Categoria: Entrevistas

  • Laura Alcoba

    Laura Alcoba

    Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora argentina Laura Alcoba.



    Nascida em 1968, na Argentina, e exilada em França desde os dez anos, Laura Alcoba construiu uma obra literária profundamente marcada pelas sombras da história e pelos silêncios da infância. Filha de militantes perseguidos pela ditadura militar, viveu na clandestinidade com um nome falso e aprendeu cedo que o medo pode tornar-se idioma. Hoje, professora universitária em Paris e autora consagrada em língua francesa, Laura Alcoba regressa com frequência à Argentina — não apenas nos afectos, mas sobretudo na literatura.

    Na sua passagem por Lisboa, a pretexto do lançamento do seu romance Naquele dia, a sua primeira obra traduzida em português, e publicada pela Dom Quixote, Laura Alcoba conversa com Pedro Almeida Vieira numa edição especial, gravada na Livraria Bucholz, em Lisboa, para a BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, cuja transcrição editada também aqui se apresenta.

    Naquele dia é o teu primeiro romance traduzido para Portugal e parte de um facto real, trágico e íntimo. Em que momento sentiste que essa história tão delicada, tão violenta, podia transformar-se em literatura?

    Foi algo que surgiu por etapas. Há anos, fui ver um filme do Martin Scorsese, Shutter Island [Ilha do Medo, em portyguês, de 2010]  e, ao sair da sala, tive uma sensação muito estranha: parecia que eu já conhecia aquela história. Havia uma cena em que uma mãe afogava três filhos — uma menina e dois rapazes — e isso mexeu muito comigo. Com o tempo, lembrei-me de algo que o meu pai me contou: ele conheceu uma família na qual se tinha passado um drama semelhante. E eu, em criança ou adolescente, tinha visto dois desses meninos. A mãe afogou os filhos na banheira.

    Laura Alcoba com Pedro Almeida Vieira.

    Recordaste isso depois de veres o filme?

    Laura: Sim. Lembro-me de dizer ao meu editor, anos depois: “Houve um caso terrível entre exilados argentinos, e um dia, se tiver forças, talvez escreva sobre isso.” Mas não sabia se seria capaz. Guardei isso num canto da mente. Escrevi outros livros até que, já mais recentemente, aconteceu algo muito particular, encontrei os contactos de Griselda.

    A mãe?

    Sim, e também a filha. Ambas pareciam estar à minha espera. Sabiam que eu escrevia. Foi uma sensação estranho. A verdade é que eu ainda tinha medo. Mas o encontro com Flavia, a filha, agora uma mulher de mais de 40 anos, foi decisivo. Ela tinha seis anos na altura dos acontecimentos, em 1984. Quando falámos, foi muito forte ela e me contou aquilo que se recordava naquele dia e disse-me: “Preciso que fales com a minha mãe. Preciso que escrevas este livro.” A partir desse momento, foi como se o livro tivesse começado a escrever-se por si só.

    Foi só após essa conversa com a filha que decidiste adoptar essa perspectiva narrativa mais contida, quase como em A Sangue-Frio, do Truman Capote? Ou já tinhas essa ideia antes?

    Não sei… Talvez sim, no sentido em que fiz uma investigação, como Capote. Mas o que tentei fazer foi contar essa história e, através dela, contar muitas outras. O que me interessa é o que há de universal no particular. Aqui há um momento de loucura, um infanticídio — infelizmente, algo que se repete noutros casos — e, ao mesmo tempo, há uma criança que sobrevive. É um livro sobre um crime terrível e um acto horroroso e, ao mesmo tempo, sobre a sobrevivência. Nesse dia, a criança salva-se e emerge uma luz para outra coisa. É um livro sobre a força da infância, sobre a resiliência. Não o teria escrito se fosse apenas sobre o crime.

    Claro, claro…

    Persigo esse tema da infância, sobre a sua força indestrutível, é algo que faço há anos. Aquilo que é impressionante nesta história é que Flavia se salvou e tornou-se uma pessoa extraordinária. Isso é um mistério, um milagre, é incrível. Sem essa luz no final, não teria conseguido escrever. Interessava-me essa sobrevivência.

    Depois de escreveres este livro, que trata de uma violência tão extrema — violência doméstica, de mãe contra filhos —, conseguiste compreender o acto? Escreveste-o para tentar entender?

    Acho que não. Nunca se compreende verdadeiramente. Podemos tentar aproximar-nos do que é incompreensível. Este acto continuará a sê-lo — até para a própria Griselda. Não se trata de explicar nem de justificar, mas de entrar numa zona obscura do humano e saber que, mesmo depois disso, há um “depois” possível. Sem esse “depois”, eu não teria escrito.

    E a história da salvação de Flavia é incrível. A mãe vai buscá-la à escola após matar os dois irmãos…

    Sim. A mãe chega à escola num estado completamente alterado. E a professora de Flavia, Colette, percebe que há algo errado. Recusa-se a entregar a menina. E aí põe-se em marcha outra coisa. Esse gesto salvou a vida de Flavia. Foi essa recusa que impediu que a tragédia se consumasse por completo.

    Chegaste a conhecer Colette?

    Sim. Encontrei-me com ela, com a sua companheira, com a advogada. Colette, que é a pessoa mais extraordinária que conheci na vida, teve uma intuição extraordinária. Não entregou a menina à própria mãe. Graças a isso, Griselda acabou por ir para um hospital psiquiátrico e teve um julgamento. E foi decidido que voltaria a viver com a filha, depois de sair da prisão. Na altura, eu própria teria dito que era uma loucura esse veredicto. Mas hoje, ao vê-las juntas tantos anos depois, percebo que essa aposta — difícil, quase impossível — funcionou.

    E como decidiste a forma de contar a história? Sem cair no jornalismo, sem fazer juízos morais?

    Nunca quis fazer um livro jornalístico. Havia momentos em que me parecia estar dentro de um mito. No livro, menciono o mito de Medeia — que também foi contado a Flavia. Mas o que quis foi encontrar algo profundamente humano, algo universal. Esta história, embora extrema, fala-nos de questões fundamentais: loucura, morte, mas também amor, coragem, sobrevivência.

    E conseguiste escrever tudo isso com muito pudor, sem entrar nos pormenores macabros.

    Sim. Não queria dar detalhes chocantes. O acto está presente, claro — é um abismo —, mas tentei manter a distância certa. A loucura e o mal existem. Não há explicações jurídicas ou psiquiátricas que resolvam tudo. A única coisa que podemos tentar é procurar alguma luz na escuridão.

    E esta história passa-se em Paris, entre exilados argentinos. Achas que o facto de serem exilados, sem raízes, contribuiu para a tragédia?

    Não quero reduzir tudo a isso, mas é claro que Griselda foi alguém profundamente ferido pela História. Uma mulher que sofreu abusos na infância, que viveu a repressão da ditadura. A História com H grande quebrou-a. Era como um vaso que se parte de repente.

    Escreves em francês. Mas falas castelhano com fluência. Como vives essa dualidade?

    Escrevo sempre em francês. O castelhano está em mim como um lençol freático. Toda a minha memória argentina está lá, debaixo da terra, e emerge nos livros. Não conseguiria escrever em castelhano, mas os meus livros, quando são traduzidos para essa língua, é como se voltassem à sua origem.

    E sentes que serias outra pessoa se fosses francesa nascida em França?

    Claro. Vivi na clandestinidade na Argentina, com um nome falso, escondida. Isso marcou-me para sempre. A autocensura, o medo de falar… tudo isso explorei em francês. Especialmente no livro agora traduzido em Portugal, onde os silêncios são fundamentais.

    Tens visitado a Argentina?

    Sim, regularmente. Sou recebida com muito carinho. Tenho muitos leitores.

    E como vês agora a Argentina com Milei?

    Mas a situação económica é muito difícil. E agora, com Milei, tudo se agravou. As suas medidas são brutais na assistência social. Ele quer destruir o Estado, e o Estado é o que nos permite viver juntos. As pessoas não vivem na Macroeconomia. A democracia está em perigo.

    Qual é o papel do escritor, neste contexto?

    Laura: Acho que é importante tomar a palavra, assumir uma posição. Mesmo vivendo em França, acompanho tudo com preocupação. É fácil destruir a uma velocidade estontante, difícil é reconstruir. Mas confio na resiliência da Argentina e. Como Flavia.

  • “As pessoas estão cansadas de ataques e casos. Querem soluções, ideias”

    “As pessoas estão cansadas de ataques e casos. Querem soluções, ideias”

    Filipe Sousa, 60 anos, foi co-fundador do partido madeirense Juntos Pelo Povo (JPP), que é hoje a segunda força política na Madeira e o líder da oposição, tendo ultrapassado o Partido Socialista.

    Nestas eleições legislativas antecipadas, Filipe Sousa, cabeça-de-lista do JPP, está bem colocado para se tornar num dos novos deputados eleitos para o parlamento, pelo círculo da região Autónoma da Madeira.

    A acontecer, será uma estreia do JPP na Assembleia da República e um marco de relevo. Trata-se de um partido regional, o único partido com origem na Madeira, fundado em 2015 por dois irmãos — Filipe e Élvio — a partir de um movimento de cariz cívico. De resto, Filipe Sousa opunha-se à criação de um partido político, mas essa era a condição a preencher se o movimento quisesse reforçar a sua posição no panorama político na Madeira.

    Isto porque o também presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz trazia na bagagem uma experiência na política que o desiludiu, pois, antes da criação do JPP, tinha sido deputado eleito na Assembleia Regional da Região Autónoma da Madeira, durante seis anos, pelo PS e foi membro deste partido até 2007.

    Filipe Sousa na redacção do PÁGINA UM, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM

    O madeirense, natural de Gaula — motivo pelo qual os dois irmãos são chamados de ‘gauleses’, como referência ao Asterix — foi presidente da Junta de Freguesia de Gaula entre 1997 e 2007. Foi vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz, tendo sido eleito presidente do mesmo município, em 2013, com maioria absoluta, quando se apresentou como cabeça-de-lista pelo movimento que deu origem ao JPP. Em 2017, renovou o mandato à frente da autarquia, mas pelo JPP, feito que repetiu em 2021.

    Nesta entrevista, realizada a 3 de Abril na sede do PÁGINA UM, em Lisboa, Filipe Sousa criticou os principais partidos históricos na Madeira de “elitismo” e de tratarem primeiro dos seus interesses ao invés de encontrarem soluções para os problemas do português comum.

    Filipe Sousa também aproveitou para comentar a polémica em torno da investigação judicial, anunciada em 2019, por causa de contratos feitos por ajuste directo pelo município de Santa Cruz com a sociedade de advogados Santos Pereira & Associados (SPA), liderada por Miguel dos Santos Pereira (colaborador do PÁGINA UM). O caso acabou por levar a uma auditoria do Tribunal de Contas que enviou para a autarquia liderada por Filipe Santos um conjunto de recomendações para colmatar os atropelos cometidos ao Código dos Contratos Públicos.

    “Nós privilegiamos o concurso público […] salvo excepções. Não podia lançar um concurso público para contratar advogados e ainda bem que o legislador prevê o ajuste directo, até um determinado valor, ou a consulta prévia. Optámos pela consulta prévia com a SPA, e ainda bem, até hoje”, disse o autarca.

    O que é certo é que o JPP é hoje o principal partido da oposição na Madeira. “Mas não é para ter mordomias”, garantiu, criticando o facto de haver “banquetes enquanto há pessoas [a viver] na miséria”. “Nós fugimos a tudo isso”, frisou.

    Sobre as expectativas em relação às legislativas, o candidato do JPP disse que espera ser eleito e ainda que “quem ganhar não terá maioria, irá sempre precisar de fazer alguma coligação”.

    Élvio Sousa na tomada de posse na Assembleia Legislativa da Madeira. Out 2023 (Foto: D.R./JPP)

    Questionado, disse que o JPP estará disponível para negociar. “Tudo o que for no interesse da Madeira e no interesse nacional, eu acho que sim [estaremos disponíveis para negociar]”. E defendeu que “na politica, temos que olhar para o interesse colectivo”.

    Nesta entrevista, deixou elogios ao antigo primeiro-ministro socialista António Costa, considerando que “foi um bom governante”. Também acredita que o partido Livre vai crescer nestas eleições.

    Sobre se a possível estreia do JPP na Assembleia da República poderá reverter a crescente desilusão da população face à classe política, reflectida na alta abstenção, afirmou que “uma andorinha não faz a Primavera”. “Mas que seja uma. Elas vão crescer, com certeza”.

  • ‘O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais’

    ‘O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais’

    Josep Carles Rius, 69 anos, ‘periodista’ catalão, defensor do Jornalismo enquanto serviço de interesse público e impulsionou o lançamento de meios de comunicação de serviço à comunidade na Catalunha.

    Também tem investigado e abordado a crise no Jornalismo e na imprensa, sendo autor dos livros ‘Periodismo y democracia en la era de las emociones’, lançado no ano passado, e ‘Periodismo en reconstrucción’, publicado em 2016.

    Na sua carreira como jornalista, foi director-adjunto do La Vanguardia, editor do El Noticiero Universal, chefe de redacção do El Periódico de Catalunya, diretor do extinto jornal Publico na Catalunha (2010-2012), e também trabalhou na TVE.

    Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM

    Actualmente, preside à Fundació Periodisme Plural , a única organização sem fins lucrativos dedicada ao jornalismo na Catalunha, que foi fundada em fevereiro de 2013 por um grupo de jornalistas. Esta Fundação publica vários meios de comunicação, designadamente Catalunya Plural e El Diario de la Educación, El Diari de la Sanitat e El Diari del Treball.

    O jornalista também preside ao Conselho de Informação da Catalunha, um órgão de autorregulação dos jornalistas e que garante a aplicação das melhores práticas de ética e deontologia.

    Rius, que dirigiu a Associação de Jornalistas da Catalunha, entre 2007 e 2010, tem um doutoramento em Ciências da Comunicação e Jornalismo. Foi também professor de Jornalismo durante 25 anos na Universidade Autónoma de Barcelona.

    Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM

    Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada na sede da Associação de Jornalistas da Catalunha, em Barcelona, o jornalista faz uma análise sobre a evolução da crise que tem vindo a afectar a imprensa e o Jornalismo e os perigos que essa crise traz para a democracia.

    Josep Carles Rius alertou que a crise na informação chegou ao “fundo do poço” e isso é positivo porque, por vezes, é preciso ir ao fundo para se começar a reagir.

    Defendeu que, no campo da informação, vivemos numa nova era em que é preciso “criar ilhas de credibilidade”, designadamente através de projectos de jornalismo independentes — como é o caso, em Portugal, do PÁGINA UM — para voltar a aproximar o público da imprensa e restaurar a confiança e a credibilidade na comunicação social.

    Tem investigado a área do Jornalismo e a crise no sector. Não só investigou os problemas, mas também encontrou soluções. E a partir dessa análise que tem nos seus livros, quando é que começou esta crise de credibilidade da imprensa?

    Bom, eu penso que a imprensa escrita tem os seus grandes anos na década de 80 e 90, que, tanto em Espanha como em Portugal, coincidem com a recuperação democrática e são anos em que a imprensa tem um grande prestígio. E é esse o círculo virtuoso de ter uma função de serviço público e, ao mesmo tempo, ser um grande negócio. A imprensa foi um grande negócio. E, ao mesmo tempo, havia alguns editores que tinham uma certa consciência social e deixavam os jornalistas trabalhar.

    Penso que foi já nos anos 90 que o Jornalismo deixa de ser um contra-poder e começa a perder essa ligação com os cidadãos. Quer dizer, já não se escreve, já não se faz Jornalismo a pensar nos interesses dos cidadãos, mas nos interesses do próprio poder, porque o Jornalismo já tem os seus próprios interesses.

    Então, o que acontece é que chega a crise de 2008 e tudo isto é exposto. As pessoas descobrem que a imprensa não tinha falado, por exemplo, do tema da corrupção financeira e de tudo o que acabou por ser a causa da crise. Descobrem que a imprensa não fez o seu papel. E há uma grande crise de confiança que coincide com uma crise tecnológica. As grandes plataformas começam a ter impacto. O que elas fazem é pegar no negócio da publicidade. O negócio da publicidade sai para um intermediário; aquela publicidade que ia diretamente para os media fica nas plataformas.

    Livro de Josep Carles Rius publicado no ano passado. / Foto: D.R.

    Sim, na altura era o Yahoo!, por exemplo…

    Sim. Tudo isto leva à tempestade perfeita. A soma das crises deixa-nos com a crise dos media em 2008. Há também erros dos grupos de media. No caso de Espanha, a sua aposta na televisão privada, o que lhes causou um desgaste económico muito importante.

    A soma de tudo isso faz com que a imprensa esteja muito enfraquecida no momento da crise. Ao mesmo tempo, está a ser gerada toda uma nova geração de meios de comunicação, graças às novas tecnologias. No caso de Espanha, o encerramento do jornal Público, em 2012, levou à criação de 10 projectos jornalísticos diferentes. Isso muda o ecossistema mediático.

    Tudo o que aconteceu nessa altura ainda está a ser digerido. E, neste momento, temos mais meios de comunicação do que nunca, mais jornalistas a trabalhar como jornalistas do que nunca. Mas há mais precariedade do que nunca e mais fragilidade do que nunca; uma situação de precariedade e de fragilidade. Isto provoca um risco ético, no sentido em que alguns meios de comunicação social e alguns jornalistas recorrem a más práticas éticas para  conseguir audiência ou publicidade. Por exemplo, o que estávamos a falar [antes da entrevista] sobre da mistura de publicidade e informação; não que as pessoas não saibam se estão perante publicidade ou informação.

    E agora há esta palavra que é ‘conteúdo’ e que vale para tudo.

    Sim, sim. Conteúdo promovido. Tudo o que isto faz é degradar a qualidade dos media, de modo que a recuperação da confiança, que é a chave para realmente sair da crise, tem sido muito difícil e muito, muito complicada.

    Mas  vocês, aqui na Catalunha, conseguiram algo muito importante, que foi terem avançado para a solução. Disse que, no caso do Público, acabou por gerar 10 projectos que foram criados por jornalistas que saíram do jornal e há muitos mais. Quer falar um pouco sobre o que sucedeu aqui, na Catalunha?

    Bem, penso que esta crise é uma crise global da imprensa. Um dos principais países afectados foram os Estados Unidos, que tinham uma rede de imprensa local muito importante e coesa.  Cada cidade dos Estados Unidos tinha o seu próprio jornal.

    E o seu canal de televisão

    De televisão e de rádio e tudo isso unia a comunidade. Eram muito importantes para a comunidade. Esta soma de crises — crise tecnológica, económica, crise social — levou ao encerramento de muitos meios de comunicação social nos Estados Unidos e afectou a coesão da sociedade norte-americana.

    Site do Catalunya Plural.

    Penso que esta crise dos media acaba por explicar — ou é uma das múltiplas causas — a vitória de Trump em 2016. Como? Foi criado todo um mundo paralelo. Tudo e ninguém é informação. Toda uma onda emocional. Sem intermediários, longe dos meios de comunicação… Quer dizer, os meios de comunicação, como os sindicatos, como as instituições, como as ONGs [organizações não-governamentais], actuam como intermediários entre o cidadão e o poder. Se destróis isto  e se substitui por redes sociais…

    Que falam diretamente, sem filtro.

    Certo. Então, o que é que aconteceu em 2016?  Trump tinha toda a grande imprensa contra ele — o The Washington Post, o The New York Times — toda a grande imprensa e a maioria das cadeias de televisão. E, em vez disso, ganhou porque dominou este mundo das redes.

    Mesmo numa zona mais obscura da ‘web’, onde existia o fenómeno ‘Q’, que tinha muitos  seguidores…

    Sim, sim. E o papel que as igrejas evangélicas tiveram. Ou seja, foram muitas as causas, mas estava tudo um pouco fora do sistema que até então conhecíamos. Com toda aquela imprensa contra, ele ganha.

    E, naquele momento, aquilo teve um efeito positivo, que foi o de uma parte da população valorizar novamente a imprensa e as assinaturas do The New York Times e do The Washington Post dispararam.

    E a vitória de Trump foi considerada um acidente histórico. Mas não foi. É um acidente da história que em 2024 volte a ganhar?

    Portanto, já não há qualquer efeito benéfico com as assinaturas de jornais. A sociedade anti-Trump norte-americana está em choque, não está a reagir. A imprensa está em estado de choque.

    Jeff Bezos intervém no The Washington Post, mas da primeira vez não interveio. Isto agora é muito mais grave. E é o sintoma de uma situação de uma nova era. Na noite em que ele ganhou as eleições, Elon Musk  disse ao público: “agora, vocês são os media”. Claramente, uma declaração de intenções.

    Livro de Josep Carles Rius publicado em 2026. / Foto: D.R.

    Sim, a era em que os jornalistas não são necessários.

    Exacto, o Jornalismo não é necessário. É um ataque directo ao papel do Jornalismo. E isto tem réplicas não só nos Estados Unidos. É um fenómeno totalmente novo, a desinformação, que vai contra o Jornalismo tal como o conhecemos e que deixa o Jornalismo numa posição de fraqueza.

    Mas não há aqui também um outro problema, que é o facto de os jornais e da imprensa se terem muitas vezes alinhado com o poder? E de não serem contra-poder, não fazerem o seu trabalho?

    Sim, sim. Quando falámos da crise de confiança, o que se tornou evidente em 2008 com a crise, foi que as pessoas descobriram que os media não eram um contra-poder: faziam parte do poder. E, de certa forma,  quebrou-se a confiança aqui em Espanha. Quando foi o  [Movimento] 15-M, os protestos nas ruas, os jovens diziam: “a imprensa não nos representa”. Era uma crítica ao poder político, mas também aos media. E tudo isto ainda cá está, esta desconfiança.

    Nos Estados Unidos, estão a salvar alguns destes meios de comunicação locais muito importantes para as comunidades através de organizações sem fins lucrativos e fundações. No mundo anglófono, há uma grande tradição do papel das fundações e elas estão a voltar ao início, a comprar alguns meios.

    Muitas rádios, por exemplo, foram comprada por uma organização do magnata George Soros, na altura destas eleições presidenciais.

    Sim, sim. E, por exemplo, o principal jornal de Filadélfia, um jornal histórico, foi salvo por uma fundação.

    E isso é importante.

    Claro.  Havia dois modelos: o modelo do The Washington Post, comprado por um magnata,  ou o modelo de The Philadelphia Inquirer, que é o jornal histórico de Filadélfia, que foi comprado por uma fundação.

    Quiosque de jornais em Barcelona. A imprensa tem vivido uma forte crise económica que não se deve apenas à concorrência das plataformas tecnológicas. / Foto: PÁGINA UM

    Então, se estás nas mãos de um magnata, não és livre, porque no momento-chave em que querias apostar na Kamala Harris, ele não deixa, e depois entra na linha editorial. Foi o que ele fez [Jeff Bezos].

    Em vez disso, o The Philadelphia Inquirer continua lá, sem essas interferências. Por isso, é preciso tentar procurar elementos positivos. Penso que entender o Jornalismo não como um negócio, mas como um serviço público, e como um serviço sem fins lucrativos, como um serviço social; isso é positivo e isso é uma lição dessa crise. E foi isso que nós aqui modestamente tentámos fazer.

    E também, tecnologicamente, as grandes plataformas foram ou são parte do problema. Mas a revolução tecnológica também faz parte da solução, porque permite o lançamento de pequenos projectos liderados por jornalistas, como o vosso.

    Isto é um oceano de desinformação, mas depois é crucial ter ilhas de credibilidade, abrigos, e que o cidadão encontre esses abrigos. E esse oceano de desinformação, nós não o vamos mudar. Isto está cá para ficar. Faz parte das redes, porque aquela utopia em que vivíamos de liberdade de expressão para todos… Eles controlam as redes através de algoritmos, através da forma como manipulam. Mas as redes ainda têm um lado positivo para a liberdade de informação. E o grande dever, a grande responsabilidade dos jornalistas, é criar essas ilhas de credibilidade.

    E é por isso que é tão importante que haja projectos e esses projectos são agora tecnologicamente mais viáveis. É possível criar um site na Internet e intervir no debate público sem ter grandes recursos. Não tem de ser um grande jornal ou uma grande revista, uma cadeia de televisão. Mas, claro, é uma luta muito desigual, porque tens de estar aqui a lutar com todas estas tendências.

    E com grandes máquinas, grandes máquinas de ataque, de desinformação, de ataque aos jornalistas que querem fazer um trabalho sério.

    Claro, essas ilhas de credibilidade são ameaçadas por estas ondas.

    Donald Trump nesting dolls on red textile
    Josep Carles Rius alerta que, com a nova Administração Trump, nos Estados Unidos, a liberdade de imprensa está em risco, o que é uma ameaça para a democracia. Mas também aponta ‘culpas’ da crise na imprensa aos jornalistas que se tornaram activistas, seguiram ondas emocionais em vez de fazer Jornalismo, e desiludiram o público. / Foto: Jørgen Håland

    Sim. E nós temos visto em Portugal que o PÁGINA UM tem sido alvo de um ataque de desinformação. Porque não querem que façamos Jornalismo. Foi algo que nos impressionou e chocou. Não estávamos à espera. Mas estava a falar aqui de projectos, projectos de Jornalismo para as comunidades. Que projectos são e como o avalias?

    Claro, quando falo de ilhas de credibilidade… Por vezes, há ilhas de proximidade. Numa cidade pequena há um meio de comunicação que é o espaço de confiança e credibilidade num determinado território. Há outras ilhas de credibilidade em comunidades. Nós concentrámo-nos nas comunidades que estão na linha da frente na defesa dos direitos humanos, dos direitos essenciais, da Educação, da Saúde e do trabalho digno. Nós temos jornais especializados nestas três temáticas.

    A nossa experiência — e já estamos a falar de uma experiência de mais de 10 anos —, é muito positiva em em termos de direitos fundamentais. Estas comunidades compreenderam a nossa intenção. Estamos a criar praças, espaços públicos de confiança, onde podem encontrar informação precisa e rigorosa. E, ao mesmo tempo, um espaço de encontro onde podem debater, publicar os seus blogues, publicar os seus artigos e interagir entre si — ou seja, revistas educativas, tanto em catalão como em espanhol.

    E disponibilizam isso?

    Claro. É onde as opiniões são trocadas, onde a comunidade se conhece. Veja-se o Diário da Educação: quase 50% do conteúdo é gerado pela própria comunidade através de artigos, blogues, reflexões. Acima de tudo, o nosso valor é criarmos o espaço para que ele seja encontrado. Obviamente, fazemos jornalismo especializado em Educação e damos-lhe essa informação. Mas, além disso, é uma praça pública, um local onde a comunidade se reúne e se encontra num clima de respeito e confiança. Os professores, por exemplo.

    A informação que os grandes meios de comunicação produzem sobre Educação é altamente condicionada pela necessidade de obter cliques, para terem audiência. Depois, distorcem a realidade da Educação, ou seja, um problema numa escola é ampliado porque isso dá audiência.

    Foto: D.R.

    Por outro lado, uma experiência positiva numa escola não acontece, não aparece, porque não recebe cliques e agora tudo isso está a acontecer na imprensa mainstream. É tudo uma questão de cliques.

    Depois, tem de se criar estes abrigos, com um espaço onde não julgamos. Não procuramos quantidade, procuramos qualidade. O nosso valor é que sejam públicos de professores, de professores universitários, de mestres, que comunicam.

    E não está sujeito a algoritmos nem nada.

    Claro. São espaços reservados onde, por exemplo, as newsletters são extremamente importantes, porque permitem aceder diretamente sem passar por uma rede social. Fazemos fóruns de cinema, reuniões, também fazemos de eventos presenciais para que a comunidade se possa reunir.

    E que tenham confiança no Jornalismo e nos meios, em termos daquilo que é a qualidade da informação. Uma entidade fidedigna, entidades fidedignas em termos de qualidade da informação, que é algo muito importante.

    Claro, claro. Este oceano, este mar imenso de desinformação, de discurso de ódio, manipulação, pós-verdade. Tudo isto está aqui: as redes, o TikTok, ou o que quer que seja.

    Estamos em 1984, como no livro.

    Sim, sim. Completamente. E vamos continuar. Não vamos conseguir mudar.

    Então, o que tem de se fazer é criar ilhas [de informação credível]. E depois, criar também a partir da sociedade. Por isso, é importante a Associação de Jornalistas [da Catalunha], o Conselho de Informação da Catalunha. A partir da sociedade civil também; procurar ter uma cumplicidade da sociedade. Para que a sociedade seja consciente, primeiro temos de dar-lhes instrumentos para que encontre essas ilhas de credibilidade, para que saibam que existem e que se pode refugiar ali.

    Depois, do ponto de vista político, temos de ser exigentes e pedir, por exemplo, os meios de comunicação social públicos… É importantíssimo que os meios públicos sejam responsáveis e sejam equitativos, transparentes e não sejam instrumentos do poder. Por isso, tem que se lutar pelos meios de comunicação social públicos.

    Sim, porque há algo de confusão entre o que é público e a política e o governo, que são separados. O público somos todos nós. Os que pagam os impostos. Isso é público e é necessário apoiar o Jornalismo por aí também; mas não é o governo ou os políticos. Mas tem havido um pouco de confusão. Um pouco não, muita.

    Em Portugal, também..

    Então, tem que se ter uma exigência constante.

    printing machine
    A evolução da tecnologia também trouxe uma oportunidade aos media, e hoje é possível criar jornais e revistas digitais com baixo orçamento e que servem o interesse público. Foto: D.R.

    E acredita que esta experiência que é já um caso de sucesso, porque já tem uma década, é importante que seja um exemplo? Por exemplo, para aquilo que será a importância do Jornalismo para a democracia, que é um tema que falou no seu último livro. Por exemplo, mencionou o caso de Trump, mas temos aqui graves problemas também na Europa. No caso de Trump, temos também o problema com os media mainstream, que diziam, por exemplo, que Biden estava muito bem, o que não era verdade, e todos podiam ver isso. Pensa que os jornalistas também têm de seguir mais esse exemplo seu, e não aquele que foi feito nos últimos anos? Fazer jornalismo, não contra algo, mas pela democracia.

    Sim, é assim. Claro. Quando falamos das Ilhas de credibilidade, eu entendo que são ilhas de credibilidade onde o que impera é o Jornalismo. Mas pode-se criar ilhas que são refúgios ideológicos. Quer dizer, eu, diante deste mundo, crio um espaço onde só me comunico com os que pensam como eu e juntos defendemo-nos contra o inimigo, que são os que pensam diferente. O risco — e isso estaria mais no activismo — é que o Jornalismo não crie abrigos de Jornalismo, mas sim abrigos ideológicos. Pode haver ideologias que a ti te pareçam melhor, ou ideologias que consideras que, no caso, por exemplo, da extrema-direita, como o fascismo ou o neonazismo, que atentam diretamente contra a democracia. Por isso, penso que no Jornalismo temos de reivindicar ilhas de credibilidade jornalística.

    O que é que se passa aqui, o que é que vivemos? Antes de mais, temos de recordar constantemente é que sem democracia não há Jornalismo e sem Jornalismo não há democracia. Vimos isso na Rússia. Putin eliminou o Jornalismo, não foi? E o risco agora nos Estados Unidos também existe, e na Hungria existe e noutros locais.

    Temos que ser muito claros que temos que ser militantes da democracia. A democracia é fundamental, porque se não houver democracia, não há Jornalismo, não há liberdade de informação, nem de expressão. Então, isto é básico.

    Qual tem sido o grande problema? Nos últimos anos, tem havido uma série de ondas emocionais, estados de emoção. Nós, na Catalunha, experienciámos isso. Muitos jornalistas aderiram à onda de emoção em vez de dizerem: “não, não, temos de manter aqui o rigor da informação e não nos deixarmos levar por esta onda de emoção”.

    O caso do Brexit. O Brexit é um caso de uma onda emocional para os nacionalistas britânicos. Disseram à Europa: “nós somos melhores, Europa fora!” E agora estão arrependidos, mas o mal já está feito. No caso dos Estados Unidos, Trump está a cavalgar uma onda emocional que é toda a crise, certo?

    Da crise, da classe média americana, especialmente da América profunda, não das zonas costeiras e assim por diante, que está à procura de inimigos. E isso já aconteceu nos anos 30.

     Isto é uma repetição?

    Certo, e depois procuras o inimigo, procuras o imigrante. O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais; é preciso enfrentar as ondas emocionais, mesmo que a família, o ambiente, os amigos estejam no meio da onda emocional. O que vivemos aqui na Catalunha com o processo foi uma onda emocional.

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    Josep Carles Rius defende que se devem criar ‘ilhas de credibilidade’ no espaço digital, onde o público pode encontrar informação credível e fiável. Essas ilhas são, por exemplo, projectos de jornalismo independente. / Foto: D.R.

    As famílias divididas.

    Sim, sim. Não foi uma só. Depois claro, desde o início que eu disse: “não, não. Cuidado!”

    Mas vimos a mesma coisa durante a pandemia ou na questão da Ucrânia ou de  Gaza. Quase não se pode fazer perguntas ou pedir dados. Na pandemia, alguém era considerado negacionista e anti-vacinas só por pedir dados! E em relação à Ucrânia, és  Putinista e, em relação Gaza, és considerado pró-Israel.

    Sim, sim.

    E isso é perigoso para o Jornalismo e, especialmente quando se trata de jornalistas, por vezes, ir ao encontro dessas emoções.

    Como as emoções têm tanto poder e também agora as pessoas têm tantas formas de se exprimirem, porque às vezes as emoções e a manipulação das emoções, mas agora podem exprimir as vossas emoções imediatamente.

    Através do Whatsapp ou de memes.

    Estamos numa manipulação das emoções, mas há também mais ferramentas para manipular essas emoções: algoritmos, as redes.

    Temos problemas ou situações muito antigas, que fazem parte do ser humano. O ser humano não mudou muito nos últimos 3.000 anos. Só que temos uns instrumentos super poderosos, como a inteligência artificial. Tudo isso torna o desafio, que nós jornalistas temos, muito mais complexo e mais importante para intervir e actuar.

    Assisti a alguns jornalistas, não só nos Estados Unidos, mas em Portugal, que confundiram um bocadinho, o ser militante da democracia com ser militante de Biden, ou de  Kamala Harris ou de Trump. E a democracia pode ser personalizada assim, em partidos? Como um jornalista pode ser militante da democracia e conseguir ver os factos de uma forma não emocional?

    Nós aqui, por exemplo, no Conselho de Informação da Catalunha, fizemos uma declaração muito extensa e contundente quando nas últimas eleições locais a extrema-direita teve muitos votos aqui em Espanha e especialmente na Catalunha. Porque aqui temos dois partidos de extrema-direita: o espanhol e o catalão. E muitos jornalistas, sobretudo dos meios de comunicação locais,  tiveram pela primeira vez de lidar com porta-vozes e políticos de extrema-direita. Agora estão presentes em quase todas as câmaras municipais. Os jornalistas locais estavam, pela primeira vez, a lidar com um discurso de extrema-direita.

    Penso que um jornalista tem de procurar a justiça, a honestidade, tudo para informar, não para ser um activista de uma causa, mas tem de ser claro sobre onde estão os limites.

    Estar informado também.

    Nesse caso, fizemos uma declaração muito forte, afirmando que não se pode tratar a extrema-direita como o resto dos partidos políticos, porque a extrema-direita no seu programa, no seu essencial, tem o ódio. Quer eliminar uma parte da população. Recorre a mentiras, nega a Ciência, vai contra todas as evidências de topo o tipo.

    Portanto, o jornalista tem de confrontar este discurso, não pode simplesmente pôr o microfone e fazer com que isto saia. Penso que há aqui que estabelecer alguns limites.

    A tragédia ocorrida em Valência gerou muita desinformação e foi um ‘abre-olhos’ para muitos, em termos da crise actual de informação que vivemos, segundo Josep Carles Rius. / Foto: D.R.

    Isso é algo que os jornalistas têm sempre de fazer, certo?

    Sim, sim, mas isto realço isso. É claro que outros podem tentar enganar-nos. Mas isto faz parte da política deles, faz parte do programa deles para enganar.

    Temos visto, pelo menos em Portugal, que muitos media se limitam a ser pé de microfone com a generalidade dos políticos. Não é também um mau hábito do jornalista? Porque colocam o microfone e esperam que o político fale. Mas agora o político é outro…

    Sim, sim, certo.

    Também é um despertar para muitos jornalistas.

    Sim, sim. Por isso, no caso da Catalunha, dos jornalistas, sobretudo dos jornalistas mais locais, foi um despertar absoluto. Porque de um dia para o outro encontraram-se com interlocutores que nunca tinham enfrentado antes. Que estavam a quebrar as regras.

    Então, o hábito de pôr o microfone e deixá-los dizer o que quiserem, estava a começar a ser perigoso, porque o que eles estavam a defender é a expulsão dos meus vizinhos, que são negros. Cuidado, isto é perigoso.

    E muitas vezes com mentiras ou com algo manipulado, com muitas imagens.

    Penso que houve uma mudança no caso de Espanha, nas últimas eleições locais, em que a aliança catalã, que é um partido pró-independência, mas de extrema-direita, entrou em cena. E o VOX consegue muitos deputados. Há uma mudança. E nós, no Conselho de Informação da Catalunha, produzimos um documento muito, muito duro e que não foi compreendido por toda a gente. Havia pessoas que diziam: “não, não, não; tens de tratar toda a gente da mesma forma”. Ou dizem que a extrema-esquerda está a fazer a mesma coisa. Não, a extrema-esquerda não quer expulsar os teus vizinhos. Ela pode ser muito rude, mas isto não.

    Sim, claro que não é a mesma coisa. Em todo o caso, por exemplo, na pandemia, testemunhámos a existência de discurso de ódio de políticos de extrema-esquerda, de políticos de extrema-direita, de centro, contra grandes cientistas mundiais. Cientistas que alertavam que o caminho a seguir era o da Suécia, que estava a fazer melhor a gestão da pandemia. Depois, as emoções tomaram conta de muitos jornalistas, que deixaram de ser isentos e independentes – um tema de que fala no seu livro. Temos de ter muito cuidado para não emitirmos involuntariamente discursos de ódio com o nosso ‘microfone’.

    Sim, sim.

    Durante a pandemia, foi um choque ver pessoas a ser vítimas de perseguição e de censura, porque não estavam alinhados com os políticos e com a onda emocional. Para os jornalistas é um desafio.

    Sim. Nós vivemos algumas situações que colocaram o Jornalismo à prova.

    Mas é positivo. Pensas que há um bom futuro para o Jornalismo e para os jornalistas?

    Penso que sim, mas sendo claro que o desafio é muito difícil. Não se pode ser incauto. Isso e vai depender da determinação e da vontade dos próprios jornalistas de encontrarem também cumplicidades com a sociedade, de ser exigentes politicamente.

    Agora há uma boa oportunidade com as novas leis europeias. A directiva de liberdade de imprensa [Media Freedom Act] é um bom marco. Mas cada Estado tem de a aplicar e veremos como será aplicada. E aqui temos que ser exigentes, temos de acompanhar e temos feito muitas coisas aqui. Estamos muito envolvidos na tentativa de fazer com que o governo use bem isto, aplique bem este quadro jurídico europeu.

    Porque pode ser bem aplicado ou mal, dependendo do uso que o poder político lhe quer dar.

    Claro que depende da vontade política.

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    Para Josep Carles Rius, o jornalista não pode ser apenas um pé de microfone. / Foto: Kane Reinholdtsen.

    E com toda esta crise de Informação, esta quebra de confiança que houve entre o público e os meios de comunicação social clássicos, pensa que há um futuro positivo, no sentido em que vamos conseguir sair disto com uma imprensa credível e com a população a entender que tem de a apoiar?

    Penso que, às vezes, temos que bater no fundo do poço para começar a agir.

    Pensa que chegámos ao fundo do poço?

    Penso que sim. Por exemplo, no caso da tragédia de Valência, toda a desinformação que houve… Foi um abre-olhos para muita gente.

    No caso do Trump, foi uma desgraça; está a ser um abre-olhos também. A situação na Sala Oval com Zelensky, teve impacto. O papel do Elon Musk também é revelador.

    Tem de estar a correr algo muito mal para começarmos a perceber que temos de reagir. E a chave aqui é a Europa. A Europa tem a capacidade de reagir, certo?

    Porque, nos Estados Unidos, os democratas e todas as pessoas que sentiram que perderam as eleições ainda estão em choque, mas vão reagir. Acredito que sim, e haverá decisões judiciais. E o The New York Times está a resistir.

    Para chegar aos jovens, a melhor forma é através dos professores e da comunidade educativa, designadamente via publicações especializadas, defende Josep Carles Rius.

    Mas claro, é preciso de mais pessoas reajam. Aqui, por exemplo, a onda emocional que tivemos com o processo que nos levou  a uma situação muito difícil, abriu muito os olhos das pessoas. E penso que a repetição do que aconteceu aqui seria impossível agora, porque muitas pessoas não aceitariam, sentiram-se enganadas.

    E o Brexit? O mal está feito, mas a sociedade agora aceita que estavam errados, que foram enganados por tudo isto.

    Bem, eu sou um optimista por natureza e penso que a sociedade vai reagir, mas nós temos um papel muito importante, como jornalistas, para manter os padrões éticos e criar estas ilhas de credibilidade.

    E os jovens, temos de pensar nos jovens que já não leem os meios de comunicação clássicos, nem veem televisão nem nada; é tudo TikTok.

    É por isso que penso que é muito importante chegar aos professores, para ajudar a formar os jovens. Chegar diretamente aos jovens, é muito difícil, mas há pessoas que, durante 6 horas por dia, chegam aos jovens e que são os professores. Por isso, é preciso cuidar dos professores, dar-lhes instrumentos para isso.

    Por isso, criámos há mais de 10 anos duas publicações de Educação para os professores, que dão aos professores ferramentas para formarem mediaticamente também os seus alunos. Os jovens que com 15, 20 ou 25 que estão no TikTok, quando chegarem perto dos 30, deixem o TikTok e passem para um jornal ou se informem melhor.

    Talvez o jornalismo também possa entrar um bocadinho nessas plataformas.

    Sim, sim. Isto é um desafio, mas penso que há três formas de chegar aos jovens: através do TikTok; através das famílias; e através dos professores — do mundo docente, não diria só professores, mas toda a comunidade educativa.

  • Paulo Moreiras

    Paulo Moreiras

    Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritor (e amigo de longa data) Paulo Moreiras.



    Há escritores que impressionam pela vastidão do seu vocabulário ou pela erudição das suas referências. Outros, mais raros, conquistam os leitores pela autenticidade com que erguem uma obra onde forma e substância se entrelaçam como os aromas de um prato bem apurado. Paulo Moreiras pertence a este segundo grupo, mas bebe também no primeiro: é um escritor de corpo inteiro, daqueles que escrevem como vivem – com intensidade, com gosto, com ironia e com apurada consciência da língua como território de criação e de prazer.

    Mas Paulo Moreiras tem outras particularidades: não separa a literatura da vida, nem a vida da mesa – porque em ambas há uma celebração do humano. E é talvez por isso que o seu percurso literário, embora diverso nos géneros, revela uma coerência que só os verdadeiros artesãos da palavra conseguem manter. A sua escrita, depurada mas sensorial, combina a sofisticação estilística com um olhar agudo sobre a História e a natureza humana, frequentemente cruzando o riso e o desalento com uma elegância pouco comum no nosso panorama literário.

    Paulo Moreiras na Biblioteca do Página Um.

    Entre as suas obras mais emblemáticas, O Ouro dos Corcundas, Os Dias de Saturno e sobretudo A Demanda de D. Fuas Bragatela – talvez o mais exemplar da sua veia picaresca – são testemunhos de um autor que sabe percorrer os meandros da alma portuguesa com irreverência e ternura, evocando, por vezes, o espírito de Quevedo ou de Camilo, mas com uma voz inconfundivelmente própria. O pícaro de Paulo Moreiras – que atinge um apogeu (mas não o Apogeu) com A Vida Airada de Dom Perdigote, publicado em 2023, não é apenas o malandro que engana o mundo: é também o homem que, ao tropeçar na sua própria condição, revela os vícios e virtudes de todos nós.

    A escrita de Paulo Moreiras cheira a terra molhada, a tascas escuras, a pergaminhos esquecidos, e talvez meta peixe grelhado e ironia bem temperada. Esse mesmo requinte surge na construção das suas personagens e enredos, onde está à mesa a gastronomia, onde se revela igualmente exímio. Não é de espantar que seja presença regular no PÁGIINA UM, onde colabora com recensões que se movem entre a história dos alimentos, a crítica culinária e a memória gustativa — textos onde a erudição se mistura com o prazer do paladar, numa escrita que dá vontade de ler com os olhos e com o estômago.

    Paulo Moreiras não é apenas um autor: é um contador de histórias, um desenhador de sabores, um filósofo das pequenas coisas. E é com esse espírito — culto, mordaz, mas também afável e generoso — que chega hoje à BIBLIOTECA DO PÁGINA UM. A conversa com Pedro Almeida Vieira não é uma entrevista nem uma conferência: é um reencontro de amigos que cultivam alíngua que falamos e honram pão que comemos.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Paulo Moreiras recomenda os romances ‘Eurico, o Presbítero’ (1844), de Alexandre Herculano; ‘Vida e Obras de Dom Gibão’, de João Palma-Ferreira (1987); ‘As Viúvas de Dom Rufia’ (2016), de Carlos Campaniço; e ‘O Feitiço da Índia’ (2012), de Miguel Real.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Paulo Moreiras.
  • Maria de Deus Manso e Maria Fernanda Matias

    Maria de Deus Manso e Maria Fernanda Matias

    Na vigésima sexta sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com as historiadoras Maria Fernanda Matias e Maria de Deus Beites Manso



    Figura tantas vezes amaldiçoada pela historiografia tradicional e alvo de uma das mais tenazes campanhas de difamação da monarquia luso-brasileira, D. Carlota Joaquina de Bourbon, consorte de D. João VI, permanece uma das personagens mais controversas da história portuguesa.

    Entre o imaginário da rainha devassa e o papel de estratega política, entre o anátema de “usurpadora” e o fascínio da mulher que se recusou a aceitar o silêncio a que era destinada, a sua vida foi palco de disputas dinásticas, jogos de poder e combates ideológicos.

    No contexto do lançamento pela Parsifal do livro ‘D. Carlota Joaquina: entre o dever e a transgressão‘, Pedro Almeida Vieira conversa, para a BIBLIOETCA DO PÁGINA UM, com as duas autoras (e historiadoras) Maria de Deus Beites Manso e Maria Fernanda Mateus, que nos oferecem um olhar multifacetado sobre esta rainha, desconstruindo mitos e resgatando a sua dimensão política, intelectual e pessoal à luz da historiografia contemporânea.

    E já também oportunidade para aprofundar o que é a História de Portugal e como os portugueses vêem agora os seus feitos num presente cada vez menos compreensível com os seus antepassados.

    Maria Fernanda Matias (à esquerda) e Maria de Deus Beites Manso (ao centro), em conversa com Pedro Almeida Vieira, na redacção do PÁGINA UM.

    Maria de Deus Beites Manso é outorada em História, é professora associada com agregação na Universidade de Évora. Investigadora integrada no Centro de Investigação em Ciência Política e investigadora colaboradora no Centro de História da Universidade de Lisboa, é autora de vasta bibliografia centrada na expansão portuguesa, na história religiosa e da mulher/género, escravatura e mestiçagens, em especial no âmbito das culturas dos povos lusófonos. Colabora regularmente com universidades em Espanha, Brasil, Macau e Japão.

    Maria Fernanda Matias é iicenciada em História, pós-graduada em Curadoria das Artes e Programação e investigadora na área da Expansão Portuguesa. A partir de 1981, exerceu funções na Fundação Calouste Gulbenkian, de que presentemente é consultora. Coordenou projetos de intervenção do património histórico de influência portuguesa no mundo, incluindo a respetiva inventariação publicada em quatro volumes. Coordenou a apresentação de exposições em países como França, Marrocos, Brasil, Indonésia ou China.

  • ‘Qualquer coisa que Trump faça, em relação a segredos, será para o seu próprio interesse’

    ‘Qualquer coisa que Trump faça, em relação a segredos, será para o seu próprio interesse’

    Não se pode dizer que Craig Unger seja um jornalista norte-americano sem currículo. Nasceu a 25 de Março de 1949 e trabalhou, entre outras, em publicações como Vanity Fair, The New Yorker, Esquire, The Guardian, The New York Times, The Washington Post e The New Republic. Em 2004, escreveu o livro “House of Bush, House of Saud”, onde investigou as relações entre a família Bush e a dinastia Saud, da Arábia Saudita.

    Anos mais tarde, seguindo o sucesso da primeira obra, assinou, em 2018, o livro “House of Trump, House of Putin”, onde relatou as relações entre Donald Trump  e a Mafia russa, tendo ainda escrito, em 2021, “American Kompromat”, onde o agora reeleito presidente Donald Trump era acusado de ter colaborado com os serviços de informação russos e de ter estabelecido uma aliança com pessoas próximas do Kremlin desde os anos 80.

    Todos esses livros, de uma forma ou outra, tiveram ampla aceitação e divulgação pública. Entretanto, Craig Unger, lançou recentemente, em Outubro de 2024, a obra “Den of Spies”, que se pode traduzir para algo como “Covil de Espiões”, e tem ainda como subtítulo: “Reagan, Carter e a História Secreta da Traição que Roubou a Casa Branca”. Mas a receção junto da Imprensa, ao contrário dos outros livros, não suscitou grandes linhas de divulgação e análise sobre o seu conteúdo, demonstrando que o tema continua a ser incómodo para a generalidade dos jornalistas.

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    A Casa Branca. / Foto: D.R.

    O jornalista norte-americano, que seguiu ainda as pistas de um falecido jornalista que também dedicou parte da sua vida profissional à investigação do caso, Bob Parry, demonstra como a reeleição falhada do recém-falecido presidente dos EUA, Jimmy Carter, a 4 de Novembro de 1980, foi o resultado de uma traição da parte da candidatura republicana, encabeçada por Ronald Reagan, com o antigo chefe da CIA, George Bush como vice-presidente e o futuro chefe da CIA, Bill Casey, como diretor de campanha.

    Craig Unger comprova nesta obra como a crise dos reféns de Teerão, que começou com o assalto à embaixada dos EUA no Irão, a 4 de Novembro de 1980, e deu origem à crise dos reféns, levou a várias negociações secretas entre republicanos e iranianos, no sentido de manter os reféns em cativeiro até às eleições presidenciais de 4 de Novembro de 1980.

    O principal responsável, aponta o jornalista, foi o chefe de campanha da candidatura republicana, antigo agente secreto da II Guerra Mundial e futuro chefe da CIA, Bill Casey, que teve reuniões secretas com iranianos em Madrid, em Junho e Agosto de 1980, mais ainda um encontro em Paris, em Outubro, dias antes das eleições de 4 de Novembro de 1980.

    O tráfico de armas para o Irão, resultante dessas negociações, era então ilegal quando, a 4 de Dezembro, faleceram em Camarate o primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro e o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, na queda de um avião através da explosão de uma bomba, como ficou demonstrado nas investigações levadas a cabo pelas várias comissões de inquérito da Assembleia da República.

    Jornalistas a escutar, em directo, o discurso de Jimmy Carter acerca do salvamento falhado dos reféns no Irão (1980). / Foto: Marion S. Trikosko

    Os reféns norte-americanos foram libertados minutos depois da tomada de posse de Ronald Reagan, a 20 de Janeiro de 1981. Segue-se a entrevista com o autor de Den of Spies, feita via telefone, entre Lisboa e Brooklyn, onde Craig Unger reside.      

    Este livro chama-se Den of Spies [Covil de Espiões], que era o nome dado pelos iranianos à embaixada dos EUA em Teerão, mas era para ter um título diferente: Original Sin [Pecado Original]. Porquê esse outro título e por que não o usou?

    Para mim, as palavras mais bonitas da fundação dos Estados Unidos foram escritas por Thomas Jefferson na Declaração da Independência, em 1776: “Todos os Homens são criados de forma idêntica”. É bonita, mas era uma mentira, pois naquele tempo havia escravatura e as mulheres não podiam votar. Jefferson nem sequer deu direitos de igualdade aos seis filhos que teve com uma das suas escravas, Sally Hemings.

    Do meu ponto de vista, foi sempre uma mentira. Mesmo depois do fim da Guerra Civil [1861-65], reconstruímos o Sul e tudo iria estar bem com os afro-americanos, e também isso foi uma mentira.

    Portanto, no fim, decido não usar o título de Pecado Original por estar demasiado próximo da raça e o meu livro não é sobre isso. Mas acho que o meu país foi fundado em mentiras e sempre as negamos.

    Neste livro, como sabe, concentro-me na História Contemporânea, onde os Republicanos, repetidamente — em 1968, em 1972, em 1980, em 2000 e 2016 —, uma e outra vez, levaram a cabo uma espécie de traição.

    O antigo presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter com o então primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin (1977). / Foto: Marion S. Trikosko

    Esta entrevista acontece poucos dias após a morte do presidente Jimmy Carter, a pessoa que foi mais prejudicada por esta traição. Pensa que ele conhecia toda a verdade quando morreu?

    Penso que ele soube o que aconteceu. Mandei-lhe o meu livro e não sei se teve a oportunidade de o ler enquanto estava no hospital. Mas, mesmo em 1981, ele encorajou o Congresso a investigar e foi bastante vocal em relação a isso, e não creio que não o teria feito se não soubesse a resposta.

    Vamos então à origem do caso de 1980. No fim de Outubro de 1979, o Xá do Irão, que estava exilado na América Latina desde Janeiro, deu entrada num hospital de Nova Iorque para tratamentos oncológicos. Tanto David Rockfeller como Henry Kissinger foram os principais promotores desse internamento, alegando razões humanitárias. Jimmy Carter opunha-se, pois temia um ataque à embaixada em Teerão. Ora, foi precisamente isso que aconteceu dias depois, a 4 de Novembro, quando os estudantes atacaram a embaixada e derem início à crise dos reféns. O facto de o ataque ter sido a 4 de Novembro, um ano exacto antes das eleições presidenciais de 1980 — data já conhecida no dia do ataque, pois as eleições ocorrem sempre de quatro em quatro anos, na primeira terça-feira de Novembro, entre os dias 2 e 8 — podemos falar de uma coincidência ou de um acto premeditado?

    Bem, se estamos a falar do que aconteceu da parte dos iranianos, ao tomarem de assalto a embaixada a 4 de Novembro, isso não sei. Simplesmente não sei. Agora, não há dúvidas de que a vinda do Xá para os Estados Unidos foi o que os levou a atacar a embaixada.

    Jimmy Carter estava contra a ideia de admitir a entrada do Xá nos Estados Unidos, mas enfrentou uma poderosa oposição de David Rockfeller, Henry Kissinger, uma grande parte do sistema de serviços de informação e até do seu secretário de Estado, Zbigbnew Brzezinsky.

    Pode ter sido uma coincidência que o ataque tenha acontecido a 4 de Novembro. Realmente, não sei dizer, mas foi a partir do momento em que o Xá foi admitido nos Estados Unidos que decidiram tomar a embaixada. E esse é um facto que temos de assumir como verdadeiro. Coincidência ou não, quem sabe?

    No livro, diz que não foi a gestão da crise que preocupou os serviços secretos, mas sim o facto de haver uma crise. Pensa que aconteceu porque o presidente dos Estados Unidos era fraco e, se fosse outro presidente, com outro domínio dos serviços secretos, a crise teria sido resolvida de forma diferente?

    Jimmy Carter tinha alienado de forma irrevogável a comunidade dos serviços de informação. Parte do problema foi ter nomeado Stansfield Turner chefe da CIA.

    Após ter despedido George Bush…

    É normal um novo presidente substituir o director da CIA quando assume o cargo. Bush demitiu-se poucos dias antes da tomada de posse de Carter — que aconteceu a 20 de Janeiro de 1977.

    Mas o nome de Carter está ainda associado, depois da demissão de Bush, com uma série de despedimentos dentro da CIA, certo?

    Certo. Quando Turner era chefe da CIA, mais de 800 pessoas foram demitidas. Foi um ‘massacre’ e alienou completamente a CIA contra Carter. E esse era o verdadeiro problema que o enfraqueceu enormemente.

    Foi também com Carter, no início de 1978, que foi nomeado para número dois da CIA, como director-adjunto, uma pessoa chamada Frank Carlucci e que era, desde 1975, embaixador norte-americano em Lisboa. E, durante a sua estadia em Portugal, sempre se suspeitou que ele estava intimamente relacionado com a CIA. Este nome diz-lhe algo?

    Escrevi um pouco sobre Carlucci num dos meus primeiros livros, House of Bush, House of Saud, e foi sobre a sua ligação ao grupo Carlyle. Neste livro não.

    As circunstâncias em que ocorreu a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, numa explosão do avião em que seguia com o seu ministro da Defesa, suscitam ainda hoje muitas interrogações. / Foto: D.R.

    Carlucci não surge neste seu recente livro e a investigação centra-se no papel de Bill Casey, o homem que era o chefe de campanha da candidatura Republicana de Ronald Reagan e George Bush e que, depois das eleições, tornou-se no chefe da CIA. Ele dizia que o mais difícil de provar era o óbvio. É esse o problema deste caso? Ser óbvio?

    É uma daquelas coisas inteligentes que se dizem. No prólogo do meu livro menciono a revista satírica The Onion, que no seu número de resumo do século XX, quando se refere ao dia da tomada de posse de Reagan, apresenta uma capa falsa do The New York Times com o título: “Reféns libertados; Reagan apela ao povo americano a não somar dois mais dois”. Claro que toda a gente viu os reféns regressarem aos Estados Unidos, literalmente, cinco minutos após Reagan ter prestado juramento. E, claro, ele não poderia ter negociado a libertação nesses cinco minutos porque estava a fazer o discurso no pódio. E tinha de haver contactos. É difícil acreditar que os iranianos iriam devolver os reféns sem falarem com a administração Reagan. Portanto, a negociação tinha de ter começado mais cedo.

    Provavelmente, um jornal satírico como o The Onion estava a dizer mais do que a imprensa de referência. Menciona no livro que, no caso Watergate, Bob Woodward e Carl Bernstein tinham o princípio de escreverem algo que tivesse sido confirmado por duas fontes diferentes. Neste caso, por vezes, havia cinco fontes e nem assim se escrevia a informação. Como explicar o silêncio dos jornalistas em relação a este caso? 

    Usei esse número quando mencionei a possibilidade de George Bush ter estado na reunião de Paris, entre os dias 18 e 19 de Outubro de 1980. Havia cinco pessoas que me diziam que tinha estado, mas nenhuma como fonte directa. Por exemplo, o espião israelita Ari Ben-Menashe disse-me que ouvira dizer que Bush esteve lá, mas não tinha a certeza. Era um tipo de informação que não era conclusiva e, na altura em que estávamos a fazer essa investigação, Bush era candidato à reeleição e, na época, era necessário ter mais fontes, dependendo do quão sério aquilo era. Continuo a ser agnóstico sobre Bush em Paris.

    Mas, no caso de Casey, ele estava em Madrid no Verão de 1980, a negociar com iranianos?

    Sim, absolutamente.

    E a prova disso, a tal “arma fumegante”, é um telegrama diplomático onde a embaixada norte-americana em Madrid informava o Departamento de Estado sobre a presença de Casey na capital espanhola, numa altura em que, oficialmente, deveria estar a dar uma palestra em Londres, certo?

    Certo. E também entrevistei um antigo agente, chamado Robert Sensei, que me confirmou que viajou até Madrid, em Agosto de 1980, com Bill Casey. E Casey tinha três álibis que foram caindo, um por um. Quando isso acontece, aproximamo-nos cada vez mais da verdade. Se eu tivesse de ser presente a um júri diria que, sim, Casey estava no meio do caso e era culpado. Mas, quanto a Bush ter estado na reunião de Paris, isso ainda está por confirmar. Sim, gostaria de ter mais provas.

    Talvez os telegramas diplomáticos do embaixador norte-americano em Paris pudessem ajudar a esclarecer isso. Pediu ao Departamento de Estado para os consultar?

    Tanto quanto sei, não havia telegramas diplomáticos relacionados com Bush em Paris.

    Este livro, ao contrário de outros que já escreveu, não parece estar a ter a mesma divulgação junto da imprensa norte-americana. Porquê?

    Penso que este caso é um dos episódios mais escandalosos da história da imprensa norte-americana, mas não é apenas ignorarem a história, mas terem-na  tratado da forma errada. Investigaram a história de forma agressiva, como se não quisessem que fosse publicada. E penso que houve duas forças que contribuíram para isso. Uma é aquilo que chamo de “jornalismo de acesso”. Explico no livro que os jornalistas têm um acesso diário a estas pessoas e, por isso, não vão querer dizer nada crítico em relação às pessoas às quais precisam de aceder. Não sei se em Portugal acontece o mesmo…

    Sim, em Portugal também temos disso, sim, temos e muito…

    Pois (risos)… A segunda força, e uma das conclusões do livro que, para muitas pessoas é difícil de aceitar — e, a propósito, sou judeu e já fui acusado de antissemita por reportar isto — mas não se pode ler o meu livro sem concluir que Israel desempenhou um papel central numa operação secreta de sabotagem nas eleições norte-americanas e isso é uma violação da nossa soberania.

    O actual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. / Foto: D.R.

    Isso leva-me, então, a uma outra questão: quando juntamos aquilo que escreveu sobre Trump poder estar comprometido com os russos — sobretudo desde o seu casamento, nos anos 80, com uma pessoa oriunda de um País de Leste —, e o facto de Putin, antigo agente do KGB, conhecer como os republicanos conquistaram o poder em 1980 e como, desde então, têm gerido a traição a Carter, então Putin sabe bem como é frágil a democracia norte-americana. Fiz uma leitura correcta da situação actual, não?

    Oh, sim! Absolutamente! (Riso nervoso. Isso é o foco do livro. Aquilo que funcionava com o compromisso era o que não se usava, que ficava nos bastidores. Mas Trump é um sem-vergonha e não há nada que lhe faça dano, se percebe o que quero dizer.

    Falo agora em relação a Portugal. O meu país investigou um negócio de tráfico de armas para o Irão durante o tempo em que se deu a traição a Jimmy Carter, como parte do móbil do assassinato do primeiro-ministro de Portugal e do ministro da Defesa. E sabemos aqui que houve movimentações nesse sentido. Agora, encontrou algo sobre Portugal na sua investigação?

    Não há dúvida de que há um episódio interessante que parece ser mais do que uma coincidência. Henry Kissinger era, claramente, um jogador central ao conseguir que o Xá do Irão fosse admitido nos Estados Unidos. Ele, os Rockfeller com o seu Chase Manhattan Bank e o antigo sistema de informação, pressionaram Carter a admitir o Xá. E, depois, claro, isso desencadeou a crise dos reféns. Então, logo após a vitória de Reagan, em Novembro de 1980, quando é preciso mandar armas para o Irão e Jimmy Carter ainda é presidente, temos Kissinger a fazer uma viagem até Portugal. O que foi ele fazer? Haverá carregamentos de armas para o Irão a chegar através de Portugal e esperamos que os deixem passar? Quem sabe?

    Pensa que, com Donald Trump — e vendo as promessas de trazer à luz determinados documentos secretos, como aqueles envolvendo a morte de J.F. Kennedy —, ele poderá revelar algo sobre o que aconteceu em 1980?

    Penso que qualquer coisa que ele faça em relação a segredos será para o seu próprio interesse. E penso que não vai abrir a porta para que a nossa democracia fique mais saudável.

  • Patrícia Reis

    Patrícia Reis

    Na vigésima quinta sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora e jornalista Patrícia Reis.



    Jornalista e escritora com uma carreira multifacetada, Patrícia Reis entrou em 1988 no semanário O Independente, tendo posteriormente trabalhado na revista Sábado e realizado um estágio na Time em Nova Iorque. De regresso a Portugal, integrou a equipa do Expresso, produziu o programa de televisão ‘Sexualidades’ e colaborou ainda com as revistas Marie Claire e Elle e com o jornal Público.

    Paralelamente ao jornalismo, dedicou-se à escrita literária, publicando romances como ‘Cruz das Almas’ (2004), ‘Amor em Segunda Mão’ (2006), ‘Morder-te o Coração’ (2007) – este último finalista do Prémio Portugal Telecom de Literatura –, ‘No Silêncio de Deus’ (2008) e ‘Antes de Ser Feliz’ (2009), ‘Morder-te o Coração’ (2015), ‘A Gramática do Mundo’ (2016, com Maria Manuel Viana), ’A Construção do Vazio’ (2017), ‘Da Meia-Noite às Seis’ (2019). Escreveu também biografias, incluindo as de Vasco Santana, Maria Antónia Palla, Simone de Oliveira e, recentemente, de Maria Teresa Horta. E também uma longa série de livros infantojuvenis. Tem também uma longa experiência editorial, sobretudo na revista Egoísta.

    Patrícia Reis fotografada no PÁGINA UM.

    Nesta longa conversa com Pedro Almeida Vieira – no dia seguinte à morte de Maria Teresa Horta –, Patrícia Reis fala do seu percurso profissional, da sua escrita e da escrita dos escritores (e sobretudo das escritoras) que ama e sobre a força da Literatura.

    Entre os romances patentes na Biblioteca do PÁGINA UM, Patrícia Reis recomenda os romances ‘A Voz dos Deuses’, de João Aguiar, publicado em 1984, e ‘A Corte do Norte’, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1987.

    Pormenor da biblioteca ‘caseira’ de Patrícia Reis.
  • ‘A chave da descarbonização não é na Europa que se decide; é nos outros países mais poluidores’

    ‘A chave da descarbonização não é na Europa que se decide; é nos outros países mais poluidores’



    À beira dos 60 anos, e perto da reforma, Paulo Carmona recebeu o convite inesperado para ser director-geral de Energia e Geologia. Foi nomeado para o cargo no final de Agosto do ano passado.

    A vista do seu gabinete, em Entrecampos, é um espelho do cenário que se vive no sector energético, de transição e transformação. Vê-se o ‘velhinho’ Edifício Marconi que tem, em frente, em construção, o novo edifício da Fidelidade; no quarteirão ao lado, onde estava parte da Feira Popular, está o terreno vazio que será preenchido com um novo edifício do Banco de Portugal.

    O telefone tocou diversas vezes durante a entrevista. Deu para sentir a azáfama de quem tem muitas solicitações.

    Logo no início da entrevista ao PÁGINA UM, no início de Janeiro, Paulo Carmona confessou que aceitou o convite para este cargo por querer “retribuir” ao país e à sociedade o que de bom recebeu na vida. “Como tive sorte, como fui feliz nesse aspecto, em várias frentes — pessoais, familiares, profissionais — só tenho de estar agradecido e de devolver à sociedade o que fez por mim”. E acrescentou: “é preciso levantarmo-nos do sofá, da zona de conforto, e ir lutar por aquilo que acreditamos”. “É um país fantástico. Pelo menos, digo aos meus filhos: estou a fazer algo pelo vosso futuro”. Isto, apesar de dois dos seus três filhos residirem actualmente no estrangeiro.

    Paulo Carmona no seu gabinete na sede da Direcção-Geral de Energia, em Lisboa. / Foto: PÁGINA UM

    Mas o ter aceite o convite faz parte da postura que adoptou na vida, de se render perante as oportunidades. Foi também, assim, que antes de chegar à liderança da DGEG, aceitou ser coordenador na Estrutura de Missão para o Licenciamento de Projetos de Energias Renováveis 2030. “Nada na minha vida foi planeado. A minha vida é uma sucessão de acasos”, disse.

    Antigo dirigente da Iniciativa Liberal, António Carmona, de 59 anos, é licenciado em gestão, administração e gestão de empresas pela Universidade Católica e concluiu ainda programas avançados na Kellogg School of Management e na AESE Business School.

    Trabalhou como gestor e consultor, e, entre os vários cargos que desempenhou, foi presidente do Fórum dos Administradores e Gestores de Empresas. Na área de energia, foi ‘chairman’ na National Oil Reserves Agency Association e presidiu à Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis. Mais recentemente, também fundou a Associação Portuguesa dos Contribuintes, que teve de ‘por de parte’ para de dedicar às suas novas funções. Teve também de abdicar de cargos como administração não executivo em quatro empresas nacionais e ao cargo de vice-presidente da Associação Empresarial de Portugal, dona do Centro de Congressos de Lisboa.

    Apesar de lamentar ter de deixar os diversos cargos que ocupava em empresas e organizações, pensa que valeu a pena. “Foi por uma boa causa, espero eu”, disse. “As coisas que me acontecem, acontecem sempre por bem, pela positiva”. Como sou uma pessoa com alguma sorte, se vim para aqui é porque os deuses, Deus, a mística (o quis)” , disse.

    Foto: PÁGINA UM

    Na DGEG, antecipa muito trabalho e a sua prioridade é “organização”. “Não funciona mal, pode funcionar melhor e pode ir no caminho da excelência que é isso que estamos a fazer; a tentar transformar, ao nível de pessoas, ao nível da formação, digitalização, com algum apoio do PRR-Plano de Recuperação e Resiliência, mas sobretudo com organização”, afirmou.

    Paulo Carmona garantiu que, para já, não está na mesa a criação de um super-organismo que concentre as várias entidades do sector da energia e da geologia em Portugal. “Estava no programa eleitoral” e, quando Paulo Carmona foi nomeado, “falou-se nisso”, até porque foi gestor. “Mas, para já não está nada, não existe nada, não fui contactado para nada; esse projecto – não digo que está parado – mas não existe, nesta altura, esse conceito de fusão”, asseverou. “Acredito que, mais tarde ou mais cedo possa acontecer”. Mas há muitos outros temas mais “urgentes e prioritários”, como a organização da DGEG.

    Lidera a DGEG numa altura em que Portugal, como outros países, de deparam com o ‘trilema energético’, tendo de gerir a transição da descarbonização, a par de garantir a soberania, independência e segurança energética, e, ao mesmo tempo, levar a cabo essas duas metas sem sobrecarregar os consumidores. Até porque “Portugal é um país pobre” e há que pensar nos consumidores. Muitos vivem em situação de pobreza energética, sem aquecimento.

    Foto: PÁGINA UM

    Por isso, defende a posição do actual Governo que está “entusiasmado” com o Plano Nacional de Energia e Clima 2030, mas não está “excitado”, como o anterior governo de António Costa. “Estar entusiasmado não é estar excitado ao ponto de ficar cego”. disse.

    Nesta entrevista, falou também sobre o primeiro leilão de energia eólica offshore do país e sobre a meta de Portugal duplicar a electricidade renovável até 2030, pelo que a DGEG terá de acelerar o licenciamento. E lembrou que “grande parte da nossa política energética é decidida em Bruxelas”.

    Mas garantiu: “em termos de políticas energéticas, vamos construir um futuro que será melhor para os portugueses, mas com mais bom-senso, mais ligado à terra.”

    Para Paulo Carmona, prosseguir com a descarbonização da economia portuguesa e europeia só faz sentido se a política for acompanhada pelos países que são grandes poluidores, como a China e a Índia. Lembrou que “somos responsáveis por 0,12% das emissões a nível mundial”. Assim, “estamos na linha da frente dos países com mais redução de emissões nos últimos anos”. Também “somos um país com poucas emissões per capita, dentro da Europa, que, por sua vez, no mundo é das das zonas com menores emissões per capita“.

    Contudo, defendeu que tem de haver uma maior solidariedade por parte dos grandes poluidores — a China, a Índia, alguns países em África — e que dominam o mercado de matérias-primas. “Temos de nos preocupar mais com o tema da solidariedade mundial porque até poderíamos, eventualmente, descarbonizar tudo em Portugal; seria difícil, com custos […] mas conta com 0,12% das emissões mundiais”, lembrou. “Basta a China abrir uma daquelas mega fábricas de produção de electricidade à base de carvão, lá vão todos os esforços de Portugal em 2 ou 4 anos”, salientou.

    Foto: PÁGINA UM

    Disse ainda que os manifestantes a favor da descarbonização, “em vez de andar a fazer manifestações ou andarem a pinchar as coisas, deviam fazer manifestações em frente à embaixada dos outros países que poluem mais”.

    “O planeta está a ser salvo, aqui na Europa. É onde estão a ser feitos maiores esforços no caminho da transição energética e descarbonização. Não podemos ficar sentados e quietos, não é isso. A chave da descarbornização e transição energética não é na Europa que se decide; é nos outros países mais poluidores, e que nós temos da nossa parte, ou ajudá-los, ou fazer pressão para que deixem de ser poluidores”. No caso de Portugal, “se reduzirmos tudo, 0,12%, o planeta nem nota”.

  • ‘O Presidente da República tem de ser alguém com a convicção de que o país precisa de um caminho diferente”

    ‘O Presidente da República tem de ser alguém com a convicção de que o país precisa de um caminho diferente”



    Mariana Leitão, 42 anos, fez carreira como gestora e assume ter um interesse particular por tecnologia, mas é hoje a líder do Grupo Parlamentar da Iniciativa Liberal (IL) e na última convenção do partido subiu a vice-presidente. É também a candidata da IL à presidência da República, nas eleições do próximo ano.

    Licenciada em Relações Internacionais, tem pós-graduações em ‘International Management’ e em ‘Data Science & Business Analytics’. Uma das suas paixões é o ‘bridge‘ e é mesmo jogadora federada desta modalidade. Representou Portugal nos campeonatos da Europa de ‘bridge‘ de 2018 e 2022 e no campeonato do Mundo de 2022.

    Nesta entrevista ao PÁGINA UM — realizada em Dezembro, antes da IX Convenção da IL que reelegeu Rui Rocha para a liderança do partido e antes de se saber que seria a candidata da IL na corrida a Belém —, Mariana Leitão falou sobre a sua vida na política e reconheceu que está satisfeita com a profissão: “gosto daquilo que faço”. Destacou que, sobretudo, quer “sentir que está a fazer a diferença na vida das pessoas”.

    Mariana Leitão, deputada da Iniciativa Liberal. / Foto: D.R.

    Para a deputada, “enquanto líder parlamentar, é um desafio muito grande estar à frente de uma bancada que tem uma visão tão diferente [dos restantes partidos]”. “Defender essa visão para o país é algo que me orgulha bastante e é algo que eu quero deixar; é quase uma marca que eu quero deixar na minha vida”, afirmou. Do que não gosta na vida como deputada? “Da carga burocrática que também existe na política”. Essa não é a sua “zona de conforto”.

    Na entrevista, abordou os temas de bandeira da IL, como a necessidade de haver políticas que potenciem o crescimento económico do país e a reforma do Estado. Aqui, defendeu que o “Estado deve ser forte naquilo que é essencial”, mas deve ser “mais leve, menos burocrático”, ficar de fora “das áreas onde não tem de estar”. Também abordou o tema do choque que vai ocorrer entre a revolução digital em curso, com o advento da Inteligência Artificial, e a forma como funciona o Estado e entidades públicas em Portugal.

    Sobre a corrida a Belém, a actual candidata à Presidência da República, elencou, na entrevista, os traços do perfil de um bom candidato. “É fundamental que haja um candidato que represente as nossas ideias liberais e esta visão liberal do país. O momento de uma campanha presidencial deve servir também para conseguirmos levar as nossas ideias às pessoas e mostrar que há um país diferente que podemos ter se as nossas ideias conseguirem singrar”, afirmou. Salientou, na altura que, “dos candidatos que se vai falando, não nos parece que nenhum represente este espaço e estas ideias, de liberalismo”.

    Foto: D.R.

    E sobre o perfil de um Presidente da República? Para Mariana Leitão, “é alguém que é um garante da estabilidade, que tem a noção do seu papel e que não cria situações desnecessárias, mas tem de ser alguém que, do nosso ponto de vista, e daquilo que é o ideal de um Presidente da República para um liberal […] tenha esta convicção de que, efectivamente, o país precisa de um caminho diferente”, um “caminho em que tem de ser potenciando o crescimento económico e garantir políticas que promovam o crescimento económico”. Sempre que houver um desvio desse caminho, o Presidente da República deve alertar para esse desvio.

    Na entrevista, a agora vice-presidente da IL frisou que o partido deveria ter “ou um candidato próprio ou alguém que se possa apoiar que represente essas ideias, que as defenda e que as consiga comunicar de forma eficaz”. “[Deve] ser alguém com a consciência da urgência do crescimento económico, de um Estado focado naquilo que é essencial e saindo da frente daquilo que é acessório”. Além disso, deve defender “a desburocratização, a simplificação”. São temas que “o candidato a Presidente da República liberal tem de defender e de ter esta crença de que, desta forma, conseguimos sair desta estagnação em que nos encontramos”.

  • ”É preciso, à esquerda, saber estar em minoria e remar contra a corrente’

    ”É preciso, à esquerda, saber estar em minoria e remar contra a corrente’



    A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos vem reforçar a tendência que se passa na Europa de normalização de uma nova extrema-direita. Para Fernando Rosas, historiador e fundador do Bloco de Esquerda, “o momento é muito preocupante em termos internacionais” e “estamos a viver um período muito semelhante ao de 1939”, que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Mas não vai ser um fascismo igual ao que se assistiu naquela época.

    Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o professor catedrático emérito da Universidade Nova de Lisboa manifestou preocupação com o que considera ser uma nova era de um regime fascista, com uma nova extrema-direita reconfigurada, e aliada de partidos tradicionais de direita. Além disso, Fernando Rosas sublinhou o apoio que oligarcas financeiros e tecnológicos dão a este novo regime que surge como sendo aparentemente benévolo, para resolver os problemas das populações, mas que irá acabar por se impor como autoritário e levar a um aumento das desigualdades económicas e sociais.

    Fernando Rosas, na sua residência, em Lisboa, onde recebeu o PÁGINA UM para esta entrevista. / Foto: PÁGINA UM

    O aviso é também deixado por Fernando Rosas no seu mais recente livro ‘Direitas velhas, direitas novas’, no qual analisa a evolução da extrema-direita na Europa ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial.

    Para o fundador do Bloco de Esquerda, a Europa está a normalizar a extrema-direita, com a actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a contribuir para essa realidade, através de alianças e políticas que beneficiam grandes grupos económicos e interesses oligárquicos, designadamente a indústria de armamento.

    Para o historiador, nesta ascensão da nova extrema-direita reconfigurada, o anti-semitismo nazi foi substituído pelo anti-islamismo, a homofobia, a xenofobia e a repressão sexual.

    Mas esta nova “extrema-direita não cai do céu aos trambolhões, não é um fenómeno que [surgiu] de repente”, porque “tem origem na crise sistémica do capitalismo neoliberal”, numa “crise económica, uma crise social e uma crise política”. Isto porque “as instituições desacreditaram-se, porque abandonaram as pessoas e as pessoas respondem com medo e respondem com raiva”. É destas emoções primárias que a nova extrema-direita se alimenta para crescer, defendeu Rosas.

    Foto: PÁGINA UM

    “[Em] alguns desses partidos será uma direita que se reconfigura, cavalgando esse descontentamento e cavalgando totalmente sem escrúpulos. Explorando os instintos primitivos das pessoas, o racismo, a homofobia, a concorrência desbragada, o messianismo, a aceitação de verdadeiros palhaços, bobos da corte que se apresentam como líderes de opinião”, afirmou.

    Alertou que “a mentira, a manipulação e esse cavalgar tem uma grande novidade em relação ao que se passou nos anos 20 e nos anos 30 do século passado, que são os meios que têm, a manipulação algorítmica, através das redes sociais, das vontades”, numa “verdadeira operação de contra-revolução cultural” e de “manipulação das vontades, dos sentimentos”. Porque “os eleitorados não são maioritariamente fascistas ou neofascistas; os eleitorados estão zangados, e há uma parte da extrema-direita que se reconfigurou para cavalgar esse descontentamento”.

    Defendeu que com décadas de capitalismo neoliberal, o que temos hoje “são os resquícios de solidariedade social, trabalho coletivo, de espírito de comunidade” porque o lucro se tornou o objectivo central e tudo foi mercantilizado. “A mercantilização é o passar por cima do outro, é o espírito das ‘startups‘, o trepar por cima do outro e fazer o que for preciso para vencer”, disse.

    Para Fernando Rosas, a esquerda precisa de “saber estar em minoria e lutar contra a corrente” para combater o novo fascismo e a guerra que se avizinha. “Remar contra a corrente é a história da esquerda”, disse. Lembrou que “a luta económica, a luta política contra a exploração do capital é indissociável de outras lutas que não são propriamente económicas, mas são lutas e ideológicas, são lutas do espírito, são lutas culturais”.

    Mas defendeu que também a sociedade civil se precisa de movimentar. “E eu tenho confiança que a cidadania tem força suficiente, se souber caminhar nesse sentido, mas eu diria que o mundo que aí vem é complicado”, avisou.

    Pelo meio, deixou fortes críticas à comunicação social, que acusa de contribuir para a ascensão da nova extrema-direita, porque “querem ganhar com a especulação, com as audiências, com o espectáculo” e reproduz o ambiente de normalização de partidos, como o Chega, que “transporta a subversão da democracia”.

    Fernando Rosas defendeu que acções como a recente manifestação contra a acção policial na Rua do Benformoso, em Lisboa, são a base para a criação de uma plataforma que una movimentos para combater o que classifica de novo fascismo. / Foto: D.R.

    Sobre os Estados Unidos, apontou que o fenómeno do “super-identitarismo” fez com que a “luta deixou de ser entre oprimidos e opressores e passou a ser entre brancos e pretos, mulheres e homens, heterossexuais e transexuais ou homossexuais”, levando à divisão da “frente que tem que haver num objectivo comum: a emancipação política e social”.

    Na Europa, incluindo em Portugal, defendeu que deve haver uma plataforma que junte a esquerda, com acções em conjunto que fomentem uma plataforma comum para combater “este novo anti-fascismo”. Mas alertou que esta plataforma “que é preciso construir não pode ter ilusões acerca do capitalismo neoliberal” porque combater a extrema-direita actual “é resolver o problema da habitação, dos salários, do desemprego”. É isso que vai tirar a base e o eleitorado dos novos partidos de extrema-direita, defendeu.