Categoria: Entrevistas

  • ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.


    A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?

    Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.

    E foi o que fez?

    Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.

    Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.

    Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.

    Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?

    Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].

    Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?

    Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.

    Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever

    Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].

    Portanto, não resultou? [risos]

    Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.

    (Foto: Luís Breda)

    Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?

    Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.

    E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?

    Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…

    (Foto: Luís Breda)

    E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…

    É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?

    Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.

    É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.

    Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?

    Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.

    (Foto: Luís Breda)

    Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?

    Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.

    Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…

    Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.

    Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?

    É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.

    Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?

    As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.

    Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…

    Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.

    E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?

    Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].

    [risos] Mas não quis ir por aí…

    Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.

    Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…

    Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”.  Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.

    Conversava com as cobras?

    É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.

    Era uma espécie de encantador de cobras [risos].

    Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.

    [risos]  Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…

    É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.

  • ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    ‘As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção’

    Jornalista norte-americano de investigação, premiado, Paul D. Thacker não se acanha quando fala sobre a corrupção na indústria farmacêutica. Vive em Espanha há sete anos e é do país vizinho que conduz hoje as suas investigações, mantendo um acompanhamento próximo da actualidade nos Estados Unidos. Há mais de 20 anos que investiga as campanhas que visam distorcer a Ciência. Em 2021, recebeu o prémio de jornalismo British Journalism Award pela publicação de uma série de artigos que denunciavam os interesses financeiros de especialistas médicos que aconselharam os Governos dos Estados Unidos e do Reino Unido durante a pandemia de covid-19. Nos Estados Unidos, foi um dos investigadores principais na comissão de Finanças no Senado que investigou as ligações entre médicos e a indústria farmacêutica, e as suas revelações contribuíram para a produção de nova legislação sobre o tema. É um forte crítico da censura que se instalou com a pandemia de 2020, e os seus trabalhos têm alertado para os perigos da indústria farmacêutica. Mais recentemente colaborou nos Twitter Files. Presente no recente Congresso Internacional de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, Paul D. Thacker concedeu uma entrevista exclusiva ao PÁGINA UM, onde também aborda a forma como as empresas de relações públicas “mandam” agora nas narrativas e nos media.


    Como é que um jornalista norte-americano acaba a viver em Espanha?

    Faço investigação, e a minha mulher é uma médica espanhola, e só pode trabalhar na Europa.

    Quando veio para Espanha? Planeia ficar?

    Há sete anos. Oh, sim. Vou ficar aqui. Adoro Espanha, é óptima. É um grande país. Cresci na Califórnia e no Texas. Sempre ouvi espanhol. Sempre gostei. E Espanha lembra-me muito a Califórnia. Quando vim aqui pela primeira vez de visita (estávamos a namorar), estávamos no comboio de Madrid para Pamplona e pensei: isto é parecido com a Califórnia. Ah, sim, Espanha parece-se muito com a Califórnia!

    Portanto, planeia ficar, então. Com a Internet consegue-se trabalhar em qualquer lado?

    O único problema é, por vezes, o fuso horário. Escrevo sobre temas norte-americanos. Como o Glenn Greenwald, que está no Brasil, eu estou um pouco distante dos Estados Unidos. Então, tenho uma capacidade de ter um olhar um pouco mais objetivo do país e do que está a acontecer lá. Mas, às vezes, o fuso horário é mau. Como no caso de uma palestra que dei este ano na Brown University, e que começou por volta das 4:00 horas da tarde. Eram 11:00 horas da noite aqui!

    Antes de 2020, já investigava a indústria farmacêutica e os escândalos nessa indústria, a corrupção, as ligações a políticos e organizações. O que mudou na investigação da indústria farmacêutica após a covid-19? Parece que investigar agora as farmacêuticas e a corrupção no sector se tornou em blasfémia. Ainda se pode investigar as farmacêuticas?

    As farmacêuticas têm um longo historial de corrupção. Se entrarmos em qualquer livraria encontramos livros sobre o historial de corrupção na indústria farmacêutica; é a indústria que mais multas pagou na História dos Estados Unidos. Mas, a partir de 2015, todas as pessoas que faziam perguntas sobre o sector começaram a ser chamadas de “anti-vacinas”.  Eu estava a investigar uma empresa chamada Monsanto, que era uma empresa tão corrupta que quando compraram a empresa [a Bayer, em 2018] descartaram a marca. Foi a única maneira da Monsanto existir hoje. Foi uma empresa apanhada a mentir vezes sem conta. Por volta de 2015, houve um evento no Clube Nacional de Imprensa para falar sobre algo como desinformação na Ciência ou semelhante. Foi aí que começou a surgir todo este tema da “desinformação”, como se tivéssemos um problema com desinformação.

    É então algo que já vem detrás.

    Temos jornais e outros meios para que as pessoas possam estar informadas, mas esse tema da “desinformação” passou a ser algo único. De alguma forma, é algo único agora. Tão único neste ponto da História da Humanidade que precisamos realmente de ter especialistas em “desinformação”, verificadores. Mas nós já tivemos isso. Durante a Inquisição, na Europa, na Idade Média, tivemos isso, e a Igreja era o verificador de factos. O árbitro das verdades.

    Sim, exactamente…

    Então, esse novo tema surgiu, e foi muito estranho. Escrevi um artigo para o Huffington Post sobre o facto de ter havido essa conferência, que foi, curiosamente, liderada pela empresa de relações públicas que trabalha para a indústria agroquímica, para a Monsanto, e tudo mais, para empresas que mentem sobre os produtos químicos agrícolas. Achei bizarro. Era uma empresa de relações públicas [Ketchum PR] que, na verdade, também representou Putin e a empresa petrolífera russa [Gazprom], tem um longo historial na divulgação de desinformação. Quer dizer, isso é relações públicas! E foi assim que este tema [desinformação na Ciência] foi implantado – por uma empresa de relações públicas.

    Esse tipo de empresas tem muita influência.

    Num painel, havia um participante que foi lá para falar sobre alterações climáticas; e a sua solução para as alterações climáticas era a energia nuclear. Estava lá outro participante a falar sobre organismos geneticamente modificados (OGMs), e de como “são seguros”. E estava lá outra pessoa para falar sobre vacinas, e de como são seguras. E assim foi todo o resumo da conferência: se acreditam nas alterações climáticas, então a solução é a energia nuclear; e os OGM são seguros, e as vacinas são seguras. E eu estava lá e o primeiro pensamento que tive foi: de que vacina estão a falar?

    Falava-se genericamente que todas as vacinas são seguras…

    Ninguém jamais diria que todos os produtos farmacêuticos e medicamentos são seguros, porque a primeira questão que surgiria seria: de que medicamento está a falar? Na indústria de dispositivos médicos, ninguém diria que todos são seguros, porque você questionaria: qual dispositivo médico? Eu investiguei alguns deles [dispositivos médicos]. Investiguei os produtos da Medtronic. Foram retirados do mercado, porque eram perigosos, estavam a ser colocados em pessoas e eram perigosos. Estavam a ferir as pessoas e a prejudicá-las. Foi muito claro que houve o arranque de uma campanha de relações públicas que deu o pontapé inicial… Logo naquela altura fui chamado pela primeira vez de “anti-vacinas”, o que foi bizarro. Eu nunca tinha escrito ou até mesmo pensado alguma coisa sobre vacinas! Como é que eu podia ser “anti-vacinas” se eu nunca escrevi, nem twittei, nem disse nada sobre vacinas?

    Isso é típico em campanhas de comunicação…

    Passei muito tempo a olhar para a história da indústria de relações públicas. A história da desinformação na Ciência remonta à indústria de relações públicas nos Estados Unidos, e tem a ver com a empresa de relações públicas chamada Hill+Knowlton, que na década de 1950 começou a trabalhar com a indústria do tabaco para criar a maior conspiração da História dos Estados Unidos. Que conspiração foi essa? A conspiração de que os cigarros eram seguros, que não se sabia se eram perigosos. E foi brilhante! E o que fizeram? Para fazer isso, basicamente tomaram conta de universidades e começaram a trabalhar com os professores universitários para criar essa realidade alternativa, de que não se sabia se o tabaco era perigoso ou não. Ou de que talvez fosse seguro! A narrativa era: tem a certeza de que o fumo passivo é mau? Quais são as suas provas? Mas isso é que ressoa com a realidade que temos visto com a covid-19. Temos também esse envolvimento com as universidades.

    Paul D. Thacker, no Congresso de Saúde Mental e Propaganda na Pandemia, que decorreu nos dias 20 e 21 de Maio, em Fátima.

    Aquilo que está a dizer é que essa questão de desinformação começou muito antes da covid-19, e que começou a ser criada e a crescer antes desta pandemia?

    Penso que estava a acontecer muito antes. E há uma coisa muito óbvia que se tornou muito clara para mim, nos últimos dois anos. Se um produto era aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), se esse produto fosse um produto farmacêutico ou um dispositivo médico, você podia fazer as perguntas básicas que qualquer pessoa que entende de Medicina faria: qual é a sua eficácia, como funciona, quais são os efeitos secundários. Mas hoje, assim que um produto é aprovado pela FDA, já não se pode fazer nenhuma dessas perguntas. Essas perguntas não são permitidas. Não se pode fazer perguntas quando é uma vacina, porque as vacinas são “Ciência”. Não se pode questionar sobre corrupção envolvendo vacinas ou sobre quão bem funcionam, ou quais os seus efeitos colaterais. Hoje, as pessoas que fazem essas perguntas são chamadas de “anti-vacinas”. As farmacêuticas ainda não criaram uma campanha de relações públicas que rotulasse as pessoas como “anti-farmacêuticas”. Não dizem que alguém é um “anti-remdesivir”, por exemplo, porque as pessoas iriam rir. Mas conseguiram safar-se com a narrativa de chamar a todos de “anti-vacinas”, porque é cativante. É como uma campanha feita por uma empresa de relações públicas muito boa. Tal como acontece com a indústria do tabaco. É cativante chamar de “anti-vacinas”, você pode ficar obcecado com isso.  É assim, como uma lavagem cerebral em torno deste assunto. É uma religião. Não podemos tocar nisso.

    Mas isso é uma forma de censura…

    Escrevi um artigo sobre o facto de não se poder fazer, quando se trata de uma vacina, as perguntas normais que se fazem para qualquer outro produto aprovado pela FDA. Assim, as vacinas são mágicas. Ao contrário de todas as outras terapêuticas que se conhecem, as vacinas são mágicas. Você não pode fazer perguntas. São apenas vacinas e “funcionam”. Mas havia outras questões relativas, por exemplo, aos ventiladores, que foram usados em pessoas com covid-19. E há alguns estudos que concluíram que as pessoas realmente morreram por causa do protocolo que foi implementado em hospitais, usando os ventiladores. Então, também não podíamos falar sobre isso. Não podíamos questionar o protocolo médico. Eu nunca prestei atenção a este tema, o que captou a minha atenção desde o início [da pandemia] foi o professor John Ioannidis, da Universidade de Stanford. Começou a publicar algumas declarações e alguns estudos sobre o vírus e foi muito criticado.  Depois começaram a censurar o que dizia. O YouTube eliminou declarações suas a uma televisão por ser “desinformação”.

    pile of blister packs of colorful medicine tablets

    Foi absurdo…

    E eu pensei como era estranho, nem sequer era permitido ter-se uma opinião! Pensei: o que está a acontecer? Não fazia sentido. E outra coisa que me impressionou também foi, logo no início, quando as vacinas foram lançadas… Primeiro, essas vacinas foram lançadas à pressa no mercado, nem sequer foram aprovadas, apenas foram autorizadas [para uso de emergência]. No New York Times, lia-se que a Pfizer indicava que tinham 95% de eficácia. E esta é uma grande manchete, certo? Porque todos estavam preocupados com o vírus. Então, se alguém lê “95% de eficácia”… Mas depois, alguns parágrafos abaixo no texto percebia-se que aquele número não vinha de um estudo; era de um comunicado de imprensa! Ninguém viu esses dados, excepto a empresa, e a empresa divulgou um comunicado à imprensa. E um comunicado de imprensa acabou como manchete no New York Times! E essa publicação foi planeada para quê? Eu sei, porque investiguei, e na verdade serviu para pressionar a aprovação pela FDA. Para pressionar toda a comunidade biomédica. Foi tudo relações públicas. E o New York Times, e esses outros meios de comunicação social, foram cúmplices disso.

    Mais uma vez, o papel de influência da comunicação empresarial e das relações públicas…

    Então, as coisas realmente mudaram [na pandemia de covid-19]. Havia algo realmente chocante na censura. Sabe, censura de cientistas, e também o comportamento dos grandes órgãos de comunicação social. O ambiente mediático fragmentou-se, porque agora temos a Internet, e pessoas como eu podem publicar uma newsletter. Há o Twitter, para que as pessoas possam ver coisas que não conseguiam ver [nos media nem em outras redes sociais]. O que está a acontecer é que agora há essa necessidade de fechar isso [esse acesso livre a informação independente]. Então, há a mensagem dos grandes media, e há os documentos e informações que pessoas como eu divulgam. E as pessoas estão a ler. Como se fecha isso? Tinham de erodir isso, e criaram o tema da “desinformação”, e uma infraestrutura para ir atrás de pessoas independentes e fechar esse acesso a informação. Essa infraestrutura envolve agências governamentais e estranhas organizações sem fins lucrativos, que muitas vezes são financiadas pelo Governo e em colaboração com esses centros de investigação académica. E estão em pânico, porque estão a perder poder.

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    Algo que me impressionou é que, antes da covid-19, víamos os liberais, os comentadores de esquerda, a criticar os capitalistas e o capitalismo e os mercados financeiros, as grandes empresas. E agora é chocante ver que a esquerda e os chamados “liberais” são aliados do grande capital. São aliados das Big Tech, das grandes farmacêuticas, e apoiam, por exemplo, medidas como o dinheiro digital de bancos centrais. O mundo parece estar de cabeça para baixo. O que está a acontecer?

    Não faço ideia do que se passa. Há oito anos, as pessoas que mais criticavam a indústria farmacêutica eram liberais, de esquerda. Agora, estão todos “na cama” com a Pfizer. Será que se esqueceram que essas pessoas querem apenas lucros, que trabalham para obter lucros? Aquilo que penso é que as mensagens da indústria foram planeadas para atrair pessoas que são de centro-esquerda. Em relações públicas, fazem grupos de foco. Pensam sobre as mensagens que querem passar, e para quem as querem passar. É preciso entender como funciona a indústria farmacêutica e como os fármacos são colocados no mercado. A indústria farmacêutica não faz investigação, não faz pesquisa. Quem faz pesquisa são pequenas empresas, pequenas empresas de desenvolvimento normalmente associadas às universidades. As farmacêuticas colocam os medicamentos no mercado. Agora, toda a pesquisa de biomedicina está a ocorrer principalmente em torno de universidades, que, nos Estados Unidos, são como distritos do Partido Democrata. Penso que há muito dinheiro a entrar nessas áreas, muita convergência entre a biomedicina e o Partido Democrata. O Partido Democrata é agora o círculo eleitoral da biomedicina.

    Por exemplo, em Portugal, podemos ver neste momento um forte movimento nos media para pressionar o Governo a comprar medicamentos relativos ao vírus sincicial respiratório [denunciado pelo PÁGINA UM]. Vemos médicos que são consultores de farmacêuticas, as quais vendem medicamentos para esse vírus, a falarem a jornais para pressionar o Governo a comprar, mas sem revelarem as suas ligações ao vendedor do medicamento…

    Não há indústria por aí que seja mais corrupta… Eles têm muito dinheiro para gastar, e o que fazem é muito sofisticado. Há muitos médicos, muitas escolas médicas, grandes revistas de Medicina, que estão comprados pela indústria farmacêutica: O nível de sofisticação e a quantidade de dinheiro são provavelmente inigualáveis no planeta. Eles conseguem o que querem.

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    Ficou surpreendido com este tipo de pressão? E com a censura e as ligações entre Governo, redes sociais e a comunicação social?

    Nos Estados Unidos, o Governo não pode dizer directamente a um meio de comunicação social que não pode publicar algo. Isso é inconstitucional. O que está a fazer é pressionar. O mesmo está a ser feito com as empresas que operam as redes sociais. Quando comecei a publicar sobre haver censura, tive jornalistas, amigos jornalistas, a dizerem que não era possível estar a acontecer aquela censura. Vi jornalistas a fazer campanha a favor do Governo. Eram avessos à possibilidade de estar a haver censura com intervenção do Governo. Quando os documentos [do Twitter Files] começaram a sair, ainda se via essa negação de que isso estava a acontecer. Ainda há essa negação. Um jornalista do Washington Post, por exemplo, escreveu um artigo com um balanço de seis meses sobre Elon Musk. No artigo não tem nem uma referência aos Twitter Files. Como se faz um balanço de seis meses da actuação de Elon Musk e não se menciona os Twitter Files? Como se faz isso e se chama a si próprio jornalista? Não faz sentido, e não é jornalismo. E é por isso que olhei para esses documentos e divulguei essas duas histórias. Elas ajudam a explicar como e por que isso está a acontecer. O que está a acontecer é que muitos desses jornalistas tinham elos de ligação muito próximos com o Twitter, e esses laços evaporaram-se quando Elon Musk o comprou. Eles perderam o acesso especial que tinham, perderam os seus privilégios especiais.

    Qual é a sua opinião sobre o facto de um candidato à presidência dos Estados Unidos, Ron DeSantis, ter feito o seu anúncio no Twitter. Eu ouvi o anúncio no Twitter Spaces e era como ver a história acontecer em directo.

    Bem, quero dizer, essa é uma maneira de olhar. Mas então veja-se os media norte-americanos. Não fizeram nada mais além de criticar o que aconteceu, como se fosse a pior coisa de todos os tempos. Só falavam das falhas técnicas e de como o anúncio correu mal… Essa é a forma como os media caracterizam Elon Musk e DeSantis… Depois, há a sondagem de Harvard que apontou que, na política, Elon Musk é o mais popular agora na América. DeSantis é o número três. Isso é incrível. E depois questionamos: porque é que os meios de comunicação social são assim tão desconectados com o resto do público americano. Os media começam a mostrar que têm vivido numa espécie de bolha. E vivem numa bolha há muito tempo. Os media agora são amigos do Governo. Isso começou basicamente na época de Trump. Sinto muito, estou descendo um elevador. Pode estar cortando essa mudança. Há muitas coisas que não gosto em Trump. Mas, ao mesmo tempo, eu podia ver que muitas das notícias sobre ele não eram justas. Eu disse a um amigo meu jornalista: era preciso inventar tudo isso sobre Putin [de uma alegada ligação a Trump]? O que temos agora nos media norte-americanos é esta história básica: pega-se em Trump, Elon Musk e Ron DeSantis e coloca-se na coluna A, e na coluna B coloca-se Q, antissemitismo, extrema-direita, supremacia branca, anti-ciência, anti-vacina. Depois, tira um da coluna A e mistura com algo da coluna B. E essa é a sua história. Apenas mistura e combina, e isso são os media de hoje. Não é jornalismo, é apenas isso. Como se escrevessem em pânico. E a questão é que eles pensam que estão a ser inteligentes. Mas o público americano vê isso. É por isso que o número de americanos que confia nos media nunca foi tão baixo.

    Tem a sua própria página, a sua newsletter, publica em jornais e escreve sobre os Twitter Files. Como vê a mudança na maneira como as pessoas consomem notícias e informações? Porque hoje podemos ler notícias e grandes peças de investigação fora dos grandes órgãos de comunicação social mainstream. Mas também vemos o aumento do poder das redes sociais e das grandes plataformas de tecnologia no controlo do acesso a informação. Como vê a evolução destas questões? Pensa que vai haver um movimento para travar esta tendência e tentar tornar as coisas impossíveis para jornalistas como você?

    Realmente, não sei. A maioria dos americanos ainda está a receber a maior parte da informação pela televisão. A televisão ainda tem muito poder. Muitos desses jornais, desses meios de comunicação tradicionais, ainda têm muito poder. Eu estou a aproximar-me dos 20.000 assinantes. Estou muito longe do Washington Post. Mas é ótimo, é um óptimo número. Mas eu não estou a competir directamente com esses grandes meios de comunicação social. Há cerca de um mês, vi que o New York Times escreveu algo sobre Anthony Fauci e descobri que havia duas coisas que eles relatavam que eu tinha relatado em Dezembro! Mas é claro que não havia menção ao facto de eu ter relatado essas coisas primeiro. Aquilo que os media fazem é ou negar informação que você escreve, dizendo que é um absurdo, que é desinformação, ou então vão lê-la secretamente e vão roubar a informação. Sei quem são os meus subscritores. Posso ver quando eles se inscrevem, e eu conheço os meus assinantes. Há lá muitos jornalistas de investigação. Há muitos deputados, membros do Congresso, funcionários do Congresso. Eu não tenho muitos assinantes, mas tenho muitos assinantes da elite, leitores da elite. Então, talvez eu tenha mais impacto. Tenho leitores da elite que estão a vir e a ler o que eu tenho para dizer, ou porque estão a tentar estar bem informados, ou porque se trata de um jornalista em algum lugar a tentar descobrir como roubar algo e usar sem me mencionar.

    Jeremy Vine e a jurada Janet Kersnar, editora executiva do Business of Fashion, entregam o prémio de Jornalismo Especializado no British Journalism Awards 2021 a uma colega de Paul Thacker no BMJ.

    No outro dia, ao entrevistar Andrew Lowenthal, ele falava sobre o Complexo Industrial de Censura. Como podemos quebrar isso, e como podemos garantir que no futuro não iremos viver numa ditadura, onde não existe liberdade, incluindo liberdade de imprensa e de expressão?

    Bem, eu não posso falar a partir de uma perspetiva portuguesa porque eu não sei como os media portugueses funcionam ou o Governo português. Posso falar do ponto de vista norte-americano e dessas histórias sobre o que está a acontecer, com as pessoas a serem censuradas, a serem expulsas das redes sociais, a ser-lhes negado o direito a ter uma voz e uma perspectiva. Penso que foi isso que chamou definitivamente a atenção. Esses repórteres do Post e do New York Times estão a negar o que está a acontecer. Mas todos, todos os seus leitores, sabem o que está a acontecer. Eles estão a ler e não são estúpidos. Eles estão a ver os documentos [Twitter Files]. Membros do Congresso também estão a ver. Funcionários do Congresso também. Ligam-me e perguntam-me sobre o que está a acontecer. E eu penso que mais relatórios sobre o que está a acontecer, e como isso está a afectar a nossa capacidade de ter uma democracia decente e uma política decente. Eu penso que são importantes os processos [judiciais] que estão a avançar nos Estados Unidos para expor e impedir que isso suceda novamente. Penso que, no Congresso, podemos começar a retirar financiamento às organizações que estão envolvidas nesse tipo de comportamento contra os americanos. Quando um Governo começa a fazer censura com seus próprios cidadãos, é assustador. E a incrível magnitude de influência e envolvimento nesta área, da censura, por parte das universidades… As universidades estão muito envolvidas na censura; criaram esses centros académicos sobre desinformação, especialistas em desinformação.

    E na Europa, temos a Comissão Europeia com novas leis, novos regulamentos para os meios de comunicação social e também para as redes sociais, e aplicará multas enormes se as redes sociais permitirem aquilo a que chamam desinformação e discurso de ódio. E isso incluirá o Twitter. Está preocupado com o facto de, na Europa, o Twitter poder estar condicionado por este novo regulamento, porque vimos o que aconteceu na Turquia.

    Quer dizer, estou preocupado com um continente que tem um historial forte de fascismo. Em Espanha, temos o caso do jogador de futebol do Real Madrid que foi alvo de comentários racistas. Em Portugal, provavelmente também há quem chame nomes racistas a jogadores negros. E não podemos permitir isso e precisamos fazer algo para limitar a capacidade de pessoas fazerem isso. E isso todos percebem. O problema é o que está a acontecer nos bastidores com vista a limitar a capacidade de as pessoas terem debates abertos e opinião.


    N.D. Leia, sobre esta entrevista, o editorial de Pedro Almeida Vieira intitulado “O venenoso abraço das farmacêuticas à imprensa“.

  • ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    ‘A pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas’

    Andrew Lowenthal tem uma vasta carreira na defesa dos direitos humanos no mundo digital e na defesa da privacidade online, tendo sido co-fundador da EngageMedia, uma organização sem fins lucrativos. O autor e investigador australiano tem colaborado na divulgação dos ‘Twitter Files’. O seu trabalho está focado no estudo e denúncia do crescente autoritarismo digital. É investigador no Institute for Network Cultures da Universidade de Amesterdão e escreve na sua página Network Affects, na plataforma Substack. Lowenthal foi um dos oradores presentes na Conferência Internacional “Saúde Mental e Propaganda”, que decorreu em Fátima, no passado fim-de-semana. Em entrevista ao PÁGINA UM, o investigador falou sobre o “Complexo Industrial de Censura”, o qual se tem vindo a formar a nível global, e que tem vindo a investigar junto com o jornalista Matt Taibbi, entre outros. Sobre os ‘Twitter Files’, revelou que Elon Musk “não está a dar acesso a novos documentos” à equipa de jornalistas e escritores que têm estado a conduzir a investigação aos documentos internos daquela rede social. Mas a investigação prossegue aos documentos já disponibilizados e vão surgir mais revelações. Os ‘Twiter Files’ – que pode acompanhar AQUI no PÁGINA UM – têm vindo a revelar a sinistra máquina de censura instalada no Twitter – e que abrange também outras redes sociais e Big Techs – no tempo da anterior gestão do Twitter.


    Tem uma longa carreira na defesa da privacidade digital, liberdade de expressão e direitos humanos em plataformas online, mas vejo que também foi um pouco apanhado de surpresa com o que se passou nos últimos anos, com o forte aumento da censura. Durante o seu percurso, alguma vez esperou que chegássemos a este ponto, com toda a censura que tem existido?

    Não, não esperava. É interessante porque, de certo modo, todo o trabalho que eu fazia era sustentado na ideia de que não actuavamos, particularmente, em relação ao poder corporativo e aos media e à tecnologia, e que podíamos acabar numa situação muito má. Mas, na verdade, nunca imaginei que essa situação pudesse ser assim tão má. Algo fez com que isto se desenvolvesse de uma forma muito mais autoritária do que eu alguma vez poderia imaginar, portanto, não, de facto nunca esperei. Eu receava que, de forma geral, as coisas piorassem, mas não radicalmente, como aconteceu desde a covid.

    Escreveu sobre a existência de um “Complexo Industrial de Censura”, que tem mobilizado milhares de milhões de dólares e de euros. Afinal, em que é que consiste este ‘complexo’, quem é que o detém? E como é que se chegou até aqui?

    Bem, é um conjunto de vários grupos com diferentes interesses. Este sistema ao qual chamamos “Complexo Industrial de Censura” envolve associações filantrópicas, financiamento governamental e organizações governamentais, académicos, think-tanks (grupos de reflexão), organizações não-governamentais, e os media. E, portanto, há diferentes áreas onde existe uma grande coordenação. Sabemos que há um projecto intitulado Virality Project, que estava a controlar a informação que circulava sobre a vacinação contra a covid, e que admitiu explicitamente visar também histórias verdadeiras que encorajassem hesitação vacinal. E eles colaboravam de perto com o Facebook, o Twitter, o TikTok, e outros. Por isso, eu não penso que haja uma única entidade central neste complexo, mas há, sem dúvida, vários núcleos que têm procurado exercer muita influência na forma como as pessoas percepcionam o mundo.

    E há muito dinheiro envolvido nessa indústria…

    Sim, muito dinheiro. Dinheiro que vem de associações filantrópicas privadas, de entidades governamentais… Nalguns casos, há fortes ligações a serviços de informação e às Forças Armadas, algo que ficou claro com os ‘Twitter Files’, que não é uma teoria da conspiração que as pessoas imaginam, acontece mesmo na realidade. Então, sim, em certos casos, há contractos como aquele que foi feito com a Peraton, na ordem dos mil milhões de dólares. Muitos dos grupos que vimos são mais de dimensão pequena a média – bem, e grande também –  como académicos e think-tanks, mas os seus orçamentos variam entre 3, 4 ou 5 milhões e 40, 50 milhões de dólares. O Instituto Aspen em particular coloca muito dinheiro neste tipo de “trabalho”, dezenas de milhões de dólares. Portanto, sim, é mesmo um projecto com um financiamento massivo, tudo sob o pretexto da “desinformação”. E a desinformação existe, mas a ameaça que representa foi exagerada essencialmente para servir de justificação para a censura.

    Então, a desinformação foi vista como uma oportunidade para se censurar?

    Sim, sim. De forma geral, esse é também o meu pensamento em relação à pandemia; é que há pessoas espertas que veem certas oportunidades e agarram-nas, a não ser que estejamos particularmente vigilantes.

    E falamos de algumas empresas, como as grandes farmacêuticas que, depois da pandemia, têm agora ainda mais dinheiro para patrocinar os media e muitas destas entidades que actuam sobre a “desinformação”. Portanto, é um problema que está em crescimento?

    Sim.

    E como é que vê a sua evolução? Porque o problema está a crescer, as entidades por detrás deste complexo industrial de censura estão a tornar-se maiores, é uma indústria gigante… Por isso, como é que nós enquanto cidadãos podemos desmantelar isto, o que é que podemos fazer?

    Acho que a primeira coisa é mostrar às pessoas que existe, e que há ainda muita coisa que nós não sabemos também sobre o nível de censura que os sistemas de controlo de informação criaram. Outro passo é lutar contra muita da legislação recente que tem sido aprovada, na União Europeia, e a nível nacional, no Reino Unido, na Austrália, nos Estados Unidos, e por aí fora, e que está realmente a tentar institucionalizar a censura com o pretexto da desinformação e do discurso de ódio. E acho que criar órgãos de comunicação social independentes é fundamental, porque alguns canais de media foram tão “capturados”, e o debate é tão abafado… A democracia significa as pessoas dizerem o que pensam e a pandemia foi muito eficaz a calar as pessoas, porque havia um custo social por dizerem aquilo que pensavam. Eu também estive calado durante algum tempo, acho que a maior parte das pessoas esteve, mas é crucial que deixem de estar.

    Para nós europeus, o que vimos passar-se na Austrália durante a pandemia foi um choque total e um horror. Como é que foi para si ver o que se estava a passar na Austrália, e na Nova Zelândia?

    Acho que muitas das pessoas na Austrália não faziam ideia que estavam assim tão fora do que era o “normal” das coisas… E, também, muitas das pessoas lá não tinham grande contacto com o exterior. Para quem não estivesse, por exemplo, em Melbourne, a vida era bastante normal em muitos sítios. Não se podia sair do país e talvez do Estado, mas, na verdade, não se sentia que fosse assim tão diferente. Penso que as pessoas em Melbourne e Sydney tiveram uma experiência muito distinta. E o facto de estarem muito desconectados do resto do mundo, por estarem muito longe, faz com que não se perceba bem o quão autoritárias as coisas se estão a tornar. E isso ainda acontece. Quando eu falo com os meus amigos, acho que eles não veem o quanto a Austrália se afastou das normas ocidentais. Claro que foi mau em Portugal, Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas a Austrália e a Nova Zelândia levaram mesmo a coisa a outro nível. Acho que há cada vez mais quem queira sair da Austrália e comparar as realidades, mas a Austrália é uma sociedade muito orientada para a segurança, por isso procura sempre minimizar riscos. É um país que não lutou pela sua independência para se tornar numa nação, por isso a maioria da população, pelo menos, não sabe o que é tomar grandes riscos ou lidar com grandes ameaças.

    Mencionou o autoritarismo e, nos últimos anos, temos vindo a seguir esse caminho, com uma nova ideologia nesse sentido a capturar o Ocidente. E isto pode ser algo cíclico, tal como já aconteceu no passado. Acredita que é possível que passemos mesmo a viver numa sociedade autoritária e que se perca a democracia?

    Sim, quer dizer, isso cabe às pessoas decidir. Infelizmente, parece que, neste momento, há muita gente que está bastante feliz a viver numa sociedade autoritária. Acho que muito poucos diriam que não desejam uma democracia, mas em muitos casos penso que o disseram, na verdade. Porque muitas destas insistências vieram do espectro “liberal” progressista da esquerda – que foi onde eu me inseri duas décadas da minha vida –, e acho que eles não o veem como autoritarismo, mas como um acto de consideração pelos outros, e cuidar dos outros com um sacrifício necessário em prol dos mais vulneráveis. Portanto, acho que eles não veem o autoritarismo, e isso é assustador. Eles acreditam mesmo nisso. E talvez também tenha sido assim comigo durante algum tempo. Mas, convencer as pessoas que existe um custo-benefício nestas coisas, e que perder liberdades e até segurança ao ceder demasiado poder ao Governo e às empresas, que essas mesmas pessoas de esquerda costumavam pôr em causa…

    Sim, e isso é muito estranho. Porque, do ponto de vista da esquerda, dos liberais, há uma década ver-se-iam estas grandes empresas – Big Pharma, Big Tech, os bancos – como egoístas e sedentos de lucro, capitalistas. Portanto, o que é que mudou, o que é que aconteceu à esquerda? Já não acham que estas instituições querem lucro e guerras?

    Sim, eu sei, esta é a pergunta de um milhão de dólares que toda a gente quer descortinar. Eu acho que, essencialmente, as pessoas trocaram liberdade por segurança.

    Mas não é uma segurança real. É uma grande farsa.

    Não, eu concordo, não é segurança, verdadeiramente. Mas acho que devido a esta troca de prioridades, decidiram que valia a pena fazer este “pacto com o diabo”, com as pessoas mais poderosas da sociedade. E creio que o crescimento do populismo de direita e esta polarização, retirou, essencialmente, a nuance e a sofisticação à crítica. Ou se formavam alianças com o poder corporativo liberal, ou sofria-se as consequências do populismo de direita. Portanto, penso que algumas pessoas se colocaram dentro destas opções limitadas, e decidiram escolher ou uma ou outra, em vez do que deveriam ter feito, que era criar mais opções.

    E há uma terceira opção, que é a dos cidadãos e da sociedade civil, com pensamento crítico. Não temos de estar divididos apenas em duas fações. Há uma terceira alternativa…

    Sim, há uma terceira alternativa, que é não escolher nenhuma das duas opções. Mas sim, penso que obviamente tem a ver também com as redes sociais e o medo da exclusão social. Mas este tribalismo, a limitação do espaço político e a polarização contribuíram para este fenómeno, e é por isso que acho que a existência de mais espaços heterodoxos e diferentes é algo fundamental nesta altura, em vez de se aderir a uma das duas “tribos”.

    A sua vida, trabalho e finanças melhoraram ou pioraram nestes últimos anos? Porque mencionou que durante muitos anos, tinha amigos mais conectados com o espectro liberal, de esquerda… De repente, está rodeado de pessoas que não concordam consigo e que o veem como uma possível ameaça. Isso afectou-o pessoal, profissional ou financeiramente?

    Sim, sem dúvida, mas talvez de uma forma diferente em comparação com outros activistas. Eu “liderei” devagar, não fui cancelado nem fiz nada abruptamente. Também porque eu queria, pelo menos, manter-me em contacto com as pessoas de mente mais aberta no espaço da esquerda ‘liberal’. Sem dúvida que houve pessoas durante a pandemia que não queriam falar comigo, porque eu tinha opiniões “erradas”. Financeiramente, tive sorte, de certa forma, porque há uma espécie de nicho e um espaço – embora não muito grande – para pessoas com ideias mais heterodoxas. Mas certamente que já não estou como estava quando conduzia uma ONG e em que tinha um excelente financiamento. Poderia lá ter continuado e estaria numa posição muito confortável. Portanto, sem dúvida que, voluntariamente, escolhi uma situação financeiramente mais precária, porque senti que estava a fazer parte de uma coisa que, não é que fosse totalmente desonesta, mas que certamente pactuava com desonestidades, com uma mentalidade cada vez mais autoritária.

    E qual é a sua visão relativamente ao Twitter e aos ‘Twitter Files’, que têm sido um marco em termos de mudar algumas opiniões em torno da censura. E o que é que pensa sobre a contratação da nova CEO do Twitter, que é uma executiva do World Economic Forum?

    Pois, não posso dizer que esteja entusiasmado, não é a escolha que eu gostaria de ter visto. Quer dizer, ainda não vi muita coisa sobre ela, mas pelo que vi, não é o que eu esperava que acontecesse. Parece que estamos a voltar ao ponto em que estávamos antes. Talvez possa ajudar a equilibrar as coisas, porque o Elon Musk parece muito errático e não um decisor consistente, o que talvez não seja um problema quando se constrói carros. Mas quando se está a dirigir uma rede social, as pessoas precisam de saber mais claramente quais são as regras. E não se pode saltitar de um lado para o outro e mudar as coisas, porque confunde muito as pessoas. Na construção de carros, um pode ser amarelo e o outro vermelho, e o público não participa nessas decisões, por isso não o confunde… Enfim, não sei, mas não é a escolha que eu teria esperado.

    E ainda está a trabalhar com os ‘Twitter Files’, ainda poderemos esperar novas histórias suas sobre o Twitter?

    Sim. Musk já não está a dar acesso a novos documentos, mas temos outros documentos sobre os quais ainda não se escreveu, por isso haverá mais.

    Participou numa conferência em Portugal sobre a pandemia e toda a propaganda a que assistimos. Qual é a sua visão sobre o que se tem passado na comunicação social e a propaganda à volta dos temas relacionados com a pandemia? Porque há alguns temas que são nocivos para as pessoas, pela forma como os media os têm transmitido…

    Sim, essencialmente, acho que houve uma quantidade enorme de propaganda. Por vezes, é difícil para as pessoas utilizarem esta palavra, porque fá-las pensarem nos anos 20 ou 30 do século passado, e talvez não seja a palavra mais adequada para os dias de hoje…

    Qual é a palavra que escolheria?

    Não sei, quer dizer, trata-se de controlo de percepção da informação. São campanhas de relações públicas muito sofisticadas. Penso que as pessoas entendem melhor assim. Se falarmos em propaganda, acho que corresponde mais à verdade, é factualmente correcto. Agora, se é ou não a palavra que fará as pessoas que estão mais à margem passarem para o nosso lado, é outra questão… Mas acho que houve claramente imensa propaganda. Foi altamente sofisticada, foi de um outro nível. Estávamos mais seguros no caso da guerra no Iraque. Porque, na altura, acho que as pessoas conseguiram perceber a manipulação, e foi por isso que houve muita contestação. Enquanto que, no caso da pandemia, acho que eles aprenderam muitas lições com a guerra no Iraque, sobre a necessidade de uma maior sofisticação na forma como os governos ou as empresas passam a sua mensagem à população. Precisa de ser muito mais social. Tínhamos Internet em 2003, mas era algo mais aberto e livre. Mais uma vez, acho que o Virality Project nos mostra quanta manipulação se engendrava e como se coordenavam os governos e as grandes tecnológicas e, infelizmente, a sociedade civil [na pandemia]. Muitos deles pensavam que estavam a fazer a coisa certa, e que estavam preocupados com a sociedade… Quando pensavam na vacina [contra a covid-19], imaginavam uma vacina tradicional – e eu ainda sou defensor das antigas vacinas – mas isto era outra coisa, e é muito difícil convencer as pessoas disso. Muitas pessoas ainda não se convenceram. No geral, as pessoas estão a tornar-se mais cépticas. Quase ninguém se tornou menos céptico ou mais crente de que o Governo fez a coisa certa. Portanto, isso dá-me alguma esperança de que as coisas estão a direcionar-se para um maior cepticismo, e acho que eventualmente uma massa crítica se irá formar.

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    Está, então, esperançoso num despertar da população em relação a estas campanhas de “relações públicas”, e espera que estejam mais atentos e vigilantes quanto a este “Complexo Industrial de Censura”…

    Bem, estou esperançoso, mas com cautela, porque definitivamente que não está a acontecer tão depressa como seria necessário.

    E, quanto ao trabalho: quais são os seus planos para um futuro próximo? Porque agora está a escrever mais sobre outros assuntos, e a Humanidade enfrenta outros desafios, como o dinheiro digital centralizado que está a chegar, e as cidades dos 15 minutos que estão a começar a ser testadas… São muitos os desafios. Quais são os seus projectos para o futuro?

    Está em desenvolvimento.. Uma das coisas é que continuo a trabalhar com Matt Taibbi nos ‘Twitter Files’. E, depois, estou no processo de estabelecer uma nova iniciativa que aborda os totalitarismos digitais, portanto, trata de censura, moedas programáveis, privacidade, este tipo de questões. E, na verdade, alguém está a trabalhar no lugar em que eu estava, no âmbito dos direitos humanos digitais que, de certa forma, colapsou porque foi [uma área] cooptada pela Big Tech. Por isso, estamos a tentar perceber como é que podemos reconstruir ou renovar este papel [da defesa dos direitos humanos online] que perdemos na sociedade civil.

    Isso dá-nos esperança, porque vimos, com choque, algumas ONGs no campo dos direitos humanos e das liberdades civis em conluio com os governos e com todo o autoritarismo a que assistimos. Portanto, está a dar-nos esperança.

    Farei o meu melhor.

  • ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    Spoiler: esta é uma entrevista imperdível para os amantes de cinema. Mário Dorminsky tem um extenso currículo, de muitas valências, mas um dos seus papéis principais é o de co-fundador do Fantasporto, considerado o maior festival português de cinema. A sua 43.ª Edição decorreu de 24 de Fevereiro a 4 de Março passado, pela primeira vez no histórico Cinema Batalha, reabilitado pela Câmara Municipal do Porto. Em conversa com o jornalista Frederico Duarte Carvalho, em exclusivo para o PÁGINA UM, Dorminsky fala da estreia do festival no Batalha e do estado actual da indústria cinematográfica, relembrando com nostalgia a “época áurea” do cinema em Portugal e as dificuldades actuais de promover a Cultura e os espaços culturais.


    Este ano, o Fantasporto esteve pela primeira vez no Cinema Batalha. Como foi a experiência neste Batalha renovado, e agora “casa” do Fantasporto?

    Honestamente?

    Talvez seja preferível então uma resposta politicamente correcta…

    Politicamente correcto, muito bem. Acho que já dei a entender… Penso que há duas valências, uma delas é aquela que o Batalha oferece a quem o visita. E, como aliás já vem sendo habitual, mas neste ano em particular, a nossa imagem internacional é muito mais forte do que a imagem nacional. E daí que todos os estrangeiros que nos visitaram – e que, pelo que se pode contabilizar, são cerca de 170, a não ser que haja outros espectadores que nós desconhecemos… Acho que eles gostam muito do espaço. E, de facto, o espaço é, à primeira vista, muito agradável. Depois, tem algo de muito particular, que é um painel do [Júlio] Pomar, que ocupa toda a altura do edifício, a nível interior, e mantém-se outro alto relevo no exterior. Em 2012, o edifício foi considerado de interesse municipal. E nesse ano, aliás, com a minha intervenção – e também na altura da Paula Silva, do IGESPAR –, resolvemos fazer um projecto para considerar este espaço como um edifício de interesse nacional. Entretanto, a terminologia mudou, e passou-se a usar o termo “monumento de interesse nacional”. Assim, há dois monumentos, neste momento, dentro deste espaço: um é o Fantasporto, e o outro é, concretamente, o edifício em si do Cinema Batalha, actualmente chamado de Centro de Cinema.

    Como potenciar isso?

    A lógica que eu veria, em termos de funcionamento desta sala, seria próxima de uma programação de uma Cinemateca. Por isso, com parâmetros de programação que seriam de maior abertura conceptual e, também, por outro lado, de uma linha mais autoral. E haver um certo equilíbrio. O problema é que, aparentemente, chegou-se à conclusão… Independentemente, de eu ter excelentes relações com o director desta casa, Guilherme Blanc, acho que há uma política erradíssima em termos da programação do espaço. Não é que não conheça, já ouvi falar, mas nunca tive coragem de ver 99,8% dos filmes que eles exibiram até agora, e que vão exibir até Julho. A programação é extremamente fechada, e acho que não atrai públicos. Atrair públicos será feito provavelmente através de convites à borla, algo que, estranhamente, nos edifícios da Câmara parece algo que acontece. Tivemos pedidos de borlas para o Fantasporto deste ano como nunca. Quer dizer, as pessoas acham que não há, de facto, bilheteiras para comprar a porcaria de um bilhete a cinco euros. Ou a dois euros e meio, que é possível se tiverem um cartão oferecido gratuitamente pela municipalidade do Porto.

    Achas que é devido à falta de valorização da cultura, que as pessoas pensam que a cultura é de borla? O valor de cinco ou de dois euros e meio é quase simbólico. E mesmo assim as pessoas não querem pagar…

    Não, não… Quer dizer, na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga.

    Ou seja, as pessoas pensam que já pagam a Cultura com os seus impostos.

    Exactamente. Eu também gosto, quando me oferecem a possibilidade de ir, sei lá, a um festival de rock; e ir de borla em vez de ter de pagar os 170 ou 200 euros pelos três dias, e até me oferecem, inclusivamente, um espaço VIP, onde posso beber, e vou mostrar-me. Aliás, o que acontece aqui, é a tal “quequice” de vir a um espaço como é, neste caso, o Batalha. Isto é, o Batalha antes de o ser, já é um espaço “queque”. No fundo, repete, aliás, aquilo que aconteceu com a Casa da Música no Porto, em que as pessoas iam ver determinado tipo de programação, que era uma programação hiper-elitista. Não acredito que as 700 pessoas dentro da sala fossem capazes de ter conhecimentos e gosto em termos musicais para poder sair de lá e dizer “magnífico”, “fantástico”, “genial”. E aqui, provavelmente acontecerá a mesma coisa no Cinema Batalha em muitos projectos que vão ser exibidos.

    Que cinema há no Porto no resto do ano, quando não há Fantasporto? Tirando o cinema comercial, obviamente… Em Lisboa, por exemplo, há a Cinemateca. No Porto, ainda está em funcionamento o Cineclube?

    O Cineclube do Porto fez uma sessão aqui e estava cheio. Uma sala pequena, tinha 120 pessoas. Mas, de qualquer forma, o que me parece é que este espaço, para conseguir conquistar público – porque ainda não conquistou –, vai acontecer o que já está a acontecer. Eu recebi já um convite para a próxima semana, à borla, para ver um filme e um ciclo que vai começar agora aqui.

    E vale a pena esse ciclo, ou não pagavas para ver?

    Não, eu nem de borla. Agora, a questão é que nem sequer aí há o factor de descoberta. Porque eu conheço o realizador, já vi um filme dele, e já disse que nunca mais vou ver nenhum.

    É uma questão pessoal?

    Não, é uma questão de gosto, e de aquilo que eu acho que é cinema e aquilo que eu acho que é instalação cinematográfica. É a mesma coisa que a exposição que nós temos aqui nesta casa, e que não nos permite colocar nada junto das paredes, nem podemos fazer sequer a exposição que estava prevista, do José Emídio, nos 60 anos do aniversário de uma das maiores estruturas culturais em termos de artes plásticas do país, que é a Cooperativa Árvore. De qualquer forma, o que acontece é que isso limitou-nos.

    E não houve cartazes dos filmes em exposição.

    Não tivemos hipótese de meter cartazes dos filmes, nem bandeiras dos países..! Uma vez, metemos bandeiras dos países à frente do Teatro Rivoli [risos]. Porque havia lá muitos buraquinhos, e disseram “ah, porque é que não põem bandeiras dos países?”, e pusemos. Pronto. Mas aquilo que costumamos pôr, que é billboards, cartazes dos filmes, que até são pagos; quer dizer, até as empresas pagam para ter os cartazes em destaque. Isso não, não pudemos pôr uma passadeira para fazer uma espécie de passadeira vermelha, pelo menos na abertura e no encerramento. Não pudemos fazer rigorosamente nada que tenha a ver com o festival. Para conseguir pôr um painel para tirar fotografias na entrada do espaço – aliás, não é bem na entrada, no lado esquerdo –, foi preciso ser o director a dizer que podíamos pôr ali. Eu acho que é do conhecimento geral, de toda a gente que vá à borla ao Fantasporto e participe no festival [risos], e que vê as condições de trabalho que a equipa tem… Quer dizer, tem um barraco que eu acho que aparece nas imagens. E ao mesmo tempo, tem um buraco por onde passam as pessoas que vão aquecer a comida no micro-ondas. E é isso o nosso espaço. O bar seria um espaço importante para nós, para que as pessoas se pudessem reunir, encontrar, beber uns copos. Aliás, os estrangeiros, em particular, gostam bastante de beber a nossa cerveja. E nem faço publicidade à cerveja que ainda apoia, ao fim de 42 anos, o Fantasporto, que aliás é a Superbock, precisamente [risos].

    Uma cerveja do Norte, pode-se mencionar como sendo um facto.

    Não, a Sagres também se bebe cá. Mas não interessa. Afinal, chegámos à conclusão que o bar fechava às 20 horas, o que quer dizer que abre às 15h e fecha às 20h. As pessoas não podiam sequer utilizar o bar. O único momento em que eu senti que houve alguma animação e gozo entre as pessoas, foi em certo dia ao fim da tarde, juntaram-se umas 30 pessoas, e o bar a fechar e as senhoras com vontade de ir embora porque já estava a chegar às 20 horas.

    Não lhes pagam horas extra… Mesmo havendo um festival internacional, não há horas extra e fecha tudo às 20 horas?

    Se houver, somos nós que pagamos, atenção, está contratualizado. Tudo o que sejam horas-extra, somos nós que pagamos, em qualquer das áreas. Inclusivamente na segurança.

    Mas o apoio da Câmara, ainda assim, é de salutar ou é apenas o possível?

    Não, não é só o que é possível. O problema é que o apoio da Câmara incorpora o espaço, que é algo fundamental. O Teatro Sá da Bandeira é o espaço que eu continuo a ter, no meu imaginário para fazer o Fantasporto à moda do Teatro Carlos Alberto, mas teríamos de ter dinheiro para o alugar.

    Achas que o Sá da Bandeira é que seria o sítio do Fantasporto?

    O Sá da Bandeira é o novo Carlos Alberto. Ou melhor, era um renovado Carlos Alberto.

    Tem condições?

    Tem, e a nível de estrutura e da engenharia, há 10 anos que estava garantida. E eu admito que ainda esteja, porque toda a estrutura de sustentação dos vários pisos é feita com grandes pilares de ferro, se é que se pode dizer assim. O que quer dizer que não há grandes problemas, excepto, dizem eles, nos camarotes mais elevados do espaço. De qualquer forma, é uma sala que é verdadeiramente gótica [risos]. E permite fazer, não só em termos de fachada como de entrada e de tudo, um espaço que não é fantasmagórico, mas visualmente atractivo.

    city buildings near body of water during daytime

    O Sá da Bandeira é privado…

    É privado, sim, e eles pedem um bocado de dinheiro por aquilo. Aliás, nós fazíamos lá o Baile dos Vampiros até determinada altura, só que depois os preços aumentaram substancialmente. Chegámos a fazer espectáculos musicais em paralelo com o próprio festival, com bandas de vários tipos, e lembro-me, por exemplo, de um momento interessante do Claudio Simonetti, que é o autor das bandas sonoras dos filmes do Dario Argento. Estavam lá os dois… E a adesão das pessoas a projectos desse género também é interessante, à parte do Fantasporto.

    Bom, não me mentiste, porque eu pedi-te só uma opinião sobre o Fantasporto aqui na Batalha, e nós já falámos de várias coisas.

    Mas há mais aspectos…

    Há mais aspectos de que possas falar? Então pronto, continua…

    Toda a área circundante. Isto é, toda a área circundante é bonita. É uma zona turística.

    É, temos o Teatro de São João…

    Exactamente. Só que, primeiro, não há parques de estacionamento. As pessoas perguntavam: “onde é que eu ponho o carro?”. Segundo, havia uma frequência de manhã muito magrebina. Pronto, não interessa estar a definir. Não tenho nada contra eles, mas a determinada altura… Aliás, até brinquei com uma realizadora turca e com o marido, e estava-lhe a dizer “opá, isto de manhã parece a Turquia, parece Istambul” [risos]. E, depois, ao fim da tarde, começa a ser uma coisa mais complicada. Além de uma coisa que me surpreendeu negativamente, e que eu aparentemente consegui resolver falando com o presidente da Câmara, que é a sopa dos pobres mesmo em frente ao Batalha. Tudo isso cria uma sensação de mal-estar. As pessoas diziam-me para olhar para dentro do Batalha.

    As sessões depois da meia-noite sempre foram uma marca do Fantasporto.

    Sim, foram uma marca, e até às duas e três da manhã, e por aí fora [risos]. E aqui não pudemos fazer. Aliás, viu-se pelo número de pessoas que estavam na sala.

    E a sala deste ano não foi muito grande, tem metade do tamanho daquela que tinham.

    Eu não queria falar nisso, porque isso é uma história que, então, estávamos aqui muito mais tempo a falar…

    Mudemos agora um pouco de prisma. Como é que está o audiovisual nacional, actualmente?

    Está excelente, nunca se viu tanto cinema como agora.

    Mas as pessoas vêem em plataformas, em casa…

    Estás a dizer o que eu ia dizer. Podemos falar claramente de tudo o que é streaming, logo aí, dos grandes, acho que são sete canais. As pessoas têm acesso a esses canais, e já estamos a falar aí das primeiras gerações de ‘fantas’. Porque as primeiras gerações de ‘fantas’ já foi há quarenta e poucos anos, não é? As duas últimas gerações já são a malta dos ipads, dos computadores, da piratagem [risos]. Das televisões que já começaram há uns anos a ter 30 ou 40 filmes quando entrou o cabo… Começaram a entrar 30, 40 ou 50 filmes diferentes por dia. Claro que depois repetem. Mas, lá está, as alternativas aí são tantas. Aliás, quando foi o período da covid-19, as pessoas mais jovens não sentiram nada [risos]. Já estavam habituadas a ver cinema em casa, já tinham com que se entreter à vontade.

    Aliás, diz-se que as restrições da pandemia só funcionaram mesmo porque as pessoas já estavam pré-habituadas a estar em casa. Foram elas que pediram para ficar em casa antes de o próprio Governo o decretar. Um grande exemplo de civismo, não é verdade? [risos]

    [risos] Exactamente. Os números são claros, muita gente já falou sobre esse tema. E vamos falar naquilo que é a única multinacional em Portugal, e que toma conta de 96% do mercado de distribuição e de exibição em Portugal, que é a NOS. E são nossos patrocinadores também, através da TV Cine. O cinema teve uma quebra, há dez anos, de 70%. Os dados do Instituto de Cinema, há dois anos, eram de uma quebra de mais 20%. Temos 10% do que era normal, o que é uma coisa absurda. A grande excepção, por exemplo, no ano passado, a nível de espectadores, foi o Top Gun – Maverick, que fez um número muito significativo de espectadores, e aparentemente, segundo o que foi dito, equilibrou um bocadinho as contas.

    E mesmo esse filme talvez tenha resultado porque era a continuação de um filme dos anos 1980. A geração que viu o Top Gun em 1986 quis agora vê-lo de novo no grande ecrã…

    Exacto, e tem uma banda sonora muito boa; já a do outro também era excelente. Ou melhor, é aquela que se adapta ao gosto da maioria das pessoas. E isso também levou a que o filme fosse, de facto, um sucesso.

    Sim, agora não é normal os filmes ficarem mais do que duas semanas nas salas, não é?

    E para fazer isso… Mas isso também é culpa da própria distribuição. Eu tentei manter a distribuição que fazia antes, mas só que a partir do momento em que passou a haver o domínio total – com a excepção concretamente das salas do El Corte Inglês, a UCI… Tirando essas salas, e outra meia dúzia que o Paulo Branco tem em Lisboa, se é que é meia dúzia, mais uma que existe no Porto e mais dois estúdios que fazem parte da estrutura de equipamentos municipais da Câmara…

    Voltando ao Batalha. Conseguias fazer alguma coisa com o actual Batalha?

    Tinha de ter uma programação completamente diferente. Estou-me a lembrar de duas salas no centro de Londres, com uma programação de filmes de culto, que é uma coisa que chama muita gente, e cada vez mais. No outro dia estava a falar com um distribuidor, e ele disse-me que agora ia comprar clássicos, que é o que está a dar. Quando ele fala em clássicos, eu depois cheguei à conclusão. era algo, sei lá, do tipo Streets of fire [risos].

    Todos os filmes que fizeram sucesso nos anos 1970 e 1980.

    Já são clássicos. E um gajo começa a pensar… Aliás, temos uma área chamada Fantasclassics, que este ano não fizemos. Quando começamos a pensar em clássicos… “Clássicos, mas este filme nós passamos. Já tem quarenta anos”.

    Na minha e na tua geração, quando pensamos em clássicos, estamos a pensar em filmes a preto e branco, até aos anos 1940-50, ou 60, no máximo. A partir dos anos 70 já são quase uns contemporâneos. Mas para muita gente até os filmes dos anos 90 já são clássicos.

    O próprio cinema americano altera o cinema mundial, e o cinema europeu se altera com o cinema novo.

    Se calhar há muitos filmes que estão clássicos porque só existem em DVD e VHS, e muita gente não os viu hoje, e outros já os viram há muito tempo.

    Aliás, se vamos pensar numa coisa que chegou a existir e que as pessoas nem sabem, que é uma coisa chamada 70 milímetros [risos]. E ver o Lawrence da Arábia em 70 milímetros, uma pessoa até fica com sede [risos]. Enorme filme, mas pronto. Estou a brincar com a areia porque se passa, de facto, no deserto.

    Mas estás a imaginar um Lawrence da Arábia no Batalha?

    Não dá, não dá, isto é miserável. Este ecrã é pequeníssimo. Quer dizer, para o tamanho da sala, o ecrã até dá mais ou menos neste momento.

    O IMAX também é o que faz sucesso.

    Eu pessoalmente não sou fã.

    Na indústria, parece que se está a privilegiar mais técnicas do que histórias. O que vês daquilo que te vai chegando?

    Ora bem, temos de dividir cinema em duas áreas completamente diferentes. As multinacionais, que continuam a ter produção própria; uma produção que, teoricamente, é feita para chegar ao mercado das salas de cinema. Quando eu falo em multinacional, pode-se pensar que são filmes que qualquer um pode exibir, mas não é verdade. Os distribuidores em cada país têm os direitos de uma determinada multinacional. Cá em Portugal, os direitos são todos da mesma empresa. Têm três nomes diferentes, mas é a mesma empresa e os sócios são praticamente os mesmos. Mas isso leva a que haja esse cinema, dos super-heróis e das “Ressacas”.

    E do outro lado tens um cinema de descoberta, daquelas cinematografias que normalmente não entram num país como Portugal. Daí que haja uma diversidade de países no caso do Fantasporto, que é brutal. Quer dizer, nós recebemos filmes de 60 e tal países, e temos filmes de 30 países a ser exibidos – que não entram em Portugal de maneira alguma, nem nas televisões nem em lado nenhum, já não há hipótese. Entravam no passado, no pós-25 de Abril de 1974. Estamos a falar já dos clássicos [risos]. Nem há cá, como em Espanha, alguns serviços de streaming que têm clássicos e filmes que, de alguma forma, foram fazendo a História do Cinema, e que raramente entram no circuito comercial. Nós cá somos extremamente radicais nesse aspecto. São raros os projectos que são organizados por institutos de vários países europeus, e que criam Festas de Cinema. Então, viramo-nos muito para a Ásia, onde de facto, o festival tem um peso muito forte.

    Há uns anos deram um prémio ao primeiro filme de ficção científica chinês.

    Sim. No próximo ano, a China vai estar presente em força no Fantasporto. Não só através da China mainland como através de Hong Kong e da Formosa. E depois, há países que ninguém liga e que têm coisas notáveis. A cinematografia do Cazaquistão é absolutamente brutal! Não exibimos nada este ano porque um amigo nosso, que é distribuidor, e por sugestão minha, vai fazer precisamente um pack de filmes do Cazaquistão para começar a divulgar através dos festivais. E, recebe também, logicamente, um fee de aluguer por esse núcleo de filmes que, entretanto, conseguir. Essas cinematografias são êxitos grandes em vários países. No ano passado, umas quatro dezenas de ante-estreias mundiais. Isso só mostra o peso do festival em certos países onde os portugueses não ligam ao cinema que lá se produz.

    Sim, somos mais bem tratados lá de fora para dentro…

    Eles sabem que o Fantasporto tem um impacto que lhes permite depois lançar o filme a nível internacional. Uma senhora que trabalha com festivais no Hungary Film Institute disse-me que para muitos o Fantasporto é um espaço de lançamento do cinema húngaro. Agora, há outros detalhes. Este ano tivemos cá 170 estrangeiros, dos quais 80% são realizadores de filmes que estiveram aqui presentes. E tivemos os realizadores desses países, aqui, sem pagar uma única viagem.

    Quer dizer que que o Fantasporto está bem de saúde, recomenda-se, e vai continuar no Batalha, enquanto não conseguires o sonho do Sá da Bandeira [risos].

    O sonho do Sá da Bandeira… Atenção, a minha equipa acha que é genial, mas eu preciso de ter o dobro ou o triplo do público que tenho neste momento. E para isso preciso de outro espaço, de estar noutra área da cidade.

    Mas o Fantasporto pode ser um espaço para que esta zona chame mais pessoas.

    A programação deste ano foi pensada para o Batalha, que é uma coisa que não é tão fácil quanto isso.

    Explica-me lá então como é isso…

    Nem os filmes que passámos à noite são tão para o grande público como era habitual no Fantasporto. Mas os filmes que passaram no Fantasporto são filmes de qualidade, ponto final. Goste-se ou não se goste.

    Aliás, o Fantasporto dava qualidade a filmes sem qualidade. Mas este ano não houve tanto disso…

    Não. Aliás, o filme mais maluco de todos é o Life of Mariko in Kabukicho, um filme japonês. Digo “maluco” no sentido de ser fora da caixa. Agora, o resto são filmes dentro da caixa.

    Uma coisa que acontece muito, quando os realizadores vêm ao Fantasporto, é que ficam com vontade de fazer filmes no Porto, ou em Portugal.

    E de vir outra vez ao Porto. Aliás, não quero mentir, mas recebi entre 10 a 12 mensagens, e as pessoas adoraram estar cá. E dizem logo: “o meu próximo filme vai ter de estrear aí”. Claro que é sempre uma forma simpática de…

    Não, mas eu estou mesmo a falar de pessoas que querem vir filmar ao Porto.

    Sim, isso tem acontecido. Aliás, o Shape of water [A forma da água, em português, vencedor de quatro Óscares em 2018, incluindo melhor filme e melhor realizador] do Guillermo del Toro, foi escrito cá, no Rivoli. O Argento também esteve cá a escrever um dos seus filmes. Há um espaço que desapareceu, quer dizer, não há a vivência de relacionamento entre os convidados, e que é fundamental. Não há esse espaço. Não é por acaso que as pessoas ficaram afastadas, quando há hotéis à volta da Batalha [risos]. Não é por acaso que as pessoas ficaram num hotel junto do Rivoli. Foram para lá porque eu quis que saíssem daqui e mudassem de zona. Sobretudo à noite, e que não acordassem nesta zona. Os nossos participantes reduziram de 100 para 25. Onde é que punham o carro? Pura e simplesmente perdemos participantes, perdemos público ao vir para o Batalha, e público tradicional do Fantasporto. Ganhámos um espaço que é bonito, agora se funciona…

    Quem escolhe os filmes são vocês os dois, tu e a Beatriz [Pacheco Pereira]?

    Sim, mas isso tem a ver também com a nossa formação, que curiosamente é muito semelhante.

    Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky.

    Sempre funcionaram por serem um casal?

    Sim, mas por sermos muito diferentes, por vezes, nas escolhas. E isso é bom. Eu ainda no outro dia tinha saudades, e estava a dizer que era fantástico nós durante três anos enchermos, todas as semanas, o Coliseu do Porto com filmes que estávamos a exibir nas chamadas noites duplas do Coliseu. São 3.300 lugares, e enchíamos. Pá, onde é que isso é possível hoje? Não é.

    O Festival continuou a ser eclético, com a semana dos realizadores, o fantástico, terror, séries e documentários…

    Esse conceito foi muito interessante para a evolução do Festival. Mas, das duas uma: ou nos definimos como um festival de cinema fantástico, ou como um festival de cinema geral. E isso é uma coisa que, passados estes anos todos, eu acho que cria um bocado de confusão às pessoas. Por acaso, este ano, fizemos um acordo, digamos assim, para que a maior parte dos filmes da semana dos realizadores fossem thrillers. Quer dizer que encaixa mais ou menos…

    No fantástico…

    Não encaixa no fantástico, porque os filmes são realistas. O fantástico tem uma certa loucura, e nós este ano cortámos com essa loucura de uma forma mais ou menos radical. Loucura no sentido de serem, como dizíamos, filmes fora da caixa. Cortámos porque deixou de fazer sentido. Faz sentido se calhar no MOTELX, mas aqui não faz, porque isto é um festival generalista quase.

    Pois, então se calhar aquele público que havia nas sessões da meia-noite…

    Não gostou, mas não gostou já logo na altura da passagem do Carlos Alberto para o Rivoli. E houve ali logo um choque, mas nós não perdemos público. Fomos ganhar público, porque conseguimos conquistar não só o público do fantástico, como o do generalista. O problema é que as salas estão carregadas de DC Comics, Marvel, e super-heróis, e isso é o que agrada, neste momento, à geração que vai às salas de cinema. Porque os pais já ficam em casa… Isto é igual à música, atenção, com a música é a mesma coisa.

    brown bridge with light

    Eu conhecia o tempo do Carlos Alberto e agora está muito mais higienizado aqui. No Carlos Alberto uma pessoa pode fumar, comia-se dentro da sala se fosse preciso…

    Sim, sim, tomava-se o pequeno-almoço ao sair da sala, às 6 e às 7 da manhã.

    Sim, e agora está muito mais asséptico.

    E, nessa altura, os filmes não eram legendados, e tínhamos lá o homem do talho, da padaria… E no outro dia, uns tipos que me foram levar umas bebidas ao escritório, disseram: “epá, o Fantasporto no Carlos Alberto é que era”. E lá está, este público… Eu disse-lhe assim: “mas você não percebe de filmes”. E ele disse: “mas visualmente era uma coisa espectacular”. E pronto [risos]. A partir daí está explicado uma coisa que é inexplicável. Eu acho que as pessoas continuam a ouvir falar no Fantasporto. Agora, a forma como os media têm funcionado nos últimos dez anos, os jornais foram desaparecendo, e as televisões repetem as mesmas notícias 56 vezes… Não pegam em cultura. Pegam em música, alguns canais. Porquê? Porque os organizadores dos festivais conseguem fazer contratos com as bandas garantindo que a televisão A ou B vai poder exibir o vídeo XPTO.

    Uma das coisas que não quiseste nos últimos anos foi ter uma grande estrela mundial, uma carpete vermelha…

    Sempre quis a carpete vermelha. O problema é que, não tendo carpete vermelha, tenho de dizer aos tipos que, afinal, a roupa na noite de abertura é normal. Eles perguntam sempre qual é o dress code. Nos 25 anos do Fantasporto, montámos uma tenda gigante transparente na Praça D. João I, fizemos uma ligação de passadeira vermelha entre o Rivoli e a tenda. Foi no ano em que a Toyota chegou a fazer um carro Fantasporto, o I Go Fantas. E a Diesel fazia relógios especiais para o Fantasporto… As empresas participavam no Fantasporto de uma forma muito forte. E isso desapareceu.

    Porquê?

    Porque as pessoas começaram a não investir em publicidade. A Diesel, por exemplo, achou que bastava Espanha, não precisava de Portugal. E isso foi acontecendo em contínuo. Com os carros é uma questão diferente, detalhes. Mas pronto, fazer uma coisa glamorosa é perfeitamente possível, e eu aliás ando a chatear o Turismo do Porto e Norte de Portugal; é ridículo que não nos apoiem. Ou melhor, que não apoiem os nossos convidados, para que eles possam sentir algum glamour aqui. Quando vais nos autocarros de turismo, passam à frente do Rivoli e dizem: “aqui é que se realiza o Fantasporto”. Sente-se que há uma ligação directa da cidade com o Fantasporto, mas não é o Futebol Clube do Porto.

    Falta recuperar aqui uma simbiose… É possível recuperá-la?

    Recuperar a simbiose implica que haja um processo tipo Cannes. É ridículo estar a comparar, porque Cannes é Cannes, e aqui não há mercado.

    O nosso small is beautiful.

    Isso é perfeitamente possível criar. Agora, podes ter cânones importantes. Pode haver essa lógica da passadeira vermelha, só que eu tenho de pensar que, para trazer qualquer americano de Los Angeles, só um custa-me uns cinco mil euros. Mas eles não vêm sozinhos, vêm logo com não sei quantos guarda-costas.

    E estão a perder dinheiro ao estar aqui…

    A questão é um bocado essa, eles podem vir cá. Só nos 25 anos, tivemos cá, à vontade, 10 grandes nomes do cinema, dos quais dois oscarizados.

    Qual foi o que te deu mais prazer ter cá?

    O Guillermo del Toro, é evidente, porque já era amigo no passado. O Peter Jackson, por exemplo, nunca veio cá, mas é outro que tal. Nós tivemos patuscadas em vários sítios, os três. Três de barba, três gordos. Agora já emagreceram os outros dois [risos].

    Já estiveste tu, o Guillermo del Toro e o Jackson?

    Ui, umas quatro ou cinco vezes. Queres que eu te conte a história?

    Quero!

    Uma vez fomos a um boteco, daqueles que se comem tapas, só que o homem disse: “ah, ainda não abrimos”. E nós: “não se preocupe, que nós comemos tudo e limpamos tudo”. E o Guillermo, quando chegou cá, disse que não podia comer porque estava a emagrecer. Foi comigo à Brasileira, aquilo eram pratos atrás de pratos. E depois ainda comeu tripas à moda do Porto. E mais sobremesas… Opá, pronto. É malta porreira.

    Só para concluir, gostava de explorar a ideia das salas de culto, que eu acho que isso é parte do futuro. Explica-me lá como isso é.

    Eu e a Beatriz temos falado muito sobre que espaço é que poderíamos eventualmente ocupar, ou recuperar, para poder fazer uma sala de culto. O Cine-Teatro Vale Formoso é um dos projectos que nós temos, mas é um problema, porque é muito grande também. Não exageremos [risos]. Das duas uma, ou tenho parceiros para poder fazer outras coisas do Vale Formoso… Como está agora, para além da sala que tem, dá para fazer mais 10 salas! Cada andar dá para fazer à vontade quatro salas de cada lado. Aquilo é enorme, gigantesco. E tem uma piscina, porque aquilo era da IURD.

    Eu quero explorar mais o conceito em si…

    O conceito é Fight Club; é, sei lá, filmes de Tim Burton, que funcionam sempre. Danny Boyle, irmãos Cohen… Quer dizer, há todo um conjunto de cineastas e de gente que apela à atenção de quem gosta de Cinema, e já não vai ao cinema… [risos] Mas apela à atenção, e isso é fundamental. E eu acho que isso implica o espaço em si; e o que nós temos minimamente disponível são dois em centros comerciais, e eu não quero. Aliás, há três. E depois a montagem das salas, neste momento já é um bocado caro.

    Pena foi quando há 13 anos, a dona Margarida, dona deste espaço, não aceitou o contrato preparado pelo sobrinho dela, que é advogado, com que nós discutimos a possibilidade de vir para o Batalha. Era um projecto total, far-se-ia uma renovação do Batalha, que estava mais degradado. Mas nós não tínhamos na altura um valor de 800 mil euros para a renovação do espaço. E também tínhamos a certeza, e constava no acordo, que daríamos 30% das receitas após a recuperação do investimento feito. Portanto, não era um problema de ter ou não ter dinheiro, só que era uma lógica completamente diferente. A entrada, as bilheteiras, também seriam diferentes. Isto tinha um potencial, de cruzar inclusivamente música com artes performativas e Cinema, o que era excelente. Falhou, porque a dona Margarida decidiu não assinar o contrato, porque foi no período de pré-campanha eleitoral. E já tinha havido contactos, e houve promessas de que a Câmara compraria o espaço. Fez negócio com o Rui Moreira, que foi eleito, e fizeram um acordo. Por isso, quanto pensamos em espaços, é complicado. Há outros espaços, mas não foram cinemas; e os que existem, neste momento são escritórios.

  • ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    ‘Num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar’

    De onde surgiu o denominado wokismo e a cultura do cancelamento? Jorge Soley, economista espanhol e professor universitário, acredita que o movimento remonta à Revolução Francesa, mas que bebeu muito do regime comunista de Mao Tsé-Tung. Em O manual do bom cidadão, editado em Portugal pela Dom Quixote, Jorge Soley explica as estratégias e mecanismos que os “zelotes wokes” utilizam para silenciar os “hereges” do século XXI, proibindo o debate, humilhando os “transgressores” e impondo a auto-censura. Evocando diversos casos de palavras, livros, estátuas, e pessoas “canceladas”, em Espanha e no mundo, apela para a resistência à ditadura do politicamente correcto, porque “a neutralidade já não é uma opção”. Em entrevista ao PÁGINA UM, Soley disseca este fenómeno, transversal a todo o Ocidente, não esquecendo de falar sobre os “cancelamentos” durante a pandemia.


    Há quem critique aqueles que falam do ‘wokismo’ por não definirem, propriamente, o termo. Como deve ser definido?

    Não é fácil defini-lo numa frase, porque creio que não seja um movimento unívoco, já que agrega diferentes influências. Mas se tivesse mesmo de o definir, diria que é a crença de que o mundo em que vivemos é estruturalmente horroroso e que temos de o transformar todo desde a raiz. E que quem quer que se oponha é má pessoa. Penso que há muitos aspectos da questão, mas um aspecto comum em todo o mundo ‘woke’ e politicamente correcto é não quererem discutir. Querem cancelar o debate. Eu tenho as minhas ideias, e há pessoas com ideias muito diferentes das minhas, e podemos falar e trocar argumentos; poderão até convencer-me que algumas das ideias que tenho são equivocadas e incompletas, e vice-versa. Mas, no mundo woke, algo muito característico é a eliminação do debate. Porque dizem: “não, se tu não estás de acordo com isto, és má pessoa, és a favor do racismo estrutural, das fobias, da homofobia estrutural, e contigo não se pode falar porque estás do lado errado da barricada”.

    No seu livro fala das origens do movimento woke, defendendo não ser fenómeno de agora. Como surgiu?

    Creio que é uma confluência de muitos factores e alguns, inclusivamente, contraditórios. Detecto na Revolução Francesa alguns elementos, por exemplo, com o que se passou durante o Terror. É a tal ideia de que todos os que não estão de acordo comigo são inimigos da Humanidade; foi o que aconteceu com Robespierre. Nos dois séculos que se seguiram, foram-se somando novos contornos e, no meu livro, falo da influência da Escola de Frankfurt, de Antonio Gramsci, de Mao. Mais do que Marx, de Mao. Acredito que Mao, Gramsci, e a Escola de Frankfurt são muito importantes para a visão ideológica do mundo woke.

    De um modo geral, as pessoas ficam surpreendidas com a comparação que estabelece entre o Maoismo e o wokismo? Acham exagerado…

    Bem, sim… O que é que eu encontrei em Mao? Encontrei vários elementos que me parece que são semelhantes ao que estamos a viver agora. Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o facto de haver certas ideias não permitidas. Depois, outro paralelismo tem a ver com a Revolução Cultural. E também os fenómenos através dos quais, de repente, as massas se lançam sobre uma pessoa e a destroem. Evidentemente, na altura de Mao isso fazia-se com paus e afastando os professores que supostamente não compartilhavam do movimento maoista. Muitas vezes, havia castigos físicos. Hoje, evidentemente, o linchamento é feito nas redes sociais. Outro aspecto da Revolução Cultural é o exigir que os dissidentes, aqueles que não estão de acordo, se humilhem publicamente. E, para além disso, não basta humilharem-se, ficam estigmatizados para sempre. A escritora J. K. Rowling será para sempre uma “transfóbica”, porque já a rotularam assim. Mesmo que agora se arrependesse, seria igual, não valeria a pena, porque se pedir perdão é uma prova de que estava errado. Se eu cometo um erro, não tenho nenhum problema em pedir desculpa. Mas o que não vale a pena é desculpares-te numa tentativa de que te “salvem a vida”, ou que te perdoem, porque não te vão perdoar. Nem Mao, tão pouco, perdoava. A pessoa ficava marcada para sempre.

    Também é professor universitário, e as universidades, no mundo ocidental, têm tido um papel significativo na difusão do “politicamente correcto”. Em Espanha, como é a realidade nas universidades?

    Creio que em Espanha, como em todo o mundo ocidental, há alguns casos de professores submetidos a pressões, inclusive sob risco de perder o emprego, por dizerem o que teoricamente não se pode dizer: por exemplo, que há apenas dois sexos, e que a biologia não depende do que alguém pensa, é o que é. No entanto, penso que sobretudo o que procura a ideologia woke não é tanto castigar aqueles que dizem o que é supostamente incorrecto, mas sim a autocensura. E acho que em Espanha há muito medo e autocensura. Com a maior parte dos professores universitários vê-se uma grande diferença entre o que te podem dizer em privado e o que dizem publicamente. Ninguém quer problemas. Então, em privado diz-se algumas coisas, e depois, em público, sobre as “questões problemáticas”, fala-se de uma forma muito cuidadosa, e autocensuras-te. E penso que isso é um empobrecimento enorme para a dimensão intelectual. A meu ver, temos de dizer o que pensamos e argumentá-lo; a autocensura é sempre má. E, nas universidades, a autocensura está muito presente.

    Teve algum tipo de represálias ou reprimendas, no seu círculo profissional, por se insurgir contra o politicamente correcto?

    Na verdade, não tive problemas graves. Pode haver sempre alguém que te critica ou que te insulte, mas pessoalmente não me aconteceu nada de grave. E também é verdade que, onde estou, quem me rodeia até concorda mais ou menos com o que eu digo. Além disso, digamos, já tenho mais de 50 anos; se fosse um jovem universitário, com 25, 30 anos, teria mais cuidado e iria exercer uma maior autocensura sobre mim mesmo. Com a minha idade, já me autocensuro pouco.

    No livro, utiliza o termo “patologização do dissidente”, que consiste em, além de se acusar os críticos das pautas woke de “discurso de ódio”, atribuir-lhes fobias várias, o que permite cancelar o debate de uma forma até paternalista ou condescendente…

    Sim, parece-me que são tentativas de cancelar o debate, rotulam qualquer coisa de “discurso de ódio”, ou dizem que és louco e que padeces daquelas fobias. Por este caminho, acaba-se com a liberdade de pensamento e com a liberdade de expressão. Acho que é muito perigoso, e que se deve restringir o consenso do que é convencionado como discurso de ódio. Estritamente, deve ser algo que cause um dano real a outras pessoas. Tudo o resto tem de ser legítimo, numa sociedade democrática, e tem de se poder falar sobre. Na minha opinião, ninguém tem o direito a não ser ofendido. O problema da ofensa é determinar se houve ou não ofensa; é subjectivo, é da própria pessoa. Então, qualquer coisa, até uma pergunta, pode subjectivamente considerar-se ofensiva. Se aplicássemos esse critério, num mundo woke, se eliminarmos qualquer expressão passível de ser ofensiva, acabaremos a não poder falar. Então, acredito que temos que nos poder expressar em liberdade, e isso significará que haverá coisas que ofenderão as pessoas. Têm que se assumir isso nas democracias ocidentais, faz parte do debate poder ser ofensivo. A mim, há coisas que me dizem que me ofendem, mas eu, diante disso, em vez de “cancelar” quem o disse, tento dar-lhe argumentos para fazer a pessoa ver que aquilo que disse é um disparate. Se, ainda assim, a pessoa me quiser ofender, bom, é um problema seu. Mas, enfim, creio que é algo que faz parte da nossa vida em comum, da nossa civilização.

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    Há um apelo à vitimização?

    Sim, agora, parece que o segredo para prosperar nesta sociedade é encontrar um grupo ao qual possas aderir, e onde possas dizer que te vitimizaram, que és uma vítima. Houve um momento em que fazíamos piadas sobre “vitimizar” os gordos, os condutores de camiões, os comedores de pizza. E, o que era uma piada, entre amigos, agora, há quem o reivindique, dizendo que existe uma pizzafobia e que os comedores de pizza – que não comem saudavelmente – são vítimas de uma sociedade que os obriga a consumir. Ou seja, no movimento woke, perante qualquer disparate que te ocorra, é muito provável que se torne realidade – é apenas uma questão de sentar e esperar; se esperares algum tempo torna-se realidade.

    Fala também sobre como os “desejos” de certos grupos se transformaram em clamores por direitos. Acha que os wokes instrumentalizam a narrativa dos direitos humanos para conseguirem o que querem?

    Sim, eu creio que sim, existem direitos, que são universais e são para todos os Homens. Quando se fala nos direitos das minorias… quer dizer, são os direitos de todos, todos temos direitos! Aqui, o problema desta transformação do conceito de direito, é quando aquilo que eu desejo tem de se converter num direito. Se eu desejo, por exemplo, ter um filho, tenho o direito de o ter. E tenho de o ter, porque se é a minha vontade, então é o meu direito. Quando algo se transforma num direito desta forma… Um direito implica sempre um dever: o dever da sociedade e do Estado de garantir esse direito. Para mim, cada um tem o direito a tentar levar a vida que quiser. Mas não tem o direito a que esse direito lhe seja mesmo garantido, se por si mesmo não o consegue. Porque se o modo de vida a que aspiro envolve ter filhos, mas não os posso ter, eu não tenho nenhum direito a reclamar que, por exemplo, o Estado me pague um ventre de aluguer. O problema dessa inflação de direitos é que, no final, se gera uma inflação de deveres e isso parece-me muito perigoso, porque então, estamos a desvirtuar o que é a sociedade e o Estado para assegurar qualquer capricho de uma pessoa.

    Há quem argumente que ser contra o wokismo é ser contra a igualdade de oportunidades. Como responde a esta crítica?

    Acho que é o contrário. Opormo-nos ao wokismo é, precisamente, garantir igualdade de oportunidades para toda gente, independentemente do seu sexo, da sua raça, do que for. Nos Estados Unidos, a denominada política de identidade consiste em negar a igualdade para criar os novos privilegiados. Estes privilegiados são os grupos vitimizados. São os novos reis, os “aristocratas” que têm, por exemplo, ajudas do Estado, a quem se reservam lugares nas universidades e postos de trabalho. Os opositores do wokismo estão contra esta nova “artistocracia”; são a favor da igualdade de oportunidades para todos. Para grupos, minorias, todos. É um pouco aquilo que disse Martin Luther King, que sonhava com uma sociedade em que a cor da pele não tivesse importância. Eu creio que Martin Luther King, nisto, tinha razão. Hoje em dia, todos os defensores da Teoria Crítica da Raça, dizem que Martin Luther King era racista. Era um racista branco. Porque, afirmam, a sua visão, em defesa de uma sociedade em que ninguém é discriminado pela cor da pele, é, ao fim e ao cabo, consolidar o racismo estrutural branco. Mas eu acho que estão errados, e estou do lado de Martin Luther King.

    Sim, segundo esses teóricos, é possível que um negro demonstre “branquitude”, ao ser bem-sucedido e não se mostrar oprimido, por exemplo. Também alegam que todos os brancos são inerentemente racistas, sem excepção. Trata-se de argumentos circulares e, por isso, de falácias?

    Sim; não são, verdadeiramente, argumentos. Como são circulares, no final, digamos, são apenas dogmas de fé. Face a isso, não pode haver um debate racional, porque qualquer coisa que digas, para eles, demonstra precisamente que és um defensor do racismo estrutural. É igual. Não há debate, porque são afirmações dogmáticas e circulares.

    Cita vários exemplos de “cancelamentos”, nomeadamente sobre transsexualidade, orientação sexual e racismo. Também houve, recentemente, o tema da pandemia, que mereceu muitos cancelamentos e rótulos, a médicos e investigadores reputados. No seu livro, contudo, acaba por não abordar muito esta questão…

    Não sou cientista, por isso, na verdade, nunca me considerei negacionista nem nada, porque não tenho capacidade para julgar. Mas houve de tudo. Houve pessoas que disseram coisas que não se podiam comprovar; mas, depois, havia gente que dizia coisas pelas quais, num certo momento, foram canceladas porque se considerou que o que diziam era uma barbaridade, e que depois se viu que até tinham razão. Portanto, houve esse mecanismo de eliminar o debate com o rótulo de “negacionista”. Algumas pessoas, foram censuradas nas redes socais. E nas televisões públicas de Espanha foram excluídas porque expressaram dúvidas sobre o que dizia o Governo num dado momento. Coisas que, passado um ano, já se podia dizer e estava tudo bem, já não se era considerado negacionista por causa disso. Percebo que há momentos, como os que vivemos com a pandemia, em que havia muita incerteza e ignorância, não sabíamos o que enfrentávamos. Mas, apesar de tudo, há que assumir sempre riscos, é bom que as pessoas possam dar a sua opinião; e que possa haver um debate sobre as medidas, sobre as vacinas, os confinamentos e o seu impacto. Houve, por exemplo, uma pessoa que alertou para os confinamentos, porque poderiam ter um impacto muito negativo entre os adolescentes. E chamaram-no de tudo, disseram que não devia participar nos debates televisivos. E, agora, em Espanha, estamos a viver uma epidemia de suicídios adolescentes como nunca houve. Deveríamos tê-lo tomado em conta. Gostaria de pensar que, no futuro, se tivermos de enfrentar situações parecidas, possa haver mais debate e mais discussão civilizada, e ninguém seja destruído por dizer coisas diferentes das que diz, a cada momento, o Governo e o Ministério da Saúde.

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    Este livro tem como subtítulo “para compreender e resistir à cultura do cancelamento”. Como podemos, então, resistir e combater este fenómeno?

    Devemos combatê-lo de todas as formas. Podemos combatê-lo na nossa vida quotidiana, não cedendo, tendo a coragem de falar com naturalidade e dizer o que pensamos. Acredito que isso é muito importante, que cada um de nós possa dizer aquilo que quiser, e que o diga em público sem ter problemas. Se toda a gente fizer isso, é difícil que nos detenham. E, por outro lado, digo sempre, também, que temos de apoiar os meios de comunicação, universidades, políticos e intelectuais que falam abertamente contra o wokismo. Há que apoiá-los, porque pode ser-se corajoso, mas depois quando te atacam, é difícil. Eu já falei com pessoas que me disseram que se sentiam muito sozinhas por terem falado. Portanto, temos de dizer o que pensamos e, sobretudo, apoiar as pessoas com essa coragem. Há quem não tenha muita capacidade de influência, mas aquelas pessoas que têm, e que falam, devem ser apoiadas; escrevendo-lhes e mostrando-lhes o nosso apoio. Creio que tem de haver uma mobilização para que falemos. E, aliás, que se apoiem, por exemplo, os jornais que publicam entrevistas comigo [risos].

  • ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.


    O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?

    Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.

    Bas Von Benda-Beckmann

    Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.

    Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.

    Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?

    Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.

    Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?

    Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.

    Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?

    De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.

    Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?

    Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.

    Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.

    Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.

    Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.

    Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.

    Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.

    Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?

    Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.

    Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?

    Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.

    A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?

    Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.

    Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…

    Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.

    Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?

    Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.

    Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?

    É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.

  • ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    ‘A independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa’

    Jornalista veterano, professor universitário – leccionando ética e deontologia no Jornalismo –, Paulo Martins é um nome incontornável na Imprensa em Portugal. É também o autor do livro “O Bairro dos Jornais”, que reúne o património histórico sobre a concentração da imprensa no Bairro Alto, em Lisboa, precisamente o local que é hoje a casa do PÁGINA UM. Numa entrevista, dada na redacção do PÁGINA UM, na véspera do primeiro aniversário do jornal, Paulo Martins fala da História do Jornalismo em Portugal, mas também partilha a sua visão sobre os actuais desafios da classe e a grave crise do sector. Defendendo a ideia do apoio público aos media, critica porém o “mimetismo” que grassa no sector, com os órgãos de comunicação social a fazerem todos as mesmas notícias, com o mesmo ponto de vista. E avisa que a pressa em publicar notícias pode contribuir para a desinformação. Sobre a dificuldade no acesso a informação pública, Paulo Martins ainda alerta: “fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos”. Pode ouvir a entrevista integral (não editada) no PODCAST do PÁGINA UM.


    Foi difícil preparar esta entrevista, porque temos tantos temas que poderíamos abordar. Mas começo por te perguntar: de facto, este património da História do jornalismo parece-te estar protegido hoje? Agregaste isso neste livro [O Bairro dos Jornais, publicado em 2018] mas, de resto, parece um pouco disperso e poucas pessoas sabem dele…

    Pois, eu acho que os poderes públicos esquecem-se que têm aqui um património importante, até do ponto de vista turístico. Porventura, noutro país em que a imprensa tivesse tido este significado num espaço que basicamente é o Bairro Alto e o Chiado, com uma enorme concentração de jornais, seguramente que já haveria visitas guiadas a antigos espaços. Não faltam aqui na zona edifícios que receberam gerações de jornais sucessivamente, desde o século XIX. Enfim, o Diário de Notícias, naturalmente, porque teve várias publicações, o Grupo do Século… mas outros edifícios, como por exemplo um que fica no Largo de Camões, recebeu pelo menos 20 jornais ao longo dos anos; de curta duração ou de maior duração. Eu acho que esse património devia ser transmitido, isto é, esta é a pátria da imprensa em Portugal. Não há outra, há pouco mais do que isto em termos de dimensão. Infelizmente, já estão poucos títulos aqui e felicito-vos por terem escolhido este espaço para reatar com a história tão nobre do jornalismo no Bairro Alto.

    Paulo Martins, anteontem, na Rua do Diário de Notícias, no coração do Bairro Alto, momentos antes de conceder entrevista ao PÁGINA UM

    E uma das questões que referes no teu livro, e que ressalta para quem é jornalista, é aquela ligação forte que existia entre política e jornais e jornalistas. Andavam de mão dada. Como é que era antes, e como é hoje?

    Há vários “antes”. Dois ou três dados sobre isso. No século XIX, um senhor que foi dos mais dinâmicos jornalistas desta zona, o Rodrigues Sampaio, que tinha o Revolução de Setembro, e depois criou outros jornais, andou com a imprensa de um lado para o outro, a fugir às autoridades e a escapar à censura… Quando teve ele próprio a oportunidade de ser ministro, impôs uma lei da rolha e passou a ser atacado pelos jornalistas, porque seguiu esse caminho. No tempo da ditadura fascista, aconteceu basicamente o mesmo, não é? Talvez seja importante nós percebermos o contexto geográfico. A minha ideia no livro foi partir da geografia para a ocupação do espaço pela imprensa. Estamos a falar de quase 600 jornais que eu identifiquei desde 1850, quando os jornais passaram a ter uma referência específica à redacção, porque até aí não tinham; tinham, eventualmente, a tipografia. E portanto, nesse período, todos os jornais vão-se concentrando aqui. Mas, por exemplo no Estado Novo, tinhas também a Casa da Imprensa, que é aqui na zona, existe ainda hoje, e ainda bem que existe; é uma associação mutualista da área da comunicação. O Sindicato dos Jornalistas, que não é muito longe, na Rua dos Duques de Bragança, portanto ao pé do Chiado. E os serviços de censura, que ficavam em frente do República, ao lado de onde é hoje a Associação 25 de Abril, que teve os jornais do regime – o Diário da Manhã e a Época –, e tinha tido antes um jornal ferozmente republicano chamado O Mundo, que os opositores monárquicos chamavam “imundo”, porque era de uma violência inaudita contra a monarquia. Portanto, há vários momentos de relação com a censura ou com a situação, não é? No pós 25 de Abril, juntaram-se aqui vários jornais, além dos jornais que já existiam, sobretudo vespertinos: O Diário de Lisboa, A Capital, O Diário Popular… foram criados aqui alguns jornais do “contra” no sentido de serem jornais saudosistas do anterior regime, no mesmo espaço onde estavam os jornais claramente colocados no lado oposto do espetro político. E o que mais me chamou a atenção, nesse período do Estado Novo, foi que as cumplicidades e a camaradagem entre jornalistas se sobrepunham às posições políticas. Quer dizer, ninguém aceitava a censura, mesmo os jornalistas que eram próximos do regime, mas havia jornalistas que eram próximos do regime e outros que não eram, e conviviam, passavam material uns aos outros. Isto é, a cooperação sobrepunha-se à competição, sendo que cada um tinha de competir. Posso contar-te, a esse propósito, um episódio muito interessante. Um administrador do Diário da Manhã, que era um jornal financiado pelo Governo do Salazar – portanto, era financiado pelo Estado –, mandou uma carta precisamente a Salazar a dizer que estava com problemas financeiros, porque ninguém comprava o jornal e os poucos que compravam escondiam-no, e que até já tinha tido necessidade de pedir papel ao República, que ficava do outro lado, na rua da Misericórdia, e que era da oposição. E o jornal República fornecia o papel, porque era necessário [risos]. Isto é uma coisa difícil de compreender fora desse contexto, da tal partilha do mesmo espaço. E isso é nítido nas memórias dos jornalistas que eu usei como fonte neste livro, porque não havia nada sistematizado, e o que há é sobretudo livros de memórias dos vários jornalistas.

    Paulo Martins, e o seu livro O Bairro dos Jornais, na redacção do PÁGINA UM, com os jornalistas Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira

    E escreves também sobre jornais que nasceram com propósitos políticos, digamos assim.

    Claro, claro. Sobretudo no século XIX… E já não falo sequer dos jornais da chamada propaganda republicana, que a partir do ultimato de 1880 passaram a ser ferozmente anti-regime de uma forma que nós hoje ficaríamos impressionados com a ética que poderiam ter, se é que tinham alguma [risos]. Portanto, eram de uma violência enorme contra a monarquia; espalhavam boatos e aquilo a que nós hoje chamaríamos “desinformação”, que sempre existiu. Mas os jornais nessa época, no século XIX, eram, em grande parte, jornais criados por partidos ou por tendências dentro dos partidos, que muitas vezes eram criados para conduzir um deputado ao poder, por exemplo, e depois desapareciam. Há um episódio que me contam, em que o jornalista em causa, que se chamava Alberto Bramão, confessa nas suas memórias que a certa altura lhe mandaram escrever um texto violento contra um político, que era director de outro jornal. E ele escreveu, e nem sequer assinou, porque na altura não se assinava. Depois descobriu que era mentira, e ficou revoltado por ter escrito uma coisa que lhe encomendaram e que era mentira, e então demitiu-se do jornal. É uma coisa espantosa, porque ele não tinha sequer de assumir aquilo, não assinou, não é? Mas, a certa altura, ele dizia uma frase fantástica sobre o episódio, que era: “o capitão manda e o marinheiro obedece”. Portanto, ele estava disponível para escrever por conta de qualquer tendência política, era o ganha-pão dele.

    Mas há uma ideia, se calhar, em algumas pessoas, de que, antigamente, havia um jornalismo puro, e que hoje é que está muito diferente… Só lendo o teu livro e a história do jornalismo se percebe que não era assim. O jornalismo caminhou muito e hoje tem qualidade [em comparação].

    Não era assim nem tem de ser. Eu acho que a discussão é um bocadinho diferente. Eu costumo defender, até do ponto de vista académico, que a independência do jornalismo não é todos fazermos de conta que não temos partido nenhum. É assumirmos as nossas posições, e sermos julgados com base no conhecimento público dessas posições.

    Aliás, há jornais que editorialmente se assumem…

    Exactamente, e assumindo-se editorialmente como sendo de uma área política ou de outra, não significa que sejam menos profissionais. Podem seguir as mesmas regras, e devem seguir as mesmas regras. O jornalismo é, basicamente, como dizem dois autores americanos, uma disciplina de verificação. É um método, e se cumprimos todos o método havemos de chegar a resultados semelhantes, não iguais, porque isto não é matemática. Felizmente, não é? [risos] Mas não tem nada a ver com o posicionamento político; quer dizer, a ideia de que somos muito independentes e, portanto, não tomamos posição nenhuma… O facto de não tomarmos posição é, em si, uma posição. Portanto, não faz sentido fazermos de conta que somos independentes. O que é que eu quero dizer com isto? Que, basicamente, eu prefiro os poucos jornais que na fase democrática da nossa História, desde 1974, assumiram posições [políticas], claramente do ponto de vista editorial; por exemplo O Independente. Era claramente um jornal à direita e assumia-o. Eu trabalhei n’O Independente e sempre fui de esquerda e nunca me ocultei, e ninguém me obrigou a ser diferente. Do ponto de vista editorial, seguia a sua linha, e os jornalistas faziam o seu trabalho. E depois O Diário, que era próximo do Partido Comunista e assumia essa condição. E as pessoas compram, ou lêem, e acreditam… Ninguém é independente, ninguém está “de fora”… Nós somos cidadãos também. Em tempos, um jornalista chegou a dizer que era tão independente que nem sequer votava. Isso é um disparate absoluto, não é? Eu prefiro os jornalistas que assumem a sua posição, clubística, política, partidária, se a têm. E depois nós julgamos em função disso; não vale a pena fazermos de conta. E nessa altura ninguém fazia de conta, porque todos tinham essas posições mais ou menos marcadas.

    E contas também como havia todo um rol de publicações satíricas e de crítica, ou seja, havia uma multiplicidade de exemplos que não têm muito a ver com aquela ideia de jornalismo puro e objectivo, que se calhar existe numa camada da população que não conhece a História do Jornalismo.

    Não, os jornais muito cedo se estratificaram internamente. O repórter era o coitado que estava à porta da esquadra a ver se conseguia alguma coisa, e que tinha uma arte específica para isso, que não era a mesma que a do redactor. Ele levava o material e o redactor escrevia em português. Ou seja, basicamente dava forma jornalística às informações dispersas. Mas há outro aspecto muito interessante, do qual eu tomei consciência quando investiguei para o livro, e eu digo isto um bocado na brincadeira, mas é verdade: só mais tarde é que surgiram os vespertinos, mas, logo no século XIX, os escritores trabalhavam nos jornais para ganhar dinheiro à tarde, e de manhã escreviam contra os jornais [risos]. Por exemplo, Eça de Queiroz tem belas peças contra os jornalistas, pelos quais ele não tinha grande consideração, mas ele escrevia para os jornais para ganhar dinheiro. Sei lá, o [historiador e político do século XIX] Oliveira Martins foi director de um jornal… Repare, o caso do Oliveira Martins é muito interessante, porque o jornal estava no edifício onde fica hoje uma seguradora, no Chiado, em frente à boca do metro, do outro lado. E eu tive muita dificuldade em perceber onde é que, afinal, era o jornal, porque na época, toda aquela rua era a Rua Garrett. E agora aquela parte é o Chiado, não é? E esse jornal tem uma história giríssima, precisamente no período em que Oliveira Martins era director e acontece o Ultimato inglês, e os jornais todos – monárquicos e republicanos – tomam posição contra o Governo por se ter posto de cócoras perante a Inglaterra. E o jornal chamava-se Repórter. Então, eles decidem que o jornal deixa de chamar-se Repórter, porque não pode ter um nome inglês [risos]. E muda de nome, e muda-se para o Bairro Alto. E o jornal era muito afirmativo em termos políticos. Montes de escritores de renome escreveram nos jornais. Depois, mais tarde, na fase do Estado Novo e da Primeira República, foi a mesma coisa. Por exemplo, uma grande figura do Estado Novo, que é aliás o ideólogo do ponto de vista cultural, que é o António Ferro, escreveu em vários jornais, incluindo O Diário de Lisboa. A memória que temos d’O Diário de Lisboa é que era um jornal contra o regime, mas nos primórdios tinha o António Ferro entre os seus colaboradores. O Almada Negreiros… enfim, essa é outra vertente, que é, tínhamos muitos jornais humorísticos, como O Sempre Fixe, O António Maria. Os jornais do Bordalo Pinheiro foram quase todos no Bairro Alto. Ele escreveu, fundou e fechou vários. O António Maria era do nome António Maria de Fontes Pereira de Melo, que era o ministro, que queriam criticar e militantemente criticavam sempre nos seus desenhos. Mas depois tinhas os jornais sindicais, por exemplo. Entre os jornais humorísticos, O Sempre Fixe, que era propriedade d’O Diário de Lisboa, era desse pequeno grupo, onde o Stuart Carvalhais foi dos mais geniais a escrever, e depois, mais tarde, o João Abel Manta. Portanto, também temos uma geração de caricaturistas que eram jornalistas, não eram uns tipos que sabiam umas coisas de desenho. Eram jornalistas que se exprimiam de outra forma. Uma das coisas mais fantásticas que descobri foi sobre a Rua da Barroca. A certa altura, no início da República, havia dois jornais anarquistas, que se digladiavam entre si a propósito das linhas do anarquismo. Eu não consegui perceber qual era a diferença, mas eles percebiam [risos]. E eram muito violentos nos editoriais, um contra o outro. A certa altura, os dois directores tornaram-se amigos, porque A República, como definitivamente rompeu com o movimento operário, meteu os dois na prisão do Limoeiro; e eles tornaram-se amigos, depois de terem sido presos [risos]. Portanto, há esses episódios interessantes que mostram como as coisas foram evoluindo nesse sentido… Por exemplo, um jornal que existia mesmo no largo do Chiado, chamado A Verdade, era assumidamente salazarista, o director era salazarista, mas onde escreveu, ainda bastante tempo, um senhor chamado Humberto Delgado, na fase em que ele próprio era salazarista. Nesse mesmo edifício, entre 1918 e 1922 ou 1923, existia um jornal chamado Imprensa da Manhã, que militantemente incentivou a Noite Sangrenta de 1921. Claro que não tinha a noção de que ia dar no que deu, mas incentivou, fez reportagens juntamente com os assassinos, uma coisa inacreditável. E, como as coisas correram mal, no fim os assassinos foram à redacção do jornal dizer: “então, como é que é agora?”. E eles tentaram tirar-se de fora, mas tinham escrito várias reportagens, não só a incentivar, como a acompanhar a Noite Sangrenta. O redactor-chefe, como se chamava na altura, desse jornal era o Esculápio, que ficou conhecido como um dos grandes repórteres. E era, de facto, um grande repórter, mas foi quem incentivou aquilo tudo. Era uma história que não se conhecia. Eu é que, digamos, juntei peças, e é um caso em que um jornal activamente tem uma posição política, que dá em sangue; claro que eles não previam isso. Imagina o que é fazeres uma volta com um side-car a acompanhar as pessoas que estão a apanhar os políticos que estão à mão, na casa deles. É uma coisa terrível.

    Era, nesse sentido, a minha pergunta. Porque hoje há qualidade, na medida em que há regulação, cursos universitários para jornalistas. Estamos num mundo completamente diferente desse jornalismo, e existe um código deontológico. Há aqui uma série de travões, digamos assim, para que algumas coisas não possam voltar a acontecer?

    Há, mas vamos lá ver: o código deontológico é de adesão voluntária, não há sanções, aparentemente. Eu gostava de chamar a atenção para isso, porque ouço muitas pessoas das ordens profissionais… Ou seja, melhor dizendo: em regra, as ordens profissionais – não estou a generalizar, porque seria injusto –, quando actuam do ponto de vista disciplinar por razões deontológicas, é porque já houve notícias sobre os casos, o que eu acho gravíssimo, porque têm condições para serem transparentes, e dizerem que estão a investigar este médico ou este advogado. E ninguém sabe. Eu posso ir a um médico que está a ser punido pela Ordem, e não sei, não é? Sabem eles, entre eles. No jornalismo não há uma Ordem, felizmente; eu fui dos que batalhei contra a Ordem. Não há nenhuma sanção directa sobre o exercício profissional, sobre o salário, não se pagam multas. Mas se eu, enquanto jornalista, for objecto de uma queixa ao conselho deontológico do sindicato, e o conselho deontológico apreciar e confirmar que eu violei uma norma, publica no site do sindicato: “o Paulo Martins violou o código”.

    E isso afecta a credibilidade.

    Isso é pior do que uma multa! Porque uma multa, eu pago e ninguém sabe; ali, o meu nome profissional fica marcado e ninguém sabe. Portanto, eu gostava que esse exemplo fosse seguido por outras entidades que tanto falam. Não é de originalidade portuguesa, é assim em vários países. A maior parte dos sindicatos tem instrumentos deste género. Depois, há a lei, mas a lei precisa de alguns aperfeiçoamentos. Mas também é preciso termos em conta uma coisa que “baliza” a intervenção regulatória: nós estamos a falar de um campo muito sensível. Não é a entidade reguladora do sector eléctrico, não é? Qualquer intervenção de uma entidade reguladora na área da comunicação pode ser sempre encarada como uma intervenção censória, mesmo que não queira ser. Portanto, é mais delicado, é mais difícil intervir. Ou então acontecem coisas como este absurdo da decisão sobre o Ricardo Araújo Pereira, que não tem o mais pequeno sentido. Primeiro, o Ricardo Araújo Pereira convida para o programa dele quem ele quiser. Segundo, a SIC não tem que andar à procura de quem aceite entrevistar alguém, porque as pessoas têm autonomia para o fazer, não é? Eu acho que o Ricardo Araújo Pereira respondeu bem, se ele fosse jornalista tinha o dever de ouvir todos e de falar com todas as áreas; para aquilo convida quem ele quer. E tem esse direito, aquilo é um programa de entretenimento. Portanto, isto para dizer que é fácil intervir em programas de entretenimento, dizendo estas coisas sem jeito [risos]. Intervir nos conteúdos, obviamente que não pode acontecer. Ou seja, há aqui sempre alguma limitação.

    Tu és um jornalista com muita experiência, um veterano que conhece o sector por dentro na sua versão moderna e pós-democrática, e também tens muita experiência no jornalismo desportivo, que se calhar ainda é o que agrega muito do que era o jornalismo de uma certa época...

    Isso tive há 30 anos [risos].

    Mas, hoje há, de facto, uma globalização; há esta força que é a Internet, as redes sociais, e a forma como as agências de notícias tiveram de se adaptar. E surge o churnalism, ou a reciclagem de notícias, com o risco de uma notícia não rigorosa, de repente, ser espalhada por todo o lado. Uma vez que também és professor investigador, o que te surge quando vês a forma como tudo isto funciona, sem haver balizas? Porque todos os dias nós vemos notícias replicadas assim…

    [pausa] Os jornalistas, se continuarem a privilegiar a rapidez na difusão da informação em vez do rigor, vão sempre contribuir para a desinformação, ainda que involuntariamente. Eu acho que, ao contrário do que acontecia, se calhar há 20 anos, não há nenhuma justificação para nós sermos rápidos a transmitir. Repara: uma coisa é teres uma grande investigação e quereres divulgá-la. É a tua investigação, promoves, muito bem. Outra coisa é eu ter uma notícia e querer transmiti-la a correr, e não sei se ela está confirmada. Isto não faz nenhum sentido, porque tu hoje tens muitos mais meios de acesso à informação. Hoje não falta informação; falta é garantir que é verdadeira. E, portanto, a nossa preocupação deve ser transmitir só quando tivermos a garantia de que posso “dar a cara” por esta informação. Os jornalistas que ficaram na História por causa do caso Watergate têm um princípio muito interessante: o jornalista deve apresentar a verdade disponível no momento – que é: o que hoje é verdade, e eu tenho condições para dizer e pude chegar a esta conclusão, amanhã pode não ser, porque houve uma evolução ou há um dado que eu não conhecia. Mas eu tenho é de ter a honestidade de dizer: até aqui é isto que eu sei. E não tenho nenhuma necessidade de correr. Para que é que eu corro? Para escrever que uma pessoa morreu, e afinal não morreu, como ainda recentemente aconteceu? Isso não tem nenhum sentido. Antes, nós dizíamos “li no Diário de Notícias”, ou “vi na RTP” ou na TSF, seja o que for. Hoje dizemos “vi na Internet”. E isto é destruidor para o jornalismo. Repara, eu não tenho nada contra as pessoas hoje se informarem de outra maneira, o papel está em desaparecimento, temos outros meios de transmitir a informação.  Mas o único antídoto que eu conheço para a desinformação não é de quem emite, é de quem recebe. O destinatário é que tem de confirmar, ver outros sites, porque mesmo os órgãos de comunicação mais prestigiados também estão vulneráveis à desinformação. Hoje, para se fazer desinformação eficaz usa-se precisamente o órgão prestigiado, porque as pessoas acreditam. Eu costumo usar este exemplo quando falo com os meus alunos, para se perceber que este fenómeno não é novo, só ganhou volume. Quando as forças da chamada coligação internacional invadiram o Afeganistão, o The Guardian, prestigiado jornal inglês, publicou na primeira página uma fotografia de um soldado inglês no Afeganistão que tinha sido enviada por um leitor benemérito. A fotografia era fortíssima, fantástica. Então, descobriu-se que tinha sido propositadamente enviada, que era um Action Man, e que a fotografia tinha sido tirada em cima de uma mesa com um bocadinho de musgo à volta para fazer de conta que estava num cenário de guerra. E o jornal desfez-se em desculpas. Porque é que se vai atrás do leitor que enviou? Hoje todos vão. O dito jornalismo do cidadão. Tu publicas fotos das cheias, mas não tens a certeza se as fotos são de hoje ou de há 10 anos, mas é o contributo do leitor. Então, e se a coisa der para o torto? É o jornal que divulga, e é o leitor que é responsável? Se calhar o leitor usa um pseudónimo [risos].

    Agora, todos os meios de comunicação social replicam notícias de agências, que podem até conter incorreções graves, mas também “lavam as mãos”; dizem que isto é da agência, que não lhes cabe confirmar, só replicam. Como investigador, vês uma forma de sair deste modo de fazer jornalismo? O jornalismo passa por verificar, não?

    Estamos a falar de duas realidades diferentes. Uma agência tem como missão enviar informação para os seus clientes, que são os órgãos de comunicação. E, portanto, se os órgãos de comunicação cumprem o seu dever de dizer: “isto é uma informação que veio da agência”, estão a imputar a uma fonte que consideram credível. O problema é quando usam material da agência sem o citar, e se a coisa dá para o torto dizem que foram os outros. Como aconteceu precisamente com a notícia da morte do historiador José-Augusto França, em que órgãos de comunicação, que foram atrás do que o Público escreveu – e antes de o Público ter pedido desculpa, e bem, pelo erro que tinha cometido –, não o citaram, e depois disseram “nós dissemos o que o Público disse”. Isto não é aceitável. Mas o problema de fundo é que os órgãos de comunicação estão a atravessar uma crise financeira, de tal modo, que têm de inventar receitas. E convencionou-se a ideia de que um título muito chamativo é mais replicado… e infelizmente nós estamos a contribuir para as pessoas terem como actividade replicar títulos, em vez de lerem notícias. Nós, jornalistas, contribuímos para isso, e contribuímos há muitos anos. A certa altura começou a dizer-se, e bem, que se escrevia imenso e que as pessoas não tinham tempo para ler tanta coisa, que tinha que se procurar escrever menos, sintetizar. Muito bem. A certa altura, sintetizamos tanto que já não dizemos nada que possa ser mais do que hard news.

    E visões diferentes. Hoje sente-se falta de visões diferentes. Tirando algumas excepções, há uma sensação de que é tudo muito parecido?

    É mimetismo. Mimetismo que, infelizmente, se incentiva os jovens a jornalistas a terem, porque os órgãos de comunicação criaram um sistema, e não é só cá, que é: “estamos todos a marchar no mesmo sentido”. Se um marchar fora da linha estabelecida vai ter de justificar por que não está a marchar como os outros. E, portanto, o mais cómodo é: “eu vou atrás”. E estamos todos a contribuir para visões uniformes da realidade; se cometermos um erro, os outros também cometem, porque estamos a caminhar no mesmo sentido… aquilo que mais me preocupa é isso. Talvez fosse a hora dos poderes públicos perceberem que nós temos que olhar para o jornalismo como um bem público. De cada vez que se fala em apoio público, é do Estado, mas não é do Governo. Há sistemas de apoio à imprensa na Europa que são completamente transparentes. Por exemplo, na Áustria é em função do número de jornalistas, ninguém pergunta qual é o partido ou a área política do jornal. Mas nós temos essa relutância, não queremos apoios do Estado, a começar pelos directores. Mas porquê, se o Estado apoia tanta coisa? Se apoia a Web Summit, e áreas da Economia que entende que são importantes, porque não apoiar a imprensa? Isso está mais do que assumido, por exemplo, naquilo que nós tanto queremos seguir, que são os países nórdicos. Todos os países nórdicos têm modelos de apoio à imprensa, porque entendem que é um bem público e portanto tem que ser apoiado.

    Se calhar há aquele receio da politização, mas que acontece na mesma, sem os fundos [risos].

    Acontece, por exemplo, com a publicidade institucional que é distribuída, aí sim, arbitrariamente pelos Governos. Que pode haver – não digo que haja – a suspeita de que beneficiam quem é benigno para o Governo, e prejudicam quem não é benigno. Estas acusações não são novas, são muito velhas [risos].

    Era melhor haver algo que tornasse mais transparente, digamos assim…

    A transparência é sempre a melhor receita. Qual é o problema de um jornal dizer “nós recebemos do Estado este dinheiro”? Toda a gente fica a saber, e se eu, enquanto consumidor da informação, achar que o facto de receber do Estado torna o jornal menos sério ou menos independente, o que é que hei-de fazer? Não compro. Eu costumo dizer que a independência é poder escrever e dar a cara pelo que escrevo sem nenhuma pressão interna ou externa, porque no limite sou eu que vou a tribunal se as coisas correrem mal, não é o director nem o proprietário. Porque se eu não dependo do Estado, eu dependo do anunciante. Em que medida é que o anunciante influencia o meu trabalho? Pode não influenciar directamente, mas o jornalista pode não ter consciência de que está a fazer um trabalho que foi previamente encomendado por alguém.

    E sobretudo quando há jornalistas cada vez mais jovens nas redações; aquele jornalista veterano já é uma espécie rara…

    Sim, isso desapareceu… Voltando ao livro O Bairro dos Jornais, porque é que havia relativamente pouca concorrência na altura do Estado Novo? Porque os jornalistas tinham, do ponto de vista laboral, obrigação de trabalhar cinco horas para poderem trabalhar no Jornal da Tarde e no Jornal da Manhã ao mesmo tempo. Isto é, de manhã trabalhavam para o da tarde, e à tarde trabalhavam para o da manhã, cinco horas em cada sítio para terem um salário minimamente digno. Depois as coisas evoluíram. Nos anos 1970 já os salários tinham evoluído positivamente e avançaram bastante. Mas, nessa altura, era assim. O grupo dos jornalistas não era assim tão numeroso. Aliás, há uma história que eu não resisto a contar e que tem a ver com essa cumplicidade que se criava nos jornais. A certa altura, no tempo do Estado Novo, há um caso ou outro de jornalistas que foram punidos ou presos pelo que escreveram. Regra geral, não era por isso, mas porque estavam envolvidos em actividades consideradas subversivas e tinham problemas com a polícia por causa disso. Então, um dia, a PIDE foi buscar ao Diário Popular o Mário Ventura Henriques, que era da oposição, do Partido Comunista. Portanto, levou-o preso, e o administrador do jornal chamou um outro jornalista e disse-lhe: “vais à secretária do Mário Ventura Henriques e tiras tudo o que possa comprometê-lo, e levas tudo para o Diário da Manhã, que aí a PIDE não vai porque é do regime”. Isto foi o administrador que disse! Ou seja, isto é a solidariedade que se sobrepõe ao resto. Os jornalistas que foram presos por razões políticas, foram libertados, voltaram aos jornais, e durante o período de ausência os jornais continuavam a pagar-lhes os salários. O que era mal visto pelo regime, mas continuavam. E era assim, naturalmente. Portanto, as solidariedades sobrepunham-se às divisões políticas. Por exemplo, um jornalista que era o Félix Correia, que era admirador do Hitler, e era do regime naturalmente, tem dois episódios interessantes. Um é no dia em que um jornalista n’O Diário de Lisboa tinha acabado de ser libertado, no tempo do fascismo; e, quando chega ao jornal, a primeira pessoa que lhe vai dar um grande abraço é o Felix Correia, que era do regime. Então, o Félix Correia escreveu vários textos apologéticos do nazismo, do Hitler e do Mussolini n’O Diário de Lisboa, antes da guerra. Depois da guerra, o regime quis distanciar-se, naturalmente, do nazismo e do fascismo italiano. E resolveu compilar em livro as crónicas que tinha publicado n’O Diário de Lisboa e a censura disse: “não dá”. E ele disse: “mas eu já publiquei isto e agora foi à censura?”; e disseram-lhe: “sim, mas as coisas mudaram, portanto agora não podes publicar o livro” [risos]. Eu acho uma coisa muito curiosa. No pós-guerra, o regime quis aproximar-se dos Aliados, e, portanto, não dava jeito nenhum.

    Voltando à memória nas redações. Eu tive a sorte de trabalhar com jornalistas que cobriram a passagem para a democracia, o que é de uma riqueza incrível. Tu também conheces bem as redações de hoje, que são muito diferentes. E os jovens jornalistas encontram hoje pouca memória. E, mesmo pesquisando no Google, não se encontra toda a informação e não se vai aos centros de documentação onde antes tínhamos que ir buscar a informação.

    O problema é que os jornalistas jovens chegam à redacção e não só não têm a memória dos mais velhos como não têm quem os apoie. São logo atirados às feras. Passam logo a ter que escrever várias notícias por dia sem apoio nenhum. Eu sou membro da direcção editorial da revista Jornalismo & Jornalistas, que está disponível online, e na edição que está mesmo prestes a ser disponibilizada, nós entrevistamos o Fernando Dacosta, que é este ano o Prémio Gazeta do Jornalismo. E ele conta como lhe dava prazer ser orientador dos estagiários, porque achava que aprendia sempre qualquer coisa nova com a malta que aparecia. Isso já não existe. Quem é que ajuda um estagiário hoje em dia? Quer dizer, aquele estagiário passa por ali, depois vem outro também muito barato, e o que interessa é encher páginas. Isso é muito preocupante para a democracia, porque nós precisamos de jornalismo interventivo e que ajuda à reflexão. Jornalismo que trabalhe para o interesse público e que satisfaça o direito de todos nós à informação, que no fundo é, basicamente, ajudar-me a tomar decisões. Ora, eu não consigo ser ajudado a tomar decisões quando as notícias são feitas sem contemplarem várias vertentes e visões, que, aliás, é uma exigência deontológica, tal como o rigor, já agora. O Código Deontológico fala em rigor, e convinha que fosse preservado. E, portanto, nós estamos, de facto, a alimentar um negócio que obviamente está em crise. E eu não estou a defender que os jornais não devessem dar lucro, claro que têm de dar lucro, não é? Ter um jornal como o Público, que é alimentado por um grupo e que dá sempre prejuízo, é inédito e não acontece com frequência. Felizmente, tem um mecenas, enfim. O Fernando Dacosta, já agora, também conta nessa entrevista – ele foi um dos fundadores do Público, também – uma história. Numa reunião, num espaço público, ou seja estavam várias pessoas, questionaram o Belmiro de Azevedo, o líder histórico da Sonae, proprietária [do Público], sobre o dinheiro que ele estava a gastar ali, e ele respondeu qualquer coisa como: “antes de eu ter um jornal, eu era conhecido pelo Belmiro dos supermercados, agora, com o jornal, eu sou convidado para as universidades e passei a ser uma pessoa importante. Ora isso também custa dinheiro!”. Portanto, para ele era um investimento social, sem precisar de meter a unha no jornal, de fazer censura. Repare, o jornal diz, sempre que escreve sobre a Sonae, que é proprietária do Público, e muito bem! Sempre a transparência, lá está.

    Temos tido dificuldade, como jornalistas no PÁGINA UM, em encontrar, sim, transparência em algumas entidades, até da Administração Pública. Era expectável que no século XXI, quando deveríamos poder ter acesso a mais informação, houvesse este fechar do acesso de jornalistas a informação por parte de entidades públicas?

    Não é só os jornalistas, é também os cidadãos. Os jornalistas, pela sua função, têm de ter. Nós, em Portugal, temos uma tradição de fechamento, de ocultação, da ideia de que a Administração Pública não tem de divulgar informação. E, do ponto de vista legislativo, fomos caminhando, felizmente no sentido contrário: tudo é público, excepto aquilo que não pode ser divulgado por razões de privacidade, segurança nacional. O problema é que, na prática, a teoria é outra, como alguém dizia. Por exemplo, o meu querido amigo José António Cerejo, um extraordinário jornalista de investigação, já teve problemas, várias vezes, em ter os documentos que formalmente deveriam estar no Portal Base, mas depois está rasurado aquilo que importa. Ele chegou ao ponto de ter, por exemplo, um contrato de uma Câmara Municipal com uma empresa e o que estava rasurado era o nome da presidente da Câmara e o nome da empresa. Portanto, isto não é nenhuma transparência, isto não é divulgar informação; é escondê-la. Mas a União Europeia fez a mesma coisa, quando forçada a divulgar informação sobre os contratos de compra das vacinas [contra a covid-19] e a quem tinha comprado as vacinas, divulgou o contrato menos o valor. Ou seja, o valor ficou apagado! Ou seja, nós gostamos muito da transparência, mas é quando é com os outros, connosco não dá. Eu acho isso preocupante. Repara: hoje, nós podemos fazer extraordinários trabalhos jornalísticos, apenas com dados públicos, que são cruzados. Não estamos a ir por debaixo da mesa, nem às escondidas, não, são dados públicos. Nós sistematizamos porque é esse o nosso trabalho, enquanto jornalistas. Se alguém percebeu que, quantos mais dados públicos tem, mais prejudicado pode ser, isto é preocupante. Porque é para o cidadão! O Portal Base existe para todos nós, incluindo os jornalistas, mas não só.

    E no Portal Base é muito comum estarem os contratos, mas sem os respectivos cadernos de encargos. Ou seja, o contrato remete mais informação para o caderno de encargos, o qual não está acessível.

    Exactamente. Nós fazemos de conta que temos uma Administração Pública transparente, mas não temos. Não temos, de todo. E, pior do que isso: depois, mesmo quando os tribunais decidem num determinado sentido, as entidades continuam a ignorar, continuam a fazer de conta.

    E recorrem das sentenças.

    Recorrem e desrespeitam mesmo, no limite.

    E recorrem usando dinheiros públicos. Como é um jornal pode ir continuando a gastar…

    Essa é a maior arma do poder, seja ele qual for, pode, o poder económico, político, clubístico, já agora – têm muito poder. Essa é a maior arma: processos por difamação, a pedirem 20 milhões de euros de indemnização.

    Para silenciar.

    Para silenciar. Isso rebenta com um jornal. Nós, felizmente não temos jornalistas presos por difamação como até há pouco tempo até na União Europeia existia. Até na União Europeia, casos desses existiam. Nós não temos casos desses. Mas depois temos essa arma: eu meto um processo de 20 milhões de euros, obrigo o órgão de comunicação social a contratar uma equipa de advogados caríssima sem garantias de sucesso. É muito complicado.

    É o chamado SLAPP [Strategic Lawsuit Against Public Participation].

    É uma forma de pressão como outra qualquer. E é normalmente de pressão mais silenciosa. Eu gosto de ouvir quando há uma reportagem, alguém vir anunciar que vai processar porque é sinal de que não vai processar coisa nenhuma. Anunciou e depois não processa coisa nenhuma, não há processo judicial. Os que ficam calados e vão fazer esses pedidos de indemnização brutais é que sabem que estão a… Aliás, convém dizer que um antigo presidente do Supremo Tribunal defendia abertamente isso: “vão onde lhes doem”, disse uma vez publicamente. Quando se sentirem afectados pela comunicação social, peçam indemnizações brutais que aí é que lhes dói – para destruir a comunicação social, objectivamente.

    Falando de silenciamento, de repente muitos jornalistas descobriram que existe censura nas redes sociais. Houve agora o caso no Twitter mas também há casos no Facebook. Eu, por exemplo, tive a minha conta bloqueada durante um dia e agora está escondida durante um mês por partilhar uma notícia de um jornal português sobre uma sentença de um Tribunal em Portugal. É uma forma das “big techs” destruírem a reputação de um jornalista ou de um órgão de comunicação.

    Elisabete, isso dava outra entrevista. Faço um ponto prévio, que é uma declaração de interesses: não faço parte de nenhum desses clubes, não sou do Facebook, nem do Twitter. Porque não resistiria a não participar em debates, a responder, e depois não fazia mais nada na vida, portanto, não faço parte. Mas salvaguardo o seguinte: o Twitter, o Facebook – agora, a Meta -, são empresas privadas. Na casa dos privados entra quem os privados querem. É o mesmo princípio do Ricardo Araújo Pereira. Eu percebo o desconforto de jornalistas que escreveram contra o Elon Musk – e independente do que penso do que Elon Musk possa estar a fazer ou não no Twitter, não é isso que está em causa  –  o Twitter tem o direito de dizer que só queremos estes sócios. Não é uma entidade pública, é uma entidade privada. Tinha acontecido o mesmo com Trump. Têm todo o direito de fechar. Se quisessem, podia fechar a porta a Ronaldo ou a outro qualquer. Nós não podemos exigir liberdade de expressão a uma empresa privada. Quer dizer, não se trata sequer de ter liberdade de expressão ou não. Trata-se de fornecer um dispositivo tecnológico para tu te expressares. Esse é que é para mim o problema de fundo, que é quem fornece a plataforma para tu te expressares não tem nenhuma responsabilidade sobre o que tu publicas. Tu, eu. Como é que podes responsabilizar alguém que transmitiu discurso de ódio, desinformação – desinformação já matou gente, como sabemos. Como é que podes responsabilizar se as plataformas que dão a bicicleta para pedalares, dizem: dou a bicicleta, mas não tenho nada a ver com o pedal. Isto não pode ser. Em algum grau – e estão a discutir isso nos Estados Unidos – as plataformas têm de ser responsabilizadas porque senão, no limite, nós não conseguimos responsabilizar ninguém porque vamos descobrir um perfil falso, uma pessoa que usou um pseudónimo,… não vale a pena. As redes sociais, genericamente, essas plataformas, nasceram com aquela ideia muito nobre de que “agora temos aqui uma plataforma de opinião e de participação cívica e de participação cidadã”. E hoje têm a participação cidadã, o discurso de ódio, a mentira. Incluindo, por exemplo, nos comentários dos órgãos de comunicação – a mesma coisa. O jornal Público criou um novo sistema de moderação dos comentários em que primeiro as pessoas são testadas. Rapidamente se percebeu – e eu gostaria que o Público reponderasse isso – que aquele espaço já esta lixo como os outros todos. Porque quem quem fazer isso, primeiro porta-se bem, e durante algum tempo, para depois fazer o que lhe apetece: racismo, xenofobia, discurso de ódio, tudo passa por ali. O Público pode dizer: “não tenho nada ver com isso, é de quem comenta”. Eu olhos para aquilo e a maior parte não são nomes verdadeiros, são nomes inventados para participar, vou responsabilizar quem?

    Já para não falar dos bots que é um dos grandes problemas das redes sociais…

    Pois, isso já é mais complicado.

    Aí já estamos a falar de máquinas, de uma indústria totalmente diferente.

    E o que isso causa. Eu, numa das disciplinas de que sou responsável, no segundo semestre, vou começar a dar agora em fevereiro, que é precisamente “Fundamentos do Jornalismo”, eu começo por mostrar um vídeo de “deep fakes”, ou seja, estás a ver uma pessoa que está a dizer aquilo que nunca disse. Como é que a maior parte das pessoas, que não tem o mínimo conhecimento tecnológico, já não é literacia mediática sequer, mas conhecimento tecnológico, pode perceber que aquilo não é verdade. “Não é verdade? Eu vi a pessoa a mexer o lábio, como não é verdade?”.

    Até mesmo jornalistas que vejam um…

    Vi uma giríssima que era Trump a falar açoreano, português dos Açores. É fantástico, como brincadeira. Agora, como é que a maior parte das pessoas olha para aquilo? Olha como sendo autêntico. Pode pôr na boca de quem quer que seja uma mentira descarada e acreditas. Estás a ver um vídeo.

    E com a inteligência artificial, que pode inclusive substituir jornalistas – daria para outra entrevista -, o Chat GPT…

    Vivemos tempos muito desafiantes. Depois, não é só a sociedade que está à mercê disto, são os próprios políticos das varias áreas que hoje vulgarizam o uso das redes sociais para transmitir opinião, para transmitir decisões.

    Para fazerem anúncios. Eu aderi as redes sociais porque políticos estavam a fazer anúncios nas redes sociais.

    É muito difícil tu travares isso. Claro que não travas, a Internet é, por natureza, libertária. Não dá. Só dá para nós nos protegermos enquanto cidadãos. Eu tenho é que desconfiar daquilo que me estão a dar. Agora terminas a entrevista e tu pões aqui, com a minha voz, eu a dizer mais não sei quantas coisas que eu não disse, não é.

    Poderia, mas não vou fazer [risos]…

    As pessoas têm que estar alertadas para esta possibilidade, isto pode acontecer. Não é só a reportagem escrita que dizem umas mentiras, é um vídeo em que as pessoas estão a dizer aquilo que nunca disseram e isso é preocupante.

    Fotografias: André Carvalho

    Transcrição: Maria Afonso Peixoto


    Oiça a entrevista no PODCAST do PÁGINA UM (actualmente de acesso livre)

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  • ‘A agenda dos activistas antirracistas é criar uma narrativa com o homem negro no centro da História’

    ‘A agenda dos activistas antirracistas é criar uma narrativa com o homem negro no centro da História’

    Doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, João Pedro Marques foi professor universitário e do ensino secundário e investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical, além de romancista de créditos firmados. Especialista em História da Escravatura, tem sido uma das principais vozes críticas contra o politicamente correcto em redor das questões raciais de séculos passados. “Descobrimentos e outras ideias politicamente incorrectas“, a sua mais recente obra, integra sobretudo um conjunto de textos publicados na imprensa nos últimos anos onde contraria alguns dos argumentos que defendem a demolição de estátuas ou as alterações da toponímia para apagar algumas figuras da História Colonial. Numa conversa politicamente incorrecta com o PÁGINA UM, com o foco principal na escravatura, mas abordando também o wokismo e ainda Joan Baez e até George Orwell.


    Existe a ideia de que foram as revoltas dos escravos que foram determinantes para a abolição da escravatura. Mas no seu livro destaca a preponderância do movimento abolicionista na libertação dos escravos nas colónias, e do papel dos ocidentais nesse processo. E defende que o primeiro país a abolir a escravatura foi o actual Haiti, antigo Saint-Domingue

    Essa opinião está errada. Quer dizer, estritamente falando, está errada. Repare, o jogo aí é utilizar a palavra “país”. É isso que condiciona, deturpa e esconde o que foi a realidade. Os estados do norte dos Estados Unidos da América já estavam a abolir a escravidão. Começaram a fazê-lo na década de 70 [do século XVIII], ou seja, quase 30 anos antes de o Haiti se ter tornado independente [em 1804]. O Vermont, a Pensilvânia, Nova Iorque… A pouco e pouco, esses estados do norte dos Estados Unidos iam abolindo, de uma forma gradual, a escravidão. Mas naquilo que viria a ser o Haiti, já a França tinha abolido a escravidão. Ou seja, o primeiro país a abolir a escravidão, foi a França. Globalmente, foi a França, em 1794, em plena revolução francesa. O comissário francês que na altura estava na colónia francesa então chamada São Domingos [Saint-Domingue], um indivíduo chamado Sonthonax, em 1803 decretou a abolição da escravidão. No ano seguinte, a Assembleia em Paris ratificou a medida do seu comissário e aboliu em todas as colónias da República Francesa. Portanto, o primeiro país a abolir a escravidão foi a França. É verdade que, adiante, no tempo de Napoleão, a medida foi revertida. Em 1802, Napoleão repôs a escravidão. E quando o Haiti se tornou independente constitucionalmente, em 1804, aboliu definitivamente a escravidão nessa região. Mas, como vê, a história é mais complexa do que essa visão taxativa. De facto, os abolicionistas foram decisivos. Sem os abolicionistas, boa parte dos quais brancos, não teria havido abolição. Isto não é uma opinião exclusivamente minha. Muitas colegas historiadores defendem este ponto de vista, mas são quase todos velhos como eu, não é? Anteriores à chegada do wokismo.

    João Pedro Marques

    E até que ponto é que os próprios africanos colaboraram, eles próprios, com o tráfico transatlântico de escravos? Porque parece ter-se muito a crença de que os ocidentais forçaram essa prática aos povos africanos.

    Que forçaram, e que assumem o ónus de todo o processo, não é? Mas não. Foi um negócio, horrível, de mútuo acordo. Aliás, os ocidentais não tinham possibilidade técnica, material, humana ou médica de penetrar em África. Antes dos anti-malários, e, depois, das vacinas contra a febre amarela, a entrada naqueles territórios era mortífera.

    Então, eles não teriam sido capazes de levar a cabo este processo sem a colaboração africana?

    Não, sem haver um sistema montado, nunca teria sido possível transportar aquele número de pessoas para as Américas. Portanto, foi qualquer coisa feita em colaboração estreita, recíproca, e para benefício mútuo – é uma ideia que é importante acentuar – dos dois lados da equação. Os africanos ganhavam de uma forma diferente daquele que era o ganho dos ocidentais. Os ocidentais ganhavam de uma forma que se convertia em moeda, tinham um lucro económico com todo o processo, com foco no tráfico, regra geral, que não era muito lucrativo. E, depois, aproveitando o trabalho dos escravos nas minas e nas plantações, e por aí fora, nas Américas. Isso, de facto, produzia muita riqueza. O açúcar, os produtos coloniais, produziam muita riqueza. Os africanos que estavam envolvidos no tráfico de escravos também ganhavam. Ganhavam num registo que, para nós, ocidentais, não fazia muito sentido, mas que nas sociedades africanas era muito valorizado. Ganhavam em termos de prestígio e de poder político. Aquilo que os ocidentais levavam para lá, que para nós não tinha um valor por aí além – como têxteis ou tabaco de terceira qualidade, que os africanos adoravam, mas que para nós aqui no Ocidente nem sequer era permitido vender – era escoado para a costa de África e, com esses produtos, os africanos competiam. Distribuíam aquilo e obtinham subordinação e fidelidade política e dependentes. E, portanto, isso era, para eles, do ponto de vista social e económico, muito recompensador. Por isso se envolveram naquele negócio, não foram forçados a fazê-lo.

    Já tem salientado que a escravatura é imemorial, e que o que foi, de facto, específico ao Ocidente não foi a prática da escravatura – que sempre existiu –, mas sim a sua abolição. Considera assim que, por parte de certos sectores da sociedade, existe uma desvalorização do papel dos europeus na abolição da escravatura, certo?

    Isso acontece porque há uma agenda política. Essa agenda política tem como objectivo – o que é compreensível, e até é louvável e respeitável – elevar as comunidades afrodescendentes e colocar os negros no centro da História.

    E isso passa por realçar o papel das revoltas escravas?

    Sim, realçar todo o papel dos escravos – negros, muitas vezes – e descobrir e enaltecer heróis entre eles e, simultaneamente, reduzir a importância dos povos ocidentais, dos brancos.

    E são os próprios ocidentais a fazê-lo, apelando muitas vezes a um sentimento de culpa, não é? Esse movimento de autoflagelação também acontece fora do Ocidente? É comum todos os povos auto-denegrirem o seu passado e a sua História?

    Não, é uma doença específica do Ocidente. Nós não vemos os povos muçulmanos fazerem isto, e estiveram envolvidos no processo escravocrata da mesma forma. Enfim, com variações, não é? No Ocidente importavam-se maioritariamente escravos do sexo masculino, força de trabalho para usar nas plantações do açúcar, por exemplo. No mundo muçulmano importavam-se sobretudo mulheres e crianças. Pela sua capacidade reprodutiva, para haréns e coisas desse tipo. Digamos que são complementares, não é? O que sai através do Atlântico é maioritariamente masculino, e o que sai através do deserto Saara e do Oceano Índico, é maioritariamente feminino. Mas as condições de transporte e de exploração, o quantitativo, são muito equivalentes. E ninguém vê o mundo muçulmano a rasgar vestes e a culpabilizar-se por tudo isso que se passou.

    E os asiáticos, por exemplo?

    Também. A escravatura é qualquer coisa de intemporal e disseminada à escala do planeta. Desde a Coreia até à América, anterior à chegada de Cristóvão Colombo. Saiu recentemente um trabalho de historiografia importante, uma obra colectiva, que faz o ponto da situação no estado actual dos conhecimentos. Chama-se Cambridge World History of Slavery. E vai desde a escravatura antiga, desde a Mesopotâmia, Roma e Grécia, até à escravatura recente, de final do século XIX, princípio do século XX. E encontra lá muitos países. A Turquia, a Coreia, a Índia, o Japão… Havia escravos em todo o lado.

    No seu livro fala também da vontade de activistas antirracistas de reescrever alguns pontos da História. Estão a conseguir?

    Eu já não dou aulas no secundário há muito tempo, e já não estou muito por dentro. Dei uma olhadadela nos programas, mas já não estou lá. Mas eu suspeito e receio que os activistas estejam a ganhar, e que estejam a impor a sua agenda a pouco e pouco, subterraneamente. O poder político não se tem pronunciado sobre isso, mas eu acho que eles vão cedendo às pressões. Tal como cederam, tanto quanto se consegue perceber, no caso do Museu dos Descobrimentos.

    Foi prometido por Fernando Medina, quando presidente da autarquia de Lisboa… Entretanto, ficou em águas de bacalhau?

    Aparentemente. Nunca mais ninguém falou nisso. O assunto discutiu-se em 2018, fazia parte do programa do governo camarário de Fernando Medina. Em 2018 começou a haver muita contestação, por parte de grupos académicos e de associações de afrodescendentes. E a partir daí deixou de se ouvir falar no Museu dos Descobrimentos.

    Em paralelo, há quem defenda a construção de um Memorial da Escravatura.

    Exactamente, e eu não tenho nada contra um Memorial da Escravatura, desde que não se encha o país de memoriais da escravatura, não é? As coisas têm a proporção que têm. Agora, uma coisa não deve obstaculizar a outra. Um memorial da escravatura, sim senhor. Um museu dos Descobrimentos, com certeza.

    Qual seria a importância de um Museu dos Descobrimentos?

    Enorme. Os Descobrimentos têm um papel muito importante na História do nosso país, e da nossa identidade como povo. E na forma como os outros nos reconhecem historicamente, não é? Como nos identificam historicamente. Portanto, querer denegrir os Descobrimentos, e apontar só os seus aspectos nocivos, sangrentos e violentos – que todos os grandes processos históricos infelizmente têm –, é algo inescapável e, trágico. Pondo apenas o foco nisso, e querer, inclusivamente, banir a própria palavra… eu acho isso de uma burrice e de um fanatismo indescritível. Isso corresponde, de facto, a subverter as coisas e a aplicar uma agenda política.

    Um dos argumentos contra o uso da palavra Descobrimentos é que os nativos não se sentiram descobertos quando os ocidentais lá chegaram…

    Como acontece em qualquer relação interpessoal ou internacional. Quando eu encontro alguém, posso sentir-me de uma determinada maneira, e isso não quer dizer que a outra pessoa se sinta da mesma forma. Mas é a minha maneira, sou eu que sou o narrador.

    Tem de se escolher uma perspectiva para contar a História?

    Pois, não se pode contar a História de todas as perspectivas em simultâneo. Tem de se ter uma perspectiva. E eu não tenho nem devo abdicar da minha perspectiva só porque aquele senhor ali ao lado não gosta, porque não é a dele. Pois não, é a minha!

    No seu livro dá até o exemplo do Museu da Liberdade em França…

    Exactamente. Houve muita gente na Revolução Francesa que não se sentiu nada libertada, pelo contrário. E não é por isso que deixa de se chamar Museu da Liberdade ao museu sobre a Revolução. E por aí fora, podíamos aplicar isso a muitas situações… Nunca se agrada a toda a gente, é impossível. Mas não é por isso que temos de abdicar de designações.

    Critica também a “febre” da remoção de estátuas e renomeações de ruas, por evocarem pessoas que possuíam escravos, pela sua incoerência. Dá até o exemplo da rebaptização de uma rua de Nova Iorque em homenagem a Jean Jacques Dessalines, que mandou matar milhares de brancos após a Independência do Haiti…

    Foi o homem que tornou o Haiti independente. Era um general subordinado de Toussaint Louverture, e ex-escravo. Louverture não era escravo. Ou seja, tinha sido, mas na altura em que surge a revolução, Louverture já era um homem livre e proprietário de escravos. Mas Dessalines teve uma rua baptizada com o seu nome, e foi um torcionário. Ao contrário de Louverture, que era um contemporizador e um indivíduo que queria proteger a comunidade branca da colónia francesa que viria a ser o Haiti… queria harmonizar as tensões entre os brancos, os mestiços e os negros. Este Dessalines, não. Era um tipo vingativo, e terá mandado matar cerca de cinco mil pessoas. É isso que eu digo: as perspectivas são, muitas vezes, diferentes e conflitantes.

    Mas, supostamente, o objectivo de renomear ruas é expurgar a violência e as atrocidades do passado…

    Expurgar a violência dos brancos, não é a violência dos negros. Não se refere a violência dos negros, mas não imagina o que foi a revolta de escravos do Haiti. Eu não lhe vou dizer para não lhe dar pesadelos. Ninguém fala nisso, mas foi uma coisa verdadeiramente aterradora. A tal ponto aterradora que, no mundo ocidental, ficou, durante décadas, a imagem do Haiti como o pesadelo. O pesadelo no mundo colonial era aquilo. De tal modo que, 70 anos depois, aqui nas cortes portuguesas em Lisboa, quando surgiam casos de escravos em Luanda que mataram um senhor, ou havia pequenos tumultos… nunca houve revoltas escravas em Luanda, mas houve uns incidentes na altura, e o assunto foi discutido nas cortes, no Parlamento de então. E ainda se evocava o caso do Haiti, o caso de São Domingos. Portanto, repare bem até que ponto o que se passou lá ficou marcado e impressionou extraordinariamente as pessoas. Os extremos a que aquilo foi levado.

    Não houve mais nenhuma revolta dessa dimensão nas outras colónias africanas?

    Houve revoltas escravas, mas com aquela dimensão e com aquele nível de terror, não. Porque a própria colónia estava em guerra, e é preciso dizê-lo, porque esta parte não é contada, não é? É contada como tendo sido a revolta escrava que provocou tudo aquilo. Mas não. A colónia já estava em guerra devido à Revolução Francesa, já estava em tumulto e em conflito. Entre os mestiços e brancos, realistas e republicanos. E, quando a revolta surge, torna tudo muito mais complicado. Pior ainda quando os ingleses e os espanhóis intervêm. Portanto, aquilo foi um tumulto de todo o tamanho. E, mesmo quando o país se tornou independente em 1804, e passou a existir o Haiti em vez da colónia francesa de Saint-Domingue, continuou em guerra civil. Entre o norte, do imperador Dessalines, e a parte sul da colónia, onde prevaleciam os homens livres mestiços. Portanto, continuou com uma guerra civil durante imenso tempo. E o país ficou completamente destruído. Ainda está.

    E essa revolta teve um efeito dominó no processo de abolição da escravatura? Foi o que permitiu a libertação que viria a acontecer nas restantes colónias?

    Não teve. Nenhuma potência quis reproduzir uma coisa daquelas. Aquilo só é explicável no contexto da Revolução Francesa. Se tivesse sido num outro contexto, não teria acontecido, nem se teria propagado daquela forma. O que acontece é um esfarelamento do poder político francês, com todos aqueles tumultos e convulsões. Sem a Revolução Francesa não é explicável. É explicável uma revolta, mas teria ficado confinada, como, aliás, em vários momentos do processo esteve para ficar. Só não ficou porque os ingleses e os espanhóis entraram na guerra, e Sonthonax, o comissário de que falei, precisou de gente para combater. Então, libertou os escravos. Portanto, é um contexto muito particular. A única coisa onde houve uma influência exterior, foi no apoio que o Haiti já independente deu a Simón Bolívar, na altura das lutas pela independência do que viria a ser a Venezuela. Aí, o Haiti apoiou, com soldados. Mas foi a única coisa, não interferiram em nada. No meu ponto de vista, a revolta do Haiti teve um efeito contraproducente para a liberdade das outras colónias, porque o poder político e os senhores tornaram-se muito mais vigilantes e punitivos do que já eram. Não houve nenhuma repetição daquilo nos anos seguintes. O fim da escravidão nos outros países aconteceu décadas depois, e por um processo completamente diferente.

    Outra coisa que salienta, é que muitos dos escravos revoltosos, não se insurgiram contra a escravatura em si, mas apenas contra a sua própria condição de escravos. E refere também que muitos deles, como homens livres, adquiriam escravos. Acha que as pessoas, de modo geral, têm noção disso?

    Não, isso é omitido. Mesmo na própria revolta do Haiti, é sempre omitido que Toussaint Louverture tinha escravos, que era livre e tinha escravos. É sempre omitido que os líderes da revolta escrava – que foram várias pessoas ao longo do tempo – mas, antes de Toussaint se ter tornado líder, que eram dois escravos chamados Georges Biassou e Jean-François, faziam comércio de escravos.

    Escravos negros?

    Escravos negros. Mulheres, sobretudo; vendiam-nas para os espanhóis. Isso é tudo omitido, tudo escondido. Não se refere isso porque, lá está, não convém. Não é politicamente correcto dizê-lo. Mas, para um historiador, essa é que é a verdade. Aliás, esses indivíduos nunca se juntaram, depois, a Toussaint Louverture e aos franceses. Continuaram fiéis à Espanha, e, quando o exército da República Francesa no Haiti, comandado por Louverture, foi ganhando a guerra, eles acabaram por sair da colónia. Jean-François foi aqui para Espanha, Cádis, se não me engano. E Biassou foi para a zona do Louisiana. Portanto, os líderes da revolta escrava continuaram a escravizar. E não queriam a liberdade para os escravos todos, era só para eles e para as famílias.

    Na verdade, ainda existe escravatura, com particular destaque para África e a região da Ásia e do Pacífico…

    Sim, mas repare, a escravatura tornou-se ilegal em todo o Mundo. Não nos podemos esquecer que antigamente era legal. Implicava uma forma de propriedade legalmente reconhecida. Isso agora tornou-se ilegal. Mesmo em países como a Mauritânia, que ainda a praticam, é ilegal. Mas existem é situações de exploração do trabalho e do corpo, escravatura sexual. Por exemplo, eu às vezes vejo números, com mulheres e crianças, coisas aterradoras. Aos milhões. Mas, tudo isso é ilegal. Agora existem formas de exploração do trabalho que são similares. Trabalho forçado, por exemplo, mas a pessoa não é propriedade daquele que a explora. Enquanto que, antigamente, era. Tinham direitos totais sobre a pessoa, inclusivamente sobre a sua prole. Em princípio, legalmente, isso acabou.

    Mas o jornal The Guardian, por exemplo, em 2019 reportava a existência de 40 milhões de pessoas em condição de escravatura moderna. Claro que temos de ter em conta o facto da densidade populacional ser hoje bastante superior…

    Mesmo assim, comparado com os 12 milhões e meio que terão ido, ao longo de mais de quatro séculos, de África para as Américas, dá-nos ideia da dimensão do problema.

    Tem conhecimento de alguns destes activistas antirracistas, que têm condenado diligentemente o passado escravista do Ocidente, fazerem algo para combater o actual flagelo da escravatura moderna?

    Não faz parte da agenda deles. A agenda dos activistas antirracistas é, de facto, criar uma narrativa com o homem negro no centro da História. Ainda no ano passado – eu não vi o filme, mas falei disso com o meu filho, que é crítico de cinema no Expresso –, foi lançado um filme chamado A Mulher Rei, que é sobre aqueles regimentos a que os ocidentais chamavam amazonas. Amazonas, por analogia com a mitologia greco-romana. Eram mulheres guerreiras do reino de Daomé, que corresponde ao Benim actual, e existiu mesmo. Foram mesmo reais essas amazonas, essas mulheres guerreiras, que eram um regimento que fazia parte da Guarda do reino… e eram temíveis em combate, até porque os homens, os ocidentais, como os soldados franceses, tinham algum retraimento em matar mulheres. E, portanto, sofriam baixas enormes em combates com elas. O cavalheirismo do século XIX… [risos].

    Interessante, é engraçado isso…

    É, não é? Mas, de facto, elas eram terríveis, e muito resistentes fisicamente, tinham uma grande capacidade de sacríficio… Mas, no filme, são representadas como combatentes contra o tráfico de escravos. E o reino de Daomé era um cerne do tráfico de escravos! Portanto, a História está completamente pervertida.

    people harvesting crops painting

    Isso acaba por transmitir uma mensagem, apesar de ser ficção.

    Passa a mensagem dos negros a combaterem o tráfico de escravos, quando era o contrário, o reino de Daomé vivia disso. Era um reino guerreiro, guerreava os povos em redor, escravizava-os e vendia-os aos ocidentais.

    Estes episódios de reescrita do passado que se têm sucedido de diversas formas, levou-o, inclusivamente, a fazer uma comparação com o livro 1984, de George Orwell. Acha mesmo que está a haver essa manipulação da História?

    Sim, uma reescrita. Em 1984, o protagonista Winston Smith, do Ministério da Verdade, tinha a função de reescrever as notícias do passado para que elas se ajustassem ao presente. Isto é um pesadelo. Então para um historiador, é um duplo pesadelo. Mas para qualquer pessoa, não é? Porque se perde a noção da espessura do tempo, da diferença, que é para isso que a História serve, para explicar a diferença.

    Não é para julgar?

    Não, não é para julgar, isso é os tribunais. E, de facto, o que está a haver hoje em dia, na narrativa histórica, mas não só, é um esforço de reescrita inclusiva, de textos do passado.  Pense, por exemplo, que já houve propostas – e que penso que foram levadas avante em certos estados norte-americanos –, de reescrever certas passagens de livros. Por exemplo, o livro do Mark Twain, todas as partes que têm uma linguagem…

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    Considerada racista…

    Sim. É óbvio, aquilo passava-se numa sociedade racista! Portanto, as personagens falam como falavam as pessoas daquela altura. Agora, tem de ser corrigido. Corrigido, suprimido, adaptado ao tempo. Até dei, num artigo para o Diário de Notícias, a propósito das demolições de estátuas e da correção da linguagem, o exemplo de Joan Baez. Baez ainda é viva, mas foi uma cantora de intervenção muito famosa na década de 60. E, em 1971, ela teve uma música de muito sucesso chamada The Night They Drove Old Dixie Down. Ela descreve a noite em que o Sul perde a guerra civil, a bandeira é arriada, o general Robert E. Lee rende-se… E refere Robert E. Lee, comandante das tropas do Sul. Essa letra hoje em dia seria proibida! Isto é aterrador, nós pensarmos que a rainha do progressismo na altura, que era ouvida em todos os campos universitários e estava na primeira fila da contestação e do espírito revolucionário, hoje em dia seria banida.

    Ou “cancelada”, como se diz hoje em dia…

    Seria cancelada. É impressionante, não é? Isto é pior que 1984.

    No seu livro também aborda a pressão que os historiadores hoje sofrem para se conformarem com essas posições. Por outro lado, há alguns historiadores que defendem mesmo este tipo de práticas expurgatórias do passado. No seu círculo, vê mais colegas coniventes com essa ideologia, ou outros que pensam de forma igual a si?

    No meu círculo – que é uma coisa restrita, até porque estou fora da Academia já –, são sobretudo aqueles que concordam comigo, muitos dos quais não se pronunciam, por razões que eles saberão. Agora, vejo, fora do meu círculo, muitos historiadores activistas e que escrevem sobretudo no Facebook e nas redes sociais. Vejo, nesta área das ciências sociais e humanas, um grande activismo nas universidades. Activismo da parte de uns, silêncio da parte de outros.

    E também há activistas que não são historiadores…

    Muitos, eu diria que são talvez a maioria, não é? Antropólogos, sociólogos, jornalistas… Eu diria que a maioria não são historiadores. Há dois ou três historiadores que têm uma intervenção, os outros estão mais discretos. Não se metem muito nisto.

    Já começou a estudar a escravatura colonial há mais de trinta anos. Quando é que começou a dar-se conta deste movimento revisionista dessa época da História, que se iniciou nos Estados Unidos?

    Para mim foi um bocado surpreendente, digo-lhe com toda a franqueza. Comecei a dar-me conta, e escrevi sobre isso, num livro que publiquei em 2006 chamado Revoltas Escravas. Foi a primeira edição desse livro aqui, que depois veio a ser traduzido nos Estados Unidos e em Inglaterra. E, depois, foi reeditado em Portugal no ano passado. Mas, em 2006 dei-me conta do peso disto em França, porque um colega meu francês, que se chamava Olivier Pétré-Grenouilleau, começou a ser alvo de uma pressão enorme. Queriam expulsá-lo da universidade e por aí fora. Ele ainda me pediu para que eu testemunhasse a seu favor, e eu acedi. Portanto, na altura, eu apercebi-me disso em França e nos Estados Unidos, e escrevi: Deus queira que isto nunca chegue cá! Deus não me fez a vontade [risos].

    Chegou a todo o lado [risos].

    Eu sabia que iria chegar cá, mais cedo ou mais tarde. Mas, quando chegou, fui colhido de surpresa. E chegou em 2017, na sequência da ida do presidente da República ao Senegal e das declarações que ele fez sobre a escravatura, e sobre Portugal ter abolido a escravatura. E, aí, de repente, houve um sector da opinião pública, ligado sobretudo à extrema-esquerda, que caiu em cima dele. E aí eu percebi a dimensão que aquilo tinha. Fui-me apercebendo. Já mais recentemente, em 2017, cheguei a escrever um artigo no Público onde contei a história do meu colega Olivier Grenouilleau e a pressão enorme que os grupos de activistas de afrodescendentes exerceram, com ameaças à família e por aí fora. E sabe porquê? Porque ele deu uma entrevista em que disse coisas deste género, que para qualquer historiador são óbvias e evidentes: o objectivo dos negreiros não era matar pessoas, era transportá-las vivas, se possível, para o outro lado do Atlântico. Por causa disso, acharam que ele era um perigoso racista, e exerceram imediatamente pressão para que fosse expulso da universidade. Isso gerou, de uma parte dos historiadores franceses, um movimento de solidariedade. Outros historiadores franceses antagonizaram-no, mas os mais prestigiados, diria eu, puseram-se do lado dele e criaram até um movimento chamado Liberté pour l’Histoire, em sua defesa.

    A pressão agora é tal que, se fosse hoje, talvez esses historiadores já não tivessem coragem de se insurgir em defesa de Grenouilleau…

    Se fosse agora já não seria assim, mas aqui já estou a especular. Em Portugal não tem sido assim, porque isto é um debate que dura desde 2017, portanto já vai para seis anos, e têm sido pouquíssimos os historiadores que se têm pronunciado.

    No seu caso, tem-se pronunciado bastante. Isso tem-lhe valido muitas críticas?

    Sim, sim, este mês já saiu até um artigo meu no Observador sobre isso [Não conseguem cancelar? Difamem]. Nas redes sociais, sim, sou um alvo a abater [risos]. Mas eu acho que posso bem com isso.

  • ‘É preciso arranjar um equilíbrio entre a guita e as palavras’

    ‘É preciso arranjar um equilíbrio entre a guita e as palavras’

    Carlos Guedes é muito mais do que um jovem lisboeta de 25 ano: é o rapper Estraca, que se destaca pela sua irreverência e pelo carácter interventivo e político da sua música, que contraria a tendência de pensamento único numa sociedade amorfa. Em entrevista ao PÁGINA UM, Estraca fala sobre o seu novo trabalho “Propaganda“, lançado hoje. Assumindo-se como um defensor de um mundo livre, critica a apatia de muitos dos seus companheiros, rappers e músicos de hip-hop mais experientes, perante as ameaças à democracia e à liberdade. Nesta entrevista, que também está disponível em versão podcast não editada (ver ligação em baixo), Estraca fala ainda da censura que sentiu quando lançou o seu single “Jornalixo“, e deixa um alerta contra a intolerância e a cultura de cancelamento.


    Acabas de lançar Propaganda. Fala-nos sobre este teu novo tema.

    Fala um pouco sobre o caos que se vive no Mundo, a situação actual do Planeta, com foco na propaganda e em toda a manipulação [que existe].

    Manipulação por parte de quem?

    Dos propagandistas [risos].

    E quem são esses propagandistas?

    Os meios de comunicação social, a publicidade…

    O que se passa no mundo, na tua óptica, para te levar a escrever sobre esse tema?

    Tanto esta situação da guerra [da Ucrânia], como tudo aquilo que se passa dentro dos estabelecimentos de ensino. Acho que vivemos tempos perigosos no que toca à propaganda, que é cada vez mais intensa, e por isso decidi falar sobre isso na minha música.

    É uma música de intervenção, uma das essências do rap. Como vês esta vertente interventiva no rap e do hip-hop em Portugal, actualmente?

    A intervenção, tanto no hip-hop como noutros géneros musicais, tem sido um pouco esquecida. Acho que, de certa forma, até propositadamente. O hip-hop nos anos 1990, por exemplo, tinha um papel muito mais interventivo na sociedade, e de repente tornou-se a música pop. Eu acho que isso também foi um “trabalho”, com o intuito de, de algum modo, acabar com essa parte mais interventiva, pois o hip-hop tinha um peso muito grande em movimentos anti-sistema. Hoje, acho que existe uma falta muito grande da música de intervenção, tanto a nível nacional como internacional. Por isso, também acho importante o meu papel.

    E por que existe essa falta? É porque as pessoas não querem ouvir, e por isso não vende, ou por falta de vontade dos rappers?

    Eu acho que é um pouco pelas duas coisas. Há pessoal que está mesmo completamente desligado; e se calhar preferem rimar sobre outro tipo de assuntos, e não sobre estes assuntos tão dramáticos e pesados, mas que têm de ser falados de certa forma. E, por outro lado, também é a parte monetária; se calhar pensam que se rimarem sobre isto, não vão tocar aqui ou ali, não vão vender tanto, a editora X não vai querer trabalhar com eles. Eu acho que essa parte também passa a ser um problema, e por isso também hoje não temos tanto hip-hop e tanta música de intervenção, por causa desta barreira. Mas é assim…

    Sentiste alguma desilusão, nestes últimos três anos, por outros rappers, incluindo aqueles que tens como referências, não estarem numa linha tão crítica como a tua?

    Epá!, sim, porque até tinhas certas pessoas que pensei que tivessem um sentido mais crítico em relação a tudo isto, e que de repente deixam-se levar facilmente pela narrativa. Pessoas que criticavam os media, e que depois deixaram-se levar pela propaganda. Obviamente, de certa forma, fiquei um pouco desiludido, não é? Mas pronto, cada um tem a sua opinião, e acho que nessas opiniões divergentes, nós não sabemos qual é a correcta. Cada um luta por aquilo em que confia, e em que acredita. Eu luto por aquilo em que acredito e confio. E pronto, acho que é assim…

    E há um ano, em 2021, lançaste o Jornalixo. Desta vez, falas sobre a propaganda. Portanto, tens esta temática muito forte sobre a importância da comunicação social na disseminação de uma narrativa. O que é essa narrativa veiculada pelos órgãos de comunicação social?

    É o medo, projectar o medo constante nas pessoas. E, através do medo, conseguirem actuar noutros aspectos. Uma sociedade com medo facilmente é manipulada e controlada, não é? Acho que é esse medo constante que eles tentam propagar nas pessoas. Não sei se respondi à tua pergunta.

    Sim; mas mais especificamente, o quê? Há um ano, quando lançaste o Jornalixo, qual era o grande foco problemático na tua intervenção? Em que é que te focavas?

    Quando lancei o “Jornalixo”, era na altura em que tinha rebentado a pandemia, e sempre foi uma situação que eu achei demasiado estranha, tudo aquilo que estava a acontecer. E de repente, é isso, tu começas a ver que aquilo que os media tradicionais dizem são mentiras, não é? Mentiras atrás de mentiras. E isso faz-te questionar. E, de certa forma, como a música (e o rap) é a minha maneira de me expressar, achei que era a maneira mais rica de passar a minha ideia. E acho que foi útil para as outras pessoas também, e para não se sentirem sozinhas, porque naquele momento havia muita gente… aqui em Lisboa, por exemplo, há e havia muitos grupos com o mesmo pensamento, mas recebi mensagens de pessoas que estavam em vilas mais isoladas, no campo, e que estavam ali sozinhas com aquele tipo de ideia. E, de repente, viram que existe muito mais gente com aquele tipo de ideia, que foi algo que os media também sempre tentaram ocultar um pouco. A quantidade de pessoas que existe com esta ideia, e que conseguem ver para além. Então foi mais por aí.

    Tiveste medo de lançar um tema como o “Jornalixo”? Tiveste alguma ansiedade em relação ao que pudesse acontecer, e à controvérsia?

    Não. Eu quando o lancei estava “super”, mesmo de consciência tranquila, porque eu não lanço nada em que não confie e não acredite. E quando se tem confiança e tu acreditas, não tens de ter medo. Então, simplesmente lancei, e aquilo que viesse, vinha. Por um lado, houve bastantes críticas, mas por outro também consegui agregar mais pessoas e ter mais ouvintes, até. Por isso, houve aqui dois lados; um mais positivo, e outro menos positivo, como tudo, como todas as outras músicas. Há pessoas que começam a ouvir, há outras que deixam de ouvir. Mas é isso: não tive qualquer receio quando lancei. Se eu acredito, porque é que eu não hei-de dizer? Para não ser rotulado de X ou de Y? Não: se eu acredito, eu vou dizer. Não tenho de ter medo, até porque tenho bastante confiança naquilo que eu sou e nas minhas ideologias, e no meu pensamento.

    Mas essa segurança que sentes de, através das letras do teu rap, exprimires aquilo que verdadeiramente pensas, acontece geralmente no panorama do hip-hop em Portugal? Os artistas escrevem exactamente aquilo que sentem ou escrevem aquilo que acham que conseguem vender?

    Acho que existe os dois lados. Acho que existe muito coração no hip-hop ainda; existe muito coração e muita verdade no hip-hop. Mas também a realidade é isso; há muitos artistas que fazem simplesmente, já com o intuito de comercializar, de vender. E aí perde-se um pouco a parte pura e do coração, não é? Aproxima-se mais um pouco do pop, aquilo que é o pop, algo mais artificial. E nos tempos que vivemos, actualmente, acho que isso vê-se muito. Esse hip-hop mais artificial, essa música mais artificial, momentânea. E se calhar perdeu-se um pouco o fazer com coração e com confiança.

    Ainda em relação ao tema “Jornalixo”, disseste já que houve um lado negativo. Quais foram as consequências negativas?

    Desde comentários negativos, a imprensa a atacar-me, outras coisas que aconteceram também a nível pessoal…

    Tiveste censuras em alguma rede social, como o Youtube e o Facebook?

    Sim, o Youtube não me bloqueou, porque o que eu estava a dizer não ia contra nenhuma directriz. Estava tudo completamente legal, não é? Não estou ali a incentivar ao ódio nem nada que se pareça, mas simplesmente barraram o alcance da música. Imagina, uma música minha tem 50% de sugestão, que aparece na barra lateral do Youtube. O “Jornalixo” tem 0,01%, não tem quase sugestão nenhuma. Eles bloquearam nesse aspecto. O Facebook não permitiu meter publicidade… Ou seja, existiu esse tipo de censura não-explícita. Não removeram o meu vídeo, porque não podiam fazer isso. De certa forma, eu estou protegido, tenho uma distribuidora digital, tenho uma entidade no meio que também influencia este processo. De certa forma, sim, senti essa censura, e mesmo através de meios de comunicação e de sites mais virados para o hip-hop. E isto quando o hip-hop tem, na sua base, a liberdade de expressão, e de repente a censurarem a minha música, a não partilharem a minha música, a dizerem que a minha música é isto ou é aquilo. Quando eu simplesmente estava a partilhar a minha opinião, que agora, passado um ano, cada vez está mais certeira, não é? Na altura, era para os malucos; hoje, já não são assim tão malucos. E se calhar, olha, esses sites de hip-hop, a que me refiro, até deviam fazer-me um pedido de desculpas. Mas pronto, empatia, tranquilo, sempre na boa… Mas se calhar deviam-me um pedido de desculpas, não é?

    Foste então censurado dentro da própria comunidade do hip-hop, que devia defender a liberdade de expressão…

    Sim, tive vários rappers a falarem contra, mas muita gente também a apoiar… não a nível das redes sociais, mas por mensagens e não só; e outros artistas, e não só da área da música, mas mais na vertente da música africana, que me deram o “props” pela música. Mas tive muita gente – e pessoas que já andam aqui há muito tempo na cultura hip-hop – que, de repente, esqueceram-se da parte chamada liberdade de expressão, e daquilo que é o hip-hop. Eu tenho 25 anos, e estamos a falar de pessoas que já estão há muitos anos nisto, e de repente esqueceram-se das bases daquilo que vestiam, da camisola. E parece que tiveram uma amnésia. Mas pronto, é isso. Solidariedade [risos].

    Tens 25 anos, portanto, és bastante jovem, e os mais novos sentem maior necessidade de aprovação social. Custou-te essa reprovação dos teus pares, ou foi uma situação que conseguiste ultrapassar bem?

    Sim, consegui, ultrapassei super-bem, e até tive bastante apoio, mesmo muito apoio das pessoas nas redes sociais. Quando havia um comentário menos positivo, parece que tinha logo pessoas a irem lá [para apoiarem]. As pessoas também sentiam aquela necessidade do tipo: “este é dos nossos”. Houve aqui uma força que se agregou, e por isso senti-me bem, tranquilo. E depois da música ser lançada, ainda me fez mais sentido do que antes de ser lançada, porque vi o impacto que teve, as proporções que tomou, e as vidas que se calhar salvou, não é? Porque acho que também teve esse papel muito importante; de repente, as pessoas viram que não estavam sozinhas e que somos bastantes com o mesmo tipo de pensamento, e na mesma luta. E isso é importante.

    O “Jornalixo” foi o primeiro tema de forte intervenção política, ou já tinhas tido esta apetência para esta temática?

    Epá, sim. Já tenho bastantes temas com intervenção mais política. Tenho o “Suicídio Político“, o “Terra Nostra”, o “Sociedade“, que é de há sete ou oito anos… Sempre tive este papel mais interventivo, muito a nível político, embora não só. E, por exemplo, o “Suicídio Político”, na altura em que o lancei, há uns cinco anos, também ganhou proporções, mesmo a nível político. Até no CDS. O hip-hop tem esse poder, não é? Que é chegar lá. Eles ouvem. E isso ainda dá mais pica, tu saberes que os intervenientes da tua música ouvem a tua música, que a tua música chega até eles.

    O CDS?

    Já não sei se era o CDS ou o CDU, já não me lembro. Mas sei que foram dois partidos, porque eu meti um bocadinho de vozes, que tirei de entrevistas. Até tinha o Mário Machado, porque eu falei do PNR e de terminar com o PNR. E o Mário Machado disse: “prefiro um antifascista que se exponha do que um nacionalista de sofá; este aqui tem-nos no sítio”. Eu não fiquei contente com esse elogio, por ter vindo da pessoa que veio, não é? E senti que também foi um pau de dois bicos, porque depois daquilo… fiquei “ele agora está a espalhar isto, partilhou na página dele e agora vai chegar ao pessoal que o ouve”. Mas pronto, de certa forma, acho que o “Suicídio Político” foi o passo que eu dei que me fez pensar: “pá, isto chega até eles, e pode ganhar proporções muito grandes”. E eu, na altura, fui apresentar essa música à Cidade FM, uma das rádios mais ouvidas em Portugal, e estava a tocar essa música às 6 horas da tarde. Lembro-me de ter feito a gravação do programa e estar depois a descer a Avenida da Liberdade, e os taxistas estarem a ouvir a Cidade FM e estava a dar o “Suicídio Político”. Opá!, é uma vitória muito grande, porque tu, com música de intervenção e com a letra que é, conseguires tocar nem que seja uma vez… então à hora de ponta, numa das rádios mais ouvidas de Portugal, é incrível. Enquanto há artistas que se for preciso ficam tristes se a música deles tocar só uma vez na rádio, porque querem tocar todos os dias ou todas as semanas; eu toco uma vez, já fico contente. Mas é isso, são papéis diferentes. Cada um tem o seu papel, cada um faz a sua arte, faz o seu trabalho. Uns interessam-se mais pelo prazer das visualizações; outros interessam-se mais pelo prazer de dar prazer aos outros e de lhes trazer uma mudança. E pronto, cada um sabe do seu papel e do que tem a fazer aqui.

    Sempre foste uma pessoa com esse lado interventivo e crítico, ou foste-te tornando assim? Como é que isso se desenvolveu em ti?

    [pausa] Eu sempre fui assim bastante crítico no que toca à minha música; desde os meus 13 anos que comecei a fazer hip-hop, e comecei a ouvir hip-hop de intervenção. Não com o Valete, nem Sam the Kid, mas através de rappers locais do meu bairro, que falavam sobre o quotidiano do bairro e os problemas que existiam naquela comunidade. Então, comecei por ouvir esses rappers e identificava-me com aquilo. E comecei também a tentar fazer umas rimas, e depois usava o hip-hop quase como um diário; falava dos problemas do vizinho do lado, dos problemas que eu vivia em casa e no bairro. De certa forma, sempre tive esta atitude mais crítica e interventiva. Durante esse tempo, e desde os meus 13 anos, já fiz muita coisa. Já cantei em beats de kizomba, de kuduro, de jazz, já cantei com fanfarra… Já tive aqui várias misturas, que acho que são super-importantes e fazem parte de mim, porque eu sou essa mistura. Nasci no meio da mistura, de tudo, desde ciganos, pretos, brancos. E acho que a mistura, a culturalidade, é das coisas mais bonitas que pode existir. E então em Lisboa, que nós temos isso tão presente, e devíamos dar mais valor a isso, não é? Nós podemos ir a um Martim Moniz comer num restaurante nepalês, e um nepalês passar-nos a cultura dele. Podemos ir comer a um indiano, a um chinês, a um cabo-verdiano ou a um angolano. E isso é a coisa mais rica que existe. Temos a sorte de poder ter as várias culturas situadas numa única cidade, como é a cidade de Lisboa. Já me desviei um bocado da pergunta… mas é isso, eu sou também um bocado dessa mistura toda, e sempre tive este pensamento mais crítico comigo.

    Portanto, és uma pessoa que tem uma abrangência grande em termos de conhecimentos da multiculturalidade; sabemos que estudaste artes do espectáculo, e depois tiveste umas experiências fora de Portugal. Esse teu lado também originou este espírito de intervenção, pelo facto de conheceres culturas muito diversas…

    Sim, sem dúvida. Essas viagens… Vou começar pelo princípio: eu sempre andei ali na escola do bairro.

    Qual era o bairro?

    No bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar. Na Musgueira, ou Alta de Lisboa, ou Lumiar… aquilo tem muitos nomes. E então, sempre andei ali na escola, e de repente surgiu a oportunidade ir estudar para o Liceu Passos Manuel, para o Bairro Alto. Logo aí foi uma abertura muito grande, porque estava habituado a estar dentro daquele muro invisível que existe à volta dos bairros sociais. Ainda hoje existem esses muros, que tu não vês, mas que existem. Mas consegui sair dali e ir para a escola do Bairro Alto; depois, entretanto, apareceram-me esses projectos, a Música para os Direitos Humanos, através dos Farra Fanfarra e dos Kumpania Algazarra, essa malta. Fui para a Sérvia, Israel, Palestina, Itália, França, muitos países… e, sem dúvida, foram processos muito intensos para o meu crescimento e para a minha evolução como pessoa e como artista, porque é óptimo veres esta diferença cultural e de modos de vida, diferentes pensamentos. Adoro pessoas que têm pensamentos divergentes dos meus, e que possa debater com essas pessoas de forma aberta, por mais diferente que seja o seu pensamento; pelo menos tentar entender o que é que a leva a pensar assim. E eu gosto muito dessa divergência, a nível cultural e de pensamento, acho que é muito bom.

    Chegaste a fazer parte de um projecto que mistura o jazz com o hip-hop, a banda JAZZOPA. O que é que essa experiência te trouxe?

    Foi muito bom, porque, é isso, eu vivia por trás daquele muro invisível que era o bairro, e depois estava a participar num projecto de jazz com hip-hop. Eu não tinha noção nenhuma de música, muito menos de jazz, que me parecia música de elevador, então pensava: “o que é isto, pá?”. De repente, “dó, ré, mais groove, menos groove”, e eu disse: “pá, estes gajos estão a falar chinês, não estou a entender nada do que eles estão a falar”. Ou seja, é o choque, e o não saber, porque não tive acesso. E, de repente, são portas que se vão abrindo, e sem dúvida que foi muito importante esse projecto. E também a OPA – Oficina Portátil de Artes, com o Francisco Rebelo e com o Carlos Martins… Conhecer esta variedade toda, essas portas que se começaram a abrir, epá!, foi óptimo. E essa banda de jazz foi mais uma das evoluções, um crescimento.

    Voltando agora novamente ao “Propaganda”. Achas que o politicamente correcto está instituído no hip-hop em Portugal, e que tu és politicamente incorrecto?

    [risos] Sim, sim, porque é isso, acho que as pessoas têm muito medo, não é? De serem julgadas, e acho que, actualmente então, as pessoas não estão a evoluir, estão a regredir ainda mais. Onde é que está a tolerância, de aquela pessoa ter um pensamento diferente do meu, e eu respeitar a opinião do outro? Parece que agora é: “ah!, não, não vou dizer isto, porque senão vou ser atacado nas redes sociais”, ou ser julgado, ou cancelado, que também está muito na moda.

    Esse cancelamento, ou diminuição de visibilidade nas redes sociais, como disseste que te aconteceu com o Youtube, é também uma limitação para a própria liberdade criativa do artista. Porque se têm uma boa fonte de rendimento através dessas plataformas, quando começa a haver esse cancelamento, obviamente que há uma redução do vosso rendimento. Assim sendo, não será por uma questão de subsistência que muitos artistas alinham no politicamente correcto?

    Sim. Epá!, olha, o PÁGINA UM também é um desses exemplos, não é? Com tanto jornalismo que existe, que é politicamente correcto, podemos dizer que o PÁGINA UM faz um trabalho diferente, e obviamente isso tem as suas penalizações. É como eu, também, na minha música, fazendo o papel inverso, do politicamente incorrecto. Obviamente, existem penalizações, mas tu tens de estar é bem decidido daquilo que queres fazer. Queres ser honesto contigo? Queres-te agradar, queres fazer aquilo que tu sentes? Ou queres agradar o outro e seguir ordens dos outros? Acho que é a decisão que está em cima da mesa. Depois, uns escolhem por um lado, outros escolhem pelo outro. Obviamente que escolheres um lado ou o outro faz diferença a nível económico, ao final do mês. Uma pessoa tem de andar aqui numa luta completamente diferente. É aquilo que eu estava a dizer: se uma música tocar uma vez na rádio, para mim é uma vitória; se calhar, para o outro, se a música tocar uma vez, ele fica triste. Acho que implica tudo isso, que são penalizações, mas de certa forma é o que me move. O que me faz fazer isto é esse politicamente incorrecto, não é? Ter esta atitude.

    Se fosses na mesma linha que os outros, mais mainstream, estarias melhor financeiramente?

    Claro que sim, claro que sim. Se fizesse, talvez, uma música a falar de amor, constantemente… E acho que falar de amor é super-importante, falar de festas… acho que o hip-hop é muito abrangente nesse aspecto, tirando a parte da intervenção, que está cada vez mais falida. Mas o hip-hop permite-te ouvir um som de festa, ou de amor, ou de intervenção. Eu se for para uma discoteca, não quero estar a ouvir o “Propaganda” nem o “Jornalixo”, não é? A mim apetece-me ouvir uma música para relaxar, para dançar. Eu acho que é muito importante existir esse leque de sonoridades e de temas. Sem dúvida que a parte interventiva é muito importante, ainda mais nos tempos actuais, e está em escassez. E, obviamente, se eu fizesse outro estilo musical… O meu pai costuma dizer: “eu só vou a um concerto teu quando comprares um acordeão” [risos]. Ou seja, há estilos de música que são muito mais favoráveis para tu estares numa televisão, música mais fácil que não faça as pessoas questionarem-se e pensarem. Isso eles até agradecem e até te pagam para tu ires fazer isso. Agora, quando tu tens um papel contrário, é muito mais complicado, é uma luta diferente. Posso não ganhar tanto como ganha o meu colega que faz outro estilo de música, mas ao mesmo tempo, eu tenho uma satisfação, que é dormir de consciência tranquila, e saber que estou a fazer o correcto. Uma vez numa entrevista, já há muito tempo, quando tinha para aí 14 anos, com a Joana Dias na Antena 3, eu disse-lhe: “eu não quero ter muito dinheiro, desde que eu tenha uns “trocozinhos” para fazer aquilo que eu gosto e ter a minha vida tranquila”. E, passado este tempo, e depois de tudo o que passei, continuo com o mesmo pensamento. Eu acho que o importante é fazer aquilo que eu gosto. A parte monetária é, sem dúvida, importante, porque é o que nos faz sobreviver. É preciso arranjar um equilíbrio, “entre a guita e as palavras”, como eu digo numa música. É uma luta constante. Uma luta mais complicada, mas acho que no fim de contas vale a pena, pelo menos para mim; e para mim a noite tranquila é muito importante.

    E essa “guita”, como tu lhe chamaste, vem também muito do circuito dos festivais. Sendo tu tão interventivo em questões tão fracturantes dos últimos três anos, sentiste relutância das organizações dos festivais em convidarem-te?

    Eu estive no MEO Sudoeste, mas essa [presença] já estava marcada antes do “Jornalixo” ser lançado. Mas fui; tudo super normal, não me meteram na melhor slot, não é? Mas estive ali, num dos maiores festivais do país. Antes do “Jornalixo” já tinha lançado o “Terra Nostra” e o “Suicídio Político”, entre outras músicas interventivas e com esta perspectiva mais política. E toquei no Super Bock, já toquei no Marés Vivas, já foi a terceira vez que estive no MEO Sudoeste… Quase todos os Verões costumo ir a um, dois ou três festivais grandes. Estive este ano também no Summer Opening na Madeira, que é o maior festival da ilha. Por isso, acho que posso dizer que, para a música que eu faço, até tenho várias portas abertas, porque acho que, de alguma forma, mesmo os promotores se calhar também sentem uma certa pica de me terem lá a tocar. Não sei, não sei… E até porque acho que aquilo que eu falo não é mentira. E se calhar também é por aí, eu não digo nenhuma mentira, não é? Eu tenho muito cuidado naquilo que digo, nas frases que uso na minha música, e cada vez mais. Se calhar tenho essa noção hoje, que não tinha há cinco anos. Hoje consigo ter essa percepção, da força e da influência que tem a minha música. Então, tenho de ser cuidadoso na abordagem e no conteúdo; por isso tento sempre estudá-la muito bem antes de a meter cá fora. E por isso, acho que os próprios promotores também devem perceber [risos].

    Também não fazes só rap de intervenção, tens uns temas mais românticos…

    Sim, sim, e que eu acho que é super-importante também. A minha vida não é só isto, não vivo o dia todo rabugento a falar dos problemas do Mundo, não. Quando acordo de manhã, gosto de ouvir um bom reggae, e samba, gosto de ouvir kizomba. Tenho também problemas amorosos, tenho problemas familiares, tenho tudo, não é? E a minha música é isso tudo, porque a minha música é o meu reflexo. E por isso, tenho várias músicas, desde umas a falar mais de uma relação bem-sucedida ou não… Abordo sempre vários assuntos e tento ter essa preocupação, mas todos verdadeiros. Acho que a minha música é isso, e se não for assim, para mim não faz sentido. Se for para escrever algo encomendado, epá!, não. Tem que ser algo que eu esteja a sentir naquele momento, algo em que eu acredite.

    E, apesar de fazeres músicas muito políticas, não te identificas com nenhum partido? No espectro político, da esquerda à direita, assumes alguma posição, ou não te colocas nesses termos?

    Não me coloco nesses termos, porque acho que esses termos servem simplesmente para dividir ainda mais a sociedade e as pessoas. É como um clube de futebol, como a religião. Todos esses temas servem simplesmente para dividir as pessoas. “Ah!, porque eu sou de esquerda e ele é de direita, então vamos andar à porrada uns com os outros”, ou porque ele é do Benfica e eu sou do Porto, ou porque ele é católico e eu sou judeu… Ou seja, eu acho que todos esses temas foram impostos à sociedade para a dividir, e eu não me rotulo com nenhum desses slogans de esquerda, de direita ou de centro. E até porque não acredito em nenhum deles, e não tenho fé em nenhum deles [risos].

    Mas neste tema “Propaganda”, falas num assunto que também divide algumas pessoas, que é a Nova Ordem Mundial. Alguns acham que é a solução, e outros estão muito preocupados. Qual é a tua sensibilidade em relação a esta questão da Nova Ordem Mundial?

    Epá!, Nova Ordem Mundial é conversa de chalupa, desculpa lá [risos]. Estou a brincar. Acho que temos de olhar para isto com preocupação, e fazermos aquilo que estiver ao nosso alcance para que grande parte daqueles que são os objectivos não sejam concretizados. Seja eu, através da minha música e da minha arte; seja o outro, através do direito; a médica, o jornalista… Cada um de nós ter esse papel activo, para que grande parte daquilo que eles tencionam aplicar através de toda esta Nova Ordem Mundial…

    Mas que objectivos são esses ,em concreto, que falas em “Propaganda”?

    Eu no “Propaganda” sou bastante abrangente nos temas que abordo, mas, por exemplo, a ideologia de género, que é ensinada na escola… Eu sou a favor de um mundo livre, onde toda a gente possa ser respeitada e acho que a escola poderá ter esse papel, sem dúvida alguma, de ensinar o respeito, seja branco, preto, gay, árabe. Respeitar tudo e todos. Mas quando falamos em crianças de oito anos, que estão em desenvolvimento, em fases cruciais das suas vidas, e implementarmos ideologias, que são proibidas até pela própria Constituição, não é? Acho que não é bom. E esse é um dos temas que eu abordo.

    Achas que há um ataque à liberdade, como nós a conhecemos depois do 25 de Abril?

    Sem dúvida, e cada vez mais.

    Tens participado em manifestações, nomeadamente nas mais recentes que se fizeram por causa das alterações à Constituição, certo? Portanto, és contra a mudança da Constituição?

    Sim. Acho que qualquer cidadão, no seu perfeito juízo, devia estar contra a alteração da Constituição sem o seu consentimento. Porque a Constituição serve para proteger o povo, e se o povo nem sequer pode opinar sobre essa mudança… Porque eles falam nisto com um arco-íris sempre por trás. É como um título que eu vi num jornal que dizia: “alteração na Constituição para alargar os direitos”. É sempre como se fosse algo bom, e as pessoas acham que é pelo bem delas. Ou seja, acho que as pessoas nem têm bem a noção da gravidade. Porque se calhar 70 ou 80% da população nem sabe o que é a Constituição da República, nem sabe os direitos que tem, não é? Porque é que a escola não ensina isso e não tem este papel? É uma coisa super-importante, uma criança ou um jovem que está a crescer saber dos seus direitos.

    Não é para isso que servem as aulas de cidadania?

    Exactamente, exactamente. E por isso, obviamente, sou contra essa alteração da Constituição, e acho que qualquer cidadão no seu perfeito juízo também deverá ser contra: tirando os nossos líderes e todos aqueles que tencionam mudá-la, com certeza, com outros motivos por trás. E acho que, mesmo eles, não acreditam que estão a fazer o correcto [risos].

    Julgas que a propaganda, de que falas neste novo tema, é uma forma de limitar o conhecimento do cidadão e do povo em relação a esses assuntos? Por exemplo, quanto à alteração da Constituição…

    Claro que sim, porque só existe um único pensamento e tudo o resto é inválido, não é? Tudo o resto é rotulado. O único pensamento que importa é o da máquina da propaganda, é o único que vale.

    No teu single “Planeta Novo” falas de lutar por uma utopia. Que utopia é essa? Qual é a visão que tens para o Mundo que gostavas que se realizasse, e que acreditas ser possível?

    Eu acredito perfeitamente na mudança, e por isso é que faço as minhas músicas, também para ajudar nessa mudança. A utopia é um mundo mais justo, com mais igualdade, com respeito uns pelos outros, e pelas opiniões dos outros, onde todos possam viver de forma livre e tranquila. É esse o Mundo que eu vejo para os meus filhos e que quero para eles. Um mundo onde eles possam expressar-se da maneira que quiserem; onde haja liberdade de expressão e que escolherem aquilo que querem ser não seja um problema. Que haja esse respeito entre as pessoas e as comunidades, e a culturalidade seja vista como algo bom, e não como algo mau. Que possamos viver todos num único Mundo, sem fronteiras e sem líderes, e vivermos nas nossas comunidades. E acredito que é possível. É uma utopia, mas como já dizia o Zeca Afonso, se a utopia é inalcançável, então vou morrer a lutar por essa utopia. É mais ou menos isso.

    Falaste no Zeca Afonso… Achas comparável a música de intervenção antes do 25 de Abril e esta que tu fazes? O intuito final, que é o de alertar as pessoas para aquilo em que tu acreditas…

    Sim, sem dúvida. São tempos e formas de expressar diferentes, mas acho que ambas têm o mesmo intuito, que é de contracultura, do politicamente incorrecto. Apesar de naquela altura não existir a liberdade de dizer as coisas tão directamente, como eu as digo hoje; mas, sem dúvida, que podemos olhar como música de intervenção. E tanto o Zeca como outros artistas.

    Qual é o teu público? Como disseste, tens 25 anos e fazes rap, que está mais conotado com os jovens, mas os temas que tu abordas geralmente não são motivos de preocupação para a juventude…

    Epá!, o meu público é acima dos 75 anos [risos].

    Vais dar então concertos em lares de terceira idade e aos velhotes, todos com as bengalas…

    [risos] Não, mas é um público mais velho, tendo em conta o que se vê no hip-hop, que se tem a ideia de ser música de jovens… Pelo menos a nível de estatística, do que eu tenho acesso nos meus sites e plataformas, a maior parte está entre os 25 e os 35, 40 anos. Depois, é dos 40 aos 50. E a percentagem que me ouve dos 18 anos para baixo é a mesma que me ouve dos 70 ou 75 para cima, o que é engraçado. É uma percentagem muito pequena. Por isso, acho que, por aqui, o meu target, digamos, são jovens adultos.

    Porque é que achas que os adolescentes não te ouvem tanto? Porque ainda não estão tão virados para causas?

    Sim, e eu acho que é essa despreocupação na cabeça do adolescente. Há um ou outro que possa ter esse interesse… Eu, na altura do liceu, tinha uma professora de História de Arte e as aulas dela eram uma seca, então logo às 8 horas da manhã, eu adormecia quase sempre, e ela dizia que tinha de fazer relatórios em todas as aulas. Então chegou o final do período, ela pediu-me o relatório, e o relatório que eu tinha era sempre sobre o final das aulas, em que ela falava sobre política. Ou seja, na altura ela também me deu esta vontade de saber mais sobre política, e estar mais envolvido com essa parte. Mas em miúdo também era mais despreocupado, acho que faz parte da adolescência, não é? Então penso que seja por aí que não prestam tanta atenção. Mas acho que a minha música poderá ser intemporal, e se calhar daqui a um tempo vão ouvir. A minha música é para ficar, não é uma música que amanhã já ninguém se lembra. Por exemplo, o “Planeta Novo” já saiu há cinco anos e ainda hoje vai continuando a aumentar em visualizações, gente a partilhar e a comentar… Por isso, acho que é transversal às gerações, é uma música para a História. E esse é o meu trabalho quando escrevo.

    Eras um adolescente rebelde?

    Não [risos]. Epá!, mais ou menos. Eu quando vivia no bairro sempre fui assim um bocado mais traquina, tive as minhas coisas, que fazem parte… Mas decidi escolher outros caminhos e, felizmente, sempre tive esta luz que me foi guiando. E sempre tive oportunidades, também, que às vezes não existem. Eu tive essas oportunidades, e soube agarrá-las, e as coisas foram acontecendo. Mas sim, quando era miúdo era um bocado mais traquina.

    Actualmente, os adolescentes e jovens adultos estão muito virados para o activismo ambiental. Há pouco dizias que escreves aquilo que sentes e gostas. Mas se alguém viesse ter contigo e te pedisse que fizesses uma música sobre a questão ambiental. Ao perceberes que há um público que está activamente a lutar pelo ambiente, farias isso?

    Eu sou-te sincero. Sem dúvida alguma que devemos cuidar da Natureza e do nosso Planeta. Mas esta urgência, obviamente que acho que é desnecessária, e fico ainda mais espantado quando vejo entrevistas a essas activistas, em que lhes perguntam o que é que eles estão a fazer, e muitos deles não sabem responder. Faz-me lembrar quando eu era miúdo e fazíamos greves e íamos para manifestações… “Estão a manifestar-se sobre o quê?”, e nós: “ah!, é só para não ter aulas” [risos]. Acho que também existe muito isso. E depois também vi alunos que foram formados para aquele tipo de causas… Ou seja, é tudo muito estranho. Acho que devemos, não só hoje, ontem ou amanhã, mas sempre, ter atenção ao nosso Planeta e saber cuidar da Mãe Natureza e dar bons exemplos. Mas toda esta urgência é em demasia. Porque tu ouviste falar do buraco do ozono, e de repente já não se ouve falar. Ou seja, é sempre narrativas novas. E se fores ver, a Europa já esteve congelada em tempos. Eu estive a ver uma reportagem muito interessante que falava sobre umas décadas, e às vezes séculos, mais frios, outros mais quentes, e outros mais amenos… Isto é cíclico, não é? Nós já tivemos uma Europa completamente gelada, e já tivemos uma Europa a escaldar. E quando tu vês estes historiadores e pessoas certificadas a falar sobre isto, tu questionas-te: então qual é a preocupação, não é?  Porque essas mudanças de temperatura, e tudo isto é cíclico. E, se calhar, nem os nossos avós viram esta alteração, mas se calhar os nossos bisavós já passaram por tempos mais quentes ou mais frios.

    Achas que esta narrativa da emergência climática se pode equiparar à da pandemia?

    Se a gente for aprofundar a Agenda 2030 das Nações Unidas, tudo isso está lá explícito, por outras palavras e com “arco-íris”, mas está lá. E, por isso, acho que é questionável e devemos questionar, tal como com a pandemia, todo este alarido à volta das alterações climáticas. É super-questionável, não é? E mais uma vez, é o que eu digo, devemos sempre dar o nosso melhor para com o Planeta, ter uma atitude cívica correcta. Mas não com urgência, como cortar nas palhinhas, como se as palhinhas fossem o problema do Planeta. Ou cortar com os combustíveis fósseis, e depois ter carros a bateria, onde a produção, se for preciso, ainda polui muito mais. É isso, acho que existe aqui um exagero que vem, de certa forma, para implementar algo, mais uma vez.

    E é um pouco disso que falas no “Propaganda”, esta tentativa de controlar a opinião pública com base numa narrativa?

    Sim, basicamente, é isso. Falo um pouco sobre estes temas todos, e acho que é importante também meter as pessoas a questionarem-se, a discutirem, e tenho ali coisas que foram mesmo propositadas para abrir uma discussão entre as pessoas. Eu não digo que estou certo, nem que a outra pessoa está certa, mas acho que é muito bom discutirmos abertamente, e no final irmos beber um café os dois, ir sair à noite e divertirmo-nos, não é? Não é por isso que eu te vou odiar, não é por isso que eu te vou matar. Temos de nos respeitar uns aos outros, sermos tolerantes. Acho muito importante o respeito pela opinião do outro, e pela diferença. Porque se nós queremos a igualdade, não podemos querer só a igualdade para a nossa casa, mas para a de todos. Para mim, isso é que faz sentido. Ouve-se muita gente a falar em igualdade e liberdade, mas só querem igualdade para o seu pequeno grupinho. Como as feministas, não é? “O corpo é meu, quem manda nele sou eu”, mas depois são a favor de vacinação obrigatória. Acho que estes tempos, estas coisas que estamos a passar, vão ser super-importantes no futuro para o crescimento da sociedade e para a evolução do ser humano, olhando de uma forma mais optimista.

    Fotografia: André Carvalho

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  • ‘O dia-a-dia não é sempre estimulante, senão não aguentávamos’

    ‘O dia-a-dia não é sempre estimulante, senão não aguentávamos’

    É o mais recente documentário da jornalista Catarina Neves. Ainda não acabei acompanha o processo criativo dos artistas plásticos do Manicómio, um atelier onde pessoas especiais criam a sua arte, a expõem e a vendem. Além de pretender acabar com o estigma da saúde mental, o trabalho de Catarina Neves documenta as inspirações, os métodos e a criatividade de vários artistas com quem conviveu durante seis meses. Documentarista há dez anos e jornalista há 28, Catarina Neves começou a carreira na rádio e a experiência mais longa tem sido na SIC, onde tem acompanhado vários acontecimentos internacionais, como a guerra na Ucrânia e as eleições em Angola. Tem 50 anos e é natural do Barreiro. Filma por gosto e por achar importante documentar momentos únicos da criação artística, onde mostra tanto o talento como a fragilidade dos artistas. Os documentários acompanham todo o processo, desde a conceção da ideia até à exibição ao público. A sua vasta experiência e formação académica em teatro colocam-na numa posição privilegiada para mostrar o artista no seu lado mais puro. É o caso de Ainda Não Acabei sobre o projeto Manicómio, de Sandro Resende e José Azevedo. A propósito da exibição do filme no MAAT, na próxima segunda-feira (dia 21 de Novembro), o PÁGINA UM conversou com a realizadora sobre a sua experiência em documentários, sobretudo focando os processos criativos das artes.


    O Manicómio é um projeto que, segundo os seus criadores, tem logo, no seu nome, uma provocação. Foi esta provocação que te levou a fazer este filme documental?

    Também, mas não só. Foi o meu grande interesse por processos criativos, por acompanhar a criação em várias áreas, sobretudo na área teatral. É o que eu mais tenho feito, mas as artes plásticas, até pela novidade, são altamente desafiantes. E depois também por ser amiga do Sandro Resende há mais de 20 anos. Vi-o começar no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos, onde ele seguiu e segue, ainda que agora não de uma forma tão intensa, os doentes mentais que eram encaminhados para as artes plásticas. Através desse trabalho, encontravam formas de vida que lhes permitiam, inclusive, sustentarem-se – e essa é uma grande questão que move muito o Sandro Resende. Como eu acompanho os seus trabalhos há mais de 25 anos, tenho visto a sua grande vontade, energia, criatividade e, sobretudo, a grande capacidade de ter uma ideia de que, por mais louca – e aqui podemos fazer imensas piadas a partir dos termos loucos, loucura, manicómio – que fosse, ele conseguia torná-la real. E isso para mim é altamente estimulante.

    Quando começaste a idealizar este documentário?

    Ele fez-me o desafio, em 2019, de acompanhar durante algum tempo o trabalho no Manicómio. Aliado ao facto de o conhecer, foi o acompanhamento de um processo criativo nas artes. E depois há este impulso que eu tenho para o registo, que eventualmente poderá ser histórico. Nós estivemos seis meses com aqueles artistas. Como eu costumo fazer nos documentários, a ideia é acompanhar a criação do princípio ao fim. Neste caso, como são artes plásticas, estive a acompanhar o barro, a pintura e o trabalho do tecido. Acompanho os processos desde o momento em que o artista se coloca perante o objeto vazio – o material de construção –, e depois tem a ideia, põe em prática, executa e cria o objeto artístico.

    E quando estás a filmar, não tens o receio de acabar por intervir, de uma forma positiva ou negativa, no processo artístico dos outros?

    Tenho, e tento controlar esse risco, que é também, até certo ponto, o impulso. Porque são tantas horas, tantos dias, semanas e meses que, a dada altura, achas que já fazes parte daquilo também. Achas que já podes mandar o teu bitaite [risos] sobre que materiais usar ou para onde ir. Mas eu, para ser honesta, sinto mais esse impulso quando acompanho processos criativos na área do teatro, por ser uma área que me é mais próxima.

    Exacto. Uma parte dos teus documentários são sobre o processo criativo no teatro…

    Eu fiz um mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras [da Universidade de Lisboa] Eu própria participei na fundação de uma companhia de teatro há mais de 25 anos, andei nos palcos… Portanto, sou muito mais próxima dessa linguagem, o que faz, à partida, sentir-me mais à vontade; mas não à chegada. Isso é que é interessante. Como eu me sinto muito mais próxima da linguagem teatral, controlo-me muito mais. E fico muito mais fechada, com menos interação – até porque eu conheço melhor a forma de pensar e de agir dos agentes do teatro. Foi o oposto ao que aconteceu com este processo criativo dos artistas do Manicómio. Porque aquilo, para mim, era estranho: eu não trabalho barro, sou uma desgraça a desenhar, desenho mal o sol, pareço uma criança da quarta classe. Sou muito básica nisso, e sinto-me menos implicada. Portanto, acho que me vinculei um bocadinho mais.

    Para tentar perceber melhor esta dinâmica deste documentário e como aqueles que tens feito sobre teatro: chegas ao local com uma câmara, montas as luzes e o teu set para trabalhares. Almoças e convives com os artistas, sejam eles quais forem. Como é afinal esse processo, que implica a existência de confiança, que te permite captares a sua essência criativa sem qualquer tipo de filtro e onde a acção não seja provocada pela tua presença?

    Depende dos grupos de trabalho e, mais uma vez, depende das áreas. A mim parece-me que no teatro é mais complexo. Os actores são figuras que percebem a implicação dos seus actos e como se comportam. Eles têm muita a noção do público, porque têm imediatamente o retorno: estão em palco, fazem a sua função e, imediatamente, percebem pelas palmas. Hoje não se usa o patear, não é? Mas há 30 anos, quando não se gostava, pateava-se. Era um sinal de reprovação do espectáculo. Hoje, aquilo que o público faz é sair da sala a meio. Isso é uma forma de rejeitar. O público também se tornou um bocadinho [suspiro] mais hipócrita, não enfrenta tanto o actor, o trabalho. Prefere sair. É um bocadinho a sociedade em geral. As pessoas só se enfrentam em redes sociais, não o fazem cara a cara. Fazem de conta que está tudo bem.  Quando eu me envolvo no teatro, é mais complicado. De todos os documentários nesta área, só houve um em que era muito próxima, pessoalmente, do encenador. Eu estive um ano a acompanhar as criações no Teatro Nacional Dona Maria II e não conhecia praticamente ninguém. Conhecia os actores, porque são figuras públicas, mas eles não me conheciam a mim. Não tinha relação com eles.

    Em relação ao teu trabalho de documentação do processo artístico no teatro, o que é que já fizeste?

    Acompanhei muitas obras no Teatro Nacional Dona Maria II; foi um ano inteiro. Acompanhei o À espera de Godot, encenado pelo Luís Vicente. Aquilo que marca o início desta minha vida paralela foi quando acompanhei o Joaquim Benite, no último ano da sua vida e na sua última encenação, que foi o Timão de Atenas, de Shakespeare. Estive também com o Luís Miguel Cintra, na encenação de uma ópera.

    A tua experiência no teatro influencia a forma como os actores se comportam nas gravações do documentário?

    Eu conheço muitos processos criativos, e sei que há uma questão de ego do actor, e a sua noção muito forte do público. Eu sei que qualquer opinião de alguém que tem uma câmara – e eles tem muita noção do poder da imagem – pode influenciar. Às vezes, o actor pergunta-me o que eu acho do ensaio. E o que é que eu vou dizer? Vou dizer: “Ai, foi maravilhoso”. E realmente foi maravilhoso. E incho ainda mais o ego dos actores quando eles estão em processo criativo. Acho que isso não traz muito para o processo onde eu nem sequer tenho de interagir. Ou então, eventualmente, não gostei, e até acho que aquilo está tudo muito mal, e sou sincera. E digo: “Eh pá, isto está muito mal, não estás na linha, não estás a captar”. Vou dizer isso para quê? Isso não traz nada.

    Nas artes plásticas, isso não sucede?

    Na verdade, com as artes plásticas, eu estou muito ausente em termos de conhecimento. O que eu tenho é um conhecimento empírico, de espectador, de ir a um museu ou outro. Nesse caso, a minha opinião nem sequer é muito tida em consideração. Não interessa muito a minha opinião. Portanto, a interação mais pessoal acabou por ser muito na esfera do “está chuva, está frio; ´bora lá beber uma cerveja; como é que te sentes hoje?” No teatro não acontece assim, porque aí a pergunta vai sempre: “Como é que correu este ensaio? O que é que tu achas? Achas que estamos a ir bem?” Exigir um comentário meu é mais do foro profissional. E isso é comprometedor, e pode mudar a temperatura da relação. E eu não quero isso, já basta ter lá a câmara, que já é complexo.

    Pode depreender-se pelas tuas palavras que a tua interacção com os artistas plásticos do Manicómio foi mais fácil do que com os actores?

    É diferente; não é mais fácil, mas diferente. É mais fácil para mim filmar um processo que eu domino. Eu sei como me comportar em palco. Há coisas tão simples como isto: eu não vou filmar uma peça de teatro com os sapatos de sola. Vou sempre com borracha, porque, se eu tiver de ir para a zona do palco, o que eu não quero é que se oiça o meu andar. Eu não quero que se dê conta que eu lá estou, quanto mais que se oiça. São coisas tão simples como estas; e isso eu domino. É a minha linguagem, são muitos anos a ver e a estudar teatro; criei companhias e conheço a maior parte dos criadores. Eu antecipo comportamentos, feitios e personalidades. Eu evito o conflito ao máximo. Eu quero ser uma mosca. É como aquela história de um criador, que nunca deixava ninguém filmar. Uma vez foi acompanhado pelo seu filho, que é realizador. O filho disse-lhe que ia ser como uma mosca na parede. E ao que o criador respondeu: “uma mosca pode ser muito chata quando voa”. A mosca pode ser muito impertinente, pode prejudicar muito a criação. Eu estou ali, sossegada na parede, a observar e fazer o menos possível.

    Na estreia deste documentário sobre o Manicómio, tu e o Sandro Resende falaram da necessidade de fazer cair o estigma da saúde mental. Mas, ao mesmo tempo, não é possível desassociar a saúde mental do artista. Como é que tu vês o equilíbrio ao tentar mostrar a arte pela arte e pelo seu criador, sem colocar a questão da saúde mental no meio do processo?

    É um desafio permanente, porque a própria designação “Manicómio”… [pausa longa, sorriso] tem dois lados. Em qualquer língua, sobretudo na Europa, se tu falares no manicómio, se usares a expressão manicómio, é o manicómio, é uma casa onde estão loucos. Portanto, é uma provocação. E o Sandro assume isso. Aliás, há uma parte do filme, quando o Sandro está num debate a falar com várias pessoas e alguém da plateia lhe diz: “Manicómio? Eu não gosto do termo; porquê Manicómio? Isso estigmatiza!” Tem exactamente o efeito oposto. Eu acho que o Sandro quer que se fale sobre [o estigma]. Porque tu estigmatizas menos se falares sobre. Se tu fizeres de conta que não tens um problema, aí é mais fácil relacionares-te com os outros. Não é que isso tenha de ser uma bandeira permanente. Não é que um bipolar tenha de andar com uma faixa a dizer: “Eu sou bipolar”. Não é isso. Mas esconder que é bipolar, se calhar, não vai dar bom resultado, principalmente em relações mais íntimas. E há um contexto médico e de saúde. Qual é o problema? Posso ter diabetes, se tiver diabetes se calhar é melhor não irmos à Feira do Chocolate em Óbidos?… Se calhar é melhor dizer à pessoa que convida: “eh pá, vamos, mas se calhar não consigo participar activamente nessa atividade”.

    Houve alguma influência no processo criativo ou durante a captação das imagens por causa dessa questão?

    É uma realidade permanente, não é? Aliás, o filme mostra um momento de crise da Anabela Soares. Mas não temos, todos nós… momentos de crise? Eu disse numa entrevista para a SIC que era pessoal [do Manicómio] com distúrbios de personalidade. Os psicólogos e psiquiatras manifestaram-se dizendo que não são pessoas só com distúrbios de personalidade. Há outro tipo de patologias. Pronto, ok, está feita a rectificação. Também me falta um ano para acabar a psiquiatria – estou a brincar, é uma piada que costumo fazer [sorriso. Uma pessoa mete-se a falar sobre tudo e depois mete o pé na poça, às vezes.]

    E depois há sempre aquela exigência desses tais peritos e especialistas – estamos pejados de gente assim – que acha que nós temos de saber tudo…

    E sobretudo os jornalistas, que são grandes especialistas em generalidades [risos]. Não é fácil tu assumires que tens uma doença mental, não é fácil dizeres que o meu irmão, a minha mulher, o meu filho, são esquizofrénicos. É uma coisa que acarreta uma dor tremenda. Sobretudo se fores um esquizofrénico que tem de ser medicado de 15 em 15 dias, e que fica, no dia da medicação, sem se mexer… Se calhar não é uma coisa muito fácil. Se tiveres uma doença mental que te impede de trabalhar tranquilamente, sem levantar ondas das oito da manhã às cinco da tarde, se calhar também é um problema. És menos por isso? Não, estás noutro esquema, tens outro esquema de funcionamento. É possível viver. E será que nesse viver está implicada a noção de criar receitas para ti próprio, não ser dependente, não ter de viver com uma pensão do Estado, não ter de ser dependente dos teus familiares diretos ou indiretos? É possível, claro – o Manicómio, mostra isso. As condições de trabalho e a forma de reagir e de estar é que são ligeiramente diferentes das padronizadas. Mas se calhar há muita gente que está no padrão e acha-se super infeliz.

    No teu filme Ainda Não Acabei há uma cena com a Anabela e o Zé dos Castelos em que falam do suicídio. É algo muito forte, que nos toca. Notei que há uma dosagem entre o que poderia ser dramático, como dar ênfase à parte mais preocupante da saúde mental, com um aspecto extremamente positivo, ao mostrar que são pessoas como qualquer um de nós. Essa dosagem foi propositada?

    Ela nasce da realidade observada. Não forcei. Eu acho que se tivesse sublinhado mais os momentos de crise daqueles artistas plásticos, com problemas de saúde mental, teria forçado. Aquilo é mais ou menos o que aconteceu. Existiram momentos de crise que precisavam de contexto e num filme documental, para terem contexto, se calhar tinham de ter voz off – e eu não quis. Tudo o resto, o que tu vês ali, é mais ou menos o que foi a conversa. Os momentos de crise foram aqueles. Acho que não deixei de fora nada de muito significativo. Claro que há uma estrutura narrativa pensada e criada. Claro que há sempre uma manipulação da minha parte. A realidade é uma grande seca, não é? Vamos lá ver, mesmo no Big Brother – que no fundo é aquela grande noção de big brother is watching you –, tu estás ali 24 horas [por dia] a acompanhar pessoas que, por acaso, estão fechadas, e que, por acaso, são escolhidas com perfis muito particulares, para ter interações que podem ser mais potenciadas em termos de televisão… Se tu estiveres a acompanhar aquilo, é um bocado seca. O dia-a-dia não é sempre estimulante, senão não aguentávamos. E um filme documental é um filme que corta a realidade e que depende do meu olhar, depende da minha capacidade de síntese.

    A crise não é permanente…

    As pessoas [do Manicómio] não estão permanentemente em crise. As pessoas estão controladas, até medicamente. Aliás, há um momento, também nesse debate, em que o psiquiatra diz: “a medicação está tão desenvolvida que faz com que um doente esquizofrénico, que é uma patologia mais complexa e mais pesada, esteja aqui hoje neste debate, e nós nem sequer consigamos ver quem é que tem esquizofrenia”. As pessoas levam as suas vidas normais. Agora, voltamos ao mesmo: conseguem apanhar uma hora e meia de transportes públicos, entrar às oito da manhã, fazer 40 minutos de almoço, sair às cinco da tarde?… Se calhar não conseguem ter esse peso que os “normalpatas” assumem e aguentam. Depois descompensam todos aos 50 anos com depressões más, mas pronto. Mas têm vidas perfeitamente enquadradas.

    Explicaste que no teu processo criativo não crias um guião à partida. Começas a trabalhar com uma tela em branco?

    Sim. Preciso de perceber o que é que me move, que realidade é que eu vou enfrentar, mais ou menos. Depois, preciso de coisas mais práticas, menos românticas, como condições de trabalho: se tem luz ou não tem, se tem de haver mais planos de interior, etc. Nos processos teatrais, aquilo é mais ou menos sereno: há ensaios de mesa, leitura de texto, discussão de intencionalidade de personagem e o desenho, feito por cada actor, do seu caderno de personagem. Isso é sempre a mesma coisa. Vão para o espaço, normalmente uma sala de ensaios. Ensaiam pela primeira vez: as primeiras descobertas, as primeiras frustrações, os primeiros deslumbres. Depois, passam para o palco. Aí, eu quero muito acompanhar coisas mais técnicas: luzes, cenários, figurinos e os atores no palco. Preciso muitos dos actores no camarim – isso é para mim um dos momentos mais altos da intimidade com o actor. Então, se ele começar a habituar-se a ter-me presente, aquilo entra mesmo numa coisa de descontração. Ao ter-me presente sem palavras, passa a haver um só presente. Aliás, movimento-me pouco e tento fazer o mínimo barulho.

    E no processo criativo dos artistas do Manicómio, foi mais fácil?

    No processo do Manicómio foi mais complexo. Pergunto-me: o que é que me move? Que artes é que nós temos aqui? Temos as artes plásticas: a escultura, o barro, a pintura, os tecidos, e a fotografia. Quem são as personagens que fazem isto? Seis, sete personagens. Quando é que eles cá vêm, quais é que são as rotinas? E depois há também, e mais uma vez, a questão técnica: por onde é que entra a luz e quando é que começa o dia, porque isso permite-me outro tipo de planos. Tento fazer tudo por tudo para acompanhar o processo desde o início da criação. Por exemplo, no caso dos Zé dos Castelos, não foi possível porque ele tinha começado aquele enorme desenho do castelo em 2019, e eu comecei a filmar em 2021. Ninguém foi ao espaço do Manicómio em 2020 por causa da pandemia. O Zé tem um tempo de trabalho relativamente lento [risos], que ele próprio assume. É mais correcto dizer “demorado”, não é lento, tendo em conta os padrões de criação. Por outro lado, a Anabela cria um monstro numa manhã. Ela chega, tem o barro para trabalhar, amassa-o e numa manhã, em três horas, ela cria um monstro. Finalizado, só falta ir ao forno. O Zé não. O Zé dos Castelos levou três anos a fazer um desenho. Eu não consegui acompanhar, mas isto é fundamental para mim. Eu quero o início porque o que me interessa é mostrar a autodescoberta.

    Tu és jornalista há muitos anos e tens uma larga experiência em perceber o enquadramento dos locais onde estás. Seres jornalista ajudou-te muito na criação destes documentários, certo?

    Muito. Ajuda muito. O que é que a jornalista faz? Ou devia fazer? [risos] Escolhe um tema, interessa-se por ele, considera que esse tema interessa aos outros e que é importante explicar esse tema. Informa-se, vai à procura das fontes e dos vários protagonistas. Contacta-os. Aprende antes o máximo que consegue, e ouve-os. E depois tenta, da forma mais equilibrada possível, resumir aquilo que os protagonistas lhe disseram, porque não é possível pôr tudo. E tenta ser equilibrado, honesto, deontológico, ouvir todas as partes, etc. E isso é marcante.

    Como é que poderá ser a saída e a rentabilidade para uma cineasta independente como tu, num universo tão pequeno que temos em Portugal na criação de um filme documental?

    Tens de estar dentro de uma produtora grande. E há algumas em Portugal, que trabalham bem e conseguem mover-se nos meandros complexos dos financiamentos. Em Portugal, tu tens o Instituto do Cinema e Audiovisual, que faz financiamentos regulares, e aos quais tens de te candidatar. E é muito mais fácil para uma grande e reconhecida produtora de cinema conseguir os financiamentos. Depois, tens financiamento da Gulbenkian, que também é complexo de conseguir. A maior parte do restante financiamento vem de entidades privadas. As câmaras municipais também conseguem financiar algumas coisas, mas acima de uma determinada quantia tem de ir à Assembleia Municipal, e depois os vereadores têm de votar. Torna-se um pouco mais complexo. Mas as câmaras também são uma boa e regular fonte de financiamento, se houver muito interesse na temática.

    Mas para um realizador independente torna-se ainda mais complexo…

    Eu candidatei-me três vezes ao ICA e duas vezes à Gulbenkian, e não consegui [aprovação] nestes últimos dez anos. Portanto, acho que este facto explica bem a coisa. Ganhámos dois prémios do público do Doclisboa com dois documentários diferentes. Foi o público que escolheu. Portanto, acho que o trabalho que fazemos não é alienado do público, porque tem essa marca. E não é nenhuma crítica, de todo. Acho extraordinária a criação de objetos artísticos na área do documentário, que são tendencialmente mais fechados, mas que são altamente estimulantes. Se há espaço onde a liberdade criativa deve existir é no documentário. Na reportagem, é muito complexo, há liberdade criativa q.b., porque há regras, têm de ser seguidas. Aqui, no documentário, tudo é possível. Agora, viver do documentário, fora de uma grande produtora, é muito difícil. Eu diria que é quase impossível. Ou então, não estás em Portugal; vives nos Estados Unidos. Se calhar já é diferente, e consegues reconhecimento, nem que seja pelo Estado onde tu vives.

    Trailer do documentário Ainda não acabei.

    E o circuito dos festivais? No dia da estreia, uma das “farpas” que lançaste foi relativamente aos festivais e às modas que seguem. Dizias que, infelizmente, a temática da saúde mental e da arte não está enquadrada naquilo que é moda, actualmente…

    Há tendências temáticas nos festivais, no Mundo inteiro. A saúde mental é permanente e transversal, mas não está necessariamente na onda, neste momento. E isso sente-se. Eu acho que isso reflecte-se na escolha, ou não. Se calhar, não é agora o momento.

    Tens esperança que venha a ser?

    Vai ser. A pandemia trouxe para os órgãos de comunicação social a questão da saúde mental. Trouxe de forma muito premente. Isto agora é uma análise altamente subjectiva: estamos todos um bocadinho cansados e os festivais documentais tendem a rasgar e a ir um bocadinho contra. Houve uma altura que era os refugiados, muita coisa sobre o meio ambiente, a questão do aquecimento global. Vamos ver. Se calhar, a saúde mental é para o ano. Mas já não vai dar para candidatar este filme. Pois já é do outro ano… [risos].

    Para um realizador independente, o circuito dos festivais é sempre importante para projetar o seu trabalho, certo?

    É fundamental, por várias razões. Primeiro, porque estás a ser avaliado pelos pares, enquanto abres para o público fora do circuito comercial. Não tem tanto o peso de teres de encher uma sala e vender bilhetes. Depois, o teu filme é exibido na mostra de filmes documentais onde também te inseres. Isso é muito, muito interessante. Depois, porque há a possibilidade dos prémios. Ser premiado no festival é uma coisa altamente gratificante. E depois, porque tens essa última experiência do teu filme projectado em sala! Isso é incrível! Uma tela de cinema para mim compensa, até certo ponto, a ausência de retorno financeiro.