comportamento habitual do gabinete de Marta Temido sempre que são colocadas questões incómodas ou delicadas.


    N.D. Notícia actualizada às 21:53 de 19/07/2022 com e-mail enviado pela DGS às 21:21.

  • Adesão à vacina contra a covid-19 já não é como era

    Adesão à vacina contra a covid-19 já não é como era

    O PÁGINA UM analisou a evolução das taxas de vacinação contra a covid-19 nos últimos dois meses. Quatro em cada 10 idosos com mais de 80 anos ainda não se vacinaram com a quarta dose e a procura é agora muito fraca. Nos outros grupos etários, a taxa de cobertura da terceira dose é também bastante mais baixa do que aquele que se registou para a primeira e segunda doses.


    A adesão ao segundo reforço do programa de vacinação contra covid-19 – ou quarta dose – está a esmorecer junto da população mais idosa, em linha com uma redução significativa da população mais jovem na toma do primeiro reforço (terceira dose).

    De acordo com os mais recentes dados semanais da Direcção-Geral da Saúde (DGS), na semana de 5 a 11 de Julho apenas terão sido vacinadas cerca de 54 mil pessoas. Destas pouco menos de sete mil eram idosos com mais de 80 anos, os elegíveis para a toma do denominado segundo reforço. A maioria das pessoas que, naquela semana, se deslocaram aos centros de vacinação foi para a terceira dose, dos quais quase oito mil com idade entre os 18 e os 24 anos, e cerca de 33 mil com idade entre os 25 e os 49 anos.

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    Ainda houve, neste período, quase 6.500 crianças entre os 5 e os 11 anos que tomaram a segunda dose para concluir o processo de vacinação completa. Saliente-se, aliás, que a vacinação de reforço (terceira dose) somente foi adoptada, por agora, para os maiores de idade.

    Na semana anterior (28 de Junho a 4 de Julho), o número de pessoas vacinadas terá sido sensivelmente semelhante, embora 13 mil fossem idosos com mais de 80 anos.

    Estes valores absolutos constituem estimativas do PÁGINA UM, com base na percentagem da população vacinada por semana em cada grupo etário e em função da respectiva população indicada pelo Instituto Nacional de Estatística para o ano de 2020. A DGS tomou, desde sempre, a questionável decisão de não divulgar números absolutos da população vacinada, optando por percentagem sem casas decimais. Daí que virtualmente toda a população com mais de 25 anos esteja toda vacinada (100%), o que não corresponde à verdade.

    Certo é que pela análise dos boletins semanais da DGS, nota-se claramente que a vontade em receber mais doses da vacina contra a covid-19 por parte dos portugueses esmoreceu de forma significativa, mesmo nos grupos etários supostamente mais vulneráveis.

    Número de pessoas vacinadas por semana desde 17 de Maio até 11 de Julho de 2022 por grupo etário. Fonte: DGS. Análise: PÁGINA UM

    Tal situação, patente nos números da evolução da campanha em curso, significa uma assumpção da existência de um menor risco de vida perante a dominância da variante Omicron (muito menos letal) ou da percepção da existência de uma forte imunidade adquirida (mais de 50% da população portuguesa já contactou directamente com o SARS-CoV-2) ou também um aumento da desconfiança em termos de segurança.

    Saliente-se que o Infarmed tem recusado ceder os dados detalhados das reacções adversas ao PÁGINA UM, estando em curso um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    A evolução dos números do segundo reforço para os maiores de 80 anos mostra que dificilmente será possível atingirem-se os patamares de adesão à vacinação completa (100%) ou mesmo à vacinação de reforço (97%). Desde a segunda metade de Maio, quando se iniciou o programa para os maiores de 80 anos reforçarem a imunidade vacinal (a quarta dose), apenas 58% deste grupo etário se vacinou, mas a procura está a cair a pique.

    Com efeito, na segunda quinzena de Maio vacinaram-se 21% deste grupo etário, tendo-se depois conseguido, nas quatro semanas subsequentes, vacinar entre 11% e 13% a cada sete dias. Porém, na semana de 21 a 27 de Junho apenas se vacinaram 4%, seguindo-se 2% na seguinte e apenas 1% na semana de 5 a 11 de Julho.

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    No grupo etário dos 65 aos 79 anos, apenas 1% da população foi já vacinada com o segundo reforço, embora o primeiro reforço tenha, segundo os dados da DGS, uma taxa de cobertura de 98%.

    Nas idades mais jovens (menores de 65 anos), o processo está ainda em maior estagnação, mesmo se foram administradas, desde a segunda quinzena de Maio, cerca de 380 mil doses de vacinas, que representam cerca de 5% da população.

    Nestes grupos etários sobressai sobretudo a grande diferença entre a adesão à vacinação completa (duas doses) e ao reforço (terceira dose). Por exemplo, dos 25 aos 49 anos, passou-se de uma adesão (supostamente) de 100% na toma das duas doses para apenas 66% na toma da terceira. Nos 18 aos 24, a dose de reforço já só foi tomada por 52%, quando para a vacinação completa (duas doses) tinha, segundo a DGS, ocorrido uma adesão de 98%.

    Nas crianças entre os 5 e os 11 anos, a maioria (58%) ainda não teve vacinação completa (duas doses). A adesão, aliás, tem sido bastante lenta, tendo apenas aumentado em cinco pontos percentuais nos últimos dois meses, passando de 37% no princípio da segunda quinzena de Maio para 42% em 11 de Julho.

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    A DGS não comenta este crescente desinteresse na vacina contra a covid-19 face à adesão que se verificava anteriormente, tendo apenas transmitido ao PÁGINA UM que “Portugal é dos países com valores mais elevados de cobertura vacinal da Europa”, e que têm sido implementadas “diferentes estratégias de acesso à vacinação, tais como, agendamento local ou central, ou através da modalidade casa aberta”.

    O gabinete de comunicação de Graça Freitas acrescenta que, “neste contexto, as pessoas vão sendo vacinadas à medida que se tornam elegíveis, de acordo com a Norma 002/2021”, afirmando que se continua a “investir em estratégias de comunicação para informar a população sobre o processo de vacinação”.

    Quanto à eventualidade de, nos próximos meses, vir a ser recomendado para os menores um reforço da vacinação (terceira dose), a DGS apenas salienta, por agora, que faz tudo “de acordo com a evidência científica disponível à data”, mantendo-se “a acompanhar a evolução do conhecimento científico, bem como a situação epidemiológica, podendo rever as suas recomendações sempre que se justificar.”

  • Inédito: Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia alvo de processo de contra-ordenação

    Inédito: Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia alvo de processo de contra-ordenação

    O médico António Morais “vestiu-se” de perito independente da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, enquanto, como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), fazia as farmacêuticas abrirem os cordões à bolsa para lhe patrocinar eventos. Em troca, sobretudo durante a pandemia, a SPP e os seus membros andaram a promover interesses económicos directos de várias farmacêuticas. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde decidiu agora, após uma investigação do PÁGINA UM, que havia matéria (evidente) para a instauração de um processo de contra-ordenação por violação do regime de incompatibilidades.


    O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), António Morais – que ainda na passada semana promoveu publicamente o uso do fármaco Paxlovid, o anti-viral da Pfizer contra a covid-19 – está a ser alvo de um processo de contra-ordenação por iniciativa da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). É a primeira vez que o líder de uma sociedade médica se encontra sujeito um processo desta natureza.

    Em causa está a violação do regime de incompatibilidades deste pneumologista do Hospital de São João (Porto), que preside aquela importante sociedade médica desde Janeiro de 2019, mas mantendo-se como consultor (alegadamente) independente da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed. António Morais poderá vir a ser sancionado com uma coima entre 2.000 e 3.500 euros, mas além das questões éticas, haverá consequências jurídicas muito relevantes.

    António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

    De acordo com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 14/2014, “os pareceres emitidos ou as decisões tomadas por comissões, grupos de trabalho, júris e consultores, em que intervenham elementos em situação de incompatibilidade não produzem quaisquer efeitos jurídicos”, o que significa, em consequência, que “as decisões dos órgãos deliberativos (…) são nulas”, caso se baseiem naqueles pareceres.

    A informação sobre o processo de contra-ordenação foi hoje transmitida ao PÁGINA UM pela própria IGAS após ter sido concluído primeiro um “processo de esclarecimento” que carreou provas suficientes contra António Morais. A nota da IGAS salienta que num despacho do inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, de 7 de Junho passado, foi tomada a decisão de “apresentar, na sequência imediata, uma proposta de instrutor para o processo de contra-ordenação” tendo como alvo os comportamentos do presidente da SPP.

    Durante o seu 37º Congresso, em Novembro do ano passado, a SPP publicou um jornal diário. Na edição nº 2, António Morais cumprimenta o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, com um aperto de mão e sem máscara. Neste congresso ocorreu um surto de covid-19.

    Recorde-se que uma investigação do PÁGINA UM, publicada em 18 de Abril passado, revelou que António Morais estava a violar o regime de incompatibilidades que impedem os consultores daquelas entidades de integrarem os órgãos sociais de sociedades médicas que “tenham recebido financiamentos de empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, em média por cada ano num período de tempo considerado até cinco anos anteriores, num valor total superior a 50.000”.

    Ora, António Morais preside à SPP desde 14 de Janeiro de 2019, e esta sociedade médica ultrapassa larguíssimamente o patamar dos 50 mil euros anuais. Considerando 2018, antes da tomada de posse da equipa de Morais, a SPP tinha recebido no quinquénio uma média anual de 799.634 euros do sector farmacêutico, ou seja, 16 vezes mais do que o limite imposto pela norma das incompatibilidades.

    No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais, situando-se nos 870.512 euros por ano. Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros. Uma parte considerável (320.000 euros) foi um patrocínio único da Pfizer para a promoção da vacina contra a pneumonia pneumocócica em plena campanha de vacinação contra a covid-19, da qual a farmacêutica norte-americana muito beneficiou.

    Este ano, em menos de sete meses, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP já amealhou 541.228 euros – ou seja, uma verba mais do dobro daquela que a SPP poderia receber em cinco longos anos para que António Morais pudesse manter-se como consultor da DGS e do Infarmed.

    Em todo o caso, os patrocínios da SPP poderão ficar, mais uma vez, acima de um milhão de euros, ao longo de 2022, uma vez que usualmente a maior fatia de patrocínios e contratos comerciais com a indústria farmacêutica regista-se no último trimestre de cada ano no âmbito do Congresso de Pneumologia.

    Apoios do sector farmacêutico (em euros) à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.

    No despacho da IGAS consta a indicação de que a informação foi também encaminhada para o gabinete do secretário de Estado-Adjunto e da Saúde, Lacerda Sales.

    O PÁGINA UM solicitou ao gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, e também à directora-geral da Saúde, Graça Freitas, e ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, comentários sobre este processo de contra-ordenação, e quis saber se, nas actuais circunstâncias, mantinham a confiança em António Morais como consultor. Não houve resposta. Também a SPP foi contactada, mas também não respondeu.

    Saliente-se que António Morais apresentou em Março passado uma queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contra o PÁGINA UM, acusando os artigos deste jornal –  que têm abordado as ligações da SPP e de alguns dos seus mais destacados membros, como o pneumologista Filipe Froes, com a indústria farmacêutica –  de “acarret[arem] consequências para a saúde pública”.

    Filipe Froes coordena o Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória da SPP. Não se conhece ainda as diligências da IGAS sobre o processo de averiguação instaurado no ano passado.

    O presidente da SPP escreveu também à ERC que o “tipo de jornalismo” do PÁGINA UM “põe em causa a credibilidade científica de uma sociedade que, durante o período da pandemia, se prestou para prestar verdadeiro serviço público, disponibilizando informação séria, tendo como base as evidências científicas mais atuais”. Esta queixa ainda não teve conclusão da ERC.

    Por sua vez, o PÁGINA UM solicitou em Abril passado que o regulador também desencadeasse “todas as medidas legais, no caso em apreço contra o senhor António Morais, conducentes à protecção do livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa (…), à protecção da sua independência perante os poderes político e económico e à protecção dos (…) direitos, liberdades e garantias, tanto mais necessários para garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial deste jornal”.

  • Inédito: Portugal caminha para o nono mês consecutivo com mais de 10.000 mortes

    Inédito: Portugal caminha para o nono mês consecutivo com mais de 10.000 mortes

    A covid-19 tornou-se endémica, mas a mortalidade em Portugal mantém-se imparável. Desde Novembro do ano passado não houve ainda nenhum mês com menos de 10.000 óbitos. Os meses de Abril, de Maio e de Junho bateram recordes, e Julho caminha para essa funesta posição. Mas o problema tem sido a persistência, que mostra um inquestionável problema grave de Saúde Pública. Enquanto isto, o Governo adia uma avaliação independente e continua a obstaculizar as investigações do PÁGINA UM.


    É situação inédita, impensável e intolerável, sobretudo pelo silêncio do Governo: com a primeira quinzena de Julho a registar mais de 5.200 óbitos, Portugal arrisca-se a contabilizar o nono mês consecutivo com os meses acima de 10.000 mortes por todas as causas.

    De acordo com dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, desde Novembro do ano passado, todos os meses têm estado acima da fasquia dos 10.000 óbitos, valores que sendo números aceitáveis no Inverno – face ao envelhecimento populacional e à maior prevalência de doenças letais dos aparelhos respiratório e circulatório –, são completamente atípicos nos meses de Primavera e Verão.

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    Com efeito, considerando os dados mensais da mortalidade do SICO e do Instituto Nacional de Estatística a partir de 1980, antes da pandemia apenas por duas ocasiões se registou uma séries de quatro meses consecutivos com mais de 10.000 óbitos: entre Dezembro de 2014 e Março de 2015, e entre Dezembro de 2017 e Março de 2018.

    Mesmo a ocorrência de séries de três meses a suplantarem aquela fasquia eram bastante raros, identificando-se apenas seis desde 1980: Dezembro de 1995 a Fevereiro de 1996; Dezembro de 1998 e Fevereiro de 1999; Dezembro de 2001 e Fevereiro de 2002; Dezembro de 2006 e Fevereiro de 2007; e ainda Janeiro de 2012 a Março de 2012.

    Em plena pandemia registar-se-ia mais uma série de quatro meses com mortalidade sempre acima de 10.000 óbitos – Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021 –, mas com uma dimensão sem precedentes, uma vez que, sobretudo Janeiro do ano passado contabilizou o pior saldo de sempre (19.649 óbitos). No total, naqueles quatro meses faleceram quase 57 mil pessoas. Nas outras duas séries com quatro meses sempre acima dos 10.000 óbitos, o saldo tinha sido menos nefasto: cerca de 45 mil mortes em cada.

    Mortalidade mensal desde Janeiro de 1980 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Por norma, uma elevada mortalidade durante um determinado período – neste caso, o primeiro ano da pandemia – deveria estar a “beneficiar” os períodos subsequentes por virtude de um “rejuvenescimento” da população por via da morte dos mais vulneráveis. Ademais, a variante Omicron – que surgiu em Novembro do ano passado – tem-se mostrado de menor letalidade, a que acresce a elevada taxa de vacinação contra a covid-19, que as autoridades de saúde recusam associar a efeitos adversos relevantes.

    Contudo, certo é, desde Novembro do ano passado, nunca se ficou abaixo dos cinco dígitos na contabilização de pessoas falecidas. Sendo certo que Dezembro e sobretudo Janeiro são meses em que habitualmente se ultrapassam os 10.000 óbitos – e em Novembro e Março ocorre com alguma regularidade nos anos pré-covid –, não é habitual estarem todos com elevada mortalidade.

    Abril com mais de 10.000 óbitos apenas ocorreu por uma vez, exactamente em 2020, no início da denominada primeira vaga, que também esteve associada a mortes por causas não-covid. Mas um Maio ou um Junho acima de 10.000 óbitos é completamente inédito. Se Julho mantiver o ritmo – a média diária é, por agora, de 349 óbitos –, baterá o recorde de 2020, a única  vez que se ultrapassara os 10.000 óbitos.

    Porém, o principal problema nem sequer são os recordes mensais, mas sobretudo a persistência de elevados valores em tantos meses.

    Mortalidade mensal desde Julho de 2017 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Apesar desta situação, o Governo mantém-se impávido, recusando disponibilizar os dados brutos do SICO – o que implicou o recurso ao Tribunal Administrativo por parte do PÁGINA UM, através de um processo de intimação –, o que permitiria identificar as causas de mortes que se têm vindo a destacar e a justificar estes números.

    Além disso, recentemente, o presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ministra da Saúde, Marta Temido – retirou a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do SNS, impedindo assim o PÁGINA UM de escrutinar qual o grupo de doenças que se mostram agora com maior letalidade das unidades de saúde.

    Anteontem, a ministra da Saúde referiu aos jornalistas que o Governo está “totalmente empenhado em conhecer aquilo que é a mortalidade, conhecer as suas causas e atuar sobre as suas causas”, alegando que para as análises serem sérias, demoram muitas vezes tempo, e como tal é necessária “alguma prudência”. Marta Temido acrescentou querer “chegar a conclusões céleres”, mas que estas “não são possíveis quando são sobre fenómenos complexos e necessitam de tempo e de análise técnica”.

    Na verdade, fazer análises desta natureza, ainda mais com o detalhe que os dados do SICO permitem, não demora assim muito tempo.

    Basta vontade política. E transparência.

  • Desde finais de Fevereiro, morreram a mais 5.700 pessoas (e foi antes da onda de calor)

    Desde finais de Fevereiro, morreram a mais 5.700 pessoas (e foi antes da onda de calor)

    Para a “prova dos 9”, o PÁGINA UM solicitou a um professor de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências que analisasse a mortalidade deste ano em comparação com os últimos cinco anos, incluindo os primeiros dois anos de pandemia. Os resultados confirmam uma mortalidade excessiva, mas pior ainda: uma persistência inaudita. O calor desta semana complicará mais esta tragédia, mas não pode ser o bode expiatório. Afinal, o que esconde o Ministério da Saúde, quando não disponibiliza ao PÁGINA UM os dados em bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito? De que estão a morrer os portugueses? Irá a culpa continuar a morrer solteira?


    Desde 21 de Fevereiro até 10 de Julho – antes da actual onda de calor –, o excesso de mortalidade por todas as causas já terá atingido quase 5.700 óbitos, de acordo com cálculos, a solicitação do PÁGINA UM, de João José Gomes, professor do Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

    Utilizando estatística mais elaborada, e analisando semanalmente os níveis de mortalidade desde o início do presente ano e comparando com períodos homólogos dos cinco anos anteriores (2017-2021) – incluindo, portanto, os dois primeiros anos da pandemia –, os cálculos deste investigador universitário destacam de forma ainda mais marcante a elevada e incompreensível mortalidade sobretudo desde o início de Março, e que se tem prolongado pela Primavera e Verão. Estas épocas do ano costumam ser as de menor mortalidade, só de quando em vez interrompidas, de forma curta, por alguma onda de calor.

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    Com efeito, a anormalidade deste ano mostra-se, sobretudo, por não estar associada a nenhum evento extraordinário, embora oficialmente tenha subsistido uma relativa mortalidade causada oficialmente pela covid-19, embora inédita, porquanto Portugal é um dos países europeus com maior taxa de vacinação contra esta doença e com maior contacto com o SARS-CoV-2.

    Segundo os cálculos de João José Gomes, o mês de Janeiro deste ano até foi bastante “ameno” – com um “défice de mortalidade” que chegou aos 677 na terceira semana. A situação de menor mortalidade face à média ainda se manteve até à semana 7 – mas já com uma aproximação à média do período 2017-2021 a partir do início de Fevereiro.

    Porém, sem qualquer evento meteorológico associado com implicações na saúde, Março foi o início de um inusitado processo atípico: em vez de uma redução, a mortalidade manteve-se em níveis quase similares ao Inverno. Significou isso, que o excesso de mortalidade se foi evidenciando.

    Mortalidade semanal em 2022 comparada com intervalos de confiança de 95% construídos com base nos anos 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes (FC-UL)

    E de uma forma abismal. De facto, a partir da semana 12, iniciada a 22 de Março, a mortalidade total diária esteve quase invariavelmente acima da média do período homólogo entre 2017 e 2021. A situação ainda piorou mais entre a semana 21, que começou a 24 de Maio, e a semana 25, que terminou em 27 de Junho. Neste período de transição da Primavera para o Verão – que inclui Junho, o segundo mês menos mortífero do ano, a seguir a Setembro, pela sua amenidade –, o valor mínimo diário em 2022 esteve quase sempre acima do limite superior do intervalo de confiança de 95%. Isto sistematicamente. Pior seria impossível.

    De acordo com os cálculos de João José Gomes, é sobretudo a persistência de um longo período de excesso de mortalidade num período do ano caracterizado pela baixa mortalidade que causa estupefacção.

    Estimativa do défice (verde) e excesso (vermelho) de mortalidade por semana em 2022 face à média do período 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes.

    Entre as semanas 12 e 27, apenas em duas se excedeu as 200 mortes no respectivo período de sete dias. A mortalidade excedeu em mais de 60 óbitos por dia (ou seja, mais de 420 óbitos em sete dias) na semana 25 (21 a 27 de Junho, com 676 óbitos a mais, isto é, quase 97 por dia), na semana 24 (14 a 20 de Junho, com 563 óbitos a mais), na semana 20 (17 a 23 de Maio, com 468 óbitos a mais), na semana 23 (7 a 13 de Junho, com 467 óbitos a mais) e na semana 21 (24 a 30 de Maio, com 424 óbitos a mais).

    Para reconfirmar a persistência da mortalidade sempre em valores muito acima do perfil normal – em que, no período primaveril e estival se sucedem largos períodos com óbitos diários a rondar os 280 por dia –, saliente-se que este ano apenas se verificaram, até hoje, 15 de Julho, sete dias com menos de 300 óbitos. Significa que se contabilizaram já 189 dias com mais de 300 óbitos, muito acima dos 161 registados em 2020, quando a primeira vaga encontrou uma população completamente desprevenida. No ano passado, que contabilizavam-se, neste período, já 104 dias abaixo dos 300 óbitos, embora tal se tenha devido em grande medida ao morticínio dos meses de Janeiro e Fevereiro.

    Número de dias com 300 ou mais óbitos e com menos de 300 óbitos entre 2009 e 2022 até 15 de Julho. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Note-se que, na quase totalidade do período analisado, o índice Ícaro – que mede o risco de acréscimo de mortalidade devido a temperatura elevadas – esteve quase sempre com o valor de zero. Até 8 de Julho apenas em um dia esteve acima de 0,1 (ou seja, com impacte quase irrelevante), e somente na última semana esteve consecutivamente positivo. Em todo o caso, ainda não superou o valor de 1, que constitui já uma fasquia de grande perigo.

    Esta análise demonstra, de forma categórica, que o excesso de mortalidade nos últimos dias associada exclusivamente à onda de calor em curso está profundamente errada. E que o comunicado de imprensa de ontem à tarde da Direcção-Geral da Saúde, apontando para um excesso de 238 óbitos no período de 7 a 13 de Julho em função exclusivamente das condições meteorológicas, e omitindo o passado mais recente (e os problemas estruturais do SNS), constitui, na verdade, uma manobra de diversão.

    Na verdade, se é previsível (aliás, seria estranho o contrário) que a mortalidade total venha a ser extremamente elevada por estes dias – ontem, segundo dados provisórios, terão morrido 436 pessoas, o que a confirmar-se será o quarto dia mais mortífero de 2022 –, mostra-se evidente que o “ponto de partida”, ou seja, a base de mortalidade (por factores ainda ignorados) está muito acima do expectável. Portanto, acabando a onda de calor, continuará elevada a mortalidade, porque não é a temperatura que está a desequilibrar. Excepto, se enfim, alguém obrigar o Ministério da Saúde a revelar as causas deste contínuo morticínio, e a encontrar rapidamente uma solução.

  • Desde Janeiro, já morreu um em cada 10 idosos com mais de 85 anos

    Desde Janeiro, já morreu um em cada 10 idosos com mais de 85 anos

    Nada tem a ver com a onda de calor em curso. No passado domingo, a mortalidade acumulada nos mais idosos (acima dos 85 anos) desde Janeiro deste ano ultrapassou os atrozes valores de 2021, quando então se bateram recordes de óbitos em Janeiro e Fevereiro. Mas, ao contrário do que sucedeu em 2021, o morticínio nos mais velhos está a acontecer na Primavera e no Verão de forma persistente e silenciosa, contrariando aquilo que seria expectável. E tem sido um evento silenciado. Na verdade, não está ser apenas um morticínio; está a ser um gerontocídio. O PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada daquilo que está a suceder, a exigir investigação, que pode ser judicial.


    Gerontocídio – a palavra existe no léxico, embora seja pouco usada. Mas sendo pouco ou nada usual ouvi-la e vê-la escrita, tem agora andado a pairar por todo o lado no nosso país, de norte a sul, de este a oeste, apesar das autoridades de Saúde, e particularmente o Governo, nem sequer queiram proferir um qualquer eufemístico sinónimo. Nada. Silêncio. Um atroz silêncio: é esta a reacção de um Estado democrático perante uma mortandade sem precedente atinge níveis inauditos numa franja que já deu muito ao país: os super-idosos, os maiores de 85 anos.

    De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM, incluindo tratamento estatístico, aos dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os óbitos acumulados desde 1 de Janeiro deste ano neste grupo etário ultrapassaram, no passado domingo (dia 10 de Julho), os números já colossais de 2021, que incluíram Janeiro e Fevereiro, no auge da pandemia da covid-19.

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    Com os números provisórios até 12 de Julho, terão já morrido este ano um total de 30.648 pessoas com mais de 85 anos, o que representa quase 10% dos idosos daquela faixa etária, que nos últimos anos estava em contínuo crescimento. De acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Estatística viviam em Portugal 328 mil pessoas com mais de 85 anos em 2020, sendo que, naquele ano, mais de 56 mil tinham apagado oito dezenas e meia de velas.

    Este grupo etário esteve em contínuo crescimento nas últimas décadas, fruto das melhorias nos cuidados médicos, tendo duplicado mesmo o seu número entre 2004 (quando então viviam apenas cerca de 16 mil pessoas com mais de 85 anos) e 2020. Esse crescimento será quebrado, certamente agora, com o excesso de óbitos em 2021 e 2022.

    O valor da mortalidade acumulada dos mais idosos em 2022 excede, por agora, em pouco menos de uma centena (97) os números do ano passado (30.551 óbitos). Encontram-se também substancialmente acima do primeiro ano da pandemia (27,866 óbitos) e são muitíssimo superiores ao período pré-pandemia (25.493 óbitos em média entre 2015 e 2019).

    Recorde-se que o ano passado foi particularmente mortífero para os mais idosos. Nos dois primeiros meses do ano passado, a mortalidade total atingiu patamares inéditos: em Janeiro morreram 19.649 pessoas e em Fevereiro 12.784. Destas, 46% (14.809) eram idosos com idade igual ou superior a 85 anos.

    Apesar disso, este ano a situação de Saúde Pública dos mais idosos está a assumir contornos ainda mais catastróficos, porque o morticínio não se iniciou nos meses de Inverno – associado a doenças mais letais neste grupo etário –, tendo-se sim intensificado, de forma espantosa e imparável, sobretudo a partir de Março.

    Não se registou assim a habitual diminuição dos óbitos ao longo da Primavera e Verão; pelo contrário. Neste momento, os níveis de mortalidade nesta faixa etária estão próximos dos valores de Inverno, e com um excesso significativo face aos anos anteriores e sobretudo aos períodos homólogos pré-pandemia.

    O início deste ano até aparentava vir a ser “ameno” para os mais idosos, após a pandemia ter causado um excesso de mortalidade sem precedentes. De facto, o último Janeiro teve uma mortalidade diária para os maiores de 85 anos até ligeiramente abaixo da média do período pré-pandemia: 167 óbitos vs. 174. O mês de Fevereiro esteve já um pouco acima, mas, mesmo assim, até ao dia 25 daquele mês tinham morrido menos 4.828 idosos desta faixa etária do que em igual período de 2021.

    Aquilo que sucedeu depois mostra-se ainda inexplicável, pela sua dimensão e persistência, e por mais especulações que as autoridades de Saúde façam, enquanto se recusam a investigar ou impedem ostensivamente que haja investigações independentes. Este ano, entre Março e 12 de Julho, morreram 20.647 idosos com mais de 85 anos, um valor que excede em 4.901 os óbitos registados em 2021, em 2.227 os contabilizados em 2020 (que inclui o início da pandemia), e em 5.004 os que se registaram em média no período entre 2015 e 2019. Em relação à fase pré-pandemia, os óbitos neste grupo etário incrementaram em 32% no período do ano geralmente pouco mortífero.

    Evolução do diferencial de óbitos acumulados entre 2022 e 2021 até 12 de Julho no grupo etário dos maiores de 85 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    De facto, o perfil da mortalidade deste ano para os mais idosos é completamente atípica. Desde Março, a mortalidade diária dos maiores de 85 anos tem variado entre uma média diária de 149 óbitos em Julho (nos 12 primeiros dias) e os 160 em Março. A média diária no período pré-pandemia (2015-2019) situa-se, para este intervalo de tempo, entre os 99 óbitos em Julho e os 135 em Março.

    Ou seja, desde Junho observa-se um excesso de mortalidade neste grupo etário a rondar 50 óbitos em cada dia. Em dois meses são cerca de três mil mortes a mais. Não há explicação oficial, justificada por estudos técnicos, para estes números.

    Esta hecatombe ainda assume pior intensidade, por duas razões: por um lado, nenhum outro grupo etário apresenta este perfil de mortalidade ao longo deste ano; por outro lado, o morticínio dos últimos meses sucede a um longo e (quase) contínuo período de excesso de mortalidade desde o surgimento da pandemia. Ademais, praticamente todo este grupo populacional se encontra com imunidade vacinal contra a covid-19 com três ou quatro doses.

    Mortalidade média diária por mês dos maiores de 85 anos no período 2015-2019 (média), 2020, 2021 e 2022 (Julho até dia 12). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, analisando todos os grupos etários do SICO, aqueles que são subsequentes aos maiores de 85 anos até estão em situação muito mais favorável relativamente ao ano passado. Apesar de os valores ainda estarem algo acima da média pré-pandemia, se comparamos a mortalidade acumulada até 12 de Julho deste ano com o período homólogo do ano passado para o grupo etário dos 75 aos 84 anos, observa-se até um decréscimo de 1.504 óbitos. Para o grupos dos 65 aos 74 anos a redução é de 839.

    A relativa redução na mortalidade entre os 65 aos 84 anos justifica, assim, que o total de óbitos na população portuguesa até 12 de Julho de 2022 ainda seja bastante inferior ao ano passado: 67.939 óbitos contra 70.677, ou seja, menos 2.728.

    Porém, esse mesmo diferencial, confirma ainda mais que o problema se concentra em exclusivo nos mais idosos, embora seja questão menos mediatizável por atingirem pessoas que já vivem acima da esperança média de vida. Em todo o caso, fica patente que o suposto “efeito rejuvenescimento” – devido à morte dos mais “fracos” ao longo da pandemia – não foi assim suficiente para estancar um “inesgotável morticínio”.

    Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos mais idosos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    A constatação de se estar perante um silencioso e silenciado problema em exclusivo para os mais idosos ainda se evidencia mais numa análise aos grupos etários das pessoas com menos de 65 anos – onde, felizmente, a mortalidade em qualquer caso é muito inferior. No grupo dos 55 aos 64 anos – em que a mortalidade em 2022 ainda está acima do período pré-pandemia –, no presente ano contabilizam-se menos 320 óbitos do que no ano passado.

    Para os menores de 55 anos, o ano de 2022 está dentro de valores considerados normais, incluindo os anos anteriores à pandemia. Na verdade, durante 2020 e 2021, a mortalidade nos menores de 55 anos foi mesmo geralmente mais baixa do que no período pré-pandemia (2015-2019), com uma excepção (pouco relevante do ponto de vista estatístico) no grupo etários dos 15 aos 24 anos.

    No caso dos menores de 15 anos, ao longo da pandemia a mortalidade – já de si muito reduzida em situações normais – esteve sempre mais baixa. Na verdade, a taxa de mortalidade infantil desceu mesmo nos dois primeiros anos da pandemia, e o ligeiro crescimento deste ano face a 2021 não é (ainda) preocupante numa perspectiva de Saúde Pública.

    Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos menores de 65 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Em suma, por covid-19, por outras doenças, por negligência das autoridades de outros responsáveis políticos, certo é que os maiores de 85 anos estão a acelerar a partida deste mundo – depois de décadas de esforço na melhoria dos cuidados de saúde, que tornaram Portugal num país moderno e civilizado. E aparentemente não há quem deseje investigar as causas.

    Sendo certo que a covid-19 teve o seu peso no excesso de mortalidade após Março de 2020, não se encontra (ainda) justificação (técnica e científica, excluindo bitaites mesmo se de “peritos”) para os actuais níveis de mortalidade nos maiores de 85 anos. Mostra-se assim necessário investigar em vez de especular; é necessário pegar nos dados brutos do SICO e analisar as causas de mortes antes e durante a pandemia para todas as faixas etárias.

    E acabar com o alarmismo e o fomento do medo que anestesiou toda uma população, a tal ponto que a convenceu que a covid-19 era a “doença”, a única, a globalmente perigosa. O impacte da pandemia está por fazer, bem como as soluções, que não incluem apenas o ataque à doença, mas também uma análise crítica à gestão da pandemia, ou seja, as consequência da suspensão do Serviço Nacional de Saúde e mesmo os efeitos não estudados dos sucessivos boosters das vacinas contra a covid-19 nos mais idosos e nos outros grupos etários.

    greyscale photo of woman standing behind woman sitting on chair

    Aliás, mostra-se fundamental mostrar que a covid-19, tendo sido um problema de Saúde Pública grave, teve níveis de gravidade completamente distintos, e que todas as acções implementadas de forma generalizada foram erradas.

    O PÁGINA UM fez, aliás, uma “simples” e rápida análise comparativa da mortalidade por grupo etário em dois períodos homólogos: entre 1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019 (fase pré-pandemia) e entre 1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022 (fase da pandemia). Os valores absolutos comprovam que em Portugal se viveu um pânico colectivo sem justificação e que terá sido bastante contraproducente para uma gestão eficaz e eficiente.

    Assim, no grupo dos menores de 1 ano, dos 1 aos 4 anos, dos 5 aos 14 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos – ou seja, com excepção do grupo dos 15 aos 24 anos (situação que deveria ser também investigada) –, a pandemia não teve qualquer impacte, ou até mesmo paradoxalmente “positivo”. A mortalidade foi mesmo inferior. No caso dos menores de 1 ano, a redução até foi de 22% (na realidade um pouco menor, porque a taxa de natalidade desceu).

    De resto, o impacte nos maiores de 55 anos foi muito distinto, mas a merecer prudência em assacar responsabilidades exclusivas à covid-19. Com efeito, o incremento da mortalidade nestes dois períodos foi muito distinto e não foi linear, como seria de supor se o SARS-CoV-2 fosse a única explicação.

    Mortalidade por grupo etário na fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e na fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

    No grupo dos 55 aos 64 anos e dos 75 aos 84 anos, o acréscimo de mortalidade entre a fase pré-pandemia e fase de pandemia foi de 8%, mas estranhamente foi de 12% no grupo dos 65 aos 74 anos. Ou seja, seria expectável – caso a covid-19 fosse o único factor a explicar este acréscimo – que a subida da mortalidade neste grupo etário estivesse algures entre o valor do grupo que o precede (55 aos 64 anos) e o que lhe segue (75 aos 84 anos).

    Por outro lado, observa-se que o incremento da mortalidade nos maiores de 85 anos concentra o maior crescimento, o que tendo em consideração que é o grupo etário com maior peso absoluto. De facto, são quase 20 mil mortes a mais (128.224 na fase da pandemia vs. 108.559 na fase pré-pandemia). Tendo em conta que estamos a falar de 864 dias, significa um acréscimo de quase 23 óbitos em excesso por dia. Não foi tudo, certamente da covid-19. Nem o que está agora a acontecer tem essa tão singela explicação. Nem pode a onda de calor, que está agora por aí, levar com as culpas.

    Mas a ignorância sobre toda esta situação é imensa, tanto mais que é fomentada pela própria Direcção-Geral da Saúde, instituição que nem permite sequer que se saiba qual o peso efectivo da covid-19 nos maiores de 85 anos – e também nos outros grupos etários.

    Variação da mortalidade (%) por grupo etário entre a fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e a fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

    Desde o início da pandemia, o Governo desfasou, com o claro propósito de obstaculizar qualquer análise séria, os dados da mortalidade total (contabilizados no SICO) e da mortalidade por covid-19. Assim, por exemplo, sabe-se quantas pessoas com mais de 80 anos morreram de covid-19, mas não se consegue calcular o contributo da doença na mortalidade total, porque os grupos etários usados no SICO vão dos 75 aos 84 anos e depois dos maiores de 85 anos.

    Saber quais as doenças que determinaram, por exemplo, este desvio seria essencial, mas o Governo esconde os dados. Tal como esconde todos os dados e toda a informação, por amiguismo ou protecção política, que procurem fazer um diagnóstico dos problemas e encontrar soluções.

    E um Governo que intencionalmente faz isto, faz isso para esconder a verdade. E uma sociedade que admite isto, aceita um Governo a fazer tudo.