Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 6º episódio fala-se de uma estranha moção de censura, em 1987, a única que fez cair um Governo, mas que acabou por ser o ‘harakiri’ do promotor, o PRD. As eleições seguintes resultariam na primeira de duas maiorias absolutas de Cavaco Silva, recordando a tentativa de criação de uma ‘geringonça’ formada por PS, PRD e CDS para evitar as eleições antecipadas de 1987.
Categoria: Especiais
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Do fim do Bloco Central até ao início do Cavaquistão (com PRD no meio)
Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 5º episódio fala-se da vida efémera do Bloco Central (e as suas sucessivas crises), de um famoso congresso da Figueira da Foz com uma não menos famosa rodagem de um carro e do nascimento da PRD (de inspiração eanista) que culmina, nas eleições de 1985, com uma hecatombe no PS e a (primeira) ascensão de Cavaco Silva.
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O rochedo
As histórias de vida de quem se perdeu. Dos “deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração”.
Condenados ao Inferno e a regressar, a viver, numa terra a que não pertencem, com o coração ainda na terra prometida para onde emigraram, no outro lado do Atlântico. Na terra do tio Sam.
Ilha de São Miguel.
Açores.
Lá ao fundo, atrás dos montes verdejantes e das ravinas amanhadas, mesmo diante do mar, fica o povoado rural: Ajuda da Bretanha, a freguesia, como eles dizem por estas paragens.
Rua da Assomada.
Tony Brum, lá à frente, no carreiro. (Imagem: Rui Pereira) O cenário é este: uma encosta, necessariamente campestre e as ruínas do casebre nativo de António Trindade Brum.
É o homem, enrodilhado nas memórias da infância e nos desaires do presente — sabe-se lá… —, que vai ali à frente no carreiro estreito e torto cheio de silvas.
Tony nasceu, aqui, há 62 anos.
— Eu fui nascido naquele quarto ali. E eu quando eu vim para cá, eu acho que tinha 16 anos. Acartei a estátua da Fátima até ao pico lá em cima. E a minha mãe disse-me que eu nasci ali e que andei ali a dormir. E isso foi quando ela me trouxe para trás aqui, quando eu tinha 16 anos, para me meter juízo na cabeça. Mas eu fui para trás para a América e lá não havia muito juízo…
A casa da infância. (Imagem: Rui Pereira) Primeira confissão de um deportado de luto na alma a contas com o desalento, a desesperança ou, tão simplesmente, com o destino que é o seu.
Os paredões, que só são negros por dentro, que o digam… Tony Bruno — é assim que lhe chamam, agora — foi feliz aqui. Foi, mas por pouco tempo…
Em 1960, partiu com os pais, seis irmãs e um irmão para Fall River, Massachusetts, nos Estados Unidos.
— A vida na América é coisas materiais. O mais que a gente tem, melhor. O vizinho pinta a casa… A gente pinta a nossa casa numa cor mais melhor. Eles compram um Cadillac. Eu compro um Lincoln Continental. Era desta maneira que eu vivia lá. Eu sempre queria ter mais. A mulher mais bonita. O carro mais melhor. A casa mais melhor. E é o que é…
— É o American Dream…
— Ya. O American Dream.
Tony Brum – um homem só. (Imagem: Rui Pereira) — O Sonho Americano…
— O Sonho Americano é bullshit (treta).
— É um pesadelo para si?
— Ya. Isso é um sonho. O sonho que estás a falar é o American Dream. Não há American Dream!
Aos 16, furtou um carro: um mês de cadeia.
100 acusações e 7 anos de prisão mais tarde foi expulso. Foi deportado para os Açores.
— Eu fiz coisas que não devia ter feito, mas eu fui para a cadeia e paguei o meu tempo.
Hoje, vegeta, roído de solidão, na miséria.
A exclusão é uma realidade. E a crença ou a fé no regresso (improvável) mais um castigo, redentor ou nem por isso…
Maria João Tavares (Imagem: Rui Pereira) Ponta Delgada.
Mais uma manhã como as outras no refúgio que dá pelo nome de centro de acolhimento da Associação de inclusão social Novo Dia.
A renovação dos corpos e das mentes (para algumas mulheres, deportadas, prostitutas, drogadas, vítimas de violência e das misérias) passa por aqui.
Maria João Tavares que o diga…
— Eu vou pagar para o resto da vida porque eu não vou estar ao pé da minha família.
Como Tony Brum há muitos mais: deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração.
— Ya. Eles chamam a isto aqui The Rock (alusão à antiga prisão da ilha de Alcatraz, na Califórnia).
— O meu país, para mim, é os Estados Unidos, a América porque eu fui criada foi lá. Eu, aqui, na escola só fui até à terceira classe. Nem a quarta classe eu tive aqui. Fui para lá, estudei e casei-me e tudo. Fiz família. Fiz a minha vida toda lá.
Foi para os Estados Unidos com os pais e um irmão quando tinha 10 anos. Estudou até aos 15. Casou com 16. Foi deportada no dia 21 de Setembro de 2004.
The Rock – A cadeia de Alcatraz, na Califórnia. (Foto: National Park Service) — Eu estou pagando pelo meu crime para o resto da minha vida, está percebendo? Por causa que… o que eu… o que custa mais a entender é o gelo no coração daquelas pessoas para separarem famílias: mães, filhos… Filhos que não ver a sua mãe mais. Vão crescer sem ter a mãe, vão-se casar sem ter a mãe, vão morrer, não têm a mãe. A mãe morre aqui, ou o pai, mãe ou o pai vão morrer aqui e não têm a família ao lado deles. Como eu. Não sou eu, mas muitos que já morreram e foram repatriados — não estou falando só de mim, estou falando de muitos mais. Eu acho que isso é uma injustiça o que eles fazem. A gente fazemos o crime lá fora, paga-se. E é a pessoa ir para a frente com a sua vida.
— Mas não se paga…
— Mas não se paga. A gente paga lá e depois paga aqui o resto do tempo.
A confissão lancinante e corajosa merece tanto mais respeito que Maria João Tavares não se conforma.
— Eu nunca voltei para Portugal desde que eu fui para a América. Com 10 anos nunca voltei. 36 anos depois sou uma estrangeira no meu país. Na minha terra natural…
Desenraizada, longe do mundo que é o seu e da sua gente, condenada a esta outra masmorra, que dá pelo nome de insularidade, não arreda do espírito o hipotético regresso à América. E luta por isso…
— Eu fui deportada por causa de droga. Por causa que eu fui apanhada com um quilo de cocaína naquela altura. Eu comecei a consumir. Depois, eu tornei-me em traficante. Por muitos anos estava tudo na boa. Depois, pronto, aconteceu, que eu fui apanhada. Estive na cadeia três anos, lá fora.
A outra cadeia dá pelo nome Açores. (Imagem: Rui Pereira) Deixou em Rhode Island três filhos e quatro netos. E as mazelas de um passado que teima em assombrar o seu quotidiano. Clamorosamente…
— Mas muitos perdem a esperança, sem sombra de dúvida. E voltam a recair, seja nas substâncias, voltam… deprimem, perturbações de adaptação. É muito complicado. A réstea de um regresso é quase impossível… — diz a psicóloga Sónia Pereira.
A Associação Novo Dia faz o que pode. Faltam apoios apesar de a exclusão, a miséria e a criminalidade constituírem, sobretudo, um problema em São Miguel.
— Essas pessoas vêm completamente desenraizadas. Este acontecimento da deportação é traumático, afecta profundamente a vida delas e a sua identidade. Dificilmente ou impossivelmente conseguem-se recuperar porque deixam a família, as suas referências, as suas pessoas significativas lá. Vêm para cá para uma cultura que eles não reconhecem como sua, apesar de serem portugueses. Não dominam a língua, os valores, os hábitos, todas as práticas culturais. Facilmente são discriminados pelas outras pessoas porque não são iguais aos de cá e não se sentem iguais, também não se sentem mais americanos. Digamos que são pessoas que estão presas ao passado e muito dificilmente sonham já com um futuro. São pessoas que estão quase mortas por dentro, muitas delas. — explica Paulo Fontes da Associação Novo Dia.
Penas a dobrar para todos os deportados, sem excepção. (Imagem: Rui Pereira) Cadeia da Boa Nova, Ponta Delgada.
José Eduardo Pacheco.
50 anos. Natural de Vila Franca do Campo, São Miguel. Foi para Providence, Rhode Island, em 1967.
Tinha 9 meses.
No estabelecimento prisional de Ponta Delgada há, hoje, 200 reclusos. 18 são deportados, sobretudo dos Estados Unidos. Por outros números: 14 condenados e 4 preventivos.
Mais um testemunho triste e previsível. Em inglês!
— Isto é o Rochedo (The Rock, o nome que davam à penitenciária de Alcatraz). Para mim é como se fosse o Rochedo. Não conheço ninguém aqui. Não conheço nada aqui. Nem sequer me lembro onde vivia quando parti de São Miguel. St. Michaels…
Eduardo Carreiro. 49 anos. Divorciado, quatro filhos. Foi deportado em 2008.
Uma desgraça nunca vem só. Seis anos mais tarde foi condenado a uma pena de prisão nos Açores, designadamente, por tráfico de estupefacientes: cocaína e heroína, recebidas de Lisboa.
— O que é que custa…
— Mais…
— É não ter a família ao meu lado. Ninguém com quem falar para desabafar. Para se rir. Para brincar.
— Na vida na América não faltava nada. Trabalhava, tinha tudo o que queria. Tinha tudo o que queria. Tinha sempre coisas para fazer. Eu gostava muito de sair com os meus pequenos. A mulher, eu chamo-a mulher, ela ia para o bingo. Ela gostava de fazer bingo. E eu tinha o dia com os meus pequenos. Os meus dias — quarta e sábado — era para mim a noite para vender (droga), mas o Domingo e a terça era para eu estar com os pequenos. Ficava em casa ou levava-os ao restaurante Chuck E. Cheese’s. É uma coisa para os pequenos e eles gostam muito de ir lá. Aquelas coisas das bolas… Eu estava sempre com os meus pequenos.
Em 2001, foi deportado por tráfico de cocaína. A companheira e os filhos ficaram nos Estados Unidos.
— Eu não gostei nada de vir para cá. Quando cheguei cá, eu não percebia nada daquilo. Isto é uma ilha. Comparada com aquele país de onde eu vim, é uma vergonha. Aqui não há nada. Isto é um pedaço pequenino. Vês a ilha toda em duas ou três horas. Vês a ilha toda…
José Eduardo Pacheco foi, entretanto, condenado em Portugal a seis anos e cinco meses de cadeia por tráfico. Tinha quatro gramas de “castanha” e três de “branca” em casa.
A maioria dos deportados presos comete, em Portugal, crimes mais graves do que aqueles que motivaram a sua expulsão.
A crença num futuro menos sombrio é uma constante.
E todos ou quase sonham com a liberdade e com a fantasia confusa do regresso.
Arrifes. Concelho de Ponta Delgada.
Terra de agricultores e de emigrantes.
Carlos Correia. Nasceu na Travessa dos Milagres.
Tinha 12 anos quando abalou com os pais e os irmãos para a América.
Aos 16, meteu-se no haxixe.
Aos 18, na cocaína.
Depois, enveredou pelo crack. E a criminalidade.
O pesadelo continua… (Imagem: Rui Pereira) E a América aqui tão longe. (Imagem: Rui Pereira) Nada resiste ao tempo. (Imagem: Rui Pereira) Cumpriu 14 anos de prisão. Foi deportado em 2009. Já não vinha aos Açores há mais de 30 longos anos…
— É só andar nas ruas por aí… sem destino. A parte mais difícil é acordar de manhã. E já pensei no suicídio muitas vezes. Pensei no suicídio muitas vezes. Acordo todos os dias de manhã e é sempre a mesma coisa. É sempre a mesma coisa e eu não quero levar esta vida assim.
Perdeu um filho — por causa da droga. Tentou suicidar-se.
Agora, sobrevive (desvinculado de tudo e todos) com os cento e tal euros mensais que o Estado português lhe dá.
— Eu vou para um quarto agora. Eu vou para um quarto no fim desse mês. Eu vou pagar 60 euros da minha algibeira. E fico com 120 euros para comer durante todo um mês. Não dá! Não dá para sobreviver. Eu passei fome. Eu passei fome. Muita fome que eu passei. Não tinha comida nenhuma.
O inferno no meio do paraíso. (Foto: Rui Araújo) Há dias em que passa fome, mas… mas o pior ainda é o desassossego. Absurdo ou não, como, por vezes, a própria vida.
A Universidade dos Açores estudou o fenómeno da repatriação — da deportação.
E faz sentido: os açorianos são a maioria.
Entre 1987, ano da primeira deportação — um homem de São Miguel — e hoje, 1316 pessoas naturais do arquipélago foram expulsas dos Estados Unidos, Canadá e Bermudas.
Inquirimos Álvaro Borralho, um sociólogo da Universidade dos Açores.
— É, sobretudo, homem. Tem uma idade entre os 25 e os 45, 50 anos. Vem de um meio social algo desfavorecido. Tem uma escolaridade baixa. Tem um emprego precário. Empregos que muitas das vezes se sucederam uns aos outros sem grande estabilidade laboral. Vêm de áreas urbanas muito grandes, seja da costa Leste, seja da costa Oeste. Estão ligados a áreas urbanas. Estão no fundo ligados aquilo que foram os destinos principais da emigração açoriana que se fez a partir da década de 50.
1.316 emigrantes naturais do arquipélago foram expulsos dos EUA, Canadá e Bermudas.
As agruras do quotidiano estão estampadas no rosto. (Imagem: Rui Pereira) — Nalguns casos estes crimes foram cometidos muitos anos antes e foram aplicadas as penas retroactivamente sobre eles, quando eles já estavam perfeitamente integrados na sociedade norte-americana. Vêm sem empregos, em alguns casos as famílias não os acolhem ou acolhem muito dificilmente. Por outro lado, na sociedade açoriana também encontramos um choque e uma certa resistência à sua integração. É evidente que esse choque e essa resistência já foi maior. Hoje, há uma abertura mais facilitada mas o que é facto é que acaba por haver esse anátema de que cometeram crimes. — acrescenta o sociólogo.
Os dados do Relatório anual de Segurança Interna são terminantes.
Em 2015, foram deportados 25 portugueses (dos quais 22 são açorianos).
No ano passado, 51.
Os que se sabe… porque pediram apoio.
Lagoa das Furnas. Leste da ilha de São Miguel.
É a terra das fumarolas, das nascentes termais e do cozido — e é ainda a freguesia materna de José Costa.
Portugueses de primeira e portugueses de segunda… (Imagem: Rui Pereira) Imagem deslumbrante. E, por isso mesmo, equívoca…
O nosso homem nasceu há 54 anos num dos recantos do povoado.
Tinha 7 anos quando foi parar à América.
Deu largas à juventude.
Foi tropa — 11 anos. Foi pedreiro. Casou. Descasou. Tem três filhos de uma faialense e um de uma cidadã americana.
Em Dezembro de 2014 foi deportado por causa de uma história de saias e de transgressões quixotescas (ou coisa que valha!): para iludir o (des)amor, deu-lhe para ameaçar a companheira.
Há 45 anos que não pisava o solo da terra natal…
E a Oeste nada de novo… (Imagem: Rui Pereira) — O meu país é a América. Foi onde eu fui criado, basicamente, e onde vivi quase 50 anos. Eu não quero voltar para trás. O meu país e a minha vida é aqui, mas eu tenho uma grande mágoa de ser deportado para aqui. Tudo o que eles me fizeram… Eu dei a minha vida por um país que não foi onde eu nasci.
O passado militar (11 anos no Exército norte-americano) contrasta definitivamente com as agruras do presente. A pobreza. E a solidão. E o sentimento de injustiça.
— A maneira como aqui em São Miguel olham para as pessoas como eu que foram deportadas… Apesar de termos vivido nos Estados Unidos é como se a gente fosse um negro. Como a gente… fosse lixo. Não analisam as pessoas para as capacidades que elas têm. Fazem de nós… não valemos nada. Nós somos filhos de gente portuguesa, gente açoriana e eu estou aqui. Às vezes, quero educar alguns que não têm compreensão nenhuma. E isso é o que faz irritar, fico irritado e fico um pouco mal disposto com a disposição das pessoas que dizem que nós somos repatriados. Nós não somos repatriados. Nós somos açorianos filhos da mesma Pátria que eles são.
Partimos para Sul à descoberta de outra história. Outras raízes e mais desgraças, porque é aquilo de que a gente nunca esquece…
A contas com o passado. (Imagem: Rui Pereira) O sol rompe a penumbra do horizonte.
São 25 minutos de viagem. O nosso destino fica a oitenta e um quilómetros — umas 43 milhas náuticas.
Sara Sebag. 49 anos. Solteira.
Entrevista na placa do aeroporto.
— Há quantos anos é que não vinha aqui?
— Há 46 anos quase…
— E qual é a sensação?
— É uma sensação muito boa.
A casa onde Sara Sebag nasceu. (Imagem: Rui Pereira) Santa Maria.
É a ilha mais a Sul e mais a Oriente do arquipélago. Primeira a ser descoberta e primeira a ser povoada.
Vila do Porto foi, aliás, a primeira localidade dos Açores a receber (no século XV) o foral de vila.
Sara Sebag nasceu aqui. É a terra da mãe, Maria Ferreira. Foi locutora do Rádio Clube Asas do Atlântico.
O pai, José Sebag, poeta do surrealismo português e jornalista, era do Faial.
— Eu penso muito nas pessoas que estão vivas e nas que já faleceram. penso muito na minha mãe e no meu pai. E que eles gostavam… gostavam de ver-me melhor na vida. Também penso nos meus filhos e na família que eu tenho lá fora.
Tony Arruda: vida nova e regresso à prosperidade de antanho. (Imagem: Rui Pereira) Aos sete Sara foi para o Canadá. Toronto. Queria ser advogada, mas não passou do 10º ano. Perdeu-se. Em 2000 (com 33 anos), foi deportada para os Açores. Mais uma história de droga.
— Estou presa desde que eu saí do Canadá. Isto para mim é como se estivesse presa. Uma cadeia maior, mas é como se estivesse presa. A solidão é estar presa.
Esta manhã, Sara pisa pela segunda vez esta terra. Quer dar com o lugar de nascença, mas (passado tanto tempo) não é fácil. Já ninguém se lembra da família dela.
Às tantas, vamos parar a um banco.
Sorte ou tenacidade… as coisas ganham, repentinamente, mais significação. E acabamos por ir parar ao número 60 de uma rua sem nome do Bairro de Santa Bárbara.
Os homens e os ratos… (Foto: Rui Araújo) O tijolo substitui, hoje, a chapa ondulada de antanho (do tempo dos americanos).
Nem todos se queixam das desgraças e da rotina dos dias. Há males que vêm para o bem…
Há excepções…
Lomba da Maia, Ribeira Grande.
Tony Arruda. 47 anos. Foi deportado dos Estados Unidos há 27 por tráfico. Aqui na freguesia chegou a haver 10 como ele… Mas… o ex-emigrante aviltado recusou a segunda prisão (apesar de esta não ter grades!): juntou a coragem à esperança e montou um negócio.
Agora, trabalha por conta própria. É mestre-de-obras e pintor da construção civil. Por descargo de consciência, conseguiu recuperar a boa reputação e a prosperidade de outrora.
O outro lado da deportação. (Imagem: Rui Pereira) — Eu consegui! Estou contente com a vida que tenho. Consegui livrar-me dessas porcarias. Tenho trabalho. Acho que qualquer pessoa pode fazer o mesmo com força de vontade..
Mais paleio para quê?
José Borges.
47 anos. 45 de Canadá. E 20 de prisão.
Com a ambição cega do dinheiro, tudo lhe parecia legítimo, a começar pelo tráfico de estupefacientes e os assaltos. Mais uma entrevista na língua de Shakespeare…
— Escolhi a vida que queria e paguei o preço. Deportaram-me. Fui mandado para cá e… Isto é lindo. Olhe para isto. Isto é lindo, mas o problema é que aqui não há nada para mim. É de loucos! Não há nada para mim.
O deportado e o horizonte sem perspectivas. (Imagem: Rui Pereira) Ponta Delgada.
Muitos deportados vieram, aqui, parar. Vencidos, renderam-se ao alívio da morte. Ocupam campas anónimas.
Não resistiram à agonia do tempo e à distância. À ruptura. À exclusão. À miséria. À ausência de perspectivas. E à pressão social (estigmatizante) da sociedade açoriana.
Não os acolhemos com respeito e dignidade. Para não falar em afecto. E era o nosso dever ético e moral. Era…
NOTA:
O National Park Service divulga dados factuais sobre a cadeia de Alcatraz [ver AQUI]
Esta reportagem de Rui Araújo, com imagem de Rui Pereira e edição de Miguel Freitas, foi originalmente emitida na TVI, em Abril de 2017. [ver AQUI]
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De Balsemão (Marcelo no meio) até ao único Bloco Central
Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 4º episódio, abordam-se as consequências da morte de Sá Carneiro, com a ascensão de Pinto Balsemão ao cargo de primeiro-ministro, e como foi sendo ‘minado’ até ao ponto de o PSD ficar ‘esfrangalhado’. Não perde completamente o poder, porque, com a vitória de Mário Soares nas eleições de 1983, aceita uma coligação para criar o mítico Bloco Central, que, na verdade, foi a única vez que existiu. Até agora…
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Da ‘geringonça’ PS/CDS até à ‘genuína’ AD de Sá Carneiro
Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 3º episódio, abordam-se os primeiros Governos socialistas, um dos quais com uma estranha geringonça (com o CDS), depois passa-se rapidamente pelos Governos de iniciativa presidencial (Nobre da Costa, Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintasilgo), até acabar na formação da Aliança Democrática, que sai vitoriosa em 1980. Um governo que termina abruptamente com a morte de Sá Carneiro e a ascensão (sem eleição) de Pinto Balsemão a primeiro-ministro, em cujo elenco governamental desponta um certo jovem imprevisível.
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Da Constituinte e do Verão Quente até ao sufrágio a sério
Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 2º episódio, abordam-se os resultados e efeitos das eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de 1975, que serviu do que para eleger deputados para preparar o sufrágio no ano seguinte para o primeiro Governo Constitucional, que deu a vitória ao Partido Socialista, de Mário Soares, que se tornou o primeiro-ministro eleito em democracia.
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Os ‘negocistas e politiqueiros’ nas eleições da Primavera Marcelista
Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Mas, neste 1º episódio, abordam-se episódios marcantes de umas eleições ainda no Estado Novo, em plena Primavera Marcelista, onde despontavam algumas figuras gradas da futura democracia, entre as quais Mário Soares, que num comício público no Tivoli bradou que o regime criara “um baronato de negocistas e politiqueiros que sugam o povo”.
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Portugal: Clandestinos da vida
DEUS CHAMOU-ME DESTE MUNDO.
JÁ CHEGOU A MINHA HORA.
A CULPA FOI DO DESTINO.
NÃO FOI DA FÁBRICA DO MORA.
DEIXO PAI IRMÃOS E AMIGOS NA SAUDADE.
A culpa é do Destino. Francisco José morreu num acidente de trabalho. O patrão da fábrica não teve culpa. E mandou gravar isso mesmo na lápide cinzenta de mármore depois de pagar a campa. Um descargo de consciência que lhe custou cento e tal contos, mas pouco importa.
Francisco José da Silva tinha 13 anos.
Morreu a trabalhar.
O pai do miúdo ainda vai ao cemitério de vez em quando. A lápide, as flores murchas e o vento não farão perdoar o que aconteceu porque ninguém é culpado. É a versão do pai: a culpa é do Destino. E o Destino não é gente…
Imagem: Norberto Lopes — O meu filho andava a trabalhar. E no elevador, ou seja, um porta-cargas, que subia de um andar, ou seja do rés-do-chão para cima…
— Numa fábrica…
— Numa fábrica. Ao para cima ia carregado. E ao para baixo eles iam de volta para aproveitar a vir no elevador vago para baixo, não é? Porque eles podiam-se deixar estar lá, mas com aquela coisa de brincadeiras iam de volta e vinham…
— Duas crianças juntas num elevador.
— É. Duas crianças juntas no elevador. Acontece que ele vinha a comer uma maçãzita e distraíu-se ao passar, que aquilo era uma espécie de um tunelzinho, só tinha coisas para transportar a carga. Lá ia com a cabeça levantada mais para cima, distraído, e apanhou-lhe a cabeça. E morreu. Ficou instantâneo. Eu julguei na ocasião que não tinha ficado instantâneo, mas depois é que acabei por saber que tinha ficado instantâneo.
— Tinha 13 anos…
— 13.
— Morreu a ganhar o pão…
— Pois. — responde-me Manuel Joaquim da Silva, o pai.
O homem coça a orelha lentamente e prossegue.
— Andava na escola industrial. Perdeu um ano porque mudou de ambiente. ..
— E o senhor tirou-o da escola e meteu-o o trabalhar. O senhor acha que lhe deu a existência que ele merecia ter?
— Eu dei-lhe a existência que ele merecia ter em virtude de não o deixar andar por aí na ‘vadiice’ ou seja para aí juntamente com outros…
— E a única solução era metê-lo numa fábrica?
— A única solução era metê-lo a trabalhar para que ele não andasse a fazer asneiras, não é?
— O senhor não sente remorsos do que aconteceu ao seu filho?
— Eu não sinto remorsos porque afinal de contas aquilo foi o Destino. Sim, isso foi o Destino. Absolutamente…
— O senhor não sente culpa nenhuma?
— Absolutamente nenhuma. Não tenho culpa nenhuma!
Imagem: Norberto Lopes — Acha que é normal o que aconteceu a uma criança de 13 anos?
— Eu acho que é normal em virtude de ela estar a trabalhar, não é? Se andasse na brincadeira até também podia ser apanhado por um carro numa estrada ou numa coisa qualquer…
— O que é que aconteceu ao patrão?
— O patrão…
— Foi condenado?
— Pagou uma multa.
— Só uma multa?
— Sim. Pagou uma multa porque houve um acordo entre o tribunal…
— E ao senhor? O que é que ele pagou?
— A mim pagou-me… A companhia de seguros deu-me à volta de 100 contos.
— E o patrão o que é que lhe dá a si?
— …
— Umas meias pelo Natal?
— Sim.
Francisco José não é a única vítima do trabalho infantil. Como ele há mais alguns e em muitos casos eles até são mais novos. Trabalham em fábricas, oficinas e sementeiras, sobretudo no Norte do país.
Estrada Guimarães – Felgueiras.
Sete da manhã.
Três miúdos à espera de transporte para a fábrica.
— Bom dia.
— Bom dia. — reponde o petiz de saco de plástico verde dependurado numa mão.
— O que é que tens aí dentro do saco?
— É a comida.
— Para quê?
— Para levar para o trabalho.
— Para o trabalho. E já trabalhas há muito tempo?
— Há dois meses.
— Que idade é que tu tens?
— 10 anos.
— 10 anos. E o que é que tu fazes?
— Faço várias coisas…
— Numa fábrica de quê?
— Calçado.
— E vocês agora estão aqui à espera da camioneta…
— Já aí vem.
— Então até já.
Paulo mais o irmão José e um amigo aproveitam a boleia do patrão. A estrada é sempre a subir e depois também dá para falar um pouco com os outros colegas, com o patrão.
Aproximo-me da carrinha da fábrica Lirifel
[NOTA: a firma ainda existe. Está sediada em Três-Cancelas – Lagares].
— Bom dia.
— Bom dia.
— O senhor vai levar as crianças para a fábrica? É?
— É. É.
— É?
— Está claro vou levar tudo para a fábrica.
— E qual é a fábrica?
— Fábrica de calçado Lirifel.
— E tem lá muitas crianças a trabalhar?
— Não. Crianças, não. Desculpe…
— Não?
— Crianças depende do ponto de vista que vocês vêem… Não se pode considerar crianças, vá…
É uma explicação. Depois de a mãe dos rapazes combinar com o homem uma desculpa para o caso de haver mais perguntas indiscretas, a carrinha arranca.
Quando lá chegamos acabaram as surpresas para toda a gente.
— Era o seu filho que ia na camioneta a guiar? Era?
— Era.
— Então nós gostávamos de falar com ele porque o que acontece é que ele tem crianças muito novinhas a trabalhar… Havia uma criança de 10 anos a trabalhar…
— Parece que não…
— Parece que sim… Olhe, que sim.
— Parece-me que não…
— Não é verdade?
— Não… 14 anos para cima…
— 14 anos para cima… Então onde está a criança que vinha na camioneta?
— Foi uma boleia.
— Foi uma boleia… — sublinho.
Ninguém ousa chamar as coisas pelo seu nome. Até o contra-mestre depois de se descair inventa um filho que não teve só porque está a trabalhar com um menor de menos de 14 anos. Sabe que a lei o proíbe.
O decreto-lei 286 de 88 não deixa margem para dúvidas: «A utilização do trabalho de menores (…) é punida com multa de 50.000$00 a 250.000$00 por qualquer situação individual (…) e no caso de o menor não er ainda atingido o termo da escolaridade obrigatória ou de o trabalho se realizar em condições especialmente perigosas para a saúde ou moralidade do menor, a multa será elevada para o dobro» – entre 100 e 500 contos.
O facto é que a lei no seio de muitas empresas é a do patrão. O flagelo do trabalho infantil continua a propagar-se no Norte do país. Quem o diz são os sindicatos, sobretudo a União dos Sindicatos de Braga, mas também e curiosamente a própria Inspecção-Geral do Trabalho.
Um relatório síntese confidencial da Inspecção sobre trabalho de menores ou infantil datado de Julho deste ano (1988) refere que só entre o primeiro e segundo trimestres de 1988 houve um acréscimo de mais de 25%.
Imagem: Norberto Lopes O mesmo documento indica que há sobretudo menores de 14 anos a trabalhar nas indústrias do vestuário e confecção, calçado, construção civil e hotelaria.
As razões: a ganância de alguns patrões e de muitos pais, a ineficácia dos organismos estatais como a Inspecção, uma política económica e social controversa, mas sobretudo a miséria — a económica e a outra.
A carrinha da fábrica passa agora sem parar. Paulo, José e o vizinho apearam-se algumas curvas antes. Desta vez, é preciso um corta-mato para irem almoçar a casa.
Os miúdos vivem nesta casa com os pais e uma avó. A família não é abastada, mas também não passa fome. O pai é funcionário na Câmara Municipal de Felgueiras. A mãe trabalha numa escola.
O casal tem casa, dois ordenados, um carro de serviço ao dispor, uma motorizada e um pastor alemão. E… uma vivenda em construção do outro lado da estrada.
— Não se importa só de se virar para mim um segundo? É uma reportagem sobre trabalho…
— …
— A pergunta é assim: a senhora tem uma criança — tem mesmo duas…
— Sim.
— E o seu filho de dez anos está a trabalhar numa fábrica…
— Não está, não. Ele é família. Ele é sobrinho…
— Aí, não a estamos a ver. Não se importa de… Sim, diga lá.
— Ela é sobrinha da minha mãe.
Imagem: Norberto Lopes — Quem?
— A senhora da fábrica. E o meu filho vai para lá para olhar por eles. Eu trabalho. O meu marido trabalha na Câmara. Eu trabalho na Escola. E não temos a quem deixar o miúdo…
— E acha que uma fábrica…
— É uma fábrica de calçado.
— É o melhor sítio onde pode estar uma criança?
— Sim. Sim.
— Melhor do que em casa?
— Sozinho?
— Melhor do que na escola? Está aqui gente. Está aqui a sua vizinha. Está aqui mais gente…
— Ele anda na escola…
— Anda de escola à tarde e vai fazer depois também umas horas à fábrica…
— Não vai… Vai para ela ficar a olhar por ele.
— Mas não foi o que ele nos disse…
— Coitadinho… Sabe o que é…
— Ele disse que trabalhava, quantas horas, e temos amigos dele que nos confirmaram que é verdade. Temos testemunhas de que ele trabalha lá todos os dias. E o irmão também…
— O irmão…
— O irmão feriu-se na fábrica!
— Não foi, não.
— Não foi? Então o que é que foi?
— Foi na brincadeira.
Há pessoas que não sabem mentir talvez por nem sequer elas próprias acreditarem naquilo que contam.
— Aqui por estas fábricas há muitas crianças a trabalhar e os seus dois filhos seriam duas das crianças…
O pai das crianças põe-se a olhar para o relógio de pulso.
— Vem aí o carro.
O sujeito abala rapidamente.
Imagem: Norberto Lopes O pai, pelo menos esse, com a desculpa de estar cheio de pressa não disse nada. A situação dos filhos até nem é das piores da região. Há crianças a sofrer bem mais e não é só em termos de dureza do trabalho ou de vencimento. A grande maioria ganha menos de 10 contos por mês e nem se queixa. É também a violência física tanto por parte dos patrões como dos empregados.
Exemplos não faltam.
Participação ao Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vilaverde.
O proprietário de uma padaria admitiu Fernando. Despediu-o quase logo a seguir depois de o ter agredido corporalmente. As testemunhas acrescentam que o miúdo trabalhava entre as 22:30 da noite e as 14:00.
Fernando tinha 12 anos. Tinha jornadas de mais de 15 horas…
Uma fábrica de balanças de Celeirós processou um trabalhador que bateu num miúdo depois de o ter repreendido. O empregado voltou a agredi-lo segunda vez e como não há duas sem três voltou a arriar-lhe forte e feio a pretexto de coisa alguma. A nota de culpa refere que o agressor foi suspenso durante seis dias. A criança era muito novinha…
Oficialmente até estava a trabalhar na fábrica a título gratuito… durante as férias escolares para não andar pela rua a pedido dos seus pais.
Alguns já nem têm férias. Nem sequer chegam a entrar na escola… Vão directamente para a fábrica aprender o que é a vida.
— O que constato directamente nas aulas que dou é que turmas de 30 alunos na programação estão reduzidas a metade porque eles na idade em que estão de escolaridade obrigatória encontram-se já a trabalhar nas empresas vizinhas, sobretudo a zona de Moreira de Cónegos, que é para o lado em frente, e na zona da entrada de Vizela, vindo de Guimarães, a zona de Enfias. São zonas carenciadas de mão-de-obra a tal grau que são obrigados a recrutar o seu pessoal não só na zona em que estamos como estendendo a sua captação até à área do concelho de Cabeceiras de Basto. Fica-lhes mais barato evidentemente recorrer aos alunos e alunas locais. — denuncia Egídio Guimarães, professor da Escola Preparatória de Vizela.
Francisco abandonou a escola há uma eternidade. Agora, só conta com a força dos braços e das pernas para aguentar 11 e 12 horas de trabalho a fio, seis dias por semana. No dia de folga, amanha a horta da família. O momento de descanso ainda mais agradável é o do almoço, apesar da comida.
— E a seguir, vais para o trabalho…
— Hum…
— O que é que tu fazes?
— Ora bem, eu lá ando a descascar paus, faço qualquer coisa lá: ajudar…
— Numa serralharia…
— Sim.
— E há quanto tempo é que trabalhas?
— Um ano e meio.
Imagem: Norberto Lopes — E que idade é que tu tens?
— 13 anos.
— E tens mais irmãos?
— Tenho.
— Quantos?
— Oito.
— E trabalham todos?
— Menos dois.
— Menos dois. E porque é que tu abandonaste a escola?
— Eu não gostava dela…
— E os teus pais também precisavam de dinheiro?
— Não era bem isso. Eu é que não gosto muito daquilo…
— E há mais rapazes novos a trabalhar na serralharia onde tu estás?
— Não. Sou o mais novo que ando lá.
— És o mais novo. E o patrão quanto é que te paga por mês?
— 11 contos.
— E trabalhas quantas horas por dia?
— 10.
— 10 horas. Todos os dias?
— Todos os dias. Só menos ao sábado que pegamos às seis e largamos às seis…
— E se nós agora formos lá à empresa onde tu estás a trabalhar o que é que tu achas que pode acontecer? O patrão manda-te esconder, o patrão… O que é que acontece?
— Não sei. Não sei o que pode acontecer.
— Não sabes o que pode acontecer, mas sabes que é proibido estar a dar trabalho a rapazes com a tua idade. E fala-se nisso lá na oficina? O patrão já te disse alguma vez alguma coisa?
— Já me disse isso.
— O que é que ele disse?
— Disse que se for lá alguém, um fiscal, pode mandar-me embora e ele pode pagar uma multa.
— E o que é que o patrão disse para tu dizeres ao fiscal ou às pessoas que lá forem?
Imagem: DR — Eu escondo-me, não é? Para eu esconder ou que eu tenho mais que 13 anos. Que já saí da escola…
A descida ao inferno da clandestinidade passa contudo por situações bem mais sombrias.
«Esta sociedade esmaga sem dar conta» — palavras de Torga. Palavras de hoje no Norte onde atrás da prosperidade das pequenas e médias indústrias se esconde a degradação humana.
— O povo diz que quem não aproveita o trabalho das crianças embora pouco é louco. Efectivamente as crianças podem fazer muita coisa. Dar-lhes o sentido do trabalho, da educação por coisas pequenas, mas aliás há escolas. O escotismo, por exemplo, é uma escola maravilhosa nesse sentido. Por exemplo, o escotismo ocupa as crianças, os adolescentes na limpeza de praias, na limpeza de pinhais. Tem feito esse serviço, quer o escotismo de rapazes quer o escotismo das meninas e guias de Portugal. — diz-me Eduardo Melo, vigário geral da Arquidiocese de Braga. Ainda no verão passado limparam as praias de Esposende. Limparam matas, como por exemplo, ali de Bouro, na zona de Albergaria. São trabalhos que se fazem desportivamente sob a orientação de responsáveis. Educam e podem ganhar alguma coisa…
— O desporto na fábrica é mais difícil, senhor Cónego…
— Efectivamente que sim, mas eu julgo que um trabalho proporcionado, adequado no tempo, no lugar, na intensidade… Eu julgo que será profundamente educativo.
Nem todos os padres pensam como o vigário de Braga. Progressistas indecisos há-os por toda a parte. Uma coisa porém é certa: não se sabe qual é a dimensão real do trabalho infantil em Portugal. As previsões, quando existem, são muitas vezes curiosas ou duvidosas.
Para o Instituto Nacional de Estatística existiam no primeiro trimestre deste ano 46.900 crianças a trabalhar.
A Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), um departamento governamental especialmente vocacionado para este assunto, apenas detectou durante esse mesmo trimestre 65 menores de 14 anos.
Das duas, uma: ou 46.835 crianças se perderam a caminho do trabalho ou a ineficácia da IGT é total…
Francisco trabalha em Moreiras numa serração de madeiras. O patrão está a chegar agora mesmo no camião com os troncos.
— Há falta de trabalhadores aqui nesta zona? — indago.
— Ora bem, isto é como em todo o lado. Nesta altura, há falta não é de trabalhadores. Há falta é quem queira trabalhar. Trabalhadores há muitos, está a ver… só que é trabalhadores para o café, está a perceber?
— E trabalho infantil? Tem garotos a trabalhar para si?
— Não!
— Não?
— Temos um com 14 anos…
— Quem é?
— É este. Tem 14 anos.
— Tem 14 anos.
— Ele em recibos? O senhor dá-lhe…
— Ora bem, ele veio para aqui há dias, está a perceber, e vai começar a trabalhar… Nesta altura está aqui. Está a ver, o meu irmão não está e ele está aqui a guardar isto, não é?
— Está a guardar? Só? Não trabalha?
— Para já não está metido ao trabalho porque…
— E está cá só há um mês e meio… Diga-me uma coisa: quantas horas é que ele trabalha por dia?
— Oiça lá, o horário normal, como nós.
Imagem: DR — Quantas horas?
— O que trabalha mais aqui sou eu, está a perceber?
Mentiras e conivências que o hábito tece. E quem se desvia do rigor sumário do silêncio é imediatamente ou quase excomungado.
Este homem vive na região de Felgueiras há uma série de anos. Conhece bem a terra e a gente. Aceitou denunciar a situação. Depois, porventura pressionado por familiares industriais que empregam menores, proibiu a emissão das suas acusações.
A cobardia é outra maleita comum a esta situação. Só não vê quem não quer. Praticamente toda a gente tem crianças a trabalhar… Há crianças que ainda andam a estudar. Trabalham em part time. Outras, trocaram definitivamente a escola pela fábrica ou pelas obras.
— Esta situação acontece no distrito de Braga e não só – consideramos que é um problema nacional. É lamentável que os patrões vejam nas crianças o seguinte objectivo: hipotequem o futuro das mesmas crianças – portanto, abandonam a escola com a garantia de lhes pagarem miseráveis escudos a troco de trabalho que é feito por elas que devia ser feito pelos adultos. — constata Vítor do Vale da União de Sindicatos de Braga.
Mão-de-obra clandestina só na aparência legal. A teia de cumplicidades e a ineficácia das autoridades são tais que muita gente nem sequer se dá ao trabalho de se esconder.
— Não gostavas mais de estar a brincar? A estudar?
— Hum… Não sei.
— Os teus pais… o que é que eles acham disto?
— …
— Quantos irmãos tens?
— Lá em casa somos três irmãos.
— E trabalham todos?
— Não. Só dois…
— Um tem 11 e o outro tem quatro.
— E trabalham?
— Não. Trabalha só um.
— Que idade tem o que trabalha?
— Tem 12. (sic)
— E o que é que ele faz?
— É também desta profissão.
— É trolha?
— Sim.
— E ele quanto é que ganha?
— Não sei. Não sei quanto é que ganha. Ele começou há pouco. Começou ontem a trabalhar… (sic)
— E o teu pai trabalha?
— Trabalha.
Imagem: Norberto Lopes Jorge foi para trolha, tentado por media dúzia de tostões e a fuga ao aborrecimento da escola. Trabalha 10 horas por dia. Ganha 18 contos por mês. Não gosta muito do que faz, mas também não se lamenta. É a opção do possível. Proibir o trabalho infantil não chega. É preciso criar alternativas — melhores alternativas. Caso contrário o trabalho infantil aumentará ainda mais à medida das misérias.
— Vieram aqui uns miúdos e disseram-me se que queria deixar o miúdo ir trabalhar e eu disse que não porque ele que não tinha 14 anos. E eles disseram-me que o patrão que diz que como ele está próximo a fazê-los que não fazeria mal, que não teria perigo. Prontos. Foi, mas não foi logo nessa ocasião. Eles vieram aqui uns dias e depois o miúdo foi. Passados aí uns dias é que foi trabalhar. — conta Maria Rosa Gomes.
António, o filho de Maria Rosa Gomes, começou a trabalhar aos 11 anos de idade. Primeiro, esteve numa fábrica de cerâmica. Depois, foi para as obras. O último emprego que teve foi numa fundição. E aí é que foram elas…
— Estava a trablhar como serralheiro. Trabalhava nove horas por dia. E assim…
— Quanto é que tu ganhavas por mês?
— 15 contos.
— 15 contos… E o que é que aconteceu?
— Ah… (silêncio) Um dia o disco apanhou a camisola e cortou-me o braço.
— E o que é tu achas desta história toda? É justo o que te aconteceu?
— É justo. Isso é justo. (sorriso imensamente triste e longo silêncio)
— E agora? Viver sem um braço é muito diferente?
— Já estou habituado. Para mim… já não… já não me interessa. Já pouca diferença faz.
António tem agora 13 anos. Talvez acabe por voltar para a escola primária. O dinheiro vai ter de dar com a pensão do pai e a indemnização que porventura venha a pagar o patrão, mas isso é outra história.
Para a família do rapaz o dono da fundição até nem é má pessoa. É verdade que não mandou avisar a família do acidente, não foi ver o miúdo ao hospital nem a casa, mas já avançou uma outra proposta de trabalho.
Meto conversa com a avó de António.
— O que é que a senhora acha das crianças que trabalham?
— Coitadinhos, eles agora não trabalham sem terem 14 anos, mas antigamente… — responde-me Ana Borges.
— Não. Agora também trabalham. O seu neto começou a trabalhar aos 12…
— Sim, trabalham. Mas antigamente trabalham mais cedo. Assim que pudesse começar a sacar um pouquinho de aqui e de acolá, já ia para ganhar o pão para comer.
— Mas as coisas mudaram. Passou muito tempo.
Imagem: Norberto Lopes — As coisas mudaram mas…
— Ou não mudaram?
— Mudaram. Agora é mundo novo.
— Mas as crianças continuam a trabalhar…
— As crianças continuam a trabalhar, está bem, mas ele…
O patrão da fundição parece ter outra noção das responsabilidades. mandou encerrar as portas da fábrica por causa dos olhares intrusos. Recusou responder às nossas perguntas. (NOTA: A Fundibraga, Comércio de Metais, Lda já não está activa).
As oficinas e fabriquetas clandestinas que pululam por estas bandas, lugares comuns do trabalho negro começaram, contudo, a criar alguns esquemas defensivos.
Aqui, nesta oficina de Esporões o cartaz exterior da legalidade imposta não deixa margem para dúvidas: o patrão só aceite adolescentes com mais de 15 anos.
— Que idade é que tu tens?
— Ah… 13 anos.
— E estás a trabalhar aqui nesta oficina?
— Sim, senhor.
— E já trabalhas há muito tempo?
— Há mais ou menos um ano.
— E antes? Já tinhas trabalhado noutro sítio?
— Não, senhor.
— É o teu primeiro emprego?
— É, sim senhor.
— E saíste da escola há muito tempo?
— Não. Ainda ando a estudar. Trabalho de manhã e de tarde estudo.
— E quanto é que ganhas aqui por mês?
— Aqui não ganho nada. (sic) Estou aqui é para ocupar os meus tempos livres… (sic)
— Os teus tempos livres a trabalhar?
O miúdo acena que sim.
— Sim, senhor.
— E qual é o teu trabalho aqui?
— Faço… ajudo…
— O que é que fazes exactamente?
— Faço janelas quando posso… pequenas e ajudo a cortar ferros.
— E há mais rapazes com a tua idade a trabalhar?
— Não, senhor.
(Ouvem-se gritos)
Imagem: Norberto Lopes — É o teu patrão que te está a chamar?
— Um momento. Já vou…
(Mais gritos insistentes ao longe.)
— O teu patrão está a chamar-te. E tens mais irmãos?
— Tenho.
— E trabalham também?
— Não.
— Não trabalham…
Passo à ofensiva.
— O senhor não se importa de vir aqui um segundo? O senhor é o patrão dele? Vamos ver se este senhor quer falar… O senhor dá-me licença? Podemos entrar? Bom dia, dá licença?
— Não, não.
— O senhor não quer falar? Tem menores a trabalhar aí…
— Ponha-se lá fora, de faz favor.
— Metemo-nos lá fora. É?
Pois é. O que vimos não devíamos ter visto. Se perguntámos não devíamos ter perguntado. Se ouvimos não devíamos ter ouvido. Deixem as crianças trabalhar em paz.
NOTA:
Esta reportagem foi efectuada em apenas três dias. Foi apresentada no programa «A Hora da Verdade» da RTP, no dia 22 de Dezembro de 1988 [ver AQUI]
O empenho de Norberto Lopes e de Sérgio Ramos (imagem), José António Fernandes (montagem VT e pós-produção vídeo), Carlos Germano (vídeo-grafismo electrónico), Rogério Lagos e Vítor Matela (pós-produção audio), Albano da Mata Diniz (sonoplastia) e de Luís Gonçalo Bettencourt da Câmara foi decisivo para fazer esta reportagem.
Miguel Sousa Tavares e Margarida Marante apoiaram o meu projecto.
Considero, aliás, que «Clandestinos da Vida» foi uma das reportagens mais importantes da minha carreira profissional.
E das mais difíceis também.
Tenho uma profunda admiração por aquelas crianças. E imenso respeito também pela sua coragem e força.
Rui Araújo
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Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
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Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra
“Um alfaiate faz de um torto um jeitoso”, mas, mesmo assim, o ofício está a desaparecer por esse país fora e a “Alfaiataria Cerqueira”, em Longra, não é exceção.
Corria o ano de 2020. Rui Araújo passou uma tarde com os alfaiates e as costureiras do atelier do Mestre Cerqueira, que passou a vida na Senhora Aparecida, e, precisava de um milagre para o negócio sobreviver.
Longra.
Bati de fugida e entrei na loja sem saber ao que ia.
Ao fundo, no atelier, dei com os alfaiates e as costureiras.
Joaquim Cerqueira, apesar de céptico, deu-me as boas vindas.
Admiro a bonomia ou a cordialidade desta gente honrada e trabalhadora do interior a contas com o isolamento e a adversidade.
(Foto: Rui Araújo) A alfaiataria Cerqueira a é a única da vila e das redondezas.
Chegou a ter 14 costureiras e alfaiates mais o mestre. Hoje, já só trabalham, aqui, quatro pessoas, incluindo a esposa e o sobrinho do dono. E uma costureira.
A prosperidade de antanho pertence irremediavelmente ao passado apesar de a alfaiataria ser mais do que um mero ofício para esta gente.
— Isto é uma arte. Uma prisão. Tem que se estar com a perna cruzada a trabalhar, a aprender, a dar pontinhos. É… é impossível, senhor Araújo. Eu sou o último alfaiate de Longra, se calhar sou o último de Felgueiras e, se calhar, vou ser o último do Distrito do Porto… — segreda o mestre com um sorriso tímido de candura.
O solilóquio é sincero. O tom é triste. As coisas são o que são… O negócio está a definhar.
Joaquim Cerqueira aprendeu a arte quando ainda era gaiato. Tinha acabado de deixar a escola. 10 anos de idade.
— Eu fiz sempre trabalhar a mão. Isto é a mão. Ó senhor Rui, trabalhar com a mão demora anos a aprender. E se posso… se puder recuar atrás, eu, quando fui trabalhar, no meu tempo pagava-se para aprender a arte. Ainda é o tempo que se pagava. E eu andei e porque… anda que o meu pai não pagou, mas toda a gente pagava naquela altura: três contos ou 500$00. Era assim… Eu andei assim um ano de graça. A seco. E no fim de um ano começaram a dar-me 15 tostões por dia. Sem horário de trabalho…
A desilusão é tremenda, mas no atelier ninguém esmorece.
Dona Maria Cidália Pinto, a esposa, começou a trabalhar como bordadeira com oito anos.
Hoje, ousa recordar a significação de alguns momentos singulares aqui vividos.
Uma vida cheia…
— Eu não era para contar esta, mas pronto, já agora vou contá-la… Houve uma altura que eu estava aqui com os meus filhos nos primeiros anos, que nós não morávamos aqui, era um bocadinho longe e, muitas vezes, antes de ter os filhos eu ia mais o meu marido numa motita às 2… 3 da manhã com frio, com chuva. Depois, entretanto, nasceu a minha filha, a primeira filha, e nós para não ir com a menina na mota ao frio, montámos, aqui, neste cantinho um divãzinho, aqui ao lado, um fogãozinho daqueles pequeninos aonde eu fazia a refeição da noite e dormíamos aqui para não apanharmos frio por aí abaixo com a menina…
As voltas que a vida dá…
E não vale a pena encobrir a verdade por mais absurda que seja.
Antigamente, a «Alfaiataria Cerqueira» fazia 15 ou 20 fatos e 90 pares de calças por semana — tudo à medida do freguês.
Hoje… com a pandemia e a crise aparece um trabalho ou outro.
As prateleiras aprumadas repletas de alpaca, fazenda, entretela, caxemira, cetim, algodão, surrobeco, burel e lã pura — tecidos de qualidade, alguns importados de Inglaterra e de Itália — só revelam que ainda se fazem aqui bons fatos à antiga portuguesa, trajes de equitação, samarras, capotes e casacas de gala para toureiros e devotos. E.… não só.
Joaquim Cerqueira Machado escuta-nos, mas (incansável) não tira os olhos do tecido. O padrão para ele é a excelência.
— Há uma coisa de que nunca mais me esqueci. Um dia, em Guimarães, tinha um senhor alfaiate dava cursos de recosa, a fazer os cursos de corte. E uma coisa que ele sempre me disse: um alfaiate de um torto faz um jeitoso. De um homem torto nós pomos um jeitoso porque nós conseguimos pôr… fazer as alterações todas. O alfaiate, enquanto que a confecção não faz alterações nenhumas. Se… O homem pode estar assim torto que nós conseguimos pôr o fato direito. E o resto ninguém consegue…
— Não é arte. É milagre! — acrescento, como quem não quer a coisa.
— Às vezes é mesmo milagre. (RI-SE) Às vezes faço cada milagre…
Afinal de contas, os milagres existem e os homens são todos iguais. Quem o diria (concluo no meio destas vidas estranhas ou desconchavadas fora do mundo do consumismo do pronto-a-vestir e do pronto-a-pensar).
Cláudia Mendes, a costureira mais nova, já está cá há mais de 20 e tal anos.
Cortar, coser, casear, chulear, guarnecer, alinhavar — tanto faz! — é com ela.
— Às vezes uma pessoa tenta, tenta, tenta, faz, desfaz, volta a fazer, volta a desfazer, levanta-se e vai dar uma voltinha para conseguir fazer perfeito… (RI-SE)
A nobreza da costura e da alfaiataria reside na busca permanente da perfeição. Do contentamento de se atingir a perfeição…
— A alfaiataria é uma arte que é pena ela desaparecer, senhor Rui, mas não há volta a dar. Hoje é muito difícil criar-se um artista. Muito difícil. Só com um milagre, mas os milagres já não se fazem.
A grandeza ou a força moral desta gente que não me canso de admirar é a luta por um amanhã menos desconsolado apesar de o raio da pandemia, que está a dar cabo do negócio e do resto, nunca mais acabar…
É outro dia calmo sem horas devolutas.
Fotos extraídas de vídeo de Romeu Carvalho/TVI (com excepção da foto da autoria de Rui Araújo)
Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2020.
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Dona Rosa, a pastora dos milagres
A solidão e a vida cheia de momentos de silêncio, cantigas, prantos e preces da pastora Carmelina Rosa Afonso, em Parâmio, Trás-os-Montes.
As memórias e histórias de milagres de quem já não espera nada, ‘apenas’ ora, chora, pensa e caminha… por caminhos que as pernas já conhecem de cor.
Parâmio.
Terra de choupos, amieiros, carvalhos e castanheiros.
Terra ainda de pastores e de milagres.A manhã rompeu gélida quiçá invernosa.
Lá adiante, a rua tosca desemboca na igreja matriz, que data de 1783 ou de 1787.Dona Rosa está a tocar o sino. Conscienciosamente. E sem esforço de maior, apesar de já ter 81 anos generosos como a vida que é — e foi! — a sua.
É o desafio ou a chamada para a celebração do caminho da cruz, a Via Sacra.
Fiéis à fé e ao burgo, que já só tem quarenta e quatro almas, ou simplesmente solidárias, Dona Palmira e a outra Dona Rosa aparecem de roldão para responder ao apelo do sagrado. E do intangível…As três mulheres percorrem com afinco as catorze estações da igreja. A sabedoria, aqui, ao contrário de lá fora, passa por um único caminho e as mesmas rezas de sempre.
Carmelina Rosa Afonso, pastora. (Foto: D.R.) A anciã, que tem a chave da igreja, trauteia de boa fé as orações com um timbre de circunstância.
— Sem Deus não há nada! Nós não podemos viver sem Deus. Não é viver. O viver sem Deus não é viver.
O padre de Bragança só cá vinha por dever. Um dia — já lá vai uma data de anos — abalou para terras de África. Santos de casa não fazem milagres…
Ficou São Lourenço, o padroeiro da aldeia, que não é para aqui chamado.
Daqui a nada são dez da manhã. É mais do que tempo de Dona Rosa desandar.
Parâmio: ruas desertas e casas abandonadas. E algumas ruínas. A mocidade desapareceu. E a escola está fechada.
Vou ver a Fonte do Caílho, que cura moléstias e quebra feitiços. É o que dizem…
A água que corre ao lado da imagem de Nossa Senhora dos Milagres e os preceitos rituais curariam o caílho, o anqueilhado, o angaranho, por outras palavras, uma espécie de raquitismo que impede as crianças de andar.
Crendice ou realidade? Já lá iremos… porque há por estas bandas quem saiba a missa toda.Poiares, terra do pão.
Estamos a menos de uma légua de Parâmio.Lá em baixo, a pastora, mais o rebanho e os cães. E uma melodia de há uma eternidade…
— Toda a vida fui pastora.
Toda a vida andei com o gado.
Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.
Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.Dona Rosa é pastora e gaba-se de ser pastora.
Faz das tripas coração para levar o rebanho ao pasto. Dia após dia… porque a coisa, aqui, não fia de outra maneira…
Faça sol ou faça chuva, com geada, com neve, mal o sol desponta no horizonte, a anciã assoma por entre montes e vales. Solitária como um lobo tresmalhado.
— O que custa mais é a solidão. A gente viver sozinha, não é? Por cá, passo os dias sozinha. Canto, choro, rezo… Rezo muito o tercinho. Rezo as minhas orações todas. E passo assim o meu tempo, não é? Mas é uma solidão. Não se vê ninguém. Não se vê ninguém pelo campo. Não se vê nada!
Os quatro cães de virar seguem-na — que é como quem diz, seguem o rebanho — maquinalmente.
— Ai, a puta da cadela. Ó Irís, ó Irís, ó Irís, ai sua marota. Rasgava a ovelha para as fazer vir para aqui…
Feitas as contas são 136 ovelhas e 100 cordeiros.
Na “loja”, que é o nome que dão ao curral, só ficaram os animais que acabaram de nascer.
Antigamente, havia sete ou oito rebanhos maiores do que este e outros tantos pastores.
— Eu sou a única pastora aqui. Os mais velhos já morreram. Já estão no Céu. Os mais novos não querem esta vida. Procuram vidas melhores…
Dona Rosa sai todos os dias com o rebanho. Sem pressas que o caminho é comprido.
E oito, nove, doze horas a calcorrear veredas e clareiras passam devagar.
— Penso em tudo. Nos filhos, nos netos, nos bisnetos, na vida. Na morte quando ela virá. Quando Deus me quiser levar estou ao dispor dele.
Deus ou a roleta do tempo não poupam nada nem ninguém. Nem a verdade. E, no fim de contas, tudo acaba em ficção: a morte é a morte.
— Canto muitas vezes a Cantiga da Mãe como já não tenho mãe. “Ó minha Mãe, minha Mãe. Ó minha Mãe, minha amada. Quem tem uma Mãe tem tudo. Quem não tem Mãe não tem nada. É. Sei-a toda.”
Os animais têm preocupações mais prosaicas: enchem o bucho.
Os cães, atentos, vigiam o movimento. E a pastora aproveita para orar.
— Eu rezo este terço das chagas do Senhor. Rezo o terço da Misericórdia. Rezo o terço vulgar que é as dez estações a Nossa Senhora e rezo o terço da chama de amor a Nossa Senhora. Todos os dias rezo estes terços…
— Porquê? Para quê?
— Porque… dá-me impressão que me dá outra vida, não sei. Não sei, pronto. Confio em Deus e em Nossa Senhora.
— E Deus confia na senhora?
— Ora aí é que eu não sei. Não é? Mas eu acho que sim… Eu acho que sim… (RI-SE)
— Acha?
— Acho. Acho que sim. Acho que sim porque eu chamo tanta vez por Ele… Chamo tanta vez por Ele…A confissão é sincera.
Perdeu o marido há demasiados anos.
Reza, canta, chora…É tempo de rilhar uma côdea. No saco tem um naco de bacalhau frito, pão e café.
O pior é o frio intenso, que se entranha, apesar do céu limpo.— Diz-se que no Verão é viver de cão a vida de pastor. E no Inverno é vida de inferno. (RI-SE) É assim…
Sempre foi.
Lá ao longe, ali atrás da primeira colina, é Espanha.
A naturalidade, aqui, na raia é irredutível, mas não é o mais importante. Nunca foi.— No tempo que houve lá a guerra, na Espanha, a gente também passou fome. E vinha, aqui, a Portugal. Era no tempo que se cozia nos fornos muito pão de centeio e eles vinham aqui. Traziam chocolates e trocavam os chocolates pelo centeio. E para levar para os filhos, pois. E então paravam muitos muitos em casa dos meus pais. Eles davam-lhes um cobertor e dormiam em cima de uns bancos e depois da madrugada é que eles saíam para se livrar da Guarda. Pois… A Guarda tirava-lhes os pães. Tirava-lhes o que levavam daqui. Naquele tempo houve fome na Espanha…
Os animais continuam a comer: malva, joio, língua de ovelha, carrajó, serradela, cardo molar…
A terra é generosa.
À imagem da água que por aqui corre.— Temos a Fonte do Caílho que é a fonte milagrosa para as crianças encaílhadas. A criança que é ancaílhada põe as perninhas em ruz e não anda. É. Depois de ir à Fonte do Caílho fazer a oração, se a criança for encaílhada anda ao cabo de quinze dias. É. Se não for encaílhada não há nada a fazer. Só por médicos, não é? Pois… Mas o milagre é esse. Se for ancaílhada, a criança cura. A gente leva-as, vai por um caminho, sem falar, até à fontinha. Depois, lá, estão duas pessoas. Se houver madrinha, de preferência é a madrinha. E a outra pessoa. E põe-se uma do lado da fonte e outra do outro lado e diz:
— Toma lá esta criança. Esta criança ancaílhada.
E a outra responde:
— Dá-me a cá sã e salva.
E pega na criança. Depois, devolve-a outra vez nove vezes e nove Pais Nossos e nove Avé Marias.
— E a seguir, o que é que acontece?
— E depois, pronto, a gente rezou essa Avé Rainha, antes reza-se o Acto de Contrição, e benzer e pronto. E a gente sai com fé, não é?
— E a criança começa a andar… – indago.— Se for ancaílhada, começa a andar. Logo passados dias começa a andar.
Parâmio.
A aldeia da deslumbrante pastora Carmelina Rosa Afonso e dos milagres que acontecem para acudir às desgraças das crianças.Na Terra Fria o impossível só pertence ao passado. As negações são como as sentenças: inúteis…
Fotos extraídas de vídeo de João Franco/TVI
Reportagem originalmente emitida na TVI, em Março de 2018.
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