O que acontece quando Boštjan Videmšek, um dos melhores jornalistas de investigação do mundo, se especializa na crise ambiental grave que vivemos? Um dos resultados é o livro ‘Plano B – Como manter a esperança em tempos de crise climática’, que conta com fotografias de Matjaz Krivic, e que estreia agora a sua edição em português, pela mão da Editora Perspectiva. A obra, que estará disponível nas livrarias na próxima semana, conta com um prefácio de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e um dos mais reputados especialistas portugueses em alterações climáticas. De visita a Lisboa, Videmšek concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM e abordou não só a actual crise ambiental, mas também o eventual iminente fim da democracia no mundo ocidental e a grave crise no jornalismo, que foi observada durante a pandemia de covid-19. Além de jornalista de guerra premiado, Videmšek é tambémembaixador do European Climate Pact da União Europeia na Eslovénia, activista do clima, assessor do presidente da Eslovénia para o Clima, European Young Leader e atleta de ultra-maratonas. Como jornalista, cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998. Especializou-se em refugiados, migração e, mais recentemente, na crise ambiental e nas consequências provocadas pelas alterações climáticas. O reputado jornalista escreve no prestigiado diário esloveno DELO e em várias publicações europeias e norte-americanas. Nesta entrevista, Videmšek não tem papas na língua nem põe paninhos quentes: diz que a era da democracia já acabou e estão a regressar regimes autoritários ao Ocidente; está desapontado com a má qualidade dos media mainstream, que alinharam na propaganda e na cultura de cancelamento, promovendo ‘monotemas’ sucessivos. Defende que “é impossível combater a crise climática sem democracia” e que “todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade”. Até porque “sabemos quem são os grandes emissores” de CO2.
Fez uma grande mudança na sua vida, de repórter de guerra para algo completamente diferente. Foi fácil?
Sim, foi muito fácil fazer a mudança [risos]. Porque, depois de mais de 20 anos a trabalhar como repórter de guerra, quando iniciei este livro e este projecto, pela primeira vez, em muitos anos, senti-me seguro e confortável. Não tinha de me preocupar com a minha segurança, nem de ter constantemente olhos nas costas por causa de questões logísticas para chegar ao fim do dia são e salvo. Para além disso, não houve um desfasamento cognitivo em relação ao tópico, porque é praticamente o mesmo. É sobre crises. Mas esta é, na minha opinião, de longe, a crise mais importante, não só para o nosso tempo como para as gerações vindouras. Portanto, a abordagem foi mais ou menos a mesma, mas claro, sem a preocupação com a segurança. Foi simplesmente ir a sítios, falar com as pessoas e pesquisar – com tempo e recursos limitados, claro. A última parte do livro foi escrita já durante a crise da covid-19 e isso acabou por alterar o conteúdo. Alguns capítulos não ficaram, porque foi impossível viajar a partir de Março de 2020.
Boštjan Videmšek, na Estufa Fria, em Lisboa, durante a entrevista ao PÁGINA UM. (Foto: Paulo Alexandrino)
Então, sobrou material para um novo livro…
Sim, já está disponível em The Last Two – Os dois últimos rinocerontes brancos do Norte e as espécies funcionalmente extintas –, que é um livro sobre salvar as espécies e é muito parecido com Plan B: How Not to Lose Hope in the Times of Climate Crisis. É muito virado para soluções e respostas. Claro, questiona constantemente, mas também dá respostas. Penso que se tivermos experiência suficiente, conhecimento, tempo no terreno, jornalistas para falar com o público e canais abertos para contar as histórias… se somos reconhecidos publicamente como contadores de histórias, então temos a responsabilidade de oferecer também respostas e soluções, e não apenas perguntas. E essa é a principal premissa ou lógica por trás de Plan B e de The Last Two.
Foi desafiante planear e materializar o livro, logisticamente?
Depois de 20 anos a ser repórter de guerra, tudo é fácil. Passei para uma zona de conforto. Comparando com a experiência anterior, foi como passar de maratonista para ter um trabalho tranquilo à tardinha. Muito mais fácil. Claro que envolveu muitas viagens, e tudo o mais… Mas já não estava num cenário onde as pessoas poderiam querer matar-me! Foi do género: “boa, aqui ninguém me vai dar um tiro! Até me recebem bem!”. Houve alguns casos estranhos em que não fui tão bem-vindo, mas faz parte do trabalho. Se tivermos motivação suficiente, as coisas são fáceis. E se estivermos seguros a trabalhar. No livro, as fotografias, tiradas pelo co-autor, Matjaž Krivic, são de uma beleza incrível. Visitámos sítios muito bonitos. E é gratificante, depois de ver tantas áreas destruídas, cidades arrasadas e caixões, poder ver falésias na Noruega, ilhas incríveis… é completamente diferente.
Um alívio, portanto…
Tenho que dizer que, para mim, pessoalmente, e também como jornalista, foi um escape gigante. Não foi meramente uma decisão profissional, também foi uma necessidade de fazer algo mais calmo. Contudo, falar de escapismo e relaxamento no contexto de uma crise climática é uma grande ambiguidade ética. Por isso, aqui estamos nós numa dissonância cognitiva, que é omnipresente. Especialmente agora, que o foco mudou e foi totalmente destruído. Porque saltámos de um tema para o outro: primeiro, foi a covid-19; depois, a guerra na Ucrânia; e, este ano, está a ser o mais quente e seco. Ontem, no meu país, Eslovénia, tivemos uma temperatura média, durante o dia, de 26.1 graus Celsius. E estamos a falar da Europa Central. Ainda esta manhã, estava a ler as notícias da Grécia, que é o meu segundo país, e as manchetes diziam: “25 graus no início de Novembro”! Isto é um problema. Nós vemos estas temperaturas como uma coisa agradável: assim podemos ir à praia. Mas, na verdade, devíamos estar profundamente preocupados. As mudanças estão a acontecer tão rapidamente que nem conseguimos compreendê-las, e não me refiro só às alterações climáticas. Evolutivamente, não estamos adaptados para estas mudanças, o nosso ADN não é capaz. E é por isso que parecemos tão estúpidos, como espécie.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Há décadas que ouvimos falar de uma crise climática, da necessidade de proteger o ambiente, e da poluição, especialmente em países pobres. E também do problema do desperdício. Mas não temos visto grandes mudanças no que toca às políticas. O que é que o leva a crer que será possível fazer algo e conciliando a salvaguarda da democracia e dos direitos humanos com o ambiente e a economia?
Já deu a resposta: é impossível combater a crise climática sem democracia, sem o conceito de direitos humanos e justiça climática. É completamente impossível abordar esta crise alarmante sem a chamada culpa de primeiro mundo, sem responsabilidade… Alguns são mais culpados do que outros, mas todos sofremos as consequências – oficialmente, diz-se que todos sofremos de igual modo, mas não é verdade. É impossível descrever o sofrimento em Sahel, por exemplo, ou das Ilhas baixas do Pacífico. Para nós, que estamos em Viena ou em Lisboa, a situação não é igual. Para nós, o tempo está um pouco mais quente e seco – vai piorar ainda mais, é claro –, mas neste momento ainda estamos numa zona de conforto. Várias partes do mundo já estão a viver aquilo que vai ser o futuro do clima. E este devia ser o nosso principal foco. Mas, ao vermos o que está a acontecer, não estamos a reagir porque ainda existe uma réstia de “pensamento mágico”, de romanticismo e de acreditar que “tudo vai ficar bem”. Mas que raio? Não, não vai ficar tudo bem!
Já existe muita informação, há décadas, mas falta acção.
Temos todos os dados e relatórios a dizer que estamos à beira de um grande colapso. Os últimos relatórios de várias agências das Nações Unidas, da semana passada, dizem exactamente isso. É praticamente impossível atingirmos o objectivo dos 1.5 graus. A este ritmo, estamos a caminho de um aumento global da temperatura entre 2.5 a 2.7 graus, e isso já significa um colapso climático total. E, OK, temos o novo Green Deal e o European Climate Pact, mas é “dinheiro de helicóptero”, foi durante a covid-19 e agora já está meio esquecido, e voltámos aos combustíveis fósseis. O gás natural, que é a principal arma de Vladimir Putin, foi escolhido como o “substituto verde” pela União Europeia, a par com a energia nuclear! Se esta é a solução, então estamos mesmo tramados. Irremediavelmente tramados. E merecemos estar.
Sobretudo, porque existem tecnologias, energias “limpas” que podemos usar.
Sim. Está tudo ao nosso dispor, a tecnologia já nem é uma questão. A energia solar é 10 vezes mais barata e eficiente do que era há 10 anos atrás. A energia eólica… Claro que todas estas tecnologias têm efeitos colaterais, mas nós não estamos em posição de arranjar problemas para todas as soluções. Porque é muito fácil, na nossa zona de conforto, dizer que esta ou aquela solução não são boas o suficiente. Mas isto é uma guerra, e em tempo de guerra não se limpam armas. E toda a gente tem de estar envolvido, até os “culpados” e as grandes corporações.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Para mim, que nasci nos anos 70, começar agora a ver-se defender a energia nuclear é um choque total, porque não era algo em que pensássemos, as pessoas da minha geração. E, ainda mais, com a tecnologia que temos hoje. Como é que vê esta solução que está a ser posta em cima da mesa?
Já foi posta em cima da mesa há anos atrás. Não podemos esquecer que França, por exemplo, sempre esteve muito virada para a energia nuclear. Tal como os Estados Unidos, a Coreia do Sul… os pequenos reactores nucleares são um grande negócio, agora. Não me surpreende, porque nós estamos sempre à procura de soluções rápidas. E há os lobbies nucleares. Dizer que é baixo em emissões, é verdade, mas não é de baixo risco. Falar-se em baixo risco no que diz respeito à energia nuclear é preocupante; e os resíduos radioactivos… Na União Europeia, a Alemanha foi sempre a protagonista das políticas verdes. E agora, os Verdes alemães estão a pedir o retorno do carvão a apoiar totalmente a venda de armas. Claro, a Ucrânia precisa de armas, mas temos que salientar que o partido verde mais importante da Europa foi formado numa perspectiva anti-nuclear e anti-guerra e agora estão a fazer tudo ao contrário. Quer dizer, as coisas mudaram. E não haveria Ursula Von der Leyen [na presidência da Comissão Europeia] só não fosse Ska Keller [deputada no Parlamento Europeu] e ‘Os Verdes’ europeus. Isso foi um grande sucesso para os Verdes na Europa, mas onde é que eles estão agora?
Outra coisa que me espantou tem a ver com os carros eléctricos na Europa. Porque, para mim, o que faria sentido seria investir nos transportes públicos e reduzir o número de carros a circular. Mas as políticas dizem que as pessoas têm que substituir o seu carro por um eléctrico, o que significa mais desperdício, para além de implicar a produção de baterias, que é algo que não sabemos como é que podemos reciclar. Comprar um novo carro será a solução? Como é que se pede aos cidadãos para mudarem de hábitos, quando se continua a priorizar o consumo e o lucro das empresas?
Concordo em absoluto com o que disse. É assim que penso também [pausa]. A solução é menos, e não mais, claro! Há vários problemas da mobilidade eléctrica que não estão a ser abordados. Para mim, a questão principal é de onde vem a electricidade. Se vier de centrais eléctricas a carvão ou de energia nuclear, então, é contraproducente. Depois, claro, há o preço. O preço de uma grama de lítio aumentou em 400% no último ano. E isso afecta directamente o preço de um carro eléctrico, cujo custo principal é o da bateria. Os carros eléctricos não estão ao alcance de toda a gente, são caros. É verdade que depois a manutenção é praticamente zero e implica menos gastos, mas em tempos de crise – e vivemos em tempos de crise sob todos os prismas possíveis –, as pessoas não vão optar por um carro eléctrico quando têm de se preocupar em como vão manter as suas casas. É uma má altura para fazer a transição, eu diria.
Então, não são uma solução…
Por outro lado, as grandes petrolíferas estão a viver o melhor momento das suas vidas. A Shell e a Total Energies quase duplicaram os seus lucros nos últimos três meses. Ambas tiveram um lucro de 10 mil milhões de dólares, o que é um recorde absolutamente histórico. E toda a indústria fóssil arrecadou 4 biliões de dólares nos primeiros nove meses deste ano. É o valor mais alto de sempre. Os combustíveis fósseis são os únicos vencedores do conflito russo-ucraniano, e não é apenas no curto prazo. Antes da pandemia, já se conseguia sentir e ver uma transição na União Europeia, com as políticas verdes, havia muito dinheiro a ser alocado… Depois, tivemos Joe Biden a tornar-se presidente, e o New Deal americano. Havia uma ideia de que esta transição podia resultar. Mas nós perdemos o foco com a pandemia, que passou a ser o monotema, e agora temos o monotema da guerra. E eu acho que a crise climática vai dominar as nossas vidas, mas nós não vamos dominar as políticas.
(Foto: Paulo Alexandrino)
Sobretudo, porque os governos, como em Portugal, estão a lucrar com o enorme consumo de combustíveis, por exemplo, e não querem abdicar disso. Os políticos não ganham com o abdicar disso.
Depois de termos tido o ano mais quente na História, não sei o que mais precisamos de saber ou de ver…
Mencionou o lítio. Em Portugal, temos algumas empresas que querem iniciar essas explorações, mas não é fácil, devido aos impactos nas populações e na vida animal. Qual é a sua visão sobre isso. Pensa que pode ser uma solução?
O projeto de exploração de lítio que é abordado no livro, que fica na Bolívia… as duas principais fontes de água foram privatizadas por empresas chinesas que estão lá a trabalhar. Temos estas histórias más sobre o lítio por todo o mundo. Acho que o que se passa na Sérvia também é semelhante com o caso de Portugal: quiseram fazer explorações de lítio mas as populações contestaram. Vemos que esse ativismo na Sérvia foi forte e eu gosto disso, as pessoas não foram na “conversa” porque sabem que não ganham muito com esta transição para a mobilidade eléctrica. Mas há poucos casos assim. O maior problema é que, neste momento, cerca de 70% do fornecimento de lítio é controlado pela China. Portanto, não se trata de uma preocupação ecológica ou ambiental, mas política. A China está a controlar o mercado do lítio. Nestes primeiros estágios de uma Nova Ordem Mundial, isto pode afectar as nossas vidas a todos níveis e não só em termos da mobilidade eléctrica, porque o lítio está presente em todos os nossos aparelhos electrónicos. A história dos chips e de Taiwan… Parece que toda a tecnologia está dependente do que se produz em apenas um ou dois sítios. A globalização tem efeitos colaterais e está a atuar em reverso agora. Vivemos tempos muito interessantes. Este livro foi escrito há dois anos e não o considero muito atualizado em alguns aspectos. Claro que foi escrito na altura em que foi e está feito, mas, sob a perspectiva actual, mudaria certas coisas que escrevi. Eu não tinha como prever a covid-19, nem a questão dos chips. A transição tecnológica agora está num intervalo, e veremos se haverá uma segunda parte.
Boštjan Videmšek e o fotógrafo Matjaz Krivic, co-autores das reportagens que integram o livro Plano B.
E a pandemia trouxe a questão da produção local de bens. Na União Europeia, devem ter percebido que, se calhar, deviam produzir certos produtos, porque seria melhor para o ambiente e também para a economia. Seria mais sustentável e seguro.
Sim, é por isso que eu digo que a globalização está a reverter-se, porque atingiu um limite e agora está a voltar para trás de algum modo… Mas não de um modo “Make America Great Again”. É um processo natural.
Acredita que os cidadãos podem fazer muito pelo ambiente, quando temos políticos a dar licenças a explorações de lítio, e a dar incentivos que beneficiam as indústrias para produzir carros eléctricos…?
Acredito que todos podem mudar individualmente, mas que pôr a responsabilidade em cada indivíduo é um crime contra a humanidade. Porque sabemos quem são os grandes emissores, e isto de colocar a culpa nos cidadãos… livro Climate Crisis que explica perfeitamente bem como, por exemplo, o lobby do tabaco, através de publicidade, colocou a culpa nas pessoas por fumarem. Primeiro viciaram as pessoas e, depois, é que colocaram o alerta “fumar mata” nos maços, dizendo que era uma escolha que elas faziam. É muito parecido com o que acontece com outras indústrias e com a crise climática, e são indústrias tão poderosas que não podemos fazer nada, é maior do que nós. Isto cria uma ansiedade colectiva e individual, e é a melhor coisa para o status quo.
Em Portugal, durante e depois da pandemia, as grandes empresas cotadas na bolsa tiveram lucros astronómicos. E foi assim em todo o mundo. Portanto, não parece que estamos numa crise económica, de todo. E mencionou o vício e o tabaco, mas o consumismo também é um vício. Tudo isto é algo difícil com que se lidar…
Na minha opinião, o maior desafio é que a tecnologia e as redes sociais reduziram o nosso limiar de atenção. Porque, para fazermos alguma coisa e empreendermos uma mudança, precisamos de foco. O foco é necessário para tudo, desde o amor à criação, e nós não temos.
E a nossa responsabilidade enquanto jornalistas? Porque eu sou jornalista há mais de duas décadas e fiquei muito desapontada com o trabalho dos media, especialmente durante a pandemia. Para mim, foi terrível. E o mesmo com a guerra na Ucrânia… sobretudo os media mainstream, alinham na propaganda e na narrativa dos políticos.
Concordo absolutamente.
O que é que nós, jornalistas em todo o mundo, podemos fazer para transmitir a mensagem de que esta é uma crise real e que tem de ser resolvida?
Primeiro, não podemos fazer cedências a ninguém, nem aos editores nem aos diretores. Se não resultar, paciência. E nunca fazermos de nós a estrela, nesta era da ditadura do eu. Temos que usar o plural tanto quanto possível, para apelar ao conceito de sociedade e de solidariedade. E isso significa estar no terreno com as pessoas, seja na Ucrânia ou num hospital em Bujan. Na minha opinião, temos de estar fisicamente presentes, porque se não estivermos, não pode haver credibilidade. E isso implica correr riscos profissionais, económicos e sociais. Até mesmo culturais, riscos muito pessoais, em que sabemos que, à partida, nestes tempos de opiniões rápidas e de glorificação instantânea, o trabalho de duas ou três semanas de investigação não pode competir com a opinião de trolls. Temos de ignorar isso.
Matjaz Krivic e Boštjan Videmšek
Pensa que a democracia pode ficar em risco mediante algumas medidas que possam ser implementadas para alegadamente combater a crise climática e ambiental? Em muitos países, incluindo países da União Europeia, como Portugal, vimos políticos a aproveitar para reforçarem poderes com a desculpa da covid-19 e a democracia foi afetada em muitos países, como Portugal.
De forma irreversível.
Qual é a sua perspectiva sobre este tema?
Espero que a covid-19 não tenha sido um ensaio. E vivemos tempos que que os regimes totalitários e autoritários estão a regressar. Consegue-se sentir. É extremamente perigoso. A ideia de que boas coisas estão a acontecer na China que afectaram muito a mentalidade ocidental. E temos que admitir que a janela de sociedades abertas, da democracia, das sociedades liberais, é muito pequena. Desde o final da Segunda Guerra Mundial… No meu país, a Eslovénia, é um período de 32, 33 anos. É um período histórico muito curto. Não é a única verdade sobre quem somos. Talvez estes regimes autoritários que estão a voltar a estar vivos de novo, estão mais enraizados do que estamos preparados para admitir. Voltando para a pergunta sobre a situação atual no Jornalismo, estamos na linha da frente para lutar por uma sociedade livre e aberta e para educar. Está completamente certa sobre o que aconteceu na pandemia e aceitámos esta uniforme – não verdadeira – narrativa. Nós (jornalistas) não fizemos perguntas suficientes e, definitivamente, não fizemos as perguntas certas. Por outro lado, sobre a guerra na Ucrânia, com a crise climática, é similar.
E tivemos censura, com cientistas de topo. Pode, de novo – como foi na pandemia de covid-19 –, a Ciência ser desviada por visões ideológicas e políticas no combate à crise climática, no futuro?
Vejo muito disso. Penso que algo horrível está a acontecer. No meio científico. Penso que as redes sociais, através de algoritmos, temos agora a narrativa anti-crise climática a regressar. A solução é uma auto-educação muito agressiva. Não temos tempo agora. É uma batalha, é uma guerra.
Boštjan Videmšek, à esquerda, no Iraque, em 2006. Ao centro, o seu melhor amigo, o jornalista David Beriain, que foi morto no Burkina Faso em 2021. (Foto: Jure Eržen)
Com as medidas implementadas na covid-19, os jornalistas fizeram o oposto, na minha óptica, especialmente sobre a vacinação obrigatória, com os confinamentos, porque existiam cientistas a fazer alertas para os riscos e a apontar que não havia soluções rápidas e fáceis. Muitos media alinharam com a censura, até aos dias de hoje.
E a cultura de cancelamento. E também aconteceu no mundo académico.
Podemos ter a verdadeira Ciência de volta, a racionalidade de volta, e o Jornalismo verdadeiro de volta? Ou vamos permanecer neste lodo?
Não quero mentir. Nesta altura não estou realmente optimista. Sobretudo com a guerra na Ucrânia, o que vejo é que a empatia, a solidariedade, o interesse humano, já não existe. Por outro lado, por exemplo, o Iémen saiu completamente do mapa. Penso que o que aconteceu na covid-19 foi – o que chamo no meu novo livro – a “Revolução Anti-social”. Este é o sucesso de toda a ambição totalitária. É uma prenda para os opressores porque é necessária a sociedade, a solidariedade, para se lutar. Durante a covid-19, vimos a loucura global e, ao nível político, o que vejo é a vontade cada vez maior de oprimir e oprimir cada vez mais. Penso que a era da democracia está praticamente no fim.
A psicóloga Laura Sanches foi, durante a pandemia, uma das vozes mais activas em defesa das crianças e de medidas baseadas na evidência. Esteve contra restrições prejudiciais para as crianças, como o encerramento de escolas e a imposição do uso de máscaras. A Ciência deu-lhe razão, mas continua, ainda hoje, a enfrentar dois processos na Ordem dos Psicólogos, devido a duas denúncias, uma das quais que a acusa de afirmações que nem fez. Apesar disso, a Ordem abriu-lhe um processo na mesma. O seu activismo não espanta: é filha da magistrada Maria José Morgado, rosto do combate ao crime e à corrupção em Portugal, e do fiscalista Saldanha Sanches, falecido em 2010. Nesta entrevista intimista ao PÁGINA UM, também realizada a pretexto do livro que publicou recentemente, Como educar crianças desafiantes, Laura Sanches fala dos muitos desafios que as mães e os pais enfrentam, nos dias de hoje, e ainda aborda a sua decisão de adoptar um estilo de vida mais equilibrado e saudável, que lhe permite acompanhar de perto os filhos.
Existe a máxima de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Pareces ser alguém que segue mesmo essa máxima. É mesmo assim?
Sim, eu acho que tento fazer aquilo que prego, como se costuma dizer. E sim, tento tomar todas as opções que, no fundo, acho que me trazem mais qualidade de vida e que poderiam contribuir também para a qualidade de vida dos outros.
Trabalhas na cidade, mas tens um estilo de vida que procura ser mais equilibrado e sustentável, não é?
Sim, as escolhas que fiz… Aliás, eu venho a pé para o trabalho, porque consigo, tenho esse privilégio. Também tive algumas vantagens que me permitiram construir isso, obviamente. Mas todas as opções que fiz também foram em função de conseguir manter isso. Sempre tive consciência que não queria trabalhar por conta de outrem, porque uma das coisas que era importante para mim era estar com os meus filhos em casa. E consegui realmente ficar com o primeiro até aos três anos e com o segundo até aos quatro. Porque tenho essa vantagem, também porque o meu marido consegue articular os horários dele com os meus e, portanto, ou ficava um ou o outro; fomos sempre conseguindo organizar-nos nesse sentido. E isso realmente é uma coisa que eu sempre tive muita consciência, que queria fazer, e felizmente tive essa possibilidade.
E isso interferiu com objectivos profissionais e de carreira?
Sim, atrasou umas coisas [risos]. Mas isso faz parte, não é? Eu, por exemplo, tive duas gravidezes muito difíceis, com enjoos, portanto, foram alturas em que eu fiquei quase completamente parada. Com o meu primeiro filho, consegui estar mais de um ano sem trabalhar mesmo, sem fazer absolutamente nada. Nada, quer dizer, cuidava dele, que já é muito [risos].
Ou seja, na altura não tinhas rendimento.
Sim, tive essa possibilidade. Obviamente, isso depois tem algumas consequências económicas, e não só. Mesmo escrever, por exemplo, eu gostava de escrever muito mais, e às vezes era impossível, o tempo não chega para tudo. Mas eu acho que são opções que, no fim da vida, são as correctas para mim, pelo menos [risos].
E tu, como mãe, estás satisfeita por teres tomado essa decisão. Como profissional e psicóloga, tu vês que, de facto, foi uma boa opção, e sentes que mais mulheres gostariam de ter essa possibilidade?
Sim, sim. A mim, chegam-me muitas mães que conseguiram fazer essa opção – por vezes, lá está, com grandes custos financeiros e até emocionais, porque, apesar de tudo eu tive muita sorte em conseguir articular tudo com o meu marido e, portanto, nunca fiquei completamente isolada. E aquilo que eu vejo é que há muitas mulheres que realmente fazem essa escolha, e que têm de optar entre a carreira e o ficar com os filhos, mas há um lado da vida delas que fica para trás. Eu nunca precisei de fazer isso, porque voltei a trabalhar quando quis. Enquanto eles eram pequeninos, ia trabalhando menos, mas ia trabalhando. Mas há pessoas que têm de desistir completamente, e isso é um peso muito grande. A forma como organizamos a vida, hoje em dia, põe sobretudo em cima das mulheres a escolha entre os filhos e o trabalho. Na maior parte dos casos, não dá para conciliar as duas coisas, e há mulheres que sofrem muito com isso.
E isso depois vê-se na forma como vivem a maternidade e no relacionamento que têm com os filhos?
Claro, porque a certa altura, há mães que ficam completamente esgotadas, cansadas, deprimidas, por só estarem a cuidar dos filhos. Naturalmente, estão menos disponíveis. Antigamente, as coisas eram feitas com muito mais harmonia, num certo ponto de vista. Em alguns aspectos eram muito mais difíceis, mas noutros aspectos, apesar de tudo, havia uma comunidade que suportava as crianças. As mães iam voltando aos seus afazeres com muito mais naturalidade, à medida que os filhos também iam procurando mais essa presença e apoio da comunidade. Essa comunidade perdeu-se. Temos mulheres que ficam isoladas no seu apartamento o dia inteiro, com o marido que chega a casa às 20 horas, com quem às vezes já nem conseguem comunicar, porque estão ali submersas naquele mundo solitário que, hoje, é a maternidade. Estão tão desesperadas quando o marido chega. Por vezes isso também põe um peso tremendo no casal. E, claro, depois as crianças também sofrem, porque têm uma mãe muito mais cansada e menos disponível, esgotada.
E nas empresas, sentes que tem havido uma mudança? Porque houve uma época em que as empresas tinham creches para os filhos dos trabalhadores, mas parece ter havido um retrocesso. Vês algumas mudanças que possam permitir que mulheres que trabalhem a tempo inteiro, tenham uma forma de estar mais com os filhos?
Sim e não. Na verdade, eu contacto com uma população muito privilegiada. As mães que me chegam tiveram, apesar de tudo, possibilidade financeira de optar por ficar com os filhos e, portanto, enfim, são uma fatia privilegiada da população. Eu vejo realmente cada vez mais mães a tirarem uma licença sem vencimento de dois anos, que é aquilo que é permitido, para poderem estar esse tempo com os filhos. Às vezes, isso tem consequências no regresso ao trabalho. Nem todas as empresas encaram essa opção de ânimo leve. Mas quero acreditar que sim, que apesar de tudo, está a haver alguma mudança. Já vou tendo cada vez mais mães que conseguem ir mantendo aquele horário reduzido, porque antigamente conhecia muitos casos de mulheres que sofriam grandes pressões por quererem trabalhar apenas seis horas diárias, enquanto os filhos eram bebés. Agora, até já conheço casos de mães com crianças que já têm mais de um ou dois anos – porque enquanto a mãe está a amamentar a lei permite essa redução de horário – e, de facto, há empresas onde isso já vai sendo aceite, embora muitas vezes aquilo que as mães me transmitem é que nessas seis horas têm de fazer o mesmo trabalho que fazem nas oito! Não sabem muito bem como [risos], mas enfim, têm de espremer ali tudo, porque a responsabilidade não lhes é tirada, não é? É esperado o mesmo delas. Mas, pelo menos, isso já vai sendo permitido. Se calhar, há uns dez anos atrás, nem isso era. Por isso, eu acho que há um progresso, mas ainda pouco para aquilo que era preciso.
A pandemia introduziu medidas, como o teletrabalho, que, apesar de tudo, ajudam os pais e mães que queiram acompanhar mais de perto os filhos. Vês essa mudança como positiva?
Sim e não, depende muito dos casos. Ou seja, em alguns casos, por exemplo pessoas que tenham que fazer uma deslocação grande até ao local de trabalho, é positivo, pois ganham ali às vezes até duas horas por dia. Com o tempo que as pessoas perdiam, isso sim, é excelente, claro que sim. E até há casos em que lhes dá mais margem de manobra nos horários, porque não têm de estar na empresa a uma determinada hora, e isso é uma vantagem. Por outro lado, também se cria a ilusão de que, por exemplo, se a pessoa está em teletrabalho e o filho está doente, não tem desculpa para não trabalhar, porque estão ambos em casa. E, realmente, cuidar de crianças pequenas e trabalhar… E depois o que acontece é que as mães fazem esse trabalho à noite, quando as crianças estão a dormir, com grande peso para a sua saúde mental e física.
Para as crianças, tu vês uma diferença significativa quando têm a possibilidade de ter um dos progenitores a acompanhá-los durante os primeiros anos, em casa, em comparação com as outras, que têm de passar às vezes 10 horas numa creche ou numa escola?
Sim. Mas também depende das escolas. É muito importante para as crianças conseguirem ter essa presença dos pais sobretudo nos primeiros tempos de vida. Nós temos, enfim, problemas que, se calhar, não precisariam de existir se os pais tivessem maior disponibilidade para estar com os filhos. Em Portugal temos um grave problema: somos o país da Europa onde as crianças passam mais tempo na creche. Há crianças de um ano a passarem 10 horas na creche, e isso não é bom.
Que tipo de vínculo as crianças podem criar com os pais quando passam 10 horas num local em que eles não estão?
Há um autor que eu cito sempre, que é o Gordon Neufeld, e que tem um conceito que é muito relevante para esses casos: o conceito da orientação para os pares. O que ele diz basicamente é que as crianças nascem com esta grande necessidade de construir vínculos, de criar relações. E, à partida, essas relações devem criar-se com um adulto, mas para isso o adulto tem de estar presente e disponível. Algo que nas escolas nem sempre é possível, porque com crianças pequenas, se há muitas crianças para um adulto, é impossível o adulto responder a todas as solicitações. E aí quem acaba por estar mais disponível são as outras crianças. E então gera-se aquilo que se chama a orientação para os pares, que significa que passam a ser os outros jovens – isto vê-se muito na adolescência – a grande referência daquele jovem ou daquela criança. E isto vem com uma série de problemas, porque para já, um jovem não é um bom modelo para outro jovem, não é? Hoje em dia nós até vemos que os ídolos da juventude são outros adolescentes. E isto não é um bom modelo de desenvolvimento, porque um adolescente também ainda é imaturo, naturalmente. É suposto que os jovens admirem os adultos, para quererem ser como eles, de certo modo. Se eles vão admirar outros que são tão imaturos como eles, não se ganha muito em termos de desenvolvimento. E depois, por outro lado, os jovens e as crianças nunca podem ser uma boa base de segurança para outras crianças. As crianças até dizem muito: já não és meu amigo, já não gosto de ti, já não vou brincar contigo. O que é que isto faz? Vai provocando algumas feridas, e se aquela criança é a pessoa mais importante da minha vida, vou ter de começar a adoptar uma série de comportamentos defensivos para que aquilo não me magoe tanto. E depois, ao mesmo tempo, isto também faz com que se crie uma distância entre o jovem ou a criança e o adulto, sendo que são os adultos que têm capacidade para ajudar a criança ou o jovem a lidar com as suas emoções, enfim, a sentir-se minimamente seguro. E depois dá origem àquele comportamento, que hoje se ouve muito, de que os jovens já não respeitam os adultos. Nas escolas, um dos grandes problemas é que já ninguém respeita os professores. E é verdade, porque quando o adulto deixa de ser uma referência, eu já não quero agradar ao adulto, quero é agradar aos meus colegas. Quero lá saber do que o professor pensa! E aí gera-se toda uma série de comportamentos… Até aqueles vídeos que eles põem no Youtube, que nós não percebemos. Mas por que raio alguém quer filmar uma coisa destas e pôr no Youtube? Porque agrada aos outros jovens, eles já não estão a tentar agradar aos adultos, não é? A referência deles já não são os adultos, são outros jovens. E isso dá origem a uma série de comportamentos que são prejudiciais.
Ou seja, passou-se do 8 para o 80. Na minha geração, por vezes temíamos os adultos. Era um querer agradar para não ser castigado. E hoje nem se teme, nem se respeita.
Exactamente. Este autor até diz que começou mais ou menos nos anos 60 ou 70 do século passado, este fenómeno de orientação para os pares assim em peso, e agora temos, pela primeira vez, uma geração em que a maioria está completamente orientada para os pares. Antigamente, havia esse problema, por vezes com peso excessivo, da autoridade. Mas, apesar de tudo, isso também tinha alguns benefícios e algumas vantagens. De facto, passámos para o outro extremo, e isso não é bom.
Em termos civilizacionais, estamos a caminhar para uma sociedade mais ou menos orientada para a família? Como é que vês a evolução, sentes-te optimista?
Eu sou optimista sempre. Às vezes digo que sou uma optimista incorrigível [risos]. Tenho esperança que as coisas melhorem, e que a sociedade se torne mais orientada para a família, porque estamos a começar a perceber os problemas de não o sermos. Neste momento, não somos. Somos uma sociedade orientada para os pares; até nós, adultos, já crescemos muitos de nós nessa cultura de orientação para os pares. Hoje, temos adultos que preferem passar tempo com os seus pares do que estar em família e a educar os filhos. A realidade é esta, neste momento. E isso, de facto, não é positivo.
Então, de onde é que vem o teu optimismo?
Porque, pela primeira vez, também estamos a reconhecer esse problema. Ou seja, foi preciso reconhecer que descarrilámos em algumas coisas; noutras coisas também ganhámos, obviamente. Antes, as mulheres não tinham opção de escolher uma carreira sequer; agora sim, e isso é uma coisa positiva. Não quero que as mães voltem todas para casa outra vez sem opção. Mas, de qualquer forma, acho que estamos a começar a perceber também muitas das coisas que se perderam; e a ter essa capacidade de perceber que nos desviámos e descarrilámos em algumas coisas. E, portanto, se calhar há algumas coisas que precisam de ser recuperadas, e há outras que não, que ficaram para trás e que não fazem falta nenhuma.
Mas se calhar também caminhamos para isso porque muitas pessoas, sobretudo nos últimos anos, se despediram, simplesmente porque perceberam que querem ter outro estilo de vida. Vês que em Portugal há esse movimento ou sentes que é do lado das empresas que há mudanças?
Tenho mais consciência do que se passa com as pessoas do que propriamente com as empresas. Mas, de facto, aquilo que eu vejo é as pessoas muito insatisfeitas com este modelo clássico de trabalhar, ganhar dinheiro… As pessoas já procuram mais, querem outras coisas. Estão mais insatisfeitas nesse papel, e julgo que isso também vai originar alguma mudança, as empresas terão de se adaptar. Agora, eu acho que aqui em Portugal há um problema grave: as pessoas têm poucos meios financeiros para fazer mudanças reais na sua vida. A nossa margem de manobra é muito curta em relação a outros países, onde existem mais apoios. Aqui, apesar de tudo, a maior parte das pessoas ainda está a tentar pôr comida na mesa no fim do mês. Portanto, isto também limita a capacidade de pensarmos um bocadinho mais além.
Há pouco referiste a importância de jovens e crianças terem modelos nos adultos. Acontece que temos também adultos muito doentes em termos psicológicos e emocionais. Como vês essa situação? Temos adultos disponíveis para serem modelos e exemplos para os mais jovens?
Se calhar também não temos muitos, não é? Se calhar, porque muitos de nós já crescemos nessa sociedade de orientação para os pares. Aliás, isso viu-se nesta história toda da covid-19. As crianças não foram protegidas, foram atiradas para a linha da frente. A realidade é essa. As crianças tinham de ficar quietinhas para não matarem os avós.
E com máscara.
Exactamente. Não houve preocupação com o impacto que isto ia ter em seres que são mais frágeis, porque estão em desenvolvimento, e não lidam com as coisas da mesma maneira que um adulto. Um adulto até pode cumprir determinadas medidas, sem isso ter um grande peso na sua vida, mas numa criança a mesma medida pode ter um peso brutal. Não houve essa capacidade de dizer: ok, vamos criar algumas medidas para os adultos, se for necessário, e vamos proteger as crianças. Não, o que se disse foi que as crianças tinham de salvar os avós. E a questão até mais chocante de todas se calhar até é a das vacinas, na forma como as crianças foram vacinadas. Em Portugal, felizmente, que eu saiba, a maior parte [menores de 12 anos] não foi, mas a ideia era que as crianças deviam ser vacinadas para uma coisa que não as punha em risco, só para protegerem os adultos. Depois, soube-se que não protegiam nada; mas, enfim, era isso que constava. Portanto, isto é revelador de uma sociedade que não está bem; que está já a deixar de estar em contacto com os seus valores, porque é fruto de uma sociedade orientada para os pares. Uma sociedade que está bem, e em contacto com os seus valores, sabe que precisa de proteger as crianças antes de qualquer outra coisa. As crianças deveriam ser prioritárias. Em todas as medidas, o seu bem-estar devia ser o primeiro a ter-se em conta, e isso não aconteceu.
Houve então uma inversão de valores? Porque numa sociedade saudável, não deviam ser as crianças a proteger os adultos, mas sim o contrário…
Exactamente, porque desde o início que se sabia que as crianças seriam muito pouco afectadas pelo vírus em si; havia era o debate sobre se as crianças podiam transmitir aos adultos, e muita gente que dizia que não, que as crianças nem sequer eram grandes transmissoras. Mas, no entanto, havia toda esta ideia de que se as escolas estivessem abertas, e se as crianças vivessem livremente, trariam o vírus para casa e depois os mais velhos seriam afectados. E, de facto, isso é sinal de uma sociedade que não está muito saudável. A partir do momento em que nós sabemos que há coisas que fazem falta na vida das crianças, que lhes podem deixar marcas…
Aliás, saíram agora notícias que apontam que pessoas morreram devido aos confinamentos, e que, no caso das crianças e jovens, há uma epidemia de saúde mental, para além de tudo o que perderam, em termos sociais e de aulas.
Sim. Eu ainda ouço constantemente pessoas que vêm à consulta das crianças, que têm este ou aquele problema e depois dizem:”Ah, ela também nasceu no meio da pandemia…”. Pois, claro, houve crianças que passaram os dois primeiros anos das suas vidas completamente isoladas.
Não é algo que te revolta? Porque, de facto, as crianças na Suécia tiveram a benção de estar na Suécia, e de não ter sofrido o que as portuguesas sofreram.
Eu acho que nos países nórdicos, em geral, e também na Noruega, há uma outra capacidade de proteger as crianças. São países que até têm já licenças de maternidade um bocadinho mais prolongadas.
Ou seja, já têm uma cultura voltada para a proteção da família e das crianças…
Eu acredito que sim; há um bocadinho mais essa valorização.
Aqui não se valorizam as crianças e os jovens?
Neste caso, eu sinto que não se valorizaram muito, de facto. A partir do momento em que nós temos este problema de ter crianças pequeninas que passam 10 horas ou mais por dia na creche, realmente temos de dizer que não há uma grande valorização da infância. Nos países nórdicos, os pais saem mais cedo do trabalho, vão buscar as crianças à escola. Nós aqui, o normal é vermos os pais a irem buscar as crianças às 19 horas. Isto não é saudável, não é bom para ninguém.
Como jornalista, no início da pandemia, até 2021, senti resistências em poder trabalhar em regime de teletrabalho, quando tinha os filhos muito pequenos, apesar de, muitas vezes, as minhas funções e a tecnologia o possibilitarem. Encontrei uma atitude compreensiva e flexível da parte de alguns editores e directores em relação a poder trabalhar em casa quando os filhos estavam doentes. Era muito difícil conciliar o trabalho a tempo inteiro na redacção com as rotinas da vida familiar. E houve resistência de alguns pares, o que me surpreendeu. Reclamavam se, por exemplo, alguém trabalhava em casa porque um filho estava doente.
É uma coisa que eu ouço muito, de mães que, por exemplo, têm horário reduzido, e que lidam, por vezes, com a pressão dos colegas, porque saem mais cedo e eles ficam lá. Há pessoas que levam isso a mal e ficam chateadas.
Também é um pouco desta cultura, em que a mulher quase é penalizada se está a cuidar de filhos ou se quer ter uma vida familiar.
Da mulher ou do homem. Porque os homens também podiam sair mais cedo e não o fazem porque, de facto, há muito essa pressão. Colocamos muito o trabalho como um valor máximo. Uma pessoa boa é uma pessoa trabalhadora, é uma pessoa que se esforça e que está ali todos os dias… E, realmente, será que isso é o principal?
Ou seja, alguém que gosta de estar com os filhos e que se quer dedicar aos filhos e levá-los ao médico, em vez de ser o avô ou a empregada a levá-los. Essa pessoa é mal vista.
Sim, em Portugal temos muito essa noção. Eu lembro-me até de um estudo, há uns anos, que dizia que em Portugal o part-time é uma coisa muito mal vista. Também com os nossos ordenados, é difícil viver com meio ordenado. Mas a verdade é que, mesmo na mentalidade das pessoas, quem quer trabalhar em part-time é porque é preguiçoso. As próprias empresas não querem contratar ninguém em part-time, porque acham que isso é contratar preguiçosos. Enquanto lá fora, é uma das realidades: quem tem filhos pequenos, às vezes escolhe trabalhar em part-time, justamente para poder acompanhar mais os filhos. E nós cá, nas empresas, nem pensar.
Sim, e apesar da lei prever algumas medidas, há mulheres ou homens que recorrem à lei mas são penalizados nas empresas, e passam a ser tratados como maus trabalhadores. Isso não é justo…
De todo. Nós precisamos de perceber que, para já, quem está em casa a cuidar dos filhos não está de certeza de férias, não é preguiçoso [risos]. Dá trabalho cuidar de uma criança. E sim, precisamos de mudar essa mentalidade.
Como se caminha para mudar estes valores de glorificação do trabalho e de sacrifício 24 horas por dia?
Isso é uma coisa muito portuguesa, aquela ideia de que é preciso estar no escritório das 8 horas da manhã até às 20 horas.
E até pode não se estar a trabalhar…
Exactamente. Por vezes, as pessoas estão lá e não estão a fazer grande coisa. Já tive pessoas que se queixam que estão constantemente a ser interrompidas, porque temos esta cultura de perguntar tudo e marcar reuniões para tudo, e as pessoas sentem que constantemente há interrupções de tudo e mais alguma coisa. Isso é uma coisa muito cultural. Se formos mais para o norte da Europa, já não existe tanto esse problema. As pessoas vão para trabalhar, não vão para conversar ou para conviver, e só estão lá as horas que são necessárias. Aqui, achamos que é preciso dormir no trabalho, quase.
E o optimismo de que falavas há pouco, também é por veres que as novas gerações de pais já têm outra atitude?
Sim, eu acredito que sim. Nunca estivemos tão preocupados com a infância, e com a nossa responsabilidade como pais como hoje em dia. Isso eu acho inquestionável. Agora, até há imensos livros sobre como educar crianças. Por um lado, porque as pessoas também estão muito aflitas, mas também porque, apesar de tudo, têm consciência da sua responsabilidade e do seu papel. Isso, à partida, será bom. Agora, é preciso também que aconteça alguma coisa. Neste momento, acho que ainda estamos, se calhar, um bocadinho na transição de perceber que isto não está a funcionar, mas ainda não somos capazes de perceber o que é que vamos fazer diferente.
E apesar de haver uma muito maior participação da parte dos pais, a esmagadora maioria ainda continua a ser a mulher que trata das refeições, da logística da casa e das crianças.
Sim, e que falta ao trabalho quando as crianças estão doentes, por exemplo. Eu já ouvi mães que me dizem que o marido até ficava em casa, mas depois chega ao trabalho e perguntam-lhe porque é que não é a mulher a ficar. Quer dizer, isso não pode ser …
Pois, é a questão cultural. E tu publicaste agora um livro, Como educar crianças desafiantes. Existem crianças desafiantes ou pais desafiantes?
Porque muitas vezes se leva crianças ao psicólogo, porque têm problemas e mau comportamento na escola, e quando se vai a ver, o problema está mesmo é nos pais.
Exactamente, está na dinâmica que se gerou. Na verdade, aquilo que eu procuro fazer no livro é responsabilizar os pais para perceberem que não são os filhos que têm o problema, mas sim aquela dinâmica que não está a funcionar por algum motivo. Uma boa parte do meu trabalho passa muito por isso. Eu digo sempre que prefiro trabalhar com os pais do que directamente com a criança. Principalmente, quando são crianças pequenas, não faz muito sentido trazer a criança ao psicólogo. E menos sentido ainda faz nós assumirmos que é ela que tem um problema, e que é ela que precisa de mudar alguma coisa; porque se nada mudar em casa, o problema da criança nunca vai ficar resolvido.
E isso acontece muito, ou se calhar mais frequentemente, por exemplo, em situações de divórcios ou de grandes mudanças familiares, como nascimento de irmãos.
Sim, pode acontecer. Grandes transições às vezes são das coisas que causam muita angústia e alguma instabilidade na família. Por isso, às vezes os pais procuram apoio para saber como é hão-de lidar da melhor maneira com isso. Mas não necessariamente. Hoje, há muitas condicionantes que não ajudam, e de facto, por vezes, instalam-se relações entre pais e filhos que não funcionam. E a nossa forma de lidar com isso só vai, em alguns casos, cristalizando cada vez mais essa dinâmica que já não está a funcionar. Por vezes, de algum modo, o nosso próprio comportamento vai alimentando o problema e agravando a situação.
E o adiar também de algumas questões. Escreveste algo que me tocou: “As emoções são um potencial de acção que precisa de ser executado, e quando não podemos fazê-lo na altura certa, é como se o nosso organismo fosse acumulando essa informação, que vai precisar de descarregar mais cedo ou mais tarde, e nem sempre da maneira mais adequada”. Esta passagem serve para situações de crianças pequenas e jovens adolescentes, mas também de adultos.
Sim, claro. Nós, adultos, também acumulamos e deslocamos, muitas vezes, as nossas emoções. Aliás, muitos casos de ansiedade estão associados, de certo modo, a essa falta de capacidade de ir descarregando as emoções.
Mas também porque não há tanto uma conexão com as emoções e até com o próprio corpo.
Exactamente. Na infância aprendemos que certas emoções são perigosas. E isto pode acontecer por muitos motivos: ou porque nunca tivemos ninguém que nos ensinasse a lidar com essas emoções, ou porque os nossos pais reagem muito mal de cada vez que as demonstramos, ou ficam com medo de cada vez que aquela emoção é expressa. Então, vamos aprendendo que há determinadas emoções que não são aceitáveis, e isso coloca-as na caixa das emoções que são “perigosas”. E isso faz com que nos vamos desligando delas, e depois há determinadas emoções que também nos trazem para um estado de vulnerabilidade muito grande. E se tivermos medo dessa vulnerabilidade, então vamo-nos desligando daquela emoção. Para nos desligarmos da emoção, precisamos de nos desligar das sensações que ela provoca no corpo; portanto, esse desligar vai-se acentuando.
As dores de barriga nas crianças, por exemplo…
Sim, por vezes acontece. Se vamos sempre ignorando, chega um momento em que o corpo precisa de nos dar um sinal mais forte de que alguma coisa não está bem. E isso, em várias situações, traduz-se em sintomas físicos, como dores de barriga ou de cabeça. São as coisas mais comuns.
Da tua experiência profissional, vês que vai sendo mais fácil para as famílias terem ajuda psicológica, ou não?
Vai sendo mais fácil, no sentido em que se retirou um bocadinho o estigma e o peso. Há uns anos, só ia ao psicólogo quem estava muito desesperado; hoje, felizmente, já não acontece. Por outro lado, em Portugal temos ainda um grande problema económico. Apesar de tudo, já há alguns seguros que comparticipam as consultas de Psicologia, coisa que antes não acontecia. E antigamente, se alguém conseguisse uma comparticipação, era preciso ter um papel do médico de família. Agora, já não acontece. Mas temos ainda muito poucos psicólogos no Serviço Nacional de Saúde e, portanto, consultas gratuitas as pessoas nem sempre conseguem. E as que conseguem… Já vi coisas absurdas, como pessoas com uma depressão pós-parto que tinham uma consulta por mês. Não faz sentido. Nessa fase da vida daquela mulher, numa altura tão decisiva e tão importante, uma consulta por mês não é nada.
Qual a razão para a saúde mental e emocional não ser vista como prioridade?
Eu acho que começámos a perceber já a sua importância, mas tem sido descuidada. É sempre relegada para segundo plano, porque no fundo os sintomas também não são assim tão óbvios e visíveis. Se eu tiver uma dor de barriga muito forte, é impossível eu ignorá-la. Se eu tiver uma doença qualquer que me provoca sintomas graves, também não consigo viver. Mas se eu tiver ansiedade ou depressão, se calhar vou vivendo, vou conseguindo funcionar mais ou menos. Por isso, é fácil ir varrendo para debaixo do tapete e fingir que aquilo não está ali.
A Direcção-Geral da Saúde tem estado a esconder dados sobre saúde. Alguns só estão disponíveis até 2019, por exemplo sobre as causas de morte e a evolução de suicídios. Noutros países, os dados que existem mostram que tem havido um aumento. Portanto, as pessoas que estão a sofrer do ponto de vista mental podem estar em risco de vida…
A Psicologia ainda é uma ciência muito recente. A verdade é essa. A Medicina, que trata das coisas físicas, é muito mais antiga. Portanto, ainda há aqui algum caminho a percorrer.
Sim. Nunca se falou tanto destas questões, nunca lhes prestámos tanta atenção. Isso, à partida, é bom sinal. Alguma coisa há-de sair daqui.
Em termos civilizacionais, talvez se comece a olhar para esta área com maior acuidade. Durante a pandemia, foste uma voz muito activa, mas também tiveste custos. Sentes que o que aconteceu foi grave, sobretudo relativamente às crianças e jovens?
Muito grave, sim.
Ficaste surpreendida que outros colegas teus não tenham vindo a público defender as crianças? Muito faziam em privado e em grupos de Whatsapp, mas não publicamente. Nem junto da Ordem dos Psicólogos tiveram qualquer tipo de iniciativa.
Sim, muita gente me falou em privado. Aliás, no início quando saíram as normas para as escolas, e tive acesso àquilo que ia ser feito, fiquei logo muito preocupada e consegui reunir com algumas pessoas que eu nem conhecia. As maravilhas das redes sociais! Escrevi um artigo no Público [com Zulima Maciel e Ana Rita Dias, em Julho de 2020] e consegui recolher assinaturas de alguns colegas, mas também de algumas pessoas que não conhecia, e a partir daí conseguimos até enviar uma carta para a Ordem dos Psicólogos. Foram mais de 100 assinaturas, que reunimos num dia ou dois; foi uma coisa muito rápida, porque a situação era de urgência. Portanto, muita gente estava apreensiva e com medo das regras que iam ser impostas e dos seus impactos. Depois disso, parece que as pessoas se começaram a querer proteger primeiro a si próprias, e, de repente, houve um ignorar daquilo que toda a gente estava a assumir que era muito grave. Aliás, na altura falei com toda a gente com quem conseguia falar, até deputados. Todos me diziam que aquilo não fazia sentido nenhum, e que era absurdo submeter as crianças a estas regras; davam-me razão. E, depois, afinal, nada aconteceu, e não se passou nada; foi uma coisa que me deixou completamente estupefacta! Eu cheguei a participar numa reportagem em que a jornalista veio falar sobre as regras que iam ser impostas; eu comecei-lhe a explicar que aquilo não fazia sentido e o impacto que eu achei que ia ter, e ela no fim disse-me: “pois, realmente tem razão, eu nunca tinha pensado sobre isso”. Mas não se passou rigorosamente nada, apesar de as pessoas todas concordarem que não podia ser. Acho que depois, entrava a questão do egoísmo. Isto agora até está um bocadinho na moda, mas havia um autor que dizia que vivemos numa sociedade de narcisistas, e parece que foi um pouco isso que aconteceu. As pessoas ficaram tão preocupadas com o seu umbigo, que aquilo que lhes parecia um absurdo tão grande e que era tão óbvio que ia ter impacto, afinal já não importava, porque afinal era preciso que ninguém tivesse covid-19. Houve até uns investigadores que diziam que todos os efeitos secundários provocados pelas medidas passaram a ser mais aceitáveis do que qualquer morte por covid-19. Tornou-se mesmo uma questão moral; de repente, deixámos de conseguir reflectir e pensar friamente sobre o assunto.
Surpreendeu-te também terem sido tomadas medidas sem base nem evidência?
Sim, claro, embora não fosse bem isso que se dizia, não é? Logo no início, quando isto tudo começou, lembro-me de um artigo da Lancet que dizia justamente isso, que nunca tinha sido tentado assim um confinamento à escala global, mas havia exemplos de pequenos confinamentos, em regiões afectadas pelo Ébola, em que as pessoas ficaram contidas.
Sim, mas no caso do Ébola, a taxa de letalidade era acima dos 50%… Na covid-19, a taxa de letalidade é, em média, de 0,03%, e de 0,07% no caso dos idosos. E são dados do período anterior à campanha de vacinação…
Sim, claro. Mas o artigo concluía que isso tinha um custo tão elevado para a população que só mesmo em situações extremas, e muito limitadas no tempo, contendo pessoas de uma população, muito específica; e mesmo um peso gigante para as pessoas que eram submetidas a isso. Mas, de facto, todos fecharam os olhos e já não interessava nada o que se sabia. Mesmo em relação às crianças. Aqui faço um parênteses na questão das evidências, porque obviamente que não havia estudos que comprovassem os efeitos das máscaras nem do “ficar em casa”. Também não precisamos de estudos para tudo, quando temos modelos. Se temos o modelo de desenvolvimento das crianças, e sabemos as suas necessidades, isso dá-nos alguma previsibilidade. Portanto, se vamos cortar-lhes uma necessidade, isso terá algum impacto, e isso também não foi tido em conta. Esquecemo-nos de tudo.
Desapareceu a evidência científica e os modelos do bom senso. Tivemos campanhas grotescas, como aquelas da DGS a empurrar as crianças para a vacinação, com os trágicos desenvolvimentos a que nós estamos a assistir hoje, com os efeitos adversos e excesso de mortalidade. E criticaste isso, mas tiveste custos pessoais, como se verificou com a postura da Ordem dos Psicólogos contra ti.
Na verdade, sobre as vacinas nunca falei em público, porque nunca considerei ser a minha área, pelo que não acho que tenha muito o direito de me pronunciar sobre isso. Embora, hoje em dia, acho que é do domínio comum que as vacinas não faziam falta nenhuma às crianças. Mas aqui, enfim, é senso comum. Agora, em relação aos efeitos psicológicos das vacinas, sim; aí realmente eu sentia que alguma coisa tinha de ser dita.
Também escreveste artigos, incluindo no Observador.
Sim, sim, escrevi alguns artigos. Sobre as consequências que eu tive… Acho que houve outras pessoas que, apesar de tudo, foram muito mais prejudicadas. Houve aquela altura em que parecia que tínhamos a peste, porque éramos rotulados de “negacionistas”, mas, enfim, acho que se fez uma selecção. Claro que algumas pessoas se afastaram, mas tudo bem, não é coisa que me tire o sono. Apesar de tudo, eu acho que fui até bem recebida pelas pessoas, no geral. Eu participei, por exemplo, no movimento “Assim Não é Escola”, que teve uma boa aceitação, porque as pessoas percebiam que estávamos a tentar proteger as crianças. E isso não estava a ser feito. Portanto, mesmo assim, eu não fui muito atacada; houve pessoas que sofreram muito mais.
Na área da Pediatria e Obstetrícia, mas mais uma vez em privado, houve de facto várias pessoas que apoiaram bastante esse movimento…
Sim. Falei com imensos pediatras, que estavam preocupadíssimos, porque viam o que estava a acontecer nos hospitais. Até pediatras que trabalhavam em urgência, e viam o estado em que as crianças apareciam, e estavam muito preocupados. Mas, de facto, na Ordem dos Psicólogos foi um bocado surpreendente. Porque, no início, quando eu escrevi o artigo no Público, e fizemos a carta aberta, até tivemos uma reunião com eles, e concordaram com tudo. Até depois escreveram uma carta à DGS, mais ou menos focando os mesmos pontos que nós focávamos.
Mas depois…
Depois, abriram-me um processo. Ou, na verdade, dois. E abriram-me dois processos com base em queixas completamente absurdas. Uma, em que o meu nome nem sequer era mencionado, por fazer parte de um grupo, e pelos vistos não podia fazer parte desse grupo. E outra, por uma pessoa que alegava que eu tinha dito coisas nas redes sociais, que eu nem sequer tinha dito.
Mas na Ordem dos Psicólogos abrem-se processos sem averiguar a veracidade dos factos?
Pelos vistos, abrem-se, e isso é uma coisa perfeitamente chocante. Eu fui ouvida na Ordem e aquilo para mim foi completamente surreal. Ainda está em aberto; eu nem deveria falar sobre isso, porque supostamente vem lá a ameaçazinha na convocatória. Se eu falar sobre isto podem pôr-me outro processo, porque isto ainda está em segredo. Mas eu acho que isto é sobre mim; portanto, se há alguém que pode decidir se eu posso falar ou não, sou eu.
Mas vês isso como uma forma de tentar dissuadir-te de falar em público, de continuares a defender as crianças?
Sinceramente, não percebi qual foi a intenção deles. Aquilo que me disseram foi que tinham de averiguar se todas as comunicações são feitas com base científica, e de forma fundamentada.
Deviam começar pela DGS e verificar se as medidas aplicadas nas escolas têm base científica…
Exactamente, a DGS fez muitas comunicações que não tinham base científica. Mesmo isso da base científica é, enfim, uma falácia, de certo modo. Porque lá está, há muita coisa em Psicologia que não tem base científica e continua a ser usada e aplicada, porque funciona com base em modelos. A Psicologia não é uma ciência exacta, é uma ciência humana. Portanto, também podemos prever as coisas com base num modelo. Os estudos que agora saem estão a dar-me razão. Ainda há pouco, saiu uma notícia no Expresso a dizer que aumentaram até os suicídios em crianças, algo gravíssimo.
A Ordem dos Psicólogos, mesmo assim, continua com os dois processos, portanto…
Estão em aberto. O papel das Ordens nunca deveria passar por policiar aquilo que as pessoas dizem. Para dizer a verdade, eu até tenho as minhas reticências sobre a utilidade da Ordem dos Psicólogos. Não sei se era importante termos uma Ordem. No fundo, serve para quê? Para fazer lobbying. Serve para tentar pôr mais psicólogos no SNS e nas escolas; até são coisas que fazem falta. Mas, enfim, a partir do momento em que servem para policiar o discurso das pessoas, aí perdem toda a razão de ser. Uma coisa é a Ordem investigar algo que se passou dentro do consultório, em que alguém tenha ido a uma consulta com um psicólogo e tenha queixas. Aí, pode haver alguma legitimidade para se investigar. Agora, coisas que eu disse, ou não disse, em público… É esse o papel das Ordens, hoje? Mesmo que haja um psicólogo que vá à televisão dizer uma coisa perfeitamente absurda, até que ponto a Ordem tem legitimidade para intervir? Não sei se tem, muito sinceramente.
Como vês o desfecho destes dois processos? Estás optimista ou preocupada?
Não sei. Eu acho isto tão absurdo que nem consigo dizer, honestamente. Não consigo sequer ter uma opinião. Confesso que fui para a audiência completamente descontraída e relaxada, a pensar que era só uma formalidade; pronto, já que me abriram um processo, agora têm de me ouvir. E cheguei lá e percebi que aquilo é uma coisa séria! E aí fiquei um bocado a pensar que estou em algum tipo de mundo paralelo. Isto não está a acontecer.
Como se tivesses cometido um grande delito…
Sim, fui interrogada sobre por que tinha dito e aquilo e como é que tinha dito aquilo. Perguntaram-me 30 mil vezes se eu tinha dito algo que não tinha dito. Acho que a pessoa [o denunciante] afirmou que eu tinha falado sobre a hidroxicloroquina, e queriam saber qual era a minha posição sobre isso. E eu, na altura, disse-lhes que nem tinha posição, nunca falei sobre isso na vida, nem investiguei o suficiente para ter uma posição! Poderia ter, pessoalmente, mas como psicóloga não me compete falar sobre isso em público.
Mas podias ter uma posição. Ou não. Se calhar essa nova PIDE entende que não.
Exactamente, poderia ter uma posição sobre isso, mas nem tinha, por acaso. Porque até li algumas coisas sobre a ivermectina, por exemplo. Há dias até estava a ouvir um podcast sobre a hidroxicloroquina. Se calhar, agora já teria uma opinião, mas naquela altura não tinha. Também ainda nem tenho uma posição muito formada, nem tenho de ter, porque não é uma coisa que me diga respeito, ou que interfira no meu dia-a-dia.
Mas interferiu, deduzo, teres dois processos na Ordem, com a tua serenidade interior, porque ficas preocupada. Pensaste duas vezes se deverias continuar a falar ou não?
Na verdade, nunca coloquei muito essa questão, porque acho que também não me conseguia calar [risos]. Quando recebi as comunicações dos processos, a primeira coisa que me apeteceu fazer foi escrever um artigo sobre aquilo ou ir falar daquilo para algum lado, porque achei tão surreal e tão absurdo, que me apetecia comunicar ao mundo que aquilo estava a acontecer.
Até porque há outros psicólogos que têm vindo a falar, e pediatras também, em relação às crianças. Infelizmente, tivemos alguns pediatras que também receberam processos na Ordem, entretanto arquivados. Mas outras figuras mais conhecidas falaram, como a Joana Amaral Dias.
Apesar de tudo, eu acho que sempre tive muito cuidado. Lá está, nunca iria falar da hidroxicloroquina, porque realmente sinto que não me compete. Não posso tomar posição sobre uma coisa para a qual não estudei o suficiente para conseguir compreender. Portanto, eu sempre falei daquilo que eu senti que conhecia e que era a minha área, e em que eu poderia contribuir.
As medidas tomadas, que foram comprovadamente erradas, como o encerramento de escolas, ou o confinamento, ou a imposição do uso de máscara… fica a pairar como sendo possível que se repitam. Até porque estão a ser feitas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e está em criação o Acordo Pandémico, que confere poderes à Organização Mundial de Saúde, e que levantam muitas preocupações. És das pessoas que temem que estejamos a caminhar para uma sociedade cada vez mais totalitária?
É muito ambivalente, porque, por exemplo, da primeira vez que as escolas fecharam, eu estava completamente crente que, a seguir à Páscoa, reabriam, e não abriram. Pelo menos as do primeiro ciclo, que só abriram em Setembro. Na segunda vez que fecharam, eu não achava que iam fechar. Pensava que nunca o fariam outra vez, e que já se tinha percebido o disparate que foi. E fecharam [risos]. Portanto, já não consigo dar grandes palpites. Já não confio na minha própria opinião.
Tal como as vacinas e o certificado digital. Também não ia haver vacinas obrigatórias e certificado obrigatório para acesso a certos sítios, mas, na prática, houve.
Exactamente. A partir do momento em que vivemos um tempo da nossa vida em que não nos era permitido frequentar determinados sítios, porque não tínhamos um determinado papelinho… Acho que passámos uma linha muito grave e perigosa. A partir daí, se calhar, muita coisa pode acontecer. Porque aqui é completamente irrelevante se nós achamos que as vacinas são úteis ou não; não tem nada a ver com o que se passou. Eu podia acreditar que as vacinas eram a melhor coisa do Mundo, mas não tenho o direito de obrigar a outra pessoa a vacinar-se só porque existem todas as evidências de que aquilo é espectacular. Não existiam, por muitas provas que pudessem existir.
É a tal polícia moral.
Exactamente. A partir do momento em que nós penalizamos os outros pelas suas escolhas pessoais, e criamos divisões na sociedade com base naquilo em que uma pessoa acredita ou não acredita, passámos uma fronteira muito grave. E pior do que tudo: nós passámos essa linha sem grandes protestos, e sem que muita gente se importasse. Eu cheguei até a ter pessoas a dizer-me que também não se vacinaram, mas que não se importaram de não ir aos restaurantes, e a perguntar qual era o problema. Como “qual é o problema”?! É um problema gravíssimo, não importa se a pessoa está vacinada ou não, isso é completamente irrelevante nesta questão toda. Quer dizer, como é que alguém pode aceitar que uma pessoa esteja a ser barrada de um sítio porque tomou uma opção de saúde diferente daquela que acham que devia ter tomado?
Ou a censura de informação verdadeira, por exemplo. Há pessoas que não vêem mal nisso, porque as redes sociais são entidades privadas. Ou mesmo os media, sabemos também que houve e ainda há condicionamento ao nível dos media.
Claro. Há pouco tempo partilhei uma notícia do Expresso sobre a questão das máscaras, porque afinal, com os estudos, a Cochrane chegou à conclusão de que não havia evidência sobre a eficácia no uso de máscara. E partilhei, porque achei realmente muito curioso que a jornalista fosse buscar um especialista qualquer, que respondeu que sim, que fazem e fizeram uma grande diferença. Mas não era para seguirmos a Ciência, com eles diziam? E depois chegavam à brilhante conclusão que foram 70 e tal estudos analisados, mas os estudos não eram assim muito bons. Quer dizer, então se durante este tempo todo não se conseguiu produzir um estudo de qualidade sobre o tema, vamos partir do princípio que o tema não será “estudável” por estes meios, não é?
Parece é que não se quer estudar porque já se sabe o resultado…
Claro, é completamente absurdo dizer que se analisaram 70 e tal estudos e nenhum prestava! Como é que isso é possível?
Aliás, a própria Cochrane terá sido pressionada à posteriori porque, entretanto, tentou pôr um bocadinho água na fervura, mas não está a resultar.
Agora, a questão é esta: partilhei no Facebook, com um comentário inocente sobre uma notícia de jornal, e fui censurada, retiraram-me a publicação sem apelo nem agravo. Que sentido é que isto faz? Estamos a tratar as pessoas como tolinhas, que não conseguem filtrar a informação por si mesmas?
É a questão da infantilização, não é?
Exactamente, é isso que se está a fazer. Estamos a partir do princípio que as pessoas não são capazes. É como aquela história, há uns tempos, do Trump, que disseram que houve pessoas a beber lixívia porque ele falou nisso. Não podemos partir do princípio que as pessoas são todas burras, não é? Está bem, se calhar pode haver uma ou outra pessoa mais impressionável, que vai fazer disparates, com base em alguma coisa que ouviu dizer. Mas isso até pode acontecer a pessoa estar a dizer uma coisa perfeitamente válida e fiável, e haver alguém que interpreta aquilo tudo ao contrário e vai fazer um disparate.
És vista agora como activista, mas acabaste por ser englobada, lamentavelmente, por alguns media como “negacionista” ou “anti-vacinas”. Tens uma herança, porque os teus pais, que fazem parte dos heróis que construíram a nossa democracia, não só pela defesa da justiça em prol dos mais fracos, mas também pelos direitos civis e liberdade. Sentes que também estás a dar agora um contributo, como os teus pais fizeram na sua época?
Eles foram muito mais penalizados, não se pode comparar. Eu não fui presa nem nada que se pareça, o meu pai esteve muitos anos preso. Infelizmente, o meu pai já morreu, por isso nunca saberei o que ele pensaria sobre isto. Mas uma coisa que eu pensava muitas vezes era: “caramba, o meu pai esteve preso tantos anos em luta pela liberdade, para agora de repente estarmos a voltar atrás desta maneira”. Não faz sentido.
Como é que ele veria estas alterações à Constituição?
Quero acreditar que seria veementemente contra todas estas coisas.
Mas sentes que estás um pouco a honrar o caminho dos teus pais, ao fazer a tua parte nesta luta?
Eu não sei se é honrar, ou se foi alguma coisa que me foi incutida em criança, que quando víamos as coisas acontecer não nos podíamos calar; ou se é qualquer coisa minha, não sei. Certo é que, de facto, estamos a ir em alguns aspectos para um caminho muito perigoso, e acho que não podemos ficar calados. Ainda para mais, se sabemos que houve pessoas que sofreram tanto, e que lutaram com grandes custos para a sua vida pessoal, por esta liberdade que agora estamos a pôr completamente em risco, e a deitar fora e a dizer que não interessa, porque há coisas muito mais importantes… A mim custa-me ficar quieta.
Laura Sanches,em 2010, a receber a Comenda de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a título póstumo, ao seu pai, Saldanha Sanches.
Sentes na tua família preocupação pela tua exposição, como uma voz activa, na defesa da liberdade, das medidas com base na evidência e dos direitos das crianças?
[risos] A minha mãe preocupava-se sempre um bocadinho. Mas, enfim, a minha mãe preocupa-se sempre com tudo. Mas é triste, e é revelador, chegarmos à conclusão de que alguém se deve preocupar só porque outro alguém está simplesmente a dar uma opinião, que foi aquilo que eu fiz, não é? Veja-se ao ponto a que chegámos, para que isso seja preocupante. E, se calhar, em determinadas alturas, também pensava que isso poderia ter algum impacto na minha vida profissional. E, se calhar, em alguns aspectos teve, algumas pessoas talvez me tenham começado a ver como “negacionista”.
Provavelmente, como a tua mãe também sofreu na pele as suas posições, não queria que a filha passasse por certas situações.
Claro. Mas, apesar de tudo, pelo menos por enquanto, a coisa ainda não chegou a esse ponto.
Pensas nos teus filhos quando falas e quando escreves?
Muito. Pensava que se não tivesse filhos, não sei se isto me importaria tanto, porque para além de os ver a sentir na pele algumas medidas… O meu filho, quando tinha 10 anos, entrou para o quinto ano e tinha de usar máscara. Isso doeu-me, isso custou-me. O mais pequenino, apesar de tudo, estava mais protegido; no primeiro ano estava em casa e depois, quando entrou para a escola, enfim, era uma escola privada; as medidas eram muito mais aligeiradas. Mas houve coisas que me custaram muito. E não só, também pensar no mundo que quero deixar para eles. Não quero que os meus filhos vivam num mundo onde é possível excluir pessoas de sítios só por tomarem opções diferentes.
E se eles um dia ainda tiverem de fazer lutas, como as que estás a fazer, como vais reagir? Vais querer que eles as façam? Se calhar estás a tentar impedir que tenham de as fazer.
Eles terão que fazer o caminho que tiverem que fazer. Obviamente, nenhuma mãe quer que os filhos sofram. Queremos todos o melhor mundo possível para os nossos filhos, mas tenho consciência de que também escolherão as suas batalhas, e é natural que existam algumas. A vida nunca vem sem desafios, e claro que há momentos mais turbulentos, e há outros que serão mais pacíficos. Mas eu não posso controlar como é que vai ser o mundo quando eles crescerem, não é?
Com aquilo que se passou nos últimos anos, compreendeste melhor ou viste com outra luz a luta que os teus pais fizeram? É diferente lermos e contarem-nos sobre um tempo, e depois experienciarmos uma retirada da liberdade sem motivo válido como o que se verificou…
Sim. O impacto maior que eu vi nisto e que me fez mais impressão – e acho que na altura deles também aconteceria – foi este peso social. Só o uso da palavra “negacionista”, uma pessoa sentia-se quase leprosa em determinados contextos. E antigamente quem estava contra o regime, também se sentiria assim. Obviamente, havia algumas pessoas que apoiavam, mas era aquele apoio por baixo da mesa. Às claras, as pessoas eram mal vistas. Para mim, o mais impressionante, e o que mais me marcou, foi a forma como, de repente, toda a sociedade se pode organizar para encarar daquela forma um determinado grupo social.
E mesmo da parte de pessoas que, em termos intelectuais e de formação, considerávamos civilizadas. Tivemos directores de jornais, editores, jornalistas, a chamar manifestantes e críticos de chalupas. Não têm desculpa para a atitude que tiveram…
Isso para mim foi o mais chocante. E depois, ainda por cima, havia muitas pessoas com quem eu falava, como em restaurantes, que diziam que concordavam connosco, mas não podia dizê-lo a ninguém. Como é que se gerou este contexto em que as pessoas sentiam que não podiam expressar a sua opinião, porque as tornava uma espécie de párias sociais. Muita gente ficava chocada com esta comparação da Alemanha Nazi, mas, de facto, os processos psicológicos foram similares. Foi perceber como é que os nazis levaram a cabo aquilo que levaram com a conivência da população. E os próprios soldados eram pessoas normais, que só estavam a cumprir ordens. E, realmente, era aquilo que acontecia, as pessoas só estavam a cumprir ordens, inclusive nas escolas.
Estamos a falar de pessoas que são pais, e que em público são capazes de atacar outras de forma vil, insultá-las e incentivar ao ódio.
Exactamente; é algo completamente assustador. Por exemplo, em escolas tivemos crianças a brincar em quadradinhos no recreio, porque não se podiam misturar com as da outra turma… E como é que havia adultos a olhar para aquilo e a achar normal, aceitável? Como é que não deram um murro na mesa!
Em termos psicológicos, a sociedade portuguesa é muito conotada como sendo passiva e obediente.
Quando certa vez fomos para uma casa de campo, eu vi o caso de uma pessoa que teve covid-19 na casa ao lado. E a GNR ia lá duas vezes por dia, buzinava e o senhor tinha de vir à varanda para mostrar que estava em casa, e depois iam-se embora. Como é possível? No campo! O homem estava fechado em casa sem ter ninguém à volta. Completamente ridículo.
Para mim, uma situação que me chocou foi receber uma chamada do centro de saúde porque queriam falar com a minha filha adolescente para tomar a vacina. E tem havido essa tentativa de retirar, também com a ideologia de género, a soberania dos filhos aos pais. Isso é uma táctica também muito utilizada em ditaduras…
Mas isso eu acho que também vem um bocadinho desta orientação para os pares e da desvalorização da família e das hierarquias. A noção de hierarquia também começou a ser mal vista na sociedade. E a hierarquia existe, e existe uma hierarquia de pais para filhos. E a partir do momento em que desautorizamos os pais, também se abrem portas para esse tipo de coisas.
Na segunda parte da conversa aberta com o PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, fala dos avanços que nos permitem dar vida e mais esperança às crianças que nascem com problemas congénitos, mas aborda também os desafios e problemas que se colocam na saúde dos mais jovens. Se é certo que existe uma maior capacidade de detectar doenças crónicas mais cedo (e tratá-la com maior sucesso), Amil Dias relembra os factores ambientais e sociais que estarão a contribuir para haver, no futuro, adultos com comorbilidades mais cedo. E alerta também para as dificuldades no processo de transição dos cuidados médicos pediátricos para o “mundo adulto”. Leia também a primeira parte desta entrevista, aqui, que se debruça sobre o vírus sincicial respiratório.
A mortalidade infantil em Portugal diminuiu de forma muito significativa no último século. Chegou a rondar os 6% no final dos anos 70; agora está nos 0,2%, o que é um valor extremamente baixo, mesmo à escala mundial. Atribui essa evolução favorável às vacinas, ao saneamento básico ou ao papel da Pediatria e contributo dos médicos pediatras?
A resposta não é simples. Com as devidas diferenças, é um pouco como na Fórmula 1. Há 30 anos, um tipo mudava o tipo de pneus, e ganhava dois segundos. Ou mudava a suspensão, ou o que seja, e ganhava mais dois ou três segundos. Hoje, fazem investimentos milionários nos túneis de vento, no deflector, enfim, num pisca qualquer, para ganhar um milésimo de segundo. Há 30 anos, foi-nos fácil modificar o panorama da mortalidade infantil sobretudo porque houve um senhor chamado Torrado da Silva, que foi encarregado pelo Ministério da Saúde de ir pelo país discutir com as várias maternidades dos hospitais onde é que havia condições para as criancinhas nascerem com segurança. E este médico viu que não havia condições em muitos sítios, ora porque as instalações não eram adequadas, ora porque o movimento anual não permitia manter competências. E pelo simples encerramento de maternidades de maior risco, e em coordenação com os outros; pela implementação do programa de vacinação infantil; pela criação da especialidade de Medicina Geral e Familiar, conseguiram-se avanços fantásticos.
Mas a evolução tem um limite…
É claro. Quando a curva começa a espremer, a espremer… O básico e aquilo que garante qualidade de vida à grande maioria das crianças, isso está perfeitamente consolidado. Hoje, para conseguirmos um pequenino avanço temos de seguir técnicas muito mais sofisticadas, porque continuam a nascer crianças de elevado risco – sejam os grandes prematuros, sejam aquelas com doenças metabólicas graves. Para conseguir que estas crianças sobrevivam é preciso investimentos tremendos. Há doenças, nomeadamente as metabólicas, em que se necessita de gastar milhões para ganhar uns anos da vida. Portanto, a resposta à pergunta: é possível melhorar, só que é cada vez mais complexo, mais caro e sofisticado conseguir uns pequeninos avanços.
Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos.
Nos casos de doenças congénitas ou metabólicas sabemos que, há uns 20 ou 30 anos, as crianças acabavam por morrer ao fim de uns meses ou de poucos anos, mas agora podem ter uma sobrevida muitos anos. Mas envolvendo uma grande complexidade no sistema de saúde e com um custo brutal, não é?
Por exemplo, a fibrose cística era uma doença que matava as crianças no fim da infância ou no início da adolescência. E hoje chegam à idade adulta. E como esta, há uma lista enorme de situações. Portanto, houve de facto um avanço tremendo, mas essencialmente à custa de medidas básicas que influenciaram a grande maioria da população. De facto, neste momento, para conseguir pequeninos avanços, temos de ser muito mais sofisticados.
As mortes por malformações congénitas eram muito frequentes há algumas décadas. Hoje, com os diagnósticos durante a gestação pode-se fazer interrupções da gravidez se se detectarem problemas. Tem ideia de quantas interrupções se fazem por este motivos em cada ano?
Não, não sei. Existem seguramente dados sobre isso, mas não os tenho… É uma questão mais do domínio dos cuidados obstétricos, e eu não faço ideia dos números.
Diz-me muitas vezes que é contra-natura os pais enterrarem os filhos, mas há um século quase todas as famílias tinham de fazer funerais de crianças. Por exemplo, nos anos de 1930, cerca de 40% das mortes em Portugal era de crianças com menos de cinco anos. Agora, ronda 0,25%, mas existe um medo constante em redor das crianças…
As crianças tornaram-se hoje um bem muito mais precioso do que eram há 50 ou 60 anos. Nessa altura, os casais tinham quatro, cinco, seis, oito, nove, dez filhos; sabiam que um, dois ou três se calhar ficavam pelo caminho, mas os outros iam aguentando. Ajudavam na agricultura ou no comércio; enfim, onde os pais trabalhavam. E, portanto, os filhos tinham este peso também de contribuição social; eram um investimento de retorno relativamente rápido. Hoje, os casais têm zero, uma, duas crianças… Quem tem três crianças, tem uma família enorme. E, portanto, nestas novas circunstâncias, as crianças passaram a ser um bem muito mais precioso. E ainda bem que assim é. E, naturalmente, quando se perde a vida de uma destas crianças, isto é uma tragédia enorme para a família e para a sociedade.
Mas nem tudo está bem com as nossas crianças e adolescentes, apesar dos avanços de que já falou…
Temos, de facto, do ponto de vista social, um problema que me preocupa muito mesmo, e já tentei sensibilizar as autoridades, mas não tive muita sorte… Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas, seja a obesidade, seja doenças alérgicas, inflamatórias, endócrinas. Temos um aumento da prevalência de várias doenças que conhecíamos na idade adulta e que hoje vão invadindo também a população pediátrica. Isto quer dizer que daqui a 10 ou 20 anos vamos ter um peso significativo de doenças crónicas em adultos jovens.
Como já sucede muito nos Estados Unidos?
Pois. E o tratamento para cada uma destas doenças é cada vez mais caro. Portanto, daqui a 20 anos teremos um peso de adultos jovens com doença crónica. E com custos de saúde significativos. Provavelmente, todos com declarações de deficiência e redução de obrigações fiscais, e por aí adiante. Vamos ter depois, cada vez mais, uma população idosa com morbilidades próprias e a exigir os cuidados de saúde, os quais têm direito pela vida toda em que contribuíram. Aquilo que há muitos anos era a chamada pirâmide etária, neste momento já é uma pirâmide invertida, e ainda por cima com o peso da doença a começar muito mais cedo. E eu não sei muito bem quem é que vai pagar isso tudo.
Esses problemas advêm sobretudo da nutrição?
Tem a ver com várias coisas. Hoje, nós sabemos muito – não sabemos tudo, mas sabemos cada vez mais – sobre factores precoces de risco. Sabemos que a maneira como se nasce, o facto de se ser amamentado ou não, e o tipo de medicamentos que se toma nos primeiros meses de vida, tem uma influência que pode ir a dezenas de anos de distância. E, particularmente, os dois primeiros anos de vida são um período de extrema vulnerabilidade e de risco, que pode condicionar riscos para crianças em idades mais avançadas, e também na vida adulta. E eu acho que não estamos a investir adequadamente nessa área, e isso devia ser devidamente ponderado.
Em que aspectos?
Por um lado, estamos a formar pediatras hospitalares que conhecem doenças complicadíssimas e sabem fazer coisas sofisticadas, e que competem tranquilamente com especialistas de outros países. Mas, pelo menos metade desses pediatras quando acabam a sua formação, dizem: “eu não estou para esta vida hospitalar tão pesada, eu prefiro ir trabalhar na clínica tal e ganhar a minha vidinha sem me chatear tanto“. E o que vão fazer nessa clínica é pediatria básica, pediatria de prevenção de cuidados de saúde, para o quais não receberam formação sólida, que hoje é possível oferecer. Portanto, estamos a formar profissionais desfasados; ou pelo menos uma parte. É evidente que precisamos de intensivistas, de cardiologistas, enfim, de especialistas de ponta e que saibam tratar coisas complexas. Mas precisamos também de ter a noção que uma boa parte destes médicos vão trabalhar em medicina de crianças saudáveis; e que deveriam ter recebido uma formação cuidadosa para, enfim, tentar minimizar tanto quanto possível os factores de risco de doença crónica. E isto não está a ser feito.
O que é preciso fazer?
Era preciso que os dois primeiros anos de vida das crianças fossem particularmente protegidos através de profissionais que tivessem recebido uma formação específica. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são profissionais seguramente excelentes, mas que não receberam essa formação. Os pediatras são médicos excelentes e não receberam essa formação. Enfim, são conceitos que todos nós conhecemos das muitas reuniões e do que estudamos. Mas uma coisa é eu ter esta noção em geral; outra coisa é receber uma formação específica sobre isso. Nenhuma criança fica com uma doença inflamatória do intestino ou uma alergia por ter tomado um antibiótico em determinado momento dos primeiros meses de vida; se não tivesse tomado se calhar tinha morrido da doença infecciosa e a situação acabava ali. Mas, sabemos que estatisticamente, determinadas práticas condicionam um risco maior. E, portanto, isto devia obrigar-nos a ser mais cuidadosos e, enfim, ter sempre esta perspectiva global em vista. E ver o que é que se ganha e o que é que se perde. Por exemplo, a prática que houve, durante muitos anos, de um menino ir à urgência, tinha febre, chorava, tinha o ouvido vermelho e saía com antibiótico, se calhar tem de ser revista. Tem de se ser mais parcimonioso.
Deduzo que, na sua opinião, isso se aplique também às vacinas contra a covid-19, onde teria sido mais sensato uma maior ponderação em relação às crianças e jovens. Foi um dos profissionais de saúde que participou num abaixo-assinado a pedir a suspensão da vacinação de crianças, tendo em conta o risco-benefício…
A história da covid-19… Eu julgo que, neste momento, felizmente, o assunto está encerrado.
Eu não sei se está encerrado. Aqui em Portugal, no caso dos adolescentes e crianças, talvez. Mas noutros países vacinam-se crianças com seis meses…
Não queria ser eu a reabrir essa discussão. Todavia, a história da covid-19… Todos nós fomos confrontados bruscamente com uma situação inteiramente nova para a qual ninguém no Mundo estava preparado. Quer dizer, havia alguns teóricos que tinham imaginado que um dia haveria uma pandemia não-sei-do-quê, mas em termos práticos ninguém estava, e os serviços não estavam, preparados para isto. E, portanto, houve um pânico inicial, e justificável, porque morreu muita gente; mas depois foi uma espécie de formação em exercício. E a situação que nós temos hoje, felizmente, é de as variantes em circulação terem uma alta difusão mas uma letalidade relativamente baixa, embora de maior risco em determinados grupos etários ou com outras doenças. E, exactamente pela mesma razão que se recomenda a vacinação contra o pneumococo ou contra a gripe a determinados grupos etários, para a covid-19 a lógica é a mesma.
Portanto…
Em relação à vacinação da população infantil, houve algum pânico; houve a ideia de que vacinando as crianças se prevenia porque se acreditava que as crianças eram o reservatório da doença, e assim não iriam contagiar ninguém. Aquilo que se veio a verificar, com documentação, é que, de facto, as vacinas não foram testadas para a prevenção da difusão. Isto é, poderiam ter alguma eficácia em evitar que o próprio ficasse doente, mas não impediam que ele passasse a doença aos outros. E, portanto, surgiu o argumento de que vacinando as crianças – por serem responsáveis pela difusão da doença – se controlava a difusão… Agora dizem: “bom, de facto, quer dizer, isto não foi testado“. Neste momento, a lógica das vacinas é a de proteger o próprio. Eu tomo a vacina contra a cólera para não apanhar cólera, se for a um país onde a cólera existe. Esta é a lógica global das vacinas, com pequeninas excepções, como sucede com a da rubéola, por exemplo. Ora, se a doença nas crianças não era um problema grave, então qual era a lógica de as vacinar? “Ah, é para não contagiar“, diziam. Mas, então, afinal o que se viu é que a vacina não impedia o contágio. É preciso que nos falem com verdade. Como se costuma dizer, não nos atirem areia para os olhos.
O Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tem reunido e falado sobre estas questões, ou não?
Vai desculpar, mas, enfim, esses assuntos internos… Os Colégios de especialidade são órgãos consultivos da direcção da Ordem dos Médicos. E como tal, sempre que os colégios são confrontados com alguma situação, ou por solicitação de corpos directivos da Ordem, ou porque se deparam com alguma situação de preocupação especial, elaboram documentos internos que submetem ao Conselho Nacional e ao bastonário. E depois cabe ao Conselho Nacional apreciá-los, e convocá-los ou não. As agendas de trabalho dos colégios são assuntos que vão decorrendo das condições que existem, mas são submetidas internamente à direcção.
Independentemente de querer falar sobre isso, pode-me dizer se sente que, antes da pandemia, havia maior liberdade de debate e de discussão sobre questões de saúde pública? Tanto no seio da Ordem dos Médicos como fora?
Havia seguramente menos confrontação, porque pisávamos todos um terreno mais conhecido do que esta situação [da pandemia] que, de repente, saiu completamente do controlo. A Ordem dos Médicos provavelmente precisará – na sua renovação, e os seus corpos vão ser renovados muito brevemente – de analisar a transparência do funcionamento. E uma gestão transparente de documentação. Todos os colégios e os órgãos técnicos da Ordem submetem determinados documentos à direcção, e depois cabe à direcção, como lhe disse, aprová-los ou não. E, enfim, gerir as agendas conforme entende que o deve fazer. Mas sempre houve situações em que uns pensavam de uma maneira e outros pensavam de outra. Acontecem seguramente situações em que a opinião desta especialidade é num determinado sentido e a opinião de outra especialidade é num sentido diferente. Por exemplo, a questão da criação da Medicina de Urgência é um assunto que não é pacífico. Os maiores colégios dentro da Ordem dos Médicos têm uma opinião diferente da maioria dos outros colégios.
Hoje pressente-se que há uma espécie de veto de gaveta, que determinado tipo de pareceres chegam ao bastonário e não vão ao Conselho Geral. Isso também aconteceu com os outros bastonários?
Não sei dizer. Eu só conheço a minha “paróquia” [Colégio de Pediatria]. Não tenho uma visão global para ter uma opinião informada.
Mas houve pareceres do Colégio de Pediatria que nunca foram desengavetados?
Repare, há numerosas situações com as quais a Ordem dos Médicos lida no dia-a-dia, onde o ponto de vista de determinada especialidade pode colidir com o ponto de vista de outra especialidade. Por exemplo, em relação à criação de algumas áreas de subespecialidade. Portanto, o conhecimento médico vai evoluindo; costuma dizer-se que um tipo começa por saber quase nada sobre quase tudo, e depois vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia sabe quase tudo sobre quase nada. E o conhecimento médico tem muito disso. Há áreas em que a tecnologia de diagnóstico, de terapêutica, da fisiopatologia, avançou com tal rapidez, e com tal profundidade, que é impossível dominar todos os assuntos. No caso da pediatria é um pouco como a Medicina Interna das crianças. Toda a gente compreende que se um tipo está doente do coração, tem um cardiologista; se está doente da “tripa“ tem um gastroenterologista, enfim; e por aí adiante. A pediatria era vista como a especialidade dos leitinhos e das papinhas.
E não é…
Ora, não é. É uma medicina interna do grupo etário com uma diferenciação extrema em numerosos domínios. E por isso faz sentido, do nosso ponto de vista, que haja médicos que se dedicam mais à nefrologia ou à oncologia pediátricas porque é diferente. E por isso nós defendemos que haja subespecialidades em determinadas áreas em que se justifica. E isto colide com o ponto de vista de colegas da especialidade paralela de adultos, que acham que eles é que vão a todas. E, por exemplo, a criação da subespecialidade de alergologia pediátrica é uma situação de conflito extremo, que chegou até aos tribunais! Há anos criou-se um ciclo de estudos especiais para alergologia pediátrica – portanto para pediatras que se quisessem dedicar-se especificamente a isso e que durante dois anos se dispusessem a trabalhar especificamente nessa formação –, e o Colégio de Alergologia dos adultos tentou impugnar em tribunal. Portanto, há interesses que são contraditórios mesmo no interior da Ordem dos Médicos. E pelos motivos que bem conhece, e não precisa que seja eu a explicar-lhe.
[risos] Bom, na verdade a própria Sociedade Portuguesa de Pediatria, é quase como uma…
É uma federação… e hoje é cada vez mais.
Com idade inferior a 18 anos, em Portugal temos um pouco menos de dois milhões de pessoas, portanto 20% da população. As complicações de saúde em idade pediátrica são assim tantas que justifique tanta subespecialização?
Sim, e numas áreas mais do que outras. Repare; há um número importante de doenças que começam cedo, cada vez mais cedo. Têm a ver com a exposição ambiental, que se vai modificando; mas também com factores genéticos. Se eu pegar no caso, por exemplo, da doença inflamatória do intestino – como a doença de Crohn ou a colite ulcerosa –, num adulto ou numa criança são quadros substancialmente diferentes. A componente genética é claramente mais importante quando a doença aparece aos cinco ou aos 10 anos do que quando aparece aos 40. E é preciso ter isto em devida ponderação. As crianças com doenças congénitas que precisam de transplante de medula óssea – e que são por imunodeficiências – precisam de uma medicação diferente da dada ao tipo que faz um transplante porque tem um cancro. Se não houver este conhecimento específico – e do tipo de medicamentos que se usam antes e depois em cada um destes casos –, os resultados naturalmente não são satisfatórios. Por exemplo, numa área que domino melhor: a colite ulcerosa num adulto geralmente é uma colite segmentar, de uma pequena porção do intestino grosso, enquanto a grande maioria das crianças com uma colite, esta envolve todo o intestino grosso. O risco cirúrgico e de complicações é diferente. Isto é verdade também para as outras áreas.
As crianças e os jovens estão agora menos saudáveis do que estavam há dez ou vinte anos atrás?
Não acho que estejam menos saudáveis. Há mais doenças com expressão precoce; há mais diagnóstico precoce. Portanto, há situações que há uns anos eram diagnosticadas ao fim de cinco ou seis anos de doença e que hoje são diagnosticadas muito mais cedo. Por isso, não tenho uma resposta clara sobre se há mais ou não. Em algumas doenças há seguramente mais, mas em relação a outras há mais conhecimento e, portanto, há uma identificação mais precoce, e há condições de tratamento mais eficazes.
É um bocado como aquela velha piada: não há pessoas saudáveis; só há pessoas mal diagnosticadas…
[risos] É isso…Um tipo são é um doente mal estudado… Deixe-me dar mais um exemplo também muito corrente: a doença celíaca. Os pediatras conhecem a doença celíaca há uma data de anos, e os médicos dos adultos começaram a conhecê-la há muito menos tempo, porque os doentes adultos nem sequer iam ao gastroenterologista. Andavam no reumatologista, porque tinham dores nas articulações; no hematologista, porque tinham anemia; na ginecologia, porque não conseguiam engravidar. Enfim, tinham manifestações que não apontavam para a origem real do problema e andavam noutras áreas. E como este, há vários outros exemplos que se podem citar.
Antigamente, se as crianças e adolescentes não estivessem mesmo doentes, não iam com regularidade ao pediatra.
Claro. Também o facto de haver um acompanhamento não só na doença, mas também na saúde, permite que alguns diagnósticos se façam mais precocemente e, portanto, que haja tratamentos mais eficazes. Em algumas doenças significa que se anda mais tempo a ser tratado, mas também se ganhou alguma qualidade de vida.
As alterações sociais e ambientais – por exemplo, a poluição ou agora haver mais população urbana do que rural – vieram criar uma maior panóplia de eventuais problemas de saúde na infância?
Sem dúvida nenhuma, e há estudos interessantíssimos sobre essas matérias… Há um colega canadiano que se dedica a estudar especificamente a epidemiologia da doença inflamatória do intestino, e que estuda grupos populacionais, tanto da população local canadiana como de grupos de imigrantes; e em que se mostra claramente que os imigrantes da África ou da Ásia quando emigram para o Canadá têm uma prevalência baixa da doença inflamatória intestinal; mas os seus filhos que nasceram no Canadá, e que comem o que comem os canadianos, têm um aumento dramático da prevalência desta doença. Quer dizer, têm a mesma genética, mas têm uma exposição diferente e o aumento da prevalência dessa doença é enorme. Garantidamente que a nossa exposição ao ambiente condiciona toda a nossa biologia. Ganhamos umas coisas, perdemos outras.
Se os agentes ambientais actuarem na fase de crescimento, isso é um factor de agravamento? Por exemplo, é indiferente, ou é pior, começar-se a fumar aos 15 anos ou começar-se a fumar aos 25 anos?
Uma pessoa cresce mais e mais depressa nos primeiros dois anos de vida do que no resto da vida. E, portanto, numa fase de crescimento rápido, se houver, no início da adolescência, alguma doença que influencie a capacidade de crescimento, obviamente que as consequências são muito mais graves. Graves em termos de crescimento.
Sim, mas ao fim de 20 anos a fumar, é indiferente ter começado aos 15 ou aos 25?
O efeito é cumulativo. Determinados estímulos, como por exemplo o tabaco, são irritantes das mucosas, do epitélio respiratório, e causam algum tipo de displasia e de alteração. Quanto mais o agredir, maior é o risco de haver uma linhagem celular que se afasta do que devia e levar a consequências mais graves. É pouco provável que alguém tenha cancro do pulmão por ter fumado um cigarro. Mas se fumar não sei quantos anos, enfim, o risco é real, para além de doenças vasculares e de outras complicações.
Há pouco estávamos a falar sobre a questão dos pais serem cada vez mais superprotectores. Vê que os jovens têm maiores riscos, sobretudo ao nível da adolescência, por exemplo no consumo de álcool ou de tabaco… Onde se deveria apostar mais para que as crianças e os adolescentes venham a tornar-se adultos mais saudáveis do que nós?
[risos] Se eu soubesse responder-lhe a isso em 30 segundos, tinha ganhado o Prémio Nobel… Bom seria que houvesse alguma resposta mágica para isso.
Mas quais deveriam ser as prioridades?
Aquilo que cada um de nós é depende da genética, dos traumas que se teve, dos amores e os desamores que se teve, com o sítio onde se trabalha, com os hábitos que se tem, com o que se come… Enfim, é uma equação tão complexa e com tantas variáveis que não há uma resposta simples. Em relação à acção possível dos pais, se estes forem superprotectores e tratarem o menino como um frasquinho de cheiro, e o menino vive infantilizado durante a vida toda, provavelmente vai ser um adulto inseguro, frágilzinho, que não é capaz de resolver problemas. Se os pais o deixarem ir para a varanda e fazer o que lhe apetecer, corre o risco de cair e partir a cabeça. Portanto, tem que haver senso, tem de haver uma intervenção multidisciplinar em muitos domínios. A questão, por exemplo, dos filmes e da televisão, da extrema violência: é evidente que se uma criança vir uma cena qualquer de violência sozinha, ou se um adulto estiver ao lado e lhe explicar que isto não se faz, e é um disparate porque causou mal a outras pessoas, ela vai aprendendo a contextualizar, vai aprendendo os valores que se devem prezar e o que é a transgressão. Portanto, é necessário que os pais sejam capazes de ajudar os filhos a crescer, mas compreendam que eles crescem. E que num belo dia têm que sair debaixo das saias dos pais.
Mas os filhos cada vez saem mais tarde da tutela dos pais…
A média nacional já ultrapassa os 30 anos [33,6 anos]… Há uns anos, na Escandinávia, aos 10 anos os pais diziam: “ó meu filho, vais lá para o alojamento do colégio e governas-te“. Gostar muito dos filhos é fantástico, mas convém perceber que eles têm de crescer e aprender a ter as suas próprias defesas e a resolver os seus próprios problemas. E, portanto, este equilíbrio, entre o que é prudente fazer e o que é disparatado e infantilizado, é muito delicado. Na pediatria, nós vivemos isso com alguma frequência nos doentes crónicos, quando os passamos para a consulta dos adultos. Se não tiver havido um processo de preparação progressiva – e não estou a falar ao nível dos médicos –, um dia entregamos os doentes aos médicos de adultos e os miúdos caem do céu aos trambolhões. Há anos, eu tinha uma consulta com um colega de adultos para os doentes que cresciam, e um dia ele telefonou-me a dizer que “já está aqui no consultório o fulano e eu lá fui, passei por ele e fiz-lhe uma festinha na cabeça“. Quer dizer, a um bebé de um metro e oitenta… E o meu colega olhou para ele, pasmado, e disse; “olhe que eu não lhe vou fazer isso“. Se não tivermos alguma cautela, os meninos passam para a consulta dos adultos e dizem: “então o meu papá não vem?“, e os pais ficam em pânico.
Nota agora um certo “atraso no desenvolvimento” dos jovens?
É uma infantilização, que é muito generosa num determinado momento, mas depois pode passar a ser um problema. E hoje a transição de cuidados é um assunto muito sério. Eu estive há pouco numa reunião a tratar disso, e vou estar em mais no próximo ano. Por um lado, nós vamos tentando que os adolescentes nessa fase sejam cada vez mais autónomos e que sejam eles a responder em vez de ser o papá ou a mamã; que sejam capazes de conhecer os seus problemas, os medicamentos que tomam… Mas os nossos colegas que tratam de adultos não estão, por vezes, preparados para os receber. E em algumas doenças nem sequer as conheciam, porque havia doenças que matavam na infância e, portanto, nunca chegavam aos dos adultos. Para algumas doenças metabólicas, há médicos de adultos que nunca tinham visto nenhuma.
Não seria então mais sensato que, em vez de haver essa transição para determinado tipo de doenças, o pediatra continuasse a acompanhar esses doentes na fase adulta?
Isso acontece. Há muitos anos, em 1988, fui pela primeira vez aos Estados Unidos a um congresso, e visitei um serviço que atendia jovens com doença digestiva, e perguntei à enfermeira com que idade é que eles faziam a transição para os adultos. E ela disse-me: “olhe, isso realmente é um problema; eles não querem ir e os médicos não os querem mandar, e por isso já combinámos que quando eles forem mais velhos que as enfermeiras têm de sair daqui“. Portanto, isto há 40 anos, não é? Este problema é muito antigo, existe em todos os sítios, e das duas, uma: ou cada um de nós, da mesma maneira que tem um bilhete de identidade, tem um médico que o acompanha até aos 80 ou 90 anos, ou então temos de definir que cada um trata ao seu nível de intervenção. De contrário, qualquer dia temos na sala de espera um bebé de seis meses e um velhinho de 80 ou 90 anos, ambos à espera de ser consultados pelo mesmo médico [risos].
[risos] Aí é que não havia mesmo pediatras… Já agora, há pediatras suficientes, ou estamos com o mesmo problema que noutras especialidades?
Aqui também a resposta não é simples. Serem suficientes ou não, depende daquilo que precisarmos. Eu tive um director de serviço nos anos 1980, que achava que as criancinhas deviam ter pediatra, tanto o filho do pedreiro como do juiz. E, portanto, os consultórios dos pediatras estavam cheios, não só de gente com muito dinheiro como de gente com menos dinheiro. Depois, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o único sítio onde se encontra um pediatra é dentro de um hospital. E, portanto, isso também explica porque é que os serviços de urgência estão atafulhados. Se acharmos que todas as crianças, pelo menos naquele período mais vulnerável, nos primeiros dois anos de vida, precisam de ter um médico com competências específicas de pediatria, talvez haja margem para mais alguns pediatras. Quem achar que os pediatras devem ficar à espera que alguém os procure nos hospitais ou nas clínicas particulares, provavelmente teremos pediatras que cheguem. O nosso problema não é tanto como em algumas especialidades – que têm carência de especialistas – é mais a sua distribuição e é a maneira como o SNS os atrai. Quando acharam, há uns anos, que o SNS devia ser gerido como uma qualquer empresa, a nível de ofertas e atractivos, façam, mas paguem.
Hoje é muito fácil arranjar uma consulta de pediatria no privado, mas no SNS deve ser muito mais complicado, não?
Não tenho também uma resposta muito clara. Depende da forma como cada serviço se organiza, mas julgo que não é muito complicado. Em algumas áreas, provavelmente mais do que noutras, mas desde que haja referenciações adequadas é fácil, mas há áreas em que realmente a resposta ainda é abaixo do que seria desejável.
Qualquer criança e jovem em Portugal tem hoje pediatra e médico de família?
Depende das zonas do país. Como sabe, há uma parte da população ainda a descoberto dos médicos de família. Há áreas onde os serviços são mais estruturados e têm maior capacidade de resposta. Noutras, infelizmente, menos.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.
Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias fala sobre o “vírus do momento”: o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa uma das mais frequentes infecções nas crianças de tenra idade. Apesar disso, ganhou nas últimas semanas um mediatismo nunca visto. Em entrevista ao PÁGINA UM, Amil Dias faz notar a coincidência no incremento da “visibilidade” do VSR com o desenvolvimento de vacinas pela indústria farmacêutica. Nesta conversa, a primeira parte de uma longa entrevista, Jorge Amil Dias alerta para os efeitos secundários dos confinamentos nas crianças, durante a pandemia, dando o exemplo das hepatites. E diz mesmo que não podemos ter a ideia que conseguiremos erradicar os vírus e viver sem doenças.
Justifica-se o alarme social dos últimos dias sobre os internamentos de crianças por causa do vírus sincicial respiratório (VSR)?
O VSR é uma das várias infeções que todos os anos ocorrem sobretudo nos meses frios, e que afecta principalmente a população mais jovem. Os lactentes e as crianças pequenas, habitualmente. Isto acontece todos os anos. Mas não se consegue ter um perfil rigoroso de cada um dos agentes individuais que causam essas infeções respiratórias. Temos os laboratórios sentinela – uma rede que comunica os seus dados –, mas não existem em todos os hospitais. Por isso, não é certo sequer que todas as crianças com infecções, seja o VSR o agente claramente identificado, e nem é seguro que os laboratórios reportem todos os resultados.
Estamos a falar apenas de crianças internadas nos hospitais…
Sim, mesmo nos hospitais. A identificação de agentes infecciosos – e não só nas infecções respiratórias, também nas diarreias, por exemplo –, habitualmente só se faz quando há um registo epidemiológico sistemático, o que também não é o caso, ou se a gravidade da doença impõe algumas decisões terapêuticas, se será vírico, se será bacteriano. Nessas situações, os dados laboratoriais ajudam a tomar decisões.
Na base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do SNS, observa-se que, antes da pandemia, tínhamos picos mensais, sobretudo no Inverno, de cerca de 1.800 internamentos de crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. Consegue-se saber qual a prevalência do VSR?
Não, claramente não. Seria preciso que as 1.800 crianças tivessem sido submetidas a testes de diagnóstico, e que os laboratórios pesquisassem especificamente esse vírus. Quando se pede um exame bacteriológico, ou um exame virológico, não se pede um exame em abstracto. Se eu mandar fazer um exame numa situação de diarreia aguda para um laboratório, eu tenho de indicar quais os agentes que devem ser pesquisados. E, portanto, os laboratórios pesquisam por três, ou quatro, ou cinco agentes mais relevantes, que podem estar a causar doença naquele contexto. É necessário que a pesquisa seja activa para os vários agentes, e isso nem sempre é feito.
Portanto, somente num quadro clínico já mais grave ou persistente, ou que se agrave, é que se vai fazer esse tipo de pesquisa, certo?
Sim, e nos laboratórios ou nos serviços com recursos para o fazer. Porque nem todos os laboratórios o conseguem.
E todos os hospitais conseguem a identificação do VSR?
Podem não ter. Quer dizer, a tecnologia vai estando cada vez mais acessível, mas não existe de forma sistemática em todos os hospitais, e não é feita de maneira sistemática em todas as crianças admitidas.
Ou seja, não se consegue dizer se a prevalência do VSR é de 10%, de 20% ou de 30% dos internamentos em pediatria?
Não, e os laboratórios mais bem equipados e mais motivados para fazer essa pesquisa encontram-se nos serviços para onde as crianças vão sendo transferidas, conforme a gravidade das situações. Por isso, a amostragem nos laboratórios dos hospitais centrais sofre sempre de um enviesamento, é a ponta do icebergue, porque também têm doentes mais graves transferidos dos outros hospitais, enquanto estes mantêm os doentes da sua zona de residência com um quadro mais ligeiro.
Tem conhecimento de se estarem a realizar agora mais análises para detecção do VSR do que antes, e por isso há um maior número de casos?
É provável. Não tenho uma resposta informada sobre isso, mas provavelmente sim. A tecnologia de detecção vai estando cada vez mais acessível. Antes, há cinco ou seis anos, as técnicas de PCR eram difíceis de executar em alguns laboratórios, mas hoje há kits e uma simplificação de métodos que permite que esteja mais acessível a mais laboratórios.
Em todo o caso, mesmo com enviesamento, pode dizer-se que o VSR causa uma doença banal, ou é uma doença rara que nos deve preocupar?
Claramente, é uma doença banal, muito banal. Como todas as viroses de Inverno, é muito contagiosa; frequentemente contagiosa antes de ser sintomática, o que quer dizer que quando a criancinha tem febre, já contagiou os outros meninos todos do infantário. E, portanto, quando fica em casa, não é para não contagiar os outros, porque os outros já foram todos contagiados.
E também tem uma baixíssima letalidade, certo?
Tem. Mas há grupos de risco, e por isso existe um programa organizado para administrar a essas crianças, nomeadamente prematuros ou com cardiopatias congénitas, uma profilaxia com um medicamento especial [anticorpos monoclonais] para reduzir o risco de infecção. Nesses grupos de risco, a infecção pode ter um carácter mais agressivo e, eventualmente, até fatal. Esse programa para a VSR já existe há anos para esse grupo de risco específico. Não existe ainda, neste momento, uma imunização ou prevenção universal, mas também convém colocarmos as coisas no devido contexto. O ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.
Em todo o caso, durante o período da pandemia, o número de internamentos por doenças do aparelho respiratório em crianças desceu significativamente…
Claro, se as crianças ficaram em casa e não conviviam com as outras…
E também ao nível da mortalidade. De acordo com dados oficiais, desde Março de 2020 até Setembro de 2022, morreram 17 crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. No período homólogo anterior, antes da pandemia, morreram 42 crianças. Portanto, a superprotecção ao SARS-CoV-2 fez diminuir também o risco de outras doenças do aparelho respiratório..
Certamente que sim, tendo havido menos exposição…
Então, aparentemente, todos estes confinamentos salvaram algumas vidas. Acha então que esse é o modelo que devia ser sempre usado agora e para todo o sempre? Ou seja, impomos o risco zero.
Não, porque tudo isto tem um preço nas crianças. O preço do confinamento foi terem morrido algumas crianças por hepatites fulminantes e outras a necessitarem de transplantes. E, eventualmente, um aumento de alergias. Enfim, tudo isto é um emaranhado tão complexo de relações e correlações – o sistema imunitário, a genética e o ambiente – que, quando manipulamos um dos factores, não sabemos muito bem para que lado é que a coisa vai desequilibrar. É um bocado como quem joga o Mikado. Por isso é que convém, neste caso especificamente do VSR, ter esta noção sensata. O VSR existe há imenso tempo, anda por cá e todos os anos afecta e infecta crianças. Este ano, não me parece que a situação seja particularmente diferente, porque o que aconteceu foi um pico mais precoce de ocorrência de infecções. Tem havido, em vários hospitais e serviços, internamentos de crianças com VSR.
Mas tornou-se este ano mais mediático…
Este ano, o interesse particular por esta situação, e por este agente específico, tem a ver com a indústria farmacêutica, que se mexeu, e que desenvolveu novas drogas. E, portanto, as coisas começam a ser mais visíveis, porque há quem queira dar-lhes visibilidade.
Sim, pelo menos a Pfizer, a GlaxoSmithKline e a Sanofi têm, ou estão a desenvolver, vacinas… Tínhamos uma doença apenas com um tratamento preventivo por anticorpos monoclonais, e de repente, abre-se um leque de possibilidades de vacinação, provavelmente também em massa. Acha que estas coisas estão relacionadas?
[risos] Cada um de nós terá a sua opinião sobre esse assunto, não é? Se o vírus não apareceu só agora; se ocorre como já ocorria nos outros anos; e se a realidade epidemiológica exacta não era bem conhecida, e agora é mais conhecida, porque o assunto está mais na crista da onda; e se a indústria se interessou e desenvolveu produtos que visam especificamente essa doença; enfim, é como diz o outro: se tem cornos, dá leite, e diz mú; não sei que bicho é que será, mas a gente imagina.
Qual deve ser o comportamento ou a postura das autoridades de saúde relativamente a esta situação, tendo em conta que teremos essas vacinas disponíveis? Vacinar quase 100 mil crianças em Portugal por ano, tendo em conta que são as que nascem durante esse período?
Há várias vertentes na resposta a essa questão. Obviamente que todos gostaríamos de evitar que todas as crianças adoecessem. E, particularmente, doenças infecciosas, se tivermos maneira de evitar. Todavia, se nós déssemos este ano a vacina contra o VSR a todas as crianças que nascem, as crianças não iam deixar de ter infecções respiratórias. Porque o vírus não vai desaparecer. Aquilo que aconteceria era aparecerem no próximo ano mais infecções por adenovírus, ou por vários outros agentes. A natureza vai-se ajustando, e se falta uns, aparecem outros. Portanto, é sempre correr atrás de uma quimera. Então, primeiro: não é possível impedir que as crianças tenham infecções respiratórias. Segundo: devemos implementar um programa de vacinação contra a infecção por VSR, uma vez que estas infecções ocorrem muitas vezes em bebés muito pequenos, que ainda não receberam sequer imunizações? Repare que as imunizações muito precoces são pouco eficazes, porque as crianças têm anticorpos durante os primeiros seis meses de vida de origem materna. Podia ser interessante, e não sei se a indústria irá fazê-lo, termos uma vacina para as grávidas, de forma a que os bebés nos primeiros meses de vida estivessem mais protegidos. Mas, mesmo que isso venha a existir, é natural que as autoridades de saúde façam uma análise, como qualquer empresa faz, de ver quanto é que se gasta e o que é que se ganha com isso. O dinheiro não é inesgotável. Se fôssemos gastar – e isto é um número completamente ao acaso, sem qualquer correspondência com a realidade – 5 milhões de euros, ou 10 ou 20, ou o que seja, na prevenção dessa infecção, é preciso ver o que é que se ganha com isso, porque esse dinheiro faltará para alguma outra coisa importante.
Deve fazer-se uma análise de custo-benefício…
E para isso é que os epidemiologistas e responsáveis pela saúde pública têm sempre de fazer as análises entre o que se ganha e o que deixa de se fazer em alternativa. E essa análise de custo-benefício que tem de ser feita para reduzir o risco. Deixe-me dar-lhe um exemplo: há anos, surgiu uma vacina contra a hepatite A. E aquilo que se verificou é que realmente a hepatite A diminuiu imenso; enfim, nuns países mais do que noutros. Mas fazendo uma análise depois mais minuciosa da evolução da hepatite A, o que se verificou é que aquela diminuição brutal não terá decorrido só da vacinação, mas de melhorias nos saneamentos e na higiene das casas e das cidades. Ora, ao melhorar os saneamentos, não só se melhorou a hepatite A, como uma data de outras situações. Portanto, tem sempre de se fazer uma análise sensata. É muito fácil desatar a berrar a dizer: “vamos agora vacinar as criancinhas todas contra o VSR”; e depois, daqui a um ano: “vamos vacinar as criancinhas todas contra o adenovírus”; e daqui a dois anos, é contra outra coisa qualquer… a biologia e a vida são um bocado mais complexas do que agarrar num único factor e achar que aquilo é que muda a História da Humanidade.
Então acha que aquele anúncio pelo médico Filipe Froes de que corremos o risco de sofrer uma pandemia tripla com covid-19, gripe e VSR, tem justificação de recearmos uma situação dessas?
Este ano provavelmente vamos ter uma maior incidência de infecções, que não ocorreram há dois anos ou o ano passado. Houve um grupo populacional, particularmente de crianças, que não desenvolveram naturalmente imunidade contra esses agentes, sim. É provável que, se não apanharam nos últimos dois anos, apanhem este ano. E, portanto, que haja uma coexistência de vários agentes que as criancinhas de três anos se calhar teriam apanhado no ano passado; e este ano apanham e talvez apanhem mais do que um. Não sou epidemiologista, não tenho dados específicos, mas faz sentido que, tendo havido uma economia de infecções pelo isolamento em que as pessoas estiveram, este ano possa haver algum excesso. E agora, o que vamos fazer? Andar todos de máscara? Lá vamos discutir outra vez se as crianças não ficam com perturbações de desenvolvimento, porque não conseguem ver a cara das pessoas… Salta-se da frigideira para a fogueira, não é?
Ou seja, veria com preocupação se à conta do VSR, agora se impusesse novamente máscaras nas escolas ou nos infantários?
Como lhe disse, a História da Humanidade desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, e nós fomos ajustando-nos ao ambiente onde vivemos. E quando desequilibramos bruscamente esta interrelação com o ambiente, criamos riscos. Deixamos de ter os bois e as galinhas a viver por baixo da nossa casa; mas um dos preços que se paga por isso é que há muito mais alergias. Não só por isso, enfim, por vários outros factores. Mas, isto para dizer que há alguns riscos e custos a assumir. Não podemos correr o risco de pensar que qualquer dia pegamos numa ementa e perguntamos às pessoas que doenças é que querem ter. E pronto, dizemos-lhes como hão-de viver…
Aliás, como vê este tipo de política de saúde que é mais puxada pelo mediatismo em detrimento das prioridades reais? Ou seja, antes era o SARS-CoV-2, agora surge o VSR…
É um problema grave. Inegavelmente, em algumas circunstâncias, o mediatismo dos assuntos tem algum efeito. Todos se lembram que, há uns anos, havia uma enorme discussão sobre o tratamento da hepatite C, que era uma coisa caríssima e não podia ser. Até que um tipo foi para a Assembleia da República e deu dois berros ao ministro, e disse-lhe: “não me deixe morrer”. Pronto, a partir daí negociaram condições aceitáveis para iniciar o tratamento com enorme eficácia. Portanto, há momentos e situações em que as autoridades não respondem com a eficácia e a ginástica adequadas, e é preciso que a pressão da opinião pública influencie um pouco as coisas. Mas é desejável que sejam as autoridades competentes que antecipem os problemas e façam os estudos devidos, e expliquem de maneira clara como é que as coisas podem ser.
Mas há limites…
Sim. Eu podia dizer que só podem circular na rua automóveis de topo de gama que tivessem todos os sistemas de segurança possíveis. É evidente que isto iria diminuir imenso os acidentes e a gravidade, mas não está ao nosso alcance fazê-lo. Portanto, temos de gerir entre o desejável e o possível.
Cientista de corpo e alma, Michael Levitt dá a sua visão sobre a influência da política na Ciência. E não duvida que hoje “tudo se resume a política. Nesta segunda parte de uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, Levitt critica a gestão política e comunicacional da pandemia, lamentando que o resultado seja a “inflação e recessão e uma situação económica má, que vai afetar toda a gente”. Sobre o papel do jornalismo, defende que é sempre crucial, mas critica fortemente a actuação dos media mainstream durante a pandemia. Laureado com o Prémio Nobel da Química em 2013, o reputado bioquímico e biofísico fala ainda sobre as redes sociais e dois problemas que o preocupam: o envelhecimento da população mundial (mas sobretudo o poder dos idosos sobre os jovens) e as alterações climáticas. Esta é a segunda parte de uma entrevista a não perder. Veja a primeira parte aqui.
Participou, na semana passada, no Congresso Internacional sobre a Gestão de Pandemias, mas por Zoom. Mas já conhece Portugal?
Conheço um pouco, não muito bem. Conheço Lisboa e o Porto. Conheço o Algarve, razoavelmente bem, porque os meus filhos vivem em Lagos. É um país belíssimo. Gosto muito, muito das pessoas.
Os seus filhos gostam de viver em Portugal?
Gostam muito. Vieram de Israel. Tenho dois filhos e cinco netos em Portugal. Tenho uma ligação muito forte com o vosso país.
Voltando ao tema das alterações climáticas, é algo que o preocupa?
Sobre as alterações climáticas, há um livro que li de uma autora norte-americana, Naomi Oreskes, chamado The collapse of western civilization [O colapso da civilização ocidental, escrito em parceria com Erik Conway]. Ela escreveu este livro no género ficção: a história é escrita daqui a 300 anos por um historiador chinês. Ele questiona como é que as civilizações ocidentais colapsaram por causa do aquecimento global. A China ficou bem. É ficção. É provocador. Mas tem muito de censura e de não se debater… Também uma incapacidade para agir.
Faz lembrar algo, não?
Uma coisa que a China demonstrou durante a pandemia é que consegue tomar decisões difíceis muito facilmente. Nem pensar que se consegueria fechar Nova Iorque como a China conseguiu fechar cidades enormes. Conseguiu fechar Xangai. Não penso que fosse o melhor a fazer-se em nenhum dos locais. Mas imaginemos que subia o nível do mar a ponto de se ter de mover Xangai para um terreno mais elevado, e o mesmo em Nova Iorque. Em Nova Iorque iriam discutir politicamente e chegaria a calamidade. É um livro interessante. Mas depois fiquei desapontado com a autora, porque comuniquei com ela no Twitter, e também em privado, e vi que estava muito assustada com a covid-19. Não via que o seu livro fosse uma previsão do que aconteceu com a covid-19. Penso que tudo se resume a política. Tudo o que Trump tivesse dito, teria de estar errado. Não está certo.
Michael Levitt com o seu filho David.
Agora, há a questão do dinheiro que está envolvido na covid-19. Tornou-se num grande negócio, talvez um dos maiores de sempre.
Mas o dinheiro já se foi, já se gastou. E agora temos a inflação e a recessão, e uma situação económica má, que vai afetar toda a gente. Nos Estados Unidos é interessante analisar, porque o governo mudou a meio da pandemia. Podia discutir-se que muito do dinheiro foi gasto pela Administração Trump. Tenho ligações com os dois lados da política norte-americana e não quero dizer nada. Não quero fazer política. Penso que a política é muito difícil. Penso que é muito mais difícil ser um bom político do que ser um bom cientista. As pessoas veem os políticos pelo que eles são e julgam-nos nas eleições. Vamos ver.
E também vêem os jornalistas. Participou no Congresso Internacional sobre Gestão de Pandemias, em Fátima, e não houve cobertura do evento por parte de nenhum dos órgãos de comunicação mainstream. O que pensa disto?
Aquilo que se passa com os media é uma tragédia. O comportamento da imprensa durante a pandemia é uma tragédia. Dei entrevistas à CNN, e depois à Fox. Não me importo de o ter feito. Mas assim que dei uma entrevista à Fox, já mais ninguém me quer entrevistar. Uma tolice. Não fazia sentido nenhum. O que acredito é que os jornais se tornaram muito radicais devido à concorrência dos media online. E os conteúdos online não são melhores. Gosto do Twitter, mas o Twitter mudou muito nas últimas semanas, não sei o que lhe vai acontecer. Penso que algo tem de acontecer.
Na China, os media são censurados de forma assumida.
Tenho uma visão global do Mundo. Nasci em África do Sul, vivi em Inglaterra durante muito tempo, vivi em Israel por muito tempo, nos Estados Unidos por muito tempo. Os últimos cinco anos, tenho vivido na China, devido à minha mulher. E questiono-me. Na China, os media são muito censurados, mas as pessoas comunicam, não é como se não comunicassem. Pode desaparecer (o conteúdo), mas ainda assim é dito. Na China as pessoas usam sobretudo o WeChat, que é como o Whatsapp. As pessoas escrevem-me em chinês e leio em inglês. Posso fazer compras com o WeChat. Nunca ando com dinheiro, nem com cartões de crédito. Nunca ando com carteira. Talvez seja porque não há concorrência, não sei. Tal como o WeChat tem o meu código de covid-19. De vez em quando, lá temos de fazer testes. (Tenho pena da coitada da senhora que tem de enfiar o cotonete na boca das pessoas mil vezes por dia.) Mas agora o grande sucesso nos media é o Tik Tok.
Os media legacy têm afora muita concorrência, em termos de conteúdos e distrações online.
Penso que ainda estamos à procura da forma certa de termos jornais. Eu ainda subscrevo três jornais: o New York Times, o Guardian, e o South China Morning Post, de Hong Kong, que tem visões muito abertas sobre a situação política na China. O Guardian é apenas uma cópia do New York Times – é aborrecido, tenho de parar de o subscrever. Também subscrevo, no iPhone, o Flipboard, que todos os dias me mostra notícias diversas, de esquerda e de direita, do ponto de vista político. Gosto disso, porque vejo as notícias diversificadas e decido o que gosto e o que não gosto.
Sente falta de diversidade e de um jornalismo que não seja todo igual e monotemático. É isso?
O jornalismo é incrivelmente importante. Há pessoas que escrevem no Substack, mas acho enfadonho. Pode discutir-se se jornalismo independente é algo bom de se fazer. Em mundo da Ciência, costumava ser muito importante estar integrado numa grande entidade – Stanford, Cambridge, publicar na Nature –; agora, é menos relevante, mas ainda é importante. Na imprensa, não sei como será no futuro. Vai mudar, mas não sei como vai ser o modelo seguinte.
E há as redes sociais…
Sobre o Facebook, acho que não é bom para o Mundo. Gosto do Google, mas acho que vão tentar impingir as suas coisas. Gosto do Twitter, mas preocupa-me o que lhe vai acontecer. Penso que a diversidade é muito importante. Ouvir as pessoas únicas, que pensam, que têm senso comum. E há muitas pessoas como essas. O problema é… Por exemplo, um jornal que me desapontou foi o The Economist. A sua cobertura da covid-19 foi extremamente desmazelada. Tinham modelos que exageravam as mortes em excesso.
Michael Levitt mostra a sua Medalha do Nobel, em 2013.
As redes sociais mudaram a forma de usar a Internet. Como vê isso?
Penso que a maior mudança foi o facto de duas pessoas quaisquer poderem contactar uma com a outra, praticamente a partir de qualquer parte do Mundo, e falar gratuitamente. E isso é algo muito positivo. Nunca tivemos antes. Há 10 anos, teria custado talvez 1 euro por segundo fazermos esta entrevista por videochamada. Hoje, clicamos no Whatsapp ou outra tecnologia, e conversamos.
Sobre o futuro, o que é que mais o preocupa?
Preocupa-me o poder das pessoas mais velhas. O número de idosos no Mundo nunca foi tão elevado. Preocupa-me que tenham demasiado poder. O número de pessoas com mais de 65 anos é muito maior do que o número de pessoas com menos de 30. Das pessoas com menos de 30, só as pessoas com mais de 18 podem votar. Preocupa-me. O futuro do Mundo depende apenas das pessoas mais jovens.
Aos 75 anos, Michael Levitt mostra uma energia e entusiasmo contagiantes. Laureado com o Prémio Nobel da Química em 2013, o biofísico com quatro nacionalidades (britânica, israelita, sul-africana e norte-americana) tem sido um dos cientistas de topo a analisar os dados da pandemia com a sua equipa da Universidade de Stanford, apesar de residir agora na China. As conclusões dos seus cálculos e pesquisas, que contrariaram a narrativa oficial, levaram a que chegasse a ser “desconvidado” de eventos científicos. Em entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, Michael Levitt lança críticas à ligação da Ciência à política e ao dinheiro. Lamentando os gastos excessivos em vacinas e, sobretudo em testes PCR, defende que essas verbas poderiam ter sido aplicadas no desenvolvimento de energias renováveis para ajudar o Mundo a lidar com a crise climática. A viver atualmente com a mulher em Xangai, Levitt falou ainda da sua forte amizade recente com o conceituado epidemiologista John Ioannidis, uma das “coisas boas” que ganhou desde 2020. E fala ainda da sua forte ligação a Portugal, um “país belíssimo”, ainda mais porque tem dois filhos e cinco netos a viverem em Lagos, no Algarve. Esta é a primeira parte de uma entrevista a não perder.
Passaram dois anos desde que começou a estudar os dados da pandemia e a assumir posições contrárias às da “narrativa oficial”. Quais foram as consequências para si, para o seu trabalho, para a sua vida, tomar uma via fora do “consenso”?
É mais do que dois anos. Estou envolvido com a covid-19 desde Janeiro de 2020. São mais do que 1.000 dias, está próximo de três anos. A boa consequência é que comecei a interessar-me muito pela Epidemiologia. O meu campo natural era o da biologia computacional, em moléculas, em sequências, a uma escala microscópica. Tem sido interessante aplicar agora isto a uma escala diferente. Esse foi um aspecto muito positivo. Provavelmente, trabalhei nestes anos mais do que em alguma outra altura da minha vida. É muito interessante fazer o que chamo de “Ciência em tempo real”. Normalmente, em Ciência, faz-se um cálculo, espera-se três meses, verifica-se. Mas para a covid-19 havia uma pressão real do tempo. Mas aquilo que mais me surpreendeu foi a atitude muito difundida de não se querer ouvir ideias diferentes. A Ciência é discordar; os cientistas discordam.
Houve atitudes dogmáticas…
Todas as novas descobertas são rejeitadas, inicialmente. Isto é natural, e eu tenho consciência disso; é basicamente assim que a Ciência funciona. E fiquei muito surpreendido quando, a partir de meados de Março de 2020 – estava a trabalhar no tema há quase três meses –, comecei a comunicar com cientistas ocidentais, e muitos não queriam saber. Achavam que eu estava errado ao fazer isto, e que não o devia fazer, não queriam saber dos dados. Basicamente, disseram-me: “não és um epidemiologista, não tornes a nossa vida perigosa”. Penso que havia muito medo. Sinto que essas pessoas estavam muito, muito assustadas.
Havia muito medo.
Fosse pelos media ou por epidemiologistas, eles sentiam que estavam assustados e tinham medo que, se eu dissesse às pessoas que deviam pensar mais cuidadosamente… eles pensavam que era pior do que a gripe de 1918. Mas eu compreendi muito cedo, no início, que as pessoas ricas e inteligentes não são prejudicadas. Os pobres, infelizmente, esses têm sido prejudicados, e isso perturbou-me, porque há uma injustiça aqui.
Estava sobretudo preocupado, então.
Estava muito preocupado. Historicamente, primeiro olhei para a China, e inicialmente comuniquei com colegas chineses, e os resultados colocavam os modelos muito, muito bem. Depois houve o modelo do cruzeiro Diamond Princess – que foi como uma experiência com pessoas –, e em seguida vimos que a mortalidade era menos de 0,5% para as pessoas idosas. Tem de se compreender que as pessoas idosas têm sempre mortalidade elevada. Antes da pandemia, na maioria dos países ocidentais, menos de 1% da população morre num ano normal. Se a população for 10 milhões, há cerca de 70 mil mortes em situação normal, mas depende do país. Se tem uma população muito jovem tem cerca de 50 mil mortes; se tem uma população muito idosa tem 100 mil mortes [como era o caso de Portugal antes da pandemia]. Eu defendi que, com a pandemia, as mortes por covid-19 seriam o equivalente a cerca de um mês extra de óbitos. Seria algo como talvez 6.000 mortes extra, ou seja, 8% a mais. E isso acabou por ser verdade em grande parte dos país. Publiquei essas previsões na Medium [uma rede social de debate] em 22 de Março de 2020. Eu não estava a inventar os números! Precisavam ser discutidos. E não foram. Foi a coisa mais triste para mim.
Ficou desapontado?
Eu sempre vi a Ciência como algo muito puro. Não sou uma pessoa religiosa, não acredito numa religião em particular. Acredito na maravilha da Natureza; acredito que os seres humanos são a coisa mais fantástica, eu gosto de todas as pessoas. Mas, de repente, a Ciência não importava, e a Ciência é sobre a verdade. A Ciência é, realmente, sobre a verdade, a beleza. A verdade e a beleza: é a Ciência. Se a taxa de mortalidade é de 0,5%, não importa quanto se grite, nunca será de 5%. Não será 50%. E temos de saber qual é a resposta. Outras pessoas chegaram às mesmas conclusões que eu cheguei. A minha resposta foi baseada numa parcela de população muito pequena, 700 pessoas.
Passou a estar mais em contacto com outros cientistas?
Uma outra coisa boa que aconteceu foi que eu fiquei mais exposto à comunidade [científica]. Há um cientista em Stanford muito famoso, um epidemiologista, o John Ioannidis. Há agora um documentário maravilhoso sobre ele. Ele é meu amigo agora. Eu não o conhecia antes da covid-19. Ele foi uma coisa boa e importante durante esta pandemia, para mim. Publicámos já artigos científicos juntos. Penso que há pessoas que sabiam que a narrativa estava errada. O problema é que o mal já foi feito; o mal foi feito para pessoas que não estavam bem e para os mais novos. Os mais jovens sofreram imenso. Artistas sofreram; tudo foi fechado. Teatros…
E era necessário fechar?
Não era preciso fechar. Em muitos, em muitos países o número de óbitos devido à covid-19 foi similar à de uma gripe má. Talvez similar à gripe A, de 2009 e 2010. Penso que a gripe de 1957 foi muito pior, mas não há bons dados. Precisamos de ter bons dados.
Michael Levitt com a sua equipa da Universidade de Stanford.
Mas houve países onde o impacte foi grande…
Os Estados Unidos são uma excepção. Nos Estados Unidos tem havido algo estranho, porque na maioria dos países europeus a esperança de vida tem aumentado. Nos Estados Unidos, atingiu-se um máximo em 2005 e, a partir daí, está em queda. E isso é estranho. E, nos Estados Unidos, as pessoas que estão a morrer de covid-19 também são jovens, não especialmente os mais idosos. Os Estados Unidos são um caso invulgar e não sabemos ainda porquê.
Disse que lhe aconteceram-lhe coisas boas durante a pandemia, mas também foi “cancelado”.
Sou muito resiliente. Um bom cientista está habituado a que discordem da sua opinião. Algumas das coisas que foram escritas não foram simpáticas. Mas, surpreendentemente, não fui afectado. Por exemplo, o John Ioannidis não queria ir, não queria escrever para o Twitter. Eu achei o Twitter muito estimulante. Fiz três ou quatro amigos, não apenas amigos, mas colegas com quem vou trabalhar. A minha personalidade é sempre retirar coisas boas de qualquer situação.
Mas houve situações difíceis?
Houve coisas más, e deixaram-me triste, porque foram o reflexo de uma mentalidade estreita e de uma mente fechada. Isso preocupa-me: não é assim que os cientistas devem ser. Nos Estados Unidos, e não só, também em Israel, o problema ficou muito politizado. Se Donald Trump tivesse dito: “temos de fechar tudo e todos”, então os democratas – a maioria dos académicos – teriam dito: “não, não, não, temos de analisar e não fazer confinamentos”. Porque a posição inicial de Trump foi de que “isto não é uma doença muito perigosa”. E eles tomaram a posição contrária. A Ciência não se mistura com a política. E penso que isto é um problema, porque a Epidemiologia é uma Ciência que se mistura com a política.
Antes, era diferente?
A Epidemiologia não teve tanta atenção no passado. Os modelos epidemiológicos são muito antigos. Alguns dos números que são calculados não são muito úteis. Toda a gente no Mundo ficou a falar no número de reprodução epidemiológico [Rt]. E esse número é apenas aplicável a crescimento exponencial. Se tem outro tipo de crescimento, o número não faz sentido. Os números de crescimento epidemiológicos são como as taxas de juro dos bancos. Se o dinheiro está a crescer exponencialmente, então vai querer saber se a taxa de juro vai crescer 1% ou 5%. Mas se o dinheiro está a seguir outro caminho, não faz sentido. Parcialmente, o problema é que os epidemiologistas, no passado, queriam assustar as pessoas, de uma boa forma. Queriam que as pessoas ficassem tão assustadas que se iriam portar bem. Não esperavam que o Mundo fosse para um lockdown [confinamento]. Ameaçaram sobre o Ébola, ameaçaram sobre o H1N1. Há um longo histórico de ameaças de epidemiologistas. Penso que se habituaram a fazer ameaças muito sérias, embora as pessoas não as levassem tão a sério.
Agora, foi diferente.
Desta vez, talvez. Por razões estranhas. Às vezes penso que, se o primeiro grande surto na Europa não tivesse sido na Lombardia, em Itália, e sim em Estocolmo [na Suécia], as coisas teriam sido melhores. A Itália tem população muito idosa naquela região, que é muito social. Muitas das pessoas mais velhas naquela região morrem todos os anos de gripe; talvez umas 25 mil. Não se vacinam, e vivem uma vida boa.
Esse surto exacerbou a resposta política à covid-19?
Uma das grandes lições a retirar é que as pessoas morrem. E morrem naturalmente. Morrer faz parte da vida. Penso que, algures na pandemia, surgiu a crença de que não temos mais de morrer. Mas isso não é verdade. As pessoas morrem, e é assim que a vida é.
Quais as lições a retirar desta pandemia?
Precisamos de aprender. Precisamos de aprender que o debate é importante.
Está preocupado com aquilo em que a Ciência se tornou desde 2020?
Sim, estou muito preocupado. Espero que seja temporário. Espero que os cientistas olhem para isto com muita atenção. O problema é que está agora tão ligada à política. Especialmente, nos Estados Unidos. A Ciência está ligada à política e ao dinheiro. Infelizmente, as pessoas que recomendaram certas coisas… Foi gasto muito dinheiro em vacinas, mas mais dinheiro foi gasto em testes PCR. Pode argumentar que talvez estejam a mudar a forma como estamos na Ciência. Talvez sejam úteis, mas o teste PCR não tem valor económico. Apenas diz quantas pessoas têm a doença. Se fizéssemos testes PCR todos os anos para a influenza [vírus da gripe] também seria um desperdício. São centenas de milhares de milhões de dólares, talvez mesmo biliões de dólares, que foram gastos em testes PCR. A pessoa que inventou o teste PCR tem um interesse. As empresas que fazem os testes PCR têm um interesse. Estas coisas têm de ser todas debatidas. Ainda espero que haja um ajuste de contas.
Aguarda que o mundo caia em si e então perceba o que aconteceu?
Penso que, em parte, as mudanças políticas a que temos assistido, no Reino Unido, agora no Brasil, talvez nos Estados Unidos, mostrem que o público não está contente com as respostas dos Governos à pandemia.
Considera que a Ciência agora é uma fast science? Hoje, um estudo, um artigo científico leva menos tempo a ser publicado comparando com o passado? Parece-me que muitos foram rapidamente publicados e usados imediatamente por políticos e autoridades para anunciarem medidas…
O problema é que… Bom, no meu caso, eu quero publicar os meus resultados e conclusões e tem sido muito difícil, ninguém os aceita. Mesmo em publicações onde eu costumava publicar com facilidade. Aquilo que acontece é que os artigos que se encaixam na narrativa são publicados mais facilmente.
A Ciência é compatível com uma narrativa?
Há uma narrativa. Preocupa-me que a Ciência não deve ter uma narrativa, porque isso implica que se sabe antes de tempo o que se quer. E tem de se ser muito seguro de si para consolidar uma narrativa. A narrativa forma-se, excluindo tudo o resto. Penso que a Ciência, por definição, não deve ser conduzida por uma narrativa.
Mas é precisamente o que sucedeu com esta pandemia…
Por exemplo, as revistas científicas que publicam pesquisa sobre covid-19 ficaram, de repente, muito populares. E depois querem que aqueles autores publiquem ainda mais, mesmo se a pesquisa estiver errada. E isto é muito mau. Talvez estas revistas se arrependam no futuro. Mas entretanto terão a receita da publicação e da publicidade. Se se concluir que a vacina contra a covid-19 tem efeitos adversos, então serão possivelmente processados, tal como os produtores de tabaco foram processados. Mas continuarão com o dinheiro que já lucraram. Basicamente, no futuro, penso que teremos de ser muito mais inteligentes. As pessoas têm sido assustadas para se tornarem estúpidas.
E estamos em 2022!
Desde o início que se perdeu o senso comum. Estou impressionado com Portugal, porque os meus netos estavam em Lagos, mas as escolas estiveram fechadas na altura do Natal de 2020. Em alguns casos, Portugal teve uma atitude mais leve em relação a estas coisas. Na Áustria foi o oposto. As coisas eram muito restritas. Agora, todos desistiram. A China é a grande diferença, mas ali há razões políticas que não compreendo e não se justifica. Curiosamente, todas as pessoas com quem falo, sabem. Todos sabem o que se está a passar. Por isso, não sei o que vai acontecer.
Publicou recentemente um artigo com o John Ioannidis sobre mortalidade excessiva num vasto conjunto de países de renda elevada. O que pensa que está a acontecer?
Para se ver a mortalidade em excesso é medir… Se um hospital disser que uma pessoa morreu com covid-19, não sabemos se a morte se deveu 50% à covid-19, se tinha problemas cardíacos, se era idoso. Não sabemos. Imagine que todos os que morreram com covid-19 teriam morrido dois meses mais tarde automaticamente, de forma natural. Quando medisse a mortalidade, no final do ano, teria números normais. Imagine que morriam em Julho, e Julho teve muitas mortes em excesso, mas depois, em Agosto, havia menos mortes. Só se morre uma vez. Quando se morre com covid-19 não se pode morrer devido à idade. Depende de quem está a morrer. A mortalidade excessiva diz: não queremos saber do que se morre, não queremos saber se é de um acidente automóvel ou com covid-19 ou idade avançada; mas olhamos para as mortes de anos anteriores e, com isso, esperamos uma certa quantidade de óbitos. Porque há sempre mortes.
Pode estimar-se quantas pessoas vão morrer no ano…
Sim. Se os números forem superiores aos esperados, então deve haver uma razão. Pode-se medir para o ano inteiro. Também se pode medir para cada semana. Por exemplo, em Nova Iorque, na pior semana da covid-19, as mortes em excesso, mortes reais, não as reportadas, foi sete vezes superior ao esperado. Foi uma quantidade enorme. Quer dizer que, por cada pessoa que se esperava que morresse, morreram mais sete, extra. Depois disso, houve menos mortes. Se analisarmos o Estado de Nova Iorque, para todo o período da pandemia, é muito similar à Califórnia, à Flórida e a outros Estados. Os Estados Unidos têm um elevado excesso de mortalidade . Há excesso de mortalidade na Europa, mas é mais como o excesso de mortalidade por gripe em 2009-2010. Há coisas que não entendemos. Mas temos agora um outro artigo, que estamos a tentar publicar, mas está a ser difícil. Enviámos a outras publicações, e eles não gostaram.
E é sobre o quê, em concreto?
Mostramos uma forma de calcular as mortes em excesso. Geralmente, dizemos que a mortalidade esperada seria a média de 2017, 2018 e 2019. Isso dir-nos-ia o nível de morte que devíamos esperar. Talvez devêssemos ter escolhido anos diferentes. Assim, pegámos nos países com dados de mortalidade entre 2009 e 2021. E deixámos que o ano com excesso de mortalidade, em comparação, fosse qualquer ano. Só um ano, ou três anos ou cinco anos. Usámos 66 excessos de mortalidade diferentes. E olhámos para todos e encontramos resultados semelhantes. Mas também se vê o excesso de mortalidade que existe em cada ano, não apenas no ano de covid-19. Sabemos quantas mortes em excesso há em 2010, 2011; pode fazer-se comparações. E o que se vê é que, nos países desenvolvidos, na Europa e na América do Norte, o único país onde há excesso de mortalidade, que é pior em qualquer altura dos últimos 10 anos, é os Estados Unidos.
Voltemos ao estado da Ciência. Quando espera que algo mude? Quando é que um cientista com um Prémio Nobel poderá publicar sem dificuldade?
Em geral, em Ciência, uma coisa nova e boa não é aceite. Mesmo antes do Prémio Nobel, sempre que eu tinha algo que era novo, era rejeitado. Tem de se lutar. O John Ioannidis publicou, penso, 60 artigos durante a pandemia, mas lutou tanto… Ele é uma pessoa muito especial. Muito inteligente. E não se zanga. Fica chateado. Eu fico zangado, mas não fico chateado. Ele tem muita paciência. Para mim, é realmente um prazer trabalhar com ele. Ele lutou muito… Ele teve artigos durante nove meses a aguardar publicação numa revista científica, e acabou rejeitado. Ele é alguém que foi muito crítico, mesmo antes da pandemia. É alguém que olha para um artigo, e diz: “este artigo não devia ser publicado”. As pessoas estão zangadas com ele. Ele está certo. Felizmente, ele é muito cuidadoso… Enfim, não sei o que acontecerá na Ciência.
Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford.
Não vê então como será a evolução da Ciência, no futuro?
Se olharmos para o futuro, por exemplo, para as alterações climáticas – e não me interessa se o aquecimento global é causado pelo Homem ou por explosões solares –, não há dúvidas de que temos um tempo estranho como secas, incêndios, ventos muito fortes, etc.; é uma crise, tal como a covid-19 foi uma crise. Então, aquilo que precisamos aprender é o que temos mesmo de aprender com uma crise. Uma crise, por definição, é inesperada. Mas, durante esta crise da pandemia , as nossas acções causaram mais danos – agora podemos dizer isso com certeza – do que se não tivéssemos feito nada. E isso é muito assustador, porque a quantidade de dinheiro que foi gasto no Mundo para cobrir vacinas, testes PCR, perda de salários e de produtividade, seria o suficiente para fazer uma enorme aposta na energia renovável. Podíamos ter tido um efeito enorme. E não o fizemos.
Teme que a gestão da crise climática possa ser tão mal gerida como a covid-19, com medidas políticas e económicas erradas?
Espero que não.
E com censura?
Espero também que não. Infelizmente, há dois campos: os que acreditam que tudo é uma fraude; e outros que acreditam que é o fim do Mundo. E eu gostava que estivessem a falar uns com os outros, em vez de dizerem: “nós somos os anjos e vocês são os demónios”. Isto é de loucos. Eu gosto mesmo de debater com pessoas que discordam de mim, porque é mais interessante. Falar com pessoas que concordam conosco… Gostar de falar com respeito e, se se zangar, sair da sala. Mas tentar compreender qual é a atitude do outro. Não convencê-lo daquilo que se está a defender, mas tentar entender o que eles estão a dizer. E, se conseguir entender o que o outro está a dizer, pode ajudar a explicar o que está a dizer de uma forma melhor. Não penso que haja um lado mau e outro bom. É uma mistura.
Nesta segunda parte de uma grande entrevista de Joana Amaral Dias ao PÁGINA UM, a psicóloga fala sobre a sua última obra a chegar às livrarias, Psicopatas Portugueses – Segundo Livro, e revela um novo projecto que vai lançar em breve. Explica ainda como vivemos atualmente numa cultura psicopática, a qual nasceu a partir da cultura maníaca observada nos tempos áureos de Wall Street e que culminou na crise financeira de 2008. Defende que essa cultura psicopática é evidente em muitas das políticas de gestão da pandemia de covid-19 e que muitos dos males provocados à população foram propositados. Admite ainda que gostaria de ver ser feita justiça em relação às crianças e jovens que foram alvos de abusos e penalizados, incluindo na sua saúde mental, devido às medidas desproporcionais aplicadas na pandemia. E sublinha que nunca vai parar de lutar para que essa justiça seja feita, apesar dos desafios.
Na tua actividade clínica, e em entrevistas, tens falado nos jovens e no impacto que estes anos têm tido nos jovens. Notas algumas melhorias, ou achas que, de facto, ainda se está numa pandemia de problemas de saúde mental, sobretudo nesta camada mais jovem?
Estamos agora a ver as consequências, porque nestes dois anos e meio houve uma aniquilação das estruturas fundamentais para o desenvolvimento da infância e da juventude. Deixa-me dar-te um exemplo concreto: temos agora nas escolas um aumento brutal de delinquência e de bullying. Já estão a ultrapassar os níveis pré-pandémicos. Houve uma ruptura abrupta destas estruturas organizadoras dos miúdos, e ao rebentarmos com estes pilares… Os problemas estiveram mais ou menos tamponizados durante os confinamentos, mas agora que há um regresso a um determinado ritmo dito normal.
Longe da vista…
As clínicas de saúde mental, como a minha, estavam de portas fechadas. E havia situações em que podíamos observar os pacientes e dar resposta online, mas muitas tinham de ser presencialmente, como é óbvio. Isto da telemedicina e da telepsicologia, é uma teletanga! Isso não existe. Portanto, não havendo cuidados de saúde, escolas, espaços de socialização, ar livre e desporto, o que é que sobrou às crianças e adolescentes? Estarem fechados em casa numa redoma de vidro. Agora é que nós estamos a apanhar os cacos. Muitos miúdos nessa altura descompensaram, foram internados. Muitos foram abusados, agredidos, tiveram de ficar fechados com o inimigo dentro de casa – devo dizer que considero isto um crime contra a Humanidade. Para mim é um dos pontos mais negros desta história, porque de antemão nós já sabíamos – é do conhecimento comum – que a maior parte dos abusos e crimes de sangue acontece no primeiro anel das crianças. Portanto, espancamentos, homicídios, abusos sexuais, pedofilias, negligência, isso é tudo no primeiro anel. E, se estas crianças não vão à escola, ao centro de saúde, à junta de freguesia, ao centro desportivo, quem é que as sinaliza? Quem vê que estas crianças precisam de ajuda? Não há. Portanto, por ordens do Estado, estas crianças ficaram fechadas com os seus agressores. Foram, então, sujeitas à maior tortura que já se julgou possível.
Joana Amaral Dias, fotografada por Júlia Oliveira.
Houve quem avisasse sobre esses riscos.
Nesse aspecto, eu tenho muito a dizer. Como se nota, até tenho demais, sobre a gestão da covid-19 nestes dois anos e meio. Mas isto é absolutamente imperdoável, porque o Estado sabe disto. O Ministério da Saúde sabe disto. O Ministério da Educação sabe disto. O Ministério da Segurança Social sabe disto. Todos sabem que as crianças não podem ficar fechadas com os seus agressores, e que a única maneira que nós temos de ajudar estas crianças é deixá-las circular. Deixá-las ir à escola, que é onde vemos as nódoas negras… E agora que voltaram às escolas e aos centros de saúde, é que nós vemos que elas estão todas destruídas. Absolutamente destruídas. Perguntam-me: mas como é que é possível este nível de bullying juvenil agora?
E houve países que não fecharam as escolas e que têm agora melhores indicadores de gestão da covid-19 do que Portugal, por exemplo. E já há estudos que comprovam que foi um erro enorme fechar escolas. Portanto, aquelas teses de que era algo imperativo, caíram por terra…
Entre todas as medidas, a que teve menos impacto no controlo da covid-19 foi justamente o fecho de escolas. Foram medidas estéreis e improdutivas. E, claro, já tenho falado com muitos professores, e se estivesse um aqui, dir-te-ia também que há aqui muitas aprendizagens, situações que são irrecuperáveis. Eu, como psicóloga clínica, sei que há janelas de desenvolvimento óptimas e que, se, efectivamente, a aquisição de competências e conhecimentos não é feita nessa altura, ela é irreversível. Ou seja, perde-se para sempre essa onda. Ela não regressa. Eu estou realmente muito focada nesta parte do trauma, porque se essas aprendizagens foram perdidas – como na Matemática, no Estudo do Meio e outras –, há, contudo, uma centelha de esperança que se possam recuperar. Mas se a criança está traumatizada, se foi violada todos os dias pelo avô, se foi espancada todos os dias pela mãe ou deixada à fome todos os dias pelo pai… essa centelha de esperança morreu. Portanto, não é só pelos ossos do ofício que eu coloco aqui a tónica, mas porque esse aspecto é anterior e é basilar.
Se os vários ministérios sabiam desta situação, não deveria haver agora uma intervenção de gestão de crise, em que se gastassem alguns milhões – tal como se gastam noutros lados? Um investimento para ajudar crianças e colocar psicólogos nos centros de saúde, nas escolas, e onde for necessário…
Vejo que tu ainda estás de boa fé. Isso seria o passo seguinte normal, se os governantes, os responsáveis e os decisores tivessem instituído estas medidas por erro. Se eles próprios, ao engano, mas crentes de que estavam a seguir as melhores práticas, e de que estas medidas de fechar negócios, escolas…
Era para o bem comum.
Para o bem comum. Se eles tivessem estado enganados, e se agora se tivessem apercebido que realmente houve coisas desnecessárias; tinham a tal desculpa de que foi a primeira vez. E agora corrigiam o erro. Mas tu ainda estás de boa-fé a achar que eles se enganaram. Eu não acho que eles se tenham enganado.
Fizeram de propósito?
Desde Março de 2020, mantenho a minha posição – casmurra! [risos]. E estou receptiva a que me desmintam de que isto foi feito deliberadamente. Repito: o objectivo desta gestão insana da covid-19 era abrir uma cratera nos regimes democráticos. E ela já aí está, em carne viva. Foi feito intencionalmente.
Foi visto como uma oportunidade?
Sim, uma oportunidade, para derrotar o pouco que ainda sobra dos regimes democráticos, que já estavam ameaçados.
Isso explica porque é que não seguiram por exemplo as práticas comprovadas cientificamente e com estatísticas, como foi o caso da Suécia?
Explica sim. E explica, porque neste momento não vão investir em nada na Educação, não vão reabilitar ou recuperar nada disto porque não querem saber, não se importam com isto. Eles veem isso como efeitos colaterais da sua missão principal, que era fazer a tal cratera na democracia. Mais ainda. Um exemplo concreto na minha área: havia uma task force para a vacinação e havia uma task force comportamental. Não é por acaso, porque efectivamente há vários níveis belicistas – e não é por acaso também que tivemos em Portugal muitos fardados a intervir nesta questão da covid-19 –, mas o centro é a guerra psicológica. Vacinas e psicologia, foram as duas task force. Eram os dois grandes motores desta narrativa. Isto é muito importante, ter esta noção. Na task force da Psicologia – a comportamental –, eles tinham vários fascículos que saíam regularmente com as guidelines para os agentes no terreno. Portanto, eles tinham a task force comportamental com os seus documentos e divulgava a metodologia a ser empregue.
Um programa…
Havia um programa. E nesse programa – e eu denunciei isso na CNN Portugal –, eles instigavam directamente ao medo. Voltamos à história da amígdala. Era uma decisão do Governo fazer a gestão e o controlo das medidas sanitárias para instigar medo na população. Isto era assumido. Normalmente, perante uma situação de emergência, a psicologia de intervenção e de crise recomenda que a primeira coisa a fazer é manter a calma. A primeira coisa que nós fazemos quando chegamos a um cenário de acidente é fazer o abaixamento da tensão e manter a ordem e a tranquilidade junto das populações. Se um colega meu tiver de ir buscar alguém que saltou para a linha de metro, a primeira coisa que lhe vamos fazer é justamente o abaixamento da tensão e dizer às pessoas que estamos a controlar a situação – não vamos lançar o caos e o pânico, e dizer que sim, que o mundo vai acabar!
Mas isso é o que foi e tem sido feito.
Exactamente. Na task force recomendava-se que se instigasse directamente ao medo! Os meus colegas psicólogos – porque eram psicólogos que estavam a trabalhar nessa task force comportamental –, que instigavam o medo, são os mesmos que estão agora a reabilitar crianças e adolescentes. É a mesma equipa. Isto tem de ser denunciado. São eles que agora estão a combater a delinquência juvenil e os problemas de integração na escola, o aumento do bullying… São as mesmas pessoas! Eu denunciei isto na CNN, mostrei esses boletins, que estavam na Internet; eu fiz questão de os imprimir. Mostrei-os, e dois dias depois eles desapareceram da Internet, os links agora estão vazios.
É preciso perceber que não houve boa fé, nunca! Com todo o respeito, algumas pessoas ainda podem estar com um certo grau de ingenuidade, mas eu sempre achei desde o princípio que isto era feito de uma forma psicopática, deliberada, com um objectivo claro e usando instrumentos de manietação e de mesmerização da população, que levaria a um determinado fim. Haveria efeitos colaterais, pessoas que se iam suicidar, que iam à falência, miúdos que iam ficar analfabetos aos 10 anos… mas isso eram pequenas contrariedades, empecilhos que iam surgir. Aquilo que interessava era chegar à cratera na democracia. Pronto! E por isso é que não vão reabilitar ninguém, por isso é que as equipas são as mesmas e não querem saber destas desgraças e efeitos perniciosos que aconteceram com a covid-19 e estão muito para além dos mortos e da mortalidade excessiva. Há aqui, de facto, uma série de consequências sociais que vão perdurar durante décadas. Para mim, isto foi um plano friamente gizado desde o início.
Mas acreditas que pode haver justiça algum dia para estas crianças?
Como disse no princípio, estou expectante mas apreensiva! [risos] Gostava muito que existisse justiça, e luto por ela também todos os dias. Mas sei que este combate é profundamente desigual. Estou disposta a continuar a terçar armas, a tentar que outras pessoas também estejam nessa luta. Eu parti para esta luta sabendo que a probabilidade é muito magra – não de eu ganhar, porque eu não ganho nada com isto, só perco, mas de haver reposição da verdade, do bem, do belo, do justo.
Nunca pensaste simplesmente desistir desta luta contra estas medidas e ficar em silêncio?
Não. Desistia e ia para onde? [risos]. Não, prefiro morrer.
Publicaste agora um novo livro sobre psicopatas. E já disseste publicamente que os maiores psicopatas não são aqueles que tens estudado e referido nos teus livros. Depois do que disseste agora, acreditas que, de facto, existe mesmo essa tendência psicopata de algumas pessoas que estão por trás da gestão da pandemia, ou dizes isso apenas em tom de brincadeira?
Não, não digo a brincar. Costuma-se dizer, e a frase já é muito antiga: o homem é o homem e as suas circunstâncias. As épocas também criam perfis psicológicos. Costumo dizer aos meus alunos, e é um exemplo muito gráfico, que já foi moda, na Europa, as pessoas matarem-se. Já houve uma vaga de suicídios na Europa, muito induzida pelas elites, de escritores e artistas. Era uma tendência, as pessoas porem termo à vida. Portanto, se foi possível haver uma moda deste tipo, é fácil perceber que as pessoas são também as suas circunstâncias. Quando foi a crise do Lehman Brothers e a derrocada do sistema financeiro, vejo que a pandemia ainda engaja com essa narrativa e a necessidade de repor alguns meios e riqueza de baixo para cima…
Transferência de riqueza?
Sim. Porque essa mossa nos mercados financeiros, de facto, foi poderosa. Foi responsabilidade deles, mas foi significativa. Mas, nessa altura, houve estudos internacionais que mostravam que havia uma cultura maníaca – não psicopática, mas maníaca – que rodeava toda essa questão das Bolsas Financeiras, de Wall Street. E, dentro dessa cultura maníaca, havia várias questões associadas, desde o consumo de cocaína, à compra de serviços sexuais em barda por muitos correctores de Wall Street. Enfim, havia vários indicadores.
Fazia parte da cultura da maníaca…
Sim. E, como psicóloga clínica e criminóloga, vejo também isso como a semente da cultura psicopática que nós atravessamos agora. Porque existem vários tipos de psicopatas mas, provavelmente, aquele que nós mais devemos recear e aquele que é mais canibal, são os psicopatas com esta vertente maníaca.
Porquê?
Eles devoram tudo à sua passagem, tudo. Tudo o que estiver à frente, vai; é imparável. Na altura, eu ainda estudei um bocadinho desta cultura maníaca – longe de mim imaginar o que se seguiria. Aliás, debrucei-me sobre isso num outro livro meu, no Sonhos públicos. E, agora, quando apareceram estes sinais em Março de 2020, realmente fiquei bastante preocupada. Porque quando olhei para os números da transferência de riqueza – e nós estamos perante a maior transferência de riqueza da História da Humanidade –, é estranho realmente como é que a esquerda, outrora tão preocupada com as desigualdades do Mundo, assistiu a isto impávida e serena, porque só isso deveria ter-lhe feito disparar todos os alertas vermelhos. A mim fez-me disparar. Se eu já achava que esta gestão da covid-19 não fazia sentido nenhum logo em Março de 2020, então quando comecei a ver essa transferência de riqueza: alto e pára o baile! Então, estamos efectivamente perante a cultura maníaca a cristalizar-se num funcionamento psicopático. E o que é o funcionamento psicopático?
No teu recente livro, a segunda parte de Psicopatas portugueses, descreves sobretudo psicopatas de sangue, pessoas que assassinaram. Estes, de que falas agora, são bem diferentes…
O psicopata mais comum não mata, não precisa de matar. O psicopata mais comum é aquele que pura e simplesmente se dedica à tal instrumentalização e manietação do outro, para que o outro seja apenas um escravo seu. A partir do momento em que o psicopata está à frente de outra pessoa, ele só pensa numa coisa: como é que esta pessoa me vai ser útil para as minhas necessidades, desejos e vontades? Sexualmente, materialmente, logisticamente… Se um psicopata for interlocutor de alguém, ele está desde o primeiro momento a sacar informação, todos os dados, tudo o que lhe for possível para depois o usar contra aquela pessoa, para poder depois escravizá-la e só vai sobrar no fim a carcaça. Isto é o funcionamento psicopata. Os psicopatas têm uma prevalência de 1 em 10 na população normal; portanto, todos nós conhecemos algum psicopata. Claro, nem todos são tão sofisticados, nem todos são tão carnívoros como este perfil que eu estou a descrever; alguns são um bocadinho mais suaves. Mas todos nós conhecemos algum. Acontece que quando nós chegamos às cúpulas de poder – e isto também já está amplamente estudado –, e nas esferas do poder financeiro, científico, económico e político, essa prevalência aumenta. E porquê? Porque ter poder sobre o outro é aquilo que respira um psicopata.
Ou seja, não conseguem ver as pessoas como seres humanos…
O psicopata está sempre a exercer poder sobre o outro, é o que ele faz. Através da mentira e da manipulação, é o que ele faz desde que se levanta até que dorme, e provavelmente a dormir também. O comum mortal está orientado para se divertir, brincar, amar e, às vezes, também para ter poder – o poder de transformação, que é diferente do poder sobre alguém. O poder sobre o outro é o que dá gozo ao psicopata, porque é aquilo que o satisfaz. Portanto, os psicopatas têm uma prevalência muito superior nas esferas de poder, porque o poder é o seu código genético.
E há estudos sobre isso…
Exactamente, há muitos estudos sobre isso. Nós também podemos às vezes querer o poder, e não tem mal nenhum; o poder para fazer algo é saudável; precisamos de mudança, flexibilidade e transformação, e tudo isso é o poder para. Mas nós conjugamos isso com outros objectivos na nossa vida, como referi. O psicopata só tem uma coisa na sua cabeça, e por isso é que tem muito espaço e muitos recursos, porque só isso é que lhe interessa e só investe nisso – que é o poder sobre o outro.
Mas se nestes dois anos, estes psicopatas sentiram o sabor deste “sangue dos crimes” que foram cometidos, agora não vão querer abrir mão… Já se nota um grande à vontade na sua conduta, é isso? Agora estão agarrados a este “sabor a sangue”?
Quando os psicopatas estão muito cheios de si próprios e as suas partes narcísicas e maníacas estão extremamente ao rubro, muitas vezes já não se preocupam tanto em não deixar rasto. Como dizia o Freud, acabam por deixar o cartão de visita no local do crime. Já não tapam as pistas, deixam muitas dicas… Por exemplo, não fazem actas [caso da Comissão Técnica de Vacinação para a Covid-19], que é uma coisa básica, não lhes custava nada. Ou, então, não cometem erros boçais deste género de pôr no boletim da task force comportamental a assumir que estão a instigar ao medo.
Já não têm medo?
Um psicopata não tem medo. Isso é uma das coisas que o distingue. Uma pessoa quando vai saltar de pára-quedas sente o coração a bater e a adrenalina a subir. O psicopata não sente nada. Pode esfaquear a avó e se medires os batimentos cardíacos, o mar está flat. Portanto, não há medo, e o facto de não haver medo é muito perigoso. Porque o medo tem estes efeitos que discutimos hoje, mas também é protector. Se eu vir um leão e não fugir, estou tramada. Mas os psicopatas quando estão numa fase muito narcísica, deixam rasto, e não se preocupam em deixar provas para quem vier a seguir investigar. Mas, mesmo assim, se for encurralado, o psicopata tem dois caminhos: ou mata-se, ou mata. Normalmente é isso que acontece. Porque é que nós temos, como falo nos meus livros, psicopatas que mataram de forma absolutamente gélida e arrepiante, e a seguir se mataram? Porque não podem perder a face. Esta é a dimensão narcisista, maníaca, do psicopata… Ele nunca irá para a prisão, nunca enfrentará a justiça. Nunca vai dar parte fraca, ou levar com ovos na cabeça. Portanto, prefere matar-se. Para se perceber o que é um psicopata: o último condenado à morte em Portugal matou a mulher, o filho, a empregada, limpou a casa toda, e a preocupação dele era aparecer em tribunal imaculado. Com as calças engomadas, o colete perfeito, e ficou zangado quando a forca não funcionou bem nesse dia, porque aquilo era desagradável. Enfim, quando o psicopata está encurralado, as opções são extremas. E por isso é que eu disse que o combate é desigual. Porque agora, eles, ou matam, ou matam-se.
Havendo investigações, começando a existir mais dúvidas na população, e mais pessoas a questionarem o que tem estado a ser feito e as reais intenções por trás de determinadas políticas, algumas dessas figuras de poder poderão sentir-se encurraladas? Porque há aquela ideia de que pessoas que estão no poder jamais poderiam ser psicopatas, porque estudam, vêm de boas famílias…
Isso não tem nada a ver. Estão encurralados, estão parcialmente encurralados.
É preocupante, porque como referiste, temos a indústria farmacêutica, as grandes tecnológicas, a Comissão Europeia, o governo dos Estados Unidos… Apesar de haver muitas pessoas que estão a despertar para algumas situações, o que é certo é que eles também têm a comunicação social a puxar para o seu lado. Poderão alguma vez sentir-se encurralados?
Sim, poderão sentir parcialmente. A primeira coisa que farão, antes de chegar ao tal extremo, é a fuga em frente. Portanto, pôr mais uma camada nesta narrativa. Por isso digo, é a minha perspectiva, que isto desde o início foi feito de uma forma deliberada e premeditada. Porque como a cratera da democracia está lá, possibilita que, caso seja necessário, se meta outra dose numa narrativa extrema e mutante, e facilmente entra. O portal já está aberto.
E a crise económica, que foi criada pelos confinamentos, ajuda a isso.
Quando as pessoas estiverem com fome, e a inflação estiver ainda mais galopante do que já está, e houver mais do que latas de atum com detectores de roubo; quando já estiver tudo a ferro e fogo, as pessoas talvez se esqueçam um bocadinho da covid-19. Não digo que não [risos]. E não estarem tão preocupadas com máscaras, nem com a verdade e com a mentira, mas com comer… A crise económica pode ser a tal camada suplementar… ou uma crise nuclear. Qualquer coisa. A imaginação é o limite. A partir do momento que existe essa cratera gigante, cabe lá muita coisa dentro. A minha luta desde o princípio foi essa. Façam lá a gestão que quiserem da covid-19, mas não toquem nos nossos direitos, liberdades e garantias. Claro, vozes de burro não chegam ao céu; andei a lutar contra moinhos de vento. Mas, por isso é que eu tive sempre esta preocupação. Eu lembro-me de estar em Março de 2020, ainda na CMTV, a dizer isto: protejam os grupos de risco – as pessoas que têm mais de 60 ou 65 anos –, que é aí que se concentra a maior parte das comorbilidades. A covid-19 não ataca tudo e todos, e já sabíamos isso.
(Fotografia: Júlia Oliveira)
E a tua voz vai ser usada no futuro de uma outra forma? Que projectos é que podes ter, o que é que podemos esperar? Retomar a carreira na política?
Da política nunca saí. Faço política de outra maneira, porque cheguei à conclusão, na minha intimidade, nestes últimos anos, que não nasci para estar na vida politico-partidária, pelo menos tal como ela existe agora. Pode ser que se invente outra coisa, entretanto; e se se inventar, estou receptiva. Mas pelo menos não agora. Mas eu continuo a fazer política, de manhã à noite, todos os dias. E gosto. Gosto muito porque é natural, é inevitável para mim. Quanto aos meus projectos, eu andei todo o último ano a ensaiar um registo um bocadinho diferente, que é um misto entre Michael Moore e o Borat. Comecei a ir para a rua, com uma intervenção nas praxes no jardim do Campo Grande, porque as pessoas preocupam-se muito com o bullying mas aplaudem o bullying nas universidades. É um paradoxo social curioso e perigoso. Portanto comecei a fazer essa intervenção nas praxes e depois continuei. Até lhe chamei A Nova Variante. Entrevistei pessoas, comentava algumas coisas, ia para rua… Fui ao McDonald’s jantar a recusar-me a entregar certificado de vacinação; inscrevi-me num ginásio e fiz o mesmo também, entre outras coisas. Não só sobre a covid-19. E diverti-me imenso a fazê-lo; as pessoas gostaram muito, tive milhares de visualizações, e vejo que as pessoas estão receptivas a este tipo de intervenção, que não existe em Portugal. Então, não posso revelar tudo, mas decidi que este ano vou dar-lhe um formato um pouco mais consistente. Apurei o que funcionou melhor nessa experiência e vou dar seguimento a este tipo de intervenção agora durante este ano lectivo. Vou andar nesse modo, meio Borat, meio Michael Moore.
E onde é que podemos acompanhar-te? Vais divulgar nas redes sociais?
Sim, em formato de vídeo, e tenho a certeza que as pessoas vão gostar muito. Vou abordar sempre estes temas vistos como radicais na nossa sociedade – como a liberdade de expressão, a não aceitação de medidas avulsas e arbitrárias, a recusa da vacinação, a abordagem monoteísta da guerra na Ucrânia… Sempre a fazer um contraponto; lá está a minha costela de jornalista, e talvez também um bocadinho palhaça, como o Borat. Os temas serão variados. Estou mesmo prestes a arrancar agora em breve, mas devo dizer que na preparação, o receio que não existissem temas suficientes para fazer isto durante um ano, foi, infelizmente, infirmado. Existem temas e de sobra. E eu gosto de estar na rua, é para a rua que eu vou.
Acutilante, irreverente, incómoda. A psicóloga Joana Amaral Dias não hesita em pôr constantemente o dedo na ferida e a denunciar o que considera serem injustiças e políticas erradas. Activista política e escritora, tem sido uma das vozes críticas sobre a forma como Portugal tem gerido a pandemia de covid-19. Tem também denunciado a censura crescente, dentro e fora da Internet, não poupando fortes críticas à atuação da comunicação social nos últimos dois anos. Nesta primeira parte de uma grande entrevista ao PÁGINA UM, a ex-deputada conta como a sua família foi ameaçada devido às suas posições públicas. Diz que parte da população está hipnotizada, ou mesmerizada, como prefere dizer. E avisa que estamos já a caminho de passarmos a viver em regimes totalitários na Europa.
Já se pode fazer um balanço sobre a gestão da pandemia, em Portugal e em outros países? Como vês os últimos desenvolvimentos?
Podemos fazer não um balanço, mas um balancete. Talvez ainda não tenhamos terminado esta fase, e há quatro ou cinco pontos que eu penso que devem estar inclusos nesse balancete. O primeiro é que Portugal fez uma gestão absolutamente calamitosa da covid-19, porque somos dos países que tem números mais impressivos de mortes registadas por covid-19, mas somos também um dos países que tem maior excesso de mortalidade. Inclusivamente, alguns números que eu considero particularmente sensíveis no que diz respeito à mortalidade materno-infantil. Por outro lado, simultaneamente, Portugal é dos países com maior taxa de vacinação, e eu acho incrível como é que não se estabelecem relações – não digo nexos causais, mas pelo menos correlações – e não há um debate amplo, aberto e franco sobre esses elementos. Porque talvez ainda não possamos chegar às tais conclusões finais, mas penso que já ia sendo altura de haver espaço na nossa sociedade para fazer esse debate. Portanto, é com perplexidade e, sobretudo, muita apreensão que eu reparo que a mordaça e a censura que vem sendo agravada desde Março de 2020 ainda perdura. Esse é um aspecto.
E há outros…
Sim, há um mais amplo e não apenas nacional. Nestes últimos anos houve uma alteração profunda daquilo que são as regras na democracia. Ao nível dos direitos, liberdades e garantias abriram-se alçapões, debutou-se um regime de excepção que não é revogável e não é reversível. Pelo menos, não de uma forma tão simples. Isso não sarou nem fechou de uma forma assim tão linear quanto isso, e que podem ser aproveitados, ou pelos mesmos que os criaram ou por outros. E isso gera também muita preocupação. A parte da censura que eu falava há bocado. Embora tenhamos sido apodados de negacionistas, conspiracionistas, chalupas, etc., a verdade é que o Tribunal Constitucional, quer em Portugal quer noutros países, já nos vêm validando e dando razão. De facto, a Constituição da República Portuguesa foi atropelada e esmagada neste processo. Vejo com muito maus olhos e com muita apreensão esta alteração das regras no regime democrático. E, por outro lado, vejo que ao nível europeu e internacional – Estados Unidos, inclusivamente – as informações que vão sendo libertadas, por exemplo, agora mais recentemente, sobre a Pfizer ter lançado no mercado a vacina sem ter feito a devida testagem para garantir que ela não prevenia a transmissão…
E com esses acórdãos do Tribunal Constitucional, julgas que existirá uma tomada de consciência?
Essas notícias e este tipo de informação e de dados continuam também a ser abafados, a não ser debatidos e a ter as devidas consequências. Isso preocupa-me. Portanto, estou apreensiva e expectante. Não sei se este Inverno nos vai trazer, de novo, outra vaga de covid-19, ou se agora vão assumir que há gripes e que há outras doenças que afinal nunca desapareceram. Mas, de qualquer maneira, mesmo que não consigam voltar a impor a narrativa “covid” pura e dura, como ela foi em 2020 e 2021, e até 2022, o resto está lá. Tomara que esteja errada, mas tenho para mim que esta narrativa “covid” serviu sobretudo para isso: para abrir esta cratera no regime democrático. E, portanto, esse aspecto está feito, check. Foi alcançado por parte destas forças, muitas delas não eleitas, e que seguir-se-ão outras narrativas, outras novidades, digamos assim, para os quais a cama está feita, o terreno está fertilizado.
Até porque já se criam estratégias e programas para futuras pandemias. Ou seja, já está essa porta aberta, essa brecha, para voltar a violar a Lei e a Constituição.
Acho que o solo está fertilizado para pandemias ou para outras coisas quaisquer. Porque quando falamos na retirada de direitos, liberdades e garantias essenciais, como o direito ao trabalho e a teres a tua porta aberta, ou à saúde, e teres assistência médica independentemente de estares vacinado ou não estares vacinado, o direito a visitares os teus familiares, etc… Quando falamos da supressão ou da negação desses direitos, essa supressão depois pode ser aplicada a muitas situações. O portal está escancarado para pandemias ou para qualquer outra invenção que lhes ocorra ou que na sua mente, seja necessária.
Neste momento, há pedidos para uma maior transparência, nomeadamente em torno dos contratos de compra das vacinas. A Procuradoria Europeia está a investigar. Vai haver essa investigação, vai apurar-se efetivamente por que motivo há tanto secretismo, tanta opacidade, não só na compra dos contratos? Também agora se sabe que não existem actas das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que é algo um pouco estranho.
Esta parte da censura, de facto, casa bem com a opacidade. A censura é um instrumento de transformar certas partes do discurso e da intervenção pública opacas, mas da própria ação dos agentes políticos e dos governantes também opacas. Portanto, a censura tem estes dois lados. Eles autocensuram-se, autobloqueiam-se, não há transparência, não há prestação de contas. Ou seja, todos estes mecanismos que fazem parte de uma democracia madura e de regimes democráticos avançados. Portugal nunca esteve propriamente no pelotão da frente no que diz respeito a essas boas práticas. Esteve sempre na cauda, e continua, noutros sectores que temos vindo a falar, além da questão da covid-19, destas matérias sobre a participação em empresas, nomeadamente em empresas que fazem negócios com o Estado. Nota-se bem que nunca conseguimos estar na dianteira. Mas, neste caso específico das vacinas, isto passou todos os limites. Lá está, a tal cratera que foi criada. À “pala” da desculpa das patentes, que enfim, já era uma desculpa de mau pagador, porque se era serviço público, a União Europeia não tinha que pagar estas vacinas três vezes: pagar para financiar a investigação e o desenvolvimento destas vacinas, e depois pagar para as comprar, e depois pagar para ressarcir as pessoas que tiveram problemas com efeitos secundários adversos, etc., etc.
A questão das patentes foi pouco abordada pelos media. Tal como os efeitos adversos das vacinas…
As patentes deviam ter sido levantadas, e nós devíamos ter todos direito a saber e a conhecer a composição precisa destas vacinas, algo que até hoje continuamos sem ter acesso e esta é que é a verdade pura e dura. Não sabemos qual é a composição destas vacinas. Portanto “à pala” disso, da proteção da indústria farmacêutica, foi dito que os contratos tinham que ter várias cláusulas que funcionassem efetivamente como sombras e biombos, o que não é justificado. E isso perdura até agora, até hoje. A semana transata foi fértil em boas notícias, para quem tem estado nesta luta já há tanto tempo, porque faz parte, essa questão também está inclusa. Mas esta comissão (especial sobre a pandemia de covid-19 no Parlamento Europeu) já está a lidar com dificuldades. Albert Bourla, CEO [presidente executivo] da Pfizer, teve o desplante de se recusar a depor perante uma instância que, para todos os efeitos tem poderes judiciais. É como aqui, uma comissão parlamentar de inquérito no parlamento português à Assembleia da República. Portanto, vejamos, um bom caso para ilustrar o nível ufano a que estas personagens se acham e se posicionam. Pode dar-se ao luxo de não ir depor. Estou expectante justamente por isto, porque houve alguns avanços, mas sou moderadamente otimista e também estou apreensiva. Porque houve um concílio de interesses muito forte. A grande indústria farmacêutica teve uma alteração dramática nestes últimos dez, quinze anos.
Não foi apenas o sector farmacêutico…
Foi todo o capitalismo, mas isso nota-se mais numas áreas do que em outras. No sector farmacêutico, até há dez ou quinze anos, havia muitos pequenos e médios laboratórios, produziam medicamentos, vacinas, etc… Houve aqui uma alteração radical deste caminho do capitalismo para um sistema monopolista. Também aconteceu na big pharma. Os pequenos e médios laboratórios foram todos engolidos praticamente por quatro ou cinco grandes empresas que existem neste momento, nesta área. Portanto, deixaram de existir esses pequenos e médios laboratórios, deixou de existir uma sã competição e concorrência e passou a haver apenas dois ou três suppliers [fornecedores], como eles gostam de dizer no mercado. O que desvirtua aquilo que o capitalismo tinha de melhor. [risos] Porque na minha perspectiva, se alguma coisa o capitalismo tinha de salubre, era justamente a competição e a rivalidade. Depois, tinha muitos inconvenientes também, na minha perspectiva, muitas coisas que precisam de ser dirimidas, e precisam de ser cinzeladas, mas das poucas coisas boas que tinha que é de facto haver competição, isso desapareceu. E neste momento, no sistema monopolista, é o que se verifica. No big pharma isso nota-se muito, e no big tech também. Esta conjugação de interesses que houve durante a pandemia, entre proteger os quatro ou cinco grandes grupos económicos que estão em franco crescimento, como as grandes tecnologias e as grandes farmacêuticas, teve como um dos resultados de facto o insuflar destes agentes a ponto de se acharem que podem não responder no Parlamento Europeu. Portanto, volto a dizer, estou expectante, mas apreensiva, o meu otimismo é muito moderado.
Em todo o caso, há aqui um avanço, no sentido de haver escrutínio sobre um tema que, por exemplo, a maioria dos principais media nem sequer toca. A comunicação social, o facto de não querer escrutinar este e outros temas, levanta preocupação?
Eu vejo isto com muita preocupação porque, na verdade, a covid-19 enfraqueceu quatro ou cinco outros poderes importantes na sociedade mundial. Enfraqueceu o poder médico, nós sabemos que o poder e o prestígio da classe médica é muito importante. Era muito importante, mas foi claramente enfraquecido. Hoje sabe-se que há estados nos Estados Unidos onde os médicos vão perder a sua liberdade de ir contra, ou de questionar, aquilo que são as decisões políticas. Mas isso já se adivinhava antes, alguns médicos podem olhar para isto agora com admiração, mas é evidente que se não o fizeram atempada e oportunamente, agora vão pagar caro as consequências. Portanto, o poder médico vergou-se perante o poder político. Vamos lá ver a sequência e olhar do grande peixinho para o pequeno peixinho. O grande poder económico vergou o poder político, o poder político vergou o poder médico, e vergou também o poder da comunicação social.
Como viste esse “vergar” da comunicação social?
A comunicação social teve, outrora, uma função primordial de watchdog, de escrutinador, de fazer a pergunta incómoda, ser a pedra no sapato… Eu não sou jornalista, embora trabalhe na comunicação social há mais de vinte anos, e, portanto, sou um bocadinho jornalista, digamos assim, e tenho já uma costela por aquisição. Mas, de facto, como se costuma dizer, se a pergunta não for incómoda, é só propaganda. Se a pergunta não for difícil, é só publicidade. O papel do jornalista é justamente ser chato! É ser, de facto, inconveniente. Se o jornalista não é inconveniente, não é jornalista. É assim que eu leio, na minha experiência de trabalho e como cidadã. As duas coisas. O jornalismo abdicou de ter esse papel, e, portanto, tal como os médicos, se inicialmente abdicou desse papel para não se prejudicar, achando que se fosse na corrente era mais fácil, agora provavelmente vai pagar cara essa fatura, tal como estes médicos, que já começa a aparecer estas situações, que agora não podem levantar “grimpa”, caso contrário, “levam na cabeça”. E, portanto, o grande poder económico engoliu o poder político, o poder político por sua vez devorou o poder médico e da comunicação social. Ou seja, ao fim ao cabo, o tal regime monopolista que se vinha desenhando na transição do século XX para o século XXI, neste momento está de pedra e cal, é assim que eu vejo.
Como um padrão que se vai repetindo, estaremos numa época em que estão de novo a surgir regimes totalitários na Europa? Vai por ondas, um bocadinho como as crises financeiras. Estamos nessa fase ou podemos travar e impedir que isso venha a acontecer?
Não, nós não estamos num regime totalitário, na minha perspectiva. Nós já vivemos num. Há quem diga que nós já estamos a viver a Terceira Guerra Mundial, e que estes movimentos que vamos vendo na Rússia, Ucrânia, Taiwan, vão aparecer na História, um dia, como a antecâmara da Terceira Guerra Mundial. Não sei se isso é verdade ou não, mas sei que estamos na antecâmara dos regimes totalitários, isso eu já tenho mais certezas. Porque a chamada transição digital, que também já está em curso, tem sido feita contra os cidadãos. Tudo aquilo que era benéfico, tudo o que era vantajoso para as populações nessa transição digital, nomeadamente os processos de descentralização, têm sido fortemente atacados. Ou seja, aquilo que eram os processos de descentralização da informação, há cada mais censura nas redes sociais. Aquilo que têm sido os processos de descentralização da moeda, há cada vez mais ataques à criptomoeda, e por aí fora. Ou seja, aquilo que podia representar uma mais-valia para a cidadania e para a participação cívica, está a desaparecer na transição digital. E aquilo que era benéfico para os grandes poderes centrais e para o tal regime monopolista, está a ganhar raízes. Refiro-me, nomeadamente, à possibilidade de haver um euro digital; refiro-me, nomeadamente, à tal narrativa única e ao unanimismo.
O tal consenso que não existe, o falso consenso.
Eu não sei se ele é falso, ele parece como unanimista. Não sei se é falso. Falso pressupunha que havia aqui uma vontade e valores de fazer de outra forma. E aquilo que há é, de facto, uma postura unanimista, mais do que um consenso, é unanimista. Portanto, todos numa só nota, afinados por um só diapasão. E essa transição digital parece-me que é sobretudo centralista, monopolista. Ou seja, engrossando esse caudal totalitário, para responder à tua pergunta. Portanto, eu acho que nós estamos definitivamente já na pré-história do tal regime totalitário. Embora eu repudie e não me reveja na maior parte das coisas, ou em nada, da extrema-direita, na verdade eu não acho que isso seja a grande ameaça neste momento. Acho que isso são espantalhos que são colocados no campo para que o cidadão mais incauto ache que ali é que está o perigo e o risco, mas o risco não está na extrema-direita. Pode estar ali algum risco, mas o verdadeiro risco não está aí. Está nos senhores do mundo, no tal 1% ou 2% que detém quase toda a riqueza mundial e se apresentam como invencíveis.
Aliás, o principal ataque à população, que foi a maior campanha de discriminação e segregação depois da II Guerra Mundial e que veio da Comissão Europeia – que não é de extrema-direita -, com a criação do certificado digital. E que já se sabia que não tinha qualquer base científica.
Sim, já sabíamos e agora confirmámos. E estamos a falar de poderes não eleitos, convém sublinhar de novo. Como Ursula von der Leyen, e outros. Estou a dar este exemplo porque ela é casada com uma pessoa muito importante na indústria farmacêutica e as suas comunicações com as várias farmacêuticas estão também sob investigação, que – lá está –, é algo que devia ser absolutamente translúcido. Mas ela não foi eleita, portanto há aqui uma mistura também perigosa até nesse nível, de pessoas que nunca foram a votos.
Tens sido uma voz muito activa. Sofreste alguns ataques, insultos, injúrias. Como é que está agora a situação? Já te dão razão?
O meu caso é um bocado particular, porque quando eu cheguei a esta questão de 2020, já vinha com muito traquejo e muitos haters, ameaças de morte e muita maledicência, boatos e mentiras. Portanto, eu já vinha com uma bagagem grande, e isso foi bom para mim, porque ao contrário de outras pessoas que passaram a ser vozes dissonantes a partir de Março de 2020, eu já vinha levando “porrada” desde que cheguei à esfera pública, há quase 25 anos. Não é que eu faça de propósito, mas acabei por estar sempre um bocadinho contra a maré. Algumas vezes, se calhar de uma forma errada ou involuntária, mas a verdade é que já me tinha acontecido muitas vezes. O meu pai brincava comigo e dizia: “Joana, tu até do Bloco de Esquerda conseguiste ser expulsa!” O que não é verdade. Eu não fui expulsa, saí pelo meu próprio pé; fui eu que entreguei a carta a revogar a minha militância. Mas, pronto, ele dizia isso com piada, porque eu sempre fui muito contestatária. Portanto, em Março de 2020 eu já estava preparada, já tinha um bom sistema imunitário para aguentar [risos].
Mas atingiu níveis mais elevados durante a pandemia, certo?
Chegaram até às ameaças de morte, e a dizerem que me iam internar e decretar-me como louca. Eu tenho esses e-mails todos guardados. Eu sei que muitas pessoas têm aproveitado para se vitimizar, desde o almirante Gouveia e Melo, e outros, mas na verdade isso aconteceu com muita gente. Ameaçaram a vida dos meus filhos, a minha carreira profissional… Mas isso aconteceu sempre, desde o início, e eu não dou grande importância, não dou muito crédito nem tenho medo disso. Sempre achei que devia era ignorar e prosseguir, os cães ladram e a caravana passa. Tenho essas comunicações guardadas, feitas quer por telemóvel, quer por e-mail, e também pessoais, que essas não pude guardar, mas as que pude, tenho-as arquivadas. Tenho esse acervo, mas nunca quis fazer nada de especial em relação a isso.
Mas chegaram a ameaçar-te pessoalmente, cara-a-cara?
Sim, sim. Na rua, e também em contextos semi-privados já me fizeram várias ameaças. Mas, como te digo, seja pela minha personalidade ou formação profissional, a verdade é que não estou para perder tempo com isso. Houve um ou outro caso muito particular que eu tive que dar resposta e perder um bocadinho de tempo com isso, mas o meu tempo é escasso. Eu quero alocar os meus recursos àquilo que eu valido como sendo prioritário na minha vida, e o recurso mais precioso que nós temos é o tempo, definitivamente. E, do ponto de vista da minha intervenção no espaço público, não quero perder tempo com haters, e aliás, não lhes respondo aos e-mails nem nas redes sociais. Mas, para dar um exemplo mais concreto, cheguei a ter colegas meus de profissão que não me conhecem de lado nenhum e arranjaram o meu número, sabe-se lá como, a ligarem-me a um domingo às 16h e a aconselharem-me a retirar posts ou a ameaçarem-me veladamente, portanto a interromper o meu descanso dominical e as horas de família com isto. Eu guardo essas comunicações religiosamente, mas só para o caso de um dia mais tarde ser necessário. Mas não perco tempo com vermes.
Aliás, para ligarem a um domingo, sendo psicólogos…
São tácticas de pressão, e que estão amplamente estudadas pela psicologia. Aliás, se há coisa que para mim foi evidente desde o primeiro momento com a covid-19, foi que estávamos perante a utilização de alguns dos principais instrumentos e técnicas da psicologia – social e experimental – não ao serviço das populações, como elas devem estar, mas contra as populações.
Foi uma guerra psicológica…
Isto é uma guerra psicológica. Nós estamos perante vários níveis belicistas, mas este faz parte do centro dessa guerra. Aliás, o medo e a angústia de morte são as principais emoções humanas, das mais antigas que nós temos. O cérebro humano é um fóssil vivo, porque nós temos todas as camadas, desde a reptiliana, depois das aves, dos mamíferos, dos primatas superiores e depois uma parte do cortéx frontal – que permite processos de tomada de decisão complexos, que é exclusiva do homo sapiens sapiens. Mas estas camadas estão lá todas, e quando nós activamos partes muito primárias do nosso funcionamento, que salivam perante emoções muito fortes como a morte e o medo… não há medo mais forte do que o medo de morrer, como é evidente. Aliás, todo o medo é o medo da morte; ele pode depois aparecer colorido de outra maneira no nosso pensamento, mas todo o medo é o medo da morte. Portanto, quando nós activamos principalmente isto, estamos a manipular e a manietar os cidadãos da forma mais primal e mais agressiva que se pode fazer. E foi isto que foi feito com a covid-19. Nós estimulámos directamente a parte mais arcaica do funcionamento humano, e depois isto tem muitos floreados do ponto de vista das técnicas psicológicas, mas foi efectivamente isso que aconteceu.
A tua formação em Psicologia terá ajudado…
Eu lembro-me de ser muito miúda, quando tinha uns 19 anos, e numa aula da faculdade de Psicologia Experimental – que era uma das minhas favoritas –, ter dito ao meu professor: “eu espero que isto nunca seja usado contra as pessoas!” Porque são autênticos superpoderes, e não é para “puxar a brasa à minha sardinha” da Psicologia, mas a Psicologia tem superpoderes. Basta dizer que nós conseguimos hipnotizar pessoas. A hipnose não tem nada de mágico ou sobrenatural, é simplesmente induzir um estado que está entre as ondas cerebrais Alfa e Beta, que não é da consciência nem é onírico, está entre ambos. E onde nós conseguimos telecomandar as pessoas; telecomandar no sentido literal da palavra. A hipnose tem várias técnicas e meios. Dou um exemplo com o qual, enfim, penso que toda a gente está familiarizada, que são as mensagens subliminares na publicidade, e que emanam de conhecimentos científicos da psicologia. E, portanto, há várias maneiras de o fazer, e que foram empregues não para o bem – como aliás já vinha a acontecer, porque já se tinham aberto várias caixinhas de pandora que deviam ter ficado fechadas –, mas desta vez abriram a caixinha toda e soltaram-se as serpentes. Eu acredito que nada na sociedade deve existir se não for para servir o bem comum, e se não for para servir os povos. A Economia só faz sentido se for para servir os povos, a ciência só faz sentido se for para servir os povos. E aqui ela está a ser empregue exactamente no sentido oposto.
Dirias que uma boa parte da população portuguesa e europeia está hipnotizada?
Está mesmerizada, que é uma palavra que eu resgatei do nosso vocabulário científico. Franz Anton Mesmer foi a primeira pessoa muito antes da hipnose clínica experimental, que depois foi desenvolvida pelo Charcot e pelo Freud, entre outros. E enfim, hoje em dia é utilizada para muitos meios. Há pessoas que até, seja por motivos médicos ou religiosos – como as testemunhas de Jeová – não podem querer ou não podem ser anestesiadas e faz-se uma hipnose para poderem ser sujeitas a intervenção cirúrgica. A hipnose é poderosa. Mas a hipnose clínica experimental ganhou consistência com Freud e Charcot, mas foi Mesmer que foi um dos seus pioneiros e é definitivamente um marco nessa área. Mas eu gosto dessa ideia de mesmerização da população, porque não é uma hipnose individual como ela é aplicada no contexto clínico-experimental; é uma hipnose em grupo, e com recurso a várias técnicas complementares e coadjuvantes. Portanto, eu decidi resgatar este termo – mesmo internacionalmente com os colegas com quem vou trocando experiências e impressões – da mesmerização, que dá um pouco a ideia da amplitude e da profundidade da hipnose a que fomos sujeitos. Por isso, a resposta é sim [risos].
(Fotografia: Júlia Oliveira)
E isso explica, se calhar, como é que algumas pessoas consideradas racionais, cientistas e matemáticos, conseguem não questionar algumas regras e noções que são tão disparatadas e, logo à primeira vista, se consegue perceber que não têm racionalidade nenhuma…
Sim, há uma parte que nós percebemos que é absurda, não é? Eu, sobre isso, acho duas ou três coisas. Acho que o absurdo faz parte dos regimes totalitários. Esses regimes sempre misturaram a sua missão absoluta e definitiva com medidas contraditórias e estapafúrdias para baralhar e confundir as populações e alargar os seus poderes. Portanto, há aqui elementos que foram ziguezagueantes, e, aparentemente, um sortido escaganifobético de medidas durante a covid-19. Pessoas que foram multadas por comerem gomas na rua… As pessoas podiam estar todas no calçadão na Marginal ao mesmo tempo, mas a praia estava vazia. Coisas assim esquizofrenizantes, que algumas pessoas dizem: “ah, isto é absurdo e contraditório”. Se calhar, algumas dessas medidas foram sem querer, mas algumas que eram aparvalhadas, era de propósito, justamente para “quebrar a espinha” em definitivo.
As pessoas, na generalidade, aceitaram todas as restrições…
Quem aceita coisas aparvalhadas, aceita tudo. E, portanto, esse princípio totalitário não é novo. Eu também não sou historiadora, da História das Ditaduras, mas sei o suficiente para saber que isto não foi inédito. Quanto ao facto de haver pessoas informadas, racionais, inteligentes e dotadas de espírito crítico, que aceitaram de uma forma amorfa todas estas medidas, é preciso dizer que algumas aceitaram porque receberam dinheiro. E isto é importante sublinhar, e já é público. Nós sabemos que houve influencers sanitários que fizeram isso. Aceitaram porque, efectivamente, foram subornadas – a palavra é essa. Houve um suborno e há aqui uma história paralela de corrupção e de crime que importa ser levantada. Há bocado, falávamos sobre isso, cláusulas opacas, mentiras… Há aqui esta parte que importa perceber, esta é a primeira camada. Depois, noutra camada: houve pessoas que tiveram uma fala dúplice. O seu discurso público era uma coisa, e depois na reserva da vida privada era outra. Isto encontra-se muito facilmente.
Voltamos à Psicologia…
Sim. Por exemplo, algumas experiências na Psicologia, que têm sido muito badaladas por causa da covid-19, são aquelas da pressão de grupo, em que convencemos o grupo grande de pessoas que o segmento de recta A, que é pequenino, é maior do que o B, que é muito maior. É uma coisa básica e concreta, uma experiência clássica da Psicologia Experimental. Mas, as pessoas que acabam por dizer que o pequenino é que é o grande, sabem intimamente qual é o maior e o mais pequeno, apenas dizem o mesmo que os outros para não se chatearem! Porque não estão para enfrentar a pressão de grupo e da autoridade, e querem fazer parte do rebanho. Portanto, esses que tiveram um discurso duplo são outro grupo. E, finalmente, há os que são inteligentes e racionais, mas que ficaram de facto com a amígdala cerebral inflamada [risos]. Há muitas pessoas que, quando activaram essa parte reptiliana do cérebro, embora sejam inteligentes e racionais, não têm uma estrutura de personalidade suficientemente robusta e capaz para aguentar o embate dessa angústia extrema da morte. E que depois de terem embarcado, logo em Março de 2020, nessa nave de loucos do receio de que íamos todos morrer com covid-19, não conseguiram voltar atrás.
Algumas não terão querido dar o braço a torcer…
Não conseguiram admitir que estavam erradas. Outras já não conseguiram desengajar dessa profunda angústia de morte. A angústia de morte é uma coisa poderosíssima. Lovecraft, que é um dos meus escritores favoritos, dizia que o medo é a única emoção que importa. Eu dantes discordava um pouco dele, agora começo a dar-lhe razão [risos]. Até mesmo pessoas eruditas sucumbem. Mas, isso para mim também não foi uma novidade, porque eu trabalho com a personalidade. O que é que eu faço todo o dia como psicóloga? E, mesmo na história da humanidade, por exemplo, sabemos que os nazis ouviam Mozart. Portanto, as pessoas podem ter dinheiro, beleza, cultura, erudição, mas se não tiverem uma personalidade, se não tiverem valores, essa hombridade e carácter, acabam por sucumbir. E foi o que nós vimos a acontecer.
O escritor guatemalteco Eduardo Halfon esteve em Portugal para participar no FOLIO 2022 – Festival Literário Internacional de Óbidos, e aproveitámos esta visita para falar com o autor, que em 2019 venceu o Prémio Internacional do Livro Latino e em 2007 foi considerado um dos 39 melhores escritores latino-americanos pelo Hay Festival de Bogotá. O romancista acaba de lançar Un Hijo Cualquiera em Espanha, mas o seu mais recente livro a chegar a Portugal é Luto, editado em Fevereiro passado pela Dom Quixote. É o sétimo volume de um projecto literário em que o narrador se chama, também ele, Eduardo Halfon, e partilha da mesma biografia que o autor – desde o nascimento e país de origem, ao passado da família. E as suas raízes familiares são, precisamente, um dos temas mais característicos da sua obra. Neste Luto, Halfon traz-nos a história do sequestro do seu avô em plena Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), misturando acontecimentos verídicos com ficção e confundido o leitor sobre o que é apenas arte e o que foi mesmo real… um mistério que Halfon explicou ao PÁGINA UM, numa conversa que aborda também a forma como a escrita tomou de assalto a sua vida, o conflito bélico que dividiu e assolou o seu país no século passado e os problemas que ainda se mantêm.
O seu projecto literário, do qual Canción faz parte, é composto por vários romances, mas este é o segundo a ser editado em português, depois de Luto…
Sim, é o segundo volume a ser editado em Portugal, mas não em Espanha. Em Espanha, são já seis livros… ou serão sete? Deixe-me contar [risos]. O projecto começou com o livro El boxeador polaco , publicado em 2008, e foi aí que “nasceu” este narrador, a sua história, a sua voz. É um livro muito pequeno, e que, por acaso, termina em Portugal. No último capítulo, a história desenrola-se na Póvoa de Varzim.
Porquê em Portugal?
Aconteceu. Fui convidado para o festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e escrevi sobre a minha passagem por lá. Acabou por resultar muito bem como final para esse livro. Portanto, publiquei esse livro em 2008 e, três anos mais tarde, uma dessas histórias tornou-se um capítulo de La Pirueta. Dois anos mais tarde, mais uma das histórias entrou num capítulo de Monasterio. Então, Monasterio é o terceiro, Signor Hoffman é o quarto, Luto é o quinto, Canción é o sexto, e acabei de publicar um novo livro, Un Hijo Cualquiera, que é o sétimo. Adoro como soa o título deste último em inglês: Any Given Son. Acho lindo [risos]. Mas, portanto, em português publicámos apenas dois volumes deste projecto. Um projecto que eu não tinha planeado de todo fazer.
Quando escreveu El Boxeador Polaco ainda não sabia que iria dar-lhe continuidade?
Não, não fazia a mais pequena ideia de que iria fazê-lo. Publiquei El Boxeador Polaco, e pronto, pensava que a história terminava ali. Mas, depois, foi evoluindo, as personagens reapareceram… e a história começou a crescer diante dos meus olhos. Agora, não sei para onde está a ir, nem sei quando vai e como vai acabar. Os livros não seguem nenhuma ordem particular. Uma editora pode começar por publicar Luto, e depois os outros. Ou, mesmo um leitor, pode lê-los na ordem que quiser. São apenas sete livros todos contados pela mesma voz. Com o mesmo narrador, os mesmos medos, os mesmos temas, a mesma família, os mesmos desejos… Dou-lhe um exemplo. Canción começa no Japão, e conhecemos Aiko, uma personagem que já tinha aparecido no antepenúltimo livro. Foi uma participação curta, de uma página, e eu não sabia quem ela era, simplesmente apareceu-me. E, agora, já sei quem ela é! Mas foram precisos três ou quatro livros… isto acontece recorrentemente. Por isso, não existe nenhum plano pré-concebido. É um projecto que tem vindo a crescer de forma autónoma, com a minha ajuda.
O narrador é participante e seu homónimo. Além disso, tem também em comum consigo, a idade, a nacionalidade, a história familiar… Por vezes, parece que são exactamente a mesma pessoa. O que é que distingue, afinal, Eduardo, o narrador, de Eduardo, o autor?
Pois, não somos a mesma pessoa. Nós partilhamos o mesmo nome, a mesma “biografia”… mas é só isso. Ele tem uma personalidade muito diferente da minha, um temperamento diferente. Ele fuma, e muito. Eu não. Ele viaja, eu já não viajo. Portanto, nós partilhamos o “superficial”, digamos assim. La fachada, diríamos em castelhano. Mas ele é muito diferente, é toda uma personagem. Eu sei como é que ele fala, conheço a voz dele, que não é como a minha. Ele diz as coisas com muito mais à-vontade do que eu, é muito mais diplomático. Por isso, sim, trata-se de uma personagem. O que torna tudo mais confuso é o facto de ele ter o meu nome. Mas ele é, de facto, uma personagem ficcional.
No final de Canción, há uma passagem que diz que “todo o autor de ficção é um impostor”. Uma vez que, nas suas obras, a linha que separa o verídico da ficção se torna tão nebulosa, como engana o seu leitor? Levando-o a acreditar que o que está a ler aconteceu mesmo, quando não aconteceu, ou o oposto?
Sim, eu sei que engano o leitor, e faço-o de propósito. É como um mágico que faz um truque, e lhe conta como o faz, mas, ainda assim, consegue impressioná-la com o seu truque. Então, eu digo ao leitor que o livro é um romance; é a categoria em que está. Mas, na página 5, ele já se esqueceu disso. E lê-o como se fosse uma autobiografia, como se fosse absolutamente real. E não é, é uma ficção. É verdadeiro, mas não é verdade. São coisas diferentes. Porque é que eu faço isto? Porque eu quero que me leiam assim. Quero enganar o leitor, e que ele leia como se fosse real, porque assim a reação emocional será maior. Ficará mais envolvido com a história. É quase como ler como uma criança, que não se questiona sobre se aquilo é real ou imaginário. Simplesmente é. E isso acontece com os meus livros: o leitor sabe que se trata de ficção, mas esquece-se, e é “engolido” para a história. E creio que é por isso que o faço; é a única resposta que eu tenho para o porquê de escrever desta forma, e de cruzar ficção com realidade. E eu já vi acontecer, vezes e vezes sem conta, pessoas que leram os meus livros como se não fossem ficção.
Falou na reacção emocional de quem o lê. Qual é que tem sido o feedback dos seus leitores?
Depende do livro em questão, porque o sentimento que eu pretendo suscitar nas pessoas difere muito em cada uma das minhas obras. Luto comove muito os meus leitores, especialmente o final, e era isso que eu queria. Queria retratar quase uma death march de crianças, em direcção ao lago… Então, a reacção que tenho dos leitores pode ser muito diferente. Canción é uma viagem à América Latina e ao seu passado, mas também a estes lugares estranhos da minha identidade e à aceitação daquilo que significa ser o neto de um homem libanês. E o livro começa no Japão, mas é por uma razão muito específica: quando fui convidado para esta conferência de escritores libaneses no Japão, que realmente aconteceu, eu pensava que era um engano ou uma piada, porque eu não sou libanês. Mas eles disseram-me “és sim, tens um avô libanês, tens essa herança”. E, na altura, eu não levei isso muito a sério, mas algo aconteceu no Japão que mudou o meu foco. Foi quando comecei a investigar a história do meu avô paterno.
Então, Canción começa com essa conferência no Japão, porque foi esse acontecimento que o levou a descobrir o sequestro do seu avô paterno em plena guerra civil da Guatemala, que é o mote para este livro. Antes disso, não tinha tido curiosidade em explorar esse lado da família…
Exactamente. Eu descobri a história do sequestro depois de ir ao Japão. Antes disso, estava mais interessado em explorar a história do meu avô materno, que era polaco. Então, El boxeador polaco era mais sobre ele; sobre Auschwitz e tudo o mais… Portanto, alguns livros são mais sobre a sua história de vida, a viagem à Polónia e a Israel. E, de repente, o Japão aconteceu e a minha atenção desviou-se.
A sua família tem histórias que dão para muitos livros?
Sim, mas eu acho que todas as famílias têm. Todas as famílias têm histórias, a diferença está só no facto de eu as escrever. Porque todas as histórias que eu conto, antes de as passar para o papel, são apenas memórias familiares, coisas que oiço. Dizem-me, “sim, sim, o teu avô passou por X ou Y…”. O “truque” está apenas em transformar essas histórias em literatura. Mas eu acredito que todas as famílias as têm.
Mas sempre teve interesse no passado da sua família?
Não, nunca. Até começar a escrever. Escrever fez-me ganhar interesse na história da minha família e na História do meu país… porque eu também não estava interessado na Guatemala. Também não tinha interesse no judaísmo, de igual modo, e passei a ter. Estou interessado em tudo isso, como escritor. Eu tenho uma relação muito distante com a minha família, vivo longe e não somos muito próximos. Sinto uma grande distância em relação ao meu país, e em relação ao judaísmo… excepto quando escrevo. Portanto, interesso-me em tudo isto, do ponto de vista literário. São histórias.
E quando é que começou a escrever?
Bom, eu só me tornei um leitor aos 27 anos. Antes disso, não gostava de livros, e nunca lia. Estudei engenharia industrial na faculdade, e só descobri a literatura mais tarde, por acidente. Então, só comecei a escrever por volta dos 30, e publiquei o meu primeiro livro com 32 anos. Precisei de alguns anos para perceber o que estava a acontecer, porque foi muito inesperado, uma mudança abrupta na minha vida. Eu não gostava de livros, não os compreendia, e de repente, algo aconteceu. Houve um clique, e mergulhei nesse mundo. Tornei-me um leitor e não queria fazer mais nada senão ler, durante dois ou três anos. Só queria ler, lia compulsivamente, era um vício. Lia um livro por dia, não queria sair de casa nem trabalhar. E acho que começar a escrever foi uma consequência, uma reação ao excesso de leitura. Li demasiado, e depois pus-me a escrever.
E foi quando percebeu que queria ser escritor que rumou a Paris? Por achar que era o lugar ideal para escrever…
Bem, sim, não fui para lá viver, mas fiz uma viagem a Paris. Quando percebi que queria experimentar isto da escrita, fui para Paris durante alguns meses, com esta ideia romântica e estúpida de que seria perfeito para escrever, mas foi horrível! Foi horrível, fiquei muito doente assim que lá cheguei, estava sozinho, num hotel barato… Foram uns meses terríveis. Ia para os cafés ler, mas a sentir-me indisposto. Mas, algo aconteceu depois! Quando regressei a casa, no dia em que cheguei, recebi uma chamada de um professor de uma universidade a oferecer-me trabalho como seu assistente. Então, agora, quando olho para trás, vejo aquela altura como um ponto de viragem. Antes de Paris, eu era um engenheiro, um filho obediente. Depois de Paris, comecei a trabalhar na universidade e a escrever. E, pouco tempo depois, publiquei o meu primeiro livro. Por isso, Paris resultou de uma forma muito estranha. Não da forma que eu estava à espera, mas de outra.
A partir daí, largou a ideia de que Paris era a cidade idílica para a arte de escrever… [risos]
Eu queria escrever, e não sabia como. Queria escrever em castelhano, mas tinha perdido a prática, porque passei a minha adolescência nos Estados Unidos. Portanto, eu estava muito longe de ser um escritor quando fui para Paris. Foram necessários alguns anos para aprender a arte da escrita.
Em castelhano?
Sim, eu apenas escrevo em castelhano, só escrevo em inglês se mo pedirem. Embora eu ainda pense em inglês. O inglês passou a ser a minha língua mais “forte”.
Mas nunca escreveu um livro em inglês?
Não. Escrevi algumas histórias, ensaios, mas nunca um livro.
Porquê?
Porque a minha infância foi em castelhano. Quando me perguntam porque é que não escrevo em inglês, essa é a minha resposta. Não creio que seja porque castelhano é a minha língua materna, acho que não é esse o motivo…
Não?
Não. Foi porque a minha infância foi em castelhano e, para mim, na literatura, a infância é a chave. É fundamental, e é onde vou constantemente.
Já viveu na Guatemala, nos Estados Unidos, em França, agora está na Alemanha, em Berlim… Onde é que se sente em casa?
Em lado nenhum… Aqui, numa livraria [risos]. Desde criança, nunca senti nenhuma ligação a lugar nenhum. Deixámos a Guatemala quando eu tinha 10 anos e fomos para os Estados Unidos, mas mesmo antes disso, não me sentia guatemalteco. Eu era um miúdo judeu num país completamente católico. Então, 99,999% dos meus conterrâneos eram católicos. Apenas 100 famílias eram judaicas. Por isso, todos os meus amigos eram católicos. E era muito estranho, porque todos eles estavam a fazer a primeira comunhão, celebravam o Natal, a semana Santa… As datas do calendário escolar correspondiam a comemorações católicas. E era do género: “onde é que eu fico nisto?” Nunca me sentia parte do país, era como um mero observador distante. Então, sempre me senti deslocado. Sempre. Em Espanha, no Nebraska, Iowa, Paris, Berlim… Um sentimento constante de nómada, sem raízes. “Desarraigado”.
Não tem sentimento de pertença a nenhuma terra nem a uma religião?
Não, não. E mesmo a literatura não é uma “casa” para mim. Eu não venho deste meio. Estou aqui agora e é o meu trabalho, mas no es mi patria. E era algo fácil para mim, até o meu filho nascer. Depois, as coisas complicaram-se. O meu filho tem seis anos e já viveu em cinco países, fala quatro línguas, tem três passaportes, e nunca teve uma residência permanente. Nós alugamos sempre ano a ano. Portanto, eu estou a ensinar-lhe este estilo de vida nómada, a dar-lhe esta herança é muito difícil.
É sobre isso que fala no livro que publicou agora em Espanha, Un hijo cualquiera?
Falo um bocado, mas não de forma muito directa. Tenho falado mais sobre isto em entrevistas, porque lancei o livro e têm-me perguntado como é que está a ser este nomadismo como pai, que agora sou, e é um bocado assustador, porque não sei se é isto que quero para o meu filho. Quero que ele tenha um lar, que vá para a escola e tenha amigos dos quais não se tenha de despedir após um ano. E até agora não tenho conseguido proporcionar-lhe isso, temos estado sempre a mudar-nos.
As referências às memórias de infância marcam a sua obra. Tem muitas recordações marcantes dessa altura?
Sim, tudo, lembro-me de tudo. Se ler estes meus sete ou oito romances, vê que eu estou sempre a voltar à minha infância. Estou sempre à procura de coisas que me aconteceram em criança, quase como fundamentos para explicar o presente. Por exemplo, em Canción, há uma cena na casa dos meus avós. E no restaurante, há uma parte em que entra uma sequestradora. Então, há sempre estes flashbacks à minha infância. Por isso, penso que regresso sempre a essa altura, para encontrar pequenas histórias ou “explicações”.
Como criança a viver num país durante uma guerra civil, houve momentos traumáticos?
Não, não, de todo. Foi uma altura maravilhosa, feliz. Estava sempre com os meus primos. Nós vivemos na Guatemala durante o período mais violento da guerra civil, os anos 70, mas a guerra travava-se sobretudo nas montanhas – e não na cidade – até ao final da década. Então, um ano antes de sairmos do país – em 1979 ou 1980 – a guerra chegou à cidade, e eu lembro-me disso. Lembro-me de haver sequestros, bombardeamentos, tiros de caçadeira durante a noite e, de repente, o meu pai andava com um guarda-costas. Portanto, eu lembro-me destes primeiros episódios de violência, mas, antes disso, tudo era idílico. Vivi uma infância idílica. Mas tudo começa na nossa infância, a nossa relação com os nossos familiares, com os amigos…
Pode ser terapêutico para um escritor, escrever sobre a infância?
Não, para mim não sinto que seja. Quando escrevo sobre alguma coisa, não sinto que a tenha “descortinado”, ou que a consiga compreender melhor. Na verdade, compreendo-a ainda menos. Não sou uma pessoa melhor quando acabo de escrever um livro, nada disso. Porém, sinto que para os leitores é terapêutico. Ainda há pouco, uma pessoa me disse que o meu livro Luto a ajudou a ultrapassar a fase de luto em que se encontrava. E dizem-me isso com frequência. Creio que nos acontece a todos enquanto leitores: já li livros que me ajudaram a atravessar e a perceber determinadas situações. Mas como escritor, isso não acontece. Pelo menos a mim, não me acontece, não é um processo terapêutico. É apenas trabalho. Um trabalho que envolve a linguagem, sobretudo.
Mostra-nos o poder da arte e dos livros…
Sim, sem dúvida. A arte tem o poder de suscitar reacções emocionais muito profundas. Quando vemos um filme, ou vamos a um museu, ou ouvimos uma música. Acho que algo acontece quando somos confrontados com arte. Não é só com a literatura, todas as artes, e creio que especialmente com a música, que parece que vai directamente ao “sítio certo”. A arte pode comover-nos, arrastar-nos, espoletar uma mudança em nós. E tudo isso acontece na condição de leitor, não como escritor.
Houve livros que o mudaram?
Sim, sim. E sob várias dimensões. Houve livros que me impactaram como homem, e outros que me impactaram como leitor, particularmente naquela fase em que lia compulsivamente. Há livros que li nessa altura, e que, até hoje, continuo a regressar, porque foram tão importantes na minha descoberta da literatura. Roberto Bolaño, Hemingway, Tchekhov, Raymond Carver… Mas, como escritor, foram outros livros. Quando eu comecei a escrever, a forma como eu lia mudou. Porque eu já não estava a ler como leitor, mas como escritor. Pensava: “como é que eles fazem isto?”. Então, comecei a ler de outra forma. Mas sim, há livros que eu ainda “levo” comigo.
Já recebeu vários prémios, incluindo, em 2018, o mais importante galardão literário no seu país, o Prémio Nacional de Literatura da Guatemala.
Sim, é o mais importante na Guatemala, o que não significa grande coisa, porque a Guatemala não é, de todo, um país de leitores, nem de escritores, nem de cultura.
A minha questão era nesse sentido, porque deve ser bom sentir-se reconhecido no seu país, mas, por outro lado, há prémios internacionais de maior prestígio para um escritor…
Foi um prémio complicado para mim de receber, e explico-lhe porquê. Na Guatemala, é considerado a maior honra para um escritor, e atribuem-no anualmente. Mas eu não o queria receber vindo daquele Governo. Não quereria recebê-lo vindo de nenhum governo guatemalteco, porque são todos uma merda. São só políticos corruptos, perigosos e violentos. Mas não queria, particularmente, naquela altura. Por isso, vi-me numa situação muito desconfortável, porque não queria parecer ingrato para com as pessoas da minha terra. Então, arranjei uma solução, que foi receber o prémio, mas doar o dinheiro. E, na altura, considerava que um dos maiores problemas do país era a forma como o governo tratava as mulheres em geral, mas sobretudo as mais jovens. Por isso, entreguei o montante a uma organização que ajuda jovens mulheres. Foi algo simbólico, porque não era uma quantia avultada, mas foi a minha forma de dizer que recebo a honra, mas não consigo aceitar o dinheiro, e prefiro oferecê-lo a uma instituição à qual o Governo não dará nada. E o auditório inteiro estava em lágrimas, porque uns dois ou três meses antes, o Governo tinha queimado um orfanato de raparigas. Morreram 43 órfãs. E foi um grande escândalo na altura. Trancaram as raparigas no orfanato e atearam-lhe fogo. Então, era uma ferida que ainda estava muito aberta, quando eu recebi o prémio e acusei o Governo de não cuidar das suas niñas. “Por isso, o dinheiro vai para elas”, disse eu, e toda a gente começou a chorar. Foi um discurso breve, mas muito importante para mim.
(Foto: Ferrante Ferranti)
Muitas vezes os artistas tornam-se, intencionalmente ou não, activistas políticos, de alguma forma. Como artista, sente que tem algum poder para fazer a diferença no seu país?
Não, não. Eu não acredito que possamos mudar alguma coisa, mas podemos “apontar” para os problemas. Por alguma razão, puseram um microfone à minha frente, como escritor, e posso dizer coisas. Posso dizer “passa-se isto ou aquilo” ou “isto não está bem”, e provavelmente não irá mudar nada, mas pelo menos eu posso chamar a atenção para as situações. Posto isto, há que dizer que em países como a Guatemala, o México… é algo muito perigoso de se fazer. Há jornalistas a serem mortos por falarem. No meu caso, é um bocado diferente, porque eu falo através da ficção. E ninguém lê na Guatemala! Contudo, arranjo sarilhos e recebo ameaças quando dou entrevistas. Não pelos meus livros, porque eles não os leêm, mas quando sou entrevistado, sim, aí já sofro alguma intimidação. É muito real.
Do governo guatemalteco?
Não directamente, mas de pessoas que simpatizam com o Governo. É um grupo pequeno, mas poderoso, da população. Muito virado à direita, e que não quer que se fale do genocídio que aconteceu e de todas as mortes que tiveram lugar durante a guerra civil.
Uma criança a viver uma guerra civil no seu país, ainda não é capaz de escolher um “lado”…
Pois não. Aquilo que faz é escolher o lado dos pais, porque é a história que lhe estão a contar. E os meus pais eram pessoas de classe alta, mais à direita, e, por isso, era esse lado da guerra a que eu tinha acesso em casa. Então, por exemplo, quando eu estava a crescer, a palavra “guerrilheiro” era sinónimo de ladrão, ou meliante. Para os meus pais e para essa parte da população, a guerra era assim: os guerrilheiros eram os inimigos. E, aos poucos, à medida que fui crescendo, especialmente nos meus 20 anos, e quando voltei à Guatemala e casei com a filha de dois guerrilheiros – tanto a minha sogra como o meu genro são antigos combatentes –, comecei a ver que a história que me tinham contado não era verdade, era tendenciosa e enviesada, e tive que me reeducar. E creio que isso acontece com muitas crianças, porque só lhes é contada uma parte da história, que geralmente vem da família. Nós herdamos as nossas visões políticas. Então, para mim, foi um longo processo de perceber a história da Guatemala, que é extremamente complexa. Quem é a vítima: o sequestrador ou o sequestrado? É muito complexo…
A maior parte dos assuntos é mais complexa do que parece…
Sim, e uma criança não tem a capacidade de perceber isso, só muito mais tarde.
A sua opinião polarizou-se para o outro extremo, ou ficou mais no meio?
Esta história, por exemplo, do rapto do meu avô, eu queria mesmo contá-la de um ponto de vista muito objectivo. Queria ser capaz de escrevê-la com imparcialidade e tratar os dois lados por igual. Mas, quem ler o livro, percebe de que lado é que eu estou. Não tenho de o dizer, mas é perceptível, está implícito. O peso da História quase que força o leitor a olhar para ela de um certo prisma. Na altura, o poder estava tomado por ditaduras militares muito, muito violentas, que tinham uma política de genocídio. Não há outra forma de ver a coisa. Enterrava-se corpos o tempo todo. Não há outro modo de o “pintar”, não há como branquear. Aconteceu. Portanto, mesmo que se tente analisar objectivamente, a justiça tem que prevalecer.
O lado bom é sempre o lado mais justo?
Não sei se lhe chamaria o lado bom, mas creio que, eventualmente, a Justiça leva a melhor. Podem ser necessárias décadas, até gerações… Porque há pessoas que não querem que se faça Justiça, ou se esforçam muito para a impedir. Mas ela faz-se. Fez-se aqui, depois da ditadura em Portugal. E é assim em todo o lado.
Professor de Filosofia na Universidade Católica Portuguesa, Mendo Castro Henriques é autor de várias obras sobre filosofia, cidadania, história militar e ficção histórica. Foi Diretor do Departamento de Defesa Nacional do IDN e Prémio de Defesa Nacional em 2018.
Nesta Conversa com Nuno André, são abordados sobretudo os conflitos armados no Mundo, mas com especial destaque para a Guerra da Ucrânia.
Castro Henriques defende que estamos a assistir à “Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital”. Avisa que “o que está a acontecer na Rússia é a desagregação” e critica o facto de hoje existir gente que “sabe de tudo” e que proliferam os especialistas em “Rússia” e em “guerra”.
Esta é a transcrição da entrevista, a que pode assistir aqui.
Professor Mendo Henriques, ainda que em Portugal a filosofia seja uma das disciplinas transversais a todos os cursos, nem todos chegam a filósofos. Afinal, nós estudamos filosofia ou aprendemos a filosofar?
Aprendemos com os outros, sobretudo, porque sem diálogo não há partilha, sem partilha não há autocrítica e sem autocrítica, o nosso pensamento pouco vale. E dentro do que devemos fazer quando somos instados por nós próprios a prestar um testemunho, naturalmente que são os acontecimentos do dia-a-dia, não a espuma dos dias mas as tendências profundas que mais nos impactam. E era inevitável que um acontecimento como a invasão trágica e injusta da Ucrânia pela Federação Russa me tivesse chamado a atenção dado os meus interesses anteriores.
Entrevista integral de Mendo Castro Henriques pode ser vista no cana P1 TV
Ainda que nos tivéssemos cruzado nos corredores da Universidade Católica, a verdade é que foi na sequência desta aproximação, que acaba por ressurgir uma obra que estava focada precisamente na nova sociedade ou no pensar-se o novo mundo num período de pós-pandemia. Mas a verdade é que ainda não estávamos no pós-pandemia, ainda não tínhamos ganho uma batalha que ainda não sabemos bem contra quem, e começa logo esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
É mais do que uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O mundo mudou em 24 de Fevereiro, pode-se dizer que foi um dia que mudou o mundo. Muitas vezes aplicava-se à União Soviética ou à Rússia: 7 dias que mudaram o mundo, por causa da Revolução de 1917. Neste dia, foi um dia que mudou o mundo. Porquê? Porque vieram ao de cima tendências que já existiam, e que é a tendência da escalada para os extremos.
Há um autor que nestes assuntos históricos e militares é um nome incontornável, o alemão Carl Von Clausewitz, enfim, que escreveu talvez o mais clássico tratado pela guerra. E o que ele diz é que antes da guerra, a humanidade, as sociedades, têm uma tendência de subir até aos extremos. E o que nós vimos na madrugada de 24 de Fevereiro, na televisão… Quando dizemos nós é porque estamos numa sociedade de informação, em que podemos estar a 4 ou a 5 mil quilómetros de distância ou mais, mas a televisão e o mundo digital, põem diante de nós a tragédia dos bombardeamentos, dos mortos, da violência, a subir até aos extremos. Portanto, com maior ou menor capacidade de antecipação, havia correntes minoritárias que diziam que ia acontecer uma invasão.
A maior parte das pessoas dizia: não, ainda mal saímos da guerra do covid e vamos entrar noutra desgraça? Mas foi exactamente isso que aconteceu. E, mais do que uma guerra entre duas nações, como se está a ver… Porque Putin não aplica sequer a força toda que tem contra a Ucrânia, tem uma espécie de trunfo na manga, que são as armas nucleares, o que obriga à chamada guerra híbrida: sanções económicas, operações militares, pressões psicossociais sobre as populações, campanhas. Mas não é apenas duas nações que se enfrentam, é mais uma nação que está a ser vítima de uma guerra entre dois princípios, o da autocracia e da ditadura – podemos dizer, totalitária que, neste momento, é representada por Putin – e os princípios daqueles que defendem a liberdade, que também têm as suas fragilidades, mas que não se pode aceitar esta violência.
Entretanto, mais do que ser um mero espectador, sentiu a necessidade de ter um papel mais interventivo, mais activo em termos sociais porque na realidade, passa a partir de uma certa altura a escrever umas crónicas. Foi um sentido de dever, para contribuir de alguma forma para o esclarecimento, para motivar, o que é que deu origem a essas crónicas?
Eu diria mais que foi um sentido de angústia, de tentar – uma vez que eu fui director do departamento de Defesa Nacional e tenho vários livros de história militar, portanto para mim era relativamente normal seguir os acontecimentos militares… Mas a angústia, a preocupação que tudo isso me causava, levou a que eu tentasse investigar para além do que se sabia de imediato. E, no dia 10 de Março, eu já tinha feito um escrito anterior de apreciação conjunta que tinha feito circular e, não sei já em que circunstância, a partir de 10 de Março passei a fazer uma crónica diária num jornal digital e em papel, Do Portugal Profundo. Portanto, isto é também uma homenagem ao Portugal Profundo, que ainda funciona, o jornal de Oleiros, e ao seu director, o Paulino Fernandes. E portanto, todos os dias, durante dois meses, havia uma crónica diária sobre assuntos transversais à guerra.
Esta obra Crónicas da Invasão na Ucrânia, assumidamente à distância e agora aqui uma provocação que é: porque é que ousou falar de uma guerra pela qual diretamente não passou? Ou seja, não esteve na Ucrânia, não esteve na Rússia, não viveu aqueles momentos, apenas os conhece através dos meios de comunicação social, com tudo o que há de bom e de mau, de redutor ou de amplificador. Terá sido demasiado ousado ou não?
Bem, não é bem assim. Eu estive já na Rússia em conferências há anos atrás. Na Ucrânia, estive só na fronteira do Siret (fronteira da Roménia com a Ucránia na zona de Siret). Esta é uma guerra de princípios, não é uma guerra apenas de territórios. Não é preciso, digamos assim… Quando eu estive no campo de refugiados da Ucrânia-Siret já não havia refugiados, portanto, não senti o peso dessa desgraça, mas sabemos, convivemos, temos outros contatos e temos, sobretudo, a partilha do sofrimento humano que é… Temos aqui um povo que está a ser agredido. Se há vítimas, nós temos que nos identificar com a vítima. E, nesse sentido, uma vez que nas áreas da cidadania e da filosofia política a guerra é um fenómeno que eu já tinha tratado mais do que uma vez, era uma base a partir da qual depois eu fiz esse conjunto de crónicas, que aliás continuo a fazer, agora não com a mesma intensidade porque o contexto é outro.
Uma das crónicas toca num dos pontos-chave que é o Papa Francisco. O Papa, que numa das vezes que se dirige ao patriarca Cirilo diz, e passo a citar: não percebo nada irmão, não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas sim a linguagem de Jesus. Ou seja, este assumir de um Papa que, de facto, não percebe nada de questões políticas… O Papa não “percebe de nada”, mas pelos vistos muita gente “percebe de tudo”. Quer dizer, possivelmente, há aqui uma parte de humildade ou de estratégia de comunicação.
Isso é irónico: o Papa é capaz de perceber mais do que nós os dois juntos.
[risos] Mas a questão é, porque é que nós de repente temos tantos especialistas em “guerra”, tantos especialistas em “Rússia”, mas, na verdade, só acertam depois das coisas acontecerem, porque muitos também diziam que não iam haver invasão… Ou seja: como é que nós podemos acreditar naquilo que as pessoas dizem nas televisões, na rádio, a internet? Não estou a pôr em causa o que aqui é dito, porque é um ponto de vista partindo de uma experiência muito particular e pessoal.
E além disso, com um cenário que eu penso que é assumido, que é a prazo, o que nós podemos chamar a derrota do regime tirânico de Putin, e, portanto, a manutenção da Ucrânia independente. O Papa Francisco tem uma importância, como figura mundial que é, e como figura de referência moral para além de autoridade religiosa.
Mas no caso da Ucrânia, naturalmente que as figuras centrais são, do ponto de vista religioso, os patriarcas das várias Igrejas envolvidas, e aí está a haver evoluções, o assunto não está fixo. Já se sabia antes, que a figura do patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, é uma figura muito controversa, acusado, nomeadamente, de corrupção. Teve já sanções, na sexta vaga das sanções europeias, depois foram-lhe retiradas. E, de facto, não é fácil – os seus defensores não são de boa rés moral.
Um caso que ainda não foi falado, por exemplo, na televisão portuguesa – mas eu recebo essas informações directamente -, era o número dois da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Hilarion, que há cerca de um mês atrás foi removido de todos os seus cargos. Eu cruzei-me com ele em Lisboa e, mais tarde, em Moscovo. Nunca se pronunciou directamente a favor da invasão e foi substituído pelo agora chamado bispo António, e foi removido para Budapeste.
Estes movimentos de fundo dentro da Igreja Ortodoxa Russa mostram que Cirilo não está tão triunfante como parece, e isto é uma boa imagem de tudo o que se está a passar na Rússia. Portanto, há uma fachada que se pretende afirmar como triunfante, a partir de Moscovo e de São Petersburgo, dos grandes centros de poder. Mas, depois, a maior parte do que se chama Federação Russa é um conjunto de povos e de sociedades, que alguns nem falam directamente russo, têm as línguas e as culturas próprias. Fazem da Rússia um Império que se está a desagregar, e, por isso, uma das minhas últimas crónicas aqui no livro é “Porque é que a Rússia é o último Império colonial europeu”. Nós não estamos habituados a ver assim porque julgamos que um Império tem de ser ultramarino, tem de ter o mar como foi Portugal, Espanha e a Inglaterra. Na Rússia, o que há pelo meio não é o mar, são estepes a dividir Moscovo e São Petersburgo de territórios muito diferentes.
E o que está a acontecer na Rússia é a desagregação, por via das sanções e da insatisfação das populações, dessa unidade Imperial que o Kremlin. O grupo de poder de Moscovo tenta segurar por todos os meios, através de uma guerra híbrida com uma grande fachada, misturando verdades e mentiras, mas que todos os dias cede mais um pouco.
Aliás, cada vez mais nos apercebemos de que a mentira tem sido, talvez, uma das permanentes estratégias russas. Vladimir Putin dizia publicamente que não havia guerra nem invasão, negando permanentemente. Mas quando a pessoa é descoberta na mentira e permanece na mentira, podemos perguntar se será que para ela é uma verdade relativa que criou na sua cabeça?
Pois, não é bem isso, é mais complexo que isso. A mentira caracterizava mais, sobretudo, o período final soviético, em que se mantinham aqueles que alvos da aurora do comunismo, de que iríamos a caminho de uma sociedade sem classes, mas infelizmente as prateleiras dos supermercados estavam vazias. Era preciso filas para as compras, os gastos eram militares, a derrota no Afeganistão e, na época de Gorbachev, na década de 80, já se sabia que aquele sistema estava falido e falhado. Aí sim, era a mentira.
A Rússia passou por uma fase de capitalismo selvagem que também não correu da melhor maneira: nos anos 90, foram aí que nasceram os famosos oligarcas. Hoje em dia, já não existem. Continua a haver grandes bilionários, mas totalmente dependentes do Estado. Na década de 90, havia oligarcas com poder político próprio, que é isso que é um oligarca. Hoje, há apenas super-ricos, mas que dependem do Kremlin – é diferente.
Esse sistema que se montou – e que veio dar o reforço permanente das posições de Putin -, levou a que no 24 de Fevereiro mostrasse a sua face de agressão externa. É importante seguir (figuras de relevo na Rússia). Normalmente, os comentadores não seguem as figuras de oposição russa, como, por exemplo, Vladimir Kara-Murza, preso desde 7 de Abril. Ele tem uma frase que diz tudo: a agressão externa é o outro lado da repressão interna. Ou, como diz o próprio Navalny, quem começa por manipular eleições acaba por se apoderar do poder todo e, depois, acaba por invadir, como fez na célebre entrevista à Time. Navalny, também ele preso, condenado, enfim…
Estas e outras figuras menos conhecidas mostram que temos que perceber que a Rússia não vive num regime de mentira, vive num regime em que não há nem mentira nem verdade. E isso é que dá ainda mais passividade à população russa, que não sabe. Aquela que só se alimenta da televisão (sobre o) que se está a passar e que é pior que a mentira, é o pôr em causa que haja verdade.
Entretanto, nas suas crónicas, percebemos que considera que Putin já perdeu a guerra. Para um perdedor, ou para quem perdeu a guerra, não está há demasiado tempo ainda na frente de batalha?
Perdeu a guerra, mas ainda não perdeu todas as batalhas. E, como eu disse desde o princípio e como dizem os especialistas, às vezes, pessoas menos conhecidas, como Gleb Pavlovsky – que foi um dos colaboradores dele… Ele tem sempre um trunfo. E um trunfo é aquela mala que o acompanha, que tem lá várias ferramentas e uma das ferramentas chama-se armas nucleares. E, portanto, tudo o que Putin faz é sob esta ameaça: “eu estou a usar algumas das minhas ferramentas, nem sequer todas”. É uma guerra que não pode ser analisada como a Segunda Guerra Mundial ou outras.
Nós vimos, no final de Julho, o Dia da Marinha Russa e houve um desfile extraordinário, com milhares de homens, dezenas de navios, uma fachada, como se não houvesse guerra. O que é que estão ali a fazer em São Petersburgo, todos satisfeitos, a comer gelados e a ver passar os navios, em vez de estarem na guerra? Ora bem, esta esquizofrenia aparente faz parte do sistema russo para mostrar que isto é apenas uma operação militar especial. ” A Ucrânia, para nós, não é o mais importante”. Putin não está em guerra só com a Ucrânia, está em guerra com o que ele chama o Ocidente Global, nomeadamente os Estados Unidos, a NATO, mas também aqueles países que apoiam – importantíssimos – o Japão, a Coreia, Singapura, Austrália, enfim, que ficam fora do que é o Ocidente no sentido geográfico. Há mais de 50 nações que dão apoio, quer humanitário, quer militar, à Ucrânia. E, portanto, isto é uma guerra mundial, uma Terceira Guerra Mundial, com as características da era digital. Não é uma guerra entre dois nacionalismos, mas sim entre um Império que se está a desfazer a pouco e pouco, e uma nação cada vez mais convicta das suas razões e a chorar os seus sofrimentos, mas que não se deixa abater porque já tem muita força interna.
Muitas foram as obras que filosofavam a partir da guerra, a guerra sempre serviu de exemplo para muitas vezes se fazer filosofia. A humanidade pode repensar – olhando agora para esta guerra e para as consequências – é o momento para termos uma ferramenta útil ao ser humano, ou tudo isto é inútil?
Não, a guerra não é bem para se fazer filosofia. Isso seria desmerecer o sofrimento humano e a violência, que é o centro da guerra. A guerra é uma ocasião para nós percebermos, mais uma vez, como disse Clausewitz, que a humanidade está sempre a ser puxada para os extremos. Como disse também, aliás, René Girard – um autor muito importante -, que estamos sempre à procura de um bode expiatório, e a guerra é uma forma de uma nação inteira achar que a culpa é dos outros, e, portanto, lançar a violência sobre os outros. Ora, esse ciclo fatal – do bode expiatório, da violência-, não é propriamente só o pensamento que o pode travar.
Precisamos de recursos mais fortes. O que podemos, sim, é pensar essa questão e, depois, perguntarmos uns aos outros que instrumentos é que podem parar esta violência. Curiosamente, as operações militares são um dos meios de travar a tendência para a violência absoluta. Porque a violência absoluta, ainda para mais numa era nuclear, até custa pensar – que é o uso de armamento nuclear. É um assunto do qual nem queremos falar. Mas tem de ser pensado porque ele existe e há uma possibilidade remota de ser utilizado.
E, por isso, é que até agora, mesmo um tirano como Putin e a sua camarilha, e do lado ocidental a NATO, têm feito todos os esforços para dizer que há aqui linhas vermelhas que não se podem cruzar. Portanto, a guerra corre dentro de certas limitações. Todos os dias há trocas de impressões se podem dar mísseis de longo alcance ou de curto alcance, se são armas ofensivas ou defensivas… É até estranho ver toda esta guerra que não sobe até aos extremos. Mas não sobe até aos extremos porque os extremos são quase insuportáveis e são quase impensáveis. O que nos faz dizer que, portanto, tem que ser contrariada a tendência para a violência absoluta, por atitudes como a importância do direito internacional, a importância de ajudarmos a vítima, que é uma atitude moral. E também para os que crêem, a importância da oração e da religião como forma de que haja paz. Todas estas ferramentas são necessárias para que não haja a escalada até à violência final.
Esta guerra em concreto, por acaso, não pega no argumento Deus, que muitas vezes é justificação para muitas guerras. Deus ou a salvação do Homem. Onde é que está Deus no meio disto?
Bem, não concordo com a afirmação porque, do lado russo, precisamente – e as minhas crónicas fazem alusão a isso- há uma enorme manipulação do argumento religioso. Precisamente, o patriarca Cirilo e uma parte da Igreja Ortodoxa Russa são completamente favoráveis à guerra, abençoam a violência, é o que se pode dizer. E isso, a todos os níveis. Portanto, a guerra é feita em nome de Deus no lado russo. Do lado ucraniano, pelo contrário, há uma separação muito clara entre o político e o religioso. O presidente Zelensky, que é de origem judaica aliás, tem sido de uma grande sabedoria, porque jamais o veremos a invocar argumentos religiosos ou a fazer manipulação religiosa da defesa daquela população ucraniana. Portanto, são duas atitudes completamente distintas e, sem dúvida, que a Igreja Ortodoxa Russa vai pagar caro esse invocar do nome de Deus, digamos assim. Ao contrário da parte ucraniana, que separa perfeitamente essas duas.
Mas a Rússia, com a sua capacidade extraordinária, que sabemos, com os espiões e a tecnologia que tem, se quisesse verdadeiramente matar Zelensky, já não o tinha feito?
Isso pode-se dizer de muitas maneiras. Se se quisesse matar Putin, não seria talvez impossível. Houve tentativas, como é conhecido, logo nos primeiros três dias de guerra, mas aí tem que se perceber que os russos sofriam de um enorme complexo de superioridade face ao que eles chamavam a pequena Rússia, esse desprezo que havia. Quando se diz os russos, é os russos de Moscovo e São Petersburgo, não será o conjunto dos povos que compõem a Rússia. E eles agora aprenderam, digamos que ficaram com o nariz a sangrar e esse complexo de superioridade desapareceu. As perdas russas são realmente inimagináveis, discute-se os números exactos mas são na ordem das dezenas de milhares. Os russos aprenderam, ao longo destes quatro meses, que os povos são iguais, estão a aprender. À medida que isso chega à população russa – porque hoje em dia, com meios digitais, vai levar um bocadinho de tempo até percolar essa impressão. Mas isso vai ajudar, de facto, a desfazer o coração do Império.
Falou há pouco no facto de este livro e as crónicas terem sido publicados pelo jornal de Oleiros, era também um reflexo de uma intervenção neste Portugal mais profundo. Quando assistimos, em qualquer meio de comunicação, tivemos sempre o mesmo registo. Ou seja, poucas foram as vezes que ouvimos alguém a explicar de uma forma clara a visão russa. Parece que toda a gente está do lado dos ucranianos. De facto, esta é a posição correcta, ou deveríamos ter quem nos explicasse a partir da visão russa e daquele que é o outro lado? Não temos porque não chegamos lá ou porque simplesmente não temos gente para falar desse lado?
Bom, há um defeito que inquina a maior parte dos comentadores, que é a geopolítica. Isto é, a ideia de que um país é uma entidade fixa e que, portanto, pode-se falar “a Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos, Portugal”. Mas quando dizemos “a Rússia”, quem é a Rússia? São os 140 milhões de pessoas? O Kremlin? Os 10 ou 15% que são contra o regime? As populações ricas da área de Moscovo, São Petersburgo? Ou os habitantes de regiões pobres, que aliás são mandados para a guerra e que muitas vezes se alistam porque não têm outra hipótese? E depois há nomes que aparecem, por exemplo, vêm invocar Kissinger, um dos criminosos internacionais à solta, um homem que disse que a Indonésia podia ficar com Timor ou que Portugal podia ficar soviético em 1975 ou, então vamos bombardear o Camboja… E são estas figuras da geopolítica – Kissinger é o mais conhecido, ainda está vivo e que, de uma forma vergonhosa, até recebeu o Prémio Nobel da Paz. O [também laureado com o Prémio Nobel da Paz] vietnamita recusou-se (a aceitar) porque achou que não era paz nenhuma.
Portanto, nós vivemos destas figuras ilusórias que é suposto terem muito conhecimento, muita prática e que andaram lá no terreno, mas andaram lá no terreno a fazer maldades e a servir interesses internacionais. E, portanto, quando se diz “a Rússia”, em vez de dizermos que é uma unidade, temos que decompor a sociedade nos seus elementos, e para isso é preciso conhecimento disto tudo e partilha com outros. E, quando decompomos, vemos que sim: há partes da sociedade russa que estão a apoiar esta jogada de poker de Putin. Putin deixou de ser um jogador de xadrez racional – isto é dito por Garry Kasparov, o campeão do mundo de xadrez, portanto, de xadrez ele percebe um bocadinho. E ele diz que não tem nada de xadrez, é uma jogada de poker. É criar o caos e a confusão, e isto tem muito a ver com o que se chama a guerra híbrida e com o modo de operar do Kremlin: “Vamos criar a confusão e depois logo se vê como é que vamos gerir”. E, portanto, todos os dias eles ameaçam outro país, os bálticos, a Polónia, o Cazaquistão, nunca se sabe para onde é que aquelas mentes vão virar. Porque é esse caos, essa indistinção da verdade e da mentira… já não estamos na época da mentira, de facto, estamos na época da não-verdade, que é muito mais complicado do que a mentira. Portanto, quem gera não-verdade, está disposto a fazer jogadas de poker, a criar o caos à sua volta para depois se aproveitar.
Um dos pontos que os ucranianos apontam é que a Europa, parece que só a partir de 24 de Fevereiro é que acordou para uma guerra que já existia. Andámos esquecidos, a ignorar e agora de repente lembrámo-nos porque depois da covid era preciso ter algum tema bombástico, literalmente? E correndo o risco de passar à história, continuando a invasão, acabaremos por pôr de lado porque a certa altura cansa e haverá outros temas mais interessantes para falar. Há esse risco de continuar tudo igual e assobiarmos para o lado sem mudar radicalmente a nossa forma de ser e de estar?
As sociedades funcionam através das minorias activas. Havia uma minoria muito pequena preocupada com a Ucrânia. Houve, aliás, em 2014, as sanções porque se percebeu que o povo ucraniano, já desde 2004 – primeiro com a revolução laranja, mas depois com o Euromaidan (Primavera Ucraniana) em 2013 e 2014 – tinha dado uma prova muito forte de que queria afirmar a sua autonomia.
A sociedade ucraniana continua cheia de problemas, tinha os mesmos problemas da Rússia, de oligarcas poderosos que prejudicavam a transparência política. Têm vindo a corrigir esses problemas, aliás por pedido da União Europeia. O dossier de adesão à Europa é, sobretudo, a correcção dos problemas da transparência, da justiça independente, e, portanto, evitar a corrupção económica. Tem sido esse o maior obstáculo e o presidente Zelensky e a sua equipa… Aliás, mesmo que Zelensky desaparecesse, ele poderia ser substituído porque tem pessoas extraordinárias na sua equipa… É um povo que, de facto, se está a afirmar. E, portanto, o que no 24 de Fevereiro ficou à vista de todos é que, tendo Putin dado um passo maior que a perna, então toda a gente acordou, porque, como é que é possível, em pleno século XXI, que a violência chegue a este ponto? Aí já não foi só uma minoria activa que ficou consciente, mas a população de um modo geral aderiu e continua a aderir de uma forma muito significativa em mais de 50, 60 países – de que a Ucrânia tem de vencer esta guerra porque é uma guerra de princípios e, nos princípios, não podemos ceder.
“Amanhã é outro dia” é o título do livro. É uma esperança no depois do agora?
É, e a autora da capa, a Isa Silva, quando eu lhe pedi, disse-lhe que a capa tinha de transmitir, ao mesmo tempo, a mensagem de que a violência está em curso, mas que amanhã é outro dia. Isso aconteceu logo desde a primeira crónica que eu fiz, que é mais pequenina, e depois eu tinha de fechar e ocorreu-me essa expressão. A partir daí, todas as crónicas fecham com a expressão “amanhã é outro dia”, e, portanto, era o título natural do livro.
Em tom de conclusão, sendo um especialista em questões militares e de segurança, e um teórico no campo da filosofia, qual é que é o risco de este livro não poder ser entendido pelo cidadão mais comum sem conhecimentos técnicos? Ou seja, é um livro de fácil leitura, ou técnico que só um especialista é que vai poder entender?
Não, são crónicas de jornal, portanto, são feitas com um vocabulário jornalístico, isto é, não é preciso ir ao dicionário para saber o que se diz. Acontece, sim, que para sair das generalidades, muitas vezes eu entro em pormenores, quer do ponto de vista politológico, quer em alguns pormenores tecnológicos, até porque eles são falados na televisão todos os dias… Os famosos mísseis de Javelin que travaram a ofensiva sobre Kiev, nos finais de Março e princípios de Abril… Como agora se fala nos sistemas Himars, que estão a permitir destruir as bases da retaguarda e logísticas dos russos, e como se continuará a falar de outros armamentos, que é uma parte, enfim, inevitável da guerra.