Poderá existir amor verdadeiro num relacionamento tóxico? Infelizmente, não. Nas relações onde o desrespeito pelo outro e o “terrorismo emocional” são uma constante, o que se desenvolve é um vínculo patológico–quem o diz é Diana Cruz, psicóloga clínica doutorada em Psicologia Clínica da Famíliae autora de Não é amor, é uma relação tóxica, editado pela Manuscrito. A terapeuta vê como necessário esclarecer que o amor dá trabalho, mas “não deve doer”. Reconhecendo que também os homens podem ser vítimas de relações tóxicas fala, neste livro, sobretudo para as mulheres que sofrem abusos emocionais pelos seus companheiros, dando-lhes a mão no caminho para romper com a toxicidade e, claro, com o parceiro. A “desintoxicação” implica enfrentar muitos obstáculos, mas a psicóloga assegura que é possível sair da ‘teia’. Ao PÁGINA UM, explicou quais são as principais características destes relacionamentos, que podem ser verdadeiramente traumáticos – e que se desenvolvem também entre familiares, amigos ou até colegas de trabalho –, e como as ideias erróneas que ainda prevalecem sobre o amor não ajudam as vítimas a perceber que “caíram” numa relação tóxica.
No seu livro Não é amor, é uma relação tóxica, afirma que não há dois relacionamentos tóxicos similares. Sendo assim, quais são as principais características que os definem?
Há várias características muito comuns destas relações, e penso que nos devemos focar em duas ou três, provavelmente mais importantes, e que devem ser identificadas o quanto antes. Primeiro, são relações prejudiciais, em que há uma enorme falta de empatia e um desrespeito pelas necessidades e pelos limites da outra pessoa. Há, também, uma instrumentalização do outro. Ou seja, para o ‘parceiro tóxico’, a outra pessoa é mesmo como um instrumento, alguém que está ali para corresponder ao que ele precisa e às suas exigências, e para regular as suas emoções. São relações que não deixam espaço para os dois elementos, porque há um que é dominante e tem o espaço todo na relação. No fundo, é quem dita as regras. E depois há o outro elemento que está na relação com muito pouco espaço para a sua liberdade individual, e está sempre na expectativa de providenciar tudo o que seja pedido pelo parceiro tóxico – sejam coisas materiais, atenção, sexo, o que for.
No entanto, nestas relações, criam-se também dinâmicas que podem facilmente ser confundidas com actos de amor, mas que não o são, na verdade…
Sim, é isso que torna estas relações tão prejudiciais. No início, elas são muito facilmente confundidas com amor porque, numa primeira impressão, há uma intensidade de afectos muito grande. Há um período de sedução, que é muito forte e intenso, na primeira fase da relação, em que o parceiro tóxico aprende tudo sobre a outra pessoa – regra real, estes parceiros são extremamente inteligentes e capazes de o fazer e, portanto, têm uma capacidade enorme de ir ao encontro daquilo que nós queremos ouvir: seja os nossos interesses e objectivos de vida, o que gostamos e não gostamos. Portanto, cria-se uma intensidade afectiva e um vínculo que é quase instantâneo. É um vínculo patológico, mas é quase instantâneo, e que gera aquela sensação de “encontrei a minha alma gémea”, “é tudo o que eu sempre sonhei”. E só o facto de sentirmos isto já é uma alavanca para uma união, e para um vínculo muito forte. E, claro, este é um dos grandes poderes da relação tóxica, porque nós ainda estamos muito habituados a querer isso: a ideia de esperar pela cara-metade, a pessoa que encaixa perfeitamente em nós – quando, na realidade ninguém pode encaixar perfeitamente em ninguém e não há nada de errado nisso; pelo contrário.
Também é comum, por exemplo, confundir-se ciúmes excessivos com amor.
Sim; aí, acho que há vários sinais. Ainda recentemente, quando fui ao programa Curto Circuito, dei alguns exemplos que acho que acontecem nas relações de todas as idades, mas sobretudo com os mais novos, porque há uma partilha menor; por geralmente não viverem ainda juntos. Mas as pessoas pensam: se tem ciúmes é porque se importa muito comigo e não me quer perder, gosta de mim. Entretanto, surgem uma série de outras coisas: se comenta a roupa que eu visto é por causa do ciúme; é por causa do ciúme – ou seja, do “amor” – que ele me diz um colega de trabalho está a “dar em cima” de mim, e que é melhor afastar-me… É por causa do amor que não quer que eu siga esta ou aquela pessoa nas redes sociais… Sim, porque as redes sociais, nestas relações, também são “invadidas”; tudo é. E hoje, as redes sociais são uma parcela das relações interpessoais muito grande, como sabemos.
E, portanto, é aquela convicção que foi criada na tal fase de sedução, de que somos feitos um para o outro e não nos podemos perder, em que o parceiro tóxico aprendeu tudo e mimetizou tudo o que a outra pessoa quer ouvir, que justifica aguentar todas estas coisas. A maioria de nós, quando estamos de fora, e se pudéssemos pensar bem quando estamos dentro da relação, perceberíamos que esta pessoa está a limitar com quem eu falo e quando falo, o que visto, onde vou. Portanto, está a limitar a minha liberdade individual, e não está a confiar em mim. Está só a isolar-me cada vez mais, até que a certa altura – e isso é uma coisa que acontece muito e é uma característica muito pesada destas relações –, há uma espécie de uma bolha, um isolamento muito grande, que pode até incluir os familiares. E esse afastamento contribui ainda mais para que aquela relação pareça tão importante – a certa altura, não há mesmo mais ninguém. Ela é importante porque o desamparo é gigante, e esse desamparo foi criado pela própria relação. O parceiro tóxico convence a outra pessoa que quem está ao seu redor não lhe quer bem, recorrendo muito à crítica e à desqualificação, e dizendo coisas como “tu não percebes nada”, “toda a gente te engana”… E todas estas características se enredam umas nas outras e transformam estas relações num ‘novelo’ do qual é mesmo muito difícil sair.
Como referiu, há traços transversais nos comportamentos de um parceiro tóxico, mas não é possível reduzir estas pessoas a um único perfil; podem existir diversos tipos de personalidade tóxicas, certo?
Sim, estas pessoas geralmente são muito egocêntricas, muito centradas em si próprias e nas suas necessidades, no que querem para si e no que pretendem dos outros e da vida. Lá está: como disse ao início, pessoas que têm muito pouca empatia; não têm grande preocupação com o impacto que as suas acções têm nos outros e com a dor que possam provocar – pelo contrário, mesmo com a outra pessoa a explicar imensas vezes ao parceiro que o seu comportamento a faz sentir-se ofendida ou humilhada, ele torna a fazer, se for preciso, no próprio dia.
Pode dizer-se que são narcisistas?
Podem ser verdadeiros narcisistas, pessoas que não estão nada preocupadas com o outro. Também são pessoas muito imaturas emocionalmente – uma característica muito típica das personalidades narcisistas. No fundo, são um bocado como uma criança grande. As crianças estão muito centradas nas suas coisas, mas é natural, porque são crianças. Mesmo assim, uma criança conhece empatia; com os outros miúdos, com os animais… Mas estas pessoas tóxicas acreditam que não têm de dar, só de receber, e emocionalmente são muito instáveis, frustram-se e irritam-se facilmente. Estão perfeitamente convencidos que há um sistema de regras que são só deles; há as regras para nós seguirmos, mas eles não têm de as seguir; têm as suas próprias regras, que os próprios fazem. O exemplo das redes sociais que já referi é típico: ele pode definir com quem é que eu falo, mas eu não posso fazer o mesmo. Enfim, têm esta expectativa de que o outro está ao serviço. Neste caso, geralmente, são mais os homens que têm estas características.
É por isso que dedica este livro às mulheres?
Sim, eu quis mesmo que fosse um livro de mulher para mulheres, que é uma coisa que está a ficar fora moda e que é delicado de se fazer agora. Mas acredito que é um livro que pode ser lido, igualmente, por homens – mesmo que aqui eu esteja a falar para as mulheres, se ele for vítima de uma relação tóxica, vai fazer-lhe sentido. E já tive feedback de alguns homens, mesmo em pouco tempo, o que é muito curioso. Também tenho recebido muitas mensagens de amigas de mulheres que estão nestas relações, e que dizem que não sabem mais o que fazer para as ajudar. Então, este é um livro de mulher para mulheres, mas isto não é dizer que não há homens a viver relações tóxicas. Claro que há, tal como há nas relações homossexuais também. Na verdade, em qualquer tipo de relação, incluindo entre pais e filhos; há mães e pais tóxicos, chefes tóxicos e amigos tóxicos. Claro que, depois, a natureza da relação muda um bocadinho e a forma como tudo se manifesta. Mas não é muito diferente, porque estão lá as características que falámos inicialmente, aqueles sinais para vermos se estamos numa relação tóxica, o desrespeito pelo outro e pelos seus limites. Também me dirijo sobretudo às mulheres porque é o que há mais e porque é o que a minha experiência conhece melhor; são elas quem mais vem ao consultório pedir este tipo de ajuda.
E de acordo com a sua experiência, que características pessoais é que tornam alguém mais susceptível de ser vítima de uma relação tóxica?
É muito difícil falar disto, e mesmo na escrita do livro tive muito cuidado e dei muitas voltas até achar que estava explicado da melhor forma. Porque é muito fácil ler esta entrevista, ou o livro, e pensar que são as mulheres que geram isto, com a sua maneira de ser. Não. Mas, de facto, as relações têm dois lados e há características que tendem mais a entrosar-se com outras.
Ou, por vezes, atribui-se a culpa à vítima por se ter mantido na relação, não é?
Exacto e, portanto, não é dizer que elas têm culpa, mas há de facto características nossas enquanto mulheres que podem facilitar isto. Também é por isso que são mais as mulheres que são vítimas destas relações: porque regra geral, somos mais orientadas para as relações; enquanto os homens mais orientados para os objectivos. É incontornável – cromossomas XX e XY [risos]. Depois, são as mulheres mais empáticas e mais focadas na relação com o outro, ou muito compassivas, compreensivas e que tendem a racionalizar muito as atitudes do parceiro. Então, acreditam que se o amarem e orientarem, ele vai conseguir ser diferente. Regra geral, são as mulheres que têm esta crença de que o amor é uma força bruta de mudança.
Acreditam que conseguem mudar e “salvar” o companheiro?
Sim, no limite, são mulheres que têm um pouco esta “síndrome” de salvadoras, mas antes de chegar a isso, são mulheres mais empáticas, com capacidade de escutar o outro e de entender o outro. E, portanto, vão sempre encontrando algo que justifica aquilo; porque, claro, as dificuldades da história de vida do parceiro existem. Mas não lhes cabe a elas estar a viver toda aquela violência e drama por causa disso. Não todas, mas algumas podem ter uma identidade um pouco frágil, e sentir que parte do seu valor vem das relações que elas têm, e se estão numa relação em que elas contribuem para a felicidade da outra pessoa, têm ainda mais valor. E claro que nós, quando estamos numa relação dita saudável, queremos que a nossa contribuição na relação seja boa e queremos estar ali com a outra pessoa. Mas nós não deixamos de ter valor se não tivermos uma relação, nem quando identificamos algo daquela pessoa que não é da minha conta, e sobre a qual eu não posso fazer nada, nem tenho de fazer nada. As mulheres que têm síndrome de salvadora muitas vezes têm até profissões de ajuda, como a minha. Mas mesmo que não tenham, costumam ser pessoas muito disponíveis para o outro. Também podem ser pessoas que já tiveram relações tóxicas anteriormente e não ficaram bem recuperadas, ou que vêm de famílias muito disfuncionais. Ou podem ainda ser pessoas muito românticas, que acreditam que para ser verdadeiro, o amor tem de doer muito e de passar por muitas provações, com muito sacrifício. Mas não é verdade, porque as relações custam e dão trabalho, mas não são só dor e sacrifício, senão para que queríamos o amor?
E quão fácil, ou difícil, é sair de uma relação tóxica?
É muito difícil. Na minha experiência, as mulheres saem; mas muitas precisam mesmo de ajuda especializada. Depende também das características mais específicas daquela relação e do grau de violência que teve, porque há este terrorismo que destrói completamente a identidade. Eu chamo-lhe “terrorismo emocional”. Nem todas necessitarão de ajuda especializada, mas muitas sim – é muito difícil, porque é uma relação traumática. Todos nós já saímos de uma relação, e é sempre difícil. Mas aqui, não falamos de sair de uma relação dita normal; é toda uma outra situação, devido ao trauma. É uma relação onde a pessoa perdeu o Norte, a noção dos seus objectivos, e passou a fazer uma série de coisas que são contra os seus valores e a suas crenças.
Muitas vezes, a vítima até já nem se reconhece a si mesma no final da relação, como refere também no livro.
Já nem se reconhece, às vezes já nem percebe porque entrou naquela relação, não conhece aquele companheiro, nem sabe como é que a relação chegou ali. Muitas vezes tem vergonha e sensação de culpa, e são emoções que bloqueiam muito a pessoa. Sente culpa, primeiro, porque foi convencida de que a relação estava a correr mal por culpa sua, porque o parceiro o diz. Mas depois, quando as mulheres já perceberam que a relação tem tudo para o correr mal, há muita vergonha porque a maioria permanece durante muito tempo, e às vezes até com várias roturas pelo meio. E esses sentimentos muitas vezes requerem ajuda, e que a pessoa reorganize toda a sua vida. Note-se que esta pessoa provavelmente perdeu os amigos, ou se ainda tem alguns, geralmente não sabem nem da missa a metade, porque tiveram vergonha de contar, ou não o fizeram para proteger o companheiro, ou porque não queriam “ouvir” das amigas. Os familiares, às vezes também já não são tão próximos e não sabem da situação. Também ficam desestruturadas no seu trabalho – não é incomum vermos mulheres que tinham carreiras em franca ascensão, mas que de repente já não produziam aquilo que nas empresas estavam habituadas, ou perderam a confiança para lançar-se num projecto mais desafiante. Algumas são mesmo demovidas pelos parceiros de tentar.
Eles próprios as convencem a não tentar alcançar os seus objectivos.
Sim, porque isso é poder; alimenta a auto-estima, a folha de vencimento. E, portanto, muitas também já não têm a mesma estrutura de trabalho ou o mesmo reconhecimento; as pessoas notam que elas não estão bem, mas mesmo que ninguém note – embora seja difícil –, mas elas já não se sentem capazes, afecta o seu rendimento no trabalho. Porque depois também não dormem, ficam doentes; começam a surgir uma série de sintomas físicos. Então, quando termina, não é só fazer o luto normal de uma relação e de um amor que não resultou; é o perceber que afinal, não era sequer amor nenhum. Todas as memórias de coisas que foram feitas e ditas de que não nos orgulhamos, a vergonha e toda a estrutura que desapareceu, deixou de fazer coisas de que gostava… Portanto, tem de ser tudo reformulado, recuperado. É às vezes, partindo de uma posição que é mesmo de doença mental, de depressão; a pessoa pode até deixar de comer.
Pode, inclusive, ter sintomas de stress pós-traumático?
Pode ter muitos sintomas que são concordantes com o stress pós-traumático, porque é de facto, uma relação traumática que vem daquele vínculo patológico – sedução “forte e feia” no início, e depois o “terrorismo” e a humilhação. Há muitas vezes um Síndrome de Estocolmo, que é o vínculo raptado pelo raptor. A pessoa sabe que está tudo mal, mas procura o parceiro para a consolar. Há uma incapacidade de afastamento, muito baseada também na ideia de que não há ali mais ninguém, na convicção que os parceiros tóxicos incutem na vítima, de que nunca ninguém a irá amar como ele.
E estas dinâmicas relacionais também têm sempre presente a questão da codependência? Ou não necessariamente?
Sim, no limite, podemos estar a falar de pessoas que têm características de dependência emocional. Ou seja, que têm muito estas necessidades de estar uma relação, e dificuldade em imaginar-se sozinhas. Mas o conceito de codependência é muito conhecido também noutras patologias psiquiátricas e psicológicas. Na codependência, há a ideia de que a própria vítima alimenta a agressão; não conhece outra forma de amor que não seja através da agressão. No estereótipo, é aquela pessoa que provoca o agressor para ele lhe bater; ou a mãe que quer que o filho deixe de consumir tóxicos, mas todos os dias lhe dá dinheiro, e sabe perfeitamente que o dinheiro é para as drogas ou o álcool. A pessoa codependente alimenta, de uma forma muito directa, o comportamento patológico. E é claro que isto eventualmente pode acontecer em algumas relações, mas de um modo geral, não é isso que acontece. Regra geral, stamos a falar de mulheres muito capazes, bonitas, com competências intelectuais acima da média e profissões diferenciadas, perfeitamente independentes; muitas delas, até então, tinham vidas totalmente autónomas, mas que depois são apanhadas nesta narrativa de conto de fadas. E quem é que não quer um? Mas depois há uma derrocada. E os parceiros tóxicos são com frequência também muito sedutores, têm sempre “satélites”, e fazem questão que a pessoa saiba que há mais mulheres que o desejam. Na fase inicial, antes de se aperceberem do tipo de relação, as amigas da vítima também lhe dizem que o parceiro é um “sonho”, e que ela não o pode perder. Coisas desse género.
Os parceiros tóxicos seduzem as pessoas mais próximas da vítima e conquistam a sua simpatia?
Sim, seduzem toda a gente, tornam-se muito próximos dos amigos e da família da vítima, para que toda a gente transmita aquela sensação de que saiu à vítima a sorte grande. “Tu agarra esse homem”… E isto também vai minando a identidade daquela pessoa, porque com o tempo já não tem certeza de nada, não confia no próprio julgamento. E claro, há o típico gaslighting – em que o parceiro tóxico nega as percepções da vítima, como se ela estivesse só a ver coisas. Ao fim de anos a ouvir isto, a vítima começa a acreditar, e vai-se tornando dependente daquela relação, porque não há mesmo mais nada. E aquela ideia de que é possível estar numa relação diferente e saudável desaparece; a vítima acredita que só pode ter aquilo.
E qual é a melhor forma de evitar cair numa relação destas? Fomentando uma autoestima saudável?
Pois, essa é a pergunta de um milhão. Eu acho que há algumas coisas que são muito importantes. Uma, é a pessoa, de antemão, saber bem quais são os seus limites. Pode-se gostar muito de alguém e amar muito uma pessoa, mas há coisas que não se vão aceitar. E se estes limites estiverem muito bem definidos, já é mais difícil que um comportamento incorrecto do outro não faça soar o alarme. Se aquilo que nós precisamos e que nos traz segurança estiver bem claro, bem como quais são os limites inultrapassáveis, já sentimos o desconforto mais cedo – aquela “bomba de amor” toda logo na fase de sedução já parece desagradável.
E depois, volto a frisar: as nossas ideias sobre o amor; porque é que nós havemos de esperar que uma pessoa goste de tudo que nós gostamos, ou queira tudo o que nós queremos. Isso não existe. É preciso ter a consciência de que o amor dá trabalho, sim, mas não é sofrido, e os valores de respeito têm de estar acima de tudo. E se a esmola for muito grande, se a pessoa parece tão perfeita que é demasiado bom para ser verdade, se calhar é mesmo. Mas sobretudo, diria que tem muito a ver com os limites, e sim, os limites também têm a ver com a nossa noção de valor. A maioria das pessoas quer muito uma relação, também porque estamos constantemente a ser bombardeados com a mensagem de que isso é importante. E apesar de os tempos estarem muito diferentes, as mulheres ainda estão muito pressionadas para isso, sobretudo nas idades entre os 20, início dos 30 e 40. Muitas vezes, sentem-se confusas se não estiverem numa relação, e isso aumenta a disponibilidade delas para aceitar ou aguentar certas coisas. Acreditam que depois a relação melhora; e quando começamos nisto, já estamos com os nossos limites expostos, no caminho para uma relação tóxica. Então, pode ser muito importante reconstruir estas crenças sobre o amor e sobre o papel que a pessoa quer ter numa relação.
Este livro incide em particular sobre a “toxicidade” nas relações amorosas mas, como explicou, há relações tóxicas entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. É mais difícil haver um afastamento de familiares tóxicos? Por se tratar de família, a pessoa sente uma culpa maior em romper?
Sim, sendo que a culpa do afastamento existe em todas as relações tóxicas, mesmo com parceiros amorosos. Mas com os familiares, por exemplo um pai ou uma mãe, é mais difícil porque a relação também é de outra natureza; são as pessoas que me criaram e me colocaram no Mundo. Nós não estamos muito preparados para o corte relacional com os pais; acontece, e acontece muito mais do que as pessoas imaginam, haver cortes de relação com os pais. E cada família terá as suas próprias razões, mas é uma coisa sempre vivida de facto com muita culpa. E lá está, também com muita vergonha, porque ninguém diz de ânimo leve que não fala com a mãe ou com o pai há anos – mesmo que sinta que foi uma dor dilacerante que a levou a tal. Mas, todas as relações que parecem mais “obrigatórias”, parece não haver escolha… Porque o namorado pode deixar de ser namorado, mas a minha mãe não vai deixar de ser a minha mãe.
Mãe só há uma, como se costuma dizer.
Exacto. Todas essas relações tornam este afastamento mais difícil, até porque muitas vezes não pode haver um afastamento físico. E com os pais ainda há uma outra coisa: teoricamente, na maioria dos casos, aquelas pessoas criaram-nos, desde o momento “zero”, em que não conhecíamos outra coisa. Então, pode imaginar-se a derrocada de identidade que isso pode fazer – é que nem chega a haver derrocada, porque aquela identidade nunca esteve verdadeiramente livre para se constituir em si mesma, a não ser sobre aquela depressão, agressividade, e peso da pessoa tóxica. E isso é muito penalizador do desenvolvimento dos miúdos, que serão pessoas adultas, e demora muito até que eles percebam que estavam a viver em famílias num clima de verdadeira opressão, violência e de desqualificação total da sua liberdade, e de como foram restringidas no seu crescimento e no seu desenvolvimento. Isto é uma marca muito maior. Todos nós sabemos, por mais saudável que seja nossa família, que trazemos sempre essa história connosco. Porque são aquelas pessoas que estavam lá quando não havia mais nada, houve um momento em que o mundo era só aquilo. Depois, as relações com os chefes, por exemplo, também podem ser muito complicadas, porque às vezes a pessoa não pode simplesmente vir-se embora. Pode sempre sair de um emprego, mas se calhar não pode no momento, ou da maneira que quer. E essa relação também é “obrigatória”, porque pelo menos durante um tempo, até que as coisas mudem, a pessoa está sujeita àquela relação e sabe que todos os dias tem de lidar com isso. E aqui não há tanto a questão da culpa, mas é a sensação de poder que existe. A pessoa sente que o chefe a trata mal, faz-lhe mal, inibe-a na maneira de estar, de ser e de trabalhar. E também cria verdadeiras hecatombes de falta de confiança, em que a pessoa não consegue fazer o seu trabalho. E não pode sair da relação no instante em que quer.
Sim, implica todo um processo.
Sim, nós dizemos que se a pessoa está a sofrer muito, tem de sair. E sim, tem de sair, mas isto é diferente de dizer logo “saia!”. Temos de ser realistas. Não se pode esperar que se diga à pessoa que o seu chefe é um grandessíssimo narcisista, e a pessoa se vá logo despedir e nunca mais volte. E isso pode ser também muito destrutivo; é como se fosse água mole em pedra dura. Mas a água não é assim tão mole, e vai minando, desfazendo, até a pessoa sentir que não tem opções. E isto vale para qualquer uma destas relações.
As últimas três fotografias foram tiradas por Daniela Ventura
Há um ano, o Centro para as Liberdades Civis em Kiev foi um dos três galardoados com o Prémio Nobel da Paz, juntamente com o bielorrusso Ales Bialiatski e a International Memorial Board, uma associação russa. A advogada Oleksandra Matviychuk é, aos 39 anos, o rosto desta organização ucraniana que ajudou a fundar em 2007 para lutar pela democracia no seu país. Quase 20 meses depois da invasão da Rússia, a activista dos direitos humanos conversa com o jornalista Boštjan Videmšek numa entrevista publicada em simultâneo no PÁGINA UM e no jornal esloveno DELO.
Recentemente, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia expressaram o seu apoio conjunto à Ucrânia em Kiev. O mesmo se pode dizer de uma reunião em Varsóvia, à qual assistiu. Sente que este apoio é sincero, forte, unido, suficiente? Ou sente que talvez já exista um cansaço na comunidade internacional?
Apesar de a guerra já durar há quase vinte meses, o foco da comunidade internacional continua na Ucrânia. Isso é lógico. Agora, os ucranianos não estão apenas a lutar por nós próprios, mas também pelos outros. Estamos a assistir ao desmantelamento da Ordem Mundial que foi criada após a Segunda Guerra Mundial.
Foto: Center for Civil Liberties
Neste momento, por parte dos seus aliados, o que é que a Ucrânia precisa mais – e sente falta?
Quando a grande ofensiva russa começou em Fevereiro passado, o Mundo reagiu com a ideia de que a Ucrânia não deve cair. Como resultado disso, começou a receber os primeiros carregamentos de armas, enquanto as primeiras sanções sérias foram impostas contra a Rússia pela comunidade internacional, pelas quais estamos, naturalmente, muito gratos. Tudo isto permitiu-nos resistir à invasão russa em larga escala. Mas agora chegou a hora de mudar essa narrativa: vamos ajudar a Ucrânia a vencer rapidamente. Há uma enorme diferença entre estas duas abordagens – a Ucrânia não deve cair e a Ucrânia tem de ganhar rapidamente. E é uma diferença que pode ser medida na prática. O tipo de arma, a rapidez da tomada de decisões e a severidade das sanções e muitos outros factores são decisivos. O problema é que nós, ucranianos, não temos tempo. O tempo, na Ucrânia, traduz-se em muitas vidas humanas perdidas nos campos de batalha, no interior e nos territórios ocupados.
A maioria dos meus amigos e conhecidos ucranianos estão exaustos, cansados, traumatizados. Por causa da Guerra e da insegurança, porque foram ‘arrancados’ das suas vidas. Como é que se sente? Onde encontra forças para continuar, para lutar constantemente no campo civil?
É difícil viver numa altura em que há uma grande guerra. O meu humor muda constantemente; para cima e para baixo, e para cima e para baixo. Vivemos em completa incerteza. Perdemos completamente o controlo sobre as nossas vidas. Não podemos planear nada, nem mesmo no dia seguinte, nem na hora seguinte! Um novo ataque russo pode acontecer a qualquer momento. Isso também significa que estamos constantemente receosos pelos nossos entes queridos, amigos e conhecidos – especialmente aqueles que se juntaram às forças armadas ucranianas ou vivem nos territórios ocupados. Ou em qualquer outro lugar do país. Nenhum lugar da Ucrânia está a salvo das bombas russas. Esta é a nossa realidade. Aquilo que me ajuda, e a muitas pessoas que conheço, para continuar a nossa luta e os nossos esforços, são duas coisas. A primeira é o nosso objectivo comum; lutamos pela liberdade. Pela liberdade em todos os níveis possíveis. Porque queremos ser um país livre e independente, não uma colónia russa. Pela liberdade de sermos ucranianos e de não apagarmos a nossa identidade e nos tornarmos russos à força. Pela liberdade das nossas decisões democráticas e de construir um país onde os direitos de todos sejam respeitados, um país onde as autoridades sejam responsáveis perante o povo, onde o poder judicial seja independente e onde a polícia não seja violenta para com os manifestantes.
Foto: Right Livelihood
A coisa que me faz continuar – e que nos faz continuar – é o desejo de ser um exemplo para os outros. Não desejo que nenhum país ou nação passe pela nossa experiência, mas estes tempos dramáticos deram-nos a oportunidade de trazer à tona o melhor de nós: que somos corajosos, lutamos pela liberdade, tomamos decisões difíceis, mas correctas, e que nos ajudamos uns aos outros. Somente através da ajuda mútua podemos experienciar aquilo que um ser humano realmente é. Um exemplo: quando a invasão russa em larga escala começou, as organizações internacionais evacuaram os seus cidadãos da Ucrânia, mas as pessoas comuns permaneceram. E as pessoas comuns começaram a fazer coisas extraordinárias. Pessoas comuns resgataram pessoas comuns de cidades atacadas. As pessoas comuns romperam bloqueios e cordões para fornecer ajuda humanitária. Pessoas comuns sobreviveram sob constantes ataques de artilharia. E também sobreviveram ao último Inverno, quando a Rússia estava deliberadamente a destruir o sistema energético ucraniano. Eu também passei algum tempo em Kiev num apartamento sem água, electricidade, Internet, conexão móvel e aquecimento. Isto uniu ainda mais as pessoas comuns e inspirou-as a continuar a fazer coisas extraordinárias. É assim que lutamos contra a dor e o desespero.
Então concorda que o tecido social ucraniano ficou muito fortalecido durante a guerra, que está mais forte do que nunca?
É difícil dizer que está mais forte do que nunca, mas está extremamente forte. Dito de outra forma: não temos outra escolha. Nunca nos renderemos. Nunca desistiremos. Não nos tornaremos escravos russos. Se pararmos de lutar, nós, ucranianos, desapareceremos. Esta guerra tem um carácter genocida. Os russos estão a tentar destruir a nossa identidade. Não há existência sem luta.
Foto: Right Livelihood
Afirmou recentemente que a vitória ucraniana não significa apenas a expulsão do exército russo do território da Ucrânia, o restabelecimento da ordem internacional e a libertação das pessoas que vivem nos territórios ocupados. A vitória, disse, significa também uma transição democrática bem sucedida. Como consegui-lo?
Queremos construir instituições democráticas funcionais, eficientes e sustentáveis. Isso cumpriria a vontade de milhões de pessoas que arriscaram as suas vidas há nove anos, durante a revolução da dignidade e os protestos contra o regime corrupto. Nessa altura, quando se perguntava às pessoas nas ruas por que razão protestavam a favor da visão europeia da Ucrânia, elas ainda não conheciam a estrutura e o funcionamento das instituições europeias. Ainda hoje, o cidadão comum não sabe como funcionam o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu. Naquela época – e até hoje –, a escolha era sobre valores. As pessoas gostariam de viver no seu próprio país, que elas próprias construiriam. E onde as regras são as mesmas e completamente claras para todos. Onde o Governo não dita em quem o povo deve acreditar, e quem deve amar, e por aquilo que deve viver ou pelo que deve morrer… Queremos viver em liberdade. Queremos ser devolvidos à civilização europeia. Portanto, a escolha é uma escolha de valores. E é por isso que Vladimir Putin iniciou esta guerra, que não começou em 24 de Fevereiro de 2022, mas oito anos antes, quando o povo ucraniano conseguiu derrubar um regime autoritário, dando-nos a possibilidade de uma transição democrática. Putin queria evitar que isso acontecesse. Foi por isso que lançou uma agressão, ocupou a Crimeia e uma grande parte do Donbass e, em Fevereiro do ano passado, lançou uma grande invasão. Como qualquer ditador, Putin tem medo da ideia de liberdade.
Foto: Right Livelihood
Será a Ucrânia também uma vítima de estruturas internacionais extremamente débeis – lideradas pelas Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, este fóssil vivo que, com a sua (in)ação, permite todas as guerras modernas?
Vou ser honesta. O sistema internacional de garantia da paz e da segurança não funciona. As pessoas na Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iraque e Ucrânia sabem disso muito bem. Mas agora estão a tornar-se perceptíveis mesmo para as pessoas nas sociedades democráticas desenvolvidas. Precisamos de uma reforma fundamental e abrangente do sistema das Nações Unidas. Ouvimos recentemente uma proposta do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para aumentar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança. Mas esta não é uma reforma cardinal. Precisamos de uma abordagem totalmente nova. Um sistema completamente novo de garantia internacional da paz e da segurança, que não estará ligado ao Produto Interno Bruto (PIB) nem à dimensão geográfica dos membros do Conselho de Segurança. Deve estar vinculada pelo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades.
Oleksandra Matviychuk em Dezembro do ano passado, enquanto discursava em Oslo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz.
Não há absolutamente nenhuma indicação de que a Rússia esteja a considerar pôr fim à sua agressão na Ucrânia. Muito pelo contrário. Parece que as consequências da guerra colonial-imperial para Moscovo não são tão graves como se poderia pensar que seriam. Como parar então a Rússia?
O que precisamos para ganhar, é o que me pergunta? Os resultados das guerras não são decididos nas fronteiras nacionais. Não é apenas uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, entre dois países; é uma guerra entre dois sistemas. Entre o totalitarismo e a democracia. Putin não vai parar. Putin tem de ser travado. Se não for parado na Ucrânia, irá continuar. A Rússia é um império que tem o seu centro, mas sem fronteiras. Se um império tiver energia suficiente disponível, irá sempre expandir-se. Para travar a expansão deste império, muitos países, e não só a Ucrânia, precisam de sair da sua zona de conforto. Sim, estamos gratos pelas armas e pela ajuda financeira à economia ucraniana, mas a Rússia está a preparar-se para uma guerra prolongada. Esta guerra já mudou o quadro social da Rússia. Por conseguinte, todo o mundo democrático tem de fazer mais para contrariar este cenário russo. Ninguém quer uma guerra longa. Nós, ucranianos, queremos paz.
Foto: Right Livelihood
Está muito envolvida na documentação dos crimes de guerra russos. Como punir a Rússia por todos os crimes de guerra?
Quando falamos de justiça, estamos a falar das condições prévias para a paz em toda a região. Os militares russos cometeram crimes horríveis. Não só na Ucrânia. Ainda antes, na Chechénia, na Geórgia, … Também na Síria, no Mali e na Líbia. Nunca foram processados ou punidos. Por isso, começaram a acreditar que podem fazer o que quiserem de impune. Por conseguinte, é necessária a criação de um tribunal especial para a agressão russa; que Putin, toda a liderança política e comando militar russo sejam responsabilizados pelo planeamento, início e execução desta guerra. Documentámos um grande número de crimes: assassinatos planeados, tortura, violações, raptos, bombardeamentos selectivos de zonas residenciais… Tudo isto é o resultado da decisão da liderança russa em iniciar uma guerra. Por isso digo que, se queremos paz, a primeira condição é a justiça. Com uma acção tão decisiva, poderíamos evitar novos ataques russos e quebrar o ciclo vicioso da impunidade.
Jornalista veterano, Mário Carneiro anda no ramo há mais de 30 anos, já passou pelos três principais canais de televisão portugueses, e é, desde Março de 2020, director de Informação do portal Sapo. Juntamente com o também jornalista António Luís Marinho, publicou ainda os livros 1974:o ano que começou em Abril, 1975: o ano que terminou em Novembro, e Portugal à lei da bala. A febre do “wokismo” levou-o agora a despir a pele de “jornalista sério”, para encarnar uma postura mais humorística e provocadora: com Uma noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos faz uma paródia do clima de censura actual, que tudo quer “corrigir”, e reescreveu dez conhecidas histórias infantis, de forma a não ferir quaisquer susceptibilidades…
Não é o primeiro livro que escreve, mas este Noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos destoa bastante dos anteriores. Que motivo o levou a escrevê-lo?
Isto tem uma motivação muito antiga: há cerca de 30 anos, quando se começou a ouvir falar do politicamente correcto, tive a ideia de fazer uma coisa enorme, que era um dicionário de português para português politicamente correcto. Era um bocado a onda deste livro, só que em dicionário, e comecei. Só que 30 anos depois, ainda estava para em “Abóbora”, quer dizer, ainda não tinha passado da letra A. E é um trabalho muito chato, que nunca mais acaba, e é desgarrado, não tem a continuidade de uma narrativa. E, sinceramente, o que me motivava, por um lado, era achar que tinha de ser feito e, por outro lado, tinha medo que alguém fizesse aquilo antes de mim, e eu iria ficar doido por causa de todo o trabalho que tive e que ia para o lixo. Até que decidi que não era aquilo, de facto. E agora, mais recentemente, quando vi aquela censura – que não tem outro nome – aos contos de Roald Dahl, achei que era um bocado demais. Ao princípio, eu ria-me com isto. E depois, muitas pessoas com quem me dou, começaram-me a chamar a atenção que, se calhar, não era motivo para rir tanto assim. Mesmo assim, eu continuava-me a rir, porque tenho uma atitude de riso perante a vida e perante o bizarro. Mas comecei a achar que isto se calhar não é tão inocente e não é tão ‘simplesmente parvo’ como parece, se calhar merece uma outra abordagem. E achei que a abordagem interessante era mesmo esta. Então, pensei, ok, vou jogar o jogo deles: vou pegar nos contos tradicionais, e vou fazer uma versão dos contos – não como eles fariam –, mas muito para lá do que eles fariam, e expor todo o ridículo deste tipo de argumentação e de comportamento e de censura.
Portanto, já “detectou” os primeiros sinais do politicamente correcto há 30 anos.
Sim, há 30 anos era em pequenas coisas. Eram pequenas coisas, se calhar mais ou menos inocentes e, talvez até, bem-intencionadas. Só que depois isto começou a alastrar e agora está em todo o lado. E a atitude, ou de ignorarmos, ou de rirmos, pode ser perigosa, porque de repente isto pode estar de tal forma instalado que é difícil de desconstruir. Portanto, dei o meu contributo para começar a ‘desconstrução’.
Parece ser consensual que este fenómeno começou nos Estados Unidos. Também tem essa percepção?
Sim, também tenho essa ideia. Isto é engraçado porque se nós olharmos para o que isto é – e estou a ser o mais honesto que consigo ser em relação a transmitir aquilo que eu penso mesmo –, eu acho que isto é uma mistura de 30% de patetice, 30% de paternalismo e 30% de puritanismo. E depois sobram 10% de boas intenções, e metade delas são parvas. Portanto, eu acho que isto tem muito pouco que se aproveite, mas nestes 3 P’s que eu vejo aqui, quer o puritanismo, quer o paternalismo, são conceitos muito presentes na cultura norte-americana. Este cuidado ultra paternalista e ultra puritano tem muito a ver com eles. E é um modelo que, eu sei, e todos sabemos, que até nos Estados Unidos é contestado por muita gente. E o que diríamos cá? É que o ultra paternalismo e puritanismo não têm raízes na nossa civilização, muito pelo contrário. Ou já tiveram, se calhar, mas não têm neste momento.
Mas mesmo assim está a pegar por cá…
Está a pegar por uma razão simples: porque é um discurso fácil. É um discurso “da moda”, e é um discurso que não obriga nem a ter background nem a fazer nada, é só ‘desmontar’. Ninguém tem de apresentar uma alternativa, tem só de desconstruir o que já está feito. Isto é extremamente fácil, e permite a desresponsabilização também. E é preocupante porque nós, em termos civilizacionais, temos todo o direito à indignação e é bom que nos indignemos, nos revoltemos e que lutemos pelos direitos dos outros e pela igualdade… Seja pelo que for, temos todo o direito, e se calhar até o dever, de nos indignarmos. Mas acontece que estamos a viver uma época em que as pessoas vão atrás de quem é o indignado e não de qual é a indignação. Basta pensar que há uns anos estávamos todos, a meu ver, legitimamente indignados, porque os talibãs destruíram as estátuas dos Buda com dinamite. Agora, não conseguimos ter o mesmo tipo de indignação quando vemos estátuas nossas, da nossa civilização, da nossa cultura ocidental, a serem pichadas, derrubadas e escondidas. Porquê? Porque a indignação é a mesma, mas o indignado é outro. Portanto, isto de escolher lados e causas conforme quem é um indignado e não conforme qual é a indignação, é altamente preocupante. E estas selectividade também é própria do politicamente correcto.
Talvez a razão dessa indignação selectiva seja porque não se trata de uma questão de valores?
Não, não!, trata-se de abrir as redes sociais e olhar e ver: “quem é que hoje está no pelourinho? O que é que lhe estão a atirar? Vou contribuir também com a minha batata ou com o meu pedregulho e atirar”. Não exige nada, desresponsabiliza, começa e acaba hoje, for preciso… Não há melhor.
Para além da reedição dos contos de Roald Dahl, houve mais algum episódio ou notícia que o tenha chocado particularmente?
Sim, há coisas que me chocam. Quer dizer, só nos podem chocar… A história da professora de Artes nos Estados Unidos, que foi demitida da escola porque mostrou aos alunos um PowerPoint ou uma fotografia que tinha a estátua de David, e como os pais não tinham sido avisados, no início do ano, de que ela ia mostrar material “pornográfico”… É assustador: “pornográfico”! E ela foi demitida. Quando nós começarmos a consentir isto… Obviamente que eu – como qualquer pessoa normal – acho que as crianças de qualquer idade, sobretudo em idade escolar e em meio escolar, não podem ser submetidas a ver pornografia. Como é óbvio. Só que, caramba, se a estátua do David é pornografia, onde é que nós vamos parar?
Tenho a percepção de que muitos jornalistas parecem “alinhar” com e promover, de certa forma, o politicamente correcto: em peças, reportagens, e artigos de opinião. Nesse aspecto, o Mário sente-se muito diferente da generalidade dos jornalistas?
Espero que não. Sinto-me diferente, mas espero que não seja diferente da maioria. Defendo com a vida que as pessoas possam escrever o que quiserem em artigos de opinião, porque são espaços de opinião, assinados. Portanto, se um jornalista com carteira profissional quiser fazer um artigo de opinião a defender rigorosamente o contrário daquilo que eu estou a defender, acho lindamente. Nas notícias, já não acho graça nenhuma que esteja presente qualquer tipo de contaminação por qualquer tipo de corrente ou de “moda ideológica” que esteja em vigor. Há aqui uma questão, que é: há muita gente que quer ficar bem na fotografia, e faz o que for preciso para ficar bem na fotografia. Eu não quero ficar bem na fotografia – eu nem faço questão de ficar na fotografia. Agora, não vou permitir é que transformem a História numa caricatura do que é a História. A História tem um papel lixado: é sempre um réu. Nunca nos julga. E nós, no passado, cometemos erros grotescos, idiotas, cruéis, hediondos. E enormes virtudes também! As mesmas mãos que fizeram a bomba atómica, fizeram as catedrais góticas. As mesmas mãos que compuseram as sinfonias de Beethoven, fizeram câmaras de tortura. Portanto, nós, para trás, temos do melhor e do pior. Agora, nós não podemos ter o desplante de achar que podemos julgar a História. Aliás, alterar a História: esse é que é o ponto-chave. Olhar para trás e ter um juízo crítico, e pensar “isto foi um disparate tão grande que aquilo que nós mais queremos é que não se repita”, é-nos exigível. Olhar para trás e ‘dourar a pílula’ ou alterar as coisas… Nascer com um sentimento de culpa! Esta coisa, que acaba por ser quase judaico-cristã, que é: nós, enquanto comunidade, estamos todos a pedir desculpa por coisas que os nossos antepassados fizeram. E que estão ultrapassadas! O mais importante é que nós, no futuro, não façamos igual ao que fizemos anteriormente, e integrarmos os erros e as pessoas que foram vítimas desses erros no passado. Agora, esta autoflagelação constante… Ainda agora nasci e já tenho culpa? Não faz sentido nenhum. E sinto, sim, que algum jornalismo – e aí, eu sou um optimista, espero mesmo estar certo –, e não a maior parte do jornalismo, segue essa corrente. É uma corrente facilitista. Portanto, não é de espantar.
Mas nota-se bem?
Sim, nota-se, aqui e ali. Não posso dizer que é este órgão de comunicação, ou este jornal ou aquela rádio, não. Se isto continuar assim, daqui a uns anos, talvez até se note. Mas não, por enquanto, o que noto é mais a nível individual: esta ou aquela pessoa, ou este tipo de artigos. Aí sim, nota-se.
Portanto, diria que se calhar uma parte boa dos seus colegas na comunicação social mainstream não ia achar muita piada a este livro?
[pausa] Duas coisas. Primeiro: acho que alguns nem iam perceber. Não iam perceber. Explico-me, para não parecer que é uma sobranceria intelectual. Não iam perceber porque iam ficar na dúvida sobre o que eu estava, afinal, a fazer: se era um exercício de sarcasmo ou se era um exercício de exposição de uma causa. E em segundo lugar – já no outro dia disse a alguém, e sublinho –, este livro tem uma coisa óptima. É um excelente presente para dar uma pessoa de quem gostamos, e é também um excelente presente para darmos a uma pessoa de quem não gostamos [risos]. Portanto, acho que isto diz tudo. Mesmo dentro da classe profissional, tão depressa ofereceria este livro a um jornalista que eu admiro e de quem goste, como a um jornalista que não gosto tanto ou cujo trabalho não respeito tanto.
Este livro é uma reescrita de contos em jeito de paródia, mas já temos visto remakes de histórias e filmes da Disney, por exemplo, em nome da diversidade e da inclusão. Em relação às crianças, vê com alguma preocupação que estejam a viver em ambientes cada vez mais “assépticos” onde é já proibido chamar qualquer ‘nome’, em jeito de brincadeira, a um colega?
Não; ofender, acho sempre péssimo. Uma brincadeira só uma brincadeira quando as duas pessoas estão a brincar. Não defendo que as pessoas possam ser ofendidas, nem que possam ser ostracizadas por serem diferentes. Mas também não defendo uma “cultura” do melindre permanente: tudo pode melindrar as pessoas, tudo pode fazer mal e tem de se ter cuidado com tudo… Isso não. Educar é preparar as crianças para um mundo que vai ter dias de sol e dias de chuva. Portanto, não é só oferecer, ‘em termos comportamentais’, t-shirt e protector solar. É, também, oferecer botas e guarda-chuvas, porque há dias que não vão ser bons. Os miúdos vão ter dias bons e dias maus. E educar é prepará-los para os dias bons, prepará-los ainda melhor para os dias maus, e nunca esquecer que tanto nos dias bons como nos dias maus, uma coisa que têm de fazer é estar atentos para dar a mão a alguém que esteja ao lado e ajudar. É tão simples quanto isto. Tudo o resto, esta forma de estar na vida em que se tem de ter um cuidado excessivo para não melindrar, e em que já estamos nós a medir a capacidade de os outros ficarem melindrados… Isto é o paternalismo levado ao extremo. E uso um exemplo, que é: os cegos, em geral, não gostam de ser tratados por “invisuais”. Quem criou a expressão “invisual” foram as pessoas que veem, e começaram a tratar os cegos por assim. Sem lhes perguntar a opinião – e eles não gostam. É um ultra paternalismo. As pessoas têm uma doença que se chama cegueira, portanto, são cegas. Eles próprios não querem, ou não apreciam, ser tratados por “invisuais”. E este cuidado extremo, esta paranoia com o melindre, não prepara as crianças. E isso preocupa-me. As crianças terem só uma versão da História, isso já tem a ver com a educação que os pais lhes dão. Agora, não estão a preparar melhores adultos, de todo. Estão a preparar adultos indefesos, porque nem toda a gente está a fazer isso. Se toda a gente estivesse a fazê-lo – eu acharia na mesma que era patético, mas pronto –, as sociedades vindouras seriam assim. Mas não é o caso. Esses miúdos ultraprotegidos vão estar lado a lado, nos campos de futebol a jogar à bola, nas salas de aulas e nas filas para o emprego, com miúdos que foram educados com os princípios – e aqui vou ter de usar a expressão – “normais”. E vão estar em desvantagem.
Pois, porque já não nasceram e cresceram nesse ambiente e não ganharam “anticorpos”.
É engraçado; há uns anos, lembro-me de ter lido um artigo, que faz todo o sentido, e que dizia que as crianças estavam a perder imensas imunidades por terem deixado de ter animais dentro de casa, como cães e gatos. Antes, os miúdos andavam com os cães e com os gatos, metiam-lhes a mão e depois metiam na boca… E os miúdos apanhavam umas viroses, e ganhavam uma série de imunidades. Quando os cães e os gatos começaram a estar mais afastados, os miúdos começaram a perder imunidade, porque não estavam expostos a essas “agressões”. Portanto, eu não sou adepto de que os miúdos devam ser postos dentro de pocilgas e de currais, para andarem ali a rebolar na ‘caca’ dos animais e saem de lá todos fortes. Mas se calhar os cães e os gatos que nós tirámos de dentro de casa há uns anos, fazem falta. E aqui é a mesma coisa: esta ultra cultura de melindre que não se pode dizer nada ao menino, isto não prepara ninguém! Retira-lhes defesas naturais e anticorpos. Vamos ver o que acontece daqui a uns anos… Hoje, já nos queixamos que esta gente toda tem é muitos direitos e poucas obrigações. No outro dia, alguém dizia, com uma certa graça, que aquilo que estas gerações dizem que é uma exigência, para as anteriores era uma ambição. Andam-se a perder aqui passos pelo meio, e se calhar não é boa ideia.
Parece que é tudo cada vez mais fácil?
Sim, e é mentira, porque não é nada fácil. Se há coisa que nós aprendemos à medida que vamos vivendo, é que a vida não é fácil. Mas se calhar também faz parte da magia dela.
Disse que este politicamente correcto é uma mistura de puritanismo, com paternalismo e patetice. Portanto, não vê que haja, também, más intenções por parte de algumas pessoas?
Pois, eu sei que existe um bocadinho, digamos, a tese de que isto é um movimento, e que tem qualquer coisa por detrás. Eu acho que isto não é orgânico, e acho que a estupidez, felizmente, não é orgânica. Portanto, há núcleos de estupidez e, actualmente, com as redes sociais, as pessoas começam a encontrar mais pontos de contacto e razões para se identificarem. E, se calhar, começam-se a sentir mais normais por serem estúpidas. O que eu acho é que existe muita estupidez, que está espalhada, e com a facilidade que temos hoje com as comunicações, esta estupidez se calhar liga-se com mais facilidade, e dá a ideia de que é um movimento. Não me parece que seja um movimento, mas se calhar posso estar enganado e a ser ingénuo. Talvez haja três ou quatro pessoas mais organizadas que querem fazer alguma coisa disto, mas não me parece que seja.
Uma das consequências deste fenómeno, é que aqueles que se opõem, acabam por se alinhar mais com movimentos de direita como uma forma de tentar combatê-lo.
Sim, é mais ou menos fácil isso acontecer, mas também é um bocado tonto. Vamos lá ver: o puritanismo, levado ao extremo, é um conceito muito mais caro à direita do que à esquerda. É quase uma questão de rigidez moral. A esquerda é que tinha, ou costuma ter, quase o exclusivo das grandes liberdades morais, dos livres-arbítrios morais… Eu sei que de vez em quando parece colar, mas depois acaba por ser contra-natura. Lá está, eu acho que isto é estupidez, e a estupidez é transversal. Há estupidez à esquerda e à direita, génios à esquerda e à direita… Isto é um comboio de estúpidos [risos]. Não, também estou a exagerar… Mas é uma coligação de estupidezes.
E na sua visão, combate-se com o humor?E o jornalismo, também pode ter um papel?
O jornalismo, se for sério, tem sempre um papel. E o jornalismo tem de ser sério. Tem sempre um papel, que é pôr um travão a coisas que não façam sentido. Portanto, o jornalismo tem o seu papel – não pode ser permeável às modas. Não pode! Nem às modas linguísticas, nem às modas ideológicas ou morais. O jornalismo é um espelho da sociedade e do tempo em que vivemos. Se calhar, com o tempo, esta permeabilidade torna-se uma inevitabilidade. Agora, enquanto é só uma moda, o jornalismo não pode andar atrás de modas.
Quanto ao humor, eu diria que é uma boa ferramenta. Usando a linguagem dos contos – que é de contos que estamos a falar –, isto é um bocadinho a história do traje novo do rei, do miúdo que diz “o rei vai nu”. Este exercício de apontar o ridículo de o rei ir nu, e toda a gente estar a gabar a roupa nova do rei, é um exercício que tem um bocadinho de humor, um bocadinho de sarcasmo, mas também tem um bocadinho de tristeza por ter de estar a fazer isso. Mas acho que tem de ser feito. Eu não ficava bem com a minha consciência se visse isto a acontecer e não fizesse nada, se me mantivesse só a comentar com amigos, a dizer “que estupidez, já viste”, e por aí fora. Eu acho que o humor não vence guerras, mas resiste.
Pois, há quem ache que o melhor a fazer é mesmo ridicularizar e usar o humor como “arma”.
Sim, é resistência. Isto não é uma guerra, e ainda bem que não é. Mas também se fosse uma guerra – lá está –, o humor não vence guerras, o humor ajuda na assistência. A Segunda Guerra Mundial tem excelentes anedotas, e muitas delas – até li um livro há uns anos –, contadas por judeus que estavam a passar o pior que se pode imaginar e que perceberam que, se calhar com o humor, não ganhavam a guerra, mas resistiam.
Até agora, já teve algumas reacções ou feedback ‘engraçados’ ao livro?
Até agora, as pessoas têm sido todas muito simpáticas e têm gostado muito, eu acho [risos]. Muito honestamente, não é por ter sido eu a escrever, mas acho que o livro está muito divertido. Eu diverti-me imenso a escrevê-lo. Acho que o livro está divertido e que as pessoas se divertem a ler. E ainda não tive – eventualmente terei, e estou pronto para isso, para debater alguma coisa que alguém não goste, ou que alguém, justificadamente, queira contrapor… Mas não, até agora, as reacções têm sido mesmo muito positivas.
Fronteiras e “muros”: se o mundo precisa de mais ou de menos é uma questão polémica e fracturante. Há quem defenda um reforço das fronteiras a nível global, e quem gostasse que as linhas que dividem as nações fossem mais permeáveis. Escritor, locutor e agente literário escocês, James Crawford investigou os arquivos arqueológicos e arquitectónicos durante mais de uma década e está entre os que acreditam ser possível um Mundo onde as fronteiras dividem menos e agregam mais. Através de dados históricos, viagens, e até Mitologia, este escocês procurou entender como começaram e evoluíram, até aos dias de hoje, as dinâmicas em torno das fronteiras. O resultado foi o livro O poder das fronteiras, recentemente editado em Portugal pela Saída de Emergência, e que foi o foco de uma conversa com o PÁGINA UM.
Em O poder das fronteiras, explica que foi uma semana específica de 2018 que despertou em si a vontade de compreender a origem das fronteiras e a forma como moldam o nosso Mundo. Quando decidiu escrever este livro, o que tinha em mente?
Foi o tipo de sensação que se tem quando a pressão acumulada sobre alguma coisa se começa a intensificar. Claramente, existem problemas em torno das fronteiras, e sempre existiram, mas pareciam estar a tornar-se cada vez mais sérios. E eu tinha esta questão: serão as fronteiras um sintoma? Toda a tensão, conflitos e pressão em redor das linhas fronteiriças, seriam um sintoma de outras questões, ou, até certo ponto, seriam as próprias fronteiras que estavam a causar estes problemas? A forma como operam já não resulta… Foi essa questão que eu me propus a responder. Esse sentimento, de que falo no início do livro, essa semana em que eu via, em todo o lado, notícias sobre a fronteira dos Estados Unidos com o México, ou o conflito israelo-palestiniano, ou as Coreias do Sul e do Norte; e depois, o então primeiro-ministro do meu país a dizer: “fizemos um acordo que vai acabar, de vez, com a livre circulação”, como se isso fosse uma coisa boa. Senti que o Mundo tinha enlouquecido, o meu país tinha enlouquecido.
Não percebeu os motivos dessa alegria…
Perguntei: que é que estava a acontecer? Então, tudo aquilo me colocou numa missão, digamos assim… Eu acho que as pessoas não entendem realmente de onde vêm as fronteiras. Qual é a sua origem. Onde começaram. Como mudaram ao longo do tempo. E como estão a funcionar actualmente. E será que as fronteiras conseguem realmente subsistir no Mundo Moderno? Há tantas situações, e não apenas com fronteiras, mas com outros assuntos, em que estabelecemos uma maneira de fazer as coisas, e depois o Mundo muda e essa maneira deixa de funcionar. Mas agarramo-nos a isso, porque é o que conhecemos; e eu acho que as fronteiras são um dos exemplos mais extremos disso. Foram criadas para resolver um problema específico, que foi uma guerra religiosa em meados do século XVII. Mas não funcionam quando lidamos com fenómenos como a globalização, a Internet, as alterações climáticas e a migração em massa, porque são problemas diferentes. Então, o livro é sobre tentar entender se as fronteiras, como operam actualmente, serão sustentáveis. E se não forem, o que podemos fazer?
Para falar no presente e no futuro, recua até à fronteira mais antiga que se conhece: a Mesopotâmia…
Falar sobre essa primeira fronteira, este pedaço de um pilar que marcou aquilo que temos a certeza de que foi uma fronteira; vê-la e retirá-la do armazém do Museu Britânico e tê-la à minha frente… Não era muito grande, e estava cheia de inscrições. Pela tradução, alguns sugerem que o que está lá escrito foi a primeira tentativa de fazer História. Antes disso, tudo acontecia num eterno presente; não se tentava juntar uma sequência de eventos, que é como reconstruímos a História. Esta fronteira “explicava” porque é que lá estava. Nessa primeira tentativa de escrever História, temos o primeiro registo de sempre do uso da frase “Terra de Ninguém”. Tocar naquele objecto com os meus dedos, e pensar no facto de ter sido escrito 4500 anos antes de eu lhe ter tocado, e saber o impacto que essa frase teve no Mundo ao longo do tempo, sobretudo no início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial… E a forma como a Primeira Guerra Mundial foi quase como uma guerra fronteiriça, em que se criaram estas duas longas linhas, que vão desde o Mar do Norte até à fronteira da Suíça, nos Alpes, e enviaram pessoas através dessa linha para lutarem umas contra as outras; é tão grotesco. Mas o facto de haver uma conexão entre esse pilar fronteiriço, que eu toquei, que é de 2400 a.C., e a Primeira Guerra Mundial, foi realmente chocante.
Visualização da “primeira” fronteira do mundo no Museu Britânico
Fez várias viagens para escrever este livro. Que descoberta ou momento destacaria?
Ir para West Bank, e ficar no Walled Off Hotel, do artista Banksy, mesmo ao pé do muro da Cisjordânia, foi uma experiência muito estranha. O hotel é ao mesmo tempo uma piada e uma provocação, e uma forma de arte de protesto, mas também é muito real para as pessoas que vivem lá, para os palestinianos. Eu acho que nós, no Ocidente, não conseguimos sequer imaginar como será viver ao lado de um muro de cimento de oito metros de altura, que nos separa de uma terra que sempre conhecemos. É algo tão surreal. E sei que é muito difícil, mas se tirarmos a religião e a política do West Bank, durante um segundo, o que temos é quase o futuro sombrio das fronteiras. Se as coisas correrem mal no Mundo, veremos mais destes muros a aparecer em todo o lado e, em certa medida, é o que estamos a ver. E já não se trata de dividir dois países, que foi o que as fronteiras começaram por fazer. Agora, as fronteiras servem para impedir a entrada de certas pessoas e para a divisão entre ricos e pobres. Essa parece ser a tendência; tentar conter o fluxo de migração em massa a nível global, em vez de ser uma questão entre duas nações. É sobre a circulação de pessoas, e o que se vê em Israel é um exemplo de quão extremo isso se pode tornar.
Vista da varanda do Walled Off Hotel, do famoso artista britânico Banksy, para o muro da Cisjordânia, em Belém. O hotel é conhecido por ter “a pior vista do mundo”.
Fala também na queda do Muro de Berlim, e de como esse momento fez com que alguns antecipassem um mundo com menos fronteiras, mas que não foi bem assim. Na sua opinião, o mundo ficou mais ou menos dividido, desde então?
As evidências sugerem uma maior divisão. A queda do Muro de Berlim parecia abrir a possibilidade, não de um Mundo sem fronteiras, mas de um Mundo onde o impacto das fronteiras se faria sentir menos. E nós, obviamente, vivemos isso, experienciámo-lo dentro da União Europeia, com o Acordo de Schengen. Grande parte das infraestruturas fronteiriças entre países europeus foram desmanteladas e podíamos circular com bastante liberdade; milhões e milhões de pessoas podiam circular livremente. Esta era a liberdade de movimento, que Theresa May, a antiga primeira-ministra britânica, falou em terminar, como se isso fosse algo positivo. Quando o Muro de Berlim caiu, havia apenas 12 muros fronteiriços em todo o mundo. Neste momento, há mais de 74, e há mais a serem construídos. A maioria foi construída desde o início dos anos 2000, nos últimos 20 anos. Então, apenas com base na evidência física de separação, é um aumento de seis vezes desde 1989.
Um paradoxo…
De certa forma, a fronteira que era o Muro de Berlim, que fazia parte da Cortina de Ferro, dividiu o mundo em dois, mas agora dividimos o Mundo em muitas partes diferentes. Porém, sem dúvida, o sentido do Norte global e do Sul global é onde estão as maiores divisões e de onde brotam as maiores tensões. Seja com a fronteira dos Estados Unidos e do México, seja o Mar Mediterrâneo, como esta espécie de fronteira marítima que as pessoas estão sempre a tentar atravessar, e todos os problemas que tivemos com barcos de migrantes. Depois, vemos coisas como o Governo britânico a tentar enviar refugiados para Ruanda, a terceirizar uma fronteira a 643 quilómetros a sul do Reino Unido. Todas estas tendências, na minha opinião, são uma última tentativa de nos agarrarmos a uma forma antiga de fazer as coisas.
Não está muito optimista…
E diria que há duas maneiras de ver isto: uma optimista, que é interpretar como um estágio de negação que se tem sempre antes de as coisas mudarem, e quase forçam mais, porque se trata de simbolismo… E acho que muitos dos muros que construímos, seja o muro de Donald Trump no México, ou o movimento “parem os barcos” na Inglaterra, ou os muros que estão a ser construídos entre a Grécia e a Turquia, ou entre a Polónia e a Bielorrússia… Sabemos que estes muros não são, na verdade, muito eficazes a impedir que as pessoas circulem. São construídos para apelar aos eleitores, para que os partidos de direita, em particular, pareçam fortes. Por isso, tornam-se um símbolo, mesmo que sejam ineficazes enquanto políticas.
No seu entender, foi o que aconteceu com o Brexit?
Acho que foi uma espécie de olhar nostálgico para o passado, um dos aspectos que espoletou o Brexit, no meu país: uma sensação de tentar recuperar a grandeza do Império Britânico, virando as costas à Europa. E obviamente falhou redondamente. Podemos ver economicamente o que aconteceu ao meu país desde então, mas também podemos ver o poder de uma fronteira através disso. As fronteiras permitiram o desenvolvimento das nações. Antes de haver fronteiras, a palavra “nação” não existia. Não pensávamos em identidade nacional, porque as fronteiras não eram desenhadas tão duramente como foram depois de meados do século XVII. E agora há quase a sensação de que as próprias fronteiras são a fonte do nosso nacionalismo, por isso definimo-nos em oposição a outras pessoas. E acho que foi isso que aconteceu no Reino Unido, definirmo-nos em oposição à Europa. Podemos ver que na América há uma política isolacionista que define a posição americana em relação aos outros países, que tenta virar as costas para o mundo e ter essa política de “América Primeiro”. Mas com o impacte das alterações climáticas, a pressão que vai ser colocada nas fronteiras será tão extrema, que penso que vamos ser confrontados com a realidade de mudar a forma como funcionam.
Então, que modelo imagina para o funcionamento das fronteiras? Um modelo mais cooperativo, ou um mundo sem fronteiras?
Eu não acredito que alguma vez possa haver um Mundo sem fronteiras. Logisticamente, seria muito complicado. Mas já tivemos conflitos por causa de fronteiras, vimos isso a acontecer. Aconteceu na Europa, e lidámos com isso de uma forma, de certo modo, que o mundo nunca viu. Sempre que alguém fala dos problemas com as fronteiras, as pessoas dizem: “não é possível um mundo sem fronteiras, é utópico e louco”. E sem dúvida que não é o que eu defendo. Se recuarmos, como eu tentei fazer no livro, e desconstruirmos o que é uma fronteira, vemos que, no final de contas, cada fronteira é uma história. É uma história que contamos. Nenhuma fronteira política alguma vez existiu de forma natural, e nunca existirá. Quando se ergue uma fronteira política, trata-se de uma história. E quem é que a está a contar? É contada por algum motivo em particular. Mas também é possível contar uma versão diferente da história, e é aí que reside a questão: estas histórias não são eternas. As fronteiras, que criamos, sugerindo que nunca se movem, não é verdade, porque movem-se o tempo inteiro. No livro dou exemplos. Um dos mais reveladores é a dos Estados Unidos com o México, que estava num lugar completamente diferente até há 200 anos. Cerca de 805 quilómetros quadrados do que é agora os Estados Unidos era México até o ano de 1848. Portanto, a ideia de que as fronteiras actuais são uma estrutura fixa e eterna, é obviamente ridícula.
No livro fala também no conceito de nicho climático humano, como a única verdadeira fronteira que existe para a Humanidade…
É a ideia de que cada espécie na Terra tem um nicho climático, e um dos exemplos mais óbvios é a “linha de árvores”, em que acima de uma determinada altura numa montanha, uma árvore não cresce porque a temperatura é demasiado baixa. Há um matemático ecologista com quem falei sobre isto, que investigou sobre se haverá ou não um nicho climático humano. Ou seja, se as condições sob as quais os humanos tenderam a prosperar, e as áreas do planeta onde têm vivido, estão dentro deste nicho climático. E ele descobriu que sim, muito claramente, e que os seres humanos sempre tenderam a viver em lugares com temperaturas entre 11 e os 15 graus centígrados. E cerca de 95 a 97% de toda a população global vive dentro desse nicho, mas com o impacte das mudanças climáticas, esse nicho vai mudar nos próximos 50 anos mais do que mudou nos últimos 6.000 anos. E se mudar como foi projectado, com as estimativas para o aumentar das temperaturas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, em vez de ser 97% da Humanidade a viver nesse nicho, será apenas 70 ou 75%. Portanto, cerca de 25% da população mundial viverá em sítios com temperaturas mais elevadas do que se costumava viver. E estamos a falar de dois mil milhões de pessoas. Portanto, a questão é, se dois mil milhões de pessoas viverem em regiões sem condições, o que irão fazer? Presumivelmente, deslocar-se-ão, e isso colocará uma pressão sem precedentes nas fronteiras.
As bordas de um glaciar no vale de Ötztal, no Tirol, nos Alpes austríacos, na fronteira entre Áustria e Itália (Áustria à esquerda, Itália à direita)
Acredita que as alterações climáticas terão um impacte assim tão significativo, que obrigue a redefinir as fronteiras?
Temos de reflectir sobre a gestão de um fluxo de pessoas por causa das alterações climáticas. Obviamente, neste Verão, com as ondas de calor, as secas e os incêndios florestais no Sul da Europa e na América do Norte, acho que as pessoas estão a perceber quão severos podem ser os impactes das alterações climáticas. E isso faz com que as fronteiras, como estão actualmente, se tornem insustentáveis. Vemos que as outras espécies, sejam plantas ou animais, estão a deslocar-se. Mas as pessoas não. É como se tivéssemos desistido da liberdade de movimento que as outras espécies têm; e isso vai tornar-se cada vez mais um problema. Então, é nisso que temos de trabalhar em cooperação. E uma das coisas que o matemático ecologista me disse é que, na verdade, existem linhas fronteiriças na Natureza, que se chamam ecótonos. Por exemplo, quando se passa da savana para o deserto, ou para uma floresta tropical. Esses ecótonos são os lugares onde se encontra a maior biodiversidade, porque muitas coisas se juntam. E, portanto, a forma como uma fronteira funciona na Natureza é exactamente o oposto das fronteiras que criámos, que é um corte abrupto entre os dois lados. Na Natureza, é um lugar de troca, comunidade e agregação. E se pudéssemos repensar as fronteiras dessa forma, acho que seria uma transformação de como o Mundo funciona. E já há exemplos disso.
Numa moto de neve, no lago gelado que forma a fronteira entre a Suécia e a Finlândia
A Grande Muralha Verde, em África, de que fala no final do livro, é um desses exemplos?
Sim, esta ideia de criar uma espécie de mosaico na paisagem, de um extremo de África até ao outro, ao longo do Sahel, em parte para combater as alterações climáticas. Plantaram-se árvores, ajudou-se a agricultura, criou-se uma agrofloresta… É um muro que foi concebido para aproximar as pessoas, em vez de as afastar. Portanto, há exemplos, não é apenas um desejo utópico, e acho que esse é o ideal para o qual devíamos apontar. Mas precisamos de dialogar, e o perigo actual é que estamos simplesmente a virar costas aos problemas e a construir muros, mesmo sabendo não ser essa a solução. É uma medida de curto prazo, em grande parte para conseguir votos e para que certos partidos políticos se mantenham no poder.
Seria possível que se construíssem mais Grandes Muralhas Verdes? Para si, é uma expressão positiva que os muros, geralmente com uma conotação negativa, podem ter?
Sim, eu falei com uma das responsáveis pelo projecto, que trabalha na Grande Muralha Verde para as Nações Unidas, e ela disse que adoraria vê-las em todo o lado. E eu perguntei-lhe se conseguia imaginar uma na fronteira dos Estados Unidos com o México, e ela respondeu que não podia comentar esse assunto [risos]. Mas é um exemplo perfeito. O Sahel é um território que se tem degradado muito com as alterações climáticas. Está a caminho da desertificação. E a ideia de tentar fazer deste lugar um sítio de intercâmbio e comunidade, em vez de um lugar de confronto e oposição… Não há nada que nos impeça de fazer o mesmo, a não ser as narrativas políticas que contamos. E acho que é isso que é tão interessante sobre o que precisamos de fazer, e os paralelos com as alterações climáticas são exactamente os mesmos. Temos a tecnologia e o conhecimento necessários para mudar os nossos comportamentos. A questão é: podemos mudar a forma como nos comportamos? Não é se é possível fazê-lo, mas se é possível mudar a nossa mentalidade.
Estabelece também uma metáfora entre as fronteiras e as defesas do organismo humano contra os vírus, como a covid-19. A intenção era mostrar, através de comparações, como funcionam as fronteiras?
Sim, eu comecei a escrever o livro antes da pandemia, e estava a meio quando eclodiu. Uma das histórias que conto, quando estava na Noruega, é sobre o povo Sámi, a última população indígena da Europa, e o impacto das fronteiras. Quando me vim embora da Noruega, foi o dia em que o país fechou as suas fronteiras a todos os estrangeiros, em Março de 2020 [risos]. A partir daí, o Mundo encolheu progressivamente. Eu estava a viajar por causa do livro, e a partir daí, o Mundo encolheu à minha volta. Pelo menos, eu tinha um propósito, porque estava a escrever o livro. Antes, tinha pensado em escrever sobre a possibilidade de pandemias e o que elas faziam às fronteiras. E depois, dei por mim a viver uma pandemia. Por isso é que, em vez de dedicar apenas meio capítulo ao tema, foi praticamente um capítulo inteiro. E é fascinante ver como a “tecnologia” em torno das fronteiras se desenvolveu como uma forma de controlar a propagação de doenças, desde a Peste Negra até a cólera. Antes de se implementar um passaporte, era mais importante ter documentos a comprovar que não se tinha doenças, para poder atravessar lugares. Depois, falei com biólogos sobre as fronteiras. Porque começamos a pensar no que realmente acontece quando o SARS-CoV-2 entra no nosso corpo: o vírus está a cruzar um “limiar”, é uma metáfora para uma fronteira. E é tão interessante ouvir um virologista falar sobre o que acontece, porque, na verdade, o problema está, particularmente com a primeira onda, na reacção exagerada do corpo ao vírus. E como o corpo, os diferentes órgãos, reagem exageradamente a esta espécie de “invasão”, começam a autodestruir-se. Parece uma metáfora certeira! Tantos destes problemas são espoletados pelo medo, ao tentar ser-se forte nas fronteiras. E é esse stress constante e sentido de se estar sob ataque, que leva a um colapso. Então, parecia que havia paralelos realmente fortes entre a covid-19 e o que estava a acontecer, em geral, a nível geopolítico.
Faz quase uma visão “panorâmica” de diferentes tipos de fronteiras [risos].
Sim, acho que o livro foi sobre tentar entender todas as diferentes dimensões de fronteiras, sejam físicas, celulares ou paisagísticas. Eu não tenho formação em Biologia. Por isso, falar com um biólogo, que estava a ser pago pelo Governo americano para entender como a covid-19 actuava, foi incrível; ter a sua visão e depois ver como as fronteiras se tornaram tão importantes durante a pandemia… Estávamos a fechar as fronteiras, mas claro que o vírus passou de qualquer maneira. Portanto, foram importantes, mas totalmente ineficazes. A única verdadeira fronteira era a nossa própria pele, as nossas células. Isso foi poderoso para mim, na altura, porque não tínhamos a certeza se o Mundo voltaria a recuperar qualquer sentido de normalidade. Todos esses factores conjugados tiveram um grande peso na experiência emocional que foi escrever o livro.
Fala também de fronteiras tecnológicas, nomeadamente a Grande Firewall da China, que mostrou ser possível colocar barreiras ao suposto Mundo livre e que seria a Internet.
A Grande Firewall é algo que considero tão trágico. O início da Internet foi sobre quebrar fronteiras, e qualquer pessoa de qualquer ponto do planeta se poder juntar. E o facto de certos países olharem para isto e dizerem: “não, não gostamos disto, queremos ser capazes de controlar o fluxo de informação e ideias, tal como uma fronteira controla o fluxo de pessoas”… É tão contraditório e totalmente contra o propósito para o qual a Internet foi criada. E é um sintoma da febre de fronteiras que se desenvolveu, mas, além disso, não funciona. As coisas passam, há sempre lacunas, sabemos que os “muros” não resultam. Todas as evidências nos mostram isso. Sempre que se ergue um muro, e a história comprova-o, em algum momento cairá. Não há nenhum muro que tenha durado desde o momento em que foi criado até agora. Eles desaparecem, deslocam-se, alteram-se. E tal como agora estamos a debruçar-nos sobre as alterações climáticas, e com a forma como lidamos com as emissões de carbono; há tanto dinheiro investido na indústria fóssil, tantos interesses instalados, que é difícil ultrapassar isso. E acho que é semelhante ao que acontece com as fronteiras. É um apego, mas acho que é aquele último apego antes da mudança. É isso que eu espero. E temos de ter esperança, porque caso contrário, caímos em desespero. Mas há exemplos, não é que não existam. E foi por isso que escrevi o livro, para contar estas histórias e transmiti-las ao maior número de pessoas possível. O meu livro não é um manifesto, não dou um plano de acção sobre como mudar as fronteiras, mas espero que no final da leitura, se entenda porque é que não estão a funcionar, porque estão a quebrar, e o que temos de fazer para nos adaptarmos e, espero eu, mudarmos para melhor.
Aos 34 anos, Tiago Paiva já não é só um youtuber no nicho cada vez mais gigantesco das redes sociais. A partir do momento em que, em Maio passado, da tribuna do Parlamento, no decurso de uma visita informal a convite da Iniciativa Liberal, lançou um insulto ao primeiro-ministro António Costa, a sua fama engrandeceu-se. Embora conte com cerca de 176 mil subscritores no seu canal de Youtube e mais de 290 mil seguidores no Instagram, quer libertar-se de amarras e prepara o lançamento da sua própria rede social, a Hodl, como forma de “ripostar” contra a crescente censura. O PÁGINA UM quis conhecer melhor este portuense de gema nesta primeira entrevista aos Irreverentes da Nação. Preparem os cintos e não se escandalizem por não haver asteriscos: vai haver quem goste e vai haver quem deteste. Menos mau, conquanto todos possam opinar.
És sobretudo conhecido como youtuber, mas começaste por apostar na música, e também trabalhaste como actor e argumentista. Afinal, qual era o teu sonho?
Quando miúdo, o meu objectivo era ser actor e músico. A minha referência era o Jared Leto, porque é um actor incrível e é um músico incrível [vocalista e guitarrista dos 30 Seconds to Mars]. Entretanto, comecei-me a aperceber que, vivendo no Porto, não sabia como fazer para ser actor. Eu tinha tocado violino quando era pequenino, dos 7 aos 12 anos – a minha mãe era professora de música, e o meu avô era da orquestra sinfónica –, mas depois desisti. Tinha uma banda, mais ou menos 16 anos, só que os meus companheiros não tinham o ritmo… Quando entro em alguma coisa, é para ser a sério, não gosto de estar a fazer alguma coisa só por fazer. Tem de haver um objectivo, senão para mim não faz sentido. Não consigo estar num projecto só pelo prazer; para isso vou jogar golfe com os meus amigos. E mesmo para jogar golfe, se não tiver um objectivo, já não tem piada. Infelizmente, sou assim [risos]. Se calhar, gostava de ser um bocadinho diferente, às vezes.
És ambicioso?
Sim, mas não acho que seja só uma questão de ser ambicioso. Acho que tenho um bocadinho de overthinker, e se vou fazer alguma coisa, tem de haver um objectivo. Por exemplo, não consigo estar deitado na praia, quieto, só a apanhar sol, sem fazer nada.
E qual o estilo dessa banda em que estiveste?
Era de punk-rock americano. As referências eram Sum 41, Blink-182 e principalmente Yellowcard,. Foi por causa dessa banda que eu voltei a tocar, com o violino, e em punk-rock. A minha namorada da altura era a guitarrista. Eles mostraram-me uma música com violino, e então voltei a tocar. Só que depois percebi que se não ensaiássemos mais, não íamos conseguir levar aquilo adiante. Tentei puxar por eles, até perceber que era difícil, era cada um para seu lado. Então, decidi experimentar tocar violino em discotecas, achei que podia ser uma cena gira. A nível da música, foi assim que comecei. A representação surgiu depois, quando já estava a ganhar um bom dinheiro. Nessa altura, ainda estava a estudar Arquitectura – a minha mãe queria que eu fosse arquitecto. Aquelas coisas…
E tu não querias ser arquitecto…
Opá, não. Estava a tirar o curso porque a minha mãe queria, e porque não havia nada que eu pudesse mostrar como alternativa. Então, foi com o violino que isso aconteceu, comecei a ganhar muito dinheiro, e disse-lhe que queria ir viver para Lisboa para estudar interpretação. Nessa altura, eu jogava golfe, era federado, e fazia os torneios todos. E o [actor] Lourenço Ortigão entrou nos Morangos com Açúcar; e eu conhecia-o porque jogava os torneios comigo. Eu liguei-lhe e perguntei-lhe como tinha conseguido, e ele disse: “olha, foi granda ‘pilada’, porque fui lá levar a minha namorada, eles viram-me e acharam que eu era parecido com o Zac Efron”. Sugeriu-me que experimentasse uns workshops de duas semanas para ver se gostava, e se gostasse podia fazer os de três meses. Fui para Lisboa fazer esses workshops, aproveitei e fiz mais um workshop de um ano de Produção e Música, mas na verdade pouco ia às aulas. Era muita iniciação, e eu já passava horas e horas a fio, até às 5 ou 6 da manhã, todos os dias, a produzir e a aprender por mim. Quando cheguei lá, aquilo que eles estavam a aprender, eu já sabia de cor.
Eu comecei a perceber que não havia castings, fui ao dos Morangos [com Açúcar] porque era a única merda que havia na altura para fazeres. E a probabilidade de entrares era quase nula. Então, entendi que não dava. Depois vi um filme do Ben Affleck e do Matt Damon, O bom rebelde, e fui pesquisar, e vi que eles basicamente criaram a oportunidade deles. Ou seja, escreveram o guião, e até ganharam o Óscar de Melhor Argumento, e foram os dois as personagens principais. E eu pensei: olha, vou fazer a mesma merda, vou criar uma série. Naquela altura ninguém via séries, e eu, há 15 anos já “papava” tudo: Friends, Seinfeld, How I met your mother, tudo. Mas eram raras as pessoas que viam séries, eu tinha alguns amigos que viam, mas não é como agora, que é uma cena normal. Tanto assim que então as séries eram consideradas a “segunda liga”; havia o cinema e depois vinham as séries. Hoje, já estão no mesmo patamar: actores como Idris Elba e Matthew McConaughey fazem todos séries, mas antigamente isso não acontecia. Se fizessem, era porque não estavam bem. Mas eu adorava, e decidi criar eu a minha própria oportunidade, e fiz a 4Play.
Foi também aí que começaste no Youtube?
Sim, eu comecei com o YouTube porque já tinha muitas ideias. Lembro-me de aos 16 anos, eu e o meu grupo de amigos termos como referência os Gato Fedorento [criados em 2003]. Eu já escrevia sketches e cenas assim engraçadas, e guardava na gaveta. Nunca tinha feito nada com isso, porque não era como hoje: os miúdos filmam tudo com o telefone, põem no Tiktok e já estão a bombar. Tenho a certeza que se houvesse Tiktok na altura teria sido desde cedo a bombar. Mas não havia, não havia câmaras nos telemóveis, e para teres uma câmara era preciso guita a sério. Acabei por deixar andar. Depois, fui fazendo uns vídeos de longe a longe, na inocência de achar que ficariam virais e que me catapultavam. Achava que se tivesse um vídeo viral no Youtube, se calhar conseguia arranjar mais trabalho como actor, que era o meu objectivo. Ao ser conhecido e ter visibilidade, se calhar ia conseguir arranjar certos trabalhos como actor…
Então, o teu principal objectivo era mesmo ser actor…
Sim, sempre foi, na verdade. Entretanto, já mudou o jogo, mas sim o objectivo era ser actor. Lancei meia dúzia de vídeos, e depois, ainda antes da pandemia, estava com a ideia de voltar a fazer YouTube, mas com mais consistência, e depois quando fui viver com o Ângelo Rodrigues… Nós tínhamos muitas conversas; filosóficas, de gajas, de tudo, e passávamos muito tempo juntos. Isto antes de ele ter aquele acidente. E uma cena que ele me ensinou, e bem, e que eu passo também para quem gosta, e para o meu público, é que temos de ter consistência se queremos fazer YouTube. Temos de lançar cenas todas as semanas, não é quando apetece. E eu já estava a preparar vídeos, tinha uma lista interminável de merdas no telefone.
Quantos subscritores tinhas nessa altura, em 2019?
Uns 30 e tal mil. Porque fiz a 4play [em 2017], e teve sucesso. Não o sucesso que eu tenho agora, mas havia pessoas que me conheciam. Não era uma pessoa superconhecida; claro que quando andava na rua, havia pessoas a pedir fotos ou a pedir a segunda temporada. Porque antes de pedirem uma foto, a primeira coisa era perguntarem-me pela segunda temporada [risos]. Ainda hoje, passados quase sete anos… Enfim, eu já ia voltar para o YouTube, e com o Ângelo a bater na tecla da consistência; pronto, pensei, então vamos lá fazer aqui uma cena com consistência. Comecei a preparar vídeos para filmar, até que tinha filmado já um, e foi quando entrou a covid. Por isso, os meus vídeos do início, quando comecei a fazer isto a sério, são praticamente todos de máscara; as pranks que eu fazia na rua. Agora é impossível porque as pessoas conhecem-me, já não dá. Tenho pena, na verdade, porque era um conteúdo muito giro.
Cresceu mais o Instagram do que propriamente o YouTube, que já estava a crescer, e cresce todos os dias. Agora, é claro que o Instagram cresceu quase em 100 mil seguidores, foi imenso [risos]. Foi bom.
E como foram as reacções ao vídeo? Mais positivas ou negativas?
Foram completamente positivas; a única cena foi que eu já estava assim meio: “epá, já chega”. Durante um mês não conseguia andar na rua sem ouvir: “Costa vai para o caralho”. Literalmente, se eu estivesse a conduzir ou a pé, onde quer que estivesse, era a primeira coisa que me diziam, dos 12 aos 60 anos. E eu já estava: “pronto, está bem, já chega” [risos].
Antes disso, já falavas sobre política?
Já tinha falado de política no meu podcast Devaneios e noutras situações, já tinha mandado umas “berlaitadas”. Gosto de as mandar, e cada vez tenho de mandar mais, porque nós estamos numa situação que tem de mudar urgentemente.
Mas sempre tiveste posições vincadas politicamente?
Sim, já tinha, sempre fui um bocadinho mais à direita, porque a esquerda não funciona. O centro, como nós vemos, também não, e eu pelo menos sou um bocadinho mais à direita. Não sou extrema-direita, mas sou mais à direita.
Dirias que os artistas tendem a identificar-se mais com a direita?
Não!, pelo contrário. No mundo artístico tens muitos fascistas [risos]. Não, no meio artístico é tudo Bloco de Esquerda ou à esquerda; a maior parte é de esquerda. Mas eu digo-te porquê: são todos falidos, e, em geral, as pessoas falidas e artistas são à esquerda; é sempre assim. Quem trabalha para caralho, como eu, quem faz negócios e ambiciona coisas, normalmente é de direita. Porquê? Porque é quem cria empregos que põe um país a andar. Não é, como nós agora, a tentarmos ser todos iguais, que nunca vamos ser. As políticas deles [de esquerda] são boas no papel, porque na realidade nunca iriam funcionar. Portanto, a maioria dos artistas, principalmente de teatro e essas merdas, é tudo de esquerda. Vivem daquele dinheiro, e não entendem que uma pessoa como eu, ou como outras que trabalham 16 horas por dia, se for preciso, para que as coisas aconteçam, têm “direitos” diferentes. Quer dizer, os direitos são os mesmos, mas a questão é que, se eu trabalho mais, tenho de ganhar mais. Ninguém me obriga a trabalhar mais, mas eu trabalho porque quero. Portanto, se tu queres trabalhar pouco, tudo bem, mas vais ganhar pouco. Eu não tenho de ganhar o mesmo que tu se eu trabalho o dobro, ou se a minha área dá mais dinheiro. Isto é como aquela história do futebol feminino, de quererem ganhar o mesmo que no futebol masculino; e é estúpido. Minha querida!, o futebol feminino não tem a mesma audiência e a mesma revenue que o futebol masculino; logo, não podes ser paga da mesma forma. É tão simples quanto isso. Da mesma forma, uma modelo feminina ganha muito mais do que os modelos masculinos, é o que é. É o negócio. E vemos algum homem a dizer que quer ganhar como elas? Ou na pornografia, por exemplo, as mulheres ganham muito mais do que os homens. Elas é que são as estrelas, não são eles. Faz parte, é o que é.
Esse facto de os artistas serem mais de esquerda é uma das causas para não serem tão contestatários e críticos do actual Governo? Não vemos muitos artistas a criticar os governantes, certamente não tanto como tu… Gostavas que os teus colegas falassem mais contra a situação do país?
É lógico, não é? O Partido Socialista (PS) está no poder há anos. Agora, têm maioria absoluta. Ou seja, eles decidem tudo, não há como não decidirem. E acho que não podemos ter um partido com maioria absoluta, é mau para o país. A verdade é que o PS não defende o país, eles defendem-se a eles próprios. Defendem os tachos que arranjam aos familiares, e por aí fora, e continuamos nisto. Querem que o povo seja burro, e que seja pobre para que dependa deles. Eu fiz um vídeo com a avó da minha namorada, e ela estava contente com os 125 euros que o Governo deu, mas o que ela não vê é que dão 125 e tiram do outro bolso. Ou seja, eles mentem ao povo, mandam areia para os olhos dos velhinhos, e a nossa população é muito envelhecida… E mete-me realmente nojo saber que o partido que manda no país é um partido que engana as pessoas, e engana velhinhos, para se manter no poder. Eles querem que sejamos pobres, na verdade, não querem que haja pessoas ricas. Assim dependemos deles, e depois quando nos dão alguma coisa, pensamos: “ah, eles são tão bons”… E isto tem de acabar.
E no teu círculo vês outras pessoas com a mesma opinião, mas que não falam, não são tão vocais, por receio?
Sim, claro. As pessoas têm receio, ou de serem canceladas, ou das marcas… Eu tenho amigos youtubers, dos “grandes”, que não vão dar opiniões políticas, ou actores que não dão opiniões políticas, porque os pode prejudicar no trabalho. É isso que eu gosto também no meu trabalho: eu estou-me a cagar, vou dizer o que me apetecer. Se os meus patrocinadores não gostarem, que vão à vida deles.
Não te vais condicionar pelo dinheiro?
Claro que não. Aliás, pelo contrário. Houve a situação toda do Costa, e em relação à pergunta que fizeste sobre as reacções, foi tudo positivo, e os únicos comentários que tive negativos foi no Twitter [actual X], que é a plataforma mais nojenta que existe. É tóxica, só estão lá pessoas tóxicas. Claro, vais ter comentários negativos no Instagram, e etc., mas na rua nunca ninguém me disse nada a não ser coisas boas. Disseram-me: “estamos contigo, estamos na luta, estes gajos têm de sair dali”. Portanto, foi este o resumo. Mas quando és figura pública, tens sempre comentários negativos e positivos. Até podias estar a acabar com a fome. Se eu agora tivesse 10 milhões na conta, e desse a um país qualquer em África, ia haver sempre alguém a dizer algo de negativo, mesmo com uma coisa tão positiva como essa. Portanto, não há como… Já estamos habituados a isso, mas no cômputo geral foi óptimo. Vendi muitas camisolas…
Portanto, foi bom para o negócio? [risos]
Foi bom para o negócio [risos]. Já não me posso queixar.
Falaste no Twitter. Estiveste uns meses sem lá ir, e regressaste depois deste vídeo do Costa? Foi por causa dessa “toxicidade”?
Eu nunca vou ao Twitter, na verdade. Não me interessa. Eu faço stories todos os dias; por acaso agora tenho feito menos, porque estou aqui para recomeçar a temporada do YouTube, negócios a acontecer novos, e estou um pouco cansado [risos].
Portanto, podemos esperar que continues a criticar o Governo…
Sim, claro que sim. Nós temos de falar contra o sistema, senão isto não muda. Não dedico o meu canal do YouTube a isso, logicamente, não gosto de meter as coisas de calçadeira… Mas quando há uma oportunidade de falar sobre as coisas, falo. Não vou fazer um vídeo só para falar nisso, isso deixo para os “Gonçalos” [referência ao youtuber Gonçalo Sousa] e todas as outras pessoas que falam sobre política, e eles que façam isso, que é o conteúdo deles. O meu é outro, mas quando tiver de mandar as minhas gaitadas, mando.
Um dos teus projectos mais recentes é uma nova rede social, a Hodl. Será lançada em breve?
Em breve, salvo seja. A única informação que posso dar, porque não posso mesmo falar, é que ainda vai demorar uns sete meses para sair a primeira fase. Vamos dividir isto em quatro blocos, e vamos começar só com um chat. É a única coisa que eu posso dizer. Tem algumas coisas diferentes dos Whatsapps e assim, umas ligeiras modificações, e tem uma cena que eu acho muito fixe mesmo. Depois vamos à primeira ronda de investimento, para depois avançarmos para as próximas fases, que já requerem muito mais investimento e dinheiro para manutenção em servidores.
E um dos motivos que te levou a querer criar esta rede foi a falta de liberdade de expressão que sentias nas redes convencionais?
Sim, e o facto de ser banido do Tiktok, de eliminarem histórias a toda a hora de cenas que não têm nada de mal, simplesmente porque fazem denúncias. Pessoas que não têm nada para fazer, e fazem as denúncias. O Tiktok é uma plataforma – e podes mesmo escrever – muito coninhas. Tu não podes fazer absolutamente nada. Eu já fui banido no Tiktok porque fiz um vídeo com a sunga do Borat. Tive de criar outra vez uma conta, já vou na terceira. Já nem tenho paciência, e já nem posto nada, não vale a pena. E depois no Instagram, houve stories e posts a serem removidos, que já eram de 2020 e 2019. Alguns actuais. E uma pessoa pensa: há aqui alguma coisa muito errada mesmo, porque já não se pode dizer nada.
Que tipo de conteúdos eram?
Já não me recordo, sei que era humor negro ou cenas assim do género. Enfim, se tiras a alguém a liberdade de fazer humor negro, ou qualquer humor que seja, estás a matar a liberdade de expressão. E não é só a mim, é a muita gente. Eu estava a criar uma espécie de rede social para Web3, ou seja, para a parte das NFTs [nonfungible tokens] e cripto. E depois pensei que tinha de ser algo tipo Web 2.5 ou Web 2, mas com algumas características de Web3. E foi aí que cometi a “loucura” de pensar: ok, então vou fazer uma rede social melhor do que as outras, com mais liberdade de expressão e com características novas.
Sabe-se que tens falado sobre a covid-19 e as vacinas… Sentes que te tornaste mais crítico do estado das coisas após a pandemia?
Eu acho que quem se preocupa, acabou por ficar mais crítico. Durante a pandemia fomos uns ratinhos, andámos de um lado para o outro a fazer o que eles mandavam. E depois percebemos que aquilo foi uma palhaçada autêntica. Não há outra palavra: foi uma palhaçada. Eu comecei a fazer YouTube quando começou a covid, e na altura tinha uma série de apartamentos meus, tinha feito um investimento num apartamento que ia remodelar e vender ou fazer alojamento local. De repente, tinha a minha liquidez toda nos meus apartamentos, e zero dinheiro. Na altura perfeita, que começa em Março, a época alta, e eu a esfregar as mãos, depois de todo o trabalho que tive, depois de suor, trabalho, dinheiro… Quando finalmente estou para recuperar aquilo que investi, vem a covid, e fechou tudo. Fiquei mesmo nas lonas. Tive de me reinventar e pensar: o que vou fazer agora? Como já ia fazer Youtube, apostei naquilo ainda mais. Por esse lado, até foi bom, se calhar se não tivesse sido a covid, não me tinha dedicado ao Youtube. Como não se podia fazer nada, dediquei-me àquilo. Mas sim, sinto que qualquer pessoa que se importe, acabou por ter um bocadinho mais voz e mais “vontade”, ao perceber que aquilo que eles fizeram foi estúpido… Resumidamente: uma coisa é os velhinhos tomarem a vacina, porque são mais debilitados, claro. Não digo que não. Mas pessoas jovens a tomarem uma vacina para uma doença que não [lhes] fazia absolutamente nada? Pá, não. E depois há os efeitos adversos, que é só ver as estatísticas, nem vale a pena estar a falar sobre isso… A Ciência não mente. Ainda ontem me apareceu um reel de um médico de 70 e tal anos a falar desta situação, e da gripe, que mata pelo menos umas três mil pessoas por ano. E a covid teve números muito parecidos, mas de repente já não havia gripe. Era só covid… Mas, enfim, tenho a certeza que tudo isto não cheira nada bem, digamos assim.
E sentiste que as críticas que fizeste nos últimos meses te prejudicaram financeiramente ou em termos de eventuais parcerias e trabalhos?
Não. Já me aconteceu, por exemplo, uma marca que queria fazer uma publicidade, e depois não avançou, e provavelmente foi por causa da situação do Costa. Mas eu tenho os meus patrocinadores principais, como a Solverde, há dois anos, e muito provavelmente vamos renovar contrato. E são esses que me interessam, são esses que acreditam em mim há imenso tempo, e tenho um bom contrato com eles que dá para pagar a minha estrutura, que é grande. Já tenho uma estrutura grande e consigo mantê-la. Claro que em Portugal é sempre difícil, porque por muito bem que eu ganhe, 50% é para o Estado… Por isso é que muito provavelmente vai deixar de ser para o Estado português e vai para outro [risos]… É o que é. Se baixassem os impostos, as pessoas ficavam aqui. Não cabe na cabeça de ninguém que metade do que uma pessoa ganha vá para o Estado. Repara, vamos supor: se uma pessoa ganha mil euros, paga 25%, ou seja, 250 euros ao Estado. Portanto, se eu ganhar 10 mil euros, fazia sentido que eu pagasse 2.500 ao Estado, era o que fazia sentido. Ganho mais, mas é a mesma percentagem, por isso estou a pagar mais dinheiro na mesma. Então, por que razão há escalões se eu que ganho mais tenho de pagar metade e não os 25%? É porque o gajo que ganha os 10, os 20, os 40 ou os 100 mil, com mais dinheiro, vai ter mais estrutura, e assim vai contratar mais pessoas… Isto não faz sentido nenhum. E depois, o que é que acontece? Pessoas empreendedoras saem do país. E, enquanto continuarem com isto, é o que vai acontecer… Tens países inteligentes, que têm IVA a 4,5% e benefícios fiscais para empresas, etc. E os nossos benefícios fiscais são só para quem vem de fora… Um chinês que venha para cá não paga durante dois anos para ter um negócio dele. Não sei se ainda está assim, mas há uns anos, era assim. Passados dois anos, põe a empresa em nome do filho e continua 20 anos sem pagar nada. Pronto. Pagamos nós, não é?
Observar seres alados, alguns pequenos, assustadiços e irrequietos, que fogem à menor aproximação humana, talvez não pareça uma ideia aliciante para a maioria das pessoas, mas o ornitólogo Gonçalo Elias garante que há cada vez mais adeptos. E gente que quer saber mais. Por isso, em co-autoria com o fotógrafo José Frade, lançou o livro Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação, onde explica, passo a passo, como qualquer um pode “viciar-se”, primeiro à volta do quarteirão, ou até mesmo sem sequer sair de casa. Licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores, é hoje, aos 55 anos, um dos mais conhecedores especialistas em aves. E numa entrevista ao PÁGINA UM demonstra saber tanto que, na verdade, merecia talvez voar com(o) elas.
Para si, que estuda aves há três décadas, que particularidade vê que as torna, para si, ainda fascinantes?
Aquilo que nas aves mais fascinou as pessoas foi a sua capacidade de voar. Quase nenhum outro vertebrado consegue; os morcegos conseguem, mas são um pequeno grupo dos mamíferos. A esmagadora maioria dos outros vertebrados não consegue voar, mas com as aves é o contrário, quase todas as espécies conseguem. Isso fascinou muito as pessoas, e eu acho que até as inspirou no desejo de voar, que se concretizou através da construção dos aparelhos. E desde a Antiguidade que já se estudavam as aves e as diferentes espécies; e se percebeu que cada espécie tem as suas preferências, os seus hábitos, as suas características, a sua forma de comunicar. Por exemplo, Aristóteles é sobretudo conhecido por ser filósofo, mas também era um naturalista, muito interessado, e escreveu algumas obras, nomeadamente A história animal, que desenvolvia muito o conhecimento, já nessa altura, sobre as aves.
Depois, com o avançar dos tempos e da Ciência, foram conhecidos mais aspectos muito peculiares, como as migrações. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com muitos mamíferos e répteis, as aves não hibernam. Em vez disso, fazem migrações, ou seja, movimentos periódicos de umas regiões para outras, de modo a conseguirem passar as várias épocas do ano nas melhores condições de sobrevivência. Nem todas as aves migram, algumas conseguem sobreviver o ano inteiro na mesma região; mas uma grande parte das espécies efectua migrações precisamente para tirar partido das melhores condições nas várias regiões, em função do ciclo das estações.
A observação das aves é ou não uma actividade dispendiosa?
Não tem de ser dispendiosa. Claro, há pessoas que investem muito, e vão dar a volta ao Mundo para ver aves. Obviamente, quando chegamos a esse nível, já terá outros custos. Mas para qualquer pessoa começar, na verdade, não precisa de gastar dinheiro quase nenhum. O essencial para começar é um instrumento de observação; normalmente um binóculo. Há quem use a máquina fotográfica para fazer registos fotográficos, o que também é muito útil. Hoje, há máquinas compactas já com algum alcance que nem são demasiado caras.
Os smartphones não serão suficientes?
Acho que não, porque as aves são muito pequenas; esse é o principal problema a nível da observação. E, sendo aves selvagens, não se deixam aproximar, daí precisarmos de auxiliares de observação, sejam binóculos ou máquina fotográfica. Embora as câmaras já tenham evoluído bastante, o problema dos smartphones é fazerem sobretudo zooms digitais, e não zooms ópticos. E, portanto, quando estamos a falar de ampliações muito grandes, isso acaba por ter consequências ao nível da qualidade da imagem. Para objectos ou, neste caso, animais, que estejam muito distantes, já não se consegue ver bem o detalhe. O smartphone serve para fazer uma foto de registo, mas não é o instrumento de observação nem de fotografia ideal. O ideal é ter um binóculo para conseguir observar os detalhes, porque como eu disse, as aves selvagens não se deixam aproximar nem apanhar. Mas há binóculos por 100 ou 150 euros, não é necessariamente um equipamento muito caro. Há para vários preços, mas por 150 euros já se consegue um binóculo. A máquina fotográfica é opcional.
Então, basta um binóculo e uma máquina fotográfica para se começar?
É também necessário, ou conveniente, ter um guia de identificação, um livro que nos ajude a identificar as várias espécies. O principal desafio, quando estamos a observar aves, é identificá-las correctamente. Em Portugal, temos cerca de 300 espécies regulares, ou seja, aquelas que aparecem todos os anos, e o principal desafio para quem se lança nesta actividade é aprender a distinguir umas das outras. Porque se não soubermos distingui-las, são apenas aves, não é? Mas quem se envolve nesta actividade, rapidamente aprende que as espécies são diferentes e que há características para identificar. E há aqui um outro aspecto que também estimula muito as pessoas: há aves mais comuns e aves mais raras. E normalmente aquelas que são mais raras são percepcionadas como tendo mais valor, como em qualquer tipo de coleccionismo. Por exemplo, há selos muito comuns, que valem muito pouco no mercado de usados, e depois há selos que são raros, e por isso mais cobiçados e mais procurados. Da mesma forma, com as aves, alguns bichos são mais difíceis de encontrar, e há um desejo de quem vai vendo as diferentes espécies de conseguir ver também as mais raras.
No Como observar e fotografar aves – Guia de iniciação refere que podemos começar por ver aves ao pé de casa, e até mesmo dentro de casa…
Sim. No livro, eu e o José Frade explicamos exactamente que qualquer pessoa, onde quer que more, pode ver aves. Obviamente, há sítios melhores que outros, porque depende da vegetação, da densidade de construção… Já morei em sítios com características muito diferentes, incluindo em zonas densamente urbanizadas, e em qualquer sítio é possível encontrar aves selvagens. E não estou a falar só de pombos, porque os pombos nem sequer são realmente selvagens. Mesmo numa cidade, é possível encontrar zonas com água, com jardins, com terrenos baldios, e estruturas que servem de abrigo às aves. Só para dar um exemplo, na cidade de Lisboa já foram registadas mais de 200 espécies de aves selvagens. Isto inclui a zona ribeirinha do rio Tejo, e vários parques e jardins, mas a diversidade que podemos encontrar, até numa zona urbana, que é onde a maioria das pessoas mora, é absolutamente notável. Para observarmos ao pé de casa, podemos começar por ir dar uma volta a pé ao quarteirão. Eu também comecei assim. E isso não nos obriga sequer a ter custos de deslocação. Por isso, é uma actividade que pode ser praticada a custo reduzido.
No livro, refere que uma das vantagens desta actividade é o maior contacto com a Natureza. A observação de aves leva a uma maior consciência ambiental e da importância da preservação da Natureza?
Não gosto muito de generalizar, porque há diferentes tipos de atitudes e comportamentos. Penso que para entendermos o que é que leva as pessoas a ver aves, é importante clarificar que há diferentes motivações. Nem todas as pessoas vão ver aves pelos mesmos motivos. Grosso modo, podemos agrupá-las em cinco categorias diferentes. É uma classificação minha, não vi em lado nenhum, mas é a minha forma de ver isto. No primeiro grupo, temos aqueles que exploram mais a vertente científica, e cujo objectivo é escrever artigos científicos, seja em contexto académico ou outro. No segundo grupo, temos as pessoas que se dedicam a observar aves para a realização, por exemplo, de estudos de impacte ambiental. Até por normas da União Europeia, quando se constrói uma grande infraestrutura – como uma barragem, uma autoestrada, um parque solar, um aeroporto, ou um parque eólico –, é necessário fazer estudos de impacte e isso obriga a fazer determinados programas de monitorização; e, portanto, há pessoas, já com alguma experiência, que são recrutadas e vão para o terreno fazer estudos continuados para registar o que é que ali aparece. Depois há um terceiro grupo, as pessoas que se dedicam à Conservação. Muitas vezes estão ligadas a organizações não-governamentais, de Ambiente, e não só, e que vão observar as aves com o objectivo de recolher informações para tentar depois fazer a gestão do habitat e tomar as melhores decisões que favoreçam a conservação das espécies, nomeadamente as espécies que estão ameaçadas. Também há departamentos estatais que tratam dessa vertente, nomeadamente o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. No quarto grupo há uma vertente mais comercial ou turística, onde se incluem pessoas que se dedicam a observar aves para vender esse serviço, ou seja, para mostrar a outras, que normalmente vêm de fora… Isto existe um pouco por todo Mundo; quando vamos a outro país ver aves, muitas vezes a técnica para conseguir encontrar as espécies que lá ocorrem é contratar um guia local. E, finalmente, há um quinto grupo, que são as pessoas que se dedicam a observar aves por lazer, ou seja, pelo simples prazer de desfrutar da observação. Este é o grupo que profissionalmente não tem a ver com a observação de aves, mas é cada vez mais numeroso, com milhões de pessoas por todo o Mundo. E essas pessoas vão recolhendo observações também e partilhando em base dados.
São, de facto, grupos com motivações bastante diversas…
Precisamente. Daquilo que eu vejo nas pessoas que se dedicam à observação por lazer, há um pouco de tudo. Há aquelas pessoas que têm a preocupação de não perturbar as aves e que, portanto, procuram seguir determinadas práticas e códigos de conduta que ditam que o bem-estar das aves está em primeiro lugar. Mas, infelizmente, como em qualquer outra actividade, também há casos de pessoas que não respeitam determinados limites, e que se for preciso entram em propriedades privadas e perturbam as aves para obter uma boa fotografia. São práticas que não são aconselhadas. Enfim, uns por não terem consciência, outros por falta de cautelas, nem todos respeitam estes limites. É importante passar a mensagem de que as aves são selvagens, estão no seu espaço e também precisamos de lhes dar alguma distância para conseguirem levar a sua vida, porque assim é que contribuímos para a conservação.
Na Europa, existem disparidades no desenvolvimento desta actividade, e sei que um dos países que se destaca é o Reino Unido, como também se salienta neste livro. Essas diferenças prendem-se com aspectos culturais?
Há diferenças culturais e diferenças históricas. Efectivamente, esta actividade ganhou mais tradição nos países do Norte da Europa; portanto, incluindo o Reino Unido, como referiu, e também os Países Baixos e a Suécia. São países com bastante tradição da observação de aves. Nos Estados Unidos também já há uma tradição que vem de há mais de 100 anos. No Reino Unido, penso que o interesse pela observação de aves começou no final do século XVIII, mas é preciso ver que ao início, esta actividade era praticada por muito poucas pessoas, nomeadamente grupos com maior poder de compra, ou aquilo que às vezes se designa por aristocracia ou elites. Portanto, não era uma actividade praticada em larga escala. Penso que isso mudou, pelo menos no caso da Europa, mais ou menos a partir de 1950 ou 60. Houve uma figura muito importante, um britânico chamado John Gooders, que já faleceu em 2010, e que ainda tive o privilégio de conhecer. Ele escreveu um livro que se chamava Where to watch birds[Onde observar aves]. Nesse livro, ele sugeria roteiros de observação de aves no Reino Unido. Porque podemos começar por dar uma volta ao quarteirão, mas ao fim de algum tempo vai crescer o desejo de se ver espécies diferentes. Para isso, é preciso saber onde havemos de ir, e nem sempre existe essa informação. Agora, é mais fácil, graças à Internet, saber onde se pode encontrar determinadas espécies, mas há 50 ou 60 anos não era assim.
Esse livro democratizou a prática da observação de aves?
Sim, o livro teve enorme aceitação, e abriu, de certa maneira, as portas da observação de aves a um grande número de pessoas. É claro que entre as pessoas que já praticavam a actividade, houve quem não achasse muita piada, porque aquilo era uma actividade de elite, digamos, e algumas pessoas não viram com bons olhos a abertura à sociedade em geral. Depois, John Gooders escreveu sobre birdwatching não só para o Reino Unido, mas também para a Europa. Aliás, o primeiro livro que eu li seu foi o Where to watch birds in Europe, em que sugeria roteiros de observação em diferentes países, e foi publicado nos anos 1970. Hoje já existem roteiros para praticamente todos os países do Mundo, porque rapidamente se percebeu que havia muito interesse por parte das pessoas em ter livros que as direccionassem para os melhores locais onde encontrar espécies interessantes. Mas John Gooders foi um dos percursores da observação de aves; não sei se exactamente o primeiro a nível mundial, porque penso que já se tinha aberto caminho antes nos Estados Unidos. Mas efectivamente, a informação que ele trouxe permitiu abrir as portas, e tornar mais fácil o acesso à informação. Isto depois espalhou-se a outros países da Europa, mas neste ponto de vista, o Reino Unido foi um bocadinho o pioneiro a nível europeu, e talvez por isso a tradição tenha conseguido avançar mais depressa nesse país.
Quais os países mais interessantes para a observação de aves, a nível de diversidade das espécies? Ou a resposta dependerá sempre dos propósitos e das preferências individuais?
Em termos de diversidade, grosso modo, podemos dizer que todos os países do Mundo têm potencial. De uma forma geral, a diversidade de espécies aumenta à medida que nos aproximamos dos trópicos, das zonas equatoriais. Na América, destacam-se países como a Colômbia, o Equador e o Brasil. Em África, destacam-se países como o Quénia e a Tanzânia; e na Ásia, destacam-se países como a Índia ou a Indonésia. Só para referir alguns. A diversidade de espécies é mais elevada nos países de latitudes tropicais, mas claro que em latitudes superiores também aparecem espécies diferentes. Portanto, todos os países acabam por se complementar uns aos outros. Além disso, também é importante referir que há países e territórios que, por serem ilhas, estão isolados dos restantes, e por isso têm espécies que se chamam endémicas, ou seja, espécies que existem ali e não existem em mais lado nenhum do Mundo. Isto acontece mais com as plantas, porque as plantas não têm tanta mobilidade, mas também pode acontecer com aves. Temos algumas aves endémicas em Portugal, tanto nos Açores como na Madeira. Por exemplo, na Madeira temos o pombo-trocaz e a estrelinha, conhecida localmente como bis-bis; e nos Açores temos o priolo e o painho-de-monteiro. Todas as principais ilhas do Mundo têm um grande número de endemismos. Destaco a Austrália, Madagáscar, a Nova Zelândia, as Filipinas e certas ilhas da Indonésia. São locais ricos em endemismos. Portanto, a proximidade aos trópicos e a insularidade tornam certos locais muito interessantes.
E, de um modo geral, que países oferecem condições mais favoráveis para esta actividade?
Depende do grau de desenvolvimento. Há países que por terem um menor grau de desenvolvimento, ou por outro tipo de problemas, como a instabilidade dos regimes políticos, podem não ser muito seguros para a observação de aves. Destaco alguns país de África ou do Médio Oriente e certos países da Indochina. Pode até nem ser só por questões de segurança, mas por haver também muitas restrições à mobilidade das pessoas, que as impedem de ir observar para onde querem. Depois, há países com um bom grau de desenvolvimento, mas já foram transformados de tal forma em termos de intensificação agrícola, industrial ou de urbanização, que acabam por não ser tão interessantes, porque têm um grande grau de poluição e de alteração dos habitats. Portanto, varia muito, embora, na maioria dos países, mesmo naqueles que já estão transformados, existem áreas protegidas, classificadas, com boas condições de visitação e que funcionam como bons refúgios.
Para a maioria dos países, agora mostra-se fácil encontrar informação online sobre quais são os melhores locais de observação de aves. E nos casos em que o acesso seja mais difícil, há empresas especializadas que vendem pacotes de birdwatching, ou seja, tours de 10, 15 ou 20 dias especificamente para observar aves. Aí, a pessoa já vai acompanhada com um guia especializado, vai directa ao local, e, portanto, não tem de preparar nada nem de se preocupar com alojamento nem com transporte. E existem pacotes desses em países tão variados como a Argentina, a Malásia, a África do Sul, os Camarões, Marrocos ou China. Esses são pacotes relativamente caros, por serem viagens bastante especializadas, mas que permitem um contacto com aves que, de outra forma, a pessoa dificilmente conseguiria. Portanto, a nível mundial, há toda uma indústria em torno desta actividade.
Agora falando apenas de Portugal. Quais as regiões mais interessantes para a observação de aves?
Também há diferenças entre regiões, naturalmente. Pela minha experiência, a nível da diversidade de espécies, as zonas mais ricas são as chamadas zonas de influência mediterrânica, a Sul do Tejo; portanto, o Alentejo e o Algarve. E também uma parte do Ribatejo, e ainda o interior Norte e interior Centro, ou seja, Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa. O litoral Norte e Centro, em parte por causa da influência atlântica e das enormes transformações do uso do solo – com a intensificação agrícola em certas zonas e o grau de florestação intensiva e urbanização também de grande densidade –, é uma zona que está muito transformada. No entanto, no litoral existem locais de enorme interesse, que estão principalmente em torno das zonas húmidas. Falo, por exemplo, do estuário do Tejo, que é também um hotspot a nível nacional, do estuário do Mondego e de outros estuários que existem mais para Norte, como o do Minho, do Cávado e do Douro. E a Ria de Aveiro, naturalmente. Isto para citar alguns exemplos. Portanto, genericamente, no litoral Norte e Centro, as zonas húmidas são as mais interessantes, embora haja também outros spots em cidades e pequenas serras. No Interior e no Sul, os locais estão mais distribuídos e a riqueza específica tende a ser maior a nível de aves terrestres. No conjunto, o país tem uma boa diversidade de espécies, complementando o litoral com o interior. E depois, ainda temos, como referi, o caso dos Açores e da Madeira, onde apesar da diversidade de espécies global ser menor – porque as ilhas normalmente têm menos espécies –, há coisas diferentes. Portanto, as ilhas complementam um bocadinho o Continente.
As regiões com menos diversidade em aves acabam por compensar na existência de outro tipo de espécies.
Sim, as ilhas por norma têm menos, porque, tal como algumas espécies evoluíram isoladamente, as outras dos continentes também muitas vezes nem sequer conseguiram lá chegar. Portanto, as ilhas de uma forma geral têm menos diversidade do que as regiões dos continentes. Nos continentes há muito mais intercâmbio de umas regiões para outras. As ilhas estão isoladas, e quanto mais remotas são, menor a diversidade. Por isso, os Açores têm menos espécies do que a Madeira a nível de nidificantes, porque a Madeira, apesar de tudo, está mais perto do continente africano.
Daquilo que tem visto, em que grau as aves têm sido afectadas com o problema dos plásticos nos oceanos?
O plástico é um problema grande para as aves marinhas, porque acabam por ingerir micropartículas. Não são necessariamente aqueles plásticos grandes que nós vemos a flutuar. O plástico vai-se decompondo, e as micropartículas ficam lá durante muitos anos. E as aves podem ingeri-las; às vezes, também bocadinhos de plástico maiores, e já houve vários casos de aves marinhas que foram encontradas mortas com grandes quantidades de plástico ingeridos. Portanto, é evidente que em termos de saúde das aves, terá algum impacto. Não sei exactamente até onde isto já foi estudado, mas a poluição, nomeadamente por plásticos e por outros poluentes – porque também já houve casos de aves contaminadas por hidrocarbonetos, por exemplo, na sequência de desastres de petroleiros… Este tipo de poluição também pode afectar as aves e outros seres vivos. É evidente que devem ser tomadas medidas para reduzir a poluição dos oceanos, porque põe em causa o equilíbrio dos ecossistemas, e nomeadamente dos ecossistemas marinhos.
E o impacto das alterações climáticas, também se tem revelado significativo?
As alterações climáticas são um problema bastante vasto e abrangente, e, sem dúvida nenhuma, tem impacto nas aves selvagens. Este assunto está a ser estudado para se obter mais dados; no entanto, há um aspecto que eu gostava de salientar: para as aves, as alterações climáticas são um problema, mas não o único, e nem sempre o mais importante. Depende também das espécies. Há outros factores em jogo. Eu recordo-me que há uns dois anos, assisti à sessão de apresentação online do Novo Atlas Europeu, um projecto para estudar as circulações das aves a nível da Europa, e que comparava com outro que tinha sido feito há 25 anos. E analisaram-se as distribuições das espécies e compararam-se para saber se se tinham deslocado para Norte ou para Sul; porque, em relação às alterações climáticas, existe uma teoria, digamos assim, de que se a temperatura aumentar, as aves vão-se deslocar para Norte, porque as regiões do Norte ficam menos frias, a temperatura fica óptima, e as aves vão atrás dos gradientes de temperatura… Isto é o que diz a teoria. Na prática, verificou-se que houve tantas espécies a deslocar-se para Norte, como espécies a deslocar-se para Sul, ou seja, em sentido contrário àquele que era suposto deslocarem-se se o único factor fosse o aumento da temperatura. E os autores desse estudo disseram que se metade das espécies se deslocaram para Sul, podemos interpretar que há aqui outros factores a condicionar a distribuição das aves. Portanto, é algo que tem de ser estudado mais em profundidade.
E que outros factores poderão ser?
Nem sempre sabemos. Normalmente, estas equações são complexas, há vários factores em jogo simultaneamente, e não conseguimos isolar uns dos outros para medir o impacto de cada um. Eu diria, pela experiência que existe em Portugal e noutros países, que um dos principais factores que condicionam a distribuição das aves são as alterações de habitat; se quisermos, as alterações do uso do solo, nomeadamente devido à actividade agrícola. E eventualmente florestal, e também devido à urbanização, à construção de barragens. Tudo o que faz mexer no habitat causa impacte, e isso pode fazer as espécies colonizarem novas zonas ou desaparecerem. Esse é um factor muito importante, e que deve ser tido em conta, independentemente das alterações climáticas. Ou seja, temos de entrar com o “mix” todo. Ainda pode haver outras variáveis, como a perturbação causada seja por observadores e fotógrafos, como por pessoas que estejam a praticar actividades desportivas, ou qualquer outro tipo de acções humanas. Portanto, perturbação, perseguição directa, seja caça legal ou ilegal, e introdução de espécies exóticas ou invasoras, são tudo factores que podem concorrer para causar desequilíbrios e alterações em determinadas aves. Sem esquecermos a relevância das alterações climáticas, não devemos cair no erro, como às vezes vejo, de achar que tudo se deve às alterações climáticas, e esquecermos que há outros factores que também podem ser muito relevantes, nomeadamente as alterações de habitat.
Em Portugal, as medidas de conservação das aves têm sido suficientes, ou poderia fazer-se mais?
Acho que se poderia, e deveria, fazer muito mais. Há 50 anos, fizeram-se muitas coisas más, como drenagens de zonas húmidas, e outras coisas que alteravam o uso do solo, e não se tinha noção dos danos que aquilo causava. Hoje, há muita informação, nomeadamente sobre o que pode ser feito a nível de gestão do habitat para conservar as espécies, mas, apesar de tudo, muitas vezes não são tomadas medidas para evitar alterações. Aquilo que eu defendo, antes de mais, é que se invista mais a sério em programas de monitorização das espécies ameaçadas. Eu penso que é essencial monitorizar-se as espécies para se poder perceber o que é que está a acontecer, e depois se poder tomar as medidas consideradas relevantes.
Há poucas semanas estive em Vila do Conde, num simpósio internacional sobre picanços, que é um grupo de passeriformes, e a certa altura assisti a uma apresentação de uma pessoa do Canadá, que disse que nos 1990, essa ave foi classificada como ameaçada. E o Governo federal canadiano imediatamente decidiu pôr em marcha um programa de monitorização. E eu gostaria que em Portugal acontecesse algo semelhante. Nós também temos um Livro Vermelho, que saiu em 2005, e sairá outro daqui a poucos meses, penso eu, e o Livro Vermelho classifica determinadas espécies como ameaçadas. E eu gostaria que tal como no Canadá, quando uma espécie é classificada como ameaçada, imediatamente tivesse início um programa de monitorização para o acompanhamento daquela espécie. Caso contrário, esses estatutos de ameaça acabam por servir de muito pouco, porque não se tomam medidas. E, no limite, a espécie pode desaparecer, como já aconteceu, infelizmente. Portanto, o apelo que eu deixo aqui é no sentido de se investir mais, desde logo, na monitorização.
Na segunda parte da sua entrevista ao PÁGINA UM, João Palmeiro, o histórico presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, aborda as polémicas parcerias entre os media e empresas e também entidades públicas, que têm colocado em causa a independência e credibilidade do jornalismo. Mas também há tempo para uma conversa sobre as maravilhas da imprensa e as suas histórias. Na verdade, a História da Imprensa é um mundo fascinante, que tem ainda muito para descobrir, e que levaria por certo a mais mil e uma conversas… Poder ler a primeira parte desta entrevista AQUI.
Nos últimos anos, tem começado a aumentar de forma massiva os conteúdos comerciais ou patrocinados, e as parcerias comerciais que muitas vezes são apresentados ao leitor com apoio da empresa X ou Y. E muitas com a participação dos jornalistas, mesmo tendo um contrato comercial por trás. E tudo isto não é claro para o leitor . Como é que vê isto para o futuro da credibilidade da imprensa?
Tenho uma visão muito clara sobre isso. Primeiro, é preciso, cada vez mais, haver provedores do leitor. Pessoalmente, tenho uma experiência de provedor do leitor. Aliás, eu não sou nem nunca fui jornalista, e aceitei ser durante 10 anos provedor de leitor do primeiro jornal regional digital que houve em Portugal, que foi o Setúbal na Rede. Exactamente para poder mostrar que se eu era capaz de o fazer, não sendo jornalista. Um jornalista fá-lo-ia com muito mais competência do que eu. Mas o provedor do leitor não tem que ser um provedor pela publicação. Quer dizer, tem que ser uma instituição a que as pessoas possam recorrer, e que, de uma forma rápida, possa esclarecer. E hoje, com o mundo digital, não há nenhuma razão para que não seja de forma rápida.
Qual modelo, em concreto, que defende?
Aqui [na Associação Portuguesa de Imprensa] temos defendido um modelo de Conselho de Imprensa, que seja uma espécie de um corpo de provedores de leitor, à disposição para esclarecer as pessoas. E que têm também, entre si, o objectivo de ir sinalizando, chamando à atenção e comunicando publicamente os casos em que há desvios, como aquele que está a dizer. Não podemos ficar à espera, em sociedades muito garantistas como a portuguesa, por exemplo, de processos longuíssimos de averiguações disto e aqueloutro. E não é isso também que a maior parte dos consumidores de notícias querem. Os consumidores querem saber: é verdade ou não é? Foi bem feito ou não foi? Se depois disso há um castigo ou não há, isso é com outro agente. Já é com a verificação.
Isso seria suficiente?
Temos essa visão de que o jornalismo exige cada vez mais a intervenção de pessoas que estão à disposição para verificar, e hoje em dia, com os meios que existem, isso pode ser muito fácil de fazer. Segunda coisa: os estatutos editoriais são a garantia daquilo que eu estou a oferecer. São como, nos medicamentos, as bulas, que ninguém lê mas que toda a gente devia ler antes de tomar um remédio. Por exemplo, lemos muitos estatutos editoriais que dizem: “esta publicação defende a Lei de Imprensa”. Não é isso o estatuto editorial. O estatuto editorial é a minha promessa de como interpreto exactamente os conteúdos que vou dar. E é também sobre isso, quando eu falo nos provedores dos leitores: não fazem essa função de uma maneira cega; têm de ir ao estatuto editorial, e é sobre ele que dizem “sim” ou “não”. E a ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social], que de vez em quando anda atrás dos estatutos editoriais, bem podia fazer um trabalho mais decente do que aquele que faz em relação a isso.
Falemos agora de contratos entre empresas de media. No PÁGINA UM temos revelado diversos casos envolvendo praticamente todos os grupos, envolvendo jornalistas e contrapartidas editoriais para execução de contratos de prestação de serviços. Alguns até incluem a possibilidade de pedir a substituição da equipa de jornalistas se as entidades não estiverem satisfeitas com os conteúdos. Ou então a definição de um número determinado de artigos sobre actividades de um centro de investigação universitário, como se viu num contrato com o Público. A questão é, garantimos que as notícias são verdadeiras, mas depois temos situações destas. E o leitor às vezes apercebe-se disso. Em que é que ficamos? Onde é que está a informação e a desinformação?
Os jornais sempre tiveram um problema muito grande – que não é de agora, é de sempre: há os jornalistas, e os outros. Os outros [departamentos de marketing], em muitos casos são pessoas que fazem contratos desses; que ninguém vê, e que escrevem lá coisas que não estão autorizados a escrever. Porque acham que isso os ajuda a vender melhor. Já fui responsável por coisas dessas; não dessas em concreto, mas por coisas nessa área em algumas publicações, e tinha que firmemente dizer: “vocês não podem falar como jornalistas” às pessoas que vendem e que fazem negócios. E a resposta que me davam sempre era: “ah, mas isso é que vende”. Ou seja, se eu for falar com um comercial da não-sei-quê, nem me ouvem, mandam-me embora imediatamente. Se eu for sugerir que aquilo que eu estou a vender é uma coisa que vai ser feita por jornalistas, que vai ter esse retorno maravilhoso que é a aparência jornalística, aí eu vou fazer um negócio.
E é isso que está ser vendido…
Eu sei. Agora, isso não tem uma definição. Por exemplo, esse último caso que falou, das universidades, às vezes têm objectivos tão simples como este: existe uma regra europeia que determina que se forem publicados artigos sobre ambiente, tenho uma diminuição de X por cento na minha pegada de carbono. E, portanto, esse tipo de publicações são altamente apetecíveis, porque eu faço um relatório ao fim do ano, e no ano seguinte tenho X notícias no jornal. E isso é qualquer coisa que eu vou vender aos outros. E quando os outros dizem: “mas essas notícias vocês não podem publicar”; eles dizem; “podemos, podemos, porque isso diminui a nossa pegada de carbono”. Este princípio foi mal transposto em Portugal, e eu tenho alguns jornais em cima de mim a dizer que estão a perder negócio porque não estão a usar esse benefício; porque o princípio foi mal transposto e, aparentemente, os serviços públicos só os aplicam à publicidade. Só quando a publicidade é a favor do ambiente é que fazem as tais contas para descontar; se forem artigos não fazem. Noutros Estados-membros não é assim, e a própria directiva europeia incentivava a que se incluíssem também conteúdos informativos. Nunca se diz conteúdos jornalísticos, mas conteúdos informativos. Aqui em Portugal, eu não faço ideia [como foi], porque segui muito esse processo durante 10 ou 15 anos, e depois de repente, de um dia para o outro, isto apareceu feito sem nos terem dado cavaco. Portanto, isso leva-me, outra vez, à minha ideia cada vez mais alicerçada: a questão fundamental é o acto jornalístico; temos de ser capazes de definir o que é o acto jornalístico e de ensinar aos utilizadores, aos que acedem, que uma coisa é o acto jornalístico e outra coisa é mera informação, por muito bem escrita que esteja. E tem que ser o utilizador a estar também preparado para fazer isto. Vai levar anos. Talvez demasiados.
Mas antigamente, sabíamos que havia apenas a publicidade, e depois passou a haver o conceito de publireportagem…
Porque a publicidade também evoluiu.
Sim, mas a publirreportagem era claramente a identificação. Não havia qualquer dúvida de ser publicidade escrito. Agora é uma ‘misturada’ enorme. Temos jornalistas a assinarem peças comerciais. E até há jornalistas que, de boa fé, fazem notícias sem saber que estão incluídas num contrato comercial.
Isso eu acho insuportável, não posso dizer outra coisa. É uma prática que durante algum tempo pode ajudar à sustentabilidade, mas que no fim, vai destruir a sustentabilidade; destrói a credibilidade, e a credibilidade é a base da sustentabilidade comercial. Mas querem ver também outra coisa? O Instituto Nacional de Estatística (INE) fala em investimento publicitário, mas não o que é declarado pelas publicações, mas sim aquele declarado pelos anunciantes. E tem lá várias rubricas: imprensa, rádio, televisão, internet, eventos, outdoors. E depois, de repente, tem “outros”. E nos “outros”, está o terceiro maior investimento. O maior investimento é naturalmente a televisão – quase 400 milhões de euros –, o segundo já é a internet, com 203 milhões de euros, e depois os “outros” são quase 150 milhões de euros.
E o que é “outros”?
Exactamente. Andamos aqui desesperadamente, numa investigação com o INE, a tentar perceber o que é “outros”, sobretudo porque isto vem do lado dos anunciantes; não vem do lado dos meios. Reparem: isto são dados públicos, portanto não tenho problema nenhum em falar nisto. Em 2022, aquilo que se chama “imprensa” recebeu, segundo o INE, recebeu 27 milhões de euros de investimento. Mas do lado da informação remetida pelas empresas diz-se que a imprensa recebeu 72 milhões de euros.
Não bate a bota com a perdigota.
Só uma das empresas declara que, no sector de imprensa, recebeu 31 milhões de euros. Onde está? Quer dizer, eu confesso-vos – e peço desculpa de ser tão directo e tão bruto nisto – que estou muito menos preocupado com a transparência da propriedade do que em perceber isto. O que é isto? Quer dizer, eu vou a qualquer lado público e vejo as pessoas a olhar para mim: “coitado, lá vem ele, o presidente da API, os tipos estão quase a morrer, já quase não têm publicidade, aquilo é uma desgraça”… E realmente, quando eu olho, vejo 27 milhões de euros! Quando, há quatro anos, eram 54 ou 56 milhões de euros. Isto é uma catástrofe, é menos de metade. Mas depois, afinal do lado das empresas os números são outros…
Se calhar são as tais parcerias de que falavamos…
Estamos a tentar saber, porque achamos que a nossa obrigação compreender isto, porque só assim podemos contribuir para que as coisas melhorem.
Vou fazer-lhe uma provocação: julgo que está na presidência da API formalmente indicado pela Impresa.
Exactamente.
Pronto. Verificámos que nos últimos três anos, o caderno principal começou a publicar uma página denominada “Projetos Expresso”. Sabemos que são parcerias comerciais, com conteúdos assinadas por jornalistas com carteira profissional. Só durante a pandemia, em três anos, houve mais de 80 conteúdos apoiados pelo sector farmacêutico. Quando estamos aqui a falar na informação falsa ou verdadeira, também é legítimo perguntar: sem estas parcerias, o jornal teria outra abertura editorial? E de que forma essas parcerias podem condicionar a linha editorial. É legítimo pensar que se alguns temas não saem nos jornais, não é por ser informação falsa, mas porque poderiam afastar parceiros comerciais. Não tenho dúvidas de que grande parte das notícias do PÁGINA UM estariam nos outros jornais, e agora nem sequer são temas abordados…
Vamos ver. Eu não tenho grandes dúvidas de que a entidade que eu represento, no que diz respeito ao cumprimento das regras sobre a verdade, cumpre até à exaustão possível da capacidade humana. A outra questão está num problema que não é de hoje, que é a escolha daquilo que eu quero publicar ou não. Durante muitos anos, a escolha daquilo que se publicava ou não era a do director, que dizia porque não gostava ou não lhe interessava… Quer dizer, isto eram questões atendíveis, tendo em conta a forma como o director interpretava o seu papel com os seus leitores. Hoje, quer pela extensão possível do mundo digital, quer pelas dificuldades que o mundo do papel passou a sentir, tornou-se uma quadratura mais difícil de resolver. Naturalmente, acho que não devemos nunca tentar perceber aquilo que não foi publicado, temos de ter uma opinião com base naquilo que foi publicado. Porque aquilo que não foi publicado, sim, pode haver casos em que não foi publicado por pressões, mas a verdade é que numa sociedade plural e diversa, com vários órgãos de comunicação social, os interesses não podem ser todos tão coincidentes. Em Portugal, temos uma riqueza importantíssima, que são os jornais regionais e locais. Até temos um exemplo interessante, apesar de tudo, que é o da Igreja Católica: tem algumas posições claras, e que diz que disto não se fala, e que este caso não se publica.
Mas já temos casos de queixas de leitores por os jornais não cobrirem determinado assunto. Ou a questionar determinada abordagem. No Público, por exemplo, á habitual o Provedor do Leitor tecer várias críticas…
Mas o provedor está lá dentro do jornal, e portanto sabe, tem de saber, aquilo que é o objectivo e a disponibilidade do jornal. Uma das coisas com que me debato muito é olhar para a diminuição do número de páginas dos jornais. E digo sempre isto: “bom, eu ontem publicava 10 notícias, hoje só posso publicar cinco porque não tenho dinheiro para fazer mais, não é porque há uns senhores que me batem à porta”. Portanto, como é que eu, editor, estou preparado para dizer: “eu não quero publicar estas cinco, só vou publicar estas outras”? Ou “vou cortar todas a meio”?
A redução das notícias não é uma saída em desespero? Porque daqui a nada… Aliás, o PÁGINA UM nasce pela ideia de que as notícias vendem e podem fazer dinheiro, podem er valorizadas pelos leitores e não pelos anunciantes…
Eu sei. Mas eu tenho que ter um espaço de publicação. O espaço digital veio tornar mais fácil resolver este problema. Mesmo assim, ainda há uma escolha sobre o que é que se põe ou não põe no papel. E esta escolha não é igual em todas as publicações e na cabeça de todos os directores. Daí o grande esforço que estamos a fazer na transição para o digital através do Aveiro Media Competence Center, onde o objectivo é ver o papel e o digital como um todo; como a sua relação com os seus públicos. E depois, têm de se saber que há públicos que não tem acesso ao digital, e há públicos que gostam de ter o acesso às duas coisas; e há públicos que só gostam do digital.
A discussão entre o digital e o papel estará ao nível daquilo que a relaçao entre o diário, o semanário e o mensário, que se destinavam a leitores distintos. Até poderiam ser os mesmos, mas os jornalistas devem ser diferentes. O tempo de reflexão e de produção é completamente diferente. No início, as redacções do digital e do papel eram distintas. Hoje, um jornalista de um semanário em papel tem que fazer tudo a todas as horas, durante todos os dias. Portanto, a qualidade decai. O Público faz gáudio de fazer 150 notícias por dia no online. Não sei quantas delas são de agência ou quantas são de qualidade duvidosa. Mas o leitor apercebe-se disso.
Mas pegando nessa sua ideia sobre os diários e os semanários, é verdade. Mas reparem. Se analisarmos a imprensa regional, vemos que temos casos muitos interessantes: os jornais saíam três dias por semana, depois passaram a dois, e depois uma vez por semana. E encontramos sempre o mesmo padrão: a evolução da necessidade de ter jornalistas em sítios onde os jornalistas não podiam estar. Primeiro ponto. Segundo padrão: o conflito latente entre a personalidade do dono ou do editor do jornal, e do presidente da Câmara ou da Junta. Quantos mais próximos estamos, mais importância as coisas têm. Ao longo do tempo fomos caminhando para um jornalismo que, em muitas vezes, está mais dependente de situações pessoais do que de situações de influência política, social ou de dinheiro. Claro que existem algumas, mas são mais de situações pessoais do que aquilo que foram no passado, porque efectivamente as instituições não foram capazes de se distanciarem o suficiente para perceberem qual era o papel de cada um. Recentemente, um pequeníssimo jornal dizia-me assim: “eu quero ter cá uma jornalista a tempo inteiro, mas não lhe posso pagar; ela tem de trabalhar noutro sítio para completar o salário, e eu não lhe consigo dar uma carteira profissional, digam-me lá como é que eu resolvo isto”! Em boa verdade, atendendo a todas as regras e princípios, aquilo que eu tinha de lhe dizer era: “feche o jornal”. Depois, claro, estamos aqui a inventar, e dizer: “porque é que não faz assim ou assado”… Mas se eu lhe dissesse para fechar o jornal, provavelmente haveria alguém na terra a esfregar as mãos para ocupar aquele lugar, e fazer cobras e lagartos. É muito difícil, percebem?
Sobre o domínio da propriedade, que é controlada pela ERC, existe ou não necessidade de tornar essa informação mais transparente? E, já agora, como viu a novela da ERC sobre a nomeação do Conselho Regulador e do futuro presidente?
Sabe, eu como já sou suficientemente idoso, posso dizer algumas coisas como esta: quando vemos que um modelo de funcionamento conduz sempre às mesmas coisas, então estamos petante um modelo que não está bem. Ou seja, a substituição da primeira ERC levou um ano e meio. A substituição do segundo Conselho Regulador levou quase dois anos, e a do terceiro já vai na mesma. Independentemente da novela, é porque há qualquer coisa no sistema que impede que funcione. A 1ª Comissão da Assembleia da República que tem de fazer a nomeação dos quatro membros da ERC chegou ao dia em que fazia os cinco anos e escreveu na sua agenda “eleição dos novos membros da ERC”. E depois ficou à espera que a 12ª Comissão, onde os partidos têm de fazer as propostas e ouvir os candidatos, ouvissem os candidatos. Então, é preciso ir ver onde as coisas não funcionam. E onde é? Os dois maiores partidos dividem entre si – eu acho isto uma coisa injustificada –, as nomeações. Penso que devia ter sido feito um regulamento; não é como isto agora, que toda a gente sabe que é assim, e que toda a gente diz que não devia ser assim. Mas o problema está no quinto membro [da ERC, cooptado pelos outros quatro, para presidir], que não é nomeado oficialmente pela Assembleia da República, mas que os partidos não avançam sem terem o acordo em relação ao seu nome. Portanto, isto não funciona. Então, é preferível dizer assim: numa legislatura, um nomeia três e outro nomeia dois; e na legislatura seguinte trocam. Podíamos dizer que na primeira vez, ninguém sabia bem como é que se fazia. Na segunda vez, podia dizer-se que ainda estávamos a experimentar… Agora, meu Deus, à terceira vez só come quem quer.
Qual seria a solução? Vamos ter outra vez um sinal de estarmos perante uma decisão política?
Eu até acho que nem é uma decisão assim tão política, nesse sentido de política partidária. Será política, mas depois os partidos ligam muito pouco à ERC. Depois, a ERC entrega os relatórios anuais, normalmente 10 meses depois do fim ano… Já alguma vez assistiram a alguma discussão na AR dos relatórios da ERC?
Por acaso, tive curiosidade em ouvir a última, que foi há alguns poucos meses. A grande discussão foram questões laborais internas [risos].
Claro. Se fosse membro da ERC, apresentava lá o primeiro relatório, e da segunda vez que ia lá dizia: “estes tipos não querem saber disto para nada; quer dizer, isto não vale a pena, portanto toma lá qualquer coisa…”. Agora estar a ter trabalho e chatice por causa de uma coisa destas… Todo o sistema enferma deste problema. E pergunta-se: “porque é que os deputados não discutem?” Porque sabem que, na verdade, essa discussão não tem nenhum impacto. Portanto vão às questões como essas [questões laborais], que podem trazer alguma notícia. Acho que vai ser a lei europeia que vai poder mudar alguma coisa neste aspecto, porque isto no futuro, em termos da Europa, será completamente inaceitável. Não vai ser possível.
Mas voltemos à questão da propriedade dos órgãos de comunicação social. Sente ser preciso maior transparência sobre quem são os verdadeiros donos? E, para além dos accionistas, deve continuar a saber-se as dependências que existem, em termos de passivo, e quem tem poder decisório?
Para o bem e para o mal, só em 2019 ficou pronta a Plataforma [da Transparência dos Media]… Nem a Associação [Portuguesa de Imprensa], que convinha saber algumas coisas, conseguia antes saber algo sobre os accionistas e detentores do passivo. E na ERC, a Plataforma só em 2020 e 2021 começou a funcionar. À vossa pergunta, eu respondo que sim, tem de haver transparência. Não posso pedir um tratamento específico para este sector sem dar alguma coisa em troca. E o em troca é preciso dar informação aos cidadãos, a quem estou a pedir que me deem alguma coisa dos seus impostos, sobre quem, como, porquê e de que forma as coisas funcionam e são empregues. Em Portugal temos muito pouco o hábito de fazer isso, mas a transparência tem uma consequência. Não sei se se lembram, mas antes dessa Plataforma havia uma lista de umas 50 empresas de media que tinham de revelar alguma informação. E por que eram essas 50 e não eram outras? Em Portugal, no se gosta de discutir e analisar a regulação, e isso tem de ser feito. Acho que a confiança só existe quando há conhecimento, e às vezes para ter conhecimento, é preciso haver exposição. E essa exposição tem dee ser a mínima para que as pessoas possam ter confiança. Agora, quais são os limites dessa exposição?
Para terminar, há quantos anos está aqui na Associação?
Demasiados. Na direcção, estou há três décadas.
Em 30 anos, mudou muita coisa na imprensa, o digital apareceu em força… A situação financeira mudou e as tiragens desceram muito. Como vê hoje o jornalismo em comparação com o que era há 30 anos, e como antevê o jornalismo daqui a trinta anos? Falar em “daqui a trinta anos” é para dar esperança… [risos].
Olhe, vivi muitas vezes sem tempo para, verdadeiramente, ter uma percepção disso, mas julgo que vivi os anos mais interessantes e mais espantosos na mudança. Acredioto que daqui a 30 anos se dirá do que foi o jornalismo nesta nossa época. Por formação, e por uma quantidade de razões, fui habituado a dar um grande valor à visão histórica das coisas. E penso muitas vezes no jornalismo de há 100 anos, de como era o jornalismo nos outros séculos. Tenho a grande sorte do meu pai ter sido jornalista, entre o fim dos anos 20 e meados dos anos 40. Tenho memória daquilo que me contava, e da maneira como era o jornalismo; que eu consigo reconhecer hoje. Se o meu pai voltasse, veria que hoje o jornalismo em si não seria tão diferente como era na idade dele. Até porque, como foi um dos pioneiros da rádio em Portugal, eu vivi muito anos a ouvir muitas histórias sobre o jornalismo radiofónico, quando aquilo era tudo uma coisa que ninguém sabia muito bem para onde ia. Quando não havia dinheiro, quando era preciso inventar publicidade na rádio…
ET: Eram outros tempos…
No fim dos anos 1940, o meu pai escreveu uma das primeiras novelas radiofónicas comerciais em Portugal, em que Vasco Santana fazia de João Maria, que, na verdade, era eu. Eu sou o João Maria, era o João Maria na cabeça do meu pai. E o Vasco Santana fazia o papel principal, e a minha mãe fazia de cavalo. Relinchava e tudo – é verdade. Portanto, fui educado dentro desta visão, mas depois tomei uma decisão aos meus 14 ou 15 anos: “jornalista não serei nunca na minha vida”. Estava completamente bem informado, e era já nessa altura um leitor diário de jornais, o que era uma coisa única na minha idade. As pessoas hoje dizem: “os jovens hoje não leem”, e eu digo: “não sabe o que está a dizer”. Antigamente, os jovens não liam nada. Uma pessoa como eu era um caso único, extraordinário, resultante de uma educação em casa. Sou um ouvinte de rádio completamente compulsivo por causa disso. Mas praticamente não vejo televisão, e porquê? Porque a televisão só entrou na minha casa quando tinha 12, 13 ou 14 anos. Tenho um irmão 10 anos mais novo que fez tanto barulho que o meu pai lá comprou a televisão. Eu conto esta história para perceberem como olho para estas coisas, para trás e para a frente, nesta base.
E então o que vê?
Primeiro: acho que o jornalismo não vai acabar. Não se esqueçam que no fim da Primeira Guerra Mundial houve algumas tentativas de convenções internacionais para dizer o que era o jornalismo. No fim da Segunda Guerra Mundial houve a Declarações dos Direitos Humanos, que falavam do jornalismo, da liberdade de imprensa e de tudo mais. Estamos agora num momento em que é preciso fazer isso outra vez. Eu estive muito envolvido nas Nações Unidas, sobretudo em 2017 e 2018, numa tentativa de fazer crescer uma coisa destas, mas que acabou pura e simplesmente porque os russos não quiseram que fossem para a frente. Bloquearam a tentativa de lançar esta discussão de uma maneira diferente. Disseram-me também que os chineses tinham ido pela mesma linha, não tenho nenhumas evidências. Acho que, no jornalismo, vevemos reféns de práticas e de modelos que já não se adaptam mais àquilo que são os nossos dias… Se virem as leis de imprensa do fim do século XVIII, princípio do século XIX, percebem que o controlo do poder era feito através das gráficas. A propósito, neste momento, estou neste momento num trabalho que resulta de se ter descoberto, em três bibliotecas do Alentejo, jornais manuscritos. Quando fui ver a data desses jornais manuscritos, achava que eram de 1700. Mas não. São jornais entre 1889 e 1907, quando houve em Portugal as maiores leis de restrição da liberdade de imprensa, ainda no tempo da Monarquia. Portanto, aqueles jornais eram a forma de utrapassar essas restrições – eu, aliás, tenho chamado a esses jornais os blogues do século XIX…
E que passavam depois de mão em mão…
E eram copiados! Eu recebia o jornal, copiava um para si, outro para outra pessoa; vocês copiavam outros dois… Agora, que informação é que existe sobre isto? Muito pouca, porque estes jornais chegaram às bibliotecas há 10 anos.
E se calhar, nessa altura, esses jornais eram considerados desinformação… [risos]
Provavelmente. Só chegaram há 10 anos às bibliotecas, porque pertenciam a pessoas que tinham uns exemplares nas gavetas. Encontrei três em Estremoz, um dos quais teve pelo menos 15 edições. Há um que até tem banda-desenhada! E até tem letra cursiva, e cabeçalho, director, editor, preço!
Exisiam antes referências da existência de muitos desses jornais?
Nunca conheci. Fizemos aqui uma pequena investigação, porque infelizmente tudo foi feito com o tempo que sobra, que é muito pouco. Mas enfim, como já cá estou há demasiados anos, quero que o meu contributo final seja este. E aquilo que descobrimos foi que o Partido Comunista Português e o Pacheco Pereira têm um acervo de jornais clandestinos. Mas desses, sabe-se tudo. Estes, de que vos falo, não. E se se for e ver a Lei de Imprensa então vigor, percebe que estes tipos não queriam ser apanhados.
Ou seja, não havia referências da existência desses jornais da transição para o século XX na Biblioteca Nacional nem na Torre do Tombo…
Eu descobri isto no Alentejo, porque fizemos uma exposição sobre jornais transtaganos, e andei a correr as bibliotecas elentejanas a ver o que se encontrava. E um dia disseram-me “venha cá, que temos uma coisa para lhe mostrar”. Eu vi bibliotecários quase a chorar. E eu dizia: “mas eu preciso disto digitalizado”. E eles sempre muito solícitos. Portanto, um amor, um carinho, uma devoção. Por exemplo, em Beja houve um jornal destes que se chama Violeta, que até tinha banda-desenhada. Violeta é o nome do café onde o Eça de Queirós escreveu quando viveu em Évora. Ainda existe o Café Violeta. Mas nõ sei se o Violeta foi de facto um jornal de Évora, porque osexemplares que noschegaram pertenciam a uma família de Beja. Mas há outras coisas intrigantes. Por que raio enconytrámos três jornais deste tipo em Estremoz? Três! E há mais, tem um em Portalegre, que se chama o “O Leão da Estrela”! E este, depois até passou a impresso, sócom o título de “O Leão”.
Esse mundo é maravilhoso. Num dos meus romances [PAV, Corja Maldita], fiz metaficção, e, às tantas, há uma cobertura noticiosa de uns motins verdadeiros em Madrid na década de 1750 [motim de Esquilache]. E então coloco um jornalista que faz a cobertura desses eventos para o Occulto Instruido, mas esse existe, está na Biblioteca Nacional. No século XIX, houe muito jornalismo, de pendor político, alguns muito efémeros…
Encontrei um jornal em Alcácer, numa associação, escondido. E o jornal chama-se “Terra de Kant”. E eu olhei para o título e disse: “alto! isto não foi feito por um gráfico normal”. Depois estive a ver, tinha o número zero, e aquilo era do nosso fotógrafo principal, o José Manuel Rodrigues, que foi Prémio Pessoa [erm 1999].
É de que ano?
1981. Aquilo teve 10 ou 15 números, era mensal, e de repente passa a ser um jornal a cores, deixa de ser um jornal a preto e branco, e passa a ser um jornal a cores, igual a todos os jornais regionais que pode imaginar, e muda o título. O título passou a ser tipográfico e deixou de ser desenhado. E quem era o director do jornal? Era o Camilo Mortágua. Há uns tempos telefonei à Joana Mortágua, e disse-lhe que tinha de lhe pedir um favor. E ela: “então diga-me lá”. Eu disse-lhe que já tinha perguntado a toda a gente e ninguém se lembrava; “importa-se de perguntar ao seu pai?”. Ela disse que o pai já estava um bocado velhote, mas talvez a mãe se lembrasse. Era o fim-de-semana do primeiro de Maio, e ela ia passar o fim-de-semana com eles. E depois liguei-lhe na segunda-feira, e ela disse que nem um nem outro se lembrava. Acabou-se por descobrir que estes vonte e tal números tinham sido impressos numa tipografia no Porto chamada Aguadouro. Eu olhei para aquilo e disse, isto ou foi feito por uma criança num dia de inspiração total, ou então foi feito por uma pessoa que sabia o que queria transmitir. Isto é uma coisa que eu só sei que não é do Picasso, porque ele nunca fez uma coisa destas, e nunca tinha estado aqui, e não pode ter sido. Isto é verdadeiramente fascinante. Mas os jornais manuscritos, oiça… Eu agora tenho que ver outras bibliotecas ao longo do país.
Essas histórias que nos está a contar, poderíamos imaginar isso num período anterior…
Claro, mas não. São daquele período e a razão para mim é muito clara. Ando a chatear a Universidade de Évora, que estão sempre a dizer que querem escrever uma história do Alentejo, e u digo: têm aqui, vão aos jornais alentejanos, e a partir dos jornais do Alentejo escrevam pelo menos uma sinopse do que pode ser a história do Alentejo. Porque está aqui tudo o que é preciso.
Portanto, estamos perante um maná…
Sim, é fabuloso. Houve ao longo dos tempos, e ao mesmo tempo são jornais ondese vê que aquelas pessoas acreditavam mesmo que aquilo ia mesmo fazer alguma coisa para mudar…
Nome incontornável da História das últimas três décadas da Imprensa em Portugal, João Palmeiro conhece o sector da comunicação social como a palma das mãos. Em vésperas de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Imprensa, que representa 200 empresas de comunicação social cerca de 450 publicações, concedeu uma entrevista de fundo ao PÁGINA UM. O seu vasto currículo e experiência nacional e internacional, onde se destaca a liderança do Fundo ‘Digital Innovation Media’ da Google, permitem-lhe um conhecimento ímpar das potencialidades mas também fragilidades de um sector em contínua crise. Nesta primeira parte da longa entrevista ao PÁGINA UM, no seu último mês como presidente da API, Palmeiro mostra um olhar crítico à regulação dos media, tanto em relação ao funcionamento da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como face ao previsto regulamento europeu para os media, que está a ser finalizado. Mas a transparência das empresas de media, e o seu financiamento, bem como a problemática das fake news são temas que também aborda, sem fugir a qualquer questão.
Numa associação de imprensa, que abrange tantos sectores e diferentes plataformas de várias dimensões, como se consegue conciliar este, chamemos-lhe assim, “saco de gatos”? Ou não estamos perante um “saco de gatos”?
Primeiro, este é um sector altamente regulado, e isso ajuda a responder a algumas das questões, reconhecendo que, de outra maneira, seria praticamente ingerível. Se olharmos para os dados da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), existem cerca de 1.700 empresas inscritas como editores de imprensa. Dessas, existem 70 ou 80 que se chamam televisão de qualquer coisa, e, depois temos uns 50 que são uma espécie de serviços de programas. E, quando eu digo que este é um sector altamente regulado, quero dizer uma coisa que as pessoas se esquecem, muitas vezes: a liberdade de imprensa assenta nessa regulação. Por exemplo, a televisão não só é regulada, como é finita. Ou seja, não pode fazer televisão quem quer. Só faz televisão quem cumpre determinados parâmetros, quer em termos empresariais. Uma empresa deste sector é obrigada a ter 2,5 milhões de euros de capital social. E tem de haver disponibilidade por parte do Estado de dizer que existe uma ou mais frequências vagas, tem de se fazer um concurso onde aparecem outros concorrentes, e depois tem de se ganhar fazendo várias promessas de naturezas diferentes, desde informativa, cultural ou de entretenimento. Tal como a Constituição Portuguesa a descreve, a liberdade de imprensa é, assim, extraordinariamente difícil de ser reconhecida. Naquilo que estamos hoje a falar como imprensa – que é tudo o resto que não depende um alvará para ser utilizado –, esse é outro mundo todo, das cerca de duas mil empresas, da liberdade de se fazer uma empresa para editar qualquer coisa. Sendo que o editar pode ser digital, pode ser uma plataforma.
De facto, é um sector muito regulado, porque temos a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição. Temos, de facto, muitas leis. Mas, quando falamos da ERC ou da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), estas entidades têm instrumentos suficientes para dar garantias de que aquilo que está a ser-lhe transmitido é isento do ponto de vista da informação?
São coisas diferentes. A CCPJ é uma entidade que está entre uma Ordem e uma direcção-geral. Não é uma Ordem, porque a actividade jornalística não é autónoma, ou seja, um jornalista não tem uma autonomia igual à de um médico, que diz: “não faço”, ou “não digo”.
E devia ter essa autonomia?
Na minha opinião, não pode ter. A autonomia do jornalista reside no estatuto editorial, e quem tem o direito de estabelecer o estatuto editorial, e de o alterar, é o proprietário da publicação, que pode não ser jornalista. Portanto, há aqui uma disfunção que, por vezes, se torna esquizofrénica, entre quem tem o direito de dizer qual é o enfoque, e de que maneira as peças devem ser preparadas, e de quem faz as notícias, e a liberdade para o fazer.
Fazendo então um paralelismo com a Ordem dos Médicos: sabemos que um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou mesmo do sector privado, tem uma autonomia. E a própria OM tem ingerência na gestão do sector da Saúde. Mas há uma legis artis que um médico tem de seguir, e se não o fizer é responsabilizado. Esse modelo não poderia aplicar-se também aos jornalistas?
A primeira coisa que temos de perceber é que uma Ordem é uma associação profissional. A CCPJ não é uma associação profissional. E essa associação profissional [Ordem dos Médicos] resulta de uma decisão muito antiga, corporativa, do Estado Novo. Achou que, para não se meter em questões que tinham a ver com certas profissões, das quais precisava para sobreviver e continuar a implantar os seus pontos de vista. Assim, entregou a essas entidades profissionais a regulação das suas actividades. E a regulação dessa actividade começou, e ainda se mantém hoje em dia, na determinação de quem pode ensinar, quem pode fazer cursos, e como podem aceder. É, de facto, uma regulação total da profissão, mesmo sobre o elemento que estava a dizer: a autonomia ou a liberdade de um médico em ter a sua própria consciência.
Sim, mas, por exemplo, um pediatra, dentro destas regras da liberdade e da legis artis, não pode de repente decidir fazer uma operação ao coração.
Não, não, esses são os casos mais simples de resolver, porque a questão que está aqui, na imprensa, é sobre o acto de publicar. Pessoalmente, defendo – e a minha tese de doutoramento debruça-se nisso – o conceito de acto jornalístico. Fui à procura da definição, e comparei o acto jornalístico com o acto médico, e com o acto jurídico. E há uma diferença fundamental: enquanto o acto médico é sobre mim ou sobre si, quando vamos ao médico, já o acto jornalístico não vive só por si, integra-se num conjunto, numa publicação, num noticiário de rádio ou de televisão, ou num blogue. Ou seja, só por si, uma notícia não vale. A notícia só vale integrada num fluxo, seja do semanário, diário, o que nós quisermos. Faz parte de um fluxo. Esse fluxo tem um referencial, que é um título ou o “bilhete de identidade” da publicação, e tem um suporte e um enquadramento, que é o estatuto editorial. Um jornalista tem toda a liberdade e autonomia, igual à do médico ou do advogado, mas só até ao momento em que diz: “isto está pronto para publicar”.
Ou seja, a publicação não depende do jornalista…
A publicação, o direito de publicar, até legalmente, já não lhe compete. Por isso é que há um problema, que não querem discutir nem debater – mas que eu passo a vida a chamar a atenção: quando o jornalista trabalha numa redação, para um editor, e depois chega ao fim do dia a casa e é editor do seu próprio blogue. O que é que pode acontecer? É uma de duas coisas. Eu tenho discutido muito isto com o Sindicato [dos Jornalistas]. No princípio, o Sindicato não gostava de discutir. Hoje já estamos mais abertos. O jornalista pode escrever no seu blogue sobre o mesmo tema que escreveu no jornal de manhã, ou coisas diametralmente opostas ou diferentes, porque é aquilo que ele acha. Só que de manhã não as pôde escrever, porque não cabiam dentro do estatuto editorial da publicação. Ou, fez uma entrevista e usou no jornal 30% dessa entrevista, e depois agarra nos outros 70% e coloca-os no seu blogue. A questão é: quando ele se apresentou perante si ou perante mim para a entrevista, disse: “eu sou o Manuel, jornalista, ponto”, ou disse “eu sou o jornalista que tem o blogue ‘Coitadinha da Ceguinha’”, ou disse “eu sou o Manuel jornalista que venho do Diário de Penacova? É isso completamente diferente para mim, que dou a entrevista, porque eu estou a colocar o jornalista, não só na sua capacidade de pessoa que faz notícias, mas também num sistema de difusão e de divulgação que está aferido a um estatuto editorial. E é tudo isso que o estatuto editorial representa.
E como fica a CCPJ no meio disso?
A CCPJ foi a solução menos má, que foi possível encontrar, para a evolução do sistema anterior – que as pessoas já não se lembram –, que era o Sindicato dos Jornalistas. Era o Sindicato dos Jornalistas que passava as carteiras profissionais, porque no sistema corporativo, os sindicatos passavam as carteiras profissionais das corporações a que pertenciam [durante o Estado Novo]. E estavam incluídas numa espécie de um conselho da corporação, que, no nosso caso, era a Corporação de Cultura e Artes gráficas. E esse Conselho da Corporação tinha representantes de impressores, artistas, cançonetistas… Também tinham uma carteira profissional. A carteira profissional destes todos, que estavam nesta corporação, como os outros que estavam nas outras corporações, eram, por lei, passadas pelos sindicatos.
Isso mudou…
Quando o sistema corporativo acabou, os sindicatos – entre os quais o Sindicato dos Jornalistas –, continuou a passar normalmente as carteiras. Simplesmente, neste sector houve uma alteração que não houve nos outros sectores. Tivemos uma Lei de Imprensa e a Constituição, depois, que veio dar a esta actividade uma protecção especial, e às carteiras um significado e uma responsabilidade na sociedade completamente diferente das outras. Em muitos casos, as carteiras das outras actividades serviam para as pessoas dizerem que estavam vacinadas; para se servir à mesa tinha de se ter uma carteira profissional para se dizer que se tinha feito a BCG [vacina do Bacilo Calmette–Guérin], era o que as carteiras diziam. Não podiam dizer muito mais do que isso. E esta evolução, que as pessoas naturalmente se esquecem, fez com que, quando Portugal entrou na União Europeia, tudo isto tivesse de ser reformulado. Mesmo assim, a actividade dos jornalistas ficou esquecida. Lembrem-se, por favor, que a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas foi a última a terminar. Era como se os jornalistas estivessem fora da normal relação laboral.
Consta que aí, o seu fim, teve a ver também com interesses dos grupos de media, porque a Caixa era financiado por uma pequena parcela da publicidade…
Era também financiada por uma pequena parcela de publicidade, sim, que tinha a ver, sobretudo, com os anúncios nos jornais diários dos cinemas, e de outras coisas assim do género. Mas se houve algum interesse privado, não foi esse de certeza. [O adiamento na decisão de extinguir a Caixa, que ocorreu em 2012] terá sido uma boa vontade de respeito pela última presidente da Caixa dos Jornalistas, e terá sido isso que foi muito importante, com certeza, na época…
Está a falar da mãe do primeiro-ministro [Maria Antónia Palla]?
Se calhar, estou a falar da mãe do ministro da Justiça [António Costa], na altura…
Mas a Caixa até tinha excedente…
Sim. Aquilo que aconteceu foi uma coisa muito simples: a grande função social e de apoio que a Caixa dava foi substituída pela Casa da Imprensa, que teve um período muito difícil. Mas é muito interessante, porque é com o fim da Caixa de Previdência que a Casa da Imprensa se vê obrigada a tornar-se num verdadeiro apoio de solidariedade para os jornalistas: E hoje é uma instituição… Aliás, aqui na Associação Portuguesa de Imprensa temos um protocolo com a Casa da Imprensa, e todos os editores e suas famílias e seus empregados, sejam jornalistas ou não, beneficiam de todos os apoios que a Casa da Imprensa concede.
Regressemos à CCPJ…
A CCPJ é uma cooperação bipartida, mas em que o Estado não tem hoje nenhuma intervenção. Houve, durante alguns anos, a obrigação do seu presidente ser um juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Agora, os quatro elementos que representam os editores são obrigatoriamente jornalistas. E há outros quatro que são eleitos pelos jornalistas.
Mas antes podiam ter carteira profissional, mas nem todos os que eram indicados pelas empresas do sector tinham de ser jornalistas, podiam ser colaboradores ou equiparados.
De acordo com a lei, as carteiras profissionais, desde que válidas, são todas iguais. E isto é uma matéria que está em cima da mesa: Mas isso é a minha opinião, pessoal, que não é trazida para aqui. Mas todas as carteiras que são emitidas pela CCPJ valem exactamente a mesma coisa.
Falemos agora da ERC. Por vezes, é criticada por ter uma postura demasiado hostil para com a imprensa; outras vezes por ser demasiado benevolente.
Primeiro, não podemos olhar para a ERC sem olhar para aquilo que veio antes. A ideia da [concepção] da ERC era que fosse disruptiva em relação ao modelo da Alta Autoridade [para a Comunicação Social], que era um modelo de representatividade: os editores nomeavam duas pessoas, o Sindicato nomeava duas pessoas e os partidos políticos com assento na Assembleia da República nomeavam, cada um deles, um representante. E, depois, no fim disto tudo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomeava um juiz para presidir. Reparem: os juízes nomeados para aqui foram quase sempre juízes que vieram dos tribunais administrativos. Porquê? Porque, do ponto de vista do CSM, estas entidades são entidades administrativas independentes. Não são entidades para dirimir questões como a liberdade da imprensa, que não tem nada a ver com a Administração; são regras que têm a ver com direitos, liberdades e garantias, portanto, com a Constituição. Qual é a parte do direito administrativo que estão nestas entidades? São os registos e toda essa parte. E, portanto, nisso, essas entidades, melhor ou pior, sempre funcionaram.
Mas há um outro lado importante, o da regulação.
Como eu costumo dizer, há um pecado original, que temos de ir vê-lo, lá atrás. E o “lá atrás” é: estas entidades são a consequência da nacionalização da maior parte dos meios de comunicação social em Portugal em 1975. A seguir ao 11 de Março de 1975, houve uma nacionalização geral, da qual só escapou a imprensa regional, para além de um ou outro de âmbito nacional. Tirando isso, houve uma nacionalização total. Esta primeira matriz, da qual a maioria das empresas grandes em Portugal faziam parte, daquilo que era a coisa pública, eram geridas pelo Código Administrativo. Mas, na verdade, não eram, porque uma coisa que as pessoas nunca se lembram é do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas, em 1978-1980. Era igual, na estrutura, ao Contrato Colectivo de trabalho que foi feito para a Administração Pública. A mesma coisa, o mesmo tipo de carreiras e de jornalistas, de primeira, de segunda, de terceira. Onde é que vocês encontram isso? Na Administração Pública, onde há um técnico de primeira e de segunda. Portanto, é a mesma lógica. Os contratos colectivos que não eram de jornalistas, mas que eram dos outros trabalhadores, chegavam a ter 80 categorias diferentes, porque era o cozinheiro de primeira, de segunda, de terceira, o motorista de pesados… Há 10 anos tivemos de acabar com isso tudo, porque não fazia sentido, não tinha nada a ver connosco.
Houve que mudar isso.
Temos de ver que, nessa altura, o Conselho de Comunicação Social – que é o avô ou o bisavô destas entidades – convivia com o Conselho de Imprensa, que era uma entidade de autorregulação do sector, e convivia com uma coisa que eram os Conselhos de Informação, uma espécie daquilo que é, agora, o Conselho de Opinião da RTP e da RDP. E havia um Conselho de Informação para a imprensa, que tratava dos jornais do Estado, um para rádio e outro para a televisão. E, se formos ver o funcionamento e a matriz do funcionamento destas entidades, vai tudo parar ao Direito Administrativo. Em 2005 e 2006 – primeiro com o Governo do Durão Barroso e, depois, do Santana Lopes, quando era ministro o Nuno Morais Sarmento –, fez-se uma primeira tentativa de um novo tipo de contrato de concessão para a rádio e para a televisão, em consequência da directiva AVMS [Audiovisual Media Services], do sistema audiovisual e dos serviços multimédia. Por causa dessa directiva tiveram de fazer alterações na Lei da Rádio e da Televisão, e ao fazer essas alterações, tinham de atribuir à então Alta Autoridade para a Comunicação Social competências que, com a estrutura que detinha, dificilmente conseguiria cumprir. Então, foi criada a ERC na base de os ‘regulados’ não terem nada a ver com a regulação; estão fora. Abandona-se o sistema anterior, a representatividade dos sindicatos e das associações empresariais. Esses ficam de fora. E reduz-se a representatividade dos partidos com assento na AR a quatro representantes. E, depois, esses representantes deviam cooptar, entre si, uma quinta pessoa, que era o presidente. Este foi um sistema que derivava de estudos avançados na Europa sobre o que devia ser a regulação, e como se deveria organizar – não especialmente deste sector, mas em geral. Aplicado num país que tinha detrás toda esta tradição, resultou que, no fundo, os reguladores foram, uma vez mais, vistos como funcionários para executar tarefas administrativas.
De qualquer modo, a ERC já existe há muitos anos. É efectivamente um regulador sem os regulados, e tem sobretudo um peso político-partidário muito forte…
A que se junta uma outra coisa, que é um sistema de financiamento completamente idiota. Idiota é a palavra. É idiota, porque é um sistema de financiamento tríplice, que faz com que os únicos que pagam, verdadeiramente, são os regulados. E que faz com que – voltamos à matriz administrativa –, muitas vezes, a ERC está mais preocupada em sobreviver, arranjando maneira de aplicar as taxas; e nós aqui percebemos isso…
PAV: Está a falar também das multas?
Não, primeiro fazer receber as taxas, e depois as multas. Percebemos isso quando temos aqui entidades reguladas com reclamações sobre: “ah, estão-me a dizer que o título que eu estou a imprimir agora é amarelo e antes era azul”. Ou: “Ah, e que o título no telemóvel sai mais apertado do que aquilo que está lá no não-sei-quê”. Mas em que mundo é que nós estamos? Mas isto é o Direito Administrativo a funcionar, é a deriva administrativa, com a falta de dinheiro. Porque o único sistema que funciona, de facto, no financiamento da ERC, são as taxas que pagam os regulados. A parte do Orçamento do Estado está sempre sujeita a tranches e a duodécimos, e até antes da troika já era assim. E há a outra parte da ANACOM, que está sempre guardada pelo ministro das Finanças. Na verdade, a maior influência político-partidária que existe em relação à ERC é no financiamento, porque é onde o político Governo tem, de facto, uma arma para encostar à parede a independência e a autonomia das pessoas que estão no Conselho Regulador. Se não têm para pagar aos seus funcionários, o que é que lá estão a fazer? A ERC nunca foi capaz de estabelecer os mercados preferenciais, porque não consegue pagar os estudos indispensáveis para estabelecer os mercados preferenciais. Ao não os estabelecer, tudo o que tem a ver com questões de posição dominante, de concentrar muita publicidade, etc., pode ser o que eles dizem; como pode ser o contrário.
Aliás, há pouco tempo, a ERC fez uma análise sobre a distribuição dos montantes da publicidade institucional do Estado no âmbito da pandemia, e chegou uma vez mais à conclusão de que os órgãos de comunicação social regionais estavam a ser preteridos em relação aos nacionais, e de que as televisões estavam a receber mais do que deviam. Mas detectam isso, e depois não acontece nada. As situações repetem-se passado uns tempos, não é?
Existe um relatório que fizemos aqui na Associação, nessa altura, para a ERC, que permitia que pudesse ter dito coisas muito concretas e precisas… Poderia ter tomado uma iniciativa no sentido de melhorar a lei da publicidade institucional do Estado. Não o faz porquê? A ERC não faz supervisão.
Ainda sobre a ERC. Faz sentido haver uma Lei da Transparência dos Media, com um portal gerido pela ERC, e depois haver a possibilidade de pedir confidencialidade dos dados financeiros e económicos?
Quando era presidente da Confederação de Meios, quando foi a transição para a TDT [Televisão Digital Terrestre], fui nomeado, pelas três televisões, o negociador da TDT com a ANACOM. E, a certa altura, na história do concurso – que foi ganho na altura pela PT para os sistemas radiantes para a TDT, etc., –punham-se algumas questões sobre os preços, e sobre a forma como a própria PT queria tratar de elementos que achávamos que eram fundamentais para o negócio, como as boxes e outras coisas do género. E fizemos um requerimento à ANACOM sobre esses dados, e quisemos ver os relatórios que a PT tinha feito. Recebemos 30 dossiês, dos quais 29 tinham as páginas em branco. Diziam “informação não disponível na base dos princípios do sigilo”. A mesma coisa aconteceu-nos com os CTT, quando a ANACOM determinou, talvez há 10 anos, que passasse a haver uma avaliação da qualidade da distribuição postal, e que os CTT tinham de contratar uma empresa independente, que todos os anos fazia a avaliação do serviço. Nós sabíamos que as empresas que contratavam eram de antigos funcionários dos CTT. Também dissemos que queríamos ver os relatórios. Não era 90% que veio em branco, mas cerca de 70% veio em branco.
Mas insisto na questão: há uma legislação sobre a Transparência dos Media e depois pode haver partes confidenciais?
Tenho, como se diz, “mixed feelings”. Porque a Lei da Transparência portuguesa é mais exigente que a lei da CMVM para as empresas. Ou seja, exige mais informação e informação mais detalhada do que a CMVM exige às empresas que estão em bolsa. Portanto, é de facto uma lei muito detalhada do ponto de vista da informação para o cidadão.
Mas por que motivo se fazem leis fantásticas ou exigentes, ou demasiado exigentes, e depois, de uma forma administrativa, porque foi a ERC que fez um regulamento, se criam excepções?
Não, não, não é a ERC que faz o regulamento. O regulamento vem do Direito Administrativo.
Está previsto na lei que cabe à ERC fazer o regulamento sobre os indicadores financeiros e a possibilidade de confidencialidade [Regulamento nº 835/2020]. Às tantas, com as excepções aniquila-se o princípio da lei…
Eu entendo a ERC, na sua recente proposta, que esteve em consulta pública, quando diz que as empresas cuja actividade principal não é a de editor, só têm de dar informação quando a actividade jornalística pesa mais do que 10% da sua actividade. Acho que isto é injusto, por uma razão simples: até 2000, 2001, a Lei de Imprensa, e o regulamento dos registos, dizia que qualquer empresa se podia inscrever como empresa editorial. Qualquer empresa. Portanto, nós tivemos aqui associados como a Siemens, a Ordem dos Advogados. Edita uma revista, inscreve-se na ERC e depois é nosso [associado da API]. A partir de 2000 ou 2001, houve uma alteração aos registos, e os registos dizem que caducam todas empresas que não têm como actividade principal a de editor, mas, no entanto, os registos das publicações continuam válidos. E as empresas proprietárias continuam a ser consideradas empresas editoriais.
Ainda têm os registos das publicações válidos.
Isto quer dizer – e temos tido aqui vários casos – que uma empresa que estava registada e tinha uma publicação periódica, à qual lhe foi cancelado o registo, continua a sê-la, do ponto de vista da edição da publicação… Essa mesma empresa, no entanto, se depois quer editar outra publicação, tem de criar uma empresa à parte para a publicação nova. Aquilo que respondemos foi que as empresas que estavam registadas antes da alteração devem ter um tratamento diferente daquelas que se registaram depois. Porque depois da alteração, não é possível haver empresas editoras que não tenham como actividade principal a edição. Portanto, faz todo o sentido dizer que só se tiver um peso ínfimo não indicam os dados. Enfim este é um sector muito regulado, mas mal regulado. Mal no sentido em que a regulação foi sempre feita para resolver ou problemas que nos foram postos por fora, ou problemas de evolução tecnológica.
Mas quando estávamos a falar na confidencialidade dos dados ou de terem de indicar, não nos referíamos a entidades que claramente não têm actividade jornalística, como, por exemplo, as Ordens profissionais ou os partidos que têm publicações, e que estão no Portal da Transparência. Estávamos a pensar em grupos de media – e houve casos polémicos abordados pelo PÁGINA UM –, que tentam esconder algumas dependências externas ou dívidas. Aí, qual deveria de ser o critério? Um critério em termos de dimensão do volume de negócios ou algo do género, ou deve ser o tal critério de 10% acima disto ou 10% acima daquilo?
A dimensão das empresas que estão inscritas na ERC é um dos maiores problemas para a subsistência do sector, para o desenvolvimento e a transição para o digital e, do meu ponto de vista, para a organização da regulação. De acordo com os dados da Europa e a classificação das empresas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], temos uma grande empresa de media… Uma, neste sector da imprensa. Depois, temos 54 ou 56 médias empresas. E depois, todas as outras mil e não sei quantas são pequenas ou microempresas.
A grande, será a Cofina, e depois o grupo Impresa?
Sim, mas a Impresa, não a holding, porque a SIC é uma empresa separada. A TVI não tem imprensa, portanto não entra nesta linha. O maior drama deste sector é que, neste momento, cerca de 25% das suas empresas não perde dinheiro e há 75% que perde. Mas os 25% que não perde dinheiro, não perde porque está ali nos 0%, 0,1%, 0,2% [de rentabilidade]. E nos 75% em que se perde dinheiro, há gente a perder muito dinheiro.
É normal que grande parte do sector esteja em constante crise e em constante défice?
A maior parte das empresas são pequenas ou microempresas, e para essas as regras são completamente diferentes, quer na gestão quer na forma como estão no mercado. O resultado é, depois feito a partir dos papéis que dão; e os papéis não têm lá essas minudências de relação. Por exemplo, uma das coisas que nos preocupa muito, neste momento, é o projecto europeu de regulação para a área dos media, que prevê, desde o início, que as microempresas não sejam reguladas. Portanto, isto quer dizer que 80% das empresas que estavam na ERC, desapareceriam da ERC. Depois, como é que isso se compagina com a lei portuguesa, com estes anos todos em que estiveram na ERC a pagar uma taxa. Quer dizer, enfim… Este é o primeiro aspecto. Segundo aspecto: há um movimento muito forte europeu de colegas de outras associações que querem também tirar as pequenas empresas. Isso, de repente, faria com que em Portugal haveria, para regular, menos de 100 empresas neste sector. Se calhar, era aquilo que um sector desta dimensão em Portugal deveria ter. Só que não pode perder a riqueza que é a diversidade e o pluralismo de todos os outros. Não sei como é que isto vai acabar. As microempresas estão, desde o princípio, na proposta da Comissão.
Mas essa regulamentação comunitária está concluída?
Não está ainda concluída. Já está muito avançada nas votações no Parlamento Europeu e, quer a Presidência [do Conselho Europeu] sueca, em curso, quer a presidência espanhola – que vem a seguir –, querem fechar estes processos antes de entrar no ano eleitoral, em 2023. Ainda por cima é um regulamento, portanto não tem a mesma latitude de uma transposição, que poderia determinar que as microempresas ficavam excluídas nos próximos 10 anos.
Será a ERC que terá de tomar conta de uma série de novas regras que estão previstas?
Não é só isso. A ERC vai ser integrada num regulador europeu. Quer dizer, é uma coisa completamente diferente que se vai passar.
Um bocado como o Infarmed [em relação à Agência Europeia do Medicamento]?
Sim, e com a ANACOM, e com todos os reguladores. Vão ser integrados num regulador europeu, que já existe, que se chama a ERGA [European Regulators Group for Audiovisual Media Regulators], e que já existe como associação de reguladores deste sector. Habituaram-se a trabalhar uns com os outros, mas vai ser uma mudança imensa. Agora, a questão é se ficam de fora uma quantidade de microempresas e se vingar a ideia das pequenas empresas… Eu até admito que estamos num movimento em Portugal de médias empresas se tornarem pequenas ou microempresas, para fugirem à regulação.
E quais serão as consequências disso? Fala-se muito na desinformação, no rigor informativo e na forma como agora começam a aparecer conteúdos que estão ali num misto entre comercial e jornalístico. Como é que depois isso vai funcionar em termos de regulação? Qual será a entidade externa que estará ali a proteger o leitor?
Teoricamente, as microempresas deixam de ser consideradas como empresas que podem editar uma publicação periódica, seja digital, papel ou o que for. Isto contraria a Constituição Portuguesa, que diz que ninguém pode ser impedido, por razões administrativas, desde que cumpra com os registos necessários. Por outro lado, toda a História da legislação portuguesa sobre comunicação social, desde os anos 1820, teve sempre como principal objectivo determinar como é que era feito e verificado o registo. E depois, quem é que decidia…
Mas num cenário de uma empresa deixar de estar sob regulação, significará que deixa de poder editar?
Não. Pode editar, mas vale é a mesma coisa que um boletim [risos], ou qualquer coisa que é distribuída. Quer dizer, não tem protecção específica.
Quer queiramos quer não, o facto de um órgão de comunicação social estar registado na ERC, de certa forma dá um estatuto diferente…
Dá uma responsabilidade, e dá uma obrigação de cumprimento de regras deontológicas. Cumpra-se ou não.
Se há então esse “risco” de pequenos órgãos de comunicação social poderem ficar desobrigados das regras da ERC, mas também ficam sem o seu cunho. Porque, na verdade, o facto de um jornal poder ser alvo de uma entidade com poder regulador, dá-lhe também uma responsabilidade…
Exactamente, e permite-lhe exigir um respeito de determinados princípios que têm como base a liberdade de imprensa
Portanto, não vê que este novo regulamento seja favorável para o sector.
Acho que o regulamento, da maneira como está, foi muito feito em cima do joelho em Bruxelas, e de modo a ficar pronto a tempo antes das eleições. Não se pensou, não se maturou o suficiente. Nós, em Portugal, temos este problema, mas a Espanha tem um problema completamente diferente. A regulação em Espanha pertence às regiões autonómicas, e não têm regulador nenhum. Zero regulador. Vão ficar dependentes do regulador de Bruxelas de um dia para o outro. Ainda é mais complexo. Agora, o problema deste tipo de coisas é não olharmos para o que ele significa realmente. E esta mudança, que a Europa está a fazer, tem uma base. E foi dita logo pela Comissão desde que tomou posse: temos de estruturar os media europeus de uma maneira forte, organizada, e para que possam concorrer no Mundo inteiro, transmitindo os pontos de vista e as visões europeias sobre os temas mais importantes e mais profundos. Quer dizer que quem tem uma dimensão hiper local, não faz parte deste discurso.
Prevalece o europeu, deixa de lado o local…
E, na maior parte dos países da Europa, porque houve guerra, destruição e fronteiras que foram deslocadas, é muito recente a organização e a implantação dos órgãos de comunicação social. Portanto, já é feita numa perspectiva de uma certa dimensão. Em Portugal, não estamos tal e qual como estávamos em meados do século XIX, porque não tivemos guerra, nem cataclismos… Neste momento, o que pode acontecer é haver um empurrão para um crescimento do acordo do tamanho das empresas. Convencidos de que isto era um benefício, por volta de 2006 e 2007, pedimos ao Governo, e o Governo criou, um apoio à cooperação e ao desenvolvimento empresarial. Mas fica quase sempre deserto. Ninguém concorre a isso, quase. Depois, há muitas razões, na CCDR [ Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] do Norte pedem isto, e na do Sul já pedem aquilo… Há razões dessas que nós conhecemos. Mas, na verdade, não podemos dizer que haja um fluxo das empresas a dizer: “vamos lá aproveitar isto, que o Estado vai pagar aqui alguma coisa para nós aprenderemos a cooperar e a viver uns com os outros”.
Fala-se muito da questão do serviço público da imprensa. Ou seja, como o mercado não consegue ou não quer pagar esses serviços que a comunicação social dá, o Estado deve apoiar. Recentemente, por causa da pandemia, houve critérios um pouco estranhos na atribuição de verbas à comunicação social. Concorda com um modelo de financiamento por parte do Estado? E se sim, esse financiamento deveria ser regular ou apenas pontual, e com que critérios?
Para o bem e para o mal, a Constituição diz assim: serviço público é rádio e televisão, ponto. Por aí, não vamos lá. No entanto, a Lei de Imprensa diz que compete ao Governo acompanhar e verificar as condições económicas do sector, por forma a que essas condições económicas não possam pôr em causa o pluralismo e a diversidade. Portanto, não é pela evocação de que é um serviço público, mas é pela obrigação do Estado, e isso leva-nos aos apoios. É isso que permite os apoios, quando a Europa [União Europeia] impede apoios estatais em sectores.
Quando falo de serviço público, estava mais a pensar no conceito de bem público do ponto de vista da teoria económica. Ou seja, o Estado intervir quando um bem não é suficientemente valorado pelo mercado, mas que é fundamental…
Sim, eu sei, eu sei. Eu digo sempre que se a Constituição não dissesse “serviço público é este”, poderíamos falar assim. Acho que uma vez que a Constituição diz isto, para não haver confusões, é melhor não falarmos de serviço público nem de serviço ao público, porque são coisas confusas. Agora, por outro lado, como a Lei da Imprensa diz isto, e a própria Constituição também reconhece, o Estado tem de se preocupar com esse lado; é isso que permite ajudas do Estado em Portugal. Mesmo assim, ainda temos aí muitos problemas e muitas questões. Agora, a Comissão e o Parlamento Europeu, nos últimos anos, têm recomendado aos Estados que apoiem a imprensa, através da publicidade institucional. Mas o problema da publicidade institucional do Estado é que não tem um significado igual em todos os Estados-membros da União Europeia.
Varia de país para país…
O Estado que tinha este conceito mais avançado era a França, depois a Itália e a Inglaterra. O Governo português seguiu sempre um modelo muito próximo do modelo francês, e portanto, há um sistema de apoio. Depois, criou-se um sistema da publicidade institucional do Estado. Esta publicidade representa, em globo, que o Estado seria o maior investidor publicitário em Portugal. Seria, não: é o maior investidor publicitário em Portugal. E não estou a falar de uma outra coisa, que são as publicações obrigatórias e os anúncios. Isso é algo que, para algumas publicações, conta muito. Quer dizer que vivem com base nisso e têm imensos problemas por causa do código das aquisições públicas [Código dos Contratos Públicos], porque estabelece limites que muito depressa são ultrapassados. A publicidade institucional do Estado, se se cumprissem as regras todas que estão na legislação, deveria funcionar de uma maneira equilibrada. Qual é o problema? A lei foi feita numa altura, na década de 1980, em que eram as agências de publicidade que compravam o espaço para as campanhas que produzia. Não havia centrais de compras.
E as coisas mudaram..
Hoje, os departamentos de Estado têm toda a liberdade de fazer concursos, na base da lei da publicidade institucional, ou só para a criatividade, ou para a campanha completa. Aqueles que fazem só para a criatividade, depois vão ter de fazer outro concurso para comprar o espaço para aquela campanha. E a este concurso, só concorrem as centrais de compras. Os que fazem para uma empresa que oferece tudo, essas empresas, na maior parte dos casos, vão comprar o espaço às centrais de compras. Isto quer dizer que é muito difícil, no procedimento administrativo da compra, distinguir a forma como essa compra influencia, de facto, a distribuição da publicidade do Estado. Os franceses, no fim do tempo do Mitterrand, inventaram uma lei – que deu pelo nome do então ministro das Finanças, o senhor [Michel] Sapin – que obrigava a que, quando o Estado comprava publicidade, as facturas dessa publicidade obedecessem a um descritivo específico, em que havia o preço da publicidade, que é o preço que está na tabela de publicidade, e depois tinha descontos. Toda a gente é livre de fazer os descontos que quer, mas os descontos estão lá. E depois dizia uma coisa: tudo paga IVA. Ou seja, o desconto paga IVA? Paga, sim senhor. Portanto, o desconto pode ser feito, mas tem de ficar claro e tem de se saber a razão desse desconto, e, em última análise, constitui fiscalmente um crime não mostrar os descontos. Bom, isso depois caiu em desuso, e já num dos Governos de Macron, que chamou outra vez o senhor Sapin para ministro das Finanças, repôs-se a lei, há três ou quatro anos. É evidente que não foi tal e qual, como no final dos anos de 1980, com o Mitterrand, mas repô-la em vigor já com adaptações actuais. Portanto, há formas, e há formas actuais – não me venham dizer que são só antigas – de tornar mais transparente as compras da publicidade institucional do Estado.
Mas o apoio do Estado deve ser só através da publicidade, ou pode haver mesmo um mecanismo de apoio automático?
Olhe, nós aqui na Associação temos estudado isso até à exaustão, quer comparando com outros países, quer comparando com a realidade portuguesa. E vou dizer-vos: o mecanismo que salvou a imprensa portuguesa, entre 1983 e 1985, quando houve o primeiro default, em que esteve cá o FMI, foi o subsídio ao papel, que é um subsídio de que toda a gente diz mal. Toda a gente diz que havia aldrabices, roubalheiras e 30 por uma linha. Mas se olharmos efectivamente para a situação, e para o que aconteceu a partir daí, nos anos de 1987 a 1989, que foram anos equilibrados para a imprensa, foi isso que a salvou naquela altura. Portanto, a partir daí, na Associação estabelecemos um programa que se chama PECSIR [Plano de Emergência para a Comunicação Social, Imprensa e Rádio], e já vamos para aí no PECSIR 4 ou 5, porque o vamos adaptando. O modelo era um pouco o mesmo, só que o subsídio não era dado ao papel, era dado às leituras ou às vendas.
Até porque agora praticamente já nem temos imprensa em papel. Aliás, por exemplo, o Público já é maioritariamente um jornal digital, e até o próprio Expresso está nos 50-50 entre papel e digital…
Sim, tem havido uma adaptação, claro.
Através da contabilização da assinatura digital…
Eu costumo sempre dizer que as assinaturas em digital – a palavra “assinatura” – são a prova de que este sector pensa muito pouco e investe muito pouco na universidade ou nos estudos sobre esse tema. Porque eu não compro assinaturas nenhumas, eu compro acessos. E é isso que nós devíamos dizer. Os acessos é que contam, não são as assinaturas. As assinaturas era uma coisa que havia no tempo do papel, não é? Em que nós transferimos, em termos de vocabulário, a palavra “assinatura” de outras actividades que tínhamos.
Em todo o caso, continua-se a falar e a contabilizar as assinaturas. Ainda há tempos, no Portal Base surgia certa Câmara Municipal a comprar umas centenas de assinaturas digitais, durante seis meses, ao Público.
Pois, eu não sei o que isso é. Eu luto sempre. E em situações como estas, digo sempre: não há assinaturas, aquilo que há são acessos. Até porque aquilo que o Governo é obrigado a preocupar-se, face à Constituição, é do acesso dos cidadãos à informação. É isso que lá está escrito! Portanto, são acessos pagos, mas são acessos. Temos na Associação acompanhado alguns projectos que têm tentado resolver isto. Um projecto, não sei se já ouviram falar, o Pay per View, que era um projecto em que existe uma transacção de acessos, e depois quem tem o acesso só tem de determinar o tempo em quer o acesso. Nesse tempo tem a faculdade de dizer: “eu pago”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que gosto”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que leio”, ou mesmo “eu só pago quando tenho um artigo que vou distribuir aos meus amigos”. E então isto obriga-me a pagar. Portanto, tem estas possibilidades todas. Em qualquer circunstância, são acessos. Quer dizer, a pessoa inscreveu-se, digamos assim, para através de uma aplicação poder ter acesso a publicações e, depois, a publicação é que determina: “não, eu só dou acesso se me pagares tanto”, ou “eu dou acesso desde que dês qualquer coisa”. Mas tem o acesso.
Regresso à pergunta inicial: advoga que se adoptem modelos de financiamento mais constantes por parte do Estado?
Se calhar estou há demasiados anos nesta cadeira, e, portanto, é o que os meus filhos me dizem quando discuto isto com eles… Por vezes, o facto de já ter tentado tantas vezes determinadas soluções, leva-me a dizer: “essa já não vale a pena”. Todas as soluções que se baseiam no princípio de dizer às pessoas: “olhe que a liberdade de imprensa não é uma coisa adquirida, é preciso fazer alguma”, batem sempre na parede. Sobretudo as gerações mais novas, acham que a liberdade de imprensa é como o ar, quer dizer, está aí, portanto, porque é que eu tenho de me preocupar com isso? Isto depois tem a ver com a desinformação e todas essas coisas: não tem havido maneira suficientemente forte de chamar a atenção para isso. Portanto, tenho defendido que, de um lado, temos a publicidade institucional do Estado, e do outro lado, isenções fiscais. Estas são as ferramentas seguras para que não haja no meio disto uma tentativa de “eu dou mais a este do que dou àquele”, e de começarmos a discutir coisas intermináveis. Como, por exemplo, estamos agora a discutir por causa da transposição da directiva dos direitos de autor, que é: “como meço aquilo que eu ganho ou não ganho?”. Eu não meço nada, quer dizer, não tenho capacidade para medir nem para analisar. Mas se me perguntarem, eu também não tenho dados para lhes dar [risos]!
Vemos, por exemplo, casos de relações de empresas de media com autarquias, como se viu recentemente com a Câmara de Gaia… Não era melhor haver uma forma de financiamento e apoio ao sector que não passasse por estas “parcerias comerciais”, que acabam sempre por beneficiar os mesmos, os grandes grupos?
Sim. A publicidade institucional do Estado, de um lado, que é investimento, e é investimento que tem a ver com o mérito de quem tem ou não tem leitores, de quem tem ou não tem pessoas que vão ver. E, do outro lado, isenções fiscais, que essa é igual para todos; os que têm mais negócio têm mais, e os que têm menos negócio têm menos.
Mas através do IRC, essa vantagem é quase irrelevante, porque grande parte das empresas paga pouco ou nem paga, quando tem prejuízo…
Não, mas há isenções fiscais em relação à publicidade. Por exemplo, a majoração da publicidade, em relação aos investidores de publicidade. Não estou a falar do Estado, estou a falar dos privados. Quer dizer, você investe 100; no entanto, nas suas contas põe lá que investiu 150 em publicidade.
No caso da imprensa, porque não haver um apoio em função do número de jornalistas ou de notícias? Mas notícias produzidas em exclusivo, ou seja, não é aquilo que acontece agora, que é uma notícia feita por uma agência, e depois temos o churnalism…
Não sou muito fã dessa ideia, por causa da contratação colectiva de trabalho. Só por isso, não sou muito fã dessa ideia. Eu sou um defensor – vencido neste sector, porque a maior parte das pessoas não pensa como eu, e ainda bem – de que não é possível avaliar jornalistas como se avalia outro tipo de trabalhadores. Não é possível. Como é que eu avalio os jornalistas? É que esse modelo levaria a isso. Estamos a seguir há alguns anos, com muito interesse, uma situação que existe na Madeira, que resultou de uma luta que tivemos durante anos contra o Alberto João Jardim [presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015] por causa do Jornal da Madeira, que era subsidiado pelo Governo Regional. Tivemos uma luta que meteu Presidentes da República, quase secretários-gerais das Nações Unidas da época. Mexemos tudo e mais alguma coisa, e já no fim ele [Alberto João Jardim] lá mudou. E em consequência disso, hoje existe um sistema de apoio da Madeira, que se chama o MediaRam: o Governo Regional paga uma parte do salário de cada jornalista, que cada publicação emprega, mais os custos sociais. E isto tem funcionado sem problemas. Temos falado disto muitas vezes aqui no Governo central, e dizem: “é impossível, não podemos fazer, porque a Comissão Europeia cai em cima de nós”. E nós dizemos: “mas na Madeira fazem”. Temos a certeza que não tiveram que pedir o estatuto de região ultra-periférica para poderem fazer isso. Portanto, fazem. E posso-lhe dizer mais: muito recentemente estivemos com o Governo Regional dos Açores, que também está a estudar a possibilidade de passar a fazer isso nesse arquipélago. Portanto, eu penso que sim. Todas essas soluções são possíveis. E volto a dizer: em Portugal esta [solução] está na Madeira.
Estamos a centrar a entrevista muito na parte financeira e de sustentabilidade dos jornais, mas apontam-se muitas culpas às novas plataformas e ao desinteresses dos jovens, e fala-se pouco na qualidade da imprensa. Esse modelo não valorizaria o jornalista?
Daquilo que sabemos das publicações fora de Portugal, as que têm êxito são as que apostaram na qualidade do jornalismo, embora a qualidade do jornalismo seja muito difícil definir – eu passo a vida a dizer isso. No entanto, aquilo que eu digo sempre é que a qualidade do jornalismo é o cumprimento das regras de informação em relação ao assunto que se está a tratar. Não posso deixar o assunto a meio porque ouvi dizer que o meu concorrente está a… Não posso. Portanto, estes elementos de facto só se fazem com jornalistas e com pessoas que sabem o que é que estão a fazer. Além disso, há uma posição muito pouco popular que temos aqui na Associação: entendemos que o salário dos jornalistas não pode ser igual ao salário dos caixas de supermercado ou igual ao salário mínimo nacional.
Mas isso acontece hoje, não é? Há já bastante tempo, aliás…
Sim. Temos a tabela do contrato de 2010, que se aplica às publicações com uma facturação anual inferior a 2 milhões euros; dos valores dessa tabela, metade já foram comidos com o salário mínimo nacional. Portanto, temos esta situação estranhíssima: um estagiário pode ganhar mais do que uma pessoa que entrou para o jornal há dois ou três anos.
No mundo digital é importante não esquecermos as questões de desigualdade de informação e de acesso. Além disso, a difusão nas grandes plataformas seguem critérios próprios sobre desinformação ou fake news. Mas há uma dificuldade de os leitores acederem a informação sobre uma panóplia de temas. Como vê isto no âmbito da liberdade de imprensa?
Primeiro: a liberdade de imprensa, de que estamos a falar, não é a mesma que está nas leis. A liberdade de imprensa que estava nas leis é a do mundo analógico, em que eu posso verificar em determinados tempos – no tempo da notícia –, e posso actuar. A liberdade de imprensa hoje é também a do tempo da tecnologia. Se eu não tiver isso em consideração, seguramente que todos os anos vamos ter uma baixa global – não é só em relação a Portugal –, na percepção que as pessoas têm em relação aos acessos. Portanto, o primeiro problema é esse. Mas depois há um segundo problema, quando eu obrigo as plataformas a serem responsáveis pelos conteúdos que distribuem. Eu digo: “se esses conteúdos forem contra aquilo ou contra aqueloutro, não pode ter”. Essas plataformas não têm como negócio ganhar dinheiro connosco. Sim, nós somos importantes para elas ganharem negócio, mas não é com conteúdos específicos, é com o fluxo geral dos conteúdos. Portanto, essas plataformas não querem arriscar. Preferem ter sistemas automáticos que vão através de leitura de palavras, e cortam.
Mas aí não estamos a assistir a uma crescente erosão da qualidade da informação?
Daí uma velha visão que temos aqui na Associação, e pela qual eu já penei muito, na Europa e até no Mundo: então, eu tenho que estar junto com a plataforma a olhar para isso.
Mas como, se as plataformas são inalcançáveis?
Não; elas são alcançáveis.
Tem conseguido resolver algumas situações?
Sim, temos conseguido resolver algumas situações. Claro que depende muito ainda das relações pessoais, ou seja, de conhecer a pessoa, de falar com ela. É tudo uma questão de organização.
Na sua opinião, o que devem ser conteúdos não autorizados? Isso tem a ver com questões da sustentabilidade também da liberdade de imprensa.
Conteúdos não autorizados são aqueles que são genericamente proibidos pelas convenções internacionais ou pelas leis nacionais, nos casos em que as leis nacionais sejam mais fechadas, como o incitamento ao ódio.
Mas aí estamos a falar de um crime.
Não. O problema é que a plataforma é única, mas as leis não são iguais. Portanto, na dúvida, eu elimino tudo.
Por exemplo, questão da identificação de fake news, há uma questão que salta como argumento: “nunca foi publicado por nenhum jornal, rádio ou tv”. Como jornalista, observo que alguns temas não são noticiados não por serem fake news mas por questões de pressão política ou outra. Não faz com que a história não seja verídica.
Há um estudo anual que devem conhecer, do The Reuters Institute, que faz, há já 13 anos, perguntas sempre sobre essa matéria, nomeadamente sobre o que é qualidade e tudo mais. Os dois temas que os portugueses elegem sempre como pontos críticos são os erros de português e as trocas de referências. Por exemplo, escrever 1495 em lugar de escrever 1945. Ora bem, eu só estou a dizer isto porque os leitores, ou os que acedem à informação, também têm de ser formados. Quer dizer, isto já não é como antigamente que, eu porque sabia ler um jornal, ganhava uma certa cultura. E essa cultura, tornava-me um especialista de leitura de jornal, digamos assim. E, portanto, eu sabia distinguir, sabia ver, sabia analisar o que era um jornal. Hoje, a maior parte das pessoas que lêem notícias, não distinguem. Por exemplo, uma das minhas lutas, muito grandes, com a CCPJ, é esta: a informação não-jornalística tem o mesmo direito da informação jornalística, tem de ser bem escrita, bem tratada e bem-apresentada. Tem é de ser separada da informação jornalística.
É já um fenómeno da literatura brasileira, embora ainda com uma carreira literária curta. O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, arrecadou o Prémio Leya 2018 (e depois o Prémio Oceanos e também o Jabuti), foi aclamado pelo público e pela crítica, já vendeu mais de 750 mil exemplares, foi traduzido em 24 línguas e será adaptado ao pequeno écrã. Formado em Geografia e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, este baiano transporta para a sua arte os universos com os quais se cruzou desde a infância – primeiro através das suas raízes familiares, e até dos seus antepassados, e depois pelo trabalho que exerceu para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O colonialismo, que diz ainda existir no Brasil, as desigualdades e as injustiças sociais são temas omnipresentes na sua escrita. O seu segundo romance, Salvar o Fogo, dá novo corpo à realidade dos que não podem falar por si. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o autor critica as grandes tecnológicas, pelo seu papel na crescente polarização da sociedade, que vê como uma ameaça à democracia, e reforça a importância de se saber conviver com a diferença.
Na sua escrita, há uma tónica muito forte de intensidade, de vivacidade nas palavras e num modo emotivo de contar a história. Essa intensidade vem das suas experiências de vida mais marcantes?
Sim, acho que tem uma relação com isso que você disse, eu até falava mais cedo. Esse mundo da leitura… Tem uma história de Moisés em Salvar o Fogo, quando ele fala da descoberta da leitura, acho que nesse ponto a minha vida se aproxima da história da personagem. Porque de facto, a minha rotina e o meu quotidiano, transformaram-se. Quando eu descobri a leitura, eu tenho a impressão de que a minha vida ficou maior, que ela não se restringe apenas a este espaço que nós chamamos de real. Há todo um mundo imaginário onde eu habito também, e onde as minhas personagens habitam, e que me dão histórias e narrativas que tornam a minha vida maior do que ela é. Então, eu tenho uma sensação de que eu habito estes dois planos – o que nós convencionamos chamar de real –, mas eu também habito a minha imaginação, este plano imaginário. E daí, imaginar que as histórias dessas personagens foram sentidas de uma maneira literal por mim neste plano e transmutar tudo isso em narrativas; transmutar tudo isso para a literatura. O meu interesse pela literatura, e acho que a maior parte do interesse dos autores, no fundo é a gente estar se debruçando sobre a nossa condição humana. Daí a importância de compreendermos as histórias, os sentimentos, e tudo aquilo que faz parte de uma narrativa literária.
Além da imaginação, também o seu percurso profissional e académico permitiu que tivesse um contacto muito próximo com a realidade do Brasil profundo, onde há extrema pobreza e comunidades carenciadas. Que bagagem é que o seu trabalho lhe deu para escrever as histórias? Seria capaz de retratar estas personagens sem essas vivências?
Olha, acho que talvez eu conseguisse escrever, mas não estas histórias e estas narrativas que eu tenho escrito. Vou dar o exemplo de Torto Arado, que é uma história que surgiu para mim muito cedo, na adolescência. Eu era muito influenciado por uma literatura brasileira que tinha sido escrita na primeira metade do século XX, que era uma literatura plural e que dava conta da nossa diversidade étnica e cultural; e depois, o Brasil perdeu-se um pouco neste caminho. Então, eu gostava muito dessa literatura e já foi algo que despertou a escrita de Torto Arado. Mas eu era muito novo, tinha 16 anos, não tinha metade das experiências da vida que eu tive, e que conquistei depois… E aí quando eu fui trabalhar como servidor público no campo brasileiro, há mais de 17 anos, aquela história que já existia em mim cresceu e eu pude contá-la com a densidade e a profundidade com que foi narrada. Então, eu sinto todas essas experiências profissionais que eu tive – e não só profissionais, mas do ponto de vista académico. Eu terminei o curso fazendo graduação em Geografia, fiz mestrado em Geografia e depois um doutoramento no campo da Antropologia e Estudos Étnicos. Toda essa formação me deu um repertório de vida e social que termina reverberando naquilo que eu escrevo. Não existe, nem é dissociável o Itamar que foi pesquisador e cientista e o Itamar escritor; o Itamar servidor público e o Itamar escritor. Eu sou apenas uma pessoa, e tudo aquilo que eu experimentei e vivi termina reverberando naquilo que eu narro e escrevo também.
A pobreza, as desigualdades, o colonialismo e o racismo são temas que não só estão presentes na sua obra, como também os tem abordado publicamente. Considera que um artista deve usar a sua visibilidade para se tornar também, de certa forma, um activista?
Eu gostaria de não ser lido e não ser visto como um activista. Mas eu acho que todos nós criadores que trabalhamos com arte – não só na literatura, mas num contexto geral – estamos reflectindo sobre o nosso tempo, não é? A arte termina sendo um testemunho que temos a compartilhar com o outro da nossa vida, do meio onde vivemos, daquilo que é relevante para nós, daquilo que precisamos pensar e reflectir no nosso tempo. Então, eu acho que é inevitável que coisas que fazem parte do nosso mundo hoje, ou que fazem parte das nossas preocupações hoje, surjam naquilo que nós escrevemos. E claro, depois que me tornei autor e conquistei leitores, eventualmente eu precisei me manifestar como pessoa pública, como cidadão, sobre temas relevantes para o Brasil. Não gostaria de fazer isso com frequência, e tento não fazer com frequência, mas, por exemplo nas últimas eleições presidenciais, eu percebia que o país estava em risco. Então, não havia possibilidade de permanecermos neutros, até porque a neutralidade é uma conduta e uma opção política, não é? E eu disse: não, eu preciso me manifestar.
Torto Arado, romance inédito vencedor do Prémio Leya 2018, arrecadou depois, no Brasil os prémios Oceanos e Jabuti.
Sentiu como se fosse quase uma obrigação?
Eu me engajei mesmo naquele momento, porque achava que nossa democracia e a sociedade brasileira estavam em risco se optassem pela continuidade do governo anterior. Mas eu procuro não participar tão activamente de tudo. Claro que como cidadão eu quero partilhar muitas coisas, mas é porque eu acho que a Literatura já revela e já diz muito sobre mim. Já diz muito do que eu penso sobre o mundo. Então, eu gostaria, de facto, que a literatura bastasse. Que eu nem precisasse falar sobre as histórias, sobre os livros, que elas por si bastassem. Mas como eu sei que não é possível, às vezes eu tento me manifestar e, enfim, ocupar o espaço que os leitores me destinaram para que eu possa de facto fazer valer essa consciência também.
Os seus livros também mostram o poder e a influência da Igreja Católica, nomeadamente como detentora de propriedades e, em certa medida, do domínio que exerce sobre as populações carenciadas. O Brasil é um país muito religioso, onde o Cristianismo tem um peso considerável. A forma como fala da Igreja em Salvar o Fogo pode ser lida como uma crítica directa a esta instituição? Acha que o cristianismo devia ser menos importante para o povo brasileiro?
Eu acho que a História do Cristianismo no continente americano é uma história de grande violência. E neste caso, por acaso, é a Igreja Católica, mas poderia ser uma Igreja Evangélica, e a violência ainda assim seria a mesma. Então, na História da América e de quando o continente foi ocupado pelos europeus – estou pensando nos espanhóis, nos portugueses, nos ingleses, nos franceses –, as sociedades que lá estavam no continente americano foram subalternizadas. Estes europeus que chegaram à América, a primeira coisa que colocaram não foi um tijolo para construir a parede de uma casa. A primeira coisa que se colocou foi uma cruz cristã nestes territórios. E esta cruz foi símbolo de muitos apagamentos de saberes, crenças e filosofias que existiam antes. Então, a história da Igreja Católica em Salvar o Fogo é a história de uma personagem, que é esta instituição, e que nos atravessa ao longo da História. Nos atravessa de maneira definitiva. Durante muito tempo, o empreendimento colonial escravista só teve êxito porque tinha o apoio decisivo da Igreja. Se pensarmos no Brasil, em particular, a Igreja era e ainda é uma grande detentora de fracções de terra. Até hoje, a Igreja em alguns lugares tem conflito com pequenos produtores. A Igreja foi a maior detentora de escravizados no Brasil, se considerarmos a instituição. As fazendas que ela detinha… O maior proprietário, digamos assim, de pessoas escravizadas, era a Igreja Católica.
E é importante para si salientar isso?
Sim, é uma história que não pode ser esquecida, que deve ser lembrada. Que, por fim, fala muito do nosso mundo e da nossa vida hoje. Hoje no Brasil, a Igreja Católica cada vez perde mais espaço institucional na sociedade, mas, em contrapartida, não quer dizer que a nossa vida seja diferente. A Igreja Evangélica assume tudo isso, e ela tem uma grande bancada na Câmara dos Deputados; ela participa de tudo na nossa vida pública. E interferiram sobremaneira nas últimas eleições, fazendo campanha para o presidente que foi derrotado no pleito. Ou seja, o Estado deveria ser laico, mas praticamente não é laico ainda, porque tem uma grande participação dos religiosos na Igreja no nosso quotidiano. As mulheres são as maiores vítimas de tudo isso, porque quando a gente fala de interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, no Brasil não se pode nem falar isso. Isso não é um direito. Acho que em Portugal, claro, não deve ser uma coisa pacificada, mas ainda assim, a mulher que precisa não vai morrer na fila da Saúde Pública, porque é reconhecido como um direito. Ela tem o direito sobre o seu próprio corpo. Afinal, o Estado português é um estado laico.
No Brasil, a religião continua ainda muito entranhada na política?
No Brasil, embora o Estado laico seja propagado, na prática ele não é. Porque a nossa vida ainda tem grande interferência da religião e do Cristianismo. Sem contar que o Brasil, como é um país plural, temos outras práticas religiosas, práticas indígenas, práticas afro-brasileiras, e essas práticas religiosas sofrem imensa violência dos cristãos no Brasil. Eu vivo numa cidade que tem um grande número de templos, que são os terreiros de Candomblé, templos afro-brasileiros. E é muito comum invadirem esses templos, quebrarem as coisas que estão lá. Eu vivi durante um tempo no final de uma avenida chamada Mãe Stella de Oxóssi, porque homenageava essa sacerdotisa e a yalorixá de Candomblé, importante para a cidade. E na entrada da avenida tinha uma estátua dessa mulher, como tem uma estátua aqui do Marquês de Pombal. Colocaram essa estátua de um grande escultor baiano que até já morreu, o Tatti Moreno, foi uma das últimas coisas que ele realizou… E incendiaram essa estátua um ano depois, e foi incendiada por cristãos evangélicos. Ou seja, a liberdade religiosa deveria ser garantida a todos, não apenas aos cristãos. Mas essas pessoas que praticam outras religiosidades, como a Luzia em Salvar o Fogo, que tem essa relação com o fogo e com o sobrenatural, é tida como feiticeira, como bruxa. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi queimada como se ela fosse uma bruxa, não é? Enfim, mostra um pouco dessa violência religiosa que ainda está muito presente no Brasil.
Numa entrevista, afirmou que o Brasil, apesar de se ter tornado independente há 200 anos, ainda funciona numa lógica muito colonialista, e que agora os brasileiros são colonizadores de si mesmos. De que forma é que isso se manifesta, concretamente?
Sim, eu acho que no período das grandes navegações – não estou falando só do Brasil e de Portugal, estou envolvendo os europeus e estou pensando no continente americano e no continente africano –, se inaugurou uma maneira de viver que ainda é determinante para os nossos dias. Que é este modo de habitar o mundo que é colonial, e que é baseado na exploração e na destruição das pessoas e dos meios. Quando eu falo em colonialismo, nesse habitat colonial, eu não estou apontando o dedo para ninguém. É apenas o reconhecimento de uma maneira de viver o mundo que está impregnada – não só no Brasil, mas na Colômbia e creio que em Portugal também, se a gente pensar no contexto da União Europeia. Portugal não é um país decisivo para a União Europeia, e fica muitas vezes a reboque daqueles que podem exercer a sua vontade. Estou pensando em países como a Alemanha, a França. Ou seja, esta relação entre opressores e oprimidos é uma coisa que se reproduz em muitas partes do mundo. Estou pensando na Palestina, em tantos lugares, não é? E o Brasil já poderia ter trilhado outro caminho; afinal, a independência do país foi declarada há 200 anos. Em 200 anos dá para acontecer muita coisa. Mas o Brasil, mesmo depois da Independência, optou por manter a escravidão em território brasileiro. Foi o último país do Mundo a abolir a escravidão. É um país onde essa estrutura do habitat colonial está impregnada em todos os contextos, porque é um país que tem uma classe que tem sobrenome, e que tem uma ascendência, muitas vezes europeia, que está dominando e domina as populações que não fazem parte deste grupo; que são subalternizadas.
Segundo romance de Itamar Vieira Junior foi lançado em final de Abril em Portugal.
Ainda há um caminho a percorrer…
Exactamente. O Brasil continua a colonizar a si mesmo. Mas esta é uma constatação apenas, porque esta é a história do capitalismo. O capitalismo vive essa relação de explorador e explorados, de opressores e oprimidos. E inclusive, essa construção do que é ser branco, do que é ser negro, do que é ser indígena, não é algo natural nosso. Em algum momento da história, principalmente quando o capitalismo cresce assente nas grandes navegações, o ser negro e ser branco é uma construção social. E isto ainda está impregnado no nosso quotidiano, na nossa vida. São rankings de vida e valor construídas naquele tempo, que precisam ser descontruídas. Então, ainda vamos falar sobre isso durante muito tempo, não é? [risos]
As mulheres assumem uma preponderância nos seus romances, são personagens de grande força, o feminino está muito exaltado. No seu crescimento, as mulheres da sua família tiveram um papel primordial? Foram, também, elas que o influenciaram e contribuíram para que desenvolvesse a sua sensibilidade artística?
Com certeza. Eu acho que, embora talvez as feministas até contestem, há atributos que as mulheres carregam na sua maneira de ser, no seu corpo, na maneira como se relacionam com o mundo, com a História… E eu cresci numa casa atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, mas com estas personagens que me intrigavam muito quando eu era criança. Porque eu observava elas serem vítimas de violência, às vezes vítimas de violência doméstica. Elas eram vítimas da sociedade que as tinham como pessoas inferiores com saberes inferiores, mas elas nunca se conformaram com isso e elas sempre contestaram. E o que é curioso é que não eram mulheres escolarizadas, letradas. Porque se fosse uma mulher que frequentasse a universidade, poderia ter contacto com escritos da Simone de Beauvoir e de tantas outras feministas, e construíam um repertório intelectual para combater tudo aquilo. Mas elas eram mulheres simples, pouco escolarizadas, e que ainda assim contestavam tudo aquilo. Isso se impregnou de tal maneira no meu imaginário, que sempre que eu escrevo, elas chegam inevitáveis com a força que essas mulheres – mãe, tias, avós, primas – tinham na minha família, não é? Então, para mim essa leitura de mundo, que às vezes caminha neste sentido que também é um sentido decolonial, vamos dizer assim, de desconstruir esse modo de viver a vida que foi construído no passado. Porque se a gente pensar no projecto colonial escravista, ele foi imaginado, projectado e executado por homens. Ou seja, é um projecto patriarcal.
E trazer as mulheres para uma história que é desconstruir tudo isso, é devolver uma narrativa que lhes foi roubada, usurpada em algum momento. De que elas eram bruxas, feiticeiras, que eram personagens inferiores. Em Torto Arado, tem um personagem, o Zeca Chapéu Grande, que é um curador, uma espécie de feiticeiro, mas aquilo nunca é questionado. Claro que há racismo, mas nunca é questionado pelas pessoas do seu grupo. No caso da Luzia, ela é tida – eu não sei se sim, os leitores vão descobrir ao longo da leitura – como uma personagem que guarda poderes sobrenaturais. Mas ela, por ser mulher, é estigmatizada como bruxa, como feiticeira, como alguém que deve ser destruída, exterminada. Ou seja, estas duas histórias já dizem muito do lugar que a mulher ocupa na sociedade. E daí, essas mulheres incríveis que fizeram parte do meu imaginário e da minha educação, invadiram essas histórias com força também.
Actualmente, a polarização da sociedade parece ser crescente, e o Itamar já criticou esta onda de cancelamentos a que assistimos. Como artista, naturalmente, valoriza a liberdade de expressão. Acha que a arte e a literatura podem ter um papel importante para combater esta intolerância?
Eu não sei se a literatura tem feito isso com frequência, mas eu acho que é um excelente instrumento para que a gente desconstrua, para que devolvamos a ideia de sermos humanos – de que nós podemos acertar, mas também podemos errar. Parece que em nosso tempo a gente perdeu um pouco o sentido da nossa humanidade. Se a gente for olhar as redes sociais, é um massacre, é um discurso de ódio. Estou pensando principalmente no Twitter, eu nem tenho Twitter por causa disso. Eu brinco que o Twitter é o… Não sei se você já leu o 1984 de George Orwell, mas o Twitter é aqueles dois minutos de ódio. Quando tocava o sino naquela cidade, e as pessoas iam para a frente de uma tela – e é uma obra publicada em 1948, ainda não existia nada nisso, nem telemóveis nem Twitter –, e lá vociferam tudo o que sentem de ódio e exercitam o ódio para se manterem vivas. E as redes sociais virou essa teletela do 1984. Eu não sei como está traduzida no português de Portugal, mas no português do Brasil chamamos teletela. E, de facto, criaram-se ali ambientes onde as pessoas só aceitam conversar com quem concorda com elas, ambientes polarizados. E isso tem posto a democracia em risco. Porque se você olhar, o Partido Republicano nos Estados Unidos, que até há 20 ou 30 anos era um partido de centro-direita, tem caminhado para a extrema-direita. No Brasil, existia um partido de centro-direita, que era o PSDB, que governou com Fernando Henrique Cardoso, e durante muitos anos governou estados no Brasil. E ele deixou de existir praticamente, quase não existe mais; e quem ganha espaço é a extrema-direita.
Os próprios algoritmos das redes sociais foram feitos de modo a fomentar a discórdia e a polarização…
Exactamente. E pensamos que as Big Tech, as tecnológicas, são inocentes, não é? Que só estão ali para reunir as pessoas, mas não, elas têm trazido uma crise para a democracia no Mundo. E a gente perdeu o sentido de que nós somos humanos, de que nós erramos, de que as pessoas pensam de forma diferente, mas ainda assim isso não quer dizer que nós não possamos coexistir, não possamos conviver. E esse altericídio das redes sociais – porque é um altericídio, a morte da alteridade –, a Literatura pode nos devolver essa alteridade. Porque quando lemos uma história, nós aprendemos a gostar das personagens, mesmo que elas errem, mesmo que elas falhem. E reconhecemos nelas a Humanidade que também é nossa, porque nós somos isso. Nós falhamos, nós erramos, não é? Nós tentamos acertar, nós sonhamos. Ou seja, penso que em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver, de exercitar a alteridade também. Com muito menos polarização, porque não é algo saudável.
Autor bestseller, Jorge Rio Cardoso capturou a atenção de milhares de leitores que procuram as suas dicas sobre como maximizar o aproveitamento escolar de crianças e jovens. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Aveiro, é professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA), em Santarém. É também reformado do Banco de Portugal, onde exerceu funções como técnico superior. A sua carreira bem-sucedida como perito em Educação e motivação dos estudantes, começou com a conquista de um obstáculo: Jorge Rio Cardoso foi um aluno “sofrível”. Mas afinal o seu calcanhar de Aquiles transformou-se em força, depois de ter descoberto o atletismo, que lhe infundiu de autoestima e confiança. Hoje, ensina educadores e pais a ajudar os mais novos a serem bons alunos e o seu método Ser Bom Aluno – ‘Bora lá’? revelou-se eficaz a melhorar os resultados escolares. A pretexto do seu novo livro Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, o PÁGINA UM entrevistou este professor e investigador que acredita que o foco da Educação não deve estar apenas nas classificações, e que os pais devem fomentar a alegria, a iniciativa e uma autoestima saudável nos filhos, para a sua formação como seres humanos.
Tornou-se especialista em sucesso escolar, mas nos seus tempos de escola nem sempre foi um bom aluno, e só quando começou a praticar atletismo é que se deu uma viragem no seu aproveitamento. Até que ponto é que atividades extracurriculares, como o desporto ou as artes, podem contribuir para a motivação das crianças e dos jovens nos estudos?
Eu diria que é essencial. Ou seja, não há ninguém que consiga aprender se estiver triste ou desmotivado. A motivação é fundamental, sobretudo aquela que nós chamamos de motivação intrínseca, aquela que vem de dentro de nós. Essa é a que é capaz de nos transcender. Realmente, eu era um miúdo com baixa autoestima, desmotivado, não via interesse na escola. Aliás, a escola não me identificava nada de bom. E as coisas mudaram quando apareceu na minha vida o atletismo. O atletismo deu-me alegria, regras, disciplina e, depois, essa alegria, eu passei-a também para os estudos. Comecei a perceber que quando me esforçava mais no atletismo, quando treinava mais, os resultados melhoravam, e comecei a perceber que com o estudo também era assim. Porque eu estava convencido de que uns tinham nascido bons alunos e outros maus alunos, e eu, logo por azar, estava nos segundos. Tinha nascido mau aluno, e estava mais ou menos conformado. Depois, comecei a perceber que realmente o problema era que estava desmotivado, não sabia muito bem o que era isso de estudar. Às vezes, os pais põem esta questão: como é que eu motivo o meu filho ou a minha filha para a escola? E eu digo sempre que a questão está mal colocada. É: como é que eu motivo o meu filho, ou a minha filha, para a vida? Ele tem que estar motivado para a vida. Dentro da vida há a escola e um conjunto de outras actividades. Quando eu confronto alguém, pode ser uma criança ou não, com duas actividades; uma de que ela gosta muito, de grande probabilidade, como jogar à bola, por exemplo, ou ballet, e outra de pouca probabilidade, que ela não gosta muito, como estudar, geralmente há ali fases comunicantes. Para ela merecer a primeira, geralmente vai apostar – serviços mínimos, pelo menos – naquilo que é estudar. No meu caso, foi um desporto que mudou as coisas, mas poderia ter sido, por exemplo, uma actividade que é essencial na concentração e na motivação, que é a música. Seja praticar um instrumento, seja cantar, tudo isso é muito importante do ponto de vista educacional. Também as neurociêncais dizem que há uma alteração profunda em termos cerebrais. Podia ter falado, como disse muito bem, nas artes, no teatro, na dança… Há imensas actividades que, para além das competências naturais que trazem, conferem também a alegria de viver, e isso depois propaga-se a tudo, nomeadamente num aspecto essencial, que é estudar.
Também fala neste livro, Como fazer dos nossos filhos alunos de sucesso, da importância de fomentar uma autoestima saudável e dos afectos. Como é que os pais podem encontrar esse equilíbrio entre elogiar e reforçar a confiança das crianças, e ao mesmo tempo impôrem regras e disciplina?
A questão está muito bem posta, porque temos que arranjar um equilíbrio. Os jovens terem autoestima é fundamental. No livro, dou até uma regra que acho importante, que é para cada crítica haver cinco elogios. Claro que às vezes os pais dizem que não têm muito para elogiar, porque se baseiam apenas nas notas, e então quando as notas não são boas, acham que não têm nada para elogiar. Mas, por exemplo, o esforço que o jovem está a fazer, ou encontrar qualquer coisa que não era dele e ir entregar, ou alguém que se aleijou e ele foi ajudar nos curativos… Tudo isso são motivos de elogio, e a sua atitude para com os outros. Porque, digamos, a Educação não é apenas passar conhecimento. Hoje, o conhecimento está na ponta dos dedos. E, portanto, aquilo que mais quero de um filho ou de uma filha, não é propriamente que ele seja doutor, engenheiro ou professor catedrático. Mas sim que um seja um bom pai uma boa mãe, que viva a cidadania, tenha respeito pelos outros, isso é fundamental. E hoje em dia, na forma como a escola está, o ser solidário, o ter valores de honestidade, não é pontuado, não é? Não é assim que eu vou entrar em Medicina. Portanto, não é o tema deste livro, mas penso que a escola terá que mudar no sentido de treinar esses mesmos valores fundamentais para o cidadão de amanhã. Porque sabemos que os países mais ricos não são propriamente aqueles que têm mais metais preciosos ou mais petróleo. Nada disso. São aqueles que têm mais capital humano, e o capital humano não é apenas no sentido de saberem muitas coisas, mas precisamente porque são sociedades em que esse capital humano – que inclui vários aspectos, além de criar empatia com os outros, saber trabalhar em equipa, e saber ouvir os outros. Todos esses aspectos podem ser treinados naquilo que é a Educação.
Referiu que a ambição dos pais não deve ser que os filhos sejam engenheiros ou médicos, por exemplo. No seu livro realça a importância de se detectar e potenciar os talentos das crianças e dos jovens. Como é que os pais podem fazer isso? Estando atentos às pré-disposições e às preferências das crianças?
Sim. Hoje em dia, o ensino em Portugal já está muito voltado para isso. Até porque conhecemos o relatório do Professor Guilherme de Oliveira Martins. As competências essenciais à saída da escolaridade obrigatória… Aliás, num dos meus livros, foi ele que fez o prefácio exactamente por causa disso. Há um conjunto de competências, que muitas vezes vão muito para além daquilo que a escola valoriza, que é linguística e a lógico-matemática, mas há muitas outras, nomeadamente, por exemplo, criar empatia com os outros. Há aquelas pessoas que nos deixam bem dispostos, e não é propriamente a contarem piadas, mas a forma de elas estarem, a escuta activa. Tudo isso são aspectos muito importantes. E na sociedade nós notamos, há aquelas pessoas mais extrovertidas, ou mais exuberantes. Se estivéssemos a falar de uma casa, eu diria que isso seriam os tijolos, mas, às vezes, esquecemo-nos de uma parte, que é o cimento que une esses tijolos, e que não se dá por eles mas que são essenciais para a solidez desse edifício. E eu comparo esse cimento a essas pessoas que unem pontos e arranjam consensos. E portanto, estas pessoas são essenciais. É um talento realmente muito importante. Ser capaz de se ver o ponto de vista do outro, e no fundo, talvez a coisa mais importante, que é a inteligência emocional.
Pois, dessa inteligência não se fala tanto.
Há um estudo que eu gosto sempre de referir, que responde a esta pergunta: porque é que as pessoas têm sucesso? Sucesso, enfim, esta palavra tem muito que se lhe diga. Não é apenas no campo das notas; é, digamos, de singrar em instituições e serem respeitadas. E havia a ideia de que podia ser do chamado QI, que hoje está um bocadinho em desuso. E, curiosamente, o QI só explica 20% do sucesso das pessoas. Então, onde é que estão os outros 80%? Estão precisamente em aspectos ligados à inteligência emocional. E a boa notícia é que, enquanto a inteligência emocional é qualquer coisa que pode ser trabalhável, ou seja, nós conseguimos mudar as nossas atitudes, a maneira de ver os outros. É algo em que nós podemos evoluir. E com o QI já não é bem assim. O QI, seja alto ou baixo, é praticamente o mesmo ao longo da nossa vida, não há forma o mudarmos. E depois, também há outra coisa: às vezes, aquelas pessoas muito inteligentes são pessoas um bocadinho inadaptadas e que se isolam. Às vezes não são as pessoas mais felizes. E esta nossa capacidade de ser feliz, às vezes passa por viver aquilo que é a cidadania, mas com solidariedade perante aqueles que não tiveram uma vida tão simpática ou que à partida têm alguma deficiência. Aliás, quando há uma criança com necessidades especiais de Educação numa turma, é claro que é muito bom para a criança, porque vai ser estimulada, mas também é muito importante para todos os elementos da turma, porque o cuidado e a solidariedade vão ser ensinados e trabalhados. Embora, eu aqui gosto sempre de referir um aspecto: a integração é diferente da inclusão. Porque inclusão é a criança estar lá na turma. A integração é o que acontece depois nos intervalos: se ela fica a um canto, então não está integrada. Para as estatísticas, ela está lá, mas depois é preciso sensibilizar e promover valores, e isso é que é educar.
E onde é que traça a linha entre aquele que deve ser o papel dos pais na educação de jovens e crianças, e aquele que deve ser o da escola?
Há claramente uma linha de separação, embora a presença dos pais na escola seja muito importante. Eu tenho um filho pequeno, e a escola dele, que é uma escola pública, promove por exemplo grupos interactivos, e os pais são convidados a estarem na escola uma vez por semana. A presença dos pais na escola previne muito insucesso escolar. Sempre que há um problema, o acompanhamento próximo faz com que se detecte o problema que o aluno está a viver e resolve-se logo ali à partida. A sintonia entre pais e escola é absolutamente fundamental. Às vezes, os pais, com a melhor das intenções, querem explicar ainda melhor aquilo que foi feito na escola. Acho isso bastante errado, porque nós às vezes estamos a explicar como nos ensinaram há 20 anos ou há 30, e não como são os modernos conceitos hoje. E isso pode provocar na cabeça do aluno alguma confusão. Agora, os pais têm de ir para além da escola. Há um conjunto de várias actividades que trazem competência, regras e alegria, e essas sim, é que os pais devem pôr à disposição. Os pais devem ajudar os filhos a ser. Ou seja, a outra parte que vai para além da escola. Diria que pais e escola estão em sintonia, digamos que cada um tem a sua área privilegiada, o que não quer dizer que não haja ali uma zona cinzenta, comum aos dois. O que os pais devem fazer é valorizar a escola, e o trabalho dos professores. É essencial, porque o jovem não vai investir o seu tempo, a sua paciência e a sua atenção numa coisa que os pais desvalorizam.
Outra questão que gera alguma controvérsia tem a ver com os rankings e as classificações. Há quem considere que se tem baixado um bocado a exigência nas escolas, nos últimos anos, nomeadamente com as medidas relativas às reprovações. É, no entanto, possível defender-se que não se coloque demasiada ênfase nas notas, mas ao mesmo tempo, reconhecer-se que deve haver uma certa exigência. Qual é a sua visão sobre isto?
Sim, percebo a sua questão. O facto de não haver reprovações, assim no sentido clássico, aquilo que estávamos habituados, não quer dizer que tenhamos baixado a exigência. Se calhar até é mais exigente. Não vou deixar ninguém para trás, mas se calhar vou ter que ter pedagogias alternativas, e vou ter que experimentar outras formas de fazer chegar o conhecimento aos alunos. Se eles tiverem que ficar mais um mês porque ainda não adquiriram as competências, se calhar, isso é um grande incentivo para trabalharem mais e esforçarem-se mais. Realmente, nós falamos de uma avaliação somativa, as notas clássicas. Mas há uma outra avaliação que é muito importante, .que é a avaliação formativa. Ele sabe trabalhar em grupo? Sabe arranjar consensos? A liderança, o empreendedorismo, são tudo coisas que se trabalham, não é? E, portanto, aquela ideia do sentido prático da vida também é fundamental. E aqui, falo da escolaridade obrigatória; claro que no ensino universitário as notas vão ser muito importantes. Mas às vezes há muito a cultura da nota, sacrifica-se tudo pela nota. E até se chega ao exagero de dizer uma coisa que é mais do que evidente, que é, os meninos e as meninas são diferentes uns dos outros… E sabemos que no plano teórico, se houvesse uma turma só de raparigas e outra só de rapazes, e houvesse um tipo de ensino de acordo com as características, e outro para eles, é claro que as notas subiriam, não tenho dúvidas nenhumas disso. E há quem defenda esta segregação, diria eu. Mas nós queremos é educar, e que os meninos e as meninas se conheçam. Que tenham os naturais conflitos, e os saibam resolver. Se calhar, assim estamos a prevenir violência doméstica, por exemplo. Também já houve a ideia de separar os alunos muito bons daqueles que são maus. Também sou completamente contra isto. Agora, o que acho que é o grande problema, e que mais tarde ou mais cedo vai ter que ser resolvido, é a forma como os alunos entram nas universidades. E ainda entram com as notas, hipervaloriza-se as notas. Se fossem as universidades a escolher… Com um médico, não são só as hard skills que importam, por exemplo, mas também a forma como comunica. Por isso, se as várias áreas do saber, as várias universidades escolhessem também os alunos, poderia haver também essa componente, para além da nota. Porque eu lido com muitos directores de agrupamentos de escolas, e eles dizem que essa parte dos valores realmente é muito, mas que têm que prestar contas perante o Ministério da Educação. E o Ministério da Educação olha para os rankings, vê em que lugar é que está a escola, no sentido de eles cumprirem as metas curriculares e os programas. Portanto, mesmo achando interessante esta história dos valores, não é por aí que estão a ser avaliados. Para que isto possa mudar, a forma como os alunos entram nas universidades pode ser uma parte da mudança.
Portanto, acha que se devia valorizar menos as notas e os rankings.
Sim, claramente, porque, às vezes, estamos a comparar coisas que não são comparáveis. Agora, também não desvalorizo totalmente os rankings, atenção. Não vou dizer que eles não servem para nada, mas numa imagem, para se perceber o meu pensamento, é como um termómetro. Vejo a temperatura, e se for mais de 38 graus, há aqui qualquer coisa. Mas, dizer que só quero saber da temperatura corporal, não me leva nada. Se calhar, pode ser um problema grave ou pode acabar por não ser, pode ser uma pequena gripe, etc. Depois, há outros instrumentos que tenho que usar, e também na Educação é a mesma coisa. Os rankings dão-nos informação, mas há muitos outros indicadores. Temos que ver as coisas de um ponto de vista objectivo.
Ia perguntar-lhe precisamente qual era a sua opinião em relação à segmentação do ensino de rapazes e raparigas, mas já respondeu.
Sim, sou completamente contra, porque a sociedade é diversa. Aliás, nós até devemos, às vezes, colher os exemplos que saem da natureza. Sou a favor de todo o tipo de diversidade, seja ao nível da diversidade intelectual, ou de opiniões. Podemos não ter exactamente a mesma opinião, mas temos é que respeitar a opinião do outro, desde que seja, evidentemente, fundamentada. Sou contra essa segregação. Dir-me-ão que as notas subiriam. Não tenho dúvidas disso. Porque realmente, nós professores, quando estamos a ensinar, é para o aluno médio. Não é para um rapaz nem para uma rapariga, é para o que chamamos um aluno médio. Mas é muito importante que, nisto que é educar, os rapazes e as raparigas partilhem o mesmo espaço. Claro, não vai ser tudo um mar de rosas. Eles têm as suas diferenças, mas há com certeza uma interacção e coisas que eles começam a perceber, como a necessidade de respeitar o outro. O bullying trata-se disso, não conseguir respeitar uma pessoa que é diferente, seja por que motivo for.
Sabemos o estado em que se encontra a Educação, e da desmotivação que muitos professores e alunos sentem. Acha que este modelo universal da escola pública está a atravessar uma crise? Ou, por outro lado, não vê o panorama actual de forma assim tão negativa?
Ao longo da História da Educação, verificamos sempre que ninguém está contente. Ou seja, daqui a 30 anos ou 100 anos, evidentemente que as pessoas dirão que é possível fazer melhor. Acho que se tem caminhado na direcção certa. Para explicar um bocadinho aquilo que será o futuro da escola, tenho que falar em três modelos. Nisto, que é a Educação na escola, há sempre três elementos fundamentais: o professor, o aluno e um elo privilegiado entre o professor e o tal conhecimento ou competências; e aqui o aluno tem um papel passivo de ouvinte. Porque a ideia de ensinar é “eu ensino e tu aprendes”. E vais aprender o quê? O que eu acho que devo ensinar, porque o inteligente aqui sou eu. Ou seja, o aluno não participa na construção do seu conhecimento. Ele pode estar com uma grande curiosidade – e para aprender, a curiosidade é fundamental – sobre vulcões e, mas no programa os vulcões é só daqui a dois anos. E o professor: “olha, pena, não te vou ensinar”. Isto é evidentemente pouco simpático. Depois, há um segundo modelo, menos mau, digamos assim, que é um privilegiado entre o aluno e as tais competências. Ou seja, o aluno acede ao conhecimento fazendo umas leituras prévias antes de ir para a aula, e o professor é um elemento facilitador. Se o aluno não percebe alguma coisa, o professor ajuda. E isto é um bocadinho aquilo que nós chamamos a aula invertida; o aluno chega à aula e já tem algum conhecimento. O modelo de Bolonha de que hoje em dia tanto se fala, no fundo, privilegia este modelo. Agora, aquilo que eu acho que é o futuro é um elo privilegiado entre professor e aluno. O conhecimento e as competências ficam, digamos, para um segundo plano, porque muitos do conhecimentos que nós falamos, às vezes, ficam desactualizados.
Não parece um contrasenso colocar os conhecimentos em segundo plano na escola?
Lembro-me de conhecimentos que me passaram no primeiro ciclo – já foi há muitos anos –, que eram os caminhos-de-ferro de Angola, coisas assim desse género. Hoje em dia, podemos dizer que é um conhecimento inútil, porque alguns desses caminhos, se calhar, já nem existem. Quando pretendemos passar valores, esta proximidade entre professor e aluno é muito importante. O peso das disciplinas – português, inglês, matemática –, como as conhecemos, vão perdendo peso, em benefício daquilo que chamamos uma lógica de projecto. Porque, quando estamos, por exemplo, a trabalhar numa aprendizagem relativamente às alterações climáticas ou outra coisa qualquer, geralmente há um conhecimento multidisciplinar. Portanto, vou buscar os conhecimentos de várias das tais disciplinas tradicionais. Podemos pensar em criar um evento, uma conferência final, e em quem é que vamos convidar para falar sobre isso. Pôr os alunos a pensar, a decidir e a trabalharem é muito importante, porque, às vezes, o output que dali sai tanto pode ser um vídeo, como um áudio… O que leva à indisciplina é o aluno estar sossegado na cadeira, porque nem todos estão. Por isso, gera-se barulho, os professores ficam enervados. Aqui, deixe-me dizer-lhe uma coisa que acho que vai ser o futuro da escola, e que é fundamental: a educação emocional. Porque só consigo estudar se estiver equilibrado emocionalmente. E, portanto, o yoga, a meditação e o mindfulness são absolutamente fundamentais.
E vê isso a ser aplicado hoje, ou ainda está longe de serem práticas generalizadas?
Hoje, ainda há escolas que passam completamente ao lado disto. E, hoje em dia, é mais difícil de estudar do que era no passado, porque há milhentos canais de televisão, redes sociais, há 1001 coisas que não havia, por exemplo, no meu tempo. As crianças hoje não são estimuladas, são hiperestimuladas. Depois, para eu treinar as aprendizagens, tenho que pôr água na fervura e voltar à minha calma. Tenho que saber identificar as minhas emoções e saber geri-las, e, às vezes, eles não têm esse instrumental. Nesse sentido, o yoga ajuda bastante, é científico. Por vezes, até estamos tristes e pode ser por pequenas coisas e não ter acontecido nada de especial. Se tivermos um instrumento como a meditação, aquilo imediatamente desvanece. Portanto, nas escolas – e agora as escolas podem escolher uma parte do seu currículo –, a educação emocional é absolutamente determinante no que vai ser o futuro daquele ser humano. É muito importante no sentido de eu saber resolver conflitos.
Então, há mudanças a empreender e o momento actual pode ser uma oportunidade nesse sentido?
Sim. O modelo que acho fundamental, e que será um bocadinho um guia na escola, é de um elo privilegiado entre o professor e o aluno. O conhecimentos ficam para depois. Juntando isto a aulas mais atractivas, em que se põe o aluno a fazer, a trabalhar, a criar – seja um vídeo, um powerpoint, uma entrevista –, enfim, à procura do conhecimento. Havia um pedagogo que dizia que, mais do que uma cabeça cheia – de conhecimentos –, interessa-me uma cabeça que saiba pensar. Acho isto fundamental. Porque, hoje em dia, vivemos numa sociedade em que as pessoas, às vezes, não querem decidir, porque têm receio de ter alguém contra si. Então, vão passando nos intervalos da chuva. Por isso, não digo de que clube é que sou, ou de que partido é que sou. Não quero opinar porque, logicamente, terei pessoas contra mim e outras que, se calhar, até concordam com a minha posição. Mas esta ideia de educar passa muito por aspectos desta natureza.
O uso da tecnologia para fins educativos é hoje um tema incontornável. Por um lado, há quem preveja modelos de ensino com amplo recurso à tecnologia, mas há também quem receie os seus perigos. Neste livro, fala dos limites que considera que os pais devem aplicar aos filhos na utilização dos aparelhos tecnológicos. Acredita que o ensino vai ser feito cada vez mais com a ajuda destes instrumentos?
Sim. Acho que, às vezes, na Educação – e em muitas outras áreas do conhecimento –, queremos transformar as coisas numa questão binária. Por exemplo, trabalhos de casa: é a favor ou contra? Na questão que me está a pôr, é exactamente a mesma coisa. Acho que tem sempre que haver uma coisa que é fundamental, na Educação e em tudo na vida, que é bom senso. A tecnologia veio para ficar, não a podemos ignorar. A tecnologia dentro da sala de aula, pois eu acho muitíssimo bem. Só que não vamos agora cair no exagero de dizer que é tudo tecnológico, e desprezo o papel, desprezo a escrita… Nada disso. A nossa ideia será um equilíbrio. Na sala de aula, aquilo que eu defendo é a tecnologia igual para todos e todos terem o mesmo acesso, porque isso é muito importante. Há pouco tempo, até dava este exemplo numa entrevista, do estudo de Os Lusíadas, que é uma coisa evidentemente difícil de trabalhar. Como nós sabemos, Os Lusíadas evocam um bocadinho a epopeia marítima portuguesa. É, no fundo, o percurso de Portugal até ao Extremo Oriente. E pergunto não seria tão mais fácil sensibilizarmos o aluno na sala de aula através do Google Maps, e mostrarmos exactamente o local que serviu de inspiração para o Camões escrever aquela estrofe. Evidentemente que sim. E, depois, até dei outro exemplo para pôr os alunos a pensar, que isso é que eu acho que é fundamental, e treinar a criatividade, que se chama o pensar fora da caixa. Então, e se Camões tivesse nascido hoje, em 2023, o que é que ele teria para elogiar do que é ser português? Já não seria a epopeia marítima. Não seria a epopeia marítima, então o que é que seria? E isto é uma coisa para pôr os alunos a pensar. Será o Ronaldo, a nossa simpatia? Portanto, a tecnologia dentro da sala de aula, acho que é muito importante. Porque hoje em dia, em face das fake news, é preciso que treinemos o sentido crítico de toda a gente, a começar pelas escolas. E agora, com a inteligência artificial, ainda vai ser pior. Consegue-se pôr políticos a dizer coisas exactamente ao contrário daquilo que eles pensam! Portanto, as potencialidades são enormes, tanto para o lado positivo, como pelo lado negativo. Então, como é que nós fazemos isto? Podemos criar uma “polícia”, mas temos que desenvolver este espírito crítico, confrontar fontes, ver se são credíveis ou não. Isso é muito importante.
E quando é que o uso da tecnologia deixa de ser saudável?
Há um conselho que eu dou aos pais e que também falo neste livro: como é que devo tirar a tecnologia, ou não, das mãos do aluno? Há alguns sinais de alerta. Se aquilo está a virar obsessão e ele não passa sem aquilo, claro que eu tenho de corrigir. Se aquilo lhe está a tirar o sono. A forma dos pais lidarem com isto é regras de utilização. Portanto, ele tem direito, imagine, a uma hora por dia. Se continuam os sinais, então essa hora vai ter que ser reduzida. Se ele já mostra sinais de responsabilidade e de saber gerir os seus impulsos – a tal inteligência emocional –, então vamos alargar o período, porque ele merece. Enfim, isto funciona não só com a tecnologia, mas também, por exemplo, com as saídas à noite. Se ele se mostra responsável, podemos passar para o patamar seguinte. Educar passa muito por este aspecto gradual. Mas não sou a favor de um modelo de Educação em que é só com o papel e acaba-se com a tecnologia, nem só tecnologia e o papel é inimigo. Podemos arranjar um modelo equilibrado, em que a tecnologia vai auxiliar, mas nunca substitui o carácter humano da Educação.