Um autocarro que deixa de parar nos apeadeiros por meio tostão de coisa alguma com 30 passageiros a bordo, 4 putos reguilas e um polícia particularmente mal encarado. Viagem — directa — rumo à esquadra da PSP mais próxima.
Brincadeiras…
— A gente estava no bar e resolvemos ir velar o morto. Só que depois ficámos cheios de sede e demos uma saltada até Sete Rios para ‘mamar’ umas imperiais. Tivemos azar, começou a chover. Precisávamos de apanhar um autocarro. E apanhámos. Os meus amigos entraram pela porta da frente, como manda a Lei. Eu, mais esperto do que os outros, pela de trás. Foi então que apareceu o senhor guarda. Identificou-se e mandou parar o autocarro. Eu lá saí, dei a volta e voltei a entrar pela porta da frente. O motorista rasgou-me o bilhete e tudo. Só que quando me juntei à malta, já havia ‘bronca’. Estava toda a gente a discutir. Eu agarrei, meti-me na barafunda. O guarda manda vir com a gente e a gente a mandar vir com ele. Em vez de sair ou sairmos, em vez disso, mandou seguir o autocarro direitinho até à esquadra. Ele não deu cavaco a ninguém. E nós, por causa do mau feitio dele, passámos uma noitada nos calabouços do Governo Civil. É uma injustiça…
… disse o juiz
O Tribunal considerou que não houve qualquer crime ou delito. Os quatro mariolas foram absolvidos depois ou antes — não se sabe bem — de alguém na sala de audiências apresentar as suas condolências pelo falecido.
— A gente foi velar o homem porque é lá do nosso bairro. E a gente, como é amigos, fomos lá dar os sentimentos. É preciso dar os sentimentos às pessoas.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 18 de Junho de 1988.
“Foram-lhe então lidos os direitos e deveres consignados no Código de Processo Penal. O mesmo declarou não desejar que as autoridades informassem a sua família ou amigos da detenção. Como medida de precaução, foi-lhe retirado um cinto de cor castanha feito em pele de cobra e um porta-chaves com quatro chaves tipo diverso.“
In ‘Auto de Notícia’
Óscar, angolano, 30 anos, solteiro, sem profissão — imigrante clandestino em terras de Portugal — e agora réu por ter tentado furtar na Casa Africana — ironias do destino — umas calças que vestia por baixo de outras no valor de 7.100 escudos (cerca de 350 euros). O cordel que servia de cinto descaiu. E pronto. Os vigilantes da loja deram pelo deslize.
Após o furto, Óscar foi perseguido por empregados e clientes. O sr. Durão, vigilante, não esteve com meias medidas. Atirou-se a Óscar. E deteve-o. É o que reza o Auto de Notícia. É o que conta o próprio sr. Durão…
— A casa tem um sistema de alarme. E o alarme dispara quando passa por ele qualquer artigo não liquidado. E foi isso que sucedeu, mas eu já tinha dado pela artimanha. Fui ter com o rapaz. Só que o cavalheiro fugiu. Persegui-o. Ele desequilibrou-se e não sei mais quê. Andou por ali assim às voltas e eu caí-lhe em cima. Passados escassos minutos, apareceu a Polícia…
Foi mais ou menos assim. Sérgio, o agente da PSP, confirma também ele esta versão dos acontecimentos.
— Ouvi alguém gritar “agarra que é ladrão” e movi perseguição ao indivíduo. Como é meu dever. Mais tarde, o detido foi agarrado por este senhor — Durão — que mo entregou sob prisão. Ele foi então conduzido à loja para retirar as calças que não eram dele…
— Que explicação deu o homem?
— Explicação? Qual explicação? Ele parece mudo. O tipo não fala…
Sentença
Veredicto do tribunal : Óscar condenado a pagar uma multa de 12.000 escudos (600 euros) ou, em alternativa, a cumprir 40 dias de prisão. Mais uma indemnização de 1.000 escudos (50 euros) à Casa Africana — certamente por ter gasto as calças. Pena suspensa por dois anos.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 15 de Outubro de 1988.
— Sou ali apanhado na rua Maria Pia às seis da tarde e estou até às 11 da manhã só com um «coiso» de café. Não se admite! E muito menos estar fechado só para responder num tribunal. Dormir em cima de tábuas… não se justifica. — diz o réu Fernando.
Fernando, 28 anos, solteiro, analfabeto inconfessado, pintor de automóveis e artista da condução sem carta.
Aos 14 começou a acelerar com o carro do tio. Aos 28 encostou num beco sem saída. Já não há ordenado (mesmo com uns valentes biscates) que chegue para pagar tanta multa. Sem falar nos pesadelos que são as noites nos calabouços do Governo Civil…
— Desta vez, ainda foi pior, que eu estive lá desde as seis da tarde até agora, sem comer. Agora, veja bem o que é que um gajo há-de fazer…
— Foi apanhado a guiar sem carta…
— Pois.
— … pela quinta vez.
— Pois.
— A primeira vez foi há sete anos…
— Se não estou em erro, foi mais ou menos isso.
— E porque é que ainda não tirou a carta?
— Não sei. Não me puxa para estudar os livros…
— Guiar, sabe…
— Então, não sei… Respeito o trânsito. Tanto, que todas as vezes em que fui apanhado nunca foi em transgressão. Ia sempre na norma, como vão os outros, mas não me puxa para tirar a carta…
Fernando foi uma vez a exame e chumbou. Como chumbou, comprou mais um carro em segunda-mão para apagar a mágoa. Aplicou-se ainda mais na condução.
— E agora?
— Agora? Não vou pegar mais em carros.
— E tirar a carta?
— Nem tirar a carta. Vou mudar para motos. Como tenho licença de motorizadas, escuso de andar a meter-me nisto…
— Mas porque não tenta tirar a carta mais uma vez?
— É muito difícil. É difícil porque eu não gosto de estar ali a ler. Se eu gostasse de ler, acho que conseguia tirar a carta…
— Nunca lê nada?
— Nada!
— Livros?
— Nada!
— Jornais?
— Nada!
— Banda desenhada?
— Nem isso! Vejo é televisão. Aí é que eu leio.
— E lá em casa alguém lê?
— Há o meu irmão, mas esse não quer tirar a carta!
VEREDICTO
Houve transgressão. Fernando foi condenado a pagar uma multa de 50 contos [249 euros] ou, em alternativa, passar 133 dias na prisão. Mais as custas do processo…
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 6 de Agosto de 1988.
— Deus? Para mim, não há Deus. Dizem que Deus está no Céu. Dizem que Deus não dorme. Para mim, está sempre a passar pelas brasas. Nunca me ajuda. Cada vez, pior… Eu a querer fazer de mim alguém e não consigo. Deve ser o Diabo que tem mais poder e está a fazer-me mal. — confessa Ana Paula.
Ana Paula, 31 anos — 16 de heroína —, perdeu a família, a casa e o emprego. A liberdade, perdeu-a esta manhã. “Tropeçou” numa caixa de bananas no Mercado da Ribeira e veio parar ao Tribunal de Polícia apesar dos soluços de indignação. Tentou provar a sua inocência, mas toda a gente torceu o nariz. Pobres a tropeçar na vida é coisa que já não surpreende ninguém.
FACTOS 1
— Por causa de me drogar é que eu perdi tudo. Perdi filha, perdi marido, perdi tudo.
— Quando é que começou a meter-se na droga?
— Há 16 anos.
— E parou?
— Parei… quero parar.
— Heroína?
— Sim. Não há mais nada para dizer. O que é que eu vou dizer mais? Estou desgraçada. Não tenho nada.
— Onde vive?
— Numa escada.
— Há quanto tempo?
— Seis meses.
— E vai sobrevivendo com os fretes que faz na Praça da Ribeira?
— É disso que eu vivo… Eu não sei roubar. Se soubesse roubar não tinha a miséria que tenho.
— E o que é que aconteceu hoje?
— Hoje, foi isso. Fui lá à Praça. Uma senhora mandou-me ir buscar a caixa das bananas para eu lhe ir levar ao táxi. E aquela outra senhora — não era aquela caixa, era outra — disse-me que eu estava a tirar a caixa sem ter pago.
A realidade ou a conversa do costume. Pouco importa. A única certeza é que ninguém entendeu os sorrisos de inocência de Ana Paula. A começar pela vendedeira…
FACTOS 2
— Andou a apalpar as caixas vazias e naquilo entrou dentro do lugar e tirou outra. Aí, eu dei uma corrida — porque eu estava distante, mas estava a ver o que se passava — agarrei-a e perguntei-lhe para onde levava a caixa das bananas. Ela respondeu-me que a mandaram buscar. Mandaram buscar nada. Mandei-a meter a caixa ali, agarrei-a pelos colarinhos e não mais a larguei. Depois, mandei chamar o fiscal. Fomos para a administração e dali para a PSP. Ela não levou a caixa porque eu não a deixei. E ainda tentou fugir…
— Bateram nela?
— Não batemos. Agarrei-a pelos colarinhos. Se ela estiver magoada é pelo agarrão que lhe dei.
— Ela disse que levou uma sova…
— Devia levar, devia. Se ela voltar lá outra vez, vai ver. Então leva mesmo. Dou-lhe uma tareia que vai para o hospital. Antes do Natal levou-me 18 ananazes, mas uma senhora não a deixou levá-los. A outra semana, foi à minha colega. Já por outra vez levou outra caixa de bananas. Não pode ser! É assim constantemente. Ela tem de ser castigada…
VEREDICTO DO TRIBUNAL:
Houve delito de furto. Ana Paula foi condenada. Por não ter antecedentes criminais e estar numa débil situação económica o juiz suspendeu-lhe a pena por dois anos.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 30 de Julho de 1988.
— O Ti António era um homem sério. Era uma pessoa considerada e estimada cá no bairro, mas um dia entrou pela minha casa adentro e, sem dizer patavina, agarrou nas coisas e atirou tudo janela fora. Pouco depois, meteu-se-lhe na cabeça ir para a rua fazer as necessidades. Foi um ver se te avias. Cada vez estava pior. Aquele homem já nem parecia o pacato Ti António que a gente conhecia… — conta uma vizinha.
Há histórias de amor ou de solidão que acabam em Auto de Notícia. Quando a mulher do senhor António adoeceu uma raiva surda e confusa apoderou-se do velhote e não mais o largou. Um dia — logo a seguir ao funeral da mulher — perdeu definitivamente o fio à meada. Abalou de casa com destino a parte alguma. Entrou num supermercado, deitou a mão à primeira bugiganga que lhe apareceu diante dos olhos e desandou. O vigilante deu pela coisa e o senhor António veio parar ao Tribunal de Polícia por meia dúzia de tostões. As atribulações do homem começaram aí. O Auto de Notícia é peremptório…
AUTO DE NOTÍCIA
António, 68 anos, viúvo, reformado a aguardar julgamento por furto num supermercado, foi mandado para a sala de impressões digitais por se encontrar a bocejar e a assobiar sozinho na sala de audiências. Cinco minutos depois, quando voltou à sala de audiências, a oficial judicial, Maria, deu conhecimento que este tinha o maçanete das impressões digitais no bolso do casaco, embrulhado numa folha do Tribunal, tendo-se apropriado do mesmo com a vontade livre e consciente e com a intenção de o integrar no seu património. Ao objecto furtado foi atribuído um valor jurado de 1.740 escudos [8,70 euros].
Após ter sido julgado no processo de furto, no qual foi condenado em 180 dias de prisão efectiva, o réu recolheu novamente à sala de impressões digitais, enquanto era elaborado o presente Auto.
Instantes depois, foi dado conhecimento pela oficial judicial Maria que António havia urinado numa caixa de cartão, contendo 500 envelopes do Tribunal, o que fez com vontade livre e consciente e com intenção de danificar os referidos envelopes, o que conseguiu. Aos envelopes danificados foi atribuído o valor jurado de mil escudos [5 euros].
O senhor António não contesta esta versão dos acontecimentos. Em boa verdade, não se recorda. Deu um tropeção na vida e pronto…
— Acusam-me de eu tirar o rolo das impressões digitais e de eu fazer chichi num sítio qualquer. Eu não me lembro, meu senhor. Eu andava mal, que a minha mulher tinha falecido. Estava perdido. Eu até já andava mal da cabeça desde que soube que a minha mulher tinha um tumor maligno no estômago. Era uma úlcera cancerosa ou coisa parecida. Depois, quando ela me veio a falecer, ainda fiquei pior. Não sabia o que fazia. Disto que sou acusado agora não me recordo. Agora que eu andava tão bem, graças a Deus… É que eu ando bem. Ando a trabalhar — mas não estou empregado! — simplesmente há casas que guardam aquelas caixas de cartão vazias e dão-mas e eu vou vender porque a minha pensão é pequena. É a minha forma de fazer face às despesas. É o comerzinho, depois é a renda da casa, é a luz, é a água e o telefone. É claro, vejo-me e, às vezes, desejo-me… Vou tratando da minha vida com o papelinho e tenho de fazer limpeza à minha casa. Tenho cinco divisões e infelizmente estou sozinho. Falta-me a mulher. Eu é que tenho de fazer tudo: a limpeza, o comer e até roupa lavo. Não faço mal a ninguém…
CONCLUSÃO
Julgamento adiado sine die. O senhor António vai ter agora de efectuar alguns exames psiquiátricos. O Tribunal pretende saber se há alienação mental antes de julgar o homem.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 4 de Junho de 1988.
A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) comunicou esta manhã a revalidação do título profissional da jornalista do PÁGINA UM Elisabete Tavares, uma acto que deveria ter sido automático e sem qualquer avaliação adicional, uma vez que está estabelecido um regime simplificado para os jornalistas com mais de 10 anos de actividade contínua ou mais de 15 anos intercalados.
O PÁGINA UM – e, em particular, a jornalista Elisabete Tavares – agradece a onda de solidariedade e a legítima pressão exercida (é a democracia a funcionar) para a regularização de uma situação que pretendeu lançar um manto de difamação sobre quem tem denunciado verdadeiras e insidiosas (e nunca resolvidas pela CCPJ) promiscuidades na imprensa. Agradecemos a cada um dos nossos leitores e também a muitos jornalistas, que respeitamos, que fizeram chegar à CCPJ o repúdio pela forma como estavam a tratar a jornalista Elisabete Tavares.
Em todo o caso, na sua missiva desta manhã, a CCPJ (re)insiste, mesmo sem respaldo jurídico (e de forma abusiva e ilegal), que “em sede de renovação da acreditação […] tem a obrigação legal de averiguar se o requerente se encontra abrangido” por incompatibilidades previstas no Estatuto do Jornalista, defendendo que “a ocorrência superveniente de incompatibilidade, prevista no Estatuto do Jornalista, suspende o direito ao título profissional de jornalista, de estagiário ou de equiparado, e implica a não renovação do título enquanto subsistir a incompatibilidade e durante os prazos de impedimento”.
Esta é uma falácia, ademais sabendo-se que não subsistiam quaisquer dúvidas sobre o facto de a moderação de debates (ainda mais de apenas um ocorrido em 2022, ou seja, fora do âmbito da vigência do anterior título) não ser incompatível. A própria CCPJ assim o interpretara expressamente em 2021, conforme ontem o PÁGINA UM comprovou. Levantar essa questão sobre a jornalista Elisabete Tavares teve o claro propósito de lançar um manto de suspeição e permitir, como sucedeu, a caducidade do seu título e a sua eliminação da base de dados dos jornalistas.
O PÁGINA UM vai, aliás, solicitar à CCPJ, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, salvaguardada a informação de carácter pessoal (como a morada), a consulta dos processos de renovação de um conjunto de jornalistas que têm publicamente feito moderações de debates – em que se incluem directores de órgãos de comunicação social e mesmo um dos membros do Secretariado da CCPJ, Jacinto Godinho – no sentido de averiguar se houve tratamento desigual, o que, a confirmar-se, consubstanciaria crimes de abuso de poder e de prevaricação.
Neste processo fica patente, além da evidência de uma perseguição ao PÁGINA UM, que a CCPJ terá de escolher um verdadeiro “jurista de mérito” para o novo mandato que, em breve, se iniciará. Com efeito, sustentar que lhe cabe a obrigação legal de averiguar eventuais incompatibilidades no momento da renovação da acreditação e que, em consequência disso, pode suspender o direito ao título profissional e impedir a respectiva renovação, levanta sérias questões jurídicas. A CCPJ apenas tem de verificar o cumprimento dos requisitos legais explicitamente previstos no Estatuto do Jornalista, mas essa função não pode, em caso algum, ser exercida de forma arbitrária, sem a observância do devido procedimento formal e sem assegurar o direito ao contraditório.
Nos termos do Código do Procedimento Administrativo (CPA), qualquer decisão administrativa que restrinja direitos carece de um processo adequado, no qual o interessado possa conhecer os factos que lhe são imputados, contestá-los e exercer a sua defesa. Não pode, pois, a mera invocação por parte da CCPJ, transmitida por e-mail, de uma alegada incompatibilidade conduzir, por si só, a uma decisão de suspensão ou não renovação da carteira profissional, sem que tenha sido instaurado um procedimento formal que garanta a participação do visado.
A interpretação que a CCPJ faz do artigo 17.º do seu regulamento interno, no sentido de permitir a suspensão do título de jornalista e, consequentemente, a não renovação, de forma automática e sem um acto administrativo devidamente fundamentado, configura uma violação manifesta dos princípios fundamentais do direito administrativo, nomeadamente do contraditório, da proporcionalidade e da imparcialidade.
Além disso, o princípio da presunção de inocência e a proibição da inversão do ónus da prova são elementos estruturantes do ordenamento jurídico português. Não pode ser exigido ao jornalista que demonstre que não se encontra numa situação de incompatibilidade, cabendo antes à CCPJ provar, de forma fundamentada e inequívoca, que os requisitos legais para a renovação do título não se encontram preenchidos.
Não pode, pois, a simples verificação de uma alegada incompatibilidade ser confundida com a aplicação automática de uma sanção administrativa, já que a primeira corresponde a um acto de averiguação, enquanto a segunda constitui uma decisão que restringe direitos e, como tal, exige um procedimento próprio, no qual o interessado possa exercer a sua defesa.
Ademais, o direito à renovação da carteira profissional deve ser encarado como a regra, sendo a sua recusa ou suspensão uma excepção que só poderá ser aplicada após a conclusão de um procedimento administrativo adequado, onde se inclua a instrução do processo, a audição do interessado e a fundamentação jurídica da decisão. O princípio da boa administração e o princípio da proporcionalidade impõem que o jornalista tenha a possibilidade de regularizar a sua situação ou de contestar as imputações antes de ser alvo de qualquer sanção.
Importa ainda salientar que a liberdade de imprensa, consagrada na Constituição da República, reforça a necessidade de garantir que qualquer restrição ao exercício da profissão de jornalista seja devidamente fundamentada e precedida de um processo justo e equitativo. Caso a CCPJ pudesse optar, como quis o seu Secretariado, liderado por Licínia Girão, uma actuação baseada em automatismos administrativos, sem assegurar as garantias processuais exigidas, tal conduta configuraria um abuso de poder e uma violação dos direitos dos jornalistas.
Em suma, embora a CCPJ tenha a competência para averiguar as condições de elegibilidade para a renovação do título profissional, essa competência não pode ser exercida sem o escrupuloso respeito pelos princípios fundamentais do direito administrativo, sob pena de comprometer o próprio Estado de Direito.
Portugal contribui para o mundo da programação com inúmeros talentos individuais. Os nossos engenheiros destacam-se lá fora, integrando projectos de grande relevância (escolhamos, como exemplo totalmente aleatório, João Moreno, um dos principais responsáveis pelo Microsoft VSCode). Contudo, também nesta área, a abundância de “Ronaldos” contrasta com a escassez de troféus colectivos – e para falar de colectivo em software temos que falar de “open source” (e pedir desculpa pelas demais expressões em inglês que, inevitavelmente, se seguirão).
Poderá surpreender quem está de fora, mas uma parte substancial do código de computador mais complexo e estrutural do nosso mundo é escrita por voluntários não remunerados e publicada à vista de todos, com licença explícita de cópia, alteração e até comercialização por terceiros. Não estamos a falar de pequenos projectos de hobbie-istas mas, por exemplo, da maioria do código que corre nos servidores que suportam a internet.
É assim que, há várias décadas, os programadores colaboram em “repositórios” acessíveis a todos. Melhoram e discutem o seu código sem se conhecer e criam autênticos arranha-céus nas nuvens.
Em Portugal, conhecem-se poucos repositórios abertos com dimensão e dinamismo. Talvez mais preocupante, seja não haver notícia de um único repositório “open-source” que esteja na base de qualquer projecto relevante para a sociedade Portuguesa em geral – como é natural noutras paragens.
Se é verdade que a nossa economia não tem meios para segurar os nossos talentos mais valiosos num contexto de trabalho remunerado, não há razão para deixar de aproveitar o seu trabalho voluntário.
Assim, é com muito entusiasmo que anunciamos que a presente renovação do Página Um é acompanhada de uma migração da sua infraestrutura a fim de permitir o desenvolvimento em “open-source”.
Quer isto dizer que o código subjacente a esta mesma página é do domínio público e pode ser melhorado por qualquer um, tanto na aparência como nos aspectos mais invisíveis da plataforma (uma aplicação WordPress headless + GraphQL + NextJS). E há muito trabalho a fazer!
Convido desde já todos os que se interessam por programação, seja qual for o seu nível de experiência, a visitar o nosso repositório, descarregá-lo e enviar a sua proposta de melhoramento sob a forma de “Pull request”.
Esperamos colher um pouco do talento individual que, sabemos, reside entre a comunidade P1 e os programadores portugueses, potenciando o crescimento deste órgão ímpar na nossa vida pública.
— A moral da história é um indivíduo sair à noite para passar uns bons bocados e entrar numa aventura. E não saber como acaba a noite… O meu cliente precisa de estar em óptimas condições físicas, mas acabou por estar todo o fim-de-semana detido nos calabouços do Governo Civil de Lisboa — conclui o advogado.
Alcides, solteiro, cabo-verdiano, jogador de futebol e agora réu por ter ido a uma discoteca com a namorada. Acusação: injúrias e desobediência à Autoridade.
O Auto de Notícia reza que estando o guarda em serviço remunerado na discoteca Cave X «o proprietário disse ao futebolista que não podia entrar por ser indesejável à casa e ali ter causado vários distúrbios. Como o mesmo tentasse forçar a entrada, o dono pediu a intervenção da Polícia, que aconselhou o réu a retirar-se e ir procurar outro estabelecimento. O mesmo não obedeceu.»
Alcides terá, então, injuriado o agente da PSP, mas o advogado do jogador tem outra versão dos factos…
A defesa passa ao ataque…
— O indivíduo olhou para ele e pura e simplesmente não o deixou entrar.
— Racismo?
— Não considero isso racismo porque essa palavra é forte. Não quero ir para esse lado…
— Então, qual foi o pretexto?
— Eu admito até que tenha sido a «plástica» dele. A maneira como ele levava o penteado, sei lá. Há algo que estigmatizou o porteiro da «boîte». Daí, ele querer saber o porquê. Responderam-lhe que não entrava porque o dono não queria. Nisto, foi chamado pelo polícia que veio cá fora. A namorada, que tinha ficado dentro da «boîte» a pedido do polícia até a questão ser resolvida, foi agarrada por um braço e expulsa. Quando o Alcides viu o que se estava a passar com a namorada, reagiu. Disse ao agente para ver o que estava a acontecer. Que o senhor porteiro e o dono da «boîte» estavam a ter um comportamento FP (FP’25). A partir daí mais nada se passou. É evidente que neste caso a questão que se põe é saber a quem deve obedecer um agente da PSP quando se encontra à porta de uma discoteca. Se deve agir com aquela imparcialidade necessária que é imposta pela Lei ou sob o mando dos patrões. Aquilo que se verificou é que o agente foi simplesmente acatador das ordens do indivíduo da «boîte», que disse que o Alcides tinha de ser preso e arranjou-se o pretexto, segundo o qual teria dirigido palavras obscenas ao polícia e extensivas a eles.
O árbitro marca falta
Alcides foi absolvido. Não se provou ter havido desobediência. A ordem era ilegítima. Também não ficou provado ter havido qualquer injúria.
E foi dada por terminada a contenda…
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 24 de Setembro de 1988.
Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 8 de Outubro de 1988, sobre Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
Foto: Rui Araújo
BAILAR COM A ANABELA
— A moral da história é que como o porteiro não me queria deixar entrar, os polícias deviam pegar em mim e irem comigo lá acima esclarecer o caso. Eu vinha-me embora a bem, não é assim da maneira que eles agiram. E já não é o primeiro que me faz coisas destas… Uma vez, houve um que até me ‘amandou’ um tiro num vão de escada… — lamenta-se o réu.
Carlos Manuel, 25 anos, solteiro, pintor da construção civil e agora réu por gostar da Anabela e do bailarico.
Auto de notícia
«O rapaz entrou na discoteca quando a sua entrada está proibida. É normal o detido perturbar o ambiente da sala. Desta vez, não deixava fechar a porta. Dirigi-me a ele no sentido de lhe fazer ver que o seu acto não estava correcto. Solicitei-lhe que deixasse fechar a porta e abandonasse o local. Não me obedeceu. Tive de o agarrar pelas costas para fechar a porta. O detido apresenta um pequeno ferimento no lábio que não foi provocado por mim em virtude de este, ao sentir-se agarrado, ter soltado de imediato a porta não sendo necessário fazer uso da força.»
Foto: D.R.
Acto de amor
— O porteiro não me queria deixar entrar porque eu teria a entrada cortada. Eu não o deixei fechar a porta. O tipo chamou o polícia, que se virou a mim. Queria tirar-me à força. E eu agarrado à porta. Até ainda tenho aqui o ferimento no dedo. Depois, o polícia virou-se ao murro a mim e apertou-me o pescoço. Chegou a carrinha da PSP e fui parar à esquadra. Daí, levaram-me para o Governo Civil. Estive lá até há bocado…
— Porque insistiu tanto para entrar na discoteca?
— Trabalhei naquela boîte e acho que nunca lá fiz mal nenhum. Foi só por isso…
— Mas porque razão não se foi embora antes de aquilo dar para o torto?
— Não me fui embora porque queria ir lá dentro saber qual era a justificação para eu não poder entrar.
— E tem a certeza que não sabe qual é o motivo?
— Sei lá… Se calhar, é por eu andar a dançar com as empregadas da casa… Coisa que a patroa detestava era isso. Deve ser essa a razão…
— Gosta mesmo de dançar?
— Gosto e sempre gostei. Eu era empregado lá e mesmo assim quando podia dançar, dançava. Assim que podia dar uma fugida para dançar, lá ia eu.
— Tem algum ídolo? Dançarino ou bailarina?
— Tenho uma rapariga chamada Anabela, lá dentro.
— E cá fora?
— Cá fora, não.
— O que dança?
— Eu danço qualquer música, então não é?
Despacho
«Considerando que o réu apresenta ferimento visível no lábio superior e atendendo às suas declarações, considero inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária, motivo pelo que determino a sua remessa ao Ministério Público e exame médico para Carlos Manuel que vai em liberdade.»
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 8 de Outubro de 1988.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 29 de Outubro de 1988, sobre Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia.
Foto: Rui Araújo
O BILHETE ESTAVA NA MOITA
— Ó pá, eu nunca fiz mal nenhum ali ao polícia. Eu até nem o conheço. Ou ele «engraçou» comigo ou, então, não topo… Isto já nem é a primeira vez que acontece naquela esquadra. Eles levam as pessoas e batem na malta sem razão nenhuma. Já não sou o primeiro… — queixa-se o réu.
Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia. Mais uma história de faca e alguidar ou a prepotência fardada.
Acto 1
O rapaz, que vem acusado de «agressão a agente da Autoridade», foi interceptado por se ter tornado suspeito.
Eis a versão policial dos acontecimentos.
— Solicitei-lhe a identificação. Não achou por bem a minha intervenção e respondeu-me que a tinha na Moita. Ao mesmo tempo e num gesto inopinado, agrediu-me com um murro no peito e uma dentada. Para manter o capturado em respeito e sua captura foi necessário fazer uso da força física do que resultou ter ficado com um ligeiro ferimento no lábio superior bem como simples escoriações nas costas.
Acto 2
Manuel Amílcar tem , obviamente, outra noção do sucedido. E, como de costume, é literalmente oposta da versão policial.
— Saí de casa. Fui ao café para beber uma cervejita. Estava à porta do café quando chegou o polícia. Disse-me que não podia estar ali a beber a cerveja. Respondi-lhe que não sabia que era proibido. Perguntou-me se eu tinha interesse em que a dona da casa apanhasse uma multa. Disse-lhe que não e que para a próxima não fazia isso. Começou a falar com outras pessoas. Pediu-me a identificação. Disse-lhe que tinha o Bilhete de Identidade em casa, mas que não estava assim muito bom. Estava estragado. Mas que tinha outro que estava na Moita. Aí, mandou-me entrar para dentro da carrinha. Entrei e começaram logo a bater-me. Depois, puseram-me na esquadra e mandaram-me para o Governo Civil de Lisboa.
— Porque é que não anda com o Bilhete de Identidade?
— Então, o café é mesmo por baixo da minha casa. Eu até lá fui em mangas de camisa e tudo… Prontes, tinha acabado de jantar e saí de casa. E tinha intenção de ir para casa novamente.
— E ninguém se ofereceu para ir a sua casa buscar o BI?
— Não. Eles levaram-me logo. Mas foram levar-me à esquadra.
— Costuma ter problemas com a Polícia?
— Não. O único problema que tive com a Polícia foi há três anos. Eu…
— Estava a furtar gasolina…
— Bem, nem cheguei a furtar. Mas depois fui responder e prontes. Nunca mais tive problemas.
— Desta vez, teria agredido o agente…
— Não, senhor. É mentira! Aquele bocadinho que ele tem ferido foi de um soco que ele me deu. E não foi só um. Foram montes deles. É o olho, é a boca, é uma tristeza…
Acto 3
Uma coisa é certa. Não chegou a haver julgamento. O juiz considerou inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária. Havia feridos a mais. Remessa dos autos ao Ministério Público junto dos juízos correccionais de Lisboa. E exame médico para Manuel Amílcar, que vai em liberdade.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 29 de Outubro de 1988.
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