Duas vezes doutorado – em Estudos Americanos, pela Faculdade de Letras de Coimbra, e em Política Comparada no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa –, Carlos Martins debruça-se, com o seu ensaio Fascismos, no surgimento desta ideologia no princípio do século XX. Em conversa com o PÁGNA UM, este investigador social, radicado em Cantanhede, fala também das motivações para a escrita deste livro e aborda questões de geopolítica contemporânea.
Quais os propósitos e motivações para este seu ensaio académico passar para um público mais vasto e de interesses gerais?
Acima de tudo, foi a ideia de que aquilo que se passa dentro do mundo académico não pode estar totalmente alheado do conhecimento geral e do interesse por parte do público. Muito aquilo que escrevo no meu livro, exceptuando algumas interpretações pessoais, encontra-se já em muitas outras obras, mas fora do mercado português. No nosso mercado existe uma falta enorme de livros sobre, por exemplo, a História do fascismo romeno. É muito difícil encontrar obras sobre este tema e, portanto, a minha motivação foi essa: achar que se deve partilhar as investigações académicas com o grande público.
Ao longo do capítulo sobre o fascismo italiano, nomeadamente na figura de Mussolini percebe-se que a construção ideológica tem mais de oportunismo do que de fieldade a princípios dogmáticos. Esta ideia é transversal ao Fascismo como um todo ou aplica-se apenas ao caso italiano?
É interessante falar nisso, porque são muitos os académicos que vêem de facto o fascismo italiano como uma ideologia oportunista por excelência. O próprio Mussolini parecia preocupar-se mais com o pragmatismo e a acção directa do que com conteúdos ideológicos, aos quais ele fosse fiel. Mas, de certa forma, é possível dizer que o fascismo italiano tem um conteúdo ideológico, para além de, por exemplo, o nacionalismo e o próprio pragmatismo, que é incorporado no seu conteúdo ideológico. Este mesmo pragmatismo é visto como uma justificação para as decisões que Mussolini diz tomar. Perante as diferentes realidades, que têm, dizem eles, tomam decisões diferentes, desde apoiar uma monarquia ou uma república. Mas em última análise, eu defendo que há sempre ali uma base que remete para algum conteúdo ideológico por mais pequeno que seja.
E no caso alemão, existe alguma verdade na ideia de que os judeus estavam imiscuídos na democracia parlamentar, que de algum modo justificasse o repúdio que sofreram, e que levou ao Holocausto?
Eu repudio que houvesse qualquer fundo de verdade nisso, dentro do ódio que os nazis nutriam aos judeus. Mas a pergunta sobre a origem desse ódio é a questão mais complexa, uma vez que não foram os nazis que inventaram o antissemitismo. A ideia de que os judeus são ricos e controlam o Mundo já é muito antiga. No caso do nazismo, as origens desse antissemitismo remontam ao século XIX, na ideia de que os judeus estavam por detrás do capitalismo materialista ou até do comunismo materialista. Uma certa direita reacionária, em diversos países, começou a utilizar essa ideia de que o judeu era o símbolo de tudo o que eles odiavam. Eram ideias como a destruição da pureza da raça, no contexto nazi, da raça ariana. Com a Primeira Guerra Mundial, esse antissemitismo exacerbou-se. A extrema-direita propagou muito a ideia que a derrota da Alemanha tinha sido uma conspiração dos judeus, e que mesmo o regime soviético era governado por judeus. Se é verdade que o antissemitismo não começa no nazismo, eu penso que ali foi levado a um extremo nunca visto.
No capítulo do fascismo português, mostra que ele não começa no Estado Novo, mas sim centrado à volta da figura de Rolão Preto. Ele tem um arco histórico que é descrito como sendo muito sui generis: começa num anticomunismo e acaba a lutar ao lado destes contra o Salazarismo. Mais uma vez fica aqui a ideia de um certo pragmatismo e oportunismo. Pensa que esta oposição era sede de poder ou discórdia ideológica?
Houve várias razões para que Rolão Preto fosse passando por várias fases ao longo da sua vida, sendo que uma foi o resultado da Segunda Guerra Mundial e a forma como muitos repensaram o que tinham andado a fazer em anos anteriores e a que ideologias tinham aderido. Esse anti-salazarismo de Rolão Preto, em diferentes contextos, levou-o a reformular a sua ideologia. A tentativa de golpe em [10 de] Setembro de 1935 para derrubar Salazar foi o ponto de partida para que o seu fascismo puro perdesse grande parte da força que tinha. Para fazer esse golpe, ele aliou-se a forças de esquerda e isso esvaziou um pouco a retórica de fascismo puro ou anti-esquerda. Aliás, na sua fase de líder do movimento fascista, Rolão Preto sempre incluiu, nos seus programas políticos, a defesa de medidas que seriam a favor da classe operária, e que quase poderiam ser vistas como medidas de esquerda para uma pessoa dos nossos dias.
Em relação ao Salazarismo, concorda com a ideia de ser mais um regime de conservadorismo fascizante do que propriamente fascismo?
Sim, concordo. Essa expressão de conservadorismo fascizante é, para mim, muito interessante, porque remete para a ideia de uma aproximação do Conservadorismo ao Fascismo que, nessa época, existiu, uma vez que foram adoptados princípios e ideias fascistas, enquanto continuava a haver uma linha de demarcação por mais ténue que fosse. Esta linha, mesmo para investigadores, parece um bocado irrelevante, mas no caso do Salazarismo faz sentido marcar-se uma diferença entre um regime conservador, que se baseia nas classes tradicionais, de um regime como o fascismo italiano, que tem por base o movimento de massas, as milícias, “camisas negras”, e o culto da acção directa; e que partilhou o poder com as instituições tradicionais, o que não aconteceu em Portugal.
Tivemos a Mocidade Portuguesa…
Sim. Houve uma fase em que se aproximou do fascismo, nomeadamente com a criação da Mocidade Portuguesa, o que a olho nu parecia quase a mesma coisa. Compreendo até que não se faça essa distinção, mas se formos estudar mais detalhadamente, há alguma necessidade de subtileza. Quero ainda adicionar que esta aproximação do Conservadorismo ao Fascismo não remete necessariamente, ao contrário do que muitas pessoas pensam, que este regime era mais soft ou suave. Um regime conservador pode ser igualmente repressivo e, portanto, não remete para a ideia de que era menos mau. Devido à carga que a palavra Fascismo tem na linguagem coloquial, dizer que algo não é fascista parece que está a dar a ideia de suavizar. Ironicamente, houve regimes conservadores na época que conseguiram ser mais sanguinários do que o de Mussolini.
Porque é que o Fascismo falhou no Reino Unido?
Uma das razões é que os partidos tradicionais de direita não precisaram de fazer uma aliança com o Wiliam Mosley. Não houve uma crise de ideologia política, nem uma crise económica que tenha tido um impacto tão grande como na Alemanha, pelo que não houve aquela multidão de pessoas de classe média que aderiram ao fascismo, em desespero ou raiva.
Mas não será também pelo facto de o Reino Unido ser ainda um império e possuir recursos que a Alemanha, por exemplo, então não tinha?
Há quem faça esse argumento, que o Fascismo chegou ao poder em países com ambições expansionistas e que o movimento fascista desempenhou esse papel. No caso inglês, essa ambição não existia, porque ainda tinha o seu império. Mesmo Mosley ambicionava a conservação do império a todo o custo.
Mas este império também se serviu dos seus recursos para, de algum modo, suavizar o impacto da crise económica, e assim evitar a ascensão das ideias mais extremas ou mesmo da violência, certo?
A Grande Depressão [nos Estados Unidos] também atingiu o Reino Unido, e até mesmo o programa económico do Mosley era voltado para resolver as crises através do corporativismo. Não se pode dizer que teve um impacto tão grande como noutros países, e isso pode ter condicionado a população na forma como olhavam para um eventual movimento fascista. A violência foi vista com maus olhos, quer pela direita tradicional quer pelas classes médias, e houve diversos confrontos entre fascistas e antifascistas britânicos, como a conhecida batalha de Cable Street, que deu um mau nome ao Fascismo.
Mudando um pouco o tema, agora sobre política contemporânea. A Europa e, porque não o Mundo, está em perigo de um reaparecimento destes movimentos, uma vez que se observa uma ascensão de ideologias de extrema-direita?
Sim, está a acontecer. Eu diria que o regresso do Fascismo é possível; há, nestes novos partidos de direita, alguns que podem ser classificados como fascistas. No entanto, a direita é sempre heterogénea. Tal como nos anos 20 e 30 do século passado havia partidos conservadores fascizantes, também hoje é assim – ou seja, nem todos serão fascistas, e aqueles mais próximos do poder também não o são. Isso não quer dizer que não sejam perigosos, e que não possam de forma diferente, prejudicar a nossa democracia, e que dentro de si não tenham alas fascistas. No caso do Chega, não duvido que haja imensas pessoas que possam ser classificadas como fazendo parte do fascismo puro, embora como partido político, eu não considero o Chega um partido fascista.
Entretanto, no Brasil, a direita radical perdeu as eleições…
Eu não tenho uma opinião muito formada sobre a derrota de Bolsonaro, mas diria que a população brasileira não reagiu bem aos grandes problemas do regime, incluindo a forma como a pandemia foi gerida. Ainda assim, é preciso lembrar que Bolsonaro teve um grande resultado com quase 50% dos votos. Acrescento ainda uma ideia: o “Bolsonarismo” veio para ficar, e mesmo que não seja o Bolsonaro, haverá alguém a representar esse espaço político.
E no caso de Trump? Como se explica a ascensão de alguém como ele?
Desde já, a reacção à identity politics da esquerda, a ideia da “nossa” América já não é o que era, a tomada do poder por parte de movimentos antirracistas e a criação de uma identity politics de direita para a raça branca. Depois, há as insatisfações económicas, a revolta contra as elites que a direita tão bem sabe aproveitar, que estão separadas do povo. Trump dizia muito isso, que Washington não conhecia o verdadeiro povo americano do interior, e no fundo ele também não conhece. Mas há também a identificação com Trump, porque ele cria muito aquela imagem do homem de sucesso que faz e não perde tempo a falar, e tornou-se rico por mérito próprio, vendendo a ideia de que nós podemos ser como ele, e que ele tem os nossos valores.
Salazar e Óscar Carmona, à esquerda.
Acha que ele pode ganhar outra vez?
É melhor não fazer previsões, mas sim, acho que há essa possibilidade, até porque, tal como Bolsonaro, Trump não teve um mau resultado em termos de números de votos.
Relativamente à guerra na Ucrânia, na sua opinião qual é a origem deste conflito uma vez que há muitas narrativas?
Respondendo de uma forma simples: são as ambições imperialistas da Rússia numa guerra tipicamente colonialista. No nacionalismo russo sempre existiu essa ideia de que a Ucrânia era uma parte subalterna da Rússia. São vistos como os pequenos irmãos dos russos, e a partir do momento em que se querem afastar do seu grande irmão, não pode correr bem. Estarão a ser, digamos, corrompidos pelo Ocidente.
Há também a questão do perder o comboio com a China e os Estados Unidos…
Sim. Aliás, eu acho que a lógica das ameaças nucleares, assim o espero, sejam nesse sentido: de não darem a Rússia como um poder geopolítico perdido, e ser ainda considerada uma potência mundial. Não penso que o Putin seja propriamente um comunista, mas tenta, sim, recuperar a grandeza de outrora. Talvez a época dos Czares seja a maior fonte de inspiração para ele.
Regressando a Portugal. É notória uma fragmentação política, com o aparecimento de pequenos partidos, tanto à direita como à esquerda. Pensa que irá continuar, que estes partidos ainda estão em crescimento?
Esse crescimento é mais notório na direita, concretamente no caso do Chega. No entanto, o Livre tem algumas posições europeístas, em alguns assuntos até mais do que o próprio PS. Devido ao desastre que foram as últimas eleições tanto para o BE e o PCP, e embora não goste de fazer previsões, é bem possível que o Livre possa crescer, e ir ainda tirar votos de pessoas que votaram no PS e estão descontentes com esta maioria absoluta. E, além disso, os mais radicais dentro do BE podem ir para um partido que começa agora a aparecer, o MAS. Porém, penso que o crescimento de novos partidos é mais notório à direita, e que estamos a assistir a uma reconfiguração da direita portuguesa. O Chega é aquele que tem mais possibilidades de crescimento. Acho que ainda não esgotou o seu potencial para crescer, dependendo um pouco dos eleitores do PSD, que é daí que eu diria que estão a vir os votos no Chega, até porque grande parte do eleitorado do CDS foi para a Iniciativa Liberal, e este pode até substituir o BE como o partido “jovem”.
Faço-lhe agora uma pergunta um pouco idealista: qual é, para si, o regime político mais eficaz?
Como cidadão, penso que, em termos de sistema político propriamente dito, é uma democracia parlamentar, como a que temos em muitos países na Europa. Eu diria que uma democracia puramente parlamentarista é melhor do que uma semiparlamentar, como ainda é o caso da portuguesa, embora se aproxime mais do parlamentarismo do que, por exemplo a França. Ou então as democracias nórdicas, embora estas sejam monarquias constitucionais, e eu não admiro muito a monarquia, mesmo que constitucional. Em termos de sistema económico subjacente seria um misto, que não exclui a Economia de Mercado, mas com uma forte componente de Estado Social. Um pouco como o sistema económico depois da Segunda Guerra Mundial.
Para terminar. Dedica este livro à sua mãe. Alguma razão especial?
Eu nunca teria feito esta investigação sem o apoio dela, eu não sei é se ela ficará muito contente de ter uma dedicatória num livro chamado Fascismos com o Hitler na capa [riso].
Miqui Otero garante que é sempre “muito pessimista” e que parte do pressuposto que os seus livros “não vão valer nada”. Mas o escritor, jornalista e professor universitário viu o seu mais recente romance, “Simón”, receber, em Espanha, o prémio Ojo Critico em 2020. É também o primeiro livro do autor catalão, de 42 anos, a ser editado em português, pela Dom Quixote. O PÁGINA UM aproveitou a ocasião da vinda do escritor à Feira do Livro de Lisboa para uma descontraída conversa em que se falou de “Simón” e de todo o tipo de heróis: desde os mais clássicos e literários, aos mais reais e comuns.
Os romances contam histórias e realidades objectivamente mas, como tudo o que é arte, também há um grau de subjectividade na sua interpretação ou na forma como cada leitor percepciona o que lê. Para si, como autor, de que é que realmente trata “Simón”?
Creio que uma das coisas que faz um romance, pelo menos um romance desta tradição realista, é analisar um momento histórico e uma sociedade, através dos olhos e do coração de um personagem. É uma boa maneira de abordar, por exemplo, os problemas num lugar e num tempo. Combinam-se as duas coisas. É sobre como a personagem vive determinados momentos históricos. Portanto, trata de problemáticas objectivas, mas que cada pessoa vive de forma subjectiva. E é isso que combina “Simón”, tenta ser um romance que parece que arranca como sendo a história de um menino que se está a formar e atinge a idade adulta, mas o que pretendi com este romance é fazer uma análise do que se passou neste período de quase quatro décadas.
O intervalo temporal em que se desenrola a história da personagem principal, Simón, coincide com as quatro décadas em que cresceu e viveu em Barcelona. Pode dizer-se que a vida de Simón foi buscar muito daquilo que viu e viveu?
Sim. Eu acho que quando estamos a passar pelas coisas na nossa cidade e no nosso país, pensamos sempre que são menos importantes do que as coisas pelas quais passaram aqueles que viveram antes de nós. Os romances que se passam em Barcelona, de escritores de outras gerações, falavam da guerra civil, do pós-guerra, da transição da ditadura para a democracia… e, quando eu tinha 22 anos e morava aqui em Lisboa e já escrevia, pensava sempre: que período mais aborrecido! Não há maneira de ter material para conseguir escrever um romance aqui!
Agora, os tempos que vivemos não são aborrecidos…
Não, agora é menos aborrecido, podia ser um bocado mais aborrecido! Mas, o que é necessário, é o tempo. Enquanto eu vivia os Jogos Olímpicos de Verão em Barcelona, não via aquilo como algo que pudesse dar um romance. Mas quando o tempo passa e se olha para trás, percebe-se que foi um momento muito importante para a cidade e para o país. Era um país que estava a tentar não ser associado com a ditadura franquista, que queria apresentar-se como um país moderno e recebia fundos europeus, como um adolescente que queria viver as coisas pela primeira vez… e tudo isso, de repente, me pareceu interessante. Foi uma altura de mudanças muito repentinas na cidade, algumas boas e outras más, porque deixaram de fora muita gente. Muitos vizinhos foram expulsos. Então, depois comecei a pensar que aquela altura não era assim tão pouco literária, tinha interesse. E a única coisa que se tinha passado era o tempo, para que eu fosse capaz de olhar e entender aquele momento. E o romance vai desde a inauguração do Jogos Olímpicos de 1992 até aos atentados nas Ramblas, em 2017. Pareciam-me dois bons momentos para começar e terminar o romance, porque foram muito diferentes. Os Jogos Olímpicos foram uma altura de fé no progresso, no futuro, na modernidade… eu lembro-me de quando tinha 11 anos, e as pessoas estavam todas muito excitadas, como se estivessem embriagados, havia uma embriaguez colectiva [risos]. Viam tudo como se fosse bom, pensavam que iam ser enormes, o centro do mundo. Com tudo o que isso tem também obviamente de mau. E o romance termina com os atentados porque foi uma altura drasticamente diferente, Simón já tinha mais de 30 anos e já tinha passado por uma série de decepções, e o sentimento que se vivia na sociedade era exactamente o oposto daquele do vivido durante os Jogos. Era uma sociedade muito mais individualista, Barcelona estava muito dividida pelo movimento independentista e vivia episódios traumáticos, como os do atentado, e com uma crise económica global. Então, respondendo à pergunta, pode ver-se como um livro de História que fala de experiências de vida, ou como um romance que fala de um personagem que de algum modo define esse tempo e o acompanha e o segue, bem como à forma como vai vivendo e como sente as coisas ao longo dos anos.
Simón começa por ser “o nosso herói”, e depois passa a ser “o nosso anti-herói”. Afinal, o que é que ele é?
Não sei. Acho que há certos conceitos que se têm de redefinir de alguma maneira, creio que um bom romance não é feito de heróis. Na Antiguidade Clássica, se virmos as odisseias gregas, são pessoas que cometem erros, que estão a servir um ideal, mas que, querendo regressar a casa, vão vivendo a sua vida [risos]. Eu fartava-me de rir, porque Ulisses queria voltar a casa, mas chega a uma ilha e está com uma mulher, que não é a sua, durante oito anos… depois, vai para outra ilha e apaixona-se por outra mulher. Num capítulo, vai para uma ilha em festa e fica nessa ilha em celebração durante um ano inteiro, num castelo. Então, ele nem sequer corresponde à ideia de herói que temos hoje em dia. Não acredito numa heroicidade imaculada. Os romances mais actuais não podem jogar com esse tipo de heroísmo, porque é mentira. Seria propaganda, não seria literatura. Então, para mim, Simón é um anti-herói porque se engana constantemente, porque duvida, às vezes faz coisas boas para interesse próprio e, outras vezes, não tem intenção de fazer mal, mas faz indirectamente. E, para mim, isso é mais interessante. No livro, Simón está obcecado pelos romances dos séculos XVIII e XIX onde, aí sim, se apresentavam os heróis espadachins, ou outros que tais. Eu chamo-lhe ironicamente herói, e por isso coloco a expressão em itálico, porque ele é um rapaz que vai cometer erros ao longo da vida e vai-se enganar ainda mais porque, ao ler tanto, no mundo real irá deparar-se com uma realidade que não é como nos livros. Então, ele é um herói até ao momento em que passa a ser um anti-herói. E acho que os anti-heróis são muito mais interessantes do que os heróis, do mesmo modo que as derrotas sempre serão muito mais interessantes do que as victórias.
Vamos poder ver Simón no grande ecrã?
Isso nunca se sabe. Estão a trabalhar nisso, mas já com o meu romance anterior, compraram os direitos de autor para uma série e depois não se concretizou. Não sei o que vai acontecer, porque envolve várias etapas que não dependem de mim. Com Simón, está em processo, mas não sei como acabará. Se me perguntar se existe um projecto para que isso aconteça, sim, há um projecto para uma série.
Simón conferiu-lhe uma maior projecção, tendo sido editado em várias línguas. Sente alguma pressão para que o próximo livro exceda o sucesso deste?
Não [risos]. Eu sou sempre muito pessimista, parto sempre do pressuposto de que os meus livros não vão valer nada. Dizem que preparar-nos para o mal é a melhor maneira de enfrentar o pior. Então, não sinto nenhuma pressão, até porque não sou um atleta. Os atletas, quando saltam de uma altura, nas seguintes Olimpíadas têm que ir mais longe, mas com um escritor não é assim. Não é sobre tentar escrever mais romances de sucesso, é sobre tentar escrever o que tenho para dizer no momento. O romance que estou a escrever agora será mais breve, mais pequeno e terá outro estilo. Simón conta uma história que segue um longo período de tempo, é amplo e fala sobre muitos temas. Agora quero fazer algo diferente, um pouco o contrário. Sem a pretensão de ser mais nada, nem mais do que este foi.
E está com menos tempo para escrever? Em Maio passado, anunciou que após seis anos como colunista para o jornal El Periodico, iria fazer uma pausa de alguns meses. Qual foi o motivo?
Houve situações diferentes. Com os meus romances anteriores, tinha os meus leitores, mas com Simón houve uma mudança muito grande, um salto de leitores enorme. Então, isso também fez com que o trabalho de promoção em Espanha durasse vários meses e isso rouba tempo, mas também espaço mental para me concentrar no que quero escrever. Depois, tenho dois filhos, uma menina com dois anos e um menino que acaba de fazer cinco. Durante todo este último ano tive duas criaturas em casa, e uma ainda estava a aprender a andar e a ir contra as coisas, com aquela atitude de bebés de um ano que parecem os teus amigos embriagados [risos]. Levantam-se e caem de repente, tentam explicar-nos algo incompreensível, estão a chorar e depois riem-se… são como os nossos amigos embriagados, os bebés. E o de quatro, estava numa fase de perguntar-me tudo, perguntar-me metafísica. “Papá, o que é um buraco negro?“; e perguntas sobre meteoritos e dinossauros [risos]. Bom, tudo isto é exigente, e acaba por levar muito tempo também. Tenho também muitas colaborações em rádios, dava aulas, tinha muitos compromissos acumulados, e dei-me conta de que não estava a conseguir escrever. Então, de repente, numa manhã escrevi um e-mail, parei com tudo e pus-me a escrever. E agora já tenho avançado com o meu novo livro. Depois do mês de Outubro, em que estarei na Alemanha, já termino o romance.
Também é professor universitário na Universidade Autónoma da Catalunha…
Sim, isso foi outra coisa que também parei na Primavera. Por volta de Outubro ou Novembro, voltarei a dar aulas. As aulas que dou são de escrita criativa e jornalismo literário, e também faço um workshop de escrita de romances pequenos, de 60 páginas. Depois, tenho um projecto com um escritor mexicano, Juan Pablo Villalobos, em que ensino escrita criativa num bairro problemático de Barcelona que se chama El Raval e tem 70 ou 80% de imigração, do Bangladesh, Paquistão, latino-americanos também. Um dia, eu e o Juan Pablo começámos a falar de como gostaríamos que esses jovens nos explicassem como é a sua vivência na cidade e organizámos uma espécie de curso em que a cada ano é publicado um livro. Então, isso também me tem ocupado bastante tempo, porque é como ensinar a escrever a jovens de 14, 15 anos, que têm vidas difíceis em muitos casos.
Foi o jornalismo que o levou a ser escritor ou já era escritor antes de ser jornalista? Como é que se definiria, qual é realmente a sua paixão?
É a literatura, os romances. Estudei jornalismo porque era o que muita gente estudava, e a única coisa que eu sabia fazer na vida era escrever, então pensei: como é que posso ganhar a vida com a única coisa que sei fazer? E, por isso, tornei-me jornalista e trabalhei como jornalista durante uns anos. Assim que pude, deixei as redações, estava farto de estar sentado em redações todos os dias. Por volta dos 28 anos abandonei o jornalismo e já não voltei mais às redações. Depois, ainda continuei a fazer algumas entrevistas e reportagens, e agora já faz tempo que não exerço jornalismo. No entanto, é algo que continua a interessar-me bastante. É uma profissão excitante, necessária e útil para a sociedade, mas a minha paixão é escrever ficção. E desde que eu era criança, com seis anos, voltava da escola para casa para almoçar das 13 às 15h, e tinha uma espécie de loucura, de que a cada meio-dia tinha que escrever um conto. E quando não o terminava, ficava doido! Escrevia compulsivamente como o Stephen King, e ficava torturadíssimo quando não conseguia escrever. Escrevi inúmeros contos entre os seis e os 10 anos. Foi uma vocação desde muito cedo. Sempre gostei de escrever.
A certa altura, no romance, chega-se ao dia do referendo sobre a independência da Catalunha e há uma passagem que refere que uma personagem via todo esse processo “como uma sã rebeldia“, e outra como um “golpe de estado“. Como catalão, qual é a sua visão sobre o movimento independentista catalão?
Não vejo de nenhuma dessas formas. Eu digo que o pai de Simón pensava de uma maneira e o tio de outra para mostrar como os dois extremos pensavam nessa altura. Considero que foi um período de encantamento, como que um truque de magia. Nas primeiras páginas do livro, sobre a inauguração dos Jogos Olímpicos, falo de quando foi acesa a chama olímpica com uma flecha e toda a gente achava que a flecha caía no lugar onde se acendia a chama olímpica. Foi um truque. As pessoas estavam dispostas a acreditar em qualquer coisa. E, na época do processo independentista da Catalunha, havia muita gente que acreditou em qualquer coisa. Mais uma vez, havia uma fé nesse projecto, que era uma fé acrítica. As pessoas não criticavam nada, havia um nacionalismo cego. Metade da população acreditou nesse ideal, efectivamente, de uma maneira cega. Metade, porque a população estava dividida, era 50-50. Confiou-se cegamente em como uma Catalunha independente era melhor, confiou-se em políticas baseadas em promessas, mas que não estava realmente preparadas. E, quando tudo deu o berro, alguns fugiram. Portanto, há toda essa questão, por um lado. Agora, se é legítima a aspiração de uma Catalunha independente? Creio que sim. Se merece um diálogo maior por parte do estado espanhol? Claro que sim. Mas, isso faz com que eu valide tudo o que foi dito pelo partido separatista da Catalunha? E a forma como a maior parte da população interpretou? Não, e parece-me triste.
Porquê triste?
Parece-me triste porque depois o que fizeram foi esbarrar-se com a realidade. Uma realidade em que não tinham pensado porque foram enganados. Então, não me parece que seja uma história entre bons e maus. Parece-me, por um lado, que houve uma atitude quase infantil e irresponsável de nos levar para algo que se sabe que não vai ser bom. E por outro lado, no caso do estado espanhol, houve uma reação tardia, e em alguns momentos violenta. Foi prejudicial, porque era um tema que se podia ter dialogado. Portanto, não me sinto num lado nem noutro. E estas reflexões eram coisas em que eu pensava enquanto se passava tudo isto na Catalunha. Tornou-se numa sociedade bastante dividida. Agora, já está muito mais calmo… Mas a mim, o que me custava mais de todo aquele processo é que, naquele tempo, definiam-te unicamente em função disso. Apresentavas-te num lugar e era: és independentista ou não és? És independentista ou unionista? E isso parecia-me muito…
Simplista?
Simplista, sim, e triste também. No livro, até há uma frase que tem a ver com isso: não somos só uma coisa, somos aquilo que trabalhamos. Nós não somos a nossa opinião sobre um tema. Uma pessoa tem tantas faces como o fogo. E, na altura, se alguém não se alinhasse com nenhum dos lados, era mal interpretado, porque isso era visto como um sinal de cobardia, como se não se quisesse posicionar. Mas não é verdade porque, pelo contrário, estaria a posicionar-se sim, e num lugar pouco cómodo, porque estava diante do vazio.
E acha que é assim com todos os temas, no geral? Ou é algo mais notório no caso de Espanha, com a questão da independência da Catalunha?
Não, eu acho que acontece com muitas outras questões também. Primeiro, acho que é um sinal dos tempos, e não é apenas uma questão espanhola. Por exemplo, se pensarmos em como funcionam os algoritmos das redes sociais, que polarizam as opiniões e tentam acicatar conflitos já existentes, porque é isso que move o mundo. É esse o estado de coisas em Espanha e em todos os países. Em Espanha, é evidente que há desde sempre uma tensão entre conservadores e reformistas e, muito claramente, há desde logo duas Espanhas diferentes que nascem do conflito da guerra civil. Há progressistas e, por outro lado, pessoas que não dizem que são franquistas, mas na verdade têm padrões mentais que vêm daí. São como duas equipas.
Que escritores tem como referências? Tendo já vivido em Portugal, algum deles é português?
São tantos, e menciono tantos neste romance, que nem sei por onde começar. Há escritores que foram fulcrais na minha formação, que li quando era adolescente e que são importantíssimos para mim e estão todos em Simón. Alexandre Dumas, Balzac, Stendhal… Há um que é uma referência pessoal e ao qual volto muitas vezes quando quero entender algo, que é Charles Dickens. Mas, obviamente, há muitas mais, e leituras mais actuais, como romances dos últimos vinte anos, por exemplo. O meu preferido será provavelmente “A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao”, de Junot Díaz, um tipo dominicano. Ou, antes, recomendava o poeta chileno Alejandro Zambra, que escreveu muitos romances nos últimos anos. Depois, nos meus vinte e poucos fui muito influenciado por escritores americanos. Também tive uma fase de literatura latino-americana. Muitos escritores de Barcelona também me influenciaram, e com os quais hoje me comparam, o que me deixa muito feliz porque são mestres para mim. E, desses, destacaria Francisco Ledesma, Eduardo Mendoza… Por fim, quanto aos portugueses, bem, obviamente li muito Saramago. Li o “Viagem a Portugal” porque estava a viajar por Portugal, e que começa a olhar o Douro, numa aldeia perto da aldeia da família da minha mulher, que é um povoado do lado de lá da fronteira espanhola. Também já li Valter Hugo Mãe, mas faltam-me ainda ler outros autores contemporâneos. Enfim, são mesmo muitos os autores que poderia citar como referências.
Em Portugal, não há uma separação de poderes tal como exige a Constituição. Assim, vivemos num Estado totalitário, sempre em função do chefe do partido que está no poder. Para Paulo de Morais, não existe em Portugal uma verdadeira democracia mas antes uma partidocracia. Nem a justiça nem os media escapam ao controlo político e económico, segundo o presidente da Frente Cívica, que alerta que há uma tentativa de controlo dos media por parte de António Costa. Paulo de Morais não duvida que a maior parte dos órgãos de comunicação social do país estão condicionados e operam sob o controlo de grandes grupos económicos e interesses políticos E avisa que o objetivo é que exista uma sociedade desinformada, para que seja mais facilmente manipulada, o que tem gerado um pensamento único e uma narrativa única de comunicação junto da população. Paulo de Morais garante que a corrupção está mais sofisticada e faz parte do ADN do regime em Portugal. E assegura que os portugueses “estão reféns de pagar rendas a grandes grupos económicos que lhes são garantidas pelo Estado” em diversos sectores, incluindo o da energia.
Começo por lhe colocar uma pergunta um pouco desafiante: vivemos num Estado totalitário, em Portugal?
Vivemos, mas não é de agora. A democracia portuguesa já não tem desculpas. Porque, antigamente, dizia-se que era uma democracia jovem. Só que, neste momento, a jovem democracia portuguesa tem mais tempo do que a velha ditadura. Portanto, a desculpa de que é jovem já não serve. Mas o que é facto é que nós, neste momento – embora reforçado por haver maior absoluta… Tem sido sempre assim: em Portugal, não há verdadeiramente separação de poderes. É um problema crónico. Isto porquê? Porque o poder executivo é liderado normalmente por um primeiro-ministro, que é simultaneamente o chefe do partido. E, enquanto tal, como chefe de Governo, manda no Executivo, o que está correcto, não tem problema nenhum. Mas, sendo chefe de partido, e pela lógica que nós temos – que é uma partidocracia, não é verdadeiramente uma democracia – o chefe de partido manda também no Parlamento.
Neste momento, deveria ser o Parlamento a fiscalizar o Governo, mas não é assim que acontece. O que acontece é que é o Governo que manda no Parlamento. Porque o primeiro-ministro, pelo facto de ser secretário-geral do Partido Socialista, controla a maioria parlamentar e controla absolutamente o Parlamento. Portanto, o Parlamento é um instrumento da acção executiva, não existe verdadeiramente um poder legislativo independente em Portugal. Não bastasse isso, em Portugal – e este é um problema que não é só deste primeiro-ministro nem só deste Governo – o poder judicial depende muito do poder executivo. Porque os meios que a justiça tem são disponibilizados por quem? Quem é que paga o orçamento do Ministério da Justiça? É o Parlamento, através de uma proposta do Governo. Isto não é um problema só de António Costa, mas também de Pedro Passos Coelho, de António Guterres, de Cavaco Silva, de Durão Barroso, de todos… Nunca houve coragem de dar capacidade financeira ao poder judicial para ser autónomo.
Portanto, o poder judicial não é autónomo nos tribunais, o procurador-geral da República é nomeado simultaneamente pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República que, infelizmente neste caso, e noutro, tem sido também instrumentalizado pelo primeiro-ministro. Além disso, a própria polícia de investigação criminal, está uma parte na judiciária, que é relativamente mais independente, mas também há investigação criminal na GNR ou na PSP, que dependem do ministro da Administração Interna. Então, resumindo e concluindo, o chefe do Governo manda no poder executivo, até aí muito bem. O chefe do Governo manda no poder parlamentar, péssimo. E o chefe do Governo manda parcialmente no poder judicial.
Depois, um quarto poder que seria a comunicação social, os media e o espaço público, que poderia servir como escrutinador dos outros três poderes. Esse também está maioritariamente debilitado e dependente de um conjunto de interesses económicos, que por via da corrupção estão muito ligados ao poder executivo; e também por uma prepotência que tem havido nos últimos tempos, nomeadamente deste primeiro-ministro, de tentativa de controlo dos media. Não foi só ele que o fez. Aliás, temos em democracia uma triste história de primeiros-ministros que foram tentando controlar a comunicação social, e digamos que António Costa é mais um dessa triste lista. E, portanto, há uma tentativa grande de controlo dos media. Não de censura formal, mas tentativa de controle do alinhamento da comunicação social, a generalista, enfim, a que nós sabemos…
A clássica…
A clássica. E os canais de informação também estão muito condicionados. Não queria estar aqui a particularizar para não ser indelicado, mas o que é facto é que a comunicação social maioritariamente – não totalmente – está controlada pelos grandes grupos económicos e pelos grandes interesses políticos, que estão ligados aos grandes grupos económicos.
Portanto, resumindo e concluindo, a separação e interdependência de poderes de que fala a nossa Constituição, não se verifica. Havendo toda esta concentração de poder no líder do poder executivo, de facto, nós temos um estado totalitário, sempre em função do chefe do partido que está no poder. Mas isto não acontece apenas com o Partido Socialista, aconteceu com o Partido Social Democrata. Acontece mais, obviamente, com quem está no poder mas, de alguma maneira, os partidos que estão na oposição e que alternam no poder, também têm a sua quota de responsabilidade nisto, como é evidente.
No seu entender, esse cenário que descreve e este problema que já é estrutural, favorece que haja esta corrente de pensamento único a que assistimos hoje em Portugal, e este maior controlo daquilo a que se chama uma narrativa que assenta na ideia de que o Governo não é responsável por quase nada do que tem acontecido, por exemplo, nos últimos dois anos?
O pensamento único, ou quase único, para ser mais rigoroso, tem sido também uma característica da sociedade portuguesa dos últimos vinte e tal anos. Porque como os interesses económicos capturaram a política, naturalmente tem que haver uma narrativa de comunicação que desvie a atenção dos portugueses dos verdadeiros problemas. Ou seja, no momento em que se discute o Orçamento de Estado, por exemplo, para falar de um instrumento importante da governação e da vida económica de um país, nunca se discutem os verdadeiros problemas que decorrerão daquele tipo de Orçamento de Estado. Em todas as discussões de Orçamento de Estado a que eu assisti nos últimos 15 anos, tudo o que se discute no espaço público é da ordem dos 3% ou 4% do valor do orçamento. Ou seja, só se discutem as questões laterais e marginais. Aquilo que é o essencial, que é onde é que o Estado português gasta o seu dinheiro, em esquemas de corrupção que favorecem determinados grupos económicos, nunca é discutido no âmbito da discussão parlamentar do Orçamento de Estado.
Para que não se discuta o essencial, para que de uma forma secreta se ande a roubar sistematicamente os portugueses, é evidente que tem de se arranjar uma narrativa comunicacional que distraia as pessoas. Eu excluo daqui a questão da pandemia, que esse efectivamente foi um momento em que se discutiram assuntos que eram importantes para a sociedade. Mas, tirando a questão da pandemia, na maioria dos casos, o que se discute é aquilo que verdadeiramente não interessa aos cidadãos, e é isso que convém a quem governa, porque quanto mais desinformada for a sociedade, mais manipulável é e naturalmente mais se consegue criar uma sociedade acrítica, que leve as pessoas todas no caminho do que interessa àqueles que verdadeiramente têm o poder, ao serviço de um conjunto de interesses económicos e até feudais.
E esses interesses, diria que hoje estão mais aprofundados e ganharam mais raízes, ou é igual ao que já havia em anos anteriores?
Sofisticaram-se, e, portanto, agravaram-se. Ou seja, nós passámos de uma fase, há 15 ou 20 anos, em que a grande corrupção se fazia através de favores, de tráfico de notas e de financiamento partidário, enfim, que hoje se continua a fazer. Mas hoje há uma fase seguinte, que é a fase em que o Estado português submeteu toda a sua política económica à criação de rendas para grandes grupos económicos. Hoje, através de mecanismos da mais diversa ordem, o que acontece é que os cidadãos estão reféns de pagar rendas a grandes grupos económicos que lhes são garantidas pelo Estado. Ou seja, quando nós abrimos a água na maioria destes concelhos do país, estamos eventualmente a pagar uma renda garantida a empresas como a DST, a Indaqua, a Aquapor, enfim, uma série delas, que são já hoje detidas por fundos financeiros internacionais e até pagam pensões a holandeses ou a suecos. Ou seja, verdadeiramente, na maioria dos concelhos do país, cada vez que uma pessoa, um cidadão, abre a água, que é um direito essencial – é entendido a nível das Nações Unidas como um direito humano e a nível da União Europeia como um serviço público essencial –, esse serviço público essencial serve para que os cidadãos, através da factura da água, paguem uma renda garantida através de esquemas de parcerias público-privadas a uma determinada empresa, como estas que referi e outras. Ou seja, um cidadão pobre em Matosinhos, abre a água e uma parte do que está a pagar do consumo daquela água, é para garantir pensões ricas a holandeses.
Pensa que os portugueses têm noção de que as coisas funcionam assim?
Não têm noção de nada disto. Enfim, dei-lhe o exemplo da água, mas quando ligamos a electricidade estamos a pagar também uma taxa a um conjunto de empresas que criaram sistemas de energia na área das eólicas e das fotovoltaicas, que garantem pagamentos de energia garantida da ordem de três e quatro vezes o mercado ibérico de electricidade… Quando passamos numa autoestrada, estamos a pagar uma portagem a uma parceria público-privada rodoviária que garante rentabilidades de taxas internas de contabilidade de 14% a quem as detém… Ou seja, um português, de cada vez que se mexe, hoje, está a pagar, através destes esquemas – que foram esquemas muito bem arquitectados no plano técnico, muito bem urdidos por grandes sociedades de advogados -, os portugueses estão a pagar rendas sistematicamente a todos estes conglomerados económicos. Ora bem, isto é a Restauração no século XXI em Portugal, do feudalismo pré-revolução francesa, no Antigo Regime. Verdadeiramente, o que acontece é que antigamente havia os servos da gleba, a agricultura era a grande actividade económica. Obviamente, hoje já não há servos da gleba, tanto quanto eu saiba, mas são os servos destes chamados serviços públicos essenciais, que fazem com que nós, os cidadãos além de pagar impostos ao Estado português, o que é legítimo e correcto, pagam no fundo um tributo a estas empresas que condicionaram todo o país.
Mas sem terem noção disso…
Não têm noção nenhuma de que estão a pagar rendas. É claro que isto é válido para água, para a electricidade, para as estradas, para os aeroportos. Ou seja, os portugueses, sempre que consomem seja o que for quase, nomeadamente ao nível destes serviços públicos, estão a pagar um tributo para viver em Portugal. E nos outros países não é assim, atenção. Há alguns em que é assim, mas há países em que não é, porque normalmente o Estado defende o interesse dos cidadãos, e quando, por exemplo, um esquema de uma parceria público-privada (PPP) ferroviária, como aconteceu nos caminhos-de-ferro de Londres, se torna penosa e nociva para os cidadãos, quem defende o interesse público, neste caso em Londres, resolveu a PPP e acabou com ela. Portanto, a primeira PPP da era moderna são os caminhos-de-ferro de Londres e também foi a primeira a ser resolvida. Portanto, neste momento os caminhos-de-ferro voltaram ao erário público. Respondendo à sua pergunta, a corrupção sofisticou-se. Hoje, a corrupção está no ADN do próprio regime. Razão pela qual, e volto ao Orçamento de Estado, de cada vez que um é aprovado, cerca de 10, 11 mil milhões de euros, mais de 10% do Orçamento, destina-se a pagar todos estes desmandos de PPP, de subsídios à banca para o Fundo de Resolução. Enfim, é todo um conjunto de dinheiro dos contribuintes que é canalizado para este tipo de negócios perniciosos para a sociedade, para além daquilo que nós depois pagamos no dia-a-dia. Ou seja, os cidadãos pagam rendas a um conjunto de empresas e pagam impostos para depois o Estado canalizar para essas mesmas empresas. O país está a saque.
Em todo o caso, o Governo anunciou com grande pompa e circunstância uma nova estratégia nacional de combate à corrupção.
Anunciou, isso é verdade. A estratégia nacional de combate à corrupção, que foi anunciada e publicada noDiário da República em Dezembro e que entrou em vigor em Junho, desde logo não é uma estratégia, não há estratégia nenhuma. No âmbito dessa estratégia, aparece um novo mecanismo que é o mecanismo nacional anti-corrupção, que por sua vez, ao fim deste tempo todo… Repare, a estratégia era muito urgente. A lei foi publicada em Dezembro, entraria em vigor em Junho. Neste momento, o mecanismo anti-corrupção nem sequer existe. Foi nomeada uma pessoa, ainda por cima, que é um juiz já jubilado. Enfim, com todo o respeito pelas pessoas de toda a idade, mas não terá certamente a grande energia e a dinâmica para implementar uma estratégia anti-corrupção, porque não há vontade de combater a corrupção. É claro que tem que haver uma estratégia nacional anti-corrupção, mas não é isso que nós temos. Primeiro, sob o ponto de vista formal, aquele documento não é uma estratégia. Enfim, não vou entrar aqui em questões académicas, mas uma estratégia pressupõe desde logo um conjunto de objectivos, de meios, e a avaliação subsequente. E aqui, não há estratégia, é apenas um documento de boas intenções. Mas documentos de boas intenções, enfim, com todo o respeito, mas estou farto de ver desde sempre. Nós precisávamos de facto era de uma estratégia, que não existe e este documento também não o é. E depois precisamos dos executores dessa estratégia.
Portanto, não está muito confiante de que as coisas irão melhorar no combate à corrupção?
Este mecanismo vem substituir o Conselho de Prevenção da Corrupção que, ao fim de 14 anos, não fez nada. Portanto, é difícil piorar, digamos que piorar é difícil. Mas também não acredito que vá melhorar porque não há, efectivamente, vontade. Vamos lá ver: primeiro, o que é corrupção? A Transparency International define-a de forma simples, e é nessa perspectiva social que eu entendo a corrupção, sem entrarmos aqui em pormenores jurídicos ou técnicos. Mas, a corrupção é a utilização de um poder delegado para benefício particular. Estou a traduzir o inglês livremente, mas é a minha tradução. Sempre que alguém tem um poder de delegado público e o utiliza para benefício particular, da família ou da empresa dos amigos, está a incorrer num acto de corrupção. Quem gere a coisa pública, no Governo, no Parlamento ou nas autarquias, tem que pensar sempre que tem um mandato que não lhe pertence, mas que pertence ao povo e lhe é atribuído por um determinado período.
Em teoria…
Claro. E tem que representar os seus eleitores, o seu eleitorado, e tem que ser na defesa desses que tem que actuar. Tudo o que saia disto é um acto de corrupção, de maior ou menor dimensão, de menor ou maior gravidade. Portanto, tem que haver da parte de quem dirige e de quem é eleito, vontade de em primeiro lugar defender o interesse do povo que deve servir. Sempre que isto não acontecer, a corrupção instala-se. Portanto, sem vontade, tudo o que se diga que se vai fazer para combater a corrupção são apenas formalismos e panaceias pontuais que não resolvem efectivamente o problema. Enquanto não houver, da parte da classe política, vontade efectiva de combater a corrupção, não é possível combatê-la.
Mas acredita que com o estado de coisas, digamos assim, que descreveu, é possível algum dia chegar ao poder uma pessoa independente que de facto queira fazer alguma mudança?
Neste momento é muito difícil.
Visto que Portugal está refém dos partidos e de toda essa rede de interesses…
E o problema é que, e isto acontece a nível autarca mas também a nível nacional, os eleitos que vão para o Parlamento, deveriam de ir fundamentalmente com dois objectivos, que são fiscalizar o Governo e criar legislação que favorecesse a população que os elegeu. Estes são os objetivos para os quais eles deveriam lá estar, mas na prática, o que é que eles vão para lá fazer? Apoiar acriticamente o Governo, neste momento, ou combater se estiverem na oposição, mas digamos que não vão fiscalizar a actividade governativa, vão fazer de claque. O Parlamento é um conjunto de claques. E vão garantir negócios e empregos para quem lhes financia as campanhas e quem os apoia com votos. Isto é válido no Parlamento e também em qualquer Câmara. É claro que nas câmaras os objectivos seriam diferentes. O objectivo do autarca deve ser garantir a qualidade de vida e uma boa gestão do espaço público. Mas o que é que faz um autarca-tipo em Portugal? Garante negócios para quem lhe paga as campanhas eleitorais, e lugares para os seus apaniguados do partido que lhe vão garantir a eleição seguinte. A democracia está capturada por todos estes interesses.
Então, neste cenário desolador que descreve, está explicado também o caos a que nós temos assistido, seja no Serviço Nacional de Saúde, seja na gestão de recursos.
Claro. Nós comemorámos há poucos dias o 24 de Agosto [Revolução Liberal de 1820]. Quem fez o 24 de Agosto não foi o povo da rua. Foram pessoas como Fernandes Tomás, Ferreira Borges, digamos, o sinédrio no Porto. Mas, cria-se uma junta governativa, e essa junta governativa em 1820, que é o início do nosso regime constitucional, apresenta-se ao povo português com o objectivo de desinstalar uma administração incompetente, cheia de vícios e erros. Portanto, vícios de corrupção e erros de incompetência. E, dizia também esse documento da junta governativa, [uma administração] que nos tira de todos os nossos foros e direitos. Passados 202 anos, estamos nós aqui a conversar e, de facto, o problema mantém-se. Os sucessivos Governos e Parlamentos têm estado reféns de dois factores que dão cabo de qualquer país, que é a incompetência e a corrupção. A corrupção, que nos tira toda a possibilidade de termos um futuro decente e que é, no fundo, a utilização dos recursos de todos para benefício particular, ou seja, quando se utilizam bens que são comuns. Depois, em termos jurídicos, pode-se chamar de tráfico de influências, prevaricação, há muitos crimes.
Já é um pormenor jurídico…
Sim, isso são pormenores jurídicos, mas o fenómeno social da corrupção é isto. E, depois, como há que dar lugar aos apaniguados dos partidos, bom, há muitos lugares da administração que não deveriam sequer de existir. Portanto, esses não era nem competência nem incompetência, há uma colisão de competências por existirem lugares que não servem para nada. Mas nos lugares que servem para alguma coisa, que também são muitos, normalmente nomeiam-se os incompetentes do partido que, inevitavelmente, acabam por gerar muitos problemas porque sendo incompetentes, tomam más decisões. Aliás, isso vê-se nomeadamente a nível local, quando se escolhe um boy partidário em detrimento de um competente, isso tem três problemas. O primeiro, é a injustiça que se sente, porque as pessoas ficam revoltadas. Mas esse é o menor dos problemas. O maior problema é que depois um incompetente colocado num lugar vai tomar decisões durante 20 anos, e provavelmente vão ser más decisões, porque só por milagre é que um chefe de um grupo partidário que está habituado a gerir comícios, também é bom a gerir finanças de um município, ou a perceber de condutas de águas pluviais de uma rua. Só por milagre é que percebe disso tudo. Aliás, as partes que normalmente não falham a nível local são as que têm a ver com festas. Porquê? Porque a malta que vem dos partidos sabe organizar festas. Não sabem fazer mais nada! Mas festas, comícios…
É uma especialidade…
É. Mas normalmente as romarias não falham, porque isso eles sabem fazer. Agora, gerir saneamento, as finanças da Câmara… isso não sabem. Portanto, a incompetência tem resultados catastróficos. Não bastasse isso, cria-se a ideia, nomeadamente nos concelhos mais pequenos, e depois generaliza-se ao país, de que competência para obter bons empregos ou para fazer uma carreira, não conta nada. Porque verdadeiramente, uma pessoa que tenha um doutoramento no Instituto Superior Técnico, que vá querer ser engenheiro para uma Câmara de um concelho que tem 15 ou 16 mil eleitores, vai perder o concurso para alguém que é do PS ou do PSD, ou da JS [Juventude Socialista], ou tanto faz. E, portanto, obviamente, perdem-se oportunidades de colocar pessoas competentes a fazer aquilo que a população necessita. Portanto, entre esta incompetência que resulta também de um acto de corrupção, e a corrupção propriamente dita, que é gestão de uma forma, aí já competente, mas tendo em vista interesses que não são os do povo, dá-se cabo do património todo de um país.
Daí, pode explicar-se porque é que Portugal, por exemplo, está tão bem colocado em termos das universidades no mundo, de termos bons quadros, há sempre esse elogio. Mas depois, na prática, não há lugar para eles na gestão do bem público e dos recursos públicos, devido a essa questão do peso dos partidos.
Em todas as actividades em que há alguma interconexão entre aquilo que é um mercado e o que é o Estado, não há possibilidade de fazer uma boa carreira em Portugal. Eu estou a dizer isto para dizer que há excepções. Há empresas que vão buscar grandes quadros às universidades, como de engenharia informática, sistemas de informação, engenharia de gestão industrial… Estou a falar destas áreas mais tecnológicas. Põem-nos a trabalhar em empresas em Portugal, mas a prestar serviços para o estrangeiro ou para todo o mundo. E aí a intervenção do Estado, digamos que é cobrar bem ou mal impostos. Portanto, o dano não é muito grande. Agora, sempre que haja uma intervenção do Estado, como seja contratar pessoas para a administração pública, seja de uma Câmara ou de escolas e hospitais, entram factores de perversão, que de facto, não aproveitam devidamente as competências que nós cá temos. Portanto, verdadeiramente, aqueles que conseguem exercer convenientemente a sua profissão e a vocação para a qual estudaram, são aqueles que, ou emigram, ou que trabalham em Portugal para o mercado estrangeiro. Esses estão relativamente libertos destas perversões. Quem trabalha, directa ou indirectamente, para algo que venha a depender do Estado, está sempre dependente destes mecanismos e de facto, não consegue concretizar, que é a maioria. Portanto, tirando aquela excepção, que são aqueles que trabalham em áreas de ponta muito específica, os cidadãos não conseguem concretizar as suas vocações, porque não há uma procura conveniente de qualidade ao nível dos recursos humanos.
Por exemplo, considera aceitável que Portugal esteja a viver a crise que está a viver em termos de serviços de atendimento de obstetrícia nos hospitais?
Não faz sentido nenhum. Mas deixe-me ainda voltar ao ponto anterior. Todos os anos, a Transparency International publica o indicador de percepção da corrupção. A percepção não é a da população em geral, é de peritos, do Banco Mundial, do Economist, e outros, sobre a corrupção dos países. E Portugal, em 2000, ocupava, em termos de transparência, o 23º lugar. De 2000 para 2010, passou de 23º para 32º, portanto, foi o país que mais se degradou no mundo nessa década, e é claro que não foi o efeito só dessa década, mas em termos desse indicador. Portugal foi o país que mais se depreciou e, desde 2010, não saiu dessa posição. É sempre 32º, 31º. Quando Portugal estava em 23º, os seus parceiros a nível europeu eram, por exemplo, a Irlanda. Quando está em 32º, os seus parceiros são a Itália e Espanha, cujos níveis de corrupção tão bem conhece. Por outro lado, também todos os anos, a ONU publica os indicadores de desenvolvimento, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é um indicador agregado de saúde, educação e riqueza. E, já há estudos feitos nesse sentido, alguns nos quais, modéstia à parte, participei, que dizem que há uma forte correlação negativa entre desenvolvimento e corrupção. Dentro da Europa nota-se esse feito até com maior discriminação. Então, dentro da Europa, está provado, através dos números, que quanto maior é a corrupção, menor é o desenvolvimento, e vice-versa. E onde isso se sente ainda mais, é na saúde. Portanto, a saúde é tanto melhor quanto menos corrupção há.
Portanto, isto é um sinal de que há muita corrupção em Portugal. É uma consequência…
Exactamente. É uma consequência.
Hoje em dia, temos sistemas informáticos, inteligência artificial, mecanismos para fazer gestão e operações logísticas sofisticadíssimas, e rapidamente. Portanto, o que é que explica tudo isto?
Nós, com a evolução do que se chama inteligência artificial, business analitics, entre outros, temos hoje mecanismos, quer de sistemas de informação para a gestão, quer de informática que lhe dá suporte, que permitem melhorar muitos serviços aos cidadãos. Bastará nós pensarmos, por exemplo, que… Se um hipermercado em Portugal fosse gerido como são geridos os hospitais, havia um dia qualquer em que fechava a carne, noutros dias fechava o peixe, e noutros dias não havia ninguém nas caixas. Porque é que isto não acontece nos hipermercados? Porque os hipermercados são geridos profissionalmente por directores, por gestores, que garantem que os turnos são capazes para as necessidades da procura. Porque é que isto não acontece num hospital? Aliás, estamos aqui, há estes problemas na saúde que martirizam as pessoas, e tanto penalizam a comunidade, e curiosamente, nós temos um Serviço Nacional de Saúde (SNS), que está bem colocado a nível mundial. Nós estamos em 25º ou 24º quarto lugar no mundo – agora não sei de cor – no indicador do SNS, à frente do Canadá!
Portanto, é um problema de organização ou de gestão logística…
Absolutamente. O que é que acontece? É que ao mesmo tempo que um dos nossos hospitais centrais aqui em Lisboa, numa sala de operações temos a melhor tecnologia do mundo, as melhores técnicas do mundo, os melhores médicos do mundo, os melhores enfermeiros do mundo, e a melhor organização dentro da sala de operações do mundo… Portanto, estamos ao nível dos padrões de top…
Ao nível técnico de medicina?
Exactamente, ao nível de organização daquela competência. Só que depois, chegamos à porta, e em alguns hospitais parece que estamos num hospital africano. Porquê? Porque não há organização. Não há uma organização de atendimento, de acolhimento, de recepção. O que tem de se fazer é tirar dos hospitais e das administrações regionais de saúde os boys incompetentes, e colocar lá pessoas competentes que saibam como é que isto se faz. É claro que isto acontece, infelizmente, em quase todos os serviços públicos. Eu viajo muito de comboio, Porto-Lisboa e Lisboa-Porto e, independentemente do número de pessoas, da data do ano, de ser dia de Natal ou o 10 de Agosto, de haver uma catástrofe ou seja lá o que for, as pessoas que estão na bilheteira são sempre as mesmas. Portanto, que modelos de gestão pública são estes? São modelos de gestão pública do final do século XX. Portanto, há todo um conjunto de áreas da administração pública, em que o que há a fazer é dotar as organizações de pessoas competentes.
E como é que se pode fazer isso?
Bem, primeiro tem de se tirar de lá os boys incompetentes. E, depois, em alguns dos casos, há lugares a mais, que têm que ser pura e simplesmente extintos. E depois há um conjunto de lugares que têm de ser ocupados por pessoas que tenham capacidade e competência. Ainda por cima, poder-se-á dizer, como é que vamos avaliar a competência? Pelos resultados. Desde logo, pelos resultados dos utentes. Porque sempre que nós tenhamos um hospital central ou um centro de saúde a receber mal, com um acolhimento desagradável, nem é receber mal porque as pessoas não são mal tratadas. Mas se alguém chega a uma triagem a um hospital e só na triagem demora uma hora, para a consulta vai esperar mais três. E, portanto, se os sistemas que nós temos de acolhimento nas entidades de serviços de saúde portuguesas são maus, têm que passar a ser bons. Mas são maus porque isso também beneficia, e canaliza pessoas para os privados. Ou seja, quem gere assim o Serviço Nacional de Saúde está a destruí-lo em benefício dos privados.
Mais uma vez, os grupos económicos a serem beneficiados.
Eu julgo que são beneficiados e há dolo nesta atitude. Ou seja, se os serviços públicos de saúde recebem as pessoas de uma forma pouco amigável, é evidente que as pessoas têm tendência a ir para os privados. Bastará ver que hoje, quem tenha ADSE, que é sistema público de saúde, provavelmente numa consulta para uma gripe num hospital privado, paga menos do que a taxa moderadora que pagaria num serviço público. E isto é um exemplo claro. E isto é uma forma de canalizar os cidadãos para os serviços privados de saúde.
Aumenta as desigualdades, porque há população que não tem acesso ao privado.
Como é evidente. Mas independentemente disso, há muita gente no Serviço Nacional de Saúde, que de forma voluntária ou não, mas muitas vezes até inconsciente, com as suas atitudes, está a canalizar as pessoas para os privados. Eu dou este exemplo, e poderia dar muitos mais. Obviamente, há aspectos em que isto tem outra relevância, nomeadamente nos casos em que morrem pessoas. Mas no quotidiano, quem lê esta entrevista e qualquer cidadão sabe que se tiver uma dor no pé, uma coisa que não seja muito grave, tem que fugir do Serviço Nacional de Saúde. Quem está no SNS, porque é que não trata disso? Porque muitas das pessoas que são nomeadas são boys partidários. Portanto, eu acho que tem que haver uma luta militante para tirar os boys incompetentes da administração pública.
Militante de quem, da sociedade civil?
Da sociedade civil. E tem que obviamente haver da parte de alguns responsáveis, pelo menos, mecanismos de controle da qualidade e de satisfação das pessoas.
Mas como é que é que se pode mobilizar a sociedade civil num ambiente tão bafiento e opressor como este que descreve, em que há um domínio dos partidos e esta ligação entre partidos, interesses políticos e económicos?
Eu acho que a solução virá de fora da política. Agora, por que via, não sei, mas tem que vir da forma, vem da opinião pública. Há bocado falávamos dos media que estão muito condicionados, mas tem que haver aqui umas correntes de ar fresco que arejem esta sociedade e comecem também até pelo exemplo a mostrar que há efectivamente coisas que funcionam. Porque, obviamente, que há muitas entidades públicas que funcionam bem, e nós tivemos, apesar de tudo, o exemplo da pandemia enfim isso é uma outra conversa, mas o esquema de vacinação foi um esquema em que o plano logístico funcionou.
Parecido com o que se faz nos supermercados, na distribuição, levar um produto de A para B, transportá-lo, armazená-lo…
Há mecanismos, matemáticos nomeadamente, de previsão, que permitem saber quantas pessoas vão chegar ao Hospital de Santa Maria no dia 10 de Dezembro de 2022. Portanto, com esses mecanismos de previsão, há que organizar toda aquela logística por forma a que naquele dia, haja porteiros, enfermeiros, médicos, pessoal da limpeza, para garantir aquele tipo de procura. Os serviços públicos têm que perceber que têm que ser os serviços públicos a condicionarem-se à procura, e não a procura a condicionar-se à oferta. Quando é a procura a condicionar-se à oferta, chega uma grávida a mais e o bebé morre. Porquê? Porque não há oferta. E tudo isto hoje é previsível. Seria imprevisível se houver uma catástrofe, mas no quotidiano, saber quantas grávidas vão aparecer no hospital no dia X, isso consegue-se prever com um ano de antecedência, hoje há técnicas para isso. Agora, é preciso que os gestores destes equipamentos tenham no mínimo esta preocupação. E quem diz destes equipamentos diz os gestores das policias para a rua, e tudo o resto. Não se pode pedir polícias na rua no momento em que há problemas na rua. Tem que se prever quando é que vai haver, obviamente que uma sociedade tem sempre problemas, vai haver sempre conflitualidade. Mas hoje há mecanismos que permitem prever, com uma grande precisão, com uma margem de erro relativamente pequena, qual vai ser a conflitualidade. Isto está mais do que estudado, está estudado até se são dias de lua cheia, ou dias mais escuros que são de lua nova, tudo isto está estudado em toda a parte do mundo. E a transposição dessa tecnologia para Portugal é fácil, porque não é preciso trazer máquinas, basta trazer o software e as pessoas que percebam disso. Portanto, é preciso é usar estes mecanismos, prever quantos policias são precisos na cidade do Porto ou na baixa de Lisboa daqui a seis meses.
Já que fala nessa questão, como é que vê – e não resisto a perguntar-lhe – o desaparecimento de bases de dados, a mutilação de bases de dados relativos à saúde por parte do Ministério da Saúde? É um caso concreto, específico neste sector, mas mostra que não há transparência e há dados que são escondidos relativamente ao que se passa hoje em Portugal.
Nós temos sempre dois valores que têm que ser devidamente ponderados, que é a protecção de dados pessoais e a utilização de informação colectiva.
Claro, estamos a falar de dados anonimizados.
Portanto, é perfeitamente possível transmitir toda a informação, e quanto mais informação a sociedade tiver, obviamente mais habilitada está para tomar decisões. E convém transmitir toda a informação, e naturalmente defender as componentes mais intimas e privadas das pessoas. Isto também é completamente fácil de fazer. O problema é que não há, mais uma vez, opinião pública devidamente informada para defender este tipo de transparência. E, por outro lado, os grupos económicos que andam metidos em esquemas, têm grandes sociedades de advogados que andam a defender a falta de transparência. Como acontece por exemplo agora, há uma discussão europeia, nem é nacional, sobre o acesso às contas bancárias no sentido de conseguir identificar branqueamento de capitais, fuga ao fisco, etc. Se deixar de haver esse acesso, é evidente que a maior parte da investigação deixa de fazer sentido. Mas obviamente, tem que haver esse acesso e não pode ser com o argumento de que há um casal que se vai divorciar e que o marido não quer que a mulher saiba quanto tem no banco, que se vai permitir que depois haja grandes entidades bancárias a fazer lavagem de dinheiro. Vamos ver qual é a ponderação e o interesse social em cada caso. Mas infelizmente o que acontece é que o tal marido que não quer mostrar a conta à mulher não tem um grande advogado, e o banco X americano e o banco Y francês têm todas as grandes sociedades de advogados que tentam criar mecanismos de combate à transparência. Mas isto inevitavelmente ía acontecer. Antes do 11 de Setembro, não havia acesso às contas bancárias como há hoje, isso foi apenas porque os americanos quiseram combater o terrorismo e ter acesso quer às transferências que têm a ver com o tráfico de armas ou de drogas, quer também com o financiamento das armas, só isso é que permitiu que começasse a haver um maior acesso às contas no Luxemburgo, na Suíça, etc. Inevitavelmente, os grandes consórcios de corrupção internacionais, também iriam tentar combater isso. Portanto, esta legislação que a Europa está a tentar implementar, resulta da acção de lobby muito forte por parte daqueles que não querem que haja transparência, temos de ser claros.
E acredita que vão conseguir?
Eu espero que não, espero que as sociedades civis, nomeadamente aquelas com maior dinâmica, a alemã, sueca, se revoltem contra este tipo de situação. Porque seria muito mau que, com o argumento da protecção de dados pessoais íntimos das pessoas, os polícias judiciários dos vários países deixassem de ter acesso às grandes transferências que vêm do Cazaquistão para as Maldivas e depois para Inglaterra e por aí fora.
Há a percepção de que esse tipo de operações só existe com criptomoedas, mas não. Já existiam antes todo o tipo de operações financeiras ilegais. O Paulo tem falado de várias coisas e fazer estas denúncias também lhe tem trazido alguns dissabores. Como é que está a sua situação, com os processos de que tem sido alvo?
[risos] Eu tenho dedicado uma parte da minha vida a lutar contra a corrupção, porque entendo que a corrupção é claramente o maior mal dos país. Se Portugal, não é se acabasse a corrupção porque não acabará, mas se começar a baixar os seus níveis de corrupção, começa a aparecer o desenvolvimento, por razões que já disse atrás. Mas para além disso, a sociedade fica muito fresca, ainda por cima Portugal é um país com 10 milhões de pessoas, que têm todo um conjunto de recursos naturais, sociais, humanos, históricos e culturais, que permitia que todos vivêssemos bem. Tirem daqui a corrupção e deixará de haver gastos permanentes em corrupção, e todos esses recursos serão utilizados no desenvolvimento. Portanto, o combate à corrupção é fundamental. É evidente que todos aqueles que vivem da corrupção, não querem que se combata a corrupção. E tentam de forma sistemática calar quem denuncia este tipo de situações. Em Portugal, sempre que alguém denuncia casos de corrupção ,aqueles que são mais poderosos e que têm acesso, nomeadamente, a recursos financeiros vultuosos, recorrem a sociedades de advogados para tentar censurar quem fala.
Às vezes, recursos públicos…
Pois, quem utiliza recursos públicos para tentar calar quem os critica, está a fazer exactamente o que se fazia no tempo da ditadura, que é usar recursos públicos para mecanismos de censura. Mas eu, nos últimos anos, de facto tenho tido um conjunto de processos de persecução e de bullying, quase jurídico, e que normalmente tem a ver com tentativas de me fazer calar.
Para ver se desiste?
Para ver se me calam. Não tem resultado nem resultará, mas o facto é que eu já tive processos que me foram colocados por difamação, denúncia caluniosa, ofensa à pessoa colectiva, enfim, várias modalidades jurídicas de entidades tão diferentes como o antigo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, ou o Luís Filipe Menezes, presidente da Câmara de Gaia, ou a Porto Editora, ou o grupo Leya, ou o vice-presidente de Angola, enfim, tem sido uma série deles. Estamos neste momento em 12 processos que eu já tive em tribunal. É claro que 12 processos com sentenças e recursos, debates instrutórios… Estive dezenas de vezes em tribunal nos últimos 12 anos.
Portanto, 12 processos. Neste momento não se encontram muitos ainda activos?
Exacto. Até aqui, felizmente, eu tenho ganho os processos todos. O que é bom para mim, naturalmente, tenho menos incómodos pessoais, mas sobretudo acho que ajuda no caminho da liberdade de expressão. Eu, além da luta contra a corrupção, tenho tido uma luta igualmente resistente na defesa da liberdade de expressão, que é fundamental. Porque os factos que eu vou revelando, alguns são públicos e notórios, portanto nem os estou a revelar, outros estão devidamente documentados. E quando eu emito a minha opinião sobre esses factos, faço-o sempre na defesa do interesse público, sempre revoltando-me contra o mau uso de recursos públicos, e faço-o no uso de um direito constitucional, que é a liberdade de expressão. Portanto, se os factos são verdadeiros e estou a exercer um direito, não posso ser penalizado por isso. É claro que isto não é uma luta fácil porque leva muito tempo, também algum dinheiro… E hoje talvez o que mais me incomoda, nem é tanto a minha luta pessoal e dos que têm meios para se defender, mas sim a luta dos que não têm meios para se defender. Porque de facto, uma pessoa que ganhe o salário médio ou baixo em Portugal e se lembre de criticar alguém poderoso na política ou na economia, corre o risco de levar uma queixa e ver-se a braços com um processo que não vai ter meios para suportar, nem no plano económico, nem às vezes psicológico.
Portanto, estou sempre preocupado comigo, e não me podem levar isso a mal, mas preocupa-me mais aqueles que não têm capacidade para se defender e que sabem que, se numa pequena terra do interior criticarem, no Facebook, o presidente da Câmara, correm o risco de, na autarquia, serem encostados ou até perseguidos. Por isso é que eu acho muito importante que haja uma transposição rápida para a Lei portuguesa, quer da legislação de protecção de denunciantes, que está feito, foi feito também em dezembro do ano passado, e é importante que todos aqueles que detectem situações irregulares percebam que têm mais do que o direito, a obrigação de denunciar, e não podem sofrer qualquer tipo de represálias. E é importante que quem reconheça situações em que há represálias, as denuncie, que é o que tenciono doravante fazer, desde o momento em que a legislação entrou em vigor. Mas, para além da protecção de denunciantes – que são os que têm que estar envolvidos no caso que leva à denúncia, os players – também dos activistas, pessoas como eu e outros, que fazem denuncias publicas. E hoje há uma directiva europeia anti SLAP, que é Stategic Litigation Against Public Participation, e essa directiva deve ser transposta rapidamente para Portugal, para que quem denuncia publicamente um conjunto de situações, seja protegido, nomeadamente por entidades públicas.
Quanto aos meus processos, para concluir, neste momento, os que estão em curso são duas queixas que me foram colocadas pelo vice-presidente de Angola, Bornito de Sousa, que têm a ver com o facto de ele ter gasto nos vestidos de casamento da filha, 200 mil dólares, e, naturalmente eu indignei-me com isso, fiz bastantes críticas públicas a esse facto… E apresentaram-me uma queixa crime, em que houve uma decisão de não pronúncia, mas ele recorreu – ilegitimamente, do nosso ponto de vista. E um segundo processo que está ainda bem activo, é da viúva do Américo Amorim e da filha, pelo facto de eu ter criticado a especulação imobiliária a que vamos assistir no local onde está neste momento a refinaria de Matosinhos, que acabou de ser fechada, há cerca de um ano. Esses são os que estão no activo. Os restantes, já terão sido concluídos, mas estamos aqui a falar e não sei se, a qualquer momento, não estará a sair do tribunal uma carta para minha casa. Mas, enfim, eu escolhi este caminho, não estou nada arrependido, e sempre escolherei, com os meios que tenho, a capacidade de poder dizer, em Portugal, aquilo que penso.
Polémico, herói para alguns, vilão para muitos, Rui da Fonseca e Castro ficou conhecido, por antonomásia, como o “juiz negacionista” durante a pandemia – para si, uma falsa pandemia –, incentivando, ainda quando exercia como como juiz em Odemira, à desobediência das normas imposta durante a pandemia, considerando-as ilegais e anticonstitucionais. O Conselho Superior da Magistratura abriu-lhe um processo disciplinar que redundou na sua expulsão em Novembro do ano passado, confirmada há um mês pelo Supremo Tribunal de Justiça. Mas ao contrário de se ver como um derrotado, ou vítima, o agora advogado promete não baixar os braços e clama por uma revolução. Uma nova força partidária parece estar na forja.
Temos aqui alguém que ainda não tinha aceitado falar à comunicação social…
Eu tive um período de vários meses, um período longo, em que, pelo menos semanalmente, recebia convites para ir à televisão ou a um jornal para dar uma entrevista. E recusei sempre. Recusei porque achava que não lhes deveria dar essa vantagem, na altura. É óbvio que eles iriam retirar vantagens disso, nem que fosse em termos de audiência. E também serviu como mensagem: eu não preciso do jornalismo, não preciso dos jornalistas. E, portanto, tenho liberdade para decidir se aceito ou não. Essa é a verdadeira liberdade, quando não se precisa. E decidi aceitar o convite do PÁGINA UM. Conheço o trabalho que tem sido feito. Parece-me que tem sido feito um trabalho com independência, e isso para mim é importante. E foi por isso que eu aceitei.
ENTREVISTA INTEGRAL A RUI DA FONSECA E CASTRO
Se nós dissermos “Rui da Fonseca e Castro”, se calhar muita gente não vai associar o nome a si, mas se dissermos o “juiz negacionista”, facilmente conseguem identificar o personagem. É de facto um juiz negacionista?
O negacionismo serve para silenciar, é um mecanismo de silenciamento da discussão, da opinião, da liberdade de expressão. É um obstáculo à liberdade de expressão. A expressão negacionismo foi adoptada directamente a partir do negacionismo do Holocausto, que é um termo extremamente pejorativo, com uma carga negativa muito forte. E, portanto, foi utilizado no contexto da “falsa pandemia”, a partir de 2020, para encerrar a discussão sobre o tema e permitir um pensamento único, uma ideia única que nos era imposta pelo regime, através de todos os seus tentáculos. Nessa medida, eu não sou um negacionista, mas nego que tenha havido ou que haja uma pandemia. Isso eu nego.
Em que medida que não existiu pandemia? Isto porque o país e o Mundo estiveram parados, as pessoas estiveram infectadas e doentes. Como pode haver uma negação daquilo que foi um facto?
Como pessoa do Direito, preciso de provas. Se estivéssemos numa sala de audiências em tribunal, precisávamos de provar, por uma amostra da população dita infectada, que cada uma dessas pessoas tinha estado infectada com um vírus novo, que tinha provocado uma doença nova. Aí é que reside a questão. Não há prova em Portugal da existência de um vírus novo. Até pode haver prova, em termos mundiais, da existência de um vírus novo, porque houve três isolamentos virais no início de 2020, com três sequências diferentes que, aparentemente, eram novas.
Entretanto, dias antes disso, já havia um protocolo de teste RT-PCR concebido pelo Christian Drosten, que foi o protocolo comercializado a partir dessa altura. Antes de ele conhecer os isolamentos, as sequências dos tais novos vírus, em que dois eram parecidos um com o outro e o terceiro era completamente diferente, salvo erro. Eu não sou médico, mas é o que ainda me lembro deste assunto. Portanto, não nego que possa haver um vírus novo, mas estamos a falar de uma pandemia em Portugal.
Os testes RT-PCR estavam a ser feitos com base no protocolo Christian Drosten, para criar falsos positivos, criar número, para criar uma pandemia. E o teste RT-PCR não é um meio de diagnóstico. Assim, não podem dizer que uma pessoa que tenha febre e que tenha testado positivo, esteja infectada com um vírus novo que provoca uma doença nova. Isso não é prova, nem científica nem numa audiência de julgamento independente, séria. Porque isto nunca foi levado a julgamento.
No fundo, estamos aqui a falar de uma manobra concertada, de uma teoria da conspiração? Há uma conspiração que fez com que vivêssemos uma “falsa pandemia”? É isto que podemos concluir?
Há, deliberadamente, uma construção de uma falsa pandemia. A criação de uma ficção de pandemia, isso existiu. Se nós formos analisar a mortalidade em 2020, vemos que, até Março, estava perfeitamente dentro dos padrões normais para todos os anos naquela altura. No dia 16 de Março de 2020, deu-se a primeira suspensão do serviço assistencial do SNS. As pessoas deixaram de poder ir ao hospital tratar-se. Ao mesmo tempo, eram “inundadas”, porque a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tornou-se omnipresente, com uma campanha de medo.
Enfim. Foi a partir de Março de 2020 que tivemos o primeiro pico de mortalidade em Portugal, quando as pessoas deixaram de poder ir ao hospital. E essas pessoas, muitas delas tiveram gripe, outras tiveram pneumonia… A pneumonia em Portugal, na esmagadora maioria dos casos, é bacteriana. Mudaram-se os protocolos hospitalares, as pessoas passaram a ser tratadas com remdesivir, quando muitas das vezes as pneumonias eram bacterianas. O remdesivir é um antiviral que tem reações adversas gravíssimas, em termos de insuficiência renal e hepática. Se fizermos uma radiografia do que aconteceu nos hospitais do SNS durante 2020, vamos ver que muita gente, a partir do quinto dia de remdesivir, começou a ter problemas renais e hepáticos. Enfim, interromperam-se tratamentos oncológicos, o que provocou mortes ao longo do ano com picos no final do ano.
Esta suspensão de Março durou dois ou três meses, e em Novembro suspendeu-se novamente a prestação assistencial do SNS. E, portanto, ao mesmo tempo em que se criavam os casos com os testes RT-PCR, as pessoas eram incentivadas a ficar em casa 15 dias, isto é um dos maiores sinais de uma sociedade doente. Quando a população se deixa subornar pelo Estado, pelo regime… Eu não chamo Estado, chamo de regime…
Já vamos a essa ideia que tem da governação do nosso país, mas permita-me uma pergunta: a sua ideia da pandemia já vem de trás, surge logo no início ou depois do famoso confronto, que aliás é a sua imagem, com a polícia?
O conhecimento que eu tenho da matéria que acabei de expor, que nem sequer é matéria jurídica na sua maioria – mas os tribunais têm que apreciar matéria não-jurídica, é o normal… Não tenho problemas nenhuns em relação a isso, tenho que me socorrer de quem sabe, dos técnicos da área da Medicina, da Ciência, da Biologia, da Genética Molecular. Mas o que eu fui aprendendo, e o que eu sei agora, foi um processo de aprendizagem. Durante estes dois anos, havia coisas que eu tinha dúvidas, que tinha que perceber como é que estavam a acontecer. Portanto, o que eu sei agora não surgiu instantaneamente. Houve um período, no início da “falsa pandemia”, em que eu nem sequer vivia em Portugal, vivia na Alemanha, em Nuremberga. E nessa altura, eu acreditava que havia uma pandemia, e desinfectava as compras do supermercado. A partir de Maio, Junho, mais ou menos, eu comecei a observar no dia-a-dia, algumas coisas que me começaram a fazer duvidar. Eu via que as pessoas não morriam, essa foi a primeira. Para haver uma pandemia mortal, que era aquilo que se proclamava, as pessoas teriam de morrer.
Portanto, este interesse surgiu inicialmente numa perspectiva puramente jurídica, como uma preocupação pelo que eu estava a ver, um recuo civilizacional em relação a direitos, liberdades e garantias. Em Fevereiro de 2020, quando eu ainda acreditava que havia uma pandemia, e já se falava em quarentenas obrigatórias, eu gravei um vídeo a dizer, cuidado com esta ideia porque isto é para nos subtrair direitos. Em Portugal, não é possível ficar-se em quarentena obrigatória sem uma decisão de um tribunal. E mesmo para haver uma decisão de um tribunal nesse sentido, o artigo 27º da Constituição tem que ser alterado. Foi a primeira vez que eu falei do Habeas Corpus. Se houver algum médico ou alguma autoridade que imponha a uma pessoa ficar em prisão domiciliária por suspeita de estar doente, essa pessoa tem o direito a requerer um habeas corpus e a ser-lhe devolvida a liberdade. Portanto, esse interesse surgiu logo em Fevereiro e só muito recentemente é que eu descobri que tinha esse vídeo, porque entretanto esqueci-me completamente dele. Mas foi interessante perceber que nem eu próprio já me lembrava bem da minha timeline. Bom, e depois o interesse foi aumentando, até mais ou menos ao final de 2020, o meu discurso foi puramente jurídico. A partir daí, começou a mudar para um discurso misto, político e jurídico. Foi um interesse que foi sofrendo algumas metamorfoses, à medida que uma pessoa progride.
Mas voltemos então a esse momento, que viralizou e deu origem ao juiz negacionista. O que é que afinal aconteceu? Normalmente temos acesso a poucos minutos daquele momento, creio que a imagem que fica é clara. Mas o que é que acontece imediatamente antes, que dá origem àquele momento de tensão?
O que aconteceu antes daquilo foi o dia 16 de Abril de 2021, em que eu já tinha um processo disciplinar e fui ouvido pela primeira vez pelo instrutor do processo, o senhor Leitão, desembargador do Tribunal da Relação do Porto. E nessa altura, as pessoas estavam também a manifestar-se pacificamente, e sofreram uma carga policial porque não estavam a usar máscara, o pretexto foi a máscara, é um pretexto…
Houve então uma carga policial nesse momento?
Sim, houve uma carga policial no dia 16 de Abril de 2021, por parte daquilo que nós normalmente designamos como polícia de intervenção. Foram detidas 10 pessoas, outras foram para o hospital. Pelo menos uma foi para o hospital com uma lesão grave. Isso foi o que aconteceu antes, na verdade. No dia do meu confronto com a polícia – gravado pelo meio de comunicação social, ou propaganda –, eu sabia o que tinha acontecido antes – como é óbvio, estava lá. E vi, quando cheguei lá, o aparato policial, que era muito maior do que o do dia 16 de Abril. Apesar de estarem menos pessoas, havia muito mais polícia, e ainda mais preparados, penso que alguns até com caçadeiras e com projécteis não-letais, em princípio não-letais. E nesse momento eu fiz logo uma analogia.
Era evidente que estavam de prontidão, preparados para actuar. E, quando eu cheguei ao local, à rua do Conselho Superior da Magistratura, recebi a informação de que eles tinham ordens para fazerem exactamente o mesmo que tinham feito antes. E eu dirigi-me primeiro a um agente, que não era da força de intervenção, tive uma primeira discussão com ele que não ficou gravada. Depois decidi dirigir-me à porta do Conselho onde se encontrava, aparentemente, um primeiro grupo de polícias do corpo de intervenção, perguntei quem é que estava no comando. Dirigi-me a ele, perguntei o que é que eles estavam ali a fazer, ele disse que estavam a cumprir ordens, depois foi a conversa que se desenrolou. Eu sabia que eles estavam preparados para fazer o mesmo e, naquele momento, fiz o que tinha a fazer para proteger aquelas pessoas e impedir que mal eu pusesse os pés dentro do CSM, aquelas pessoas sofressem violência. Eu não podia arriscar, de maneira nenhuma…
Já me tinha arrependido anteriormente, de estar a ouvir os gritos no dia 16 de Abril e não ter interrompido e não ter descido. Foi uma coisa em que eu fiz um auto-escrutínio, e penalizei-me muito por não ter ido lá abaixo. Portanto, naquele dia eu não ia admitir que aquilo acontecesse [de novo] e fiz o que tinha a fazer. Faria o mesmo actualmente, quer fosse ou não fosse juiz. Portanto, foi isso. Fiz o que tinha a fazer. Às vezes tem que se fazer aquilo que tem que se fazer, sem pensar muito.
Nem mudaria o tom, nem mudaria as palavras?
Não. Não. Esse tom… aquelas pessoas que estão ali de prontidão, que têm um treino específico para aquilo que iam fazer, elas actuam sob voz de comando. Elas não actuam sob argumentos de razão, actuam sob vozes de comando. E foi isso que eles receberam naquele momento, uma voz de comando. Eu teria feito a mesma coisa. É óbvio que alguém sai sacrificado, eu saí sacrificado, o polícia que estava à minha frente saiu sacrificado. Porque ele, naquele momento, provavelmente sentiu-se humilhado. Poderia não ter-se sentido humilhado, poderia não ter aceitado aquele papel.
Mas corre-se o risco de passar uma ideia de que se pode confrontar um polícia. Neste caso, só o fez porque sendo juiz, efetivamente, está num patamar superior e por isso pode dar ordens?
Não, não. Isso foi uma coisa que eu tive oportunidade de explicar na minha última audiência pública no CSM. A nossa superioridade nunca pode advir de um cargo ou de uma posição, mas sim do nosso código de valores, do nosso código ético. E com base nisso é que nós podemos dizer… Quer dizer, dizer-se que se é superior ou inferior, é sempre um problema para quem o diz. Mas a nossa posição tem sempre de partir de um código ético, um código de valores. E naquele momento, o meu código de valores era superior ao do daqueles polícias. Aqueles polícias estavam a aceitar um papel que lhes foi dado por um regime profundamente corrupto, que enriquece descaradamente à custa da miséria de uma população. Era isso que eles estavam a fazer. Para bater e deter pessoas pacíficas, era esse o papel que eles estavam ali a receber e que estavam prestes a desempenhar. E, portanto, o meu papel era defender aquelas pessoas. É óbvio que se uma pessoa normal fizer aquilo, arrisca-se mais do que uma pessoa que tiver formalmente uma posição. Mas aquilo tem que ser feito, quer uma pessoa tenha ou não uma posição.
E agora, além do seu advogado, quem é que o defende? Porque no fundo acabou por ficar isolado, o CSM tomou posição…
Eu não preciso de ninguém que me defenda. Eu não preciso da defesa de ninguém. Se há algo que eu não sou é vítima, e nunca serei vítima. E é isso que do outro lado ainda não perceberam. Eu não sou vítima; continuarei a fazer o que tenho feito até agora.
E que lado é esse? Qual é esse outro lado? São os outros juízes? O Governo? Os homens da conspiração
O outro lado não é o Governo. O outro lado é o regime. E por regime incluo também os partidos com assento na Assembleia da República, e outras entidades… O regime é algo mais lato. É um regime que se instalou em Portugal, formado por uma elite que eu chamo de parasitária, que ocupa o território português, é um inimigo que ocupa o território português. É assim que eu os trato. Eu não lhes devo qualquer respeito, trato-os como aquilo que eles são: inimigos da população de Portugal. Portanto, isso é o outro lado, que se apoderou de todas as instituições do Estado e da sociedade. Na sua área [o jornalismo] sabe que quem distribui a maioria das notícias é a Lusa, que é detida a 50% pelo Estado. Depois ainda há os contratos de publicidade. Não se tem uma comunicação social. Por eu achar que vocês [PÁGINA UM] são independentes, não se pode tomar a nuvem por Juno. E não existindo uma comunicação social, também não existe democracia. Democracia em Portugal, não existe. Portanto, temos um regime formado por uma elite parasitária.
Pegando na ideia que a nossa verdade e a nossa posição ética e moral nos pode conferir poder para dizer certas coisas, não corremos o risco de estar a incentivar aqueles que estão descontentes, de repente se juntarem para uma revolução contra tudo isto que está instalado?
Esse código ético dá-nos sobretudo liberdade, e a liberdade dá-nos poder. Não é directamente ao poder, primeiro há a liberdade. Quando nós não temos medo e seguimos um código de verdade e de honestidade… e que não é um dado adquirido, toda a gente tem que saber autojulgar-se porque todos cometemos erros, mas isso não quer dizer que não tentemos diariamente seguir esse código. Ninguém é perfeito, e muito menos eu. Isso que me diz de poder haver, um dia, um grupo de pessoas que possa decidir, que quem ocupa o poder não representa os interesses de Portugal e da população portuguesa, e por isso retirá-los…
Mas eles foram eleitos democraticamente…
Não foram eleitos democraticamente. Não há democracia em Portugal.
Para percebermos melhor, como é que não há se a pessoa se desloca à urna e põe lá o seu voto?
A democracia não é meter um papel numa caixa. A democracia não é isso. Primeiro, tem de haver uma defesa dos interesses de Portugal. Nós vemos que os nossos políticos são pagos, são financiados, muitas vezes, por entidades internacionais, através de várias formas. E eles representam essas entidades. Hoje em dia representam sobretudo um movimento político que é o do desenvolvimento sustentável. É isso que todos representam, e isso não tem nada a ver com os interesses de Portugal. Desde a extrema-esquerda até à extrema-direita no Parlamento, estão ao serviço dos mesmos, portanto não há democracia. Sai um, entra outro e vai fazer exactamente o mesmo. E esse mesmo nunca será a defesa da população nem dos interesses de Portugal. Nós somos uma nação por alguma razão, as nações têm uma importância. Só existe uma nação se existir um núcleo social, que é a família, que seja forte e que se saiba proteger. Que os membros da família se saibam proteger uns aos outros. Nós vimos na pandemia, que os membros de cada família não se sabem proteger uns aos outros, atiraram os filhos para injecções com substâncias farmacêuticas experimentais… Está, e muito, erodido, esses valores estão erodidos.
Foi por ter esses valores e essa visão do mundo que decidiu ser juiz?
Não, eu decidi ser juiz há muito tempo, naquela altura ainda não tinha isto tão desenvolvido. Quer dizer, tive antes, num período em que era mais novo.
Mas acreditava na justiça, acreditava sendo juiz, e sendo justo, podia aplicar essa justiça?
Os juízes, não sei se as pessoas sabem, e isto é um problema que nós temos também em Portugal… Os juízes e os magistrados do Ministério Público (MP) começam na mesma turma, por assim dizer, no mesmo curso no Centro de Estudos Judiciais, que antigamente, até certa altura, eram 150 candidatos por ano, que eram selecionados em provas. No fim de dois anos de se ser auditor de justiça, tem-se uma classificação, e é em função dessa classificação que se escolhe livremente se se quer ser juiz ou magistrado do Ministério Público (MP). A maioria dos auditores de justiça querem ser juízes. A maioria dos magistrados dos MP são pessoas que não conseguiram ser juízes. Alguns estão lá por vocação, mas a maioria dos magistrados são juízes frustrados. E ao serem juízes frustrados e terem exactamente as suas instalações no mesmo edifício que os juízes acham, através de relações de amizade que depois desenvolvem, que conseguem influenciar as decisões. Isso acontece muito, juízes serem influenciados por amizade com os procuradores da República em relação às decisões que tomam. E o que eu lhe posso dizer é que muitos procuradores cortaram relações comigo durante a minha carreira, que nem sequer foi muito extensa, embora não seja tão curta quanto as pessoas dizem…
Quantos anos?
Eu entrei para o CEJ em 2003, tomei posse como juiz de direito em 2005, estive a exercer judicatura em diversos tribunais, inclusivamente aqui no Seixal, até 2011. Em 2011 decidi ir para o Brasil, por relações familiares, e então recomecei na advocacia. Portanto, são sensivelmente seis anos de exercício judicatura.
Tocou num ponto essencial na sociedade: uma pessoa quando é frustrada a desempenhar seja que função for, principalmente quando tem poder nas mãos, torna-se perigoso. Qual é o risco de agora, depois de ter sido expulso da “Ordem dos Juízes”, ser um ex-juiz frustrado?
[pausa] Só para lhe responder à pergunta anterior, eu espero que um dia haja esse grupo de pessoas que faça isso, eu espero. Terá de ser um movimento orgânico da população, para fazer isso que referiu, mas eu desejo que isso aconteça. Desejo vê-los retirados de lá, e desejo até muito pior. É bom que as coisas fiquem claras. Mas tem de ser um movimento orgânico. Tem de ser a população a decidir.
Agora, respondendo aqui à sua pergunta. Uma das coisas que eu li, eu não leio muito sobre mim… Durante estes dois anos, talvez tenha lido uma ou duas coisas sobre mim. Mas uma das coisas que eu li sobre mim foi que houve um erro de selecção no CEJ; que eu consegui de alguma forma contornar os mecanismos de selecção do CEJ. Quem é que o CEJ selecciona? Selecciona pessoas que vêm na posição sobretudo do juiz uma ascensão social, um estatuto social, e também remuneratório. A maioria dos juízes vieram da classe média/baixa, portanto começar a ganhar três mil euros, ou coisa que o valha, acaba por ser um estatuto remuneratório, embora seja ridículo para a responsabilidade de quem está a exercer aquela função. E os pais daqueles candidatos investiram muito neles, quer na faculdade, quer depois nos cursos de preparação para se entrar no CEJ. Os concursos tinham geralmente mais de dois mil candidatos.
Mas aquelas pessoas, quando conquistam aquilo, ficam agarradas, porque o mecanismo de selecção as escolhe. E, quando disseram que o mecanismo de selecção tinha falhado comigo, de certa forma foi uma das poucas coisas em que a comunicação social acertou. Não porque eu tenha tentado enganar o sistema – não tentei – mas porque eu passado alguns anos estava a sair de livre vontade. Portanto, estava a demonstrar que eu não precisava. Fiz a minha vida como advogado no Brasil a partir do zero, não tinha lá conhecimentos. Portanto, em termos financeiros também demonstrei que não precisava. Quando saí, comecei a escrever livros, tenho vários livros publicados. Vou publicar agora, muito em breve, o próximo. E portanto, eu não necessito da posição, nem como estatuto social nem remuneratório ou económico. Sou livre.
Depreendo que não há frustração pela decisão…
Eu não desprezo aquela posição [juiz]. Sempre tive orgulho em ter conquistado aquela posição, ainda que durante um largo período não a estivesse a exercer. Tinha orgulho e gostava do meu trabalho. Considerava-me, no mínimo, honesto a desempenhá-lo. E portanto, não desprezo a função, que é uma das principais de um Estado de Direito democrático. Aliás, é um dos poderes, o poder judicial. Mas fui livre para estar ali, e também para sair quando quis.
Costuma-se dizer que se tivermos três advogados, temos três opiniões, mas com os juízes não devia ser tanto assim. Porque é que agora o Tribunal Constitucional vem dizer que diversas decisões que se tomaram eram contrárias à lei, nomeadamente questões ligadas à pandemia?
Juridicamente, não há outra decisão a tomar. Embora se tenha inventado – penso que foi o Supremo Tribunal de Justiça que inventou alguns princípios da harmonização dos procedimentos. E defenderam que mesmo que Portugal tivesse um ordenamento jurídico que não fosse aberto às medidas, por uma questão de harmonização de procedimentos no nosso contexto europeu, tinha que se derrogar as regras. Isso é uma decisão política disfarçada de decisão jurídica, porque a decisão jurídica só poderia ter sido esta. E esta decisão jurídica, eu espero que não tenha sido tomada agora para justificar uma alteração da Constituição. O tempo dirá se foi para isso ou não.
Nós estamos aqui a conversar de forma calma, pacífica, não sei se é da Natureza [risos]… De facto, o tema é bastante delicado. Mas quando nós olhamos para os temas que vai difundido nas redes sociais, nota-se uma pessoa mais impulsiva. Recorre a palavras duras, fortes. É uma forma de defesa, ou é uma forma de mostrar aquilo em que acredita?
Não é nem uma coisa nem outra. É por razões psicológicas, nós devemos mostrar à população que não devemos respeitá-los. Eles não merecem o nosso respeito. Quando a população lhes perder o respeito, então estamos a começar a mudar alguma coisa.
Por vezes quando há grandes discussões, há um argumento muito comum que é dizer: “bom, tinhas toda a razão, até àquele momento”. Ou seja, depois de teres feito aquilo, perdeste toda a razão. Não sente que tenha perdido razão?
Não, isso são os padrões tradicionais da discussão, que eu também pretendo mudar neste país.
Há uma vontade de mudar que vem de fundo?
Sim, sim.
Podemos subentender aqui o surgimento de um movimento cívico, e eventualmente político, no futuro?
Pode dizer-se que já existe um movimento cívico e político, porque a Habeas Corpus tem um discurso político ao mesmo tempo que tem uma acção jurídica, não apenas na protecção dos seus membros… Nós conseguimos agora, até foi matéria do PÁGINA UM, o recuo do Corpo Nacional de Escutas em relação ao certificado digital. E foi uma acção que tivemos insistentemente, e eles recuaram. Portanto, nós temos esse papel de estreitar os laços através da solidariedade, que se faz de várias formas e uma delas é através do apoio jurídico aos nossos membros. Mas também temos um discurso político, que é agressivo e vai continuar a ser. E se calhar ainda se vai tornar cada vez mais agressivo.
Até onde é que isto pode ir?
Isso é a população que tem de decidir. Nós vamos continuar a fazer o que temos vindo a fazer. Nós só estamos a dar à população o caminho, mas depois é a população que tem que decidir o que fazer.
As palavras que diz, e as expressões às quais tem recorrido, parece-me que, por vezes, facilmente alguém poderia acusá-lo das mais variadíssimas formas. Pergunto: isso está a acontecer ou porque é bastante cuidadoso e conhece a lei?
Bom, eu já tenho dirigido os meus discursos a pessoas muito específicas. Não vou dizer aqui, mas toda a gente sabe. Imputo-lhes factos e utilizo designações em relação a essas pessoas, que em geral, em tese, poderiam consubstanciar crimes de difamação. No caso do Presidente da República (PR), um crime contra a sua honra. O facto é que toda a gente sabe onde eu estou, eu não me escondo. Dou a minha morada verdadeira nos requerimentos que apresento em juízo. Numa manifestação, até disse ao Ministério Público a propósito de um crime contra a honra do PR, disse num vídeo que no próximo dia tal ia estar num determinado local, se me quisessem encontrar, uma vez que eu nunca fui notificado. Disseram que tinham aberto um inquérito criminal, eu nunca fui notificado para ser constituído arguido. O que é facto é que eu não tenho conhecimento de quaisquer processos criminais abertos contra mim. E não quer dizer que não haja, mas não tenho. Não sei porquê, mas não tenho. Poderá especular-se, mas será apenas especulação. Em relação ao resto, eu desejo, um dia, desejo mesmo, que a população se revolte, e derrube este regime. Ao desejar isto, não estou a incentivar ninguém, estou a dizer que desejo isso.
Mas se são todos iguais, saem estes e vêm outros…
Exactamente, por isso é que eu também já disse, várias vezes, que não vale a pena fazer isso se nós não criarmos uma massa crítica que tenha um código ético. Sem isso não vale a pena haver golpes de Estado, haver isto ou aquilo.
Mas isso educa-se. Ou seja, eu acredito que por exemplo se pegarmos nas crianças e se lhes conferirmos as ferramentas certas, se as habituarmos a fazerem perguntas mais do que a darem respostas, conseguimos ter uma sociedade diferente. Mas se iniciássemos esse processo hoje, só daqui a 20 anos é que teríamos resultados…
É o que é, nós não podemos mudar uma sociedade com um estalar de dedos. Pode até ser noutras gerações depois de nós. No meu caso, pode ser depois de eu desaparecer. Não tenho pressa. Trocando aqueles que agora lá estão por outros, que seriam uma amostra da nossa sociedade actual, iria dar exactamente ao mesmo, se não fosse pior. Portanto, nós primeiro temos que revitalizar moralmente a nossa sociedade, formar uma massa crítica que siga um código de valores. E depois a é população que tem que escolher, porque movimentos revolucionários têm de ser genuínos e orgânicos. Não pode haver uma organização por trás.
Mas se um líder, ou se alguém que comece a inspirar um grupo de gente a tomar certas posições, rapidamente pode ser aniquilado. Acredita que um grupo de pessoas consegue fazer parar o mundo a propósito de uma pandemia, não acredita que mais cedo ou mais tarde o vão por completamente de parte, silenciar ou aniquilar?
Pode acontecer, isso é um risco que eu corro. Agora já não tanto, mas houve um período em que quase todas as semanas diziam que vinha alguém para me matar. Uma pessoa também se vai habituando a isso. Enfim, eu também vivi no Brasil, e assisti a tiroteios à minha frente, a 50 e 70 metros à minha frente. Era novo para mim, e tive que me habituar àquilo. Portanto uma pessoa vai-se habituando a um escalar da tensão e do risco… Enfim, riscos, eu corro, como é óbvio, mas assumo-os. Sem ser vítima.
Entrevista transcrita por Maria Afonso Peixoto e editada por Pedro Almeida Vieira
Aos 65 anos, a vida de Eugénio Fonseca confunde-se com os valores cristãos e sobretudo com a Cáritas Portuguesa, a que presidiu desde 1999 até ao ano passado. Conhece os meandros da pobreza como ninguém, e nesta conversa intimista com o PÁGINA revela o que lhe foi passando na alma e o que amadureceu na mente.
Mais de metade da sua vida foi dedicada aos pobres. Podemos dizer que a sua vida se resume à solidariedade?
Sobretudo a partir dos meus 20 anos, eu diria que a minha vida passou a ser pautada por uma consciência mais correcta do compromisso que assumi de seguir uma pessoa, que se chama Jesus Cristo. E essa decisão tem consequências, naquilo que podemos chamar a dimensão social da fé para dar credibilidade àquilo em que acreditamos. E segundo as orientações da pessoa a quem sigo, não há volta a dar. Temos de nos alinhar com as questões que norteiam os valores do reino que ele anunciou. A verdade, a justiça, a caridade, a fraternidade, de uma forma particular, prestando uma atenção mais direcionada para aqueles que, entre os meus irmãos, são os mais frágeis.
O Cristianismo passou a assumir um papel central no apoio social. Tendo a Igreja Católica tantos fiéis, não seria de esperar que tivessem conseguido erradicar a pobreza e acabar com as desigualdades sociais?
Todos sabemos que ao longo da História, o percurso da Igreja nem sempre foi em conformidade com a matriz identitária. Nós, cristãos, acreditamos que, em Jesus, Deus se encarnou para viver a nossa Humanidade. O que nos pediu foi que o seguíssemos, anunciando um reino novo. E a Igreja, ao longo da História, tem-se preocupado mais com a estrutura que surgiu após a ressurreição de Jesus, do que propriamente com o reino que ele anunciou.
Eugénio Fonseca, esta semana em Lisboa.
Será então por isso que muitos se aproveitam da pobreza para dela viverem profissionalmente? Ou seja, dando emprego aos membros da estrutura – criando até mais estruturas – tornando-a dependente dos fins sociais?
Eu não posso pôr em causa esses aspectos, não tenho condições para o fazer, porque isso estaria a entrar no domínio da consciência das próprias pessoas. Mas no serviço aos pobres nunca houve esta harmonia, e foi sempre com metodologias que eram mesmo contraditórias àquilo que Jesus pediu. No Cristianismo, a pessoa é considerada quase como um ser divino: fomos criados à imagem e semelhança de Deus. E nós nunca tratámos a pessoa como tal. E o que se vem percebendo ao longo da História, é que há sempre um conflito que a Igreja tem dificuldade em gerir.
É irónico pensar que se os pobres atuais desaparecessem do Mundo, aqueles que hoje vivem de fazer caridade rapidamente se tornariam igualmente pobres, sem emprego. Qual é o risco de uma instituição, que se deveria preocupar mais com o espiritual, se transformar numa IPSS universal que passa a assumir como prioridade a gestão de velhinhos, pobres e património?
Eu não estou a dizer que as instituições sociais não devam existir. Devia haver uma maior planificação para respondermos às necessidades concretas e criarmos uma partilha de bens que fizesse com que todos pudessem ter acesso a melhores condições de vida. Há o risco da tecnocratização, sim. Passámos de uma fase de amadorismo na prática social do compromisso social, para o excesso da norma, e daquilo que os técnicos, porque foram formados assim, trazem para as instituições. À direcção de uma instituição devia competir assegurar a identidade cristã, que não basta diferenciar-se das outras porque têm um crucifixo ou a imagem de um patrono num sítio qualquer, bem adornado. Tem havido algumas tentativas, mas a preocupação pela sustentabilidade financeira dessas instituições também é preciso ter, porque há salários para pagar. É pena que não sejam salários mais justos, embora saiba que as instituições estão a pagar aquilo que legalmente têm de pagar. Mas nós devíamos seguir os princípios daquilo que é o pensamento social cristão, para os validarmos. As nossas instituições sociais poderiam, como as nossas escolas, serem laboratórios, dentro da possibilidade, do que se chama doutrina social da Igreja.
Na estrutura da Igreja o Eugénio Fonseca é um leigo. Alguma vez se sentiu inferiorizado por não fazer parte do grupo dos clérigos?
A mim, a designação como tal, não me aflige. As atitudes que depois estão subjacentes a elas é que já me parecem um pouco mais complicadas. Por isso, sim, muitas vezes. Eu digo que estive 40 anos sempre em organizações marcadas pela hierarquia, e eu tinha consciência disso e aceitava isso, e fui sempre fiel a quem era designado para estar no patamar superior àquele que eu desempenhava, embora reconhecesse que às vezes a narrativa que utilizávamos para determinados problemas, não facilitava depois o exercício da missão. Temos um clero que se fixa muito nas questões teológicas e da gestão do sagrado e pouco inseridos no mundo. Isso criou-me algumas dificuldades. Era eu estar no mundo e, com as minhas limitações, tentar fazer passar a mensagem desse reino a que eu pertenço e quero estar inserido e lutar por ele, através de uma instituição que é a Igreja, e que muitas vezes não era compreendido no mundo. E havia algumas tensões e até incompreensões perante aquilo que eu via que a Igreja não estava a acompanhar, para o bem e para o mal, em termos da evolução da dimensão social na sociedade portuguesa.
Podemos subentender que tomou decisões com as quais não concordava, mas exigidas pela hierarquia da Igreja?
Algumas vezes tive que o fazer, mas nunca contra a minha consciência. Nunca fiz nada contra a minha consciência, mas algumas vezes fiz coisas que sabia que não eram as metodologias mais acertadas, e recuei naquilo que eu achava que se deveria avançar. Dou-lhe um exemplo. Eu nunca percebi porque é que na Igreja em Portugal, nunca se tivesse posto em prática um modo próprio, o Intimae Ecclesiae Natura, que é uma determinação do Papa. Bento XVI teve necessidade de a criar para explicitar melhor as funções do governo do bispo na área sócio-caritativa. Penso, ainda está por concretizar. As justificações eram que aquele modelo não era aplicável à Igreja e a Portugal. Aliás, a figura do clérigo tem de ser humanizada. Porque trata-se de uma missão que está a cumprir, como eu cumpro a minha missão como leigo; e a expressão “leigo” na língua portuguesa também pode ter outra conotação, mas também não é por aí que se vai criar o problema. Mas deve haver esta harmonização. Veja, os leigos estão sempre, até agora, na vida da Igreja, em concelhos consultivos. As decisões são tomadas pela outra casta que tem, por razões sacramentais, poderes de ordem divina superiores.
Mas, se a Igreja acredita que é o Espírito Divino que a governa, não será que o sistema actual é o modelo que Ele quer?
Em muitas das minhas atitudes fecho a porta ao Espírito Santo, por minha acomodação. E aí é que está; penso que é a grande conversão que temos que fazer.
Esteve ligado à Cáritas em Portugal durante muitos anos, deixou um legado. Como vê a Cáritas? O espelho do amor de Deus?
Não é. Não quero ser demagógico a dizer que todos somos capazes de amar até à plenitude que o amor exige. Porque temos, dentro de nós, ainda muitas situações que estão em permanente conversão. Não digo que o amor pleno se consiga concretizar com os condicionalismos que advêm da própria circunstância em que vivemos. Há sempre limites que nos condicionam a ter esse sentido do Amor. Amar é dar a vida. Não quer dizer que dar a vida seja só no acto em que alguém é alvejado ou crucificado. Nós damos a vida ao longo dos anos, quando vamos vivendo, e vamos oferecendo essa vida sem perdermos nada. Sobretudo, ficando intimamente mais preenchidos. E como tal, a Cáritas também é uma instituição. Eu sinceramente pensei a Cáritas no seguimento do meu antecessor, que foi um homem ímpar, como cristão e como cidadão. E que parte deste mundo de forma anónima e esquecida. Acho que a sociedade portuguesa e a Igreja terão um dia que lhe fazer o reconhecimento que ele merece, refiro-me ao Doutor Acácio Catarino. A ideia que ele dava da Cáritas era aquilo que eu gostava que a Cáritas fosse.
Normalmente quem lidera associações e gere muito dinheiro, facilmente vê o seu bom nome e a sua honestidade serem postos em causa. Estou a lembrar-me dos fundos para as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande em 2017…
A Cáritas foi arrastada por aquele processo, que está meio esclarecido. Fizemos uma auditoria, quando eu ainda lá estava, sobre a utilização dos dinheiros, que gerou essa polémica. Não quer dizer que a gestão seja sempre a mais adequada, mas que seja uma gestão dolosa, isso nunca tive, felizmente. Pelo contrário, encontrei sempre gente muito dedicada. O problema é que a Cáritas mantinha, e espero que evolua, uma matriz muito assistencialista. Houve vários programas que tentámos implementar, que não tinham sucesso. Em determinada altura, a Cáritas passou a ter uma maior capacitação de intervenção, a partir da acção dos técnicos, mas as direcções deviam ter também igual capacitação, como eu disse há pouco, no plano das ciências sociais e do pensamento social cristão.
O poder político, independentemente das cores, reconheceu o seu trabalho. Como é que conseguiu ganhar esse equilíbrio?
Há sempre o risco de quem está a governar querer que os dirigentes de instituições – sejam elas do âmbito social, cultural ou educativo – estejam em sintonia consigo. E os que estão na oposição, querem que façamos com eles oposição àqueles que estão no poder. Eu tive sempre uma máxima: não tenho filiação partidária nenhuma, nem ideologia nenhuma, porque considero que o compromisso que assumi não é ideológico, é um compromisso de um sentido para a vida, fundamentado em princípios não apenas alicerçados em teorias. Se não forem materializados perdem todo o significado. Portanto, nunca me deixei condicionar porque alguém me prometia alguma coisa em troca de algo.
Foi por isso que nunca aceitou um lugar como político? Ou nunca foi convidado?
Não, não aceitei nunca. Várias vezes isso aconteceu.
Sabemos que é um percurso comum, muitos começam por servir os pobres e depois acabam por servir o Governo…
Por vezes, há conflitos que podiam ser evitados. Eu sei que uma das acusações que alguns membros da minha Igreja me faziam, era que eu tinha poder na igreja. E a sensação que eu tive é que sempre a servi. Eu nunca fiz nada contra as orientações daqueles que na tal hierarquia estavam acima de mim. A visibilidade que eu tinha não era por interesse próprio, porque ela traz até mais inconvenientes do que coisas boas, porque obriga-nos a termos muito mais cuidado com a forma como estamos, o que dizemos e o que fazemos.
O Papa tem nomeado mulheres e leigos para lugares que até então estavam ocupados pelo Clero de homens. É isso que devemos exigir à Igreja portuguesa de hoje?
Eu acho que não devemos entrar na lógica que a determinada altura os partidos políticos quiseram, por causa da tal “igualdade de género” – que não tem nada a ver com a ideologia de género. Eu acho muitas vezes que a Igreja está excessivamente preocupada com esta coisa chamada ideologia de género, que ninguém sabe o que é, nem tem fundamento nenhum. Há por aí umas vozes que atiram para o ar, e pode estar em causa uma coisa que é fundamental, que é a igualdade de género e de oportunidades, independentemente do sexo da pessoa. Eu não sou tanto de dizer que tem que haver X de homens e X de mulheres, essa coisa de régua e esquadro. Têm de estar as pessoas competentes nos sítios certos.
Os últimos três anos vieram alterar o ritmo das nossas vidas e empobreceram o país. Parece-lhe que a pandemia veio complicar ainda mais o nosso sistema social?
A pandemia foi mais um acontecimento, não foi a primeira vez que aconteceu algo similar na História. E até tivemos a sorte de vivermos num tempo em que as ciências médicas já estão muito mais evoluídas em comparação com o período da gripe espanhola. A pandemia veio chamar a atenção para a necessidade de uma maior coesão, que aparentemente está intríseca nas pessoas, mas mais por emotividade do que por convicção. Por exemplo, na crise entre 2006 e 2013, muitas vezes apelei aos consensos para não se exigir tantos sacrifícios às pessoas. Chamei-lhes pactos de regime, procurei dar-lhes um nome para que os deputados percebessem ser preciso unirmo-nos e deixar as ideologias de parte. As ideologias não matam a fome. Não se conseguiu aí, mas conseguiu-se na pandemia.
Temos também os problemas com os nossos idosos que vivem em lares. A falta de condições ideais, para não falar dos maus tratos, continuam a ser um tema aparentemente esquecido ou ignorado…
Isso veio ao de cima com a pandemia e com a crise económica anterior. Aliás, mal tínhamos saído de uma crise grave, entrámos noutra agora com a história da guerra na Ucrânia. Parece que estamos todos nesta expectativa de que alguma coisa se há-de resolver, e nunca se resolve estruturalmente. Temos sempre governos a governar para as eleições mais próximas. E, portanto, dirigimo-nos mais ao público que sabemos que garante o voto, e às vezes os velhinhos já não estão para isso. Como eles e os sem-abrigos, que são os mais esquecidos. Quanto aos lares, acho que tem que haver um planeamento maior. Eu não sei se todas as pessoas que estão num lar têm necessidade de lá estar ou se é a altura de lá estarem. Existe uma cultura predominante de não valorizar o que já não é produtivo.
Entretanto, o Estado comparticipa com uma verba se o utente for para um lar de uma IPSS, mas se a opção for um lar privado já não comparticipa. Não haverá neste caso um favorecimento e até um sentido perverso?
Não vejo nessa perspectiva. O Estado não financia as instituições, são as pessoas através das instituições. E depois temos aqueles que fazem negócio com o mesmo tipo de actividade. Estamos a falar de coisas diferentes. Uma IPSS que tenha uma bomba de gasolina pode ter regalias em termos fiscais em relação a outro que não explora. Não há aqui uma concorrência. Esse debate tem de se fazer.
Existe uma percepção de que as IPSS sobrevivem desses privilégios, das oportunidades, e de que se chega ao final do ano com lucros – ainda que estes não devam existir…
Não poder ter lucro é um sofisma. Se não tiver lucro, corre o risco de falir. É por isso que eu não gosto do termo “sem fins lucrativos”. Prefiro dizer “excedentes”, e saber o que se faz com eles. Enquanto numa entidade lucrativa, os lucros são para serem distribuídos por aqueles que investiram – e bem –, numa IPSS servem para mais solidariedade.
No apoio à Ucrânia, cometemos muitos erros. Enviámos toneladas de arroz e de massa que nunca poderiam ser cozinhados, pois não havia gás nem meios para tal. Enviámos toneladas de roupa, gastámos fortunas em camiões que transportaram material que nunca chegaram a ter utilidade. A ajuda não teve a eficácia que todos desejariam. Será que este é um bom exemplo para percebermos que não estamos preparados para sermos solidários?
Essa foi uma das batalhas que travei. Eram frequentes as críticas nas redes sociais quando eu alertava para essas questões. Somos um povo generoso, mas não somos solidários. A generosidade faz parte da solidariedade, mas a solidariedade obriga a uma série de compromissos que vão para além da generosidade. E depois, ainda por cima, somos um povo, pela sua própria cultura, com uma generosidade mais reactiva do que pró-activa. É uma generosidade que se desencadeia conforme o fluxo de informação que nos entra pela casa dentro. E ficamos com “pena” daquilo que está acontecer, e a forma que temos de aliviar essa pena que sentimos, que muitas vezes não quer dizer compaixão; quer dizer um certo desconforto. Deixamos de usar a razão e passamos a utilizar a emoção. E depois acontece de tudo. Está a dar-me o exemplo da Ucrânia, mas aqui em Portugal acontece muitas vezes. Eu já caí na experiência de organizar uns quantos contentores para países que estavam sob regimes islâmicos. O trabalho de selecção do que era dado, que às vezes davam coisas que não podiam ir, como camisas rotas, sem botões, chouriços enrolados em calças, sei lá, tanta coisa… Eu perguntava-me a mim mesmo se o dinheiro que gastei nisto, somando o tempo, se comprasse lá no destino, movimentava a Economia de lá, gerava dinamismo económico, não empobrecia o país e facilitava mais. As pessoas não percebem que ao dar um quilo de arroz num mercado, se derem esse dinheiro a uma instituição, ela pode ir directamente ao produtor comprar.
O problema é a falta de confiança nas instituições…
Pois, é uma falta de confiança que tem de ser mais diluída por uma comunicação social que se empenha muito em estar em cima do acontecimento. Interessa-se no momento em que está a acontecer a morte, o incêndio, o desastre; e depois já não se interessa por saber o que foi feito e as coisas que foram doadas. Nós, para África, numas cheias que fizeram uma devastação em Moçambique, não levámos para lá nada porque em Maputo podia comprar-se as coisas, pois só determinadas províncias foram afectadas.
Isso leva-me a recordar a velha máxima oriental que defende que em vez de se entregar o peixe a quem tem fome, devíamos entregar uma cana e ensinar a pescar. Porque será que ninguém anda por aí a oferecer “canas” e a ensinar a “pescar”?
Até o próprio Estado. O próprio Estado, na forma de protecção social, até relativamente às instituições, tem uma dimensão muito assistencialista. O Papa Francisco diz muitas vezes que o diabo tem dois nomes na sociedade moderna: poder e dinheiro. São duas coisas que perturbam qualquer possibilidade de se poder avançar por caminhos mais seguros, tem a ver com transparência. E quando a esse ditado, Alfredo Bruto da Costa dizia que era mal pronunciado, porque não era “em vez de”, era “cumulativamente”. Ou seja, “dá o peixe e a cana”. E depois até se começou a acrescentar o “ensina a pescar”, e, posteriormente, “assegura que haja peixe no mar”. Portanto, está a ver as quatro dimensões fundamentais. Primeiro, intervenção social; se a pessoa tem fome, não lhe vamos dizer para esperar até que lhe arranjemos um trabalho. Não lhe posso dizer, porque se demorar muito tempo a arranjar-lhe o trabalho, não terá forças para trabalhar. Se a pessoa tem fome, há que acudir. Se precisa de pagar a casa, pague-se a casa. É uma parte da intervenção social que não pode terminar aqui. E o problema é quando se fica por aqui.
Exactamente…
Dá-se, e até à próxima. Ou então depois faz-se outra coisa. Há uma metodologia no Serviço Social que eu acho muito interessante, mas com uma eficácia que vale o que vale: o encaminhamento, mandar-se a pessoa para outro. Quando se encaminha, enquanto a brasa arde na mão do outro, não arde na minha. Depois, temos a parte, efectivamente, do dar a cana, que é ir às causas dos problemas. E dar uma cana, de acordo com a capacidade que as pessoas têm de pegar na cana, porque se eu dou uma cana muito sofisticada, ela pode não saber utilizá-la e não lhe serve de nada. Por isso, há formas de inclusão social diferenciadas. E nem todas são pela via do trabalho remunerado, porque há pessoas que têm de reaprender hábitos de trabalho que perderam ou nunca tiveram. Portanto, é dar de comer, ir às causas e capacitar as pessoas. Hoje temos pobres com o décimo segundo ano, temos pobres com ensino superior, e até temos pobres que trabalham. Há gente que trabalha, e mesmo assim continua a precisar do peixe.
Tem sido bastante assertivo e concreto, e não se tem poupado de apontar o dedo aos bispos, aos políticos… Essa posição é fruto de uma maturidade de vida, em que já não tem medo de dizer tudo o que pensa? Porque se fosse há uns anos, se calhar não tinha assumido os cargos que assumiu, porque uma pessoa que diz as coisas tal como pensa, na nossa sociedade geralmente não vai longe.
Quem ouvir este nosso diálogo, vai dizer que eu vou sempre bater no mesmo, mas, por imperativo de consciência, tenho de o dizer. Até aos meus 20 anos, não gostava dos pobres. Porque vivi numa família modesta, que se sacrificou muito e abdicou de ter casa própria. O meu pai [em Setúbal] abdicou de ter um barco onde pudesse ser mestre, e foi sempre servidor de mestres. Pela mediação de uma professora, e nesta questão da pobreza também é preciso mediações, alertou a minha mãe, que era uma mulher sábia e inteligente, apesar de ter apenas a terceira classe. E disse que eu e o meu irmão não podíamos ir para o mar. E uniram-se esforços, de acordo com os apoios do regime de então, que eram altamente proteccionistas. E as coisas alteraram-se, os meus pais investiram na nossa formação académica, juntando os seus valores, como a honra, a honestidade, a verdade.
Um marco que ficou para a vida…
Quando eu começava a ver as pessoas a reclamar coisas, tendo bens mas não tendo investido, a minha referência era sempre a mesma: façam como os meus pais fizeram. Eu tive a minha “estrada de Damasco”, em que me apareceu um homem que se chamava Manuel Martins [bispo de Setúbal, falecido em 2017], e fez-me perceber que até ao nível cristão eu não estava a equacionar bem este tipo de coisas. E colocou-me no caminho. Ele não me deu tudo, mas abriu-me caminhos. E quando me convidou para eu ir para a Cáritas, eu disse-lhe que não queria ir, porque não percebia nada disso. E o facto é que eu gostava mais de ser catequista, animar grupos de jovens…
Um menino mais fechado na sacristia [risos].
Eu era aquilo que gostava de fazer, e tinha 20 anos. Nessa altura, até equacionava outro projecto de vida, que depois com ajudas muito preciosas se veio a revelar que não era o caminho da minha própria vocação pessoal. E ele [Manuel Martins] deu-me esta resposta, que é uma resposta estranha. Quando eu lhe digo que não sei nada disso, ele diz “é por não saberes aquilo que és capaz”. E eu questionei-o. “Aquele que sabe fazer está sempre a fazer o mesmo? Aquele que não sabe, porque não sabe, faz coisas que julga que vão resultar, e às vezes resultam, e outras vezes não resultam. Quando resultar, óptimo, é bom para todos. Quando não resultar, tens-me a mim para te ajudar a esclarecer.” E foi daí que eu comecei e que se deu a coincidência, ou a “deocidência”, de haver uma crise grave em Setúbal, e tive de me obrigar logo a arregaçar as mangas. Tudo isto foi um caminho. Claro que a maturidade que se adquire é feita de avanços e retrocessos. Apesar de algumas desilusões e frustrações, eu dou por muito bem empregue o tempo que a Igreja me proporcionou.
Actualmente, que funções ou trabalho é que está a desempenhar na área social?
Eu fui co-fundador da Confederação Portuguesa de Voluntariado, à qual sempre pertenci. Eu nunca saí de lá para ir para a Cáritas, simplesmente a minha visibilidade pública aparecia mais pela Cáritas. Agora estou mais dedicado à Confederação Portuguesa de Voluntariado, que representa mais de 600 mil voluntários. É aí que se centra a minha actividade, mas também estou a dar apoio a umas irmãs auxiliadoras da caridade, que estão na minha diocese e que se vão dedicar a mulheres vítimas de violência doméstica. Pertenço ao Conselho Geral do Instituto Politécnico. No último semestre dei umas aulas no Patriarcado, que também é uma coisa que gosto muito e foi muito gratificante. Estou nas ordens honoríficas da Presidência da República, e portanto vou sendo chamado para fazer uma intervenção aqui e acolá. Trabalho não me falta.
Esteve para ser somente uma entrevista sobre a presença árabe em Lisboa, a pretexto do seu novo livro, mas rapidamente a conversa com o escritor e historiador Sérgio Luís de Carvalho descarrilou, e ainda bem, para outras visões da História, para a Idade Média, o legado português, o racismo, os “pecados” da Humanidade, acabando nos nossos dias com os males do politicamente correcto e a “cultura do cancelamento”.
Em Lisboa, tem-se a noção muito enraizada de que foi a presença romana que deu o nome à capital portuguesa, mas, na verdade, o seu nome deriva mais do árabe. Estou a ser correcta?
Na verdade, as mais antigas referências a Lisboa são pré-romanas. Tão antigas como a origem de Lisboa, que teria sido um castro celta, mas não vamos por aí. Provavelmente, a origem da cidade remonta aos fenícios, que foram um povo que corresponde mais ou menos ao que hoje é o Líbano, e que terão aqui fundado um pequeno porto. Pensa-se que em fenício, a designação de Lisboa significaria qualquer coisa como Porto Seguro, ou Enseada Feliz, e depois mais tarde isso foi de corruptela em corruptela, com os romanos, passou a Olissipo… depois, com os árabes, Luxbuna, e é por isso que a abreviatura de Lisboa é “LX”, embora Lisboa não tenha nenhum X. Mas antigamente tinha. Há uma lenda que diz que Lisboa foi fundada por Ulisses, e de que o nome veio de Ulisses. Ulisseia, Lisboa. Mas é isso, é apenas uma lenda.
Sérgio Luís de Carvalho, na sua casa, em companhia de Duna.
Uma lenda será também a história de como os árabes entraram na Península Ibérica? Diz-se ter sido por “convite” do governador de Ceuta que, por causa da sua filha, se terá zangado com um rei visigótico…
Sim, está a falar concretamente da “invasão” de 711. Bom, no início do século VIII, enquanto o Islão era uma religião relativamente recente, e estava em grande expansão, a Oeste para todo o Norte de África, e a Leste, para a Índia; a monarquia visigótica que dominava a Península Ibérica estava em desagregação. Recorde-se que a monarquia visigótica era electiva, e não hereditária. Quando o rei morria, os nobres juntavam-se para escolher o futuro rei, o que dava origem a problemas porque muitas vezes os resultados eram renhidos, ou na base do suborno. E, o que é facto é que em 711, o reino visigótico enfrentava conflitos internos e o rei eleito, Rodrigo, era contestado por outras fações. Segundo o que se conta, um governador do sul da Hispânia, supostamente descontente com o resultado, terá feito um apelo aos muçulmanos do Norte de África para entrarem no território peninsular, para derrotarem a monarquia visigótica e elegerem-no a ele ou a alguém da sua fação. O que se sabe é que os árabes – nós dizemos árabes, mas na verdade grande parte do exército era composto por berberes, o que rigorosamente não é a mesma coisa – invadiram a Península Ibérica, derrotaram os visigodos e ficaram. Ocuparam toda a Península, excepto uma pequena parte no extremo norte da Ibéria, que corresponde, mais ou menos, às Astúrias.
Foi, então, um processo mais pacífico do que se pensa?
Sim, actualmente, alguns historiadores defendem que não se pode chamar bem uma “invasão”, e que houve a continuidade de um relacionamento estreito que haveria entre as elites peninsulares e as árabes, tudo integrado no sistema comercial do golfo luso-hispano-marroquino. Mas são interpretações. Efectivamente, em 711, dá-se a ocupação muçulmana da Península Ibérica, que foi relativamente rápida. Uma conquista rápida, de dois ou três anos, o que para a época, e para um território tão extenso, é muito rápido.
E como herança, deixaram mais do que apenas as palavras começadas por “AL”, que se sabe que derivam do árabe. Mas não parece saber-se, de modo geral, muito mais do que isso. Acha que o conhecimento dos portugueses sobre o que herdámos dessa ocupação é substancial?
Não se sabe muito, porque entre nós, como acontece com todos os povos, de facto o conhecimento da História não é muito pormenorizado, é superficial. Esquecemos aquilo que aprendemos na escola. Repare: a ocupação muçulmana da Península Ibérica dá-se, em termos práticos, no 7º ano de escolaridade. Há quanto tempo é que fizemos o 7º ano, não é? Na verdade, os muçulmanos deixaram-nos bastante. A começar, como disse, pela toponímia, por muitas vilas, aldeias e cidades começadas por AL, mas não só. Faro, é outro exemplo. Arroz, azeite, taracena, armazém… são tudo palavras de origem árabe.
E em tecnologia…
Sim. Deixaram-nos, também, importantes conhecimentos materiais ao nível das ciências e das técnicas, como a nora e o açude, ou de irrigação. Em termos científicos, os muçulmanos estavam muito à frente dos cristãos do seu tempo. Na Medicina, na Geografia, na Cartografia. Conhecimentos que, mais tarde, nos foram tão importantes nos Descobrimentos. Claro que as técnicas vão evoluindo, e as que temos hoje apenas remotamente se filiam nessas tecnologias que, para a altura, eram avançadas. Hoje, temos a computação, as tecnologias da informação e a robótica, mas não pensamos que, na base disto tudo, está a numeração árabe, que os árabes trouxeram e adaptaram da Índia, e à qual acrescentaram coisas tão revolucionárias como, por exemplo, o zero. Eu não sou da área, mas pergunte a um informático, se o zero não tivesse sido inventado, o que era feito dos computadores? Portanto, esse conhecimento árabe medieval está na origem de muito do que nós hoje temos.
Se a herança árabe é tão significativa, deverá haver mais motivos para que não seja tão reconhecida.
Sim, outra coisa que também contribuiu para o olvido, para esse esquecimento, é o facto de que, durante algum tempo, se considerou, numa certa historiografia nacionalista, imperial e colonial, ligada ao Estado Novo, que Portugal tinha sido construído por santos e heróis, de espada numa mão e de cruz na outra. E não foi assim. Isto tem imensas nuances, como todos sabemos. E na Reconquista também houve muitas nuances, muitas alianças entre cristãos e muçulmanos contra outros cristãos e muçulmanos. Mas quis dar-se um pouco a ideia de que, na sua génese, Portugal era uma nação de nós contra os outros. Ou seja, nós, os cristãos, e os outros, os infiéis.
Ser infiel depende da perspectiva, certo?
Sim, é sempre caso para perguntar, infiéis a quem? Aliás, curiosamente, no auge da Reconquista, alguns textos árabes também falam nos cristãos como os infiéis. Isso foi criando o mito de que Portugal se fez contra os mouros, quando a realidade é muito mais complexa. Outra coisa que não ajuda, é haver hoje tantas notícias ligadas ao fundamentalismo islâmico que, sendo muito minoritário, dá imensamente nas vistas. Essas imagens fixam-nos e criam de algum modo, talvez subconscientemente, um afastamento, entre nós e aquela versão muito radical do Islão. Todo este caldinho faz com que haja a ideia de que a herança muçulmana é uma coisa muito distante. Cronologicamente, é. Não será, contudo, uma coisa muito difusa e vaga, porque vem até aos nossos dias. Quando nós estamos, por exemplo, a comer alguns pitéus, sobretudo no Sul, mas não só, há que pensar no contributo que os muçulmanos deram para aquilo que nós estamos a saborear.
Já abordou, noutras entrevistas, alguns mitos difundidos sobre a Idade Média e que se mantêm até hoje. Pode dar-nos alguns exemplos?
Deixe-me começar a resposta com uma provocação. Já pensou no termo “Idade Média”? “Médio” refere-se ao que está no meio. Logo aqui, há, à partida, um preconceito. Está no meio de quê? Está entre a Antiguidade Clássica, Grécia e Roma, e o Renascimento. O termo é cunhado muito tempo depois da Idade Média ter acabado. Quando os renascentistas começam, já no século XV e XVI, a criar a dinâmica do Renascimento, e fazem uma coisa que é muito comum: para se afirmarem, disseram mal dos que vieram antes. É um bocadinho como os adolescentes que começam a depreciar os pais, porque o pai é velho, tem a mania que sabe e passa a vida a dar conselhos, e a mãe é uma chata porque quer que o miúdo ande com casacos à noite. Então, começa a ser criado o termo Idade Média, que é uma época associada a barbárie, obscurantismo, repressão inquisitorial e dos direitos das mulheres, queima das bruxas, tudo isso.
Sérgio Luís de Carvalho é autor de 13 romances e de 21 outros livros, sobretudo de História e divulgação histórica.
Não foi bem assim?
Não. Por acaso, os renascentistas até omitem que só tiveram conhecimento daquilo que os clássicos gregos e romanos escreveram, fizeram e pensaram, através dos textos que, durante a Idade Média, milhares e milhares de monges copiaram à mão. Porque se não tivesse sido assim, como é que os livros de Platão, de Aristóteles, de Ovídio, de Horácio e de Heródoto, chegariam aos renascentistas? Eles não os foram buscar ao Google. Todos esses livros foram copiados à mão por monges nos seus mosteiros, como se vê em o Nome da Rosa [romance de Umberto Eco], por exemplo. Depois, para se afirmarem, tiveram necessidade de representar aqueles que antes deles viveram como uma cambada de burros, ignorantes e selvagens. Esta imagem, obviamente, é muito exagerada. É verdade que a Idade Média é uma época materialmente dura, sobretudo na primeira metade. Depois, a coisa muda. O crescimento das cidades faz-se, bem como do comércio, surge a burguesia e a cultura cortesã, a cultura de cavalaria… Mas associamos sempre à Inquisição e à queima das bruxas. Aquilo que é curioso, porque tanto em Portugal como em Espanha, a Inquisição só aparece após a Idade Média. Os grandes autos-de-fé que associamos à queima dos hereges também vieram depois. E, imagine-se, em Portugal nunca se queimou nenhuma bruxa.
A queima das bruxas é, de facto, uma das concepções mais comuns que se tem da Idade Média…
E há mais. A mulher tinha, na Idade Média, mais direitos do que posteriormente. Por exemplo, na Época Medieval, quando casava, a mulher conservava os seus bens de família, não se misturavam com os do marido. Em casos de violação, desde que fosse uma mulher considerada honrada e de pública boa-fama, e se fizesse a queixa logo a seguir ao acto da violação, a palavra dela era considerada como suficiente para acusar o seu violador. Entre outras coisas. É certo que a Idade Média foi uma altura complicada, mas todas foram. Até vou dizer uma coisa que é uma provocação. Quando havia as fomes cíclicas, isso acontecia porque eles não tinham meios materiais para alimentarem toda a população. E, hoje em dia, ainda há fome no mundo, e temos meios para lhe pôr fim. Então porque é que não pomos? Porque se calhar, por exemplo, muitas vezes, alguns países queimam produtos alimentares para lhes manter o preço. Portanto, qual é a superioridade moral que nós temos para acusar pessoas que tinham de facto problemas, numa época dura?
Há alguma ideia, de todas as que “desconstrói” sobre a Época Medieval, que costume causar uma maior perplexidade nas pessoas?
Posso-lhe dar o famoso exemplo do direito de pernada, que é uma das coisas mais míticas de que a Idade Média é acusada. Era um alegado direito que os senhores feudais tinham que consistia em poderem dormir com as noivas dos seus vassalos antes do casamento. É algo que, a todos os títulos, nos parece horrível, e é. Deu origem ao filme Braveheart, e não só. Mas aquilo que é engraçado é que o direito de pernada, criado também em latim como jus primae noctis, nunca existiu. Existia, sim, um acto simbólico em que o senhor feudal, na véspera do casamento do seu vassalo com a respectiva noiva, colocava a sua mão na perna do leito nupcial. Com esse gesto, queria dizer que estendia à noiva, e à sua descendência, o dever de protecção. Os senhores feudais eram obrigados a proteger os seus vassalos. Protegê-los militarmente, quase como uma polícia. Mas, como é que isso passou a ser interpretado? “Ah, o homem queria era dormir com a noiva!”. Portanto, é assim que aparecem estes mitos e se criam estas ideias. Na História, é muito fácil isto acontecer.
Os romances de Sérgio Luís de Carvalho perpassam a História desde a Idade Média até ao século XX.
E como é que um historiador “destrinça” a informação para que se chegue à verdade, no meio de tanta subjectividade, mitos e lendas?
A única forma de um historiador combater preconceitos é através da publicação dos seus artigos, dos seus estudos, e pô-los à venda. Não querendo fazer publicidade dos meus livros, há dois anos publiquei um livro chamado Portugal na Idade Média onde saliento que esta época não foi um paraíso, como alguns românticos do século XIX pensaram, nem foi o inferno que alguns filósofos do século XVIII imaginaram. É algures uma coisa no meio. Não há épocas paradisíacas nem infernais. Entre o preto e o branco, há muitas cores. Portanto, os historiadores podem publicar as suas conclusões. Mas se um filme como o Braveheart, em que esses mitos são reproduzidos, é visto por milhões de pessoas, e os livros dos historiadores sobre a Idade Média são apenas lidos por centenas, as armas são um pouco desiguais.
Pode dizer-se que vivemos numa época crítica, tivemos a crise sanitária, agora a guerra na Ucrânia, a inflação… Como historiador, como vê o momento presente?
Aquilo que estamos a viver não é nada de novo, é a continuidade do que já vivíamos antes. Sem querer transmitir uma ideia de determinismo, acho que o que está a acontecer já vem de algumas décadas atrás. Mais especificamente, do pós-Segunda Guerra Mundial, que por sua vez já viera do pós-Primeira Guerra. Há historiadores que dizem, e na minha opinião com razão, que há três guerras que estão interligadas: a Guerra Franco-Prussiana da segunda metade do século XIX, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria veio no seguimento da segunda Grande Guerra.
Há um contínuo…
Vem tudo dessa continuidade, das lutas entre potências, entre superpotências que não querem deixar de ter hegemonia, e que estão a opôr-se a outras que podem estar a crescer. É tão simples como isto. Há um filme chamado Reds, muito curioso, com o Warren Beatty e com a Diane Keaton, da década de 70. Conta a história de um grande jornalista americano chamado John Reed, que viveu a revolução russa de 1917 e escreveu uma das obras mais importantes de jornalismo, 10 dias que mudaram o mundo. Reed era marxista e em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e entraram na Segunda Guerra Mundial, dá uma conferência em que lhe fazem a seguinte pergunta: “caro John Reed, porque é que os Estados Unidos vão entrar na guerra?”. Esperava a pessoa que o questionou que ele desse os motivos “oficiais”, como a luta pela liberdade, pela libertação da Europa, o ataque ao despotismo e à ditadura, enfim, o que se diz. Ele levanta-se e responde “lucros”. Na altura, achou-se que ele estava a ser pouco patriota.
O patriotismo é sempre apresentado como argumento, e não o dinheiro…
Curiosamente, depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos foram de facto quem mais lucrou com o conflito, tornando-se na maior potência mundial e substituindo, por exemplo, a Inglaterra. E no fundo, não é isso que sucede? Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses. E se nós temos toda a razão para desconfiar um bocadinho das pessoas, porque é que não havemos de desconfiar dos governos e dos estados? John le Carré, que foi agente dos serviços de espionagem ingleses, e no final da Guerra Fria viu um clima de euforia, de que tudo ia correr bem e que a democracia liberal ia triunfar, escreveu um artigo muito pessimista, que conclui com esta frase: “é inútil, todos os governos mentem e os jornalistas dizem sempre mal os nossos nomes”.
Mesmo assim, ainda há muitas pessoas que vêm os governos como confiáveis?
Há, há de tudo. Eu suponho que tem tudo a ver com a atitude que temos perante as coisas. Entre acreditarmos em tudo aquilo que nos dizem e não acreditarmos em nada, não sei qual das atitudes é a mais insensata. Se acreditamos em tudo o que nos dizem, acho que vamos ter imensos problemas em escolher um shampoo, por exemplo, porque na televisão todos são excelentes. Se não acreditamos em nada, também teremos muitas dificuldades em comprar um shampoo, porque partimos do princípio de que todos são maus.
Tem de se encontrar um equilíbrio?
Sim, e acho que temos de ser críticos. Mesmo que as nossas opiniões possam ir, muitas vezes, contra o pensamento dominante, como acontece hoje. Actualmente, temos pensamento dominante em relação a tanta coisa… como em relação à Guerra da Ucrânia, por exemplo. E, portanto, temos, com a informação disponível, que é muitas vezes incompleta ou adulterada, de ter cautela e avaliar por nós mesmos. E deve ser assim com tudo. Não me parece que o Mundo vá melhorar. Até porque, hoje em dia, o ser humano tem meios para tornar as coisas muito piores. A Inquisição matava judeus, mas havia duas coisas: primeiro, se o judeu se convertesse, não o matava, e eu sei que isto é cínico e cruel. Mas, em todo o caso, havia uma escapatória, que era o próprio judeu ser também cínico. Segundo, a Inquisição não tinha meios de os matar a todos. Passaram-se os anos e vieram os nazis, que já tinham meios técnicos para os matar a todos. E os judeus, aí, não tinham escapatória. Não valia a pena um judeu mudar de religião, continuaria a ser judeu. Nós hoje temos tecnologia para destruir a Terra várias vezes. Coisa que há duzentos ou há trezentos anos, com a mesma maldade humana e com a mesma ganância, não se tinha. Por isso, é difícil ser optimista e esperar que o futuro venha a melhorar. Mas temos, e devemos ter sempre, a necessidade de acreditar em alguma coisa. Infelizmente, acho que a ignorância e a ganância cada vez têm mais meios para crescer, mas temos de continuar a fazer a nossa parte.
Em nome da luta contra o racismo, algumas pessoas têm defendido, por exemplo, que se deitem abaixo certos monumentos. Como é que vê a “cultura de cancelamento” na História, que alguns movimentos têm defendido, e que parece estar a ganhar terreno?
Vejo a cultura de cancelamento e o politicamente correcto com sincera preocupação. Primeiro, pelos efeitos que isso traz. Não tenho palavras para essa história do “cancelamento”, quer dizer, “cancelar-se” a J.K. Rowling por ter dito o que disse… mesmo que fosse um absurdo ou um disparate total, que para mim não foi, não vejo qualquer motivo para um acto de censura. Porque é censura. Um grande escritor alemão disse, no século XIX, que quando se começa a queimar livros, acabamos a queimar pessoas. Veja-se o que fizeram depois os nazis. E fico sempre muito preocupado quando vejo esta gente do politicamente correcto a “cancelar”, proibir, censurar, deitar abaixo estátuas… esquecendo-se que aquilo que as pessoas, noutras épocas, pensavam, era diferente daquilo que eles hoje pensam. Esquecendo-se que daqui a uns anos, umas décadas, outras pessoas irão, também, olhar para trás, para achar que o que eles estão a fazer agora também está ultrapassado, e que deverá ser “cancelado”.
Há paradoxos no politicamente correcto, não é?
A “cultura do cancelamento” é um acto censório e repressivo em si. E repare na contradição. Pessoas que dizem querer combater o preconceito, a repressão e o obscurantismo, como é que agem? Com repressão, com cancelamento e com censura. Depois, preocupa-me que isto se volte contra as causas que essas pessoas dizem defender. Por exemplo, dizem que são a favor da igualdade de género, muito bem, eu também sou. Dizem que são contra qualquer manifestação xenófoba ou racista, excelente. Mas ao fazerem isto com este exagero, leva a que as pessoas se afastem das ideias que eles defendem. E mais, estão a dar munições àqueles “reacionários” para quem a igualdade de género ou o antiracismo é algo a combater. Essa gente está a ser “municiada” com este extremismo do politicamente correcto. O que significa que esses movimentos da “cultura do cancelamento”, sempre que são levados ao extremo, são contraproducentes. Então, por um lado, são movimentos repressivos, o que é condenável. E, depois, põem certas pessoas mal-intencionadas “municiadas” contra eles. No fundo, dão mau nome a causas meritórias, fazendo com que as pessoas os considerem extremistas e não se queiram juntar a eles.
Lisboa Árabe integra uma (por agora) trílogia constituído também por Lisboa Judaica e Lisboa Nazi.
É correcta a dicotomia de que o povo europeu foi, historicamente, o “vilão” e o carrasco, e que os outros povos foram apenas “vítimas”?
Se nós observarmos a História e virmos aquilo que foram os muitos crimes perpetrados pelo homem branco, podemos dizer que houve actos de vilania, como a escravatura e a exploração de muitos recursos naturais em vários continentes. Mas eu aqui ponho duas questões: primeiro, os povos não-brancos eram santos e anjos? Não sei se podemos ver a coisa assim. Os astecas não eram seguramente, também praticavam a escravatura e o homicídio como ritual. Os escravos que os brancos foram buscar a África eram, normalmente, fornecidos por tribos africanas que caçavam congéneres seus pelo lucro. Então, o que é que homem branco tinha, que os outros não tinham? Meios. Eu não faço História alternativa, mas vamos pôr a coisa assim: imaginemos que outros povos, que não o europeu, tinham os mesmos meios que os europeus para colonizar os outros continentes. Será que teriam agido melhor? Já havia escravatura em África, e nas civilizações pré-colombianas na América Latina. E na Ásia, não havia escravatura antes da chegada dos europeus? Não havia já uma cultura de ocupação de territórios e guerras, na América do Sul, em África, ou na Ásia, antes dos europeus chegarem? Claro que havia! Claro que havia escravatura, agressão, e até fenómenos entretanto desaparecidos no Ocidente, como a antropofagia. Portanto, mais uma vez, digo, entre o preto e o branco há muitas cores. Entre o ónus da culpa de uns e da inocência de outros, não vou por aí. Temos é de assumir aquilo que foi feito de bom, e aquilo que foi feito de mau. Todas as culturas, civilizações e povos tiveram grandes momentos de brilho e grandes momentos de trevas.
Hoje ainda existe escravatura em vários países… a China, por exemplo, tem campos de concentração para muçulmanos.
Sim, a escravatura ainda existe, e a China tem campos de concentração. A Espanha teve campos de concentração até à década de 60, durante a ditadura franquista, e foi o país europeu que os teve durante mais tempo. E existem muitos campos de detenção ilegais por esse mundo fora. Estou-me a lembrar, por exemplo, de Guantánamo, onde há indivíduos que são detidos durante várias décadas sem culpa formada. Há campos de detenção onde pessoas foram e são torturadas ainda hoje, por países que se arrogam da prática dos direitos humanos, e que permitem que aliados seus pratiquem aquilo. Isto, para além de muitos estados totalitários e ditatoriais que também hoje continuam a maltratar e a torturar prisioneiros seus.
E, para terminar numa nota mais positiva, o que é que acha que Portugal fez de melhor? O que é que destacaria do legado português?
Vai-me perdoar, mas vou começar de uma forma um bocadinho pícara e não quero de todo ser mal interpretado. Há uma frase muito engraçada, que já ouvi no Brasil várias vezes, que é: “a melhor coisa que o português deixou no Brasil foi a mulata”. Esta frase tem uma ideia curiosa por trás, que é a ideia de mistura. Os colonizadores do Norte da Europa não se misturavam com os nativos, não havia essa cultura. Um inglês reproduzia, nas suas colónias, desde a Índia à África do Sul, os seus padrões culturais. Como vestir um smoking para jantar. Eu acho que, com muitas coisas boas e más que os portugueses fizeram, há uma cultura, uma língua e um património que foram deixados. Eu gosto particularmente disto, da capacidade dos portugueses de se juntarem a várias culturas, esse melting pot, em que misturamos a cultura nativa com a cultura europeia. A “mulata” é essa alegoria. Os portugueses, de facto, misturavam-se fisicamente com os nativos. Coisa que os outros povos não faziam tanto. Contudo, o mito de que a colonização portuguesa foi melhor do que as outras, não é bem assim. Mas eu acho que essa noção de mistura e de troca parece-me ser particularmente interessante no caso português, é algo que me agrada, essa capacidade de adaptação. E nós vemos isso. Um português é timorense em Timor, é ugandês no Uganda, é marroquino em Marrocos, é alfacinha em Lisboa e tripeiro no Porto. É uma coisa incrível!
Em Gelo sob os seus pés, a sueca Camilla Grebe, propõe aos leitores uma viagem pelos mistérios do crime psicológico, distribuída por três personagens que estão destinadas à colisão. Vencedora do Glass Key Award, para Melhor Policial Nórdico e também por Melhor Policial Sueco do Ano, o romance tornou-se um best seller em diversos países europeus. Actualmente a viver em Cascais, o PÁGINA UM conversou com esta escandinava de 54 anos sobre o seu percurso literário, o género policial e a sua vinda para Portugal.
Como é que uma economista acaba a escrever romances policiais?
Sempre tive um interesse em arte e na criatividade, e por isso fui para uma escola de Arte a seguir ao curso de Economia, para tentar pintura, mas cedo percebi que não ia conseguir viver disso. Fui depois trabalhar para uma editora, onde conheci muitos autores e após ter lido alguns manuscritos, entendi que preferia estar do lado criativo em vez de ficar na parte de gestão.
Mas começou por escrever romances a quatro mãos, com a sua irmã. Como foi essa partilha?
Foi tudo um pouco orgânico. Eu escrevi um primeiro capítulo, e ela o seguinte; e depois eu outra vez. A dada altura encontrávamo-nos e discutíamos a continuação da história. E, para nossa surpresa, o nosso primeiro livro [Någon sorts frid, em 2009] foi publicado [risos]. Devido a esse sucesso, tivemos que ser mais estruturadas e nos livros seguintes precisámos de concordar no enredo e personagens logo de início.
Quais as maiores diferenças face à escrita individual?
Há aspectos positivos e negativos. Quando escreves com alguém, tens um amigo com quem podes falar sobre ideias, resolver problemas e apoiam-se mutuamente. E também se aplicas se precisas de fazer algum marketing ou ir em viagens promocionais. Por outro lado, pode haver complicações quando as ideias não coincidem, tanto no enredo como também no processo da escrita, no tempo que se dedica ao desenvolvimento da história. Eu descobri que sozinha, o meu tempo era mais produtivo e o processo de escrita mais rápido. De alguma forma, é mais eficiente, e sou eu que tomo todas as decisões.
O seu percurso literário centra-se em policiais. O que mais a fascina neste género?
Comecei a ler este tipo de livros muito cedo, ainda com sete ou oito anos, e logo nas primeiras páginas fiquei apaixonada. Mas para mim, este é um género onde podemos fazer o que quisermos. Há um contrato com os leitores: é suposto haver um mistério e, em certa altura, temos de os surpreender. Isto é obvio, mas, de resto, podemos fazer da história o que for; pode ser uma história de amor, podemos falar de problemas sociais, política, ou imprimir uma linguagem poética. Na minha opinião há poucas limitações.
Qual foi a inspiração do romance que lançou agora em Portugal, Gelo sob os seus pés?
Para mim, é muito difícil falar sobre este livro, teria de abordar o twist, o que seria decepcionante, mas eu gosto muito de crimes psicológicos. Posso dizer que este romance foi escrito para surpreender o leitor, esse foi o meu objectivo.
Em todo o caso, em relação às personagens, como foi o processo de desenvolvimento que escolheu?
De uma forma geral, eu sabia já, desde o princípio, quem seriam, mas houve também um crescimento orgânico ao longo do manuscrito. Eu gosto que as minhas personagens sejam de carne e osso, que sejam imperfeitas, tenham falhas e problemas. O caso de Hanna é um pouco assim: ela tem demência, que é uma doença horrível, mas interessante no contexto livro, porque se ela não pode confiar nela mesma, em quem poderá confiar? Essa dramatização pareceu-me muito interessante.
O romance aborda temas como o arrependimento, a saúde mental, a inevitabilidade da morte. São temas de circunstância ou foram escolhidos com um propósito?
São temas que fazem parte da condição humana. As questões eternas de vida, morte, amor, e por isso são importantes para mim, também porque são muito existenciais e acho isso muito interessante.
Publicado originalmente em 2017, O gelo sob os seus pés foi editado em português em Abril passado.
As protagonistas femininas passam por mudanças e transformações ao longo do romance. Considera que estas mudanças reflectem a evolução feminista na sociedade?
Talvez a Hanna, sim. Ela é a personagem mais velha, e a geração dela era muito diferente. E embora ela tenha educação, na verdade ela pertence a um tempo em que o lugar da mulher era diferente. Por isso, apesar da sua doença, ela quer sair da relação abusiva onde se encontra.
Este romance mostra-se bastante visual, havendo muitos pormenores mencionados como as roupas, as rugas, os cheiros. Sei que vai ser adaptado para o cinema. Já estava a pensar nesta possibilidade quando o escreveu?
Não foi intencional, mas quando li o manuscrito apercebi-me que sim, que podia resultar, embora não fosse o meu objectivo.
A Suécia é um dos países mais seguros do Mundo. Como se explica que este género seja tão popular no seu país?
Eu penso que é pelo contraste. Na Suécia há muito de natureza, mais as casas vermelhas e todas estas características fazem-nos querer ler livros que reflectem os nossos medos, mas de uma forma segura. Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, pela morte e pelo medo, mas não queremos estar expostos a isso na vida real. Portanto, os livros e filmes permitem-nos reter um pouco disso.
Entretanto, vive em Portugal? O que a fez vir para cá?
Combinei com o meu marido que, quando os nossos filhos saíssem de casa, íamos mudar para o sul da Europa. O clima sueco é muito frio e, além disso, também muito escuro. Depois de algumas discussões, decidimos visitar Cascais. No princípio era por um ano, e depois íamos para Espanha, onde eu já tinha estado anteriormente, mas senti que os portugueses são mais parecidos com os escandinavos. Os espanhóis são muito latinos e os portugueses parecem-me mais reservados, tal como os suecos. E mesmo em temos de população, nós também somos 10 milhões. Um ano e meio após a chegada a Portugal, decidi que não ia para mais sítio nenhum. Isto é a minha casa e até vou para uma universidade aprender português.
Será possível que a sua inspiração para escrever policiais mude pelo facto de viver em Portugal?
Não está nos meus planos [risos]. Eu preciso do ambiente escandinavo para escrever os meus romances, do escuro, do frio, e é também isso que os meus leitores, espalhados pelo Mundo, esperam de mim. Talvez as minhas personagens possam fazer férias em Portugal [risos].
As posições que tem assumido, nos últimos anos, fizeram de Manuel Pinto Coelho uma das figuras mais polémicas da classe médica em Portugal, por vezes em confronto com a própria Ordem dos Médicos. Entre as práticas mais controversas que defendeu, e que mais causaram celeuma, estão a exposição solar sem protector e a ingestão de água do mar. A pretexto do seu mais recente livro, Seja um super-humano, o PÁGINA UM entrevistou-o na sua clínica, ou “casa”, como lhe chama, onde, fiel à irreverência, explicou as suas teses e não poupou críticas ao método convencional da Medicina e sobretudo à Organização Mundial de Saúde e gestão da pandemia.
Seja um super-humano! é o seu 10º livro, e aponta 50 hábitos que pretende mudar a saúde das pessoas. Marca também os seus 50 anos de prática clínica. Estamos perante um balanço de vida?
Eu sei da responsabilidade que tenho. Quer as pessoas gostem ou não de mim, sabem que 50 anos de prática, seja ela clínica ou não, ensinam muito. O empirismo, a experiência e a prática é sempre o que mais importa em qualquer tipo de matéria. Claro que a teoria é importante, mas nós sabemos que o que é verdade hoje, amanhã já não o é, enquanto que aquilo que a prática nos ensina é sempre verdade. Não “passa de moda”, ao contrário da teoria. Como tal, eu percebo que as pessoas possam ter um interesse acrescido em ver como é que pensa o médico que anda, há meio século, a ver pacientes à sua frente.
Manuel Pinto Coelho fotografado na semana passada na sua clínica em Lisboa.
E o que é que mudou, e o que é que se manteve, na sua forma de pensar, desde que começou a sua carreira?
Estive muitos anos na sombra do conhecimento que tenho agora. O que mudou foi, essencialmente, o facto de eu hoje tentar ir à causa dos problemas e das doenças, em vez de apenas tratar as suas consequências. Durante muito tempo, eu fiz isso, na esteira daquilo que aprendi na faculdade. O nosso programa académico ensinou-nos a ver as coisas de determinada maneira, e eu fi-lo durante anos a fio de uma forma quase acrítica. A certa altura, passei a fazê-lo de maneira diferente. Isso abriu-me muitas portas e trouxe-me muitas alegrias. Não há dinheiro que pague vermos as pessoas felizes e contentes por nossa intersecção. O acto de dar, dá 10-0 ao de receber. E eu comecei a perceber isso. Como tal, hoje sinto, que as respostas que a “casa” [Clínica Dr. Manuel Pinto Coelho] oferece, com esta forma integrada de ajudar as pessoas, tem-me dado alegrias que antes não conseguia obter quando, ao longo dos meses, passava meia-dúzia de receitas.
Como reagiu então quando percebeu que aquilo em que acreditava, afinal não era bem assim…
Não é que aquilo em que acreditava fosse errado. Eu fiz medicina hospitalar, serviço de urgência, durante muitos anos. Comecei ainda antes do 25 de Abril. Fui médico de centro de saúde durante 35 anos e sou reformado da Função Pública desde 2009. Por isso, eu sei qual é a prática clínica tradicional, que a larga maioria dos meus colegas segue. Mas o inesperado problema de saúde do meu filho [que sofria de esclerose lateral amiotrófica, e que acabou por morrer aos 49 anos, em Dezembro passado, 12 anos após ser diagnosticado] ajudou-me a procurar outras formas de ajudar, em primeiro lugar, quem eu tinha em casa. E que ajudou-me também a perceber uma coisa que é inacreditável eu nunca ter reparado: Hipócrates, pai da medicina, ensinou-nos a todos, há quase 2.500 anos, que o alimento é o nosso principal remédio, que temos dentro de nós tudo quanto precisamos. E também que, não conhecendo o alimento, fica mais difícil tratar as doenças. Aliás, todas as nossas doenças começam no intestino. Com o juramento de Hipócrates, pomos o homem nos píncaros. E, depois, não seguimos o seu conselho.
E porque é que acha que isso acontece?
Porque não é o brócolo e a couve que paga os cursos de medicina. O paradigma actual seguido pela classe médica é um comprimido para cada maleita; foi instituído por decreto. Mas, voltando atrás: em 1895, Louis Pasteur, o dono da teoria do germe, morreu. Esta teoria defende que a Medicina deve tentar barrar a entrada do germe no nosso organismo. Bateu-se toda uma vida e, ganhando o braço de ferro, teve vários opositores, nomeadamente Claude Bernard e Antoine Béchamp, que o contradisseram, e defenderam que a Medicina se devia “virar” para o hospedeiro e a homeostase.
O 10º livro de Manuel Pinto Coelho foi publicado no mês passado pela Oficina do Livro, do Grupo Leya.
Refere-se à teoria do terreno, ou terrain theory?
Sim. Eles perderam; e Pasteur ganhou, abrindo as portas à indústria do tratamento. Só que, as pessoas não sabem da existência de um papelinho que ele deixou na mesa de cabeceira, no seu leito de morte, dizendo que se enganara, e que realmente o micróbio não era nada e o terreno era tudo. Portanto, pouco antes de morrer, ele negou uma vida inteira em que tentou provar a teoria do germe. Mas foi essa teoria que ficou, para posteridade. Em 1910, o ensino médico privilegiava realmente o corpo e o terreno, através das chamadas terapêuticas não-convencionais. Depois, com o Flexner Report entendeu-se que essa prática médica não fazia sentido e instituiu, na linha do Pasteur, o modelo que ainda hoje está vigente. E é assim que hoje se ensina Medicina: o médico espera que a pessoa fique doente para a poder ajudar. Não se trata de Saúde nos programas académicos das faculdades da Medicina; trata-se da doença. Não há cadeiras de Nutrição nas Faculdades de Medicina; só agora apareceu a Nova Medical School com uma cadeira de Ciências da Nutrição. Uma pedrada no charco, porque não existia. Quando uma pessoa vai ao médico, não lhe passa pela cabeça sair de lá sem uma receita. Se sair do médico sem uma receita, diz que o médico o enganou, não percebendo que devia era pôr em ordem o seu estilo de vida, de forma a nunca mais lá voltar.
Diria que essa é uma forma de fazer Medicina que beneficia a indústria farmacêutica…
Pois. Quando as potências do dinheiro assumem o controlo da saúde, é um desastre. E é o que está a acontecer agora. Quem gere a saúde, e tomou as rédeas da Organização Mundial da Saúde (OMS) são puros homens de negócios com conflitos de interesses e sem qualquer preparação médica. Nos anos de 1970, as quotizações dos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) representavam 80% do budget da OMS. Isso mudou. Em 2016, já 80% do budget provinha de donativos privados. Temos em curso um “golpe de estado” e ninguém abre os olhos; estamos a assistir, impávidos e serenos, à criação de uma organização sem qualquer matriz de saúde, que determina como é que devemos conduzir os nossos problemas ligados à Saúde, seja com a covid-19 ou com o que for.
Os países estão a perder a sua soberania em matéria de Saúde Pública?
Sim. Se a OMS fosse um órgão democrático, democraticamente eleito, tudo bem, mas não. É agora o dinheiro que está a mandar e a assumir o controlo da Saúde. As potências do dinheiro estão a assumir o controlo da Saúde. Veja-se aquilo que se está a passar com a aliança entre o World Economic Forum, da figura inacreditável do Klaus Schwab, e o poder do dinheiro da OMS.
Que saída propõe então?
Sou uma pessoa optimista por natureza, e tenho esperança. Ou não fosse eu do Sporting, e não fosse o verde a cor da esperança [risos]. Mas tenho que dizer que a situação actual é preocupante. Como dizia Robert Malone, a covid-19 é uma questão de poder e de dinheiro. Claramente. Eu sinto isso, no meu dia-a-dia. Mas não irei calar-me. Não me calo. E ninguém me pode instituir um processo disciplinar por isto que eu estou a dizer. Podem gostar ou não gostar, concordar ou discordar, mas, caramba, acho que só na Coreia do Norte é que há pensamento único. Era o que faltava que num país democrático as pessoas não pudessem dizer de sua justiça, desde que o façam de maneira educada e civilizada.
No ano passado, a obra O segredo do sistema imunitário contou com o apoio de Cristiano Ronaldo.
Pelo que foi assistindo nos últimos anos, comportámo-nos como um país plenamente democrático?
Não. Não. Não agimos como um país 100% democrático. Basta ver as linhas editoriais dos principais órgãos de comunicação. Aquilo é democracia? Quantas pessoas é que vimos na comunicação social a dizer que o terreno é mais importante que a semente? Não chamaram cientistas ou investigadores de Saúde para discutirem esta questão. Nem um. Quem aparece são virologistas e epidemiologistas, sempre na perspectiva da semente: é as vacinas, são as máscaras, é o confinamento, é o distanciamento social. No meu livro O segredo do sistema imunitário [lançado em Março de 2021], o Cristiano Ronaldo diz, na chamada de capa, que considera a expressão “vacina natural” uma expressão feliz, e que o livro revela claramente a importância do sistema imunitário. O que ele disse não teve praticamente eco nenhum. O melhor jogador de futebol do Mundo de todos os tempos, melhor marcador, a dizer uma coisa destas e falou-se pouco nisso.
Mas “arranjar” essa “vacina natural” não dá o mesmo lucro que as vacinas que as farmacêuticas vendem…
As pessoas deviam saber que, por exemplo, o arroz tem mais de 50 mil genes, mais genes do que nós temos no nosso corpo, e que podemos modificar a expressão dos genes com os alimentos. Não me parece que haja algo mais interessante do que o facto de podermos modificar os genes com que nascemos, através do alimento, do ar que respiramos, de um sono reparador, da quelação dos metais pesados que temos dentro de nós… A importância gigante do exercício físico, e do intestino. Temos 10 triliões de células, mas temos 100 triliões de micróbios dentro do nosso intestino, que nos pesam dois quilogramas. É a microbiota, que hoje tem a figura de órgão. Porque é que não se fala mais sobre isto? Muita da Medicina está ligada à doença, não está ligada à saúde. Nos meus livros estão as referências bibliográficas, para quem queira consultar; está lá tudo. Se há colegas que não concordam com o que eu digo, muito bem, escrevam, tal como eu escrevo. Dêem referências bibliográficas para suportar as suas teses, como eu dou para suportar as minhas.
Tem-se dito muito às pessoas para confiarem na Ciência, como se fosse uma questão de fé, um dogma. Qual a sua opinião sobre o estado actual da Ciência e seu papel sociedade?
Maria Angell, ex-directora e antiga editora-chefe da New England Journal of Medicine, que é uma das publicações mais importantes no mundo médico, escreveu isto num editorial em 2000: “a distinção entre Governo, indústria, Ciência, e Medicina está enevoada, está confusa. O resultado são doses maciças de desinformação que custam bem caro ao consumidor”. Dizia ela que “na indústria da Ciência, a indústria usa a Ciência para aumentar a procura pelos seus produtos, de modo a realizar mais dinheiro”. É exactamente isto. O actual secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, disse num noticiário da TVI que a evidência científica de hoje é o erro rectificado de amanhã. Disse muito bem. Não se pode acreditar cegamente. O Richard Horton, que foi editor-chefe da Lancet, disse que metade dos trabalhos científicos são falsos. Portanto, Ciência muito bem, mas vamos com calma.
Não se pode perder o espírito crítico?
As pessoas não podem aceitar, de uma maneira quase acrítica, aquilo que ouvem nos jornais e nas televisões, nos noticiários. Não faz sentido. Não se fala em conflitos de interesses, que têm muitas das pessoas que escrevem. O apelo que faço é que as pessoas pensem. O Edgar Morin tinha uma frase fantástica: muitos dos nossos problemas resultam da ausência de pensamento, mais do que problemas económicos, ambientais, sociais ou culturais. Há um défice de pensamento; as pessoas não pensam. É inacreditável o que se está a passar. Este totalitarismo global crescente é preocupante. Eu considero que isto da covid-19 é só uma escaramuça [risos], porque o que verdadeiramente me preocupa é haver meia dúzia homens de negócios a mandarem em nós, e nos destinos de cada país. Isto é grave. O Prémio Nobel da Medicina em 1993, Richard Roberts, denunciou como funcionam as grandes farmacêuticas dentro do sistema capitalista, acusando-as de preferirem os benefícios económicos à saúde e detendo o progresso científico na cura completa das doenças, porque a cura não é tão rentável quanto a doença. Temos que dar mais voz a estas pessoas. A apetência da investigação científica só se faz para as áreas lucrativas; nunca para as áreas que não dão lucro.
Ou seja, quer dizer que os hábitos que, por exemplo, recomenda no seu último livro, não são mais divulgados porque não dá lucro às farmacêuticas…
Ninguém investigou, por exemplo, os benefícios de três hábitos que considero serem os mais importantes de todos os que menciono no livro: a meditação, o exercício e a leitura. Por exemplo, a biblioterapia era uma prática corrente na civilização grega, romana e egípcia. Neste momento, temos dois técnicos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a pesquisar os benefícios incríveis que a leitura tem no tratamento de doenças. Porque é que ninguém fala disso? Porque é que ninguém explora a importância gigante que a meditação tem no tratamento de doenças e a ajudar as pessoas a chegarem novas a velhas? Independentemente do seu grau de cultura, as pessoas não são burras; elas entendem, têm sensibilidade, e percebem que, na realidade, há qualquer coisa que não está bem contada. Não é preciso ser agricultor ou lavrador para se perceber que o solo importa bem mais do que a semente que lá cai. Não interessa saber, por exemplo, porque é que há pessoas que vão abaixo e outras que não vão? E porque é que nas famílias, há um ou dois resistentes que nunca apanham covid-19?
Manuel Pinto Coelho com o norte-americano Robert Malone.
Fala-se nisso como se fosse um mistério…
Não é mistério nenhum. Para as pessoas que não percebem nada disto, é misterioso. Há que dizer porque é que essas pessoas não vão a baixo, e é porque têm um sistema imunitário que as protege de todas as investidas. Se tivermos, dentro das ameias do nosso castelo, um exército suficientemente robusto e forte, esse exército protege-nos de tudo. Não é só a covid-19 que não se apanha, derrota-se qualquer inimigo que lhe bata à porta. Mas isto não é discutido, nem investigado. Uma das formas de termos um sistema imunitário capaz é termos uma alimentação correcta.
Já existem mais médicos, em Portugal, a preconizar a alimentação e o estilo de vida como factores importantes na saúde, ou ainda são poucos?
Caramba, caramba, se existem. A Leonor Rodrigues Lopes, por exemplo, que também é doutorada, professora universitária e neuroradiologista, com quem eu tenho a sorte de trabalhar, filha do grande Ernâni Lopes [antigo ministro das Finanças, falecido em 2010], e outros, variadíssimos médicos que trabalham aqui, e que percebem.
Então este movimento, se assim lhe podemos chamar, está a crescer?
Sim, cada vez mais médicos vêem o problema desta maneira. Não faz sentido fazer o juramento de Hipócrates e depois não ligar nenhuma àquilo que ele ensinava. Cada vez mais colegas meus estão a perceber que uma alimentação pode modificar o seu genoma. Em 2004, nasceu a epigenética, que nos ensina a perceber que é possível modificar a expressão dos genes com que nós nascemos. Uma pessoa, hoje, já não é vítima dos genes que herdou quando o espermatozóide fecundou o óvulo da mãe. Eu falo muito na vitamina D, e dá-me imenso prazer poder dizer que fui a primeira pessoa em Portugal a falar das suas vantagens. Em Novembro de 2015, no meu livro Chegar novo a velho chamei a atenção que o Sol fazia muito mais bem do que mal. E se eu fui atacado na altura! Quando hoje é uma evidência que o Sol faz mais bem que mal, com as cautelas devidas. Com níveis elevados de vitamina D, eu costumo dizer, por paródia, que as pessoas podem andar a beijar na boca os “covidosos” e as “covidosas” todas lá da rua, que mesmo assim, podem apanhar o vírus, mas o vírus não as apanha a elas. Se, juntamente com isto, se fizer a evicção dos alimentos que aumentam a permeabilidade do intestino, e que o inflamam, terão, com certeza, muito menos probabilidade de ficar doentes. Costumo até dizer que, para essas pessoas verem uma bata branca têm que ir à Netflix [risos]. Isto, os homens de negócios não vão dizer. O Lair Ribeiro, que já devia ter ganho o Prémio Nobel há muito tempo, dizia que aos grandes grupos farmacêuticos não lhes interessa duas coisas: curar e matar. Na realidade, interessa-lhes é manter a pessoa em banho-maria, tornar a situação crónica. Recuso-me a aceitar este sistema como normal, porque não é, e não dá saúde a ninguém.
Como tem visto a actuação do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, particularmente em relação aos colegas que, nos dois últimos anos, expressaram uma opinião diferente?
Tenho uma opinião, mas não a vou divulgar porque tenho um processo que deu entrada no Tribunal Administrativo em Outubro de 2017, contra o actual bastonário, contra o Conselho Nacional, e contra o Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Como tal, não me é permitido fazer qualquer tipo de comentário. E, se o meu advogado estivesse aqui, diria: “apoiado“!
Manuel Pinto Coelho nas instalações da Leya a autografar a sua última obra.
[risos] Mas, como é que lidou com as críticas, e com as acusações, de que defende ideias pseudocientíficas ou que carecem de comprovação científica? Afectaram-no de alguma forma?
Não, porque conheço alguns pensamentos de gente válida como, por exemplo, do grande Karl Popper, que disse que o crescimento do conhecimento depende inteiramente do desacordo. Também me lembro que Fernando Pessoa recomendou: “segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas, o resto é sombra de árvores alheias”. Tenho esta cultura, sei o pensamento destas grandes figuras. E tenho a minha prática clínica. Enquanto eu tiver resultados e as pessoas nos procurarem, esses comentários são sombras de árvores alheias; não me interessa perseguir nem perder tempo com eles. Não me interessa nada [risos].
Aprecia ser polémico?
Enquanto eu estiver na plena posse das minhas capacidades intelectuais e físicas, sentir esta garra dentro de mim, e perceber os resultados da nossa conduta nas pessoas, que é para quem eu vivo, ninguém me vai calar. Ninguém. E quando passarem o risco, aí há os tribunais. Os advogados também precisam de ganhar a vida [risos]. A minha folha de serviços da Ordem dos Médicos está imaculada, não tem uma única sanção. Queixas, há muitas, mas depois eu respondo.
Imaginava que, um dia, poderia vir a ser considerado irreverente entre a classe médica?
Tenho seis filhos, sete netos, 50 anos de prática clínica. Estou como aquele ditado hindu: o coração, quando está em paz, vê uma festa em todas as aldeias. Estou cada vez menos belicoso, e menos conflituoso. Se calhar há 20 anos atrás picava-me mais com o que ouvia; hoje em dia já não. Até porque vejo que, cada vez mais, as pessoas percebem que se deve abordar primeiro a saúde, e só depois a doença.
Em Lisboa: indo e vindo, a escritora Filomena Marona Beja junta, num estilo muito peculiar, a sua memória da capital portuguesa com a História e as estórias que, no conjunto, revelam verdadeiros tesouros de curiosidades. O pretexto da conversa com o PÁGINA UM era para ser uma breve conversa sobre o seu mais recente livro, editado pela Parsifal, mas acabou por resvalar para uma longa e agradável viagem de memórias e sentimentos por uma cidade que só pode ser aprendida e apreendida devagar, a pé, sempre a pé.
O seu nome, enquanto autora, tanto aparece numa versão curta – Filomena Beja – ou numa versão mais longa – Filomena Marona Beja. Com qual delas prefere assinar?
Na escrita, é sempre Filomena Marona Beja. Há uma coisa engraçada: eu sou escritora, fui documentalista de arquitectura escolar e escrevi muitas obras, e, no âmbito profissional, era sempre conhecida como Filomena Beja. Uma vez, a Biblioteca Nacional perguntou-me se ambos os nomes eram da mesma pessoa e eu disse que sim; então, estou na Biblioteca com os dois nomes.
Pelo que escreve, percebe-se que é pessoa atenta, com uma invulgar capacidade de absorver em pormenor o que a rodeia. Este livro tem, aliás, uma riqueza excepcional de sensações, que nos “aguça” os sentidos…
Eu acho que é o quanto gosto de Lisboa que está neste livro, e o facto de conhecer muito bem Lisboa.
Identifica-se então como uma lisboeta, uma alfacinha.
Mais alfacinha do que lisboeta. Sou lisboeta, porque nasci em Lisboa, e sou alfacinha, porque vivo essa cultura e porque a sinto.
E o que é ser alfacinha?
[risos] Olhe, é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz, é saber ir de um lado para o outro e é sentir-me lá bem. Ser alfacinha é, sobretudo, isto. É a comida, é o próprio falar. Eu sei que nós, os lisboetas, não damos por isso, mas temos uma pronúncia. Além de falarmos depressa, temos uma pronúncia própria. Abrimos um bocado os últimos “o”, e essas coisas assim, e usamos termos que são de Lisboa, porque Lisboa foi sempre um encontro de tudo e mais alguma coisa. Tanto do que veio de fora, que nos chegou nas caravelas que iam entrando no Tejo e nos mercadores que iam cá deixando as coisas; como no que depois, a determinada altura, quando eu era pequena, no fim da Segunda Guerra Mundial, as pessoas deixaram de ter, no campo, os mesmos meios de rendimento que tinham tido até aí, e começaram a vir trabalhar para as fábricas… foi um vir de longe para cá e essa mistura, o continuar a querer falar à maneira de Lisboa e a querer as coisas à maneira de Lisboa, isso é ser alfacinha, acho eu.
Mesmo correndo o risco de se tornar francesa… [risos]
Foram os franceses que me educaram, sim. Aprendi a escrever ao mesmo tempo nas duas línguas, mas isso foi outra história. Foi do lado do meu pai, que era tradutor na Companhia dos Caminhos de Ferro. Ele ajudou, durante a guerra, a resistência francesa, e chegavam-lhe refugiados, gente que vinha escondida nos comboios, que ele ia buscar a Santa Apolónia, e conseguia depois passar para Inglaterra. E, no fim, teve a roseta da Liberdade de França e convidaram-no a ir para à escola francesa. Na altura, ainda fiz a primeira e a segunda classe na École Française de Lisbonne, que ficava na Travessa do Forno do Tijolo. Entretanto, estava a ser construído o Liceu Francês, que ficou com o nome de Charles Lepierre, que era professor de química no Instituto Superior Técnico. E, quando eu fui para a terceira classe, inaugurámos o Liceu. Há sessenta anos. Aprendi com os franceses uma coisa muito importante: o que é a liberdade e que se é livre desde que se seja responsável. E nessa altura isso não se aprendia no ensino português. Foi essa a história [risos]. Também me ensinaram que quando falasse português, era português, e quando falasse francês, era francês. Portanto, eu não podia misturar as duas línguas nem as duas culturas.
De 1944 para 2022, Lisboa transformou-se. Já não é a mesma.
A essência está lá. Claro que não é a mesma Lisboa, e uma das razões é as “invasões” que tem sofrido [risos]. Primeiro, de pessoas estranhas à cidade que vieram para cá viver e agora é a invasão dos turistas. Desce-se a Rua Augusta e não se vê nenhuma das lojas antigas, só se vê casas de comida. Ah!
A maioria nem sequer apresenta comida portuguesa.
Sim! Nem sequer é comida portuguesa, são coisas esquisitíssimas. Já vi turistas a comerem sardinhas com um café com leite ao lado. Eu acho que não são turistas, são viajantes que vêm cá para ver e não para descobrir. Vêm para verificar que está e às vezes vêem mal. Vão ao Carmo, vêem umas ruínas mas não percebem porque é que aquilo está assim… Está lá a Guarda Nacional Republicana, eles olham para aquilo e não sabem muito bem o que é que aquele fulano está para ali a fazer de um lado para o outro… No chão está escrito o nome do Salgueiro Maia e eles sabem lá quem é que foi o Salgueiro Maia e o que é que aconteceu ali. E pronto, é isto. Isto não é viajar, não é conhecer. E é mau, é uma invasão e é estragar a nossa cidade.
Ao regressarem a casa levam consigo umas fotografias, mas não provaram a gastronomia portuguesa, não conheceram Lisboa…
Não sabem o que viram! Dizem que os turistas deixam cá dinheiro, mas às vezes nem deixam. Comeram aqui e ali, mas geralmente as coisas até vêm pagas. E depois, o que é isto do alojamento local, não é? As pessoas a serem empurradas para fora das casas para as casas serem transformadas em alojamento local. Também não é bom.
Escreveu até sobre os jacarandás, que são um marco de Lisboa, ao qual ninguém que viva na cidade fica indiferente…
Quando vejo os jacarandás, fico muito contente, porque continuam a florir todos no mesmo dia. É assim, porque vieram todos do mesmo sítio, foram plantados na mesma altura, deram a mesma flor, e isso acontece, está tudo a florir ao mesmo tempo. São um sinal de vida, da Natureza, da sintonia.
Este livro acaba por ser um convite para se viajar por Lisboa. Aliás, é uma autêntica viagem pela cidade…
[risos] Olha, que bom! É uma viagem por Lisboa, não deixando de ser uma viagem pela memória de Lisboa.
O que sente por Lisboa?
Sinto muito orgulho. Aliás, basta ver a cidade que ainda é. Tem resistido ao que lhe tem acontecido, justamente com estas “investidas” de gente que não sabe o que é Lisboa, como o alojamento local, o ter desaparecido as lojas para aparecerem os comedouros…
Como é que se poderia resolver essa situação?
Era voltar atrás, o que seria complicado. Seria outro “terramoto”, quem sabe. As evoluções são mesmo assim… há sítios que resistem melhor, e há sítios que resistem pior. Depende.
Junta às memórias de Lisboa as suas próprias memórias. Era impossível dizer o que aqui está dito se não as tivesse vivido, certo? Sentiu-se obrigada a deixar um registo daquilo que sentiu, viveu e aprendeu?
Foi um bocado isso, o gosto de escrever às vezes dá isso. Foi para deixar escrito, mas talvez até mais para mim mesma; é uma recordação, está apontado aquilo que eu vivi, aquilo que eu senti e aquilo que eu gosto. Até podia ter escrito mais coisas que não estão no livro e que eu assisti, e que podia ter dito.
Usa alguma ironia quando se refere aos membros do clero, como por exemplo ao Cardeal Cerejeira – o amigo de Salazar [risos]. Qual é a sua relação com a religião?
Nunca tive relação nenhuma [risos]. Fui sempre livre de escolher o que queria, e achei que a religião era algo que não fazia sentido. Em pequena, lembro-me de uma tia minha me tentar ensinar uma oração, e eu achava que aquilo não queria dizer nada. Nunca me obrigaram a ir à Igreja, e aí tive sorte porque os franceses não obrigavam ninguém a fazê-lo. Mas, pela lei portuguesa, era preciso que se ensinasse religião. Em França, não se dá aulas à quinta-feira à tarde, e é uma coisa que vem do tempo da Revolução Francesa, era uma maneira de terem um dia livre durante a semana, e não só o domingo. Mas cá, o dia livre era a quarta-feira porque era o tempo da Mocidade Portuguesa. Havia um grande anfiteatro no liceu francês, e à quarta-feira à tarde eles levavam lá um padre que vinha da igreja de São Luís dos Franceses, e ele enchia o quadro de uma conversa qualquer em latim. A porta ficava aberta, quem queria entrar assistia, e quem não queria, não ia; ninguém tinha nada a ver com isso. Fui lá uma vez ou duas para os ver a escrever em latim, e depois fui-me embora porque achei aquilo uma chatice de todo o tamanho. De resto, entrei nas igrejas que quis ver por razões de arquitectura e de arte. Eu e o meu marido não nos casámos pela Igreja, não baptizámos os filhos. Não sou anticlerical sequer: quem quer, quer; quem não quer, não quer, pronto. Não acredito na religião [risos].
O seu texto nasce de uma tensão entre a sua experiência particular e a História em geral. Qual é o sentido desse movimento? Ou seja, interessou-se primeiro pelos lugares, passando depois à investigação, ou leu primeiro sobre alguns lugares e monumentos, cruzando-se depois com estes?
Quando me encontro num lugar ou diante de um monumento, tenho logo curiosidade de saber como é que foram as coisas. Porque me interesso pela Arquitectura, porque me interesso pela Ciência, porque eu não sou uma literata, não sou da Faculdade de Letras. Sou da Faculdade de Ciências [risos]. E isso é uma coisa que me dá uma grande bagagem e uma forma diferente de olhar para as coisas.
Neste caso, porquê a opção pela crónica?
Foi a forma que encontrei para contar a História com verdade. Não foi inventar a verdade, como faço quando escrevo romances.
Em vez de lhe perguntar sobre qual é o público-alvo, gostava de saber qual é o perfil das pessoas que poderão sentir-se atraídas por esta obra…
Não escrevi o livro para atrair ninguém, nunca penso nisso. Eu sei que sou um bocado bicuda a escrever. Aquilo que fica contado é com um português certo e rigoroso, mas sou um bocado “bicuda”. Pelo que tenho percebido desde que o livro foi publicado, o que me chegou foi que qualquer pessoa que lê, percebe o que ali está e fica a gostar. De Lisboa, não do que está escrito [risos].
Os seus valores assentam nos três pilares: liberdade, igualdade, fraternidade?
Sim, sim, sobretudo a liberdade. É importante saber usá-la. Quando se é livre, é-se responsável pela liberdade que se tem.
Romance de estreia de Filomena Marona Beja em 1998, quando contava já 54 anos. Na última década intensificou a sua vida literária com mais de uma dezena de títulos.
Destaca aqui, mais uma vez, a palavra liberdade. Acha que vivemos tempos em que podemos gritar vitória, que somos livres, ou vivemos um fracasso da liberdade?
Sinto alguns sinais de fracasso, mas, mesmo na Europa, somos dos povos que melhor percebe o que é a liberdade. Porque quisemos, porque fomos submetidos durante muito tempo, tanto pelo Marquês de Pombal como pelos que vieram a seguir, e que deu mau resultado… E finalmente houve qualquer coisa que deu algum resultado, e foi bom, foi o que de melhor aconteceu.
Sebastião de Carvalho e Melo é um dos responsáveis pela cidade ser como é. Vê-o como tirano e opressor ou como um herói libertador?
É capaz de ter sido as duas coisas. Nesta altura ele era Sebastião José, ministro da guerra, não era ainda Conde de Oeiras, muito menos Marquês de Pombal ou primeiro-ministro. E teve que deitar a mão ao que aconteceu, e deitou bem, ou, no mínimo, o melhor que pôde. Ele tinha sido embaixador em Viena de Áustria e tinha trazido de lá muitas ideias. Por cá, já tinha as coisas mais ou menos preparadas. O plano de recuperação de Lisboa surge num instante, em poucos meses, e foi de certeza porque já estava preparado e pensado, por ele e pelos militares que trabalharam para ele e conseguiram reconstruir Lisboa. Ele, com a visão do que tinha visto lá fora, saiu o que saiu e saiu muito bem. Era um bocado ditador, pois era, mas já se sabe que há coisas que só à força é que se fazem [risos]. Como é que teria sido se não fosse à força? Tinha sido o que cada um quisesse, e não podia ser.
Numa viagem livre, as páginas do seu livro tanto nos levam aos históricos cafés de Lisboa como às paragens do metropolitano. E de repente, estamos no meio de uma lição que nos ensina os significados do girassol, da gaivota, ou da caravela simbolicamente escolhidas.
Foi a Maria Keil [risos]. Era uma senhora amorosa, pequenina, pintava… lembro-me muito bem dela, as últimas imagens que tenho dela foi na Expo 98. Ela era sempre muito bem recebida, davam-lhe o lugar nas filas, mas ela nunca queria passar à frente de ninguém. Com uma mochilinha às costas, viu tudo.
Para esta obra, investigou, por exemplo, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional?
De propósito para isto, não. Fiz muitas investigações, por várias razões profissionais e não só, e “apanhei” muita coisa, tomei nota, e sei muita coisa por isso. Tinha muito boa memória. Agora já não tenho a memória que tinha, e como estou com esta “bicharada”, fugiu-se-me muito. Mas muitas coisas ficaram, e voltam, e uma delas é como é que era Lisboa, onde ficavam os sítios. Sabia tudo isso, e era algo que me dizia muito. Por exemplo, as pessoas agora vão ao Hospital de São José entregar papéis e a sigla que lhes aparece é “O.S.”, e não sabem o que significa. É omnium sanctorum: era o nome do “Hospital de Todos os Santos”. Pronto, sei, aprendi.
A expressão “Lisboa é Portugal, o resto é paisagem” é justa?
Não, não, isso é conversa. O resto não é paisagem de maneira nenhuma. Há cidades que se impõem, como Coimbra, Beja, Évora. São cidades muito interessantes. Os Açores…
Mas como é que passamos a paixão pelo conhecimento às novas gerações?
Ou as pessoas vêem e são capazes de perceber o interesse que as coisas têm, ou então não há nada a fazer. Antes disto acontecer, eu fiz termas num sítio mesmo à beira do Rio Douro, no concelho de Resende, chamado Caldas de Aregos. Quando ali chegou o cônsul de Portugal vindo de Paris, porque ia tomar conta de uma casa que a mulher tinha herdado, não chamou à zona de Aregos, chamou-lhe Tormes. Tudo isto é Portugal.
Vou ler o que escreveu no seu livro, na página 69: “Rua António José Serrano, sobe-se, rua do Arco, rua Martim Vaz, anda-se por ali. Ouve-se a sirene de uma ambulância, de outra, outras”. Como é que estabeleceu o equilíbrio entre a história de Lisboa e a sua história pessoal? Por exemplo, os acontecimentos no Hospital de São José e a relação com o terramoto…
Pelas várias razões por que lá fui, e por que hoje ainda vou, seja por causa dos meus que trabalham lá, ou pela minha médica. E lembro-me de o Hospital de São José ter muito má fama e das pessoas serem muito mal atendidas, antes do 25 de Abril, claro, e depois, das coisas terem corrido bem e ter havido uma evolução extraordinária, e de ser um sítio de excelência para as urgências. Portanto conheço, sei o que era aquilo antes de ser o hospital, sei o que foi estarem lá os franceses. E, como eu disse, fui documentalista de arquitectura, e olho muito para os prédios e para os edifícios, é uma coisa que me diz muito. E é com muita pena que vejo que os portugueses sabem quem é que escreveu Os Lusíadas [Luís de Camões], mas ninguém sabe dizer quem foi o arquitecto da Torre de Belém [Francisco de Arruda]. Não é preciso saber ler para olhar para um edifício e para o admirar, e tudo é isso, é História. Gosto.
Assim sendo, e como excelente conhecedora de Lisboa, onde é que se pode tomar um bom café e a que horas?
[risos] A qualquer hora, e há bons sítios para se tomar café. Antes havia a Pastelaria Suíça, que deixou de existir, mas o Café Nicola por exemplo, tem bom café.
No livro apresenta-nos um leque de ofertas, desde o Vá-Vá, em Alvalade, ou a Brasileira, que ainda existem, mas será que aos poucos também não se vão descaracterizando?
Sim, claro. A Brasileira agora é o que se vê; e, no entanto, as coisas lá dentro ainda correm razoavelmente. Mas depois também há, às vezes, uma certa renovação. Muitas vezes parei na Brasileira e gostava de lá ir. Há um bom café, por exemplo, na Pastelaria Sacolinha [na Rua dos Douradores, na Baixa], um sítio onde se vendiam bordados da Ilha do Faial. Logo ao lado esquerdo há uma barbearia muito conhecida e antiga, e ao lado havia uma casa de bordados, que agora se tornou um café onde se bebe um óptimo café.
Ficou por dizer neste livro algo que gostaria de acrescentar?
Não sei, há tanta coisa que faltaria dizer. Muita coisa, muita. Sobre outros bairros, outros sítios. Toda a beira-Tejo, o que se vê no Castelo, no caminhar na Mouraria, o fazer a Avenida Infante D. Henrique. Saindo do Terreiro do Paço e passando por Santa Apolónia, e por aí fora. Tudo em Lisboa é muito apetecível de se dizer que queria estar lá. A Feira do Livro, por exemplo, não cheguei a descrever o que é. Eu lembro-me da Feira do Livro ser doze barraquinhas à roda do Rossio, e hoje já vai onde vai.
Cresceu na zona do Poço do Bispo e ali, mesmo ao lado, temos o Parque das Nações, que sofreu uma evolução brutal. Mas ainda temos ali Xabregas…
São os cais, é o facto de haver cais. De chegarem navios, do acostar, é o movimento ainda do rio.
Sim, mas, pelo que me apercebo pela leitura deste seu livro, não acha propriamente uma paisagem bonita aqueles contentores.
Desde 2015, Filomena Marona Beja publicou seis obras de ficção na Parsifal, entre romances, contos e crónicas.
Não era, não era uma coisa bonita. Como é que foi possível juntar-se aquilo tudo ali ao molho? Foram tirados e ainda bem. Depois foi arranjado, arquitectonicamente foi bem arranjado, aquela solução que o arquitecto Manuel Salgado arranjou de pôr os bancos às riscas, aquilo sim, ficou bem. Aquelas tágides [risos]!
E sobre as ciclovias? Para si descaracterizam a cidade ou são simplesmente uma mais-valia?
As ciclovias? Porque não?! E agora está tudo muito chateado, porque dizem que vão cortar o trânsito aos fins de semana na Avenida da Liberdade. Que cortem, e depois? Subir e descer aquilo a pé, não é bom? Pois, experimentem e vão ver se não gostam [risos]. As ciclovias são de certa maneira um resguardo. São úteis, desde que sejam cumpridas regras. Há espaço para tudo desde que haja bom-senso, respeito e inteligência prática.
É complicado passear por toda a cidade de bicicleta.
Pois é. Mas eu não acho que as ciclovias sejam más, porque no fundo é um bocado pôr o automóvel na ordem, é um bocado isso [risos].
No fim de cada capítulo deste seu livro, regista, na maior parte das vezes, Lisboa e Sintra como sendo o local onde os escreveu, e revela-se que, normalmente, demorou em cada um cerca de dois meses.
Às vezes, escrevo coisas e guardo. E, depois, daí por uns tempos, dou com os papéis e retomo a ideia, e dou-lhe a forma final. Antes de me aposentar, eu ia todos os dias a Lisboa, e depois de me aposentar passei a ir apenas várias vezes por semana. Por isso, claro que todos os capítulos têm um “pé” em Lisboa. E depois a escrita é aqui, em Sintra.
Tem já uma vasta obra, cerca de uma dezena e meia de romances e livros de contos e crónicas. Já tem outro em mente, presumo…
Sim. Em princípio, há já uma coisa preparada para o ano que vem, com novelas. Uma novela é diferente de um conto, e aprendi as diferenças com o Camilo Castelo Branco. Chamá-lo-ei As novelas ao vento, são umas tantas. Gosto muito de escrever contos, mas os editores gostam pouco de os publicar. Quando quero dar um presente a alguém, escrevo um conto e ofereço-o, no final do ano. Ponho o Natal de parte, sou muito crítica em relação ao Natal. Sei que Cristo existiu, e sei o que ele passou para defender aquilo em que acreditava. Não o vejo como um “homem-deus”, mas como uma figura histórica. Acho impensável que se festeje o seu nascimento apenas com consumismo. Portanto, para mim não há Natal, mas há outra coisa que se lhe sobrepõe: tudo o que nós temos de festas ligadas ao catolicismo aproximam-se das festas pagãs antigas, e neste caso é o Solstício de Inverno. E eu festejo o Solstício de Inverno oferecendo contos a toda a gente, pronto [risos]. Mas retomando a pergunta, tenho sim, uma série de novelas preparadas.
Ainda que goste muito de Lisboa, acaba por viver em Sintra.
Eu e o meu marido casámos em 1967. Na altura ele veio para aqui dar aulas para a secção do Liceu Passos Manuel. As casas em Sintra eram muito mais em conta; em Lisboa eram muito mais caras. Acabámos por comprar uma moradia e aqui vivemos há sessenta anos.
Imaginemos que depois de morrer, o paraíso, para si, era ficar sentada num cadeirão a observar Lisboa. Que recanto da cidade escolheria?
O Castelo é um sítio bom, mas há outros. Um sítio onde eu até tenho estado, e gosto de saborear, é em frente à igreja de São Cristóvão. Vem-se de baixo, sobe-se as Escadinhas de São Cristóvão até meio, à entrada para a clínica dos Empregados do Comércio, e há aquele larguinho… Ali, está-se muito bem.
Aos 63 anos, e com vasta experiência cinematográfica e televisiva, o italiano Nicola Vegro dá-nos uma visão diferente do santo que une Portugal e a Itália, Lisboa e Pádua: Santo António ou, para o mundo, Fernando de Bulhões. No romance António secreto: a força de um santo, e lançado agora em Portugal pela Paulinas Editora, conhecemos sobretudo o lado humano de alguém que não se coibiu até de lançar desbragadas críticas aos vícios da Igreja, como fez num seu escrito em Coimbra, em Junho de 1219: “Quantos são hoje os bispos que pregam a pobreza e, entretanto, são avarentos! Quantos são hoje os bispos que pregam a castidade e, entretanto, vivem na luxúria! Quantos são hoje os bispos que pregam o jejum e a abstinência e, entretanto, são glutões e gulosos. (…) Como anel de porco em focinho de porco, assim são os padres frouxos e bem ataviados; são como prostitutas que se entregam por dinheiro (…).” O PÁGINA UM esteve em conversa com Nicola Vegro durante a sua passagem por Lisboa.
Tem-se a ideia de que sobre Santo António já praticamente tudo foi dito. Dois grandes escritores portugueses – Aquilino Ribeiro, com Humildade gloriosa, e Agustina Bessa-Luís, com Santo António – ficcionaram a sua vida. Porque decidiu escrever agora sobre ele?
Existem muitos pontos em comum entre a situação social do tempo em que viveu Santo António e os dias de hoje. No seu tempo, a Igreja vivia um período de instabilidade, o Mundo estava no meio de guerras.
Como hoje…
Diria que se vivesse agora, António repetiria, por exemplo, a Embaixada de Paz que organizou quando Pádua estava em guerra, e iria ao encontro de Putin e Zelensky para lhes pedir que suspendessem o conflito de imediato. Escutava as duas partes. E fomentava o diálogo. António era uma figura de primeira linha, destemido, corajoso, contra corrente. Jamais seria passivo numa situação como esta que estamos a atravessar. Então, por isso mesmo, parece-me muito oportuno seguir as pisadas deste homem que a Igreja acabou por canonizar. Enfatizo no romance o homem culto, oportuno; o ser humano que atacava ferozmente a sociedade hipócrita e corrupta do seu tempo, mas que oferecia as soluções para a mudança. Apontava o caminho.
Nicola Vegro, autor de António secreto: a força de um santo.
No entanto, não é exatamente essa a imagem que o povo guarda dele… O casamenteiro e o milagreiro…
Todos conhecem o nome de Santo António, conhecem a figura, mas não conhecem o seu pensamento nem a sua personalidade. Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas, e que invadem a nossa imaginação, com as suas atitudes patéticas com um ar melancólico, com aquele toque anémico e evanescente que emana de todo o seu ser, como se fossem eunucos… Ele enfrentou todo o tipo de batalhas, principalmente pedindo apoios sociais, combatendo contra a pobreza e as desigualdades. Mas, também tocava em feridas profundas da Igreja, tais como a corrupção, a luxúria, as incongruências…
Era então uma espécie de activista?
De certo modo, sim. António obrigou a que se mudassem algumas leis, assegurou a criação de uma efectiva segurança social, deu a cara pela libertação de reclusos – muitas vezes injustamente condenados. Neste romance, António surge como um crítico, um pensador, um homem proactivo que deve ser redescoberto nos dias de hoje. Por exemplo, o custo do pão ou o custo da gasolina… são situações lamentáveis que não passariam despercebidas ao santo. Estou certo de que ele estaria ao lado do povo, a reclamar por preços mais justos apontando o dedo aos tiranos que fingem nada poder fazer quanto à descida dos preços.
Quis então desconstruir a imagem do santinho milagreiro…
Este livro é uma proposta e uma oportunidade para conhecer o pensamento de António. A força dele está na sua obra em vida, nas suas ideias. O seu legado não está propriamente na aparência simpática de um homem vestido de franciscano que sorri como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, nunca esteve!
O que mais destaca então na figura de Santo António?
Destaco o seu exemplo, a rectidão e o comportamento. A sua grande humildade… Foi capaz, em simultâneo, de apontar erros e soluções. Vejamos: como orador podia limitar-se a falar bem – tinha todos os dons para isso – e apontar todos os erros da sociedade. Mas ele fez muito mais do que isso. E não se limitou a atacar os pecadores ou os hereges, apontou sim para dentro da sua própria Igreja, para os bispos, para os padres, para os frades…
Onde e em que é que se baseou para escrever este romance?
Li os seus sermões e as cartas. Aliás, os discursos e as ideias no meu romance são o reflexo desses sermões. Apesar de ser uma obra de ficção, o livro não se trata de uma pura invenção da minha cabeça; pelo contrário, fui o mais fiel possível à sua palavra, ao seu carácter, à sua personalidade. A melhor forma de entender Santo António é lendo os seus textos originais e, depois, fazer uma espécie de destilação, tal como se faz com os licores, para no final recolher o mais precioso. Considero esta obra uma destilação das palavras de Santo António.
Nicola Vegro (ao centro), no passado sábado, durante o lançamento do seu romance, no Museu de Lisboa – Santo António.
Veio a Portugal para o lançamento do livro. Sentiu que a capital portuguesa tem o espírito de Santo António de Lisboa, que é também Santo António de Pádua?
Santo António encarna o espírito português. A minha visita a Portugal ajudou-me a entender a garra deste povo que foi capaz de se aventurar pelo mar, por exemplo. Pensei nisso esta manhã ao visitar Belém. Este espírito de aventura também estava no coração de Santo António. Aliás, é necessário olhar o horizonte e desejar ir mais além. É uma característica bem portuguesa!
Ainda que este seja o seu primeiro romance, mas tem já larga experiência em cinema e televisão. Essa experiência teve influência no momento de o escrever?
Este livro foi pensado como preparação para um filme. A minha esperança e o meu empenho é o de chegar à produção cinematográfica. Acredito que seja um mote para uma união entre vários países como Portugal, Itália, França, Espanha… e até Marrocos. Seria um investimento com retorno garantido. Divulga História, Cultura… é universal.