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  • A aldeia do fim do mundo

    A aldeia do fim do mundo


    Encosta do Lapão.

    Freguesia de Montalvão. Alto Alentejo.

    A nossa história começa agora neste caminho estreito. Podia ter sido há 50, 60 ou até 80 anos porque nestes montes ásperos e desolados as coisas medram devagar…

    Na vereda só os passos lestos e regulares falam agora.

    Montalvão não pode morrer.
    (Foto: Rui Araújo)

    Primeiro encontro. Fernando Castelo. Vai fazer 80 anos. Tem 25 de Guarda Fiscal. Era do Posto de Montalvão no tempo da vida pobre. Fiscalizava a fronteira, a menos de uma légua daqui do caminho…

    —  Iam à Espanha quando podiam e vinham, pronto, e era assim. Tinham filhos. Tinham que ganhar algum tostãozito para lhes matar a fome, não é? Era assim o contrabando dantes. Não era aquelas grandes quantidades de mercadoria, não é, porque aqui não podiam transitar em carros nem nada. Era a pé! Não é… Depois, lá traziam… os homens traziam uma saquita em ar de mochila. Elas traziam lá a tal trouxa à cabeça. Era assim… 

    Escuto, intrigado.

    — O contrabando aqui era mais baseado, é pá, coisas, vamos lá: calçado, bolachas, rebuçados, pratos de Pyrex… Elas levavam daqui café para lá. Era assim. E a gente, geralmente, o café, como havia cá muito café, não é, a gente raramente olhávamos para isso. Às vezes, lá coiso… E elas lá levavam o cafezito, não é, era a sobrevivência delas. Elas vendiam o café lá bem vendido aos espanhóis naquela altura e depois a gente, às vezes, deixava-as ir, mas, às vezes, avisávamos-as: Vocês têm, pronto, levem lá o café e tal ou voltem lá para trás. E tal.

    A travessia ilegal da fronteira dava direito a multa de 500 mil réis… uma fortuna naqueles tempos.

    No silêncio da fraga damos com um abrigo de xisto dos contrabandistas.

    Fernando Castelo, a memória destas veredas…
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Era neste buraco sombrio e desconsolado que se refugiavam quando já não tinham ânimo para seguir caminho por causa  da geada ou da neve ou da Guarda Fiscal.

    Uma coisa, porém, é certa. O contrabando não se apaga na lembrança de Montalvão mesmo se o tempo dos arrepios e das orações já pertence irremediavelmente ao passado…

    Metemos pelo caminho tosco – encosta abaixo.

    Rio da Nogueira.

    Ver para crer…

    O rio é um lodaçal infecto e gorduroso, para não dizer ensebado.

    O verdor é das algas tóxicas, dos fetos e das plantas aquáticas (como a azola, que vem dos trópicos).

    O rio está poluído, mas ninguém sabe de nada…
    (Foto: Rui Araújo)

    A concentração de fósforo, nitratos e outros poluentes é uma explicação. A incúria ou a apatia cúmplice do Governo português em relação à poluição é outra…

    A GNR não tem em curso (25 de Novembro de 2021) qualquer investigação referente a crimes ambientais no rio Sever.

    É tempo de regressarmos sem mais delongas a Montalvão pelos mesmos caminhos ermos.

    É que a partir daqui não se pode ir mais para norte.

    E a fronteira, aqui tão perto, só está aberta ao fim-de-semana…

    A convivência era outra antigamente…
    (Foto: Rui Araújo)

    Depois de a manhã romper, Montalvão, vista de longe, é mais uma aldeia do Alto Alentejo debruçada sobre uma colina que corre o horizonte e é um gosto vê-la.

    Montalvão é uma terra de gente humilde, trabalhadora e honrada, que vivia da enxada e do gado e, quando era mesmo preciso, do contrabando.

    É, hoje, mais um povo da raia que está a definhar. E de que maneira…

    Em 2011, viviam, aqui, 442 fregueses.

    Em 2021, restam 290.

    Feitas as contas, a povoação perdeu 34,4% da população no espaço de 10 anos.

    E em 1940 havia 2.672 habitantes, ou seja, 9 vezes e tal mais do que hoje.

    Desde então a população não parou de diminuir. Os dados do INE são peremptórios. E, como se não bastasse, a maioria tem, hoje, mais de 70 anos de idade…

    Encontro (in)esperado com Tchá Jaquina do Possidónio na Casa do Povo.

    — É uma solidão muito grande. É, sim senhora. Uma solidão muito grande. É. O meu marido foi para o lar. E tenho sentido muita falta dele porque já somos casados há 60 e tal anos. 64 anos. Já fez no dia 13 de Maio… de Outubro. E, então, eu sinto aquela solidão.

    Mudo de conversa. 

    A solidão imposta é terrível. E sem família, vizinhos e amigos é a morte social garantida.

    — Como é que isto era antigamente?

    — Ai… muito… quer dizer, havia muita gente. Mas eu passava… Nós passáramos muito mal porque o meu pai que Deus tem era contrabandista.

    Dias difíceis, acrescento. É uma desculpa de mau pagador.  Eu não tenho respostas.

    — Havia fome. Nós passámos fome. Não tenho coiso nenhum de dizer isto porque o meu pai não tinha o trabalho como já contei.

    — E o seu pai era contrabandista!

    — Era contrabandista. Apanhava umas coisas e nem sequer o contrabando era nosso. Ele era alugado. A pessoa pagava, não sei se era 15 escudos, para o meu pai levar uma mala. Ainda chegou a estar preso… Quando lá passo, vamos para a ginástica, lembra-me aquelas muralhas ali e que era a cadeia…

    Dantes as casas eram todas habitadas. Hoje, muitos prédios estão vazios. E há ruas desertas de gente…

    Tchá Jaquina do Possidónio.
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Montalvão tinha câmara municipal, hospital, escola, três postos da Guarda Fiscal e um da GNR, cadeia, matadouro, seis salsicharias, quatro talhos, quatro alfaiates, barbeiro, sapateiro, costureira, ferreiro, armeiro, latoeiro e 12 tabernas… Mais a ervanária do senhor Domingos Paixão que curou meio mundo…

    Só na rua Direita havia quatro mercearias (Ti Zé Ramalhete, Tchá Hermínia, Sozé da Loja, Tchá Efigénia), sem contar com o estabelecimento do Ti João Cabreira, do Ti Possidónio Relojoeiro (que «morreu de velho»), mais o centro comercial do senhor Joaquim Morujo, que vendia fazenda, materiais de construção e bicicletas.

    Havia… porque, hoje em dia, já só há a mercearia.

    Montalvão é, hoje, mais um território economicamente deprimido a somar a tantos outros da raia…

    Tem três cafés, um lagar, uma farmácia que depende da de Gavião e um mercado que abre 3 dias por semana.

    Mas não vamos antecipar as agruras.

    Os locais de convívio são escassos.
    (Foto: Rui Araújo)

    A escola primária de Montalvão está fechada desde 1998. Chegou a ter 4 professores. Cada turma tinha 36 ou 37 alunos. Muitos pais não mandavam as cachopas para a escola. Não tinham posses para mandar estudar os filhos todos. É uma explicação.
    A escola é agora o museu da terra.

    Regresso ao passado.

    Encontro António Pires Lopes no primeiro piso do edifício austero.

    Foi professor, aqui, durante 28 longos anos. Cumpriu 85 anos.

    — As aulas começavam às 9 da manhã. Havia um pequeno intervalo. Um intervalo aí de 1/4 de hora para os que queriam brincar, correr, fazerem os jogos tradicionais daquela época. São muito diferentes do que é hoje. Hoje, uma criança passa o tempo com o telemóvel. E naquele tempo jogava o peão, jogava macaca, jogavam à cabra-cega. As meninas tinham outros jogos. Até tinham um… Havia um jogo que era atirar à malha, que era feito na Primavera. As crianças divertiam-se muito…

    —  E os professores? — pergunto ou insinuo.

    — Eu jogava peão com eles. E eu conseguia atirar o peão, o peão não ia ao chão e eu apanhava-o a rodar na palma da mão. E eles procuravam fazer o mesmo…

    — E a disciplina? Como é que era?

    — Eu nunca castiguei severamente um aluno com zanga. A régua trabalhava, mas era muitas vezes trazida para a escola pelos pais dos alunos. Quando a régua se estragava, o pai do aluno trazia uma régua para a escola. Portanto, os pais não estavam contra uma reguada. (Ri-se) É assim.

    António Pires Lopes
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    E nós não pedimos contas!

    Ficaram os móveis e as fotos baças que ajudam a preservar a lembrança de um saudoso passado ou tão simplesmente da juventude.

    António Pires Lopes é bom homem. E devia ser bom professor.

    — Muita saudade desse tempo. Muita saudade…

    — As coisas, hoje, são diferentes.

    — O que mudou foi o êxodo da população para os grandes centros urbanos. Os campos deixaram de ter trabalhadores. Os campos deixaram de ser semeados, cultivados. E aqui se produzia tanto trigo, tanto centeio, aveia e cevada e tanto linho. Tanto linho daqui saía para fazer os mais diversos tecidos. E actualmente já não se semeia. E é pena que isso aconteça. E o que se passa aqui passa-se por esse Alentejo fora…

    Percorremos ruelas asseadas condenadas a um silêncio que mete impressão. Dá vontade de abalar…

    A padaria está fechada, mas lá dentro damos com Sérgio Pereira a amassar o pão.

    Hoje, é homem para fazer 100 pães de trigo mais uma data de bolos de azeite e de «guleimas», os bolinhos de canela cá da terra.

    Só há pão branco, é o que os freguezes preferem…
    (Foto: Rui Araújo)

    O forno é de lenha: eucalipto e xara (esteva), como manda a tradição.

    Lá ao fundo, Tchá Nazaré, 85 anos, observa o filho com candura.

    É o momento da oração e do sinal da cruz na massa.

    «Deus te acrescente agora e sempre.»

    Ela (mais o marido, que Deus tem) eram padeiros no burgo.

    E não lhes faltou freguesia durante longos 52 anos.

    — Faço sempre a reza. Sempre. Eu sou muito religiosa. Vossemecês não são… (Ri-se)

    É preciso ter fé. Ela comeu o pão que o Diabo amassou. Tal como os seus pais…

    — O meu pai era moleiro e ia moer ao rio Sever. E… e depois levava os talegos, chamavam-se os talegos, levava o trigo das pessoas que tinham o trigo para moer. E a minha mãe com as maquias, chamava-se as maquias, com as maquias que o meu pai trazia de moer o trigo fazia o pão.

    Esta gente simples e comunitária vivia da terra.

    Memórias gastas e amarelecidas…
    (Foto: D.R.)

    As coisas mudaram.

    E relembrar no papel as horas passadas é – como se costuma dizer – viver outra vez.  

    — Morreu o meu marido já há ano e meio. Eu estava sozinha. E estava aqui um pouco coisa… Para distrair, vou… a ver se sou capaz de escrever o livrinho da minha vida.

    Diz-se que escrever é viver duas vezes…

    — O meu livro começa assim: «Vou contar as minhas memórias da minha vida. Primeiro, são os meus pais…»

    Tchá Nazaré só estudou até à 4ª classe, mas sempre gostou muito de ler e de escrever.

    — Já não tenho mãe nem pai nem… nem sogros. Os meus sogros também eram muito bons. Não tenho nada. O meu sogro foi à guerra da… da… da…

    O sogro, António Pereira, foi um dos 24 homens de Montalvão que combateram na Grande Guerra.

    Embarcou para França no dia 23 de Março de 1917.

    A presença portuguesa na Grande Guerra: carne para canhão.
    (Foto: D.R.)

    Era o soldado maqueiro número 290.

    Integrava o 3º Grupo de Companhias de Saúde – Companhia Automóvel de Transporte de Feridos.

    Esteve várias vezes internado, mas acabou por regressar a casa depois do conflito. Mais precisamente a 19 de Maio de 1919.

    O facto de ter ido encomendar-se a Nossa Senhora dos Remédios na ermida do outro lado de Montalvão é uma coincidência (ou talvez não).

    A devoção à Senhora dos Remédios ainda é uma realidade apesar de a padroeira da terra ser Nossa Senhora da Graça.

    Ao cimo da rua Tchá Mourata.

    93 anos cheios de alento.

    É dia de ir buscar os remédios ao posto (ao lado de mais uma casa à venda), que depende da farmácia de Gavião.

    A caminhada a passos vagarosos é uma forma de enganar o tempo e as agruras do presente.

    Tchá Mourata cumpriu-se sem lamúrias. Já perdeu o marido e 3 filhos.

    A memória viva de Montalvão.
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — Não há mas é aqui quase ninguém. É uma terra boa e nós somos da geração maior que cá há. Dos Zabumbas, que é a geração do meu primo. Sabe… tudo gente boa. Está-me a filmar…

    A velhota sorri. Um sorriso franco e jovial.

    — É uma terra boa para os velhos? — ouso perguntar, maneira de meter conversa.

    — É, sim senhor. A nossa terra é saudável, a nossa vila.

    — E o que é que falta?

    — O que é que falta? Falta-nos aqui muita coisa. Não temos cá um transporte. Não temos cá nada!

    — Antigamente havia mais gente aqui. Na nossa vila não havia casas que chegassem. Agora, está tudo de sobra…

    O poder central — em vez de alargar os horizontes, que continuam a definhar — esqueceu-se, ignorou a raia…

    Montalvão é uma povoação excomungada. Mais uma…

    No espaço de meio século deixou de haver progresso e crescimento demográfico por estas bandas.

    Montalvão é um território envelhecido e economicamente deprimido…

    Empregos, aqui, só os do lar da Santa Casa (o costume!), da junta de freguesia e da exploração agrícola.

    Rogério Belo tomou posse há pouco tempo como presidente da Junta.

    Rogério Belo
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    É um homem da terra decidido a combater o isolamento e o desconsolo. E a morte programada…

    — A prioridade, hoje, como presidente da Junta de Freguesia de Montalvão é tentar inverter o sentido do envelhecimento populacional. Montalvão tem perdido população. Já não é de hoje. É de há vários tempos. Temos de dar dignidade aos mais velhos e tentar puxar os mais novos para a aldeia.

    Puxar os mais novos para a aldeia para cuidarem dos mais velhos.

    Pode ser essa a solução para Montalvão não morrer. É preciso encontrar respostas políticas e técnicas, começando pelo acesso às comunicações.

    O presidente da junta, por exemplo, tem de ir para o meio da rua para poder usar o telemóvel.

    A construção da ponte sobre o rio Sever (entre Montalvão e Cedillo, em Espanha) – um investimento de 9 milhões de euros, cujo contrato de financiamento foi assinado este ano, – não só aproximará o Alentejo da vizinha Extremadura, mas terá ainda impactos económicos e sociais em toda a raia.  

    A fronteira que existe só está aberta ao fim-de-semana. É a única fronteira privada da Europa, aliás. Ver para crer…

    A eléctrica espanhola Iberdrola decide quando e como os cidadãos podem passar. E decide ainda qual é o caudal do rio…

    A única fronteira privada da Europa!
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Tchá Graça.

    80 anos.

    O seu destino, esta tarde é o Chão da Porta de Baixo.

    — Venho aqui para a horta para não estar todo o dia lá em casa. E, assim, corto… Se eu me levantasse e não saísse de casa chegava a pontos que… que sei lá o que eu era. E, assim, não…

    A horta é um paraíso que requer muita labuta, mas ela quer lá saber…

    Tchá Graça não vai em mexericos!

    — Gosto de mexer na terra. Gosto de ver as coisas a nascer. Gosto de as colher quando elas são bonitas. Gosto. (Ri-se) É assim: gosto!

    A horta é remédio santo para matar a solidão, esquecer os desenganos e os sonhos de antanho ou nem por isso…

    Tchá Graça
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — A gente dantes não tinha, se calhar, nem sonhávamos… Sonhávamos logo com o que tinhamos de ser porque eu até podia ter ido para a estudar, que a minha professora foi pedir ao meu pai que me levava para casa dela para eu estudar lá e que não me levava nada de pensão. Mas eu tinha dois irmãos mais velhos. Que não podia estudar, não podia. O meu pai disse logo que não podia fazer isso porque tinha lá dois filhos homens e não tinham ido a estudar. Não podia mandar a filha. E, pronto, fiquei assim…

    As quimeras da adolescência resistem ao tempo.

    — E levou muitas reguadas?

    — Ai, não…

    — Tem cara disso…

    — Não. Não. Não. (Esboça um sorriso) Não levei. (Ri-se) Era uma menina muito bem comportadinha! (Ri-se muito) E ainda hoje sei muitas lições de cor. (Ri-se)

    — A primeira do livro da 4ª classe: «Olha, lá vai o Gonçalo.» Quer mais? (Desata a rir)

    Quero mais.

    — Olhem: lá vai o Gonçalo caminho da Escola… além… Vamos depressa apanhá-lo, vamos com ele também. Tem sido meu companheiro da primeira à quarta classe: pontual como o primeiro, nunca vi que ele faltasse! É bondoso e aplicado cortês e respeitador; por isso é tão estimado pelo nosso professor. Não é tolo nem se gaba de saber sempre as lições; conforme começa, acaba, modesto, em pretensões. Lá vai: nunca se demora no caminho a conversar, chega sempre antes da hora: — é um aluno exemplar! Rapazes! vamos a ver se sabemos imitá-lo!… se podemos proceder em tudo como o Gonçalo.

    A instrução primária de antigamente…
    (Foto: Rui Araújo)

    Santo André.

    A manhã vai alta.

    Tónho Foguete.

    Tem 74 anos.

    Foi pescador, funcionário público, lavrador e contrabandista.

    — Agora é para eu falar, não é? Ah… Apanhávamos aqui 30 quilos de café e íamos… apanhávamos depois do sol posto. E depois chegávamos a Cedillo à meia-noite. Tomávamos uma sandes de cavala e uma cervejinha e vou de carga em cima: galletas ou garrafas de cognac ou uísque. Quando era galletas, a gente vinha bem. Ou alpargaitas ou isso, vinha bem. Agora quando era  garrafas de cognac a gente via-se à rasca para… para chegar cá. Chegávamos aqui à volta das 5 da manhã… (Ri-se) e o meu pai andava já pelo rio…

    Escuto o meu entrevistado bonacheirão e assaz divertido.

    — Ele já andava burrico (significa“zangado”). Tinha muito medo da Guarda Fiscal. (Ri-se) E… E depois, ele um dia de manhã caçou-me. Bom, então tu andas nesta vida? Que eu andava no contrabando… (Ri-se) Untou-me quase o pêlo. E depois ficámos amigos outra vez. É assim a vida!

    É mesmo…

    Passavam pela cascata da Marineta, atravessavam o rio a pé e depois calcorreavam as veredas espanholas até Cedillo, o destino.

    —Uma vez, quando a minha irmã tinha 12 anos, fomos ali mais a minha mãe a Cedillo e depois aconteceu uma coisa. A minha mãe trazia uns sapatinhos para a minha irmã, tinha ela 12 ou 13 anos. Trazia uns sapatinhos… Ah… Um Guarda tanto esteve ali, coiso, Ah, a Senhora leva qualquer coisa na barriga. E a… minha mãe chegou lá atrás. Tome lá os sapatos que era para a minha gaiata. Para a minha gaiata… Pronto. Eu depois digo assim: Eu não deixo que tu caias da mota. E ao fim de pouco tempo caiu da motorizada. (Ri-se) Seria eu que lhe roguei a praga?

    Por mais que a gente não acredite, sempre há coisas…

    Tónho Foguete.
    (Foto: Captura a partir de imagem de Rui pereira/TVI)

    Por precaução, torno ao presente.

    — E agora? Como é que é a sua vida? Já não é contrabandista…

    — Não. Já estou reformado. (Ri-se muito)

    O que importa é viver. E viver bem de preferência.

    Montalvão é uma aldeia no fim do mundo, mas é sobretudo uma dessas terras de Portugal onde pegamos de estaca.


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente na TVI, em Dezembro de 2021 [VER AQUI].


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  • Duas mulheres de Montalvão, a terra que não quer morrer

    Duas mulheres de Montalvão, a terra que não quer morrer


    Logo de manhã cedo, Tchá Mourata, amparada na bengala, desce a rua íngreme da farmácia com afã. É dia de ir buscar os remédios. O corpo fingido ou embrulhado no xaile negro não permite imaginar a façanha. A lentidão e a ansiedade são mais do que compreensíveis. A senhora vai fazer 94 anos e não desarma. A caminhada é mais uma forma de enganar os castigos do tempo e os abalos do presente.

    Meto conversa com a anciã à saída da farmácia. Vale-me a condição de jornalista e, sobretudo, a presença do seu primo, Rogério Belo, o novo  presidente da Junta de Montalvão.

    — Ai, mas, então, eu não trago a máscara. Valha-me Nossa Senhora…

    Tchá Mourata.
    (Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Depois das cogitações religiosas e de a deixar aconchegar conscienciosamente o lenço negro, pergunto-lhe, sem pressas, se esta terra é boa para os velhos.

    — Isso é. Não há mas é aqui quase ninguém. Vou meter a máscara. É uma terra boa e nós somos da geração maior que cá há. Dos Zabumbas, que é a geração do meu primo. Sabe… tudo gente boa. Está-me a filmar…

    — É uma terra boa para os velhos?

    — É, sim senhor. A nossa terra é saudável, a nossa vila…

    — E o que é que falta?

    — O que é que falta? Falta-nos, aqui, muita coisa. Não temos cá um transporte. Não temos cá nada!

    — Antigamente havia mais gente cá?

    —  Na nossa vila não havia casas que chegassem! Agora, está tudo de sobra…

    Com ou sem palavras de despeito, feitas as contas, nada consegue indefinidamente resistir ao tempo.

    Montalvão chegou a ter câmara municipal, escola, hospital, postos da GNR e da Guarda Fiscal, cadeia, centro comercial, armeiro, ervanária, ferreiro, sapateiro, barbeiro, alfaiates, latoeiro, costureira, matadouro, 12 tabernas, seis salsicharias, quatro talhos, etc.

    (Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Hoje, resta uma padaria, um lagar, uma mercearia (só na rua Direita havia quatro antigamente), dois ou três cafés e o posto da farmácia Gavião (três manhãs por semana).

    Tchá Mourata cumpriu-se sem queixumes apesar de ter perdido o marido e três filhos. Desde então, o sino só tem repenicado para os outros.

    O silêncio que se aninhou nestas casas despovoadas e apagou as memórias é penoso (para não dizer amargo!).

    Montalvão é uma aldeia de gente humilde, trabalhadora e honrada, que vivia da enxada e do gado. E do contrabando, quando era preciso. Em 1940 havia, aqui, 2.672 fregueses. A aldeia perdeu, entretanto, 34,5% da população entre os dois últimos censos. Em 2011 havia 442 fregueses. Hoje, já só há 290.

    Tchá Mourata volta a enfiar o lenço negro na cabeça e desata a rir. Cada qual parte para seu lado. Vamos calados como aldeões que se conhecem há uma data de tempo.

    (Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Desço ao Chão da Porta de Baixo. Olho em redor. Batem as duas. A povoação parece adormecida. Não se vê vivalma.

    Tchá Graça lá acaba por aparecer, afogueada. Tem 80 anos, mas teima em caminhar a passos lestos. Decididos. A sua figura é a de uma mulher bonacheirona, alegre e aberta. De mais a mais, a compostura é nobre. Sorri-me.

    — Venho aqui para a horta para não estar todo o dia lá em casa. E, assim, corto…

    Só paramos depois de ela apressar o passo e desandar à esquerda. É o canto das oliveiras. Fico a ouvir.

    — Se eu me levantasse e não saísse de casa chegava a pontos que… que sei lá o que eu era. E, assim, não… Gosto de mexer na terra. Gosto de ver as coisas a nascer. Gosto de as colher quando elas são bonitas. Gosto. (RI-SE) É assim: gosto!

    Tchá Graça.
    (Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Tchá Graça é uma moira de trabalho, mas, aqui, enche os olhos e a alma de paz.

    E hoje, calha ser dia de apanhar azeitona. Há 19 oliveiras carregadas. Dou uma ajuda do cimo do escadote, a fazer de valente, mas atento à perícia da senhora.

    — Qual era o seu sonho quando era gaiata?

    — A gente dantes não tinha, se calhar, nem sonhávamos… Sonhávamos logo com o que tinhamos de ser porque eu até podia ter ido para estudar, que a minha professora foi pedir ao meu pai que me levava para casa dela para eu estudar lá e que não me levava nada de pensão. Mas eu tinha dois irmãos mais velhos. Que não podia estudar, não podia. O meu pai disse logo que não podia fazer isso porque tinha lá dois filhos homens e não tinham ido a estudar. Não podia mandar a filha. E, pronto, fiquei assim…

    Insisto.

    — Sei lá, talvez ser professora. Pois. É assim. Mas também gostei do que fiz. Também gostei do que fiz, sim. Fazia roupinhas. Fazia… Tinha uma máquina de tricotar, fazia malhas. Também gostei do que fiz…

    — Levou muitas reguadas…

    — Ai, não.

    — Tem cara disso…

    — Não. Não. Não. Não levei. Era uma menina muito bem comportadinha!

    Ela desata a rir à gargalhada. A alegria que põe no que diz é contagiante.

    (Foto: Rui Araújo)

    — E ainda hoje sei as lições de cor…

    Recita-me algumas páginas dos livros da 3ª e da 4ª classes.

    — Quer mais?

    Sorrio-lhe. Tchá Graça, a imensidade de um sonho de antanho numa aldeia exígua.

    — É uma mulher feliz?

     À minha maneira, sou. Sim. Sim. Sou.

    Tchá Graça sabe o que custa a vida. Tenho uma profunda admiração por esta gente. Desta feita, não me atrevo a dizer mais nada para não ser importuno. E é uma dor de alma ver esta terra alentejana a morrer.

    Na aldeia o apetite é madrugador como a cotovia, dizia Aquilino Ribeiro. Não é tarde nem é cedo. Partimos (antes de uma trovoada desabar sobre Montalvão). Esta noite, o meu parceiro e eu jantamos no Regata (Alpalhão) ou no Colmeia (Nisa).


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente na TVI, em Dezembro de 2021 [VER AQUI].


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  • Do Governo da geringonça até a uma maioria em queda

    Do Governo da geringonça até a uma maioria em queda


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 12º episódio fala-se dos Governos de António Costa até à sua queda e anúncio das próximas eleições de 10 de Março.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Da vitória amarga de Passos Coelho à criação da geringonça

    Da vitória amarga de Passos Coelho à criação da geringonça


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 11º episódio fala-se de um evento inédito: a posse de um Governo liderado pelo partido que perdeu as eleições. Nas eleições de 2015, a coligação PSD/CDS (PáF) vence, mas perde a maioria para a esquerda. O presidente Cavaco Silva insiste em nomear Passos Coelho como primeiro-ministro, mas o programa de Governo não é aprovado, e António Costa consegue um acordo parlamentar, a famosa geringonça, para ascender ao poder.

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  • Da queda de Sócrates até ao domínio de Passos Coelho

    Da queda de Sócrates até ao domínio de Passos Coelho


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 10º episódio fala-se da queda do segundo Governo de José Sócrates, e da vitória de Passos Coelho que, em coligação governamental, sobe a primeiro-ministro após as eleições de 2011.

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  • O admirável povo de Meimão

    O admirável povo de Meimão


    — É pá, Meimão sempre foi uma aldeia à parte. (Ri-se) O nosso concelho, nós dizemos Penamacor, mas Penamacor não queria nunca nada com Meimão. Eles tinham medo do Meimão. A gente com Meimão não se mete. Sempre foi gente à parte. Sempre! Não sei, foi… foi o facto de estarmos isolados muito tempo das outras aldeias que fez de nós pessoas diferentes…

    Mário Cameira

    — A vida… Tínhamos junta de vacas, tínhamos cabras e semeava-se por ali a vinha… E, agora, está tudo cheio de mato.

    Maria da Glória Martins

    — Foi tudo a caminho de França. A França é que deu as casas novas que há. Veio tudo quase da França. A França deu muita alma a Portugal. A Portugal e a muitas coisas. É verdade.

    — E o senhor foi alguma vez ao estrangeiro?

    — Nunca.

    — E Lisboa?

    — Nunca lá saí nem entrei. (Ri-se)

    Ti Domingos

    — Éramos umas mourinhas a trabalhar. E cantávamos muito…

    — Com 9 ou 10 anos a trabalhar. A sachar…

    — Eu é que começava as cantigas. Não era, Maria?

    — Pois.

    — Começava as cantigas e ela depois ajudava-me. (Ri-se).

    — O que é que cantava?

    — Ai… Era a «Rita, arregaça a saia…»

    — Como é que é?

    — Rita, arregaça a saia, Rita, arregaça-a bem… Não era?

    Lurdes e Maria

    — Esta aldeia para mim é tudo. É tudo. É porque foi aqui que eu nasci, que eu cresci. Tenho os meus amigos. Tenho, aqui, a minha família. E tenho, aqui, muitas raízes, muitas, muitas, muitas recordações. E essas recordações estão gravadas até ao infinito. Não há… Não há palavras.

    Arménio Pires


    Beira Baixa. 

    Terra Quente.

    Meimão fica ao fundo de um vale, nos contrafortes da Serra da Malcata.

    Há 40 ou 50 anos, este lugar desterrado arribou ou conseguiu tirar alento da força ou dos dons dos homens e da Fé… em Deus e no padre, José Miguel. E muita coisa, então, mudou…

    A aldeia tem 238 habitantes. Hoje. Aquando do primeiro censo realizado em Portugal (1864), havia aqui 389 fregueses ou, por outros números, 193 varões e 196 fêmeas.

    Ao cimo da escadaria, no campanário, Maria de Fátima Andrade, 74 anos bem contados. Quando o sacristão morreu, ela tomou mão a isto. Pôs-se a tocar o sino sem ninguém a ter ensinado. Tal e qual.

    Meimão, nos contrafortes da Serra da Malcata. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — Há regras. Há regras porque o povo sabe quando há um funeral, morre gente, e a gente dá sinais durante as 24 horas que há o velório do defunto. Todo o povo sabe. Está tudo descansado. Quando há um fogo, é doutra maneira: é o sino ao rebate. Quando, por exemplo, há a missa no dia de semana, toca-se uma vez. E nos domingos, tocava-se três. E era o sinal da missa. Só que eu só venho uma vez para não subir tanta vez isto…

    E mudou radicalmente as regras, mas há razões que o Céu entende. As badaladas, aqui, são frenéticas e, como se não bastasse, duram uma carrada de tempo…

    Mas vamos ao essencial: as curas milagrosas do Padre José Miguel.

    — Era um homem que protegia os pobres. E, então, vinham doentes e abalavam bons. E ele não dizia mais nada. Só dizia assim: — Tende Fé, ide comungar, recebei o Senhor que ele está cá na Eucaristia por nós. E, então, havia muitas pessoas que vinham doentes, não sei o mal delas, mas elas, umas vinham de sua maneira, e, então, ele só dizia: – Estai em paz.  E ide em paz. Mais nada. Uma pancadinha às vezes na cabeça, outras nada. — confessa-me Maria de Fátima Andrade.

     Vinham camionetas e mais camionetas…

    — Vinha muita gente. Era, olhe… Quando era nos domingos nem aqui cabiam no adro, nos dois lados do adro, nem na igreja. Era tudo atacadinho… E alguns nem chegavam a falar para ele. Mas ele, eu conheci-o eu andava na escola quando ele veio, e sempre o conheci igual. Ele não dizia nada a ninguém. Contavam-lhe as coisas, ele só dizia assim:  «Tende Fé e ide em paz!» Não dizia mais nada.

    — São quase horas de tocar o sino…

    — Pois são. Pois são… Já estão. Já está na hora. E é assim… (Ri-se)

    Vai fazer em Dezembro 20 anos que o Padre José Miguel Garcia Pereira faleceu. Tinha 89 anos.

    O seu cadáver insepulto está, agora, dentro deste caixão, exposto no memorial do Soito.

    É a chamada para a missa na Igreja Matriz de São Salvador.

    A maioria do povo emigrou, já lá vão muitos anos,  sobretudo para terras de França.

    A história de Meimão começa muitos séculos antes noutro vale…

    Mosteiro de Santa Maria de Salzedas.

    Tarouca.

    Esta fachada data de finais do século XVIII, mas a construção do mosteiro masculino da Ordem de Cister é iniciada muito antes, mais exactamente em 1168 (com o patrocínio de Teresa Afonso, a segunda mulher de Egas Moniz).

    O túmulo dela está, aliás, embutido desde 1789 numa parede da passagem lateral Norte.

    A igreja foi sagrada em 1225.

    O mosteiro foi ampliado nos séculos XVII e XVIII. 

    Hoje, é neste monumento nacional, que ainda serve de lugar de culto, que um dos nomes maiores da pintura quinhentista portuguesa deixou a sua marca: Vasco Fernandes, vulgarmente designado por Grão Vasco.

    É o autor, designadamente, de um retábulo  4 painéis com as figuras de Santo Antão, Santa Catarina, Santa Luzia e São Sebastião, pintados entre 1511 e 1515.

    A grandiosidade do edifício (apesar das profundas alterações que sofreu e não foram poucas) contrasta com a modéstia apregoada nos primeiros tempos já que, como rezava a Regra de São Bento, “aos monges incumbia o cultivo das terras, o trabalho de mãos e a guarda de rebanhos”.

    Os fiéis, compadecidos com o trabalho dos monges, deixavam-lhes os  bens em testamento, ou doavam-lhes propriedades. Faz parte da devoção…

    As primeiras referências a Meimão datam de 1168, mas há testamentos lavrados em 1170.

    O Mosteiro de Salzedas também tinha padroado sobre aquele lugar, situado a quase 200 quilómetros mais a norte.

    — A aldeia de Meimão era uma das propriedades mais longínquas que eles tinham. Isso também justificará como no século XV Meimão tenha deixado de ser da sua posse, mas esta ordem religiosa tinha uma preocupação de intervenção no território através da constituição de povoações, de vilas, de casais e das suas famosas granjas que eram quintas, unidades agrícolas que permitiam o sustento não só da própria Ordem como também dos moradores ou rendeiros que trabalhavam para essa Ordem. — explica o historiador Nuno Resende da Universidade do Porto.

    O padroeiro da paróquia é São Salvador, aliás Jesus Cristo, Salvador do Mundo.

    E é muito possível que os monges cistercienses tenham trazido a devoção a São Salvador para Meimão.

    No século XVIII a aldeia passa a pertencer ao Rei de Portugal.

    Igreja Matriz de São Salvador.

    Hoje, é dia do Senhor.

    Os fiéis (incluindo alguns emigrantes e as beatas do costume) aninharam-se na cochia. Os mais ágeis — todos homens — treparam ao coro.

    Celebração da missa dominical.

    O padre Bruno Lopes é natural de Castanheira, Trancoso. Tem 29 anos. É pároco há quatro. Tantos quanto as paróquias que tem ao seu cuidado desde a ordenação.

    Estes cristãos fazem os possíveis por se abeirarem de Deus ou do Céu. As ladainhas, decididamente, não chegam…

    Fim da eucaristia.

    Meimão é — e sempre foi ou quase — terra de emigração: muitos abalaram para França, Luxemburgo, Alemanha, Itália e Américas.

    A emigração custou muita lágrima, mas para a imensa maioria valeu a pena.

    Na Travessa Eanes é dia do arraial de Arménio Pires, um homem  (nascido e criado na aldeia) alegre e bonacheirão, que acabou de chegar. de Lyon.

    Emigrar era preciso… (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — Eu decidi vir ver a minha mãe porque com 92 anos não posso esperar muito tempo. Mas a vida é assim…

    Arménio tem 63 anos. 38 de França.. Tem a mãe num lar perto de Meimão.

    A travessa Eanes faz, hoje, de palco para a representação da vida, mas mesmo aqui as coisas mudaram. E muito…

    — As pessoas são mais… Como dizer… Não têm aquele à vontade como antigamente. Antigamente, era muito mais agradável e muito mais… muito mais alegre a vida aqui. — conta Arménio.

    — Agora, nós vimos cá uma vez, um mês por ano, mas é muito diferente.

    — E havia mais gente…

    — E havia mais gente. Aqui, na rua onde estamos, que é a antiga rua onde vivia o avô da minha esposa, antigamente a rua era cheia. As casas eram todas habitadas. Hoje, está uma tia, que é esta senhora que está aqui ao lado, a tia da minha esposa, mais um primo que mora ali, mais ninguém… Duas pessoas durante o ano. Agora, chegámos. Vai haver 50…

    A única mocidade que há, agora, na aldeia está na travessa. A escola de Meimão encerrou há uma data de tempo…

    Arménio Pires: um homem alegre e bonacheirão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Metemos conversa com Lisete Pires, a esposa de Arménio.

    — Vir cá, uma pessoa vem. Exacto… Quando a gente estiver na reforma, se vier cá um mês, dois meses ou três meses, mas vir para ficar, viver sempre, não. Tenho as minhas filhas em França. Tenhos os netos e isso também faz com que a gente… goste dos dois lados.

    — Mas o seu marido gostava de voltar um dia…

    — Exacto. Ele… Para ele é tudo. Ele aqui é… está no céu. Quando está com os amigos… ele aqui está… é… está… Como é que se diz? Está rico de… Como é que é? De sentimentos. Rico de sentimentos. Ele adora isto. Adora. Eu também adoro. Eu adoro. Eu adoro. Eu também adoro isto. Isto aqui… A gente, aqui, é… Já viu como é? Mas… vir para cá definitivo, não!

    Ao cabo de uma hora, logo após o almoço, é a vez de desligar o rádio do carro e de escutar a jovem cantora L-ZA ou Elsa dos Santos (residente no departamento francês 91), que a casa tem de reserva.

    — Cantora de RAP, de R&B (Rhythm and Blues), Pop, o que desejar… (Ri-se)

    — Queres fazer a tua profissão?

    — Sim. Eu quero fazer isso toda a minha vida.

    — A música para ti é o quê?

    — A música para mim é toda a minha vida. É um sentido. É o que me faz avançar na vida. É a única coisa que eu sei fazer bem na minha vida.

    — E Portugal para ti representa o quê?

    — Portugal para mim é o quê? É as minhas raízes, é a terra dos meus avós, da minha família. Até o meu pais nasceu em Lisboa. Para mim, se eu não vier a Portugal cada ano não é normal. É preciso que eu volte todos os anos. É algo que tenho de fazer…

    Hoje não há espaço para a tristeza na travessa Eanes.

    Daqui a nada, estão todos a cantar. É o ritual. A alegria confunde-se com o esquecimento.

    Meimão é o torrão nativo de Mário Cameira.
    (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Meimão é o torrão nativo ou o berço de Mário Cameira. 63 anos. 30 de França.

    Hoje, o ex-emigrante (pai de 3 filhos) mata o tempo com a mecânica e a horta.

    O primo Zé Manel, 59 anos cumpridos no dia de Natal, acompanhou-o como um velho amigo até aqui acima.

    É preciso abrir regos com o sacho, arrancar batatas, sachar feijão frade e regar as alfaces (apesar de a aldeia estar entre duas barragens, não há água de regadio!)…

    Não há que ver. Metemos conversa.

    — A minha vida começou de jovem. Aos 10 anos, fui para o seminário. Fui para os Combonianos para Viseu pois naquela altura não havia hipótese de estudar aqui na zona. Não havia colégio, não havia nada, pronto. E a gente tinha que… que… fiz-me à vida com 10 anos. 10 anos. Os meus pais em França e eu aqui sozinho. Foi um bocado difícil ao princípio. Aquilo havia assim umas regras, uma disciplina que a gente não estávamos habituados a ela, não é? A gente… garoto quer… quer é brincadeira. Mas agora, agora, ao relembrar esses tempos, percebo que mudaram a minha vida de forma positiva. O que sou… O que sou agora também devo muito a esse tempo…

    Em França, Mário Cameira lutou por uma vida melhor. Não lhe faltava coragem, fé e sonhos. E o seu instinto nunca o enganou. Desiluções, nunca as teve. Mas um dia assistiu a uma tragédia que jamais esquecerá.

    25 de Julho de 2000.

    O Concorde despenhou-se perto do aeroporto de Roissy. (Foto a partir de imagem de Mário Cameira)

    — Concorde estava a arder mesmo antes de descolar. Foi a própria torre de controlo do aeroporto Charles de Gaulle que avisou o piloto, mas era tarde demais para abortar a manobra de descolagem… — conta Mário Cameira. 

    Os detalhes.

    — A gente estava quase a largar o trabalho. Era por volta das 16:40, mais ou menos. Quando lá chegámos, aquilo estava tudo em chamas. Não é? Aquilo… estava lá um hotel e o hotel já nem existia. E pronto. Ali, não houve sobreviventes. Não podia ser que aquilo… Foi a história mais dramática. Para mim, foi a mais dramática da minha vida, pronto, porque foram centenas… E aquilo era tudo reformados. Era gente reformada, alemães que queriam fazer uma viagem a Nova Iorque. E, portanto, acho que foram 100 pessoas mais três pessoas que estavam no hotel e que morreram também. É que eles tiveram ali um fim muito triste. Aquilo para as famílias foi terrível…

    A morte é a morte, em qualquer lugar…

    E a memória colectiva é tenaz. Tanto para os calvários como para os desígnios milagrosos do destino…

    3 de Abril de 1811.

    3ª invasão francesa. Batalha do Gravato.

    — Houve aqui uma batalha no Gravato, aqui no Sabugal. Em 1811 houve aqui uma batalha no Sabugal. Passaram ali por aquela zona da Ponte da Pedra. Chama-se Ponte da Pedra. E havia lá familiares da minha mulher. Lá, quando viram aquelas tropas, tiveram medo. Fugiram, mas esqueceram-se de uma menina, uma garota. (Ri-se) E os franceses quando viram lá a garota a chorar, coitadinha… acho que lhe deram até uma maçã e perguntaram pelos pais, mas a menina não percebia nada de francês, claro, não pôde explicar. Isso foi a história que chegou até nós. — narra Mário Cameira.

    A paisagem é deslumbrante.

    E, ali ao fundo do caminho velho de pedra, Forninhos, um paraíso abandonado ou suspenso, que deu vida a Meimão.

    Depois da quinta de Forninhos não havia mais nada. Só serra e mais serra: pinho, carvalho, figueira, castanheiro, oliveira e sobreiro.

    Antigamente, havia aqui gente e festa rija.

    No Carnaval, os tocadores de concertina davam a volta ao forno do lugar e à rua dos vizinhos. Percorriam a cantar as casas dos seis moradores. Eram uma família pegada do cimo ao fundo. É assim mesmo.

    Esta terra dava de tudo: trigo, centeio, batata, milho, feijão…

    Restam as ruínas que o tempo e a natureza ainda não cobriram.

    E resta ainda, pelo sim, pelo não, a lembrança dos velhos…

    — Tive quatro filhas. Nasceram lá todas nos Forninhos naquela casinha que tem o telhado…

    — E a senhora nasceu lá com a sua irmã?

    — Eu nasci lá com a minha irmã, mas foi mais cá para baixo. 

    Rua do Cruzeiro, esquina da Travessa das Andorinhas.

    Uma manhã destas.

    — Nós somos cinco irmãos. Nenhum aprendeu a ler porque não havia cá escola. E ó depois estávamos na quinta, ainda pior. — diz uma.

    — Claro. — acrescenta a outra.

    — Ó depois começaram… é que fizeram cá uma escola, que eu já me lembro de a fazerem. E começaram a ir à escola…

    — Obrigavam-nos!

    — Ninguém sabia de ler.

    — Eu tenho quatro filhas. Uma não sabe nada. E a outra começou a tirar de cabeça, a tirar de cabeça, e ali tirando já sabe alguma coisa.

    — Porque é que a aldeia morreu?

    — A aldeia morreu porque uns morreram. Outros, ficaram velhos como nós. Ó depois…

    Outras vidas. E outros tempos, decididamente.

    A memória é tenaz por estas bandas.

    Insistimos com as manas.

    — Éramos seis moradores. Uns, tinham seis ou sete. Outros tinham… Estava lá um que tinha 10 filhos ou 12.

    — Era o Zé Pedreiro.

    — O Zé Pedreiro. Eram 12 filhos.

    — Eram 12?

    — Eram. E, agora, já só são quatro. Já morreu tudo.

    — Eu contava 10…

    — E depois começou tudo a desaparecer.

    — Só contava 10, eu.

    — Não. As pequeninas, tu não as conheceste…

    — Ah…

    —Era a Ana e a Amélia, que era a nossa mãe-madrinha.

    — Ah, então era.

    — Era.

    — Essas, então, não as conto. Eu só conto 10 irmãos.

    — É assim.

    — Nasceram lá, viveram.

    — Nós também.

    — Sempre a trabalhar lá. Era uma vida…

    O senhor Domingos Mendes Vaz, mais conhecido por Ti Domingos ou Domingos Pesetas.
    (Foto: Rui Araújo)

    Existências que têm realmente que se lhe diga.
    Domingos Vaz, mais conhecido por Domingos Pesetas, faz 100 anos no dia 7 de Dezembro.

    É o homem mais velho que vive na aldeia. Toda a vida foi pastor.

    — Quando fui para pastor tinha oito anos. Já contei. E as cabras ainda passavam de 150. Mas 150 sempre eram certas. E ó depois com a criação, às vezes eram 200… E o que passava. Mas naquele tempo havia lobos. (Ri-se) Olhe que uma vez a mim mataram-me 14.

    Não queremos saber de desgraças.

    Meimão era um povo isolado, esquecido e pobre.

    Freguesia de Meimão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Era terra de agricultores e de pastores. Foi terra de milagres.

    Gente humilde, honrada, alegre. E severa, quando é preciso…

    E havia muito mais gente do que hoje.

    — Oi, oi, oi. Aqui, chegou a estar mais de 300 ou 400 pessoas. Hoje, são umas 200 e tal. Têm morrido. E… E não há quase garotos nem nada cá. Antigamente… quando a minha filha andou na escola eram mais de 30 garotos e garotas. Ai, 30 e talvez 40. Chegaram a estar cá 3 professoras. Agora, não há cá nada. Vinha cá uma médica… Agora, por causa destas coisas também não vem cá.

    — Para onde é que as pessoas foram?

    — Morreram. Ah, e outras foram para a França. O Meimão foi quase tudo para a França. Agora, vêm de férias uma temporada… — conclui Ti Domingos, sorridente.

    Meimão: o retrato é pungente. E é ao mesmo tempo assaz genuíno.

    A aldeia não parou de definhar.

    A lembrança dos velhos é peremptória.

    — Hoje, só penso na morte! Não penso noutra coisa. (Ri-se) Eu não escapo. (Ri-se) Eu não escapo. Ela tem de vir. E mais hoje ou mais amanhã ela vem cá. Custa-me a morrer porque a gente tem muitas dores, que ela faz sempre a gente passar por muitas dores. Mas Nosso Senhor me levasse, que eu faço… dores. (Chora)

    — O que é a morte para si?

    — Ah… O que é a morte? Eu sei lá o que é a morte. Ficamos como os passarinhos. É verdade. Não ficamos cá ninguém, Senhor. Uns mais velhos, outros mais novos… Há palavras cruas que têm a força de um testamento.

    É preciso matar o tempo… (Foto: Rui Araújo)

    Soito.

    Lar da Santa Casa da Misericórdia.

    Arménio Pires já não vê a mãe há dois anos por causa da pandemia.

    ARMÉNIO — Eu tenho de tirar a máscara, que ela… que ela já não me conhece.

    — Tire um bocadinho. Tire um bocadinho… — propõe o empregado.

    ARMÉNIO — Então, quem sou eu? Quem eu sou?

    DONA ODETE — O Fernando…

    ARMÉNIO — Não!

    DONA ODETE — O Fernando.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE — José.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE —

    ARMÉNIO — Então, quem sou eu?

    DONA ODETE — …

    ARMÉNIO – Então já não me conhece?

    DONA ODETE – António.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE — Zé.

    ARMÉNIO — Sou o Arménio. (Choram os dois.)

    Mais prosa para quê?

    Meimão.

    Damos conta que domingo é o dia da procissão (motorizada por causa da pandemia de Covid-19).

    Logo a seguir à missa, a pick-up do presidente da junta arranca. Ninguém faz caso da ladainha dos altifalantes. O que conta é São Salvador, o padroeiro da aldeia.

    O resto é gente fabulosa, uma serra alheada do mundo e carradas de granito encardido pela torreira, que ainda havemos de recordar um dia (com ou sem amargura, pouco importa).


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente na TVI, em Agosto de 2021 [VER AQUI].

    O vídeo de LZ-A pode ser visionado AQUI.


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  • Do rocambolesco Governo de Santana Lopes até à maioria de Sócrates

    Do rocambolesco Governo de Santana Lopes até à maioria de Sócrates


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 9º episódio fala-se dos meses mais surreais da política portuguesa contemporânea, com o Governo de Pedro Santana Lopes, que redunda em eleições legislativas ganhas por José Sócrates, arrecadando a primeira maioria absoluta para o Partido Socialista.

    Acesso: LIVRE, Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Do pântano de Guterres até ao fugaz Governo de Durão Barroso

    Do pântano de Guterres até ao fugaz Governo de Durão Barroso


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 8º episódio fala-se dos Governos de António Guterres (e dos orçamentos de Estado, que até meteu queijo limiano), que redundou numa queda em desgraça, também após o colapso da ponte de Entre-os-Rios, no meio de um ‘pântano’ político.

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  • Entre a vida e a morte

    Entre a vida e a morte


    As memórias de uma vitória sobre a morte. Uma vitória da vida, numa cama nos Cuidados Intensivos de um hospital, em Lisboa.

    As recordações das dores, dos pesadelos, dos sonhos, dos pensamentos… e daqueles que estiveram presentes, ao meu lado e que ficarão comigo nesta segunda vida.


    Acordo sem amanhecer porque neste lugar a noite não existe. O enorme relógio de parede parou no tempo. O dia aqui é uma luz branca e fria.

    Tenho os pulsos e os tornozelos atados à maca com fitas de seda. É a gota d’água. Perco definitivamente as estribeiras. Tento libertar-me com pontapés, mas não tenho força nas pernas. Uma dor lancinante percorre o meu corpo hirto. Estou preso. Há quanto tempo? Não faço a menor ideia. Também não sei onde estou e, sobretudo, não sei o que faço aqui. Dou gritos aflitivos. A minha voz não se ouve. Os poetas dizem que os homens preferem o efémero e não conseguem lidar com a eternidade. Os poetas têm sempre razão. Rebento. Estou farto de uma liberdade que tem os limites do meu próprio corpo. Ou seja: imobilizado.

    – Olá! – dispara um vulto desfigurado atrás da cortina opaca que me rodeia. – Sabe onde está?

    Não lhe digo que estou desanimado por estar aqui amarrado e não compreender nada. Não lhe digo nada. A minha situação é absurda, mas a esperança é a última coisa que se perde…

    – Senhor Rui. Sabe onde está?

    (Foto: D.R.)

    É difícil responder-lhe com a máscara de oxigénio posta. Sou um verdadeiro sonâmbulo. Estou bastante confuso depois de sonhar com muitos mundos paralelos e com ilusões acidentais incoerentes. A sólida realidade que criei na minha mente é um verdadeiro disparate. Preciso de pessoas à minha volta para tentar escapar à morte ou para ser capaz de discernir a transcendência de que necessito.

    Estou dentro de uma carruagem parada na estação de uma aldeia morta. Está muito calor. Uma passageira dá-me dois euros para que eu possa comprar uma garrafa de água. Estou literalmente a morrer de sede. Sinto uma grande desilusão: a loja está fechada. Durante duas intermináveis semanas, não me deram nada para comer ou beber.

    Os pesadelos sucedem-se. Depois do comboio, acontece outra história num hotel em Djerba ou Trujillo. A lata de refresco que abro é, no fim de contas, uma encorajadora perspectiva de esperança, mas não tenho sequer tempo de matar a sede…

    “A imprensa portuguesa, tão distante da minha aflição, publica uma notícia que parece ser o início do meu obituário.”

    O relatório médico diz claramente que apresento “um quadro clínico de agitação/delírio hiperactivo”. É a explicação detalhada do mistério da inquietude. Morrer à fome é sempre mais moroso do que morrer de sede. Não é pior. A morte não é má nem boa. A morte é a morte. É o que dizem. Ponto.

    De qualquer modo, a imprensa portuguesa, tão distante da minha aflição, publica uma notícia que parece ser o início do meu obituário. O sofrimento, aqui, é real, mas o pior é a solidão.

    Os médicos da Unidade de Cuidados Intensivos Cirúrgicos (UCIC) do Hospital de São Francisco Xavier (Lisboa) são peremptórios: “Pneumonia crítica por SARS-CoV-2 com sobreinfecção bacteriana e insuficiência respiratória de tipo 2 com necessidade de ventilação mecânica invasiva.

    Foi uma viagem de quase um mês entre a vida e a morte. Lembro-me da ambulância e de pouco mais. Fui admitido no serviço de urgência por agravamento da insuficiência respiratória hipoxémica em contexto de pneumonia grave por SARS-CoV-2 com ARDS (Sindrome respiratória aguda potencialmente fatal porquanto os pulmões não conseguem fornecer oxigénio em quantidade suficiente aos órgãos vitais). 15 litros de oxigénio (O2) por minuto para começar…

    Duas semanas em coma induzido, três semanas nos Cuidados Intensivos e quase quatro no hospital. Louvo o pessoal da UCIC do Hospital de São Francisco Xavier: técnicos de saúde, enfermeiros e médicos. Os turnos não são os mesmos para todos. Os médicos trabalham 24 horas. Os enfermeiros 12. Os auxiliares de enfermagem trabalham oito. A dedicação destas pessoas é imensa. Cuidam de nove pacientes (oito homens, comigo, e uma jovem mulher, grávida de 17 semanas). São competentes e enchem-nos a alma apesar de não podermos ver os rostos.

    – Aqui, regressam à vida! – sussurra uma enfermeira de olhos cheios e expressivos antes de me oferecer uma esferográfica e duas folhas de papel. O desabafo é sincero.

    À minha frente tenho outra cortina azul sem amplitude. É o horizonte permitido. Ponho-me a ruminar pensamentos de antanho. Ouço vozes distantes. Não há gemidos. Penso. Tenho ganas de viver com afinco. É aqui que me habituo ao mistério da vida. O meu objectivo é continuar a lutar, mais por carácter do que por qualquer outra coisa.

    Rui Araújo em reportagem na República Centro-Africana num helicóptero com soldados. (Foto: D.R.)

    Os momentos de alegria são fugazes, mas afastam os meus fantasmas. O meu amigo Rolando Santos criou com três dezenas de companheiros da TVI (Televisão Independente) e da RTP um grupo informal na Internet para acompanharem a evolução do meu estado.

    Hoje, leio algumas mensagens. Tristes. O diálogo seria muito mais divertido se os médicos não tivessem pensado durante as minhas duas semanas de coma que eu estava condenado….

    [19/11/20, 19:14:29] Tiago Ferreira: Estou de rastos com esta merda…

    [19/11/20, 19:15:21] Rolando Santos: Força aí, que o homem ainda não desistiu!

    [19/11/20, 19:15:36] Miguel Freitas: 👍

    [19/11/20, 19:15:50] Tiago Ferreira: Teimoso como uma mula.

    [11/19/20, 19:16:18] Tiago Ferreira:  Bem, a hiper-actividade pode ser que ajude.

    [19/11/20, 19:16:32] Rolando Santos: Para se tratar, mas também para pegar o bicho pelos cornos!

    [19/11/20, 19:16:34] Romeu Carvalho: Vai ter que levar duas chapadas quando voltar para não ser teimoso.

    [19/11/20, 19:16:53] Tiago Ferreira: Não adianta!

    [19/11/20, 19:17:05] Rolando Santos: Tem que ser mesmo um enxerto de porrada, que isto já não vai lá com festas.

    [20/11/20, 22:09:52] Henrique Dias: Caros, Rezem….  Ou pensamento positivo para que ele “vença esta batalha” e consiga algures fazer uma nova reportagem de “guerra”, que ele tanto adorava….

    20/11/20, 23:15:56] Tiago Ferreira: Ele vai-se safar. Eu sei que vai.

    [20/11/20, 23:30:19] Pedro Pedroso: 👍🙏

    Rui Araújo. (Foto: Nuno Pereira)

    Resmungo, mas ao mesmo tempo tomo consciência do peso dos laços de amizade demonstrados pelos meus camaradas de infortúnio profissional. Costumo pedir para não dizerem à minha querida mãe que sou jornalista. Ela ficaria muito decepcionada. Pensa que sou pianista num bordel….

    A minha rotina é: extracção de sangue, pequeno-almoço, inalação de pó, almoço, extracção de sangue, inalação de pó, extracção de sangue, extracção de sangue, extracção de sangue, extracção de sangue, jantar, etc.

    Uma das vezes os enfermeiros disseram-me que desistiam de continuar a picar-me por humanidade. Não tenho sossego. Mal consigo mexer-me. A algália dá-me dores violentas. Tiram-na. A urina caía dentro de uma espécie de garrafa ao lado da maca com um rótulo parecido com os do uísque.

    – Vou-me embora. Deixem-me ir.

    – Quer infectar outros? Assume essa responsabilidade? – pergunta-me uma enfermeira.

    – Imploro-vos: ponham-me outra vez em coma – Deus santo! Não suporto isto…

    – Neste momento, não tem sequer forças para se levantar…

    É verdade que não conseguia dar um passo. Uns dias mais tarde deram-me uma cadeira de rodas.

    – E precisa de oxigénio…

    A minha motivação para “matar saudades” da vida desapareceu imediatamente. A angústia crescia no peito.

    – Amanhã fará uma TAC (tomografia axial computorizada) dos pulmões…

    O Dr. António Pais Martins, director da unidade, veio saudar-me. É um excelente profissional.  O aprumo do serviço é obra dele. “Como um mensageiro dos deuses, esforça-se por me fazer sentir que sou humano. Eu não quero ser mais nada”, diria Miguel Torga. Começámos a tratar-nos por tu.

    – Tenho uma pequena carta surpreendente para ti.

    – Uma carta?

    – Carta de uma paciente.

    – O quê? Não conheço nenhuma paciente aqui…

    – Dou-ta?

    – Não!

    – Como, não?

    – Não a consigo ler. Não tenho os óculos, ficaram no saco de plástico com os meus pertences no cacifo do hospital.

    – Obviamente…

    – Agora a sério: não conheço ninguém aqui…

    – A autora é uma colega tua que está aqui internada com covid-19.

    – Podes ler-me a carta? – pergunto.

    Força e coragem! Isto vai passar. Está entregue aos melhores! Quando sairmos daqui, vamos dizer a todos que este ‘bicho’ é real e que os profissionais de saúde merecem ser reconhecidos e valorizados.

    Um grande beijinho.

    Marta

    As palavras assombrosas (sem clamor) de solidariedade da jovem companheira que não conheço são muito mais revigorantes do que qualquer perfusão. Respondi-lhe com caligrafia encorpada e hesitante. Quando isto passar (já que tudo acaba em ficção) tomamos um café.

    Naquele momento tenho sobretudo sede, apesar de não ter força para abrir uma garrafa de água. Os enfermeiros encomendam as refeições através do telemóvel: pizzas com complementos. De repente, fico com fome. Servem-me uma sopa de legumes, peixe assado e uma sobremesa que não identifico. Não reajo. Estou aqui para sofrer…

    – A enfermeira Mariana, o enfermeiro André e eu queremos celebrar a tua vitória contigo. Vamos comer marisco no Relento, em Algés… –anuncia-me Diogo, outro auxiliar amável, divertido e diligente.

    – Depois desta travessia, será um prazer estar convosco fora do hospital. Nunca sofri tanto na minha vida como aqui…

    Um mundo ao contrário. Os que me salvaram a vida querem agradecer-me por eu estar vivo. Como diz o meu bom amigo Alfonso Armada, a vida tem sentido porque a morte existe. Feitas as contas, submetemo-nos ou sacrificamo-nos, mas o importante é não perdermos a alma.

    Rui Araújo: “Lembro-me que estou vivo e que a vida é bela.”
    (Foto: Rui Araújo com Antoine, um dos seus melhores amigos/D.R.)

    A covid-19 é insidiosa. Sob uma aparência benigna, oculta muitas vezes uma grande gravidade. A minha condição era desesperada. Uma semana depois da minha chegada à Urgência é apenas preocupante…

    [24/11/20, 14:36:38] Rolando Santos: Tudo a rezar, Malta! Até os ateus, se faz favor!

    [25/11/20, 22:45:14] Henrique Dias (parafraseando uma enfermeira, sua amiga): “Continuam a tentar o desmame… [da sedoanalgesia]… Ainda não conseguiram porque ele não fica bem adaptado ao tubo endotraqueal (antes de retirar o tubo é preciso que o doente acorde, ainda ventilado). De resto, continua igual… Está estável em termos de frequência cardíaca e tensão arterial… Estamos a investir o que podemos. Mas era o que tinha dito, este covid tem tempos muito demorados de recuperação. Vamos aguardar com esperança! Ok?

    Os relatórios médicos podem ser desanimadores. Depois de cinco dias, com o aumento radical das enzimas hepáticas, deixam de me dar o fármaco Remdesivir. Tentam desmamar-me da sedo-analgesia e da noradrenalina. Não há resposta. Estou agitado. Deliro. Optam por uma terapia múltipla. Não respondo. Dão-me mais hipnóticos…

    Encontro-me numa cerimónia com gente elegante. As imagens são todas esverdeadas. Uma mulher muito bonita põe um lenço à frente da minha boca. Ouço-a dizer: Ai, Ai, Ai…! Perco a consciência.

    Dia de alta dos Cuidados Intensivos. Não era o meu dia de morrer. Fim da primeira parte da minha história clínica. Início da minha segunda existência.

    A enfermeira Isabel aproxima-se da maca e oferece-me um pedaço de pizza fria enrolado num guardanapo de papel.

    – Apetecia-lhe comer pizza. Partilhe uma fatia comigo. Desfrute-a! – diz ela com sotaque brasileiro.

    Olho para ela. Mordo o meu presente. Sorri. É a minha vingança contra a SARS-CoV-2. Lembro-me que estou vivo e que a vida é bela.


    NOTA:

    Texto de Rui Araújo originalmente escrito e publicado em espanhol na revista Frontera D, de Madrid [ver AQUI] em 4 de Junho de 2021.

    Foi também publicado na Revista Sete Margens [ver AQUI], em 25 de Junho de 2021.


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  • Do fim do cavaquismo até ao início do ciclo de Guterres

    Do fim do cavaquismo até ao início do ciclo de Guterres


    Na Hora Política do PÁGINA UM, a rubrica As nossas eleições, uma animada e descontraída conversa, mas bem informada, entre Frederico Duarte Carvalho e Pedro Almeida Vieira sobre os sufrágios no Portugal democrático. Neste 7º episódio fala-se do fim da era cavaquista, do surgimento de novos protagonistas secundários na segunda metade dos anos 90 (Carlos Carvalhas, no PCP; Manuel Monteiro & Paulo Portas, no CDS; e do ‘efémero’ Manuel Sérgio, com o PSN; e do Francisco Louça, no Bloco de Esquerda) que entronizam a ascensão de António Guterres num novo ciclo socialista no poder.

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