Em 1947, a Palestina encontrava-se em plena tensão. Depois de três décadas de Mandato Britânico, de imigração sionista acelerada e de revoltas árabes esmagadas com brutalidade, Londres já não tinha fôlego para segurar o território.
A Assembleia Geral não reflectia um consenso espontâneo; foi o produto de intensa pressão norte-americana, de promessas, chantagens económicas e jogos de bastidores. A União Soviética, ironicamente, alinhou com os Estados Unidos nesta votação, acreditando que um Estado judeu socialista poderia nascer em ruptura com o Ocidente. O resultado foi a Resolução 181, aprovada em Novembro de 1947: uma Palestina partida em dois Estados, um judeu e outro árabe, e uma Jerusalém internacionalizada sob a tutela das Nações Unidas.
Mas esta resolução, já de si profundamente desequilibrada, trazia duas condições básicas que são sistematicamente esquecidas. Primeiro, Jerusalém devia ser uma cidade internacional, fora da soberania de qualquer das partes. Segundo, os dois Estados deveriam formar uma união económica, assegurando a livre circulação de bens, serviços e pessoas.
Foram precisamente estas duas cláusulas que Israel ignorou de imediato, lançando-se numa política de ocupação e exclusão. A criação de Israel foi, assim, desde o primeiro dia, não um simples “acto de independência”, mas uma operação de engenharia política global, sustentada pelo poder norte-americano e violando as próprias condições mínimas do plano da ONU.
Foto: D.R.
A resolução da ONU, aprovada em Novembro de 1947, não trouxe paz mas guerra. Para os árabes da Palestina, que representavam dois terços da população e detinham a esmagadora maioria da terra, a partilha foi sentida como um assalto legalizado.
Logo a seguir à votação, começaram os confrontos entre as comunidades. Milícias sionistas – Haganah, Irgun e Lehi – lançaram ofensivas contra aldeias árabes, não apenas em defesa das áreas atribuídas pelo plano, mas com o objectivo deliberado de expandir o território do futuro Estado judeu.
O que se seguiu ficou para a história como Nakba, a catástrofe palestiniana. Entre 1947 e 1949, cerca de 750 mil árabes foram expulsos das suas casas, mais de 400 aldeias foram destruídas e a geografia da Palestina alterou-se de forma irreversível.
Quando, em Maio de 1948, Ben-Gurion declarou unilateralmente o nascimento do Estado de Israel, os exércitos árabes vizinhos entraram em território palestiniano. A versão oficial, repetida até hoje, descreve essa guerra como uma “invasão árabe” contra um jovem Estado que apenas se defendia.
A história de Israel pós-1948 não foi de consolidação pacífica, mas de expansão permanente. O jovem Estado nunca se contentou com as fronteiras arrancadas pela guerra; via-se como uma potência regional em crescimento. Esse ímpeto encontrou uma oportunidade perfeita em 1956, quando o Reino Unido e a França procuravam derrubar Nasser, que acabara de nacionalizar o Canal de Suez. Para as velhas potências imperiais, a nacionalização era um insulto intolerável. Para Israel, era a ocasião para quebrar o Egipto e mostrar a sua utilidade como aliado do Ocidente.
Foi assim que se formou uma aliança tripla: Israel invadiu o Sinai, enquanto britânicos e franceses simulavam intervir como “força de paz” para proteger o canal. Tudo foi preparado em segredo e lançado com a lógica do exército nazi: ataques de surpresa, avanço rápido, terror militar. Os mesmos governos ocidentais que durante a Segunda Guerra Mundial denunciaram as tácticas nazis de guerra-relâmpago agora aplaudiam a sua repetição, desde que praticada por Israel e seus aliados.
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O resultado militar foi claro: Israel ocupou a Faixa de Gaza e o Sinai em poucos dias, provando a sua capacidade de agir como braço armado das velhas potências coloniais. Politicamente, porém, a aventura ruiu quando os Estados Unidos e a União Soviética se opuseram à agressão e forçaram a retirada. Mas a mensagem já estava dada: Israel tinha demonstrado que podia ser útil como parceiro militar de primeira linha contra regimes árabes nacionalistas. O “Estado jovem e frágil” de 1948 mostrava-se afinal como uma potência agressiva, plenamente inserida no jogo imperialista.
Em apenas seis dias, Israel destruiu a aviação egípcia ainda no solo, avançou sobre o Sinai até ao Canal de Suez, ocupou Gaza, conquistou a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e tomou os Montes Golã à Síria. Foi uma vitória militar esmagadora, mas também o início de uma ocupação que se prolonga até hoje. A partir daí, a “questão palestiniana” deixou de ser apenas a tragédia dos refugiados de 1948: passou a incluir milhões de pessoas a viver sob administração militar directa de Israel, sem direitos políticos, sem soberania e sob colonização acelerada.
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O Ocidente aplaudiu a guerra como acto de autodefesa, quando todos os factos indicavam o contrário. Foi Israel quem disparou primeiro, foi Israel quem ocupou territórios alheios, foi Israel quem consolidou a sua posição como potência regional com a bênção implícita dos EUA. O resultado político foi a transformação do conflito num impasse permanente: refugiados que não regressam, territórios ocupados que não são devolvidos, uma população submetida a regras militares que se arrastam há mais de meio século.
A Guerra dos Seis Dias marcou, assim, a transição de Israel de Estado nascido da limpeza étnica de 1948 para uma potência ocupante em sentido pleno, com o peso de uma ocupação colonial que não cessou. É também aqui que se começa a desenhar a aliança estratégica com os Estados Unidos: Washington descobre em Israel não apenas um parceiro ideológico, mas um activo militar indispensável no Médio Oriente.
Se em 1948 a expulsão em massa criara centenas de milhares de refugiados, ainda existia a expectativa – reforçada por resoluções da ONU, como a Resolução 194 – de que os palestinianos pudessem regressar às suas casas. Mas, depois de 1967, essa porta fechou-se de forma quase absoluta. Israel consolidou-se como potência ocupante e, em vez de permitir o regresso dos expulsos, lançou uma política activa de colonização nos territórios conquistados.
Ao mesmo tempo, programas de colonização incentivaram famílias judias, muitas delas recém-chegadas da Europa ou dos Estados Unidos, a instalar-se em colonatos fortificados nos territórios ocupados. A ironia é cruel: o camponês palestiniano expulso de uma aldeia em 1948, e depois impedido de regressar em 1967, via as suas terras entregues a quem nunca tinha vivido nelas.
O mesmo Estado que impedia o regresso de centenas de milhares de refugiados palestinianos oferecia incentivos fiscais, terrenos baratos e segurança militar a colonos judeus europeus. Era uma política deliberada, não de segurança, mas de engenharia demográfica, destinada a garantir uma maioria judaica irreversível e a fragmentar qualquer possibilidade de um Estado palestiniano viável.
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A consequência foi a criação de um duplo sistema jurídico: um para os colonos, cidadãos israelitas com todos os direitos políticos; outro para os palestinianos, submetidos a administração militar, sem direito de voto, sem acesso livre à terra, e frequentemente sujeitos a demolições e expropriações adicionais.
A ocupação de 1967 não foi apenas uma questão militar: foi a transformação de milhões de pessoas em população subjugada, enquanto a sua terra ancestral era oferecida a estrangeiros em nome de um projecto colonial.
A criação de Israel não foi o mito idílico de um povo que regressa pacificamente à sua terra ancestral. Foi, desde o primeiro instante, um acto político forçado pela pressão norte-americana na ONU, legitimado por promessas contraditórias das potências imperiais, e executado com armas na mão.
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Entre 1947 e 1949, um terço da população transformou-se em dois terços, centenas de aldeias foram riscadas do mapa e três quartos de milhão de pessoas viraram refugiados permanentes. As casas, as terras e até as contas bancárias dos que fugiram foram confiscadas e entregues a recém-chegados.
Israel nasceu não como um Estado partilhado, mas como um Estado exclusivo, erguido sobre a expulsão e o silenciamento do outro. Foi este o verdadeiro parto: uma operação de engenharia demográfica, baptizada na retórica de independência, mas sustentada pela violência e pela limpeza étnica.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
1. O conceito de soberania: origem, decadência e usurpação
Poucas palavras carregam tamanha densidade histórica e ideológica como o termo “soberania”. Olhada ora como escudo da liberdade colectiva, ora como instrumento de opressão estatal, a soberania é um conceito que, ao longo dos séculos, oscilou entre a justificação do poder absoluto e a consagração da autodeterminação popular. No entanto, é precisamente nesta ambiguidade fecunda que reside a chave para compreender a arquitectura política de qualquer regime que se pretenda democrático. A soberania é, em última instância, uma decisão fundadora sobre quem manda em quem — e porquê.
O jurista francês Jean Bodin foi, no século XVI, talvez o primeiro a sistematizar a ideia moderna de soberania: o poder supremo, indivisível e perpétuo de legislar, isento de qualquer sujeição. A soberania, para Bodin, repousava no monarca — mas não era um despotismo sem limites: deveria submeter-se à lei divina e à ordem natural. O seu conceito viria a ser radicalizado pelo britânico Thomas Hobbes, no século seguinte, que viu no soberano o Leviatã necessário para conter a barbárie da guerra de todos contra todos. A paz social exigia um poder absoluto, não por capricho, mas por necessidade lógica. O francês Jean Jacques Rousseau, por sua vez, operaria uma viragem já na segunda metade do século XVIII: a soberania não pertence ao rei, mas ao povo. E a vontade geral torna-se o novo trono.
Mas a transição histórica da soberania monárquica para a soberania popular não apagou o seu traço fundamental: a soberania é sempre uma fonte última de decisão política. A questão nunca é se há ou não soberania, mas onde reside e a quem serve. E é precisamente essa questão que o nosso tempo procura dissimular com neologismos administrativos como governança, resiliência institucional, cooperação reforçada, multilateralismo funcional — fórmulas pensadas para despolitizar o acto de decidir, camuflando relações de poder sob retóricas de consenso técnico.
Se a modernidade política se construiu sobre o princípio de que o povo é soberano, o século XXI parece ter-se encarregado de esvaziar esse princípio da sua substância. O processo não foi abrupto, mas gradual — e, por isso, mais eficaz. O poder soberano foi-se deslocando silenciosamente para entidades não eleitas – como a Comissão Europeia –, tribunais constitucionais com vocação supranacional, organismos técnicos com competência normativa, bancos centrais com autonomia inquestionável. Aquilo que permanece nos parlamentos nacionais é, cada vez mais, a função de carimbar decisões tomadas noutros areópagos. A soberania transformou-se num ritual constitucional – e ainda por cima desprovido da sua força performativa.
A decadência da soberania não se fez apenas pelo alto, mas também pelo baixo. O cidadão comum, embrutecido por décadas de propaganda globalista, passou a ver a soberania como um resquício reaccionário, uma palavra tóxica associada a muros, autoritarismos e isolacionismo. O cosmopolitismo tecnocrático triunfou ao convencer as massas de que a renúncia à soberania era sinal de progresso, de maturidade democrática, de integração no concerto das nações civilizadas. Assim se forjou o paradoxo contemporâneo: o cidadão vota em representantes que não têm poder soberano, mas confia que os “órgãos competentes” farão o necessário — ainda que sem prestar contas a ninguém.
Esta renúncia voluntária ao exercício da soberania constitui, em si mesma, uma tragédia política. Quando um povo abdica de decidir sobre o essencial — as suas leis, os seus impostos, a sua moeda, os seus tratados, as suas fronteiras —, deixa de ser um corpo político e transforma-se numa clientela social. Os grandes pactos do século XX, como as constituições democráticas ou os contratos sociais pós-guerra, pressupunham a existência de comunidades soberanas. A sua erosão corrói a base sobre a qual repousa qualquer legitimidade política duradoura. Onde a soberania se eclipsa, o Estado torna-se apenas uma agência de execução.
A usurpação da soberania, no entanto, não é – ou não foi – feita com violência, mas com protocolos. Não exige – ou exigiu – tanques nas ruas, mas pareceres jurídicos. Não convoca – ou convocou – assembleias, mas workshops. Não declara – ou declarou – estados de sítio, mas ajustamentos estruturais. O golpe pós-moderno contra a soberania é tecnocrático e silencioso: não precisa de abolir a Constituição, basta interpretá-la à luz dos “compromissos europeus”. A excepção torna-se norma, o provisório torna-se estrutural, e o soberano torna-se amnésico — incapaz de recordar quando perdeu o direito de decidir sobre si mesmo.
O filósofo alemão Carl Schmitt, com a sua célebre frase sobre o estado de excepção, recorda-nos que o verdadeiro soberano é aquele que, num momento de crise, suspende a norma para ‘salvar’ a ordem. Mas no mundo actual, quem decide sobre a excepção? Não são os parlamentos. Não são os cidadãos. São os políticos, mas já com base em conselhos científicos, em directórios financeiros, em consórcios reguladores. Isto equivale a dizer que a soberania não desapareceu — apenas mudou de mãos.
É tempo, portanto, de resgatar o conceito de soberania não como bandeira de guerra, mas como instrumento de emancipação. A soberania não é um fetiche nacionalista, nem um capricho autoritário: é a condição para que uma comunidade se reconheça como autora das suas leis e responsável pelo seu destino. Sem soberania, não há cidadania plena — há obediência condicionada. E uma democracia sem soberania não passa de uma ilusão coreografada, onde todos dançam ao som de uma música que já não compuseram.
A restauração da soberania exige coragem intelectual e acção política. Mostra-se necessário romper com a anestesia discursiva que reduz a política a compliance. É preciso declarar que a legitimidade de um Estado não se mede pelo número de pareceres que respeita, mas pelo grau de autonomia com que decide e responde aos seus cidadãos. E, sobretudo, torna-se fundamental recuperar a ideia simples — mas hoje quase subversiva — de que um povo que não manda em si mesmo, não é livre. É apenas governado.
2. A União Europeia como laboratório da pós-soberania
Se o conceito de soberania passou, nas últimas décadas, por uma erosão sistemática, então a União Europeia é o seu laboratório mais avançado. Nenhuma outra estrutura política contemporânea foi tão eficaz a transformar a abdicação da soberania numa virtude moral, num imperativo económico e numa inevitabilidade institucional. A União Europeia não combateu a soberania de frente: dissolveu-a em regulamentos, derreteu-a em comissões, despolitizou-a em nome do progresso. O golpe foi subtil e inicialmente lento, mas depois mais rápido e profundo: não tirou o poder aos Estados; convenceu-os de que já não valia a pena exercê-lo.
A génese da integração europeia não nasce da vontade de criar uma comunidade política plena, mas de impedir a repetição das tragédias do século XX. Foi um projecto fundado no trauma e erguido sobre a promessa de estabilidade, comércio e convergência. No seu alvorecer, era uma engenharia económica com pretensões civilizacionais. Mas cedo se percebeu que, para que o mercado comum florescesse, seria necessário conter os ímpetos soberanistas dos Estados-membros. A moeda única — introduzida com solenidade e propaganda — foi o dispositivo mais eficaz desse condicionamento.
Ao abdicar da sua política monetária, os Estados aceitaram um novo tipo de tutela: não a de uma potência estrangeira, mas a de uma arquitectura institucional que fala com o timbre neutro da razão técnica. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia — eis os vértices de um poder que decide sem se submeter ao escrutínio de um povo. A legitimidade não é democrática, mas funcional: a União decide “bem” porque decide “com competência”, porque tem “experts”, porque tem “estudos”. Mas quem define o que é “bem”? Quem decide os termos da competência? Quem fiscaliza os experts? O povo europeu, esse mito sem corpo nem voz, não entra na equação.
A União Europeia é, portanto, o lugar onde se inverteu a ordem clássica da soberania: em vez de os Estados fundarem uma união, é a união que reformata os Estados. Os tratados europeus funcionam como constituições não ratificadas: vinculam os parlamentos nacionais a políticas predeterminadas, sujeitam decisões orçamentais a metas comuns, impõem regras que nenhuma maioria eleitoral pode facilmente revogar. O caso grego, durante a crise da dívida, foi paradigmático: um povo inteiro disse “não” nas urnas, mas Bruxelas respondeu com um “sim” irrevogável. O referendo foi apenas uma pausa na austeridade.
Aquilo que temos, portanto, é uma transferência de soberania sem transferência de responsabilidade. Os líderes nacionais escondem-se atrás de “obrigações europeias” para justificar cortes, reformas ou imposições fiscais. A democracia é subcontratada. A impopularidade é externalizada. E assim o pacto entre governantes e governados vai-se dissolvendo numa névoa de relatórios e calendários comunitários. O cidadão não elege quem decide, nem pode demitir quem impõe. O seu único gesto político é o protesto infrutífero ou o voto simbólico num parlamento europeu que não legisla de facto.
A União Europeia, neste modelo, não é um império clássico — porque não conquista territórios — nem uma federação madura — porque não tem povo constituinte. É antes uma tecnocracia expandida, uma cúpula administrativa com pretensões normativas. E como toda a tecnocracia, vive do simulacro de neutralidade: os seus comissários não têm partidos, os seus pareceres não têm ideologia, os seus regulamentos não têm alternativa. Mas o facto de se apresentar como “apolítica” é precisamente o seu acto mais político.
Dir-se-á que tudo isto foi livremente aceite pelos Estados-membros. Mas o que significa “aceite” quando a pressão é feita sob chantagem económica? Quando se financiam campanhas de adesão com fundos europeus, quando se sancionam Estados desobedientes com cortes ou bloqueios, quando se condiciona o acesso a fundos a reformas estruturais que alteram profundamente o modelo social — o que resta da soberania senão um selo cerimonial? A adesão voluntária torna-se adesão extorquida.
A retórica da solidariedade europeia apenas esconde a assimetria de poder entre os Estados centrais e periféricos. A soberania não é apenas erodida; é hierarquizada. A França e a Alemanha têm direito ao déficit estratégico. Os pequenos Estados têm a obrigação da austeridade virtuosa. Os grandes bancos são salvos. As pequenas economias são auditadas. A soberania é selectiva — e, portanto, é privilégio.
Por isso, o projecto europeu, tal como hoje está desenhado, exige uma crítica profunda, não para ser destruído, mas para ser desmitificado. Já não se trata de um projecto comum de povos soberanos, mas de uma engrenagem institucional que sobrevive melhor quanto menos soberanias lhe resistirem. A verdadeira questão europeia deixou de ser o estar dentro ou fora da União — é se dentro dela ainda podemos ser donos do nosso destino.
Recuperar a soberania no contexto europeu não significa recuar para o isolacionismo, mas restaurar o princípio de que só há legitimidade política quando há capacidade efectiva de decidir com autonomia. Uma Europa de nações soberanas não é uma contradição: é uma necessidade democrática. Mas para isso, é preciso dizer o óbvio: uma união que exige obediência cega, que impõe regras sem voz, que apaga fronteiras sem fundar um povo — não é uma união, é uma simulação.
3. Soberania fiscal e monetária: o mito da convergência e a verdade da dependência
A perda de soberania raramente se anuncia em fanfarras. Não há decretos com brasões dourados, nem tanques a cruzar fronteiras. Há, isso sim, gráficos com curvas descendentes, relatórios de convergência, decisões técnicas ditas “inevitáveis”. E no centro desse processo silencioso está a renúncia ao controlo fiscal e monetário — os dois nervos centrais da autonomia de um Estado moderno. Um país que não pode determinar os seus impostos nem emitir a sua moeda já não é plenamente soberano: é um gestor subalterno da vontade alheia.
No caso europeu, a promessa da moeda única foi apresentada como um instrumento de convergência: os países do sul poderiam beneficiar da estabilidade germânica, e os países do norte ganhariam mercados estáveis para os seus produtos e capitais. A teoria era elegante, mas como em muitas fábulas da integração europeia, a prática revelou-se assimétrica. A convergência prometida tornou-se divergência estrutural. Os países mais frágeis perderam a capacidade de ajustar a sua economia através da desvalorização cambial e da flexibilidade monetária. E em troca receberam metas orçamentais rígidas, reformas impostas e vigilância permanente.
A independência do Banco Central Europeu (BCE), celebrada como garantia de estabilidade, tornou-se um dogma tecnocrático imune ao escrutínio popular. O BCE não responde a governos eleitos, nem a cidadãos. Decide com base em modelos macroeconómicos, projecções inflacionistas e pressões dos mercados. A sua missão não é a prosperidade de cada Estado-membro, mas a estabilidade da moeda — uma moeda que, não tendo dono político, acaba por ser capturada pelas conveniências do mais forte. Os juros sobem ou descem, não em função das necessidades de Lisboa ou Atenas, mas do humor de Frankfurt.
Este modelo cria uma divisão fundamental entre Estados de dívida soberana e Estados de dívida tutelada. A Alemanha pode emitir dívida sem grande risco de especulação. Portugal, Grécia ou Itália estão permanentemente sob ameaça de reacções adversas nos mercados. O resultado é uma transferência de soberania orçamental: quem quer emitir dívida deve convencer primeiro os mercados — e depois, implicitamente, o BCE. Não há autonomia fiscal sem margem orçamental. E não há margem orçamental sob uma moeda única desenhada sem união política.
Os Pactos de Estabilidade e Crescimento, os Semestres Europeus, os Programas de Ajustamento, os Planos de Recuperação e Resiliência — todos estes dispositivos transformaram a política orçamental interna numa extensão da política de contenção da inflação. A despesa pública é vigiada, os investimentos são avaliados por critérios de sustentabilidade financeira, as reformas estruturais são exigidas em troca de fundos. A política torna-se contabilidade. E o sufrágio universal, uma formalidade sem alcance real.
A dependência que daí resulta é mais profunda do que uma simples subordinação técnica – ela corrói a legitimidade interna. Governos eleitos com promessas de investimento público ou de justiça fiscal veem-se impedidos de cumpri-las por constrangimentos externos. Cria-se uma dissonância permanente entre o que se promete em campanha e aquilo que se executa no governo. Os políticos fingem governar; os burocratas fingem não mandar. No meio, o eleitorado afasta-se.
O euro, longe de ser um instrumento de coesão, funcionou como acelerador de desequilíbrios. Os países periféricos passaram a importar mais do que exportam, acumularam défices externos e viram os seus sectores produtivos fragilizarem-se. Sem possibilidade de ajustamento cambial, a única via de “competitividade” tornou-se a compressão de salários e o desmantelamento de direitos laborais. A famosa “austeridade expansionista” foi um eufemismo para dizer: empobreçam-se os povos para salvar a moeda.
O caso português é exemplar. Desde a entrada no euro, perdeu-se controlo sobre a moeda, sobre os juros, sobre as reservas. A política orçamental tornou-se prisioneira de metas externas e de agências de rating. A margem para uma política económica contra-cíclica desapareceu. Ficou a retórica europeísta como consolo simbólico. Mas perdeu-se mais do que ferramentas técnicas: perdeu-se a capacidade de decidir com base na realidade nacional.
Há quem acredite que tudo isto é o preço da integração e que a resposta será mais Europa — uma união fiscal, um governo económico comum. Mas essa proposta ignora a assimetria de interesses dentro da própria União Europeia. Uma união fiscal sem união política será apenas a formalização da tutela. Uma união política sem povo comum será um simulacro de democracia. E enquanto se espera por esse horizonte longínquo, a realidade continua a ser a de Estados que não podem decidir quanto gastar, onde investir, como tributar. Estados amputados da sua vontade.
Assim, recuperar a soberania fiscal e monetária não é um capricho nacionalista, mas uma exigência democrática. Significa devolver à deliberação política aquilo que nunca deveria ter sido expropriado pela gestão tecnocrática. Significa aceitar que o risco faz parte da liberdade — e que a estabilidade imposta de fora é, muitas vezes, apenas um outro nome para a servidão voluntária.
A moeda não é neutra. A dívida não é apolítica. O orçamento não é uma mera folha de Excel. São instrumentos de poder, de decisão, de justiça social. E um povo que os entrega sem resistência abdica, não apenas do seu presente, mas da sua possibilidade de futuro.
4. A soberania sanitária e o novo paradigma bio-administrativo
Durante séculos, a soberania assentava-se em dois pilares: o território e a autoridade sobre os corpos em caso de conflito — seja através da guerra, seja por meio da justiça criminal. O poder decidia sobre a vida e morte: quem podia matar, quem devia morrer, quem era punível. O Estado exercia o seu domínio por fora do corpo, ou sobre o corpo, mas não a partir de dentro.
Com o advento da biopolítica — conceito inaugurado por Michel Foucault e actualizado nas suas implicações mais sombrias por Giorgio Agamben —, a soberania desloca-se para um domínio mais insidioso: o da vida nua, do corpo gestionado, do ser humano transformado em vector de risco e unidade estatística.
A pandemia da COVID-19 não foi a origem desta mutação, mas recentemente comportou-se como um catalisador. De súbito, a gestão da saúde pública passou a sobrepor-se a todas as restantes dimensões da existência política: liberdades suspensas, direitos relativizados, deveres impostos. Não por imposição de um tirano, mas com o aval de peritos, agências sanitárias e instituições supranacionais. A obediência tornou-se uma virtude, e a dúvida — mesmo que científica — foi rotulada de negacionismo. O corpo deixou de ser sujeito político para ser tratado como possível ameaça bioestatística.
Este novo paradigma — que aqui designo como bio-administrativo — funda-se na tecnocracia médica, mas vai muito além da medicina: é uma fusão entre gestão, estatística, vigilância e narrativa. O risco sanitário substitui o risco político como fundamento da acção governamental. Os cidadãos tornam-se simultaneamente pacientes e suspeitos. A liberdade de movimento, de trabalho, de reunião e até de expressão passou a estar subordinada ao imperativo sanitário, gerido não por parlamentos mas por comités de crise.
Nada disto se mostra possível sem uma profunda mutação ideológica na percepção do bem comum. Em nome da saúde pública, aceitaram-se restrições impensáveis poucos meses antes. O confinamento compulsivo de saudáveis, o encerramento de escolas, a imposição de injecções periódicas, o rastreio digital de contactos, a segregação de não-vacinados — tudo isto foi normalizado, muitas vezes celebrado. As garantias constitucionais foram suspensas ou reinterpretadas à luz de uma urgência sanitária que passou a ser o novo estado de excepção.
Esta soberania sanitária não se exerce apenas sobre os corpos, mas sobre os dados dos corpos. A saúde digital, os certificados de vacinação, as plataformas de rastreio e os registos centralizados transformam o cidadão num fluxo contínuo de informação. E essa informação, longe de ser neutra, torna-se fundamento para decisões automatizadas: quem pode viajar, quem pode trabalhar, quem pode entrar num edifício, incluindo num restaurante ou num ginásio. A democracia transforma-se, assim, numa arquitectura condicional: os direitos tornam-se permissões.
A suposta neutralidade científica que sustenta as decisões é uma das maiores falácias deste novo modelo. O discurso técnico mascarou opções políticas, muitas vezes ideologicamente carregadas. A censura de alternativas terapêuticas, o monopólio narrativo das terapias genéticas catalogadas de vacinas, a criminalização de protestos — tudo foi justificado com base numa autoridade científica tão consensual quanto opaca. E quem ousou divergir, por mais qualificado que fosse, foi ostracizado, silenciado ou até perseguido judicialmente.
É neste contexto que a soberania sanitária revela o seu verdadeiro rosto: não é a saúde que comanda a política, mas a política que instrumentaliza a saúde para reforçar o seu poder. O corpo torna-se a última fronteira da soberania: um corpo disciplinado, injectado, rastreado, isolado, sacrificado se necessário. A medicina já não cura — administra. E o cidadão já não decide — consente, por vezes impelido a consentir mesmo sem compreender.
Este paradigma bio-administrativo tem ainda uma dimensão moral. A saúde passa a ser um imperativo ético, e quem o recusa é visto não como alguém com uma opção legítima, mas como um delinquente cívico. A vacinação ou a administração de um fármaco, por exemplo, torna-se um dever social, a máscara um sinal de obediência, o confinamento um acto de solidariedade. A política de saúde converte-se em liturgia, com os seus rituais, dogmas e heresias. E os apóstatas — os que questionam — são tratados como perigos públicos.
Esta nova forma de soberania é particularmente perigosa porque invisível e até desejada. Não exige polícias nem exércitos — basta uma aplicação, uma directiva sanitária, um boletim epidemiológico. A submissão não é forçada: é interiorizada. O cidadão exige ser controlado, pede que os outros sejam vigiados, denuncia infractores. A servidão é voluntária, porque se acredita estar a salvar vidas.
Mas o que se perde neste processo é incalculável: perde-se a ideia de que a liberdade é um valor em si, mesmo em tempos de risco. Perde-se o princípio de que o Estado existe para garantir direitos, e não para suspender vidas. Perde-se a distinção entre cuidado e controlo. E ganha-se uma sociedade mais segura, talvez — mas menos humana, seguramente.
É por isso defender a ponderação da soberania sanitária não é um apelo ao obscurantismo, nem uma recusa da ciência. É, pelo contrário, a exigência de que a ciência permaneça livre, que o debate permaneça aberto, e que a saúde nunca seja usada como cavalo de Tróia para destruir as liberdades que ainda nos restam. A soberania sanitária deve ser, acima de tudo, uma soberania cidadã — não um decreto de emergência perpétua.
5. Soberania energética e a ideologia da transição verde
Se outrora a soberania energética significava a capacidade de um Estado controlar as suas fontes de energia, vital para a sua independência económica e até política, gerir os seus recursos estratégicos e garantir o abastecimento em nome da autonomia nacional, o discurso contemporâneo — dominado pela retórica da transição verde — dissolveu essa noção num nevoeiro ideológico. Sob a aparência virtuosa do combate às alterações climáticas, assiste-se hoje à edificação de um novo sistema de dependências, mais difuso e tecnológico, mas não menos assimétrico e coercivo.
Durante o século XX, a soberania energética estruturava-se segundo os 4S clássicos: Security (Segurança), Sustainability (Sustentabilidade), Supply (Abastecimento) e Smartness (Racionalidade Tecnológica). Estes quatro princípios procuravam equilibrar as dimensões geopolítica, ambiental, económica e científica da energia: garantir fornecimento estável, reduzir a poluição – e não apenas a questão das emissões de dióxido de carbono, mas também a conservação de áreas sensíveis e a qualidade de vida das populações –, assegurar autonomia de recursos e aplicar a inovação com prudência.
Com a globalização digital e a financeirização da energia, contudo, este equilíbrio foi capturado por lógicas corporativas e tecnocráticas. O poder decisório passou dos Estados para oligopólios tecnológicos e financeiros, que controlam redes, algoritmos e fluxos de dados, substituindo a prudência política pela eficiência algorítmica. O apagão de Abril de 2025 na Península Ibérica veio demonstrar essas fragilidades.
O abandono progressivo dos combustíveis fósseis é hoje apresentado como um imperativo científico inquestionável, um dogma moral acima de qualquer divergência. Contudo, a substituição do petróleo (um produto demasiado precioso para ser simplesmente como combustível) e do gás natural por energias renováveis e mobilidade eléctrica não dissolve as lógicas geopolíticas da energia — apenas as transmuta. As torres eólicas, os painéis fotovoltaicos e as baterias de lítio não emergem do ar nem se alimentam do sol: dependem de cadeias de valor globais, assentes em matérias-primas críticas, tecnologias proprietárias e processos de extracção frequentemente violentos e ambientalmente agressivos.
A nova soberania energética não é nacional, mas corporativa. Aquilo que outrora era domínio das políticas públicas tornou-se mercado regulado por fundos de investimento, tratados climáticos e bolsas de carbono. A Europa, que antes edificara a sua segurança energética sobre uma base industrial diversificada, rendeu-se à ‘teologia da neutralidade carbónica’, aceitando como inevitável a dependência de semicondutores asiáticos, de lítio sul-americano, de cobalto africano e de turbinas chinesas. Em nome do clima, sacrificou-se a autonomia e até sectores ambientais relevantes como a preservação de habitats e da paisagem natural.
Não se trata de negar a necessidade de uma transição energética — mas de questionar o modo como ela é conduzida: verticalmente, sob hegemonia tecnocrática, fora do escrutínio democrático e do debate plural. E com pouco ênfase para a eficiência. A transição verde, em vez de projecto emancipador, tornou-se um processo pós-político, onde as decisões são impostas por agências multilaterais que definem metas, calendários e custos à revelia das comunidades. Qualquer dissidência é rapidamente considerada patológica: quem ousa criticar é rotulado de negacionista climático ou reaccionário energético, anulando-se o espaço para uma ecologia crítica e plural. Mimetiza-se o que se fez na pandemia.
A retórica verde oculta também a violência material da sua própria infraestrutura. A mineração intensiva de lítio, a expropriação de terras para megaparques eólicos e solares, a precarização laboral e os danos ecológicos são efeitos colaterais silenciados, apresentados como preço inevitável de um futuro limpo. Não há neutralidade quando os custos recaem sobre o Sul global e os benefícios se concentram no Norte financeiro.
Neste quadro, o conceito de soberania energética converteu-se em ornamento discursivo. Os Estados já não governam os seus recursos: executam agendas internacionais, medindo o êxito não pela resiliência dos cidadãos, mas pela adesão a metas de descarbonização definidas em conferências e gabinetes. A democracia energética cedeu lugar à governança tecnocrática, onde a legitimidade deriva de algoritmos, e não do voto.
Mais preocupante ainda é o uso do paradigma verde como nova gramática de austeridade. Sob o pretexto da sustentabilidade, impõem-se políticas regressivas: tarifas elevadas, proibição de veículos de combustão, taxação de carbono e imposição de obras coercivas de eficiência habitacional. Os ricos compensam com painéis solares e viaturas Tesla; os pobres pagam a factura da virtude climática. Assim, a transição verde corre o risco de reproduzir as desigualdades que prometia corrigir.
Há também uma dimensão simbólica nesta nova dependência. A bandeira ecológica tornou-se instrumento de legitimação política, substituindo a promessa de prosperidade pela retórica da sobrevivência. Os governos já não prometem direitos, mas metas ambientais; já não garantem bem-estar, mas salvação climática. A energia, outrora domínio da soberania, transforma-se em credo moral, onde a dúvida é heresia e a obediência é cidadania.
E, como em todas as cruzadas morais, os lucros concentram-se. Os fundos globais dominam as redes de distribuição, as multinacionais monopolizam a inovação, e as plataformas digitalizam e comercializam a pegada de carbono. O verde deixa de ser cor da terra: é o novo verniz do capital financeiro.
O verdadeiro desafio, portanto, não é recusar a transição energética, mas repolitizá-la. O combate às alterações climáticas não pode servir de cavalo de Tróia para a erosão da soberania e o agravamento das desigualdades. Uma autêntica soberania energética deve assentar em quatro princípios: diversidade de fontes, resiliência territorial, transparência dos custos e participação cidadã.
A dependência verde é, na verdade, sempre uma dependência; a soberania amputada é mera gestão da escassez com selo ecológico. Devolver à energia o seu estatuto de bem comum, e não de activo financeiro é, sim, a verdade emergência – e só uma cidadania energética consciente poderá converter o imperativo ambiental em instrumento de liberdade, e não em novo grilhão dourado da servidão tecnológica.
6. Soberania alimentar e a submissão aos mercados globais
A alimentação, por mais banal que pareça no quotidiano dos supermercados, é a forma mais íntima de dependência de um cidadão face ao seu Estado. A soberania alimentar, portanto, não é uma questão de agricultura nem de ambiente — é uma questão de poder. E, como acontece frequentemente na história dos impérios, a perda de controlo sobre os alimentos assinala a queda silenciosa da soberania.
No discurso político contemporâneo, a expressão “segurança alimentar” tornou-se uma espécie de calmante semântico, como se estivesse em causa uma mera classificação biológica. Tudo parece garantido desde que os lineares estejam cheios. Mas o que se omite neste conforto aparente é o seguinte: os alimentos chegam, mas a que custo? De onde vêm? Quem os produz? O que se adiciona? Quem os controla? E sobretudo: quem define o que comemos e como comemos?
A globalização dos sistemas alimentares criou uma estrutura em que as cadeias de produção são tão longas quanto opacas. Um tomate consumido em Lisboa pode ter sido produzido com sementes patenteadas por uma multinacional suíça, cultivado em estufas espanholas com mão-de-obra marroquina, embalado na Holanda e distribuído por uma cadeia sediada na Alemanha. Nada neste processo é soberano. Tudo é funcional a um mercado global onde as decisões são tomadas por empresas cotadas e intermediários logísticos. Os Estados limitam-se a assegurar que não haja protestos populares — ou, quando muito, no limite, que haja alimentos suficientes para as escolas e os quartéis.
Esta submissão é frequentemente disfarçada de modernidade. Fala-se em eficiência da globalização, em segurança no controlo alimentar, em produtividade, em livre comércio. Mas por trás desta retórica, oculta-se a verdade crua: a dependência alimentar da Europa — e de Portugal em particular — é estrutural, estratégica e crescente. Por exemplo, a produção nacional de cereais é anémica, com excepção do arroz, a balança comercial de bens alimentares é deficitária, e as políticas agrícolas são cada vez mais determinadas por directivas comunitárias negociadas entre gabinetes e lobbies, em Bruxelas, onde a terra é apenas uma abstração.
A Política Agrícola Comum (PAC), que foi frequentemente apresentada como um pilar de coesão europeia, tem funcionado sobretudo como um instrumento de uniformização e submissão dos sistemas produtivos nacionais. Sob o pretexto de eficiência e competitividade, a PAC impôs quotas, penalizações e modelos de financiamento que favorecem grandes explorações mecanizadas e penalizam o agricultor tradicional, aquele que, com o corpo e o saber, sustenta a fertilidade de uma comunidade. Em Portugal, a PAC contribuiu para a liquidação do sector pesqueiro e leiteiro tradicional, o abandono da cultura cerealífera e a reconversão forçada de zonas produtivas em áreas de conservação “passiva”, geridas por burocratas e organizações não-governamentais que vivem do culto do “reverdecer sem cultivar”.
Mas o problema não é apenas externo. A degradação da soberania alimentar é também cultural e institucional. A pressão regulatória, ambiental e sanitária sobre os pequenos e médios produtores tem conduzido à desertificação rural e ao colapso de estruturas locais de produção. A agricultura de proximidade é tratada como folclore ecológico, boa para feiras de fim-de-semana e relatórios de responsabilidade social. O modelo dominante é o da agricultura intensiva para exportação — ou da monocultura subsidiada —, gerida por operadores financeiros mais interessados em fluxos de capital do que em alimentos.
É nesta lógica que se impõe a ditadura do “custo por quilo” ou do “preço à saída da fábrica”, como se a alimentação de um povo devesse ser gerida com os critérios de uma cadeia de montagem. A qualidade nutricional, a resiliência do território, a justiça intergeracional ou a saúde pública tornam-se externalidades ignoradas. E quando surgem crises — guerras, pandemias, disrupções logísticas —, descobre-se que não há cereais suficientes, que os fertilizantes vêm todos de fora, que os circuitos de distribuição estão concentrados, que os preços disparam e que o país é apenas um entreposto.
A própria relação com os alimentos tornou-se precária e artificial. O saber culinário — que outrora garantia variedade, aproveitamento e saúde — foi substituído por uma dependência de alimentos ultra-processados, formatados para vício e longevidade de prateleira. A perda da soberania alimentar começa também na ignorância do que se come. E continua na renúncia voluntária a cozinhar, a plantar, a guardar sementes, a cuidar do solo e a conhecer o seu ciclo.
Mais recentemente, a subordinação alimentar assumiu contornos ainda mais inquietantes com a entrada em cena das novas narrativas tecnológicas: agricultura de precisão, carnes sintéticas, proteínas de insecto, agricultura vertical, alimentos geneticamente modificados. Tudo é apresentado como solução moderna e inevitável – e sempre com um selo científico. Mas quem controla estas tecnologias? Quem detém as patentes? Quem define as normas? A promessa de inovação serve, muitas vezes, para encobrir uma nova camada de dominação — agora biotecnológica — sobre os sistemas alimentares. A soberania, outrora exercida pela terra e pelas mãos, cede agora lugar ao algoritmo e à licença.
Estas novas formas de controlo alimentar têm ainda uma componente neocolonial. Os países do Sul global são, cada vez mais, tratados como “armazéns vivos” de terras aráveis, aquíferos e mão-de-obra barata. Os fundos soberanos, multinacionais alimentares e grandes investidores de tecnologia agrícola compram, em silêncio, milhões de hectares em África, Ásia e América Latina. Aquilo que aí se produz já não alimenta os povos locais — alimenta os mercados de capitais e as projecções de lucros dos fundos de investimento. E esta apropriação silenciosa da terra reverte-se, num dia, em chantagem alimentar sobre os que, nas cúpulas diplomáticas, dizem querer combater a fome no Mundo.
E não faltam novos sacerdotes deste culto alimentar: consultores do Fórum Económico Mundial, filantrocapitalistas entusiastas da agricultura sem solo, ecologistas que pregam o fim da pecuária e da cozinha tradicional, políticos que recitam metas de sustentabilidade sem nunca ter plantado um nabo. Todos dizem agir pelo bem do planeta, mas raramente pelo bem do cidadão concreto, que apenas quer pão digno, carne limpa, leite de verdade, preços justos e um campo vivo.
A soberania alimentar, em sentido estrito, não significa auto-suficiência integral – estamos muito preconizar políticas na linha da famigerada Campanha do Trigo que devastou campos agrícolas no Alentejo durante o Estado Novo. Significa, isso sim, a capacidade de um povo determinar o seu modelo agrícola, proteger os seus produtores, garantir o acesso justo aos alimentos e decidir, sem imposições externas, aquilo que come e o que recusa comer. Significa também saber dizer não à chantagem das sanções, aos diktats dos tratados de comércio, às imposições fitossanitárias que mascaram guerras económicas. E significa recusar a lógica que transforma a alimentação numa, em mais uma, mercadoria volátil ao sabor dos mercados de futuros.
Reabilitar a ideia de soberania alimentar como pilar de independência política é, por isso, uma prioridade. Um povo que não se alimenta a si mesmo não decide por si mesmo. Um Estado que não protege os seus produtores entrega-se, aos poucos, à servidão económica. E uma sociedade que aceita comer o que lhe mandam, não perde apenas um dos pilares da sua soberania – perde o último resquício de liberdade.
7. Soberania digital e o império dos algoritmos
A soberania, que outrora se media pelo controlo da moeda, do território ou das fronteiras, é hoje silenciosamente dissolvida nos cabos de fibra óptica, nos servidores remotos e nos centros de decisão algorítmica que orbitam acima da soberania clássica dos Estados. Aquilo a que se chama “transformação digital” é, na sua essência, uma operação de desmaterialização do poder, mas não da sua concentração. A materialidade do mundo político cedeu espaço à opacidade do ciberespaço, e a democracia passou a ser modulada por métricas, plataformas e inteligências artificiais que não prestam contas a ninguém — excepto aos seus accionistas. E são inalcançáveis aos cidadãos.
Quando se diz que os dados são o novo petróleo, diz-se mais do que se imagina. O petróleo serviu para alimentar a revolução industrial, mas também para cimentar hegemonias e alimentar guerras. Os dados não são diferentes. São matéria-prima, mas também instrumento de controlo. E os Estados que não controlam os seus dados, nem as infra-estruturas onde eles circulam, tornaram-se protectorados tecnológicos, mesmo que mantenham as cores da sua bandeira e os hinos da sua soberania.
O cidadão médio, iludido pela ubiquidade do digital, imagina-se mais livre por ter mais acesso à informação, mais meios de comunicação, mais serviços online. Mas esta aparente emancipação é, na verdade, uma nova forma de sujeição. A economia da atenção extrai da mente humana o seu rendimento mais cobiçado — o comportamento previsível. Através de sistemas de vigilância consentida, as grandes plataformas analisam padrões, antecipam decisões, moldam preferências e, a pouco e pouco, anulam a liberdade. A manipulação algorítmica não é ficção distópica — é prática corrente.
O modelo das plataformas é hoje a forma dominante de organização digital, e a sua arquitectura não é neutra. Foi desenhada para maximizar lucros por via da captura de dados, da modulação do comportamento e da intermediação de relações. A própria linguagem da rede — os gostos, as partilhas, os seguidores — transformou-se em sistema simbólico de legitimação, onde o mérito foi substituído pela visibilidade e a verdade pelo engajamento. O algoritmo substituiu o editor. E quando o algoritmo se torna a autoridade editorial, a censura deixa de ser um acto explícito: torna-se um desvio estatístico.
Não há aqui apenas um problema de concentração económica. Há um problema de concentração civilizacional. Nunca, em tempo algum, meia dúzia de empresas privadas teve tanto poder sobre a linguagem, a memória, a comunicação e a imaginação de biliões de seres humanos. E nenhuma destas empresas é europeia. O velho continente, ao abdicar da sua soberania digital, colocou-se numa posição de subalternidade histórica, à semelhança de colónias tecnológicas que importam ferramentas, lógicas e dependências, sem ousar construir alternativas.
Os governos, quando não colaboram, acobardam-se. Em nome da segurança digital, da inovação ou da luta contra o “discurso de ódio”, crimes de pornografia infantil ou abusos de opinião, aceitam mecanismos de vigilância e de filtragem de conteúdos que nunca passariam por referendo popular. Delegam nas plataformas privadas o policiamento da linguagem, entregam dados sensíveis a operadores externos e compram sistemas críticos a fornecedores estrangeiros. A soberania digital, entendida como a capacidade de um Estado garantir o controlo estratégico das suas redes, dos seus dados e das suas infra-estruturas, é sacrificada em nome da conveniência.
Durante a pandemia, este processo acelerou-se de forma brutal. Os passaportes sanitários digitais, os sistemas de rastreio, a monitorização de movimentos e a partilha compulsiva de dados médicos tornaram-se normalizados. A privacidade foi tratada como luxo burguês ou excentricidade conspirativa. Quem questionava os mecanismos digitais de controlo era silenciado, rotulado, banido. O que era provisório tornou-se estrutural. E as populações habituaram-se a não decidir, mas apenas a clicar.
Mas a perda de soberania digital não é apenas uma questão de governança técnica – é um problema filosófico. A substituição da mediação humana por sistemas automatizados implica uma nova ontologia do poder. O algoritmo não apenas executa uma ordem: interpreta, decide, antecipa. A inteligência artificial, mesmo quando limitada, actua como filtro da realidade e, por conseguinte, como poder constituinte. E se esse poder não é sujeito a controlo democrático, então temos uma nova forma de tirania — uma tirania sem rosto.
Repare-se como os sistemas de inteligência artificial já são usados para decidir sobre crédito bancário, admissões universitárias, prioridades de tratamento médico e medidas de vigilância policial. E como, perante decisões erradas ou discriminatórias, não há responsabilidade pessoal: o erro é do sistema, que não pode ser julgado, nem processado, nem removido por voto. Cria-se assim uma imunidade estrutural, onde os novos tiranos não usam uniforme nem ceptro, mas código e contrato de adesão.
Recuperar o conceito de soberania digital como parte integrante da soberania política é um dos desafios dos próximos anos. Isso implica exigir transparência algorítmica, limitar a concentração de plataformas, proteger dados sensíveis, reforçar infra-estruturas públicas de comunicação e, acima de tudo, promover uma cultura de autonomia tecnológica. Um país que não domina os seus sistemas digitais – e isso já se verifica, uma vez que, por exemplo, a ANACOM não tem intervenção diercta sobre as plataformas – está condenado a ser governado por entidades que não controla de facto por mais regulação e ameaças de multa que prometa.
Mais do que “inclusão digital”, o que mais falta é uma independência digital. Mais do que “competências digitais”, o que se precisa é de visão estratégica. A Europa, em particular, tem de decidir se quer ser uma colónia digital dos Estados Unidos e da China, ou se pretende construir uma civilização tecnológica própria, assente nos seus valores — incluindo o da liberdade.
E para isso, talvez seja preciso recusar o encantamento com a inovação pelo simples facto de ser nova. Nem toda a tecnologia é emancipadora. Nem todo o progresso é libertador. A soberania digital, enquanto condição de liberdade, exige não só engenharia, mas também coragem intelectual e vontade política. Exige dizer não ao servilismo tecnológico, e sim a uma nova ideia de civilização — onde os algoritmos não sejam senhores, mas servos.
8. Soberania institucional e o ocaso da legitimidade democrática
Uma instituição viva não se distingue de uma estrutura decadente por via de uma longevidade formal, nem pela pompa dos seus rituais, mas sim pela confiança que nela depositam os cidadãos que a sustentam. Por isso, uma democracia, enquanto arquitectura institucional, depende menos de sufrágios e mais de legitimidade. Mas essa legitimidade está hoje profundamente corroída no mundo ocidental — não por golpes de Estado, ou por riscos dessa natureza, mas por um longo processo de esvaziamento simbólico e captura funcional. Hoje, as instituições continuam de pé, mas muitas já não se têm de pé.
O apelo contemporâneo à “estabilidade”, à “transparência” e ao “progresso” transformou-se, paradoxalmente, num instrumento de legitimação da excepção política. Em nome da estabilidade, legitimaram-se na Europa governos tecnocráticos sem mandato popular directo, como na Itália de Mario Monti ou na Grécia de Lucas Papademos, ambos investidos em 2011 por via parlamentar e sob tutela da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, quando o discurso da urgência financeira permitiu suspender a lógica representativa. Em nome da transparência, aceitaram-se decisões opacas de organismos supranacionais, que fixam directrizes políticas sem qualquer sufrágio. E, em nome do progresso, normalizou-se a imposição de políticas públicas — fiscais, sanitárias ou ambientais — por peritos não eleitos, cujo saber técnico se tornou uma nova forma de autoridade moral.
Esta mutação semântica — em que valores emancipatórios são invocados para restringir a deliberação colectiva — representa um dos traços mais insidiosos da modernidade política. O filósofo alemão Jürgen Habermas descreveu este fenómeno como a “colonização do mundo da vida”: o momento em que a racionalidade burocrática e económica subjuga a comunicação pública, substituindo o diálogo pelo imperativo técnico. A estabilidade e o progresso, outrora promessas de emancipação, converteram-se afinal em narrativas de contenção, justificando governos de excepção.
Em Portugal, esta inversão atingiu o seu ponto mais visível durante a intervenção da troika (2011–2014). Sob o pretexto da salvação nacional, impuseram-se reformas estruturais — cortes salariais, privatizações e desmantelamento de serviços públicos — sem mandato eleitoral e sob condicionalismos externos. As eleições mantiveram-se, mas a soberania material foi transferida para instâncias externas, num modelo que aparentava legalidade democrática, mas operava segundo lógicas de tutela. Um padrão semelhante reapareceu durante a crise pandémica, quando restrições severas de direitos fundamentais foram legitimadas por autoridades sanitárias e comités científicos, frequentemente imunes a escrutínio.
O pensador italiano Giorgio Agamben identificou neste tipo de situações a consolidação do “estado de excepção permanente”: um regime em que a suspensão temporária da norma se torna condição habitual do poder. E se outrora a excepção era uma resposta transitória ao caos, hoje ela ameaça ser a gramática da governação. A autoridade democrática dissolve-se na gestão de crises, e o cidadão é convidado a obedecer em nome da sua própria protecção.
Neste cenário, a crítica e a contestação social, que constituem a essência da cidadania, são frequentemente requalificados como desvios. Quem exige escrutínio, contesta consensos ou questiona a retórica da inevitabilidade é rotulado de “populista”, “negacionista” ou “antissistema”. Este mecanismo de deslegitimação cumpre uma função disciplinadora: neutraliza a divergência e restaura o monopólio interpretativo das elites políticas e mediáticas, ainda mais quando a própria comunicação social se encontra, cada vez mais, sequestrada financeiramente por grupos económicos associados ao poder político.
Contudo, o verdadeiro problema não se encontra na desobediência dos povos, mas na deslealdade das instituições face ao seu pacto fundacional. Como advertiu o pensador francês Pierre Rosanvallon, as democracias correm o risco de se transformar em “contrademocracias invertidas” — isto é, sistemas em que o voto permanece, mas o poder de decidir se esvai. As estruturas políticas tornam-se autorreferenciais, orientadas não pelo bem comum, mas pela autopreservação.
Em Portugal, este desvio tem-se manifestado na crescente delegação da decisão soberana em agências reguladoras, tribunais e peritos sob a forma de task forces ou comissões – supostamente independentes, mas quase sempre controladas –, cujos critérios escapam ao controlo público. Sob a aparência da competência técnica, esconde-se uma lógica de distanciamento democrático. O cidadão, reduzido a espectador, é convidado a confiar em vez de deliberar. E quando o consentimento substitui o juízo, o espaço público converte-se num ritual vazio.
O sociólogo alemão Ulrich Beck defendia que vivemos já na “sociedade do risco”, em que o medo se torna agora um método de governo. A antecipação do perigo — financeiro, sanitário, climático — serve de justificação para medidas extraordinárias: governa-se pelo alarme, e o medo converte-se em legitimidade.
A crise das democracias, portanto, não é uma crise de participação, mas de representação e responsabilidade. O desafio do nosso tempo é restituir sentido político às instituições, reconectando-as ao juízo cívico e à pluralidade de vozes que lhes dá legitimidade. A estabilidade não pode ser pretexto para abdicar da soberania; a transparência não pode servir de cortina à opacidade; e o progresso não pode impor-se por decreto. Enquanto o contraditório for tratado como heresia, a democracia será apenas um eco do poder, e não a sua medida. As democracias liberais do pós-guerra construíram-se sobre a ideia de representação, separação de poderes, garantias de direitos e controlo público da autoridade. No entanto, à medida que a globalização e o neoliberalismo se tornaram hegemónicos, essas instituições foram sendo adaptadas a uma nova realidade em que a política se subordinou à tecnocracia e o eleitor se transformou num espectador irrelevante.
A União Europeia é, neste ponto, um caso de estudo: o Parlamento não tem iniciativa legislativa, a Comissão não é eleita, o Conselho decide à porta fechada. A soberania institucional foi sacrificada à eficiência burocrática. Em simultâneo, os parlamentos nacionais foram-se tornando caixas de ressonância de partidos cartelizados, mais atentos às sondagens do que à soberania popular. A separação entre poder executivo e legislativo diluiu-se, a fiscalização perdeu vigor, e os poderes de controlo — como tribunais, entidades reguladoras ou órgãos de comunicação social — passaram a agir em simbiose com o poder, não como seu limite. O sistema deixou de ser um jogo de pesos e contrapesos e tornou-se um circuito fechado de legitimação mútua.
Na administração pública, a situação é igualmente preocupante. A lógica de “governança” substituiu a ideia de serviço público, transformando direcções-gerais em plataformas de execução de políticas externas ou interesses corporativos. A permeabilidade a grupos de pressão e fundações ditas “filantrópicas” compromete a independência decisória, e os organismos de supervisão são frequentemente habitados pelos próprios supervisionados, numa dança de cadeiras que anula qualquer aparência de imparcialidade.
Mas o mais grave é que esta erosão institucional decorre muitas vezes com o aplauso — ou a indiferença — da cidadania. Viciada no ruído mediático, absorvida por escândalos episódicos, anestesiada por políticas identitárias superficiais, a opinião pública deixou de exigir responsabilidade estrutural. Substituiu a crítica pela indignação – amiúde apenas nas redes sociais –, a acção pela denúncia moral, a participação pelo comentário. E as instituições, percebendo isso, adaptaram-se: tornaram-se mais performativas, mais mediáticas, mais decorativas.
No plano internacional, a subordinação das instituições democráticas a organismos multilaterais de contornos nebulosos acelerou a perda de soberania real. Decisões com impacto directo na vida dos cidadãos — como políticas sanitárias, fiscais ou ambientais — são frequentemente tomadas em fóruns onde não há representantes eleitos nem mecanismos de escrutínio. A democracia nacional torna-se uma ficção mantida por rotinas eleitorais, enquanto o essencial do poder escapa à deliberação popular.
Esta crise de legitimidade não é invisível: manifesta-se também em taxas crescentes de abstenção, desconfiança nas instituições, voto de protesto em partidos populistas e surgimento de movimentos alternativos — alguns genuinamente democráticos, outros perigosamente oportunistas. Mas a resposta institucional tem sido, quase sempre, reforçar os mecanismos de blindagem: criminalização da contestação (mesmo que apenas por palavras), censura disfarçada, reformas eleitorais que limitam a pluralidade, concentração dos media em grandes grupos, cooptação de movimentos sociais. Em vez de ouvir o clamor popular, o poder instituído procura abafar-lhe o eco.
E, contudo, mesmo assim há resistências. Há cada vez jornais de nicho, com linhas editoriais livres. Há plataformas jurídicas e académicas que desmontam narrativas oficiais e expõem as contradições normativas. Há cidadãos que, mesmo sem rede nem tribuna, insistem em escrever cartas, organizar debates, contestar decretos. São minorias — mas são esses elementos que preservam a ideia de que as instituições não são apenas mecanismos, mas formas de dignidade colectiva.
Se observarmos bem, a soberania institucional começa por uma ideia simples: a de que o poder deve prestar contas. E que não basta ser legal — é preciso ser legítimo. Ora, a legitimidade exige transparência, participação, pluralismo, justiça e memória. Quando as instituições se tornam opacas, exclusivas, dogmáticas, punitivas ou amnésicas, deixam de ser democráticas, mesmo que conservem os nomes e os edifícios. Passam a ser simulacros.
Recuperar a soberania institucional não é uma tarefa administrativa — é uma missão civilizacional. Exige reconquistar o valor da palavra dada, o peso da responsabilidade, a coragem da dissidência, a centralidade do bem comum. Exige que se diga, sem medo nem cálculo, que o rei vai nu — e que há mais dignidade na verdade solitária do que na mentira partilhada.
No final do século XIX, a Palestina fazia parte do Império Otomano. O quadro era simples: uma terra rural, com aldeias agrícolas espalhadas, onde viviam camponeses árabes que cultivavam a terra geração após geração. Nessas aldeias coexistiam comunidades muçulmanas, cristãs e também pequenas comunidades judaicas locais, com tradições próprias, enraizadas no mesmo espaço há séculos.
Não havia “nação” no sentido moderno europeu. A ideia de Estado-nação, com bandeira, hino e fronteiras rígidas, era alheia àquela realidade. A identidade era outra: tribal, religiosa, comunitária.
As pessoas reconheciam-se pela aldeia, pela família alargada, pela pertença a uma comunidade de fé. O campesinato árabe, em particular, via-se antes de mais como parte de uma aldeia e de uma família, e não de um projecto político chamado “Palestina”. Era esse o mundo que existia antes da chegada das ideologias nacionalistas modernas – tanto o nacionalismo árabe como o sionismo europeu.
Na Europa, o mundo judaico encontrava-se em convulsão. O anti-semitismo institucional, as perseguições violentas contra judeus no Império Russo e a exclusão social em praticamente toda a Europa central e oriental empurraram milhares de judeus para a mesma questão vital: como sobreviver colectivamente, como garantir a segurança, a dignidade e o futuro.
Deste dilema nasceram várias respostas. O sionismo, hoje dominante na memória popular, foi apenas uma delas. A sua força esteve em oferecer uma ideia simples, quase redentora: a solução era criar um lar nacional na Palestina, a antiga Terra de Israel; no entanto, esta não foi a única proposta, nem sequer a mais evidente para muitos judeus da época. Havia alternativas concretas, mobilizando milhares de pessoas, que o discurso oficial tratou de apagar.
Um desses caminhos foi o Bund. Fundado em 1897 no Império Russo, no mesmo ano em que Theodor Herzl convocava o primeiro congresso sionista em Basileia, Suíça, o Bund partia de uma lógica totalmente distinta. Para os seus membros, não fazia qualquer sentido emigrar para a Palestina nem fundar um Estado separado. O essencial era lutar onde os judeus já estavam, como parte da classe trabalhadora.
Reivindicava-se uma identidade judaica secular, cultural, enraizada na língua iídiche, e exigia-se autonomia cultural e direitos políticos nos países de residência. A estratégia não passava por fugir do anti-semitismo, mas enfrentá-lo com sindicatos, mobilização social e luta política. Aliás, o movimento Bund era profundamente anti-sionista: considerava o sionismo um projecto burguês, ilusório e até perigoso, porque desviava energias da verdadeira batalha no terreno.
Outra corrente foi o Territorialismo. O raciocínio era pragmático: se o problema era a insegurança física, o que importava era encontrar um território suficiente para assentar judeus, fosse na Palestina ou noutro ponto do globo. Por essa razão, apareceram propostas como o Plano Uganda, em 1903, quando Theodor Herzl ainda aceitou a oferta britânica de uma área no Quénia, antes de ser rejeitado pelos seus próprios seguidores.
Theodor Herzl (1860-1904), fundador do moderno sionismo político.
Outros territorialistas exploraram hipóteses em África, na América Latina e até na Austrália. A ideia central era clara: a sobrevivência colectiva estava acima da geografia bíblica. Esta corrente perdeu espaço com o avanço do sionismo, mas, no início, teve um peso significativo e não era marginal.
O sionismo, tal como Theodor Herzl o concebeu, era basicamente uma adaptação judaica do nacionalismo europeu moderno – promessa de um Estado com um governo institucionalizado, bandeira, sistema de leis, exército – tudo isso ancorado numa geografia que conferia legitimidade histórica e religiosa.
Era um projecto secular e moderno, mais ligado à lógica de Estado-nação europeu do que ao modelo tradicional das comunidades religiosas judaicas. Faz parte da essência do Estado moderno deter o monopólio da força (polícia e exército) e o controlo exclusivo dos tribunais – é isso que Herzl antecipou quando propôs que o futuro Estado judaico tivesse instituições como tribunais, sistema legal próprio e instrumentos de poder político.
Importa realçar o carácter colonizador da visão sionista: não se tratava de regressar a uma terra ancestral em comunhão com os seus habitantes, mas de fazê-lo como um povo europeu, com capital europeu, instituições europeias e, inevitavelmente, em confronto com as populações árabes que já ali viviam há séculos.
Tudo isto prova que não havia consenso judaico em torno do sionismo. Muitos viam a ideia de um Estado nacional como uma aberração moderna ou até como uma heresia religiosa – só o Messias poderia restaurar Israel, diziam correntes ortodoxas.
Outros acreditavam que o sionismo seria um desvio perigoso, uma aventura colonial condenada ao conflito. O que a história oficial simplificou como inevitável – a marcha linear até 1948 – foi, na verdade, um processo disputado, cheio de alternativas que foram derrotadas, abafadas ou esquecidas.
Com o início da Grande Guerra, a Palestina ainda era otomana, mas o seu destino ia mudar radicalmente com este desastre. Para derrotar os turcos, Londres multiplicou promessas contraditórias.
No Mandato Britânico, a administração não era neutra: criou as condições legais para que organizações sionistas comprassem grandes extensões de terra, frequentemente a proprietários ausentes – residiam em Istambul, Beirute, Damasco – ou latifundiários, usando títulos passados do domínio otomano.
Tumultos palestinos em Jerusalém em 1929 causaram a fuga de judeus. Foto: DR
Em casos como o da família Sursock, dezenas de aldeias inteiras foram desapropriadas e despejos foram aplicados contra agricultores árabes, que em muitos casos receberam pouca ou nenhuma compensação.
Os árabes, a quem fora prometida independência, viam-se agora governados por uma potência estrangeira que abria as portas à colonização europeia e reprimia violentamente qualquer contestação.
Mulher judia e o filho chegam ao porto de Haifa, Palestina, 1947 — um dos muitos desembarques de refugiados após a Segunda Guerra Mundial, sob o bloqueio britânico à imigração judaica. Foto: National Army Museum (Londres).
Este era o cenário à beira da Segunda Guerra Mundial: uma Palestina já em ebulição, uma colonização em ritmo acelerado, uma potência imperial a usar o território como moeda de troca, e uma liderança sionista cada vez mais preparada para a via militar.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
1. A tradição da liberdade: herança, desfiguração e perda
A liberdade é hoje, mesmo em sistemas ditos democráticos, um conceito gasto de tanto ser invocado por aqueles que mais a temem — e, por vezes, perseguem. Políticos de todos os quadrantes discursam com fervor sobre ela; burocratas invocam-na como se fossem seus curadores; académicos dissecam-na em conferências enquanto silenciam colegas dissidentes; jornalistas celebram-na nos editoriais para melhor a subtrair nas redacções.
Em tempos mais honestos, falava-se em censura, em controlo, em disciplina — hoje, fala-se em “proteger a liberdade” para justificar todas as formas de tutela, todas as formas de medo. A liberdade tornou-se, por isso, um vocábulo de cerimónia e um instrumento de gestão, não um valor fundacional da vida cívica.
Talvez valha a pena recuar. A tradição liberal clássica não nasceu da indulgência dos governos, mas da sua contenção moral e jurídica. Locke, Mill, Tocqueville, Constant — todos partiram do princípio de que a liberdade do indivíduo não era uma liberalidade, um favor que o Estado concedia, mas sim algo que o poder político tinha obrigação de respeitar e limitar-se diante dela. Era essa a natureza do contrato: o indivíduo aceita a autoridade em nome de uma liberdade maior — não para ser vigiado, educado, corrigido ou validado.
Como escreveu Benjamin Constant em 1819, no célebre discurso Da Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, a liberdade moderna reside no direito de cada cidadão em “exprimir a sua opinião, a escolher a sua profissão, a dispor da sua propriedade, a ir e vir sem permissão, sem ter que dar contas do seu modo de viver ou das suas opiniões religiosas”. Hoje, qualquer um destes direitos está, de forma surpreendente, sob avaliação ou pré-aprovação, invocando-se o bem comum ou um bem superior intangível.
O que sucedeu, então, com esta herança? Quando foi que a liberdade passou de ser a base moral da democracia para se tornar uma variável operacional da governação?
O fenómeno não foi súbito. O século XX, com as suas guerras, os seus fascismos, os seus totalitarismos de sinal contrário, ensinou aos Estados que a linguagem da liberdade pode ser instrumentalizada para efeitos de controlo. O medo, a incerteza, a emergência permanente, tornaram-se os dispositivos preferenciais de contenção das liberdades, não por confronto directo, mas por domesticação discursiva. Assim, o cidadão tornou-se o principal inimigo do seu próprio estatuto: um consumidor de seguranças, um pedinte de protecções, um voluntário da obediência. Liberdade, sim — mas “com responsabilidade”, com “certificado”, com “moderação”, com fact-checking. Liberdade, mas só se não incomodar.
Este deslizamento conceptual é tanto mais eficaz quanto mais invisível. Já não é preciso proibir: basta moldar o comportamento pelo pavor da exclusão social ou digital. Já não é necessário calar uma opinião: basta retirá-la do algoritmo, adiar a publicação, suprimir o seu alcance. A liberdade, nesse sentido, tornou-se o ornamento retórico da obediência higienizada.
É aqui que entra o novo léxico do conformismo: “ambiente seguro”, “discurso responsável”, “ciência consensual”, “facto verificado” — tudo termos e palavras que vestem a censura com verniz civilizacional. Já não se combate o pensamento livre — desactiva-se o seu alcance. Já não se queimam livros — impedem-se de circular por ausência de “credibilidade”. Já não se prendem e queimam hereges — simplesmente deixa-se de os mencionar, de os citar, de os convidar.
Em tempos, a liberdade era uma ideia política; hoje, tornou-se uma franquia institucional. Existem organismos para a liberdade de imprensa, observatórios para a liberdade académica, planos estratégicos para a liberdade digital. Todos eles zelam, com sobriedade burocrática, pela liberdade dos outros — nunca pela sua própria. O resultado é um labirinto de simulacros, onde os direitos são garantidos nas brochuras, mas suspensos nas práticas. O cidadão não é hoje mais livre por existirem supostas Cartas dos Direitos Digitais ou quejandos — é menos livre por saber que, caso os exerça pelo seu próprio ânimo, arrisca a ser banido, silenciado ou processado.
A desfiguração da liberdade tem ainda uma componente mais subtil: a da culpabilização do uso da liberdade. Quem fala fora do consenso é acusado de “disseminar desinformação”, de “minar a confiança pública”, de “dar armas aos extremismos”. A liberdade passou assim a ser vista não como um direito, mas como uma ameaça latente, tolerável apenas se exercida segundo os códigos da virtude dominante. Quem se exprime contra o poder deve justificar-se. Quem o apoia é apenas “cidadão responsável e informado”.
Neste quadro, a perda da liberdade já não se dá por decreto, mas por habituação. Perde-se a liberdade como se perde o paladar: aos poucos, sem alarme, sem luto. O sabor do dissenso desvanece-se. O impulso da recusa converte-se em prudência. A coragem transforma-se em risco desnecessário. E a sociedade adapta-se, como o prisioneiro que já não estranha as grades — apenas se satisfaz se as vir pintadas de branco.
E que resta assim daquela liberdade, nesse mundo de dispositivos e deferências? Talvez apenas isto: o exercício irredutível da palavra, a recusa sistemática da domesticação da linguagem, a vigilância sobre as palavras que nos impõem. Porventura, assumir que a liberdade, afinal, não é um dado do regime — é uma forma de estar no mundo. Não cabe no decreto, nem no programa de Governo, nem nos estatutos do Parlamento. Cabe, isso sim, na consciência de quem não se deixa calar, nem seduzir.
2. O laboratório do medo: a pandemia como ensaio de servidão
Durante décadas, foi-nos dito que a democracia liberal ocidental se distinguia dos regimes autoritários por uma razão essencial: não governava pelo medo, mas pela razão e pela confiança. As ditaduras, explicavam-nos os manuais de ciências políticas, baseavam-se na repressão; as democracias, no consentimento informado.
A emergência da pandemia da covid-19, a partir de 2020, veio demonstrar o contrário: a democracia pode afinal suspender-se com extraordinária facilidade e eficácia quando o medo é suficiente para justificar o silêncio e a obediência. A pandemia não criou uma nova ordem, mas revelou o grau de maleabilidade da velha.
Nunca, em tempo de paz, tantos direitos foram suspensos em tão pouco tempo. Liberdade de circulação, liberdade de reunião, liberdade de culto, direito à educação, direito ao trabalho, direito à privacidade, liberdade de expressão — todos sofreram amputações “provisórias”, que se revelaram estruturalmente úteis ao poder. As medidas foram apresentadas como temporárias, técnicas, baseadas na ciência. Mas o que se revelou foi uma nova gramática da servidão voluntária, onde a saúde se tornou o argumento absoluto, incontestável, inquestionável — o novo dogma sanitário como legitimador do autoritarismo de Estado.
O confinamento foi o primeiro grande teste: impôs-se sem debate, sem contraditório, sem ponderação de proporcionalidade. Quem ousava questioná-lo era de imediato classificado como “negacionista”, novo anátema para eliminar a dúvida. O uso da linguagem médica permitiu a neutralização da linguagem política: não era censura, era “contenção de desinformação”; não era prisão domiciliária, era “isolamento profiláctico”; não era segregação, era “certificação sanitária”. Aplicando o pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, antes mesmo da pandemia, “o estado de excepção passou de conceito jurídico a prática administrativa quotidiana.”
Mas foi com o passaporte sanitário que a arquitectura do medo atingiu o seu auge moralista. Pela primeira vez desde os regimes raciais do século XX, foi introduzido um sistema legal de discriminação de acesso a espaços públicos e direitos fundamentais com base num critério biológico. O corpo do cidadão passou a ser um objecto de validação estatal. Quem recusava a denominada vacina — ou, mais exactamente, quem recusava consentir sem reservas, independentemente da imunidade adquirida por doença — era excluído, culpabilizado, desumanizado. O discurso era simples e eficaz: “se não tens nada a esconder, não tens nada a temer”. A fórmula preferida de todo o regime de vigilância.
Portugal, sempre zeloso em obedecer antes mesmo de ser mandado, destacou-se pelo excesso. A Presidência da República maravilhou-se com o poder de suspensão de direitos, liberdades e garantias; o Governo legislou por decreto e resoluções de Conselho de Ministros; o Parlamento abdicou da sua função; os tribunais optaram por hibernar, incluindo o Tribunal Constitucional. A comunicação social transformou-se em transmissora diária do boletim do medo, reduzindo o jornalismo a uma forma de liturgia estatística. Os opinadores foram alinhados como soldados do discurso único, e os poucos dissidentes foram classificados como perigos públicos — ou ignorados, o que é, muitas vezes, pior. A pluralidade científica foi abolida por decreto de opinião.
Ainda hoje se ignora o rasto de danos colaterais. Crianças que perderam dois anos de socialização escolar; doentes crónicos sem acompanhamento; negócios arruinados; famílias separadas por cercas sanitárias absurdas. Tudo isso foi aceite com resignação e até entusiasmo — porque “era para o bem de todos”. A moral da obediência substituiu a ética do juízo individual. O bom cidadão passou a ser aquele que acata, denuncia, patrulha. Foi a institucionalização pacífica do velho sonho do totalitarismo: transformar o vizinho em fiscal.
O medo, recordemo-lo, é sempre racionalizado a posteriori. Nunca há censura: há “protecção contra o discurso perigoso”. Nunca há autoritarismo: há “resposta proporcional à ameaça”. Nunca há abuso: há “precaução excessiva justificada pelo princípio da prudência”. E, claro, nunca há responsabilização política — porque, afinal, foi tudo feito “com base na ciência”, essa entidade agora indistinta de decreto governamental.
Talvez o mais notável neste ensaio de servidão tenha sido a capacidade de transformar uma questão eminentemente política (a gestão do risco) numa afirmação moral (o bem contra o mal, sendo que o inimigo era tanto a doença como o dissidente). Assim, o debate foi abolido porque não havia lados — apenas o lado certo. O dissenso foi convertido em heresia. A dúvida, em crime de saúde pública. O debate científico, em conspiração. As universidades calaram-se ou pactuaram. Os tribunais adormeceram. Os jornalistas, convertidos em comentadores do pânico. E os cidadãos — aqueles que deveriam ser o primeiro baluarte contra os abusos — adaptaram-se. Alguns celebraram as restrições. Outros aceitaram-nas em nome do bom senso. Quase todos interiorizaram que, perante uma emergência, a liberdade era um luxo perigoso.
Foi isso que a pandemia revelou: não construímos democracias resilientes, mas sociedades condicionadas — condicionadas a obedecer se o argumento for o medo; a ceder se o pretexto for a saúde; a calar se a linguagem for a da salvação colectiva. O medo foi o ensaio, e funcionou.
E quando vier a próxima emergência — climática, digital, económica, bélica —, a máquina já está oleada: bastará mudar o rótulo do pânico. E o cidadão, sempre tão moderno, tão informado, tão progressista, dirá: “É só por uns dias. É pelo bem de todos. É só até passar.”
Mas não passa. Porque o medo nunca passa — apenas se adapta. E o poder, que o sabe, agradece.
3. A censura moderna: como silenciar sem parecer ditadura
A censura, dizia-se outrora, era um acto grosseiro, evidente, burocrático. Consistia em riscar palavras de jornais, interditar livros, proibir emissões, prender escritores. Era fácil de detectar e, por isso mesmo, de denunciar. O censor clássico era uma personagem de gabinete, com carimbo, lápis azul e uma pilha de relatórios. Hoje, nada disso é necessário. A censura moderna já não proíbe: faz desaparecer. Já não cala: desclassifica. Já não interdita: altera os circuitos de circulação da palavra. Não há carimbos, nem ordens escritas — apenas o silêncio e a irrelevância como sentença.
Vivemos na era da censura higiénica, uma operação cultural e tecnológica cujo objectivo já não é impedir que uma ideia exista, mas sim garantir que não chegue a público com força, alcance ou prestígio. A censura clássica era uma luta contra a existência de uma ideia; a censura moderna é uma luta contra a sua eficácia. O primeiro dispositivo é o algoritmo. Nas redes sociais — que hoje substituíram os cafés, os jornais e os parlamentos —, o que não é promovido é praticamente invisível. Os conteúdos não são apagados, mas são enterrados sob toneladas de irrelevância fabricada. Os temas inconvenientes desaparecem por selecção negativa. A viralização é reservada para o emocional, o superficial, o inócuo. A crítica política profunda é relegada para as catacumbas da internet — ou marcada com etiquetas dissuasoras: “potencialmente enganoso”, “facto controverso”, “fora de contexto”. O leitor comum, educado na confiança algorítmica, afasta-se por instinto. A dúvida foi tornada patológica.
Depois, vem o sistema de validação institucional. Um texto só é respeitável se vier de uma “fonte autorizada”. Um investigador só é legítimo se tiver a chancela de uma universidade prestigiada, mesmo que elabore “esboços embrionários que consubstanciam um mero ensaio para um eventual relatório”. Um jornalista só é confiável se tiver um microfone com logótipo aprovado pelo consenso. A censura moderna, neste ponto, funciona por escassez de prestígio. Não se cala o que é dito: desvaloriza-se quem o diz. A credibilidade tornou-se uma forma de aristocracia mediática, e quem ousa pensar sem licença é um herege, um “não-especialista”, um “radical”, um “desinformador”.
O terceiro mecanismo é o controlo do discurso permitido. Já não é necessário dizer que algo está proibido. Basta criar uma atmosfera moral de condenação antecipada. Quem escreve contra o consenso arrisca o escárnio, a acusação de insensibilidade, o ostracismo social, o desemprego. Este é o mundo da “cultura do cancelamento”, que de cultura nada tem: é apenas a actualização emocional da antiga censura moral. E o mais triste é que muitos aceitam essa lógica com resignação: dizem que não é censura, que é “consequência”. Como se a liberdade de expressão implicasse a obrigação de ser bem-visto.
Nas redacções, nas universidades, nas editoras, o mecanismo tornou-se previsível: autocensura como forma de sobrevivência institucional. Os jornalistas omitem temas incómodos para manter o lugar. Os académicos escolhem linhas de investigação seguras para não perder financiamento. Os editores recusam autores polémicos para não ofender patrocinadores. A censura moderna não se impõe de fora: interioriza-se como prudência profissional.
E, no entanto, continuamos a ouvir que vivemos em liberdade plena. Afinal, no mundo ocidental, ninguém é preso por escrever um artigo, ninguém é chicoteado por uma opinião, ninguém é oficialmente silenciado. Mas o medo social cumpre a mesma função: domesticar o pensamento. Ninguém precisa de ser silenciado se todos aprenderem a calar-se antes de tempo.
A imprensa, esse baluarte tantas vezes invocado, converteu-se em agente da contenção. Muitos dos seus profissionais, em vez de questionar o poder, passaram a funcionar como curadores do discurso aceitável. A agenda é partilhada, os alinhamentos são rotativos, as indignações são coreografadas. Quando surge alguém fora do guião, a reacção é sempre a mesma: ignorar, ridicularizar, ou associar à extrema-direita — mesmo quando o discurso é, ironicamente, de esquerda crítica. A censura moderna é políglota e transversal: tanto cala o conservador como o anarquista.
Há quem diga que isto não é censura, mas civilidade; que os tempos exigem responsabilidade; que o debate livre cria perigos. Mas essa é sempre a desculpa do censor: a protecção da ordem, do bem-estar, da verdade. E, contudo, sem confronto, sem dissenso, sem incómodo, a verdade não é possível. É apenas doutrina.
A verdadeira censura, hoje, é a conversão da liberdade em concessão condicional. Podes falar, mas apenas se fores autorizado. Podes criticar, mas apenas se estiveres dentro do enquadramento aprovado. Podes publicar, mas apenas se não for incómodo demais. Podes pensar, desde que não penses alto e demasiado diferente.
E é assim que se chega à tirania simpática: sem censores com farda, sem departamentos do Ministério da Verdade — apenas com protocolos, plataformas e pedagogos mediáticos. O silêncio é voluntário, a obediência é desejada, a uniformidade é celebrada como consenso.
Mas o silêncio imposto é sempre traiçoeiro. Um dia, quando o vento mudar — porque muda sempre —, perguntar-se-á por que razão ninguém falou. E a resposta será a de sempre: houve quem falasse, sim. Mas já ninguém nos ouvia.
4. Liberdade e responsabilidade: o duplo eixo da cidadania adulta
Em todo o caso, quando se fala muito de liberdade, acaba por se falar pouco de responsabilidade — e quando se fala, geralmente é para a impor aos outros. O cidadão moderno, por paradoxal que pareça, exige liberdade como direito, mas recusa a responsabilidade como dever. Quer ser livre para escolher, mas não para responder pelo que escolhe; quer poder, mas não consequência; quer voz, mas não custo. Esta disjunção — entre a liberdade celebrada e a responsabilidade desprezada — está no cerne da crise cívica contemporânea. A liberdade, isolada da responsabilidade, converte-se em capricho. E a responsabilidade, sem liberdade, converte-se em servidão.
A tradição liberal clássica nunca separou os dois conceitos. John Stuart Mill, no seu ensaio On Liberty, defendeu a liberdade de pensamento e acção, mas apenas enquanto essa liberdade não fosse usada para anular a liberdade dos outros. A liberdade não era um passaporte para a indiferença, mas uma exigência ética: só é livre quem tem consciência da dimensão pública dos seus actos. A autonomia implicava, por isso, maturidade. A liberdade era um exercício e não um privilégio. Exigia carácter, juízo e coragem.
O Estado moderno, porém, embarcou na tarefa de emancipar o cidadão da responsabilidade, embora em troca lhe tirou também os fundamentos da liberdade. Fê-lo primeiro por razões sociais, depois por razões económicas, e mais tarde por razões morais. O cidadão foi transformado em sujeito protegido: alguém que tem direitos a ser assistido, a ser defendido, a ser salvo de si próprio — mas não a ser responsabilizado pelas suas escolhas. O paternalismo estatal, antes justificado pela pobreza ou pela ignorância, é agora justificado pelo medo, pelo trauma ou pela susceptibilidade.
Esta lógica fez brotar a nova figura do cidadão infantilizado, que exige protecção contra tudo o que possa causar-lhe desconforto: ideias, palavras, opiniões, riscos. Estamos perante o cidadão que quer ser livre sem ser vulnerável, que exige imunidade contra o dissenso, e que interpreta qualquer oposição como ataque pessoal. Esta regressão emocional tem reflexos directos na cultura política: já não se debate — reclama-se; já não se argumenta — denuncia-se; já não se vive em comunidade — exige-se reconhecimento.
A responsabilidade, nesse contexto, tornou-se uma palavra maldita. Falar de responsabilidade cívica é logo confundido com moralismo ou elitismo. A cultura dominante prefere a retórica da vítima à ética do agente. O cidadão não é responsável: foi levado, foi enganado, foi manipulado. O poder político, cúmplice desse jogo, aceita a narrativa — e propõe mais tutela. Quanto mais irresponsável o cidadão, mais necessário se torna o governo. O círculo fecha-se.
Mas uma sociedade livre só é possível com cidadãos responsáveis. A liberdade não é uma dádiva institucional: é uma prática quotidiana de decisão e consequência. Exige informação, exige ponderação, exige, sobretudo, a capacidade de suportar os efeitos da própria autonomia. Um povo que recusa essa exigência cedo se torna massa. E a massa, como lembrava o filósofo britânico Elias Canetti, no século passado, é sempre moldável por quem a grite mais alto.
A pandemia da covid-19 mostrou isso com clareza clínica. O discurso oficial dispensou o juízo individual: bastava obedecer. O confinamento, a máscara, a vacina — tudo era imposto como prescrição universal, sem margem para discernimento contextual. Questionar era irresponsável. Recusar era criminoso. O bom cidadão era o obediente, não o prudente. A responsabilidade dissolveu-se no slogan colectivo. Pensar por si passou a ser um acto de arrogância.
Este modelo cívico — do cidadão tutelado, monitorizado, guiado por especialistas e algoritmos — está hoje a consolidar-se como norma. A responsabilidade é transferida para o sistema, para o Estado, para a comunidade, para a História — mas nunca para o sujeito. Os erros são sempre dos outros: da desinformação, da bolha digital, da educação deficiente. O indivíduo é, no fundo, uma folha ao vento da conjuntura.
Contra isto, é preciso recuperar o ideal da cidadania adulta: o cidadão como ser autónomo, mas não solipsista, não egoísta, não egocêntrico. Livre, mas não caprichoso. Capaz de exercer os seus direitos, mas também de reconhecer os seus deveres. Capaz de dizer: “eu escolhi, eu sustento, eu assumo”. Só essa atitude permite resistir à tentação do totalitarismo sorridente, que oferece segurança em troca de obediência. Só essa atitude permite uma democracia viva — e não apenas um regime formalmente livre.
A liberdade sem responsabilidade gera caos. A responsabilidade sem liberdade gera opressão. Apenas a tensão entre ambas gera civismo. Como numa ponte suspensa, o equilíbrio está nos dois pilares: se se retirar um, o colapso é inevitável.
5. Quando o Direito se divorcia da Liberdade
Durante séculos, o Direito foi o escudo dos frágeis contra os fortes. A sua função primacial era limitar o poder, impedir o abuso, garantir que nenhum príncipe, nenhum magistrado, nenhum déspota pudesse sobrepor a sua vontade à liberdade dos homens. Era a ordem contra a tirania. A forma contra a força. A regra contra a excepção. Porém, nas últimas décadas, algo de insidioso se produziu: o Direito deixou de ser barreira e passou a ser ferramenta. Em vez de proteger o cidadão do poder, passou a justificar o poder perante o cidadão.
Vivemos hoje num tempo em que a legalidade é invocada não para garantir liberdade, mas para a restringir com aparência de legitimidade. A frase mais temida já não é “isto é ilegal” — é “isto é legal”. A legalidade converteu-se no álibi dos autoritarismos subtis. Tudo se pode fazer, desde que haja um diploma, uma portaria, um acórdão. A forma legal cobre o conteúdo arbitrário, por vezes de forma retroactiva, como o verniz cobre o caixão. E o cidadão, já domesticado pela linguagem normativa, resigna-se: “Se está na lei, é porque tem de ser.”
O problema não é novo. Mas ganhou sofisticação. Em vez de leis tirânicas, temos legislação ambígua, de leitura elástica, aplicável conforme o humor das autoridades. Em vez de proibições, temos regulamentos técnicos, orientações, despachos, manuais operacionais. A norma já não precisa de reprimir: basta que desorganize o sentido de justiça. O Direito deixa de ser norma geral e abstracta e transforma-se em carta branca para a excepção discreta.
Foi isso que vimos durante a pandemia — mas não só. Medidas restritivas de direitos foram aprovadas sem debate parlamentar, com base em conceitos jurídicos gaseificados: “interesse público”, “protecção da saúde”, “circunstância extraordinária”. O Supremo Tribunal Administrativo português teve a coragem de escrever, sem ironia, que o direito à liberdade não era afectado por confinamento domiciliário, porque os cidadãos podiam circular nos corredores do prédio. O Direito, neste ponto, já não protegia o cidadão — apenas justificava a medida. E o absurdo tornava-se norma.
Mais grave ainda foi a abdicação do princípio da proporcionalidade. Medidas extremas foram tomadas com base em riscos teóricos, estatísticas inverificáveis e uma noção infantil de segurança total. O Tribunal Constitucional, que deveria funcionar como último reduto da liberdade, lavou as mãos com declarações de voto pálidas ou equívocas — só mais tarde acordou para demonstrar a sua inutilidade. Aceitou, por acção ou omissão, que direitos fundamentais pudessem ser regulados por decretos administrativos sem qualquer base científica e constitucional. A separação de poderes converteu-se em colaboração entre departamentos.
E, no entanto, na aparência, tudo foi feito com legalidade. Havia pareceres. Havia decretos. Havia resoluções. Havia acórdãos. Tudo “conforme à lei”. Mas não conforme à justiça. Nem à liberdade. A dissociação entre legalidade e legitimidade tornou-se estrutural. A letra da lei já não exprime o espírito do Direito — exprime apenas a vontade dos que legislam, ou dos que interpretam em nome da conveniência.
Este divórcio tem consequências profundas. O cidadão deixa de confiar no Direito como espaço de segurança. Aprende a temê-lo. Aprende que as garantias constitucionais valem menos do que uma declaração de emergência ou uma norma da Direcção-Geral da Saúde. Aprende que o recurso ao tribunal pode demorar anos, e que a sentença — mesmo favorável — já não desfaz os danos. O Direito deixa de ser escudo: passa a ser labirinto.
E aqui chegamos à falácia contemporânea do “Estado de Direito”. Muitos acreditam que basta a existência de leis e tribunais para que a liberdade esteja assegurada, mas a História mostra o contrário: algumas das maiores atrocidades foram cometidas com respaldo legal. A escravatura foi legal. A segregação foi legal. A censura foi legal. O internamento compulsivo de doentes mentais foi legal. O nazismo foi meticulosamente legal.
Aquilo que distingue uma democracia não é apenas a existência de leis — é a qualidade da sua legalidade. Se as leis servem para proteger o poder e não para o limitar, não há Estado de Direito: há Estado de obediência jurídica. Se os tribunais aplicam a norma sem ponderar os princípios, não há justiça: há formalismo. E se os juristas se calam para manter a carreira, não há cultura jurídica: há servilismo togado.
Neste novo regime, o cidadão já não é sujeito de direitos, mas objecto de gestão normativa. A sua liberdade é concedida por calendários legislativos, por pareceres de comissão, por boletins ministeriais. A liberdade já não é presumida — é autorizada. E, por isso mesmo, é sempre frágil.
Contra isto, é preciso recuperar a ideia de Direito como espaço de resistência. O juiz não é um aplicador mecânico da norma, mas um intérprete com consciência. O advogado não é um técnico, mas um defensor da liberdade. O legislador não é um gestor de equilíbrios partidários, mas um garante do contrato social. E o cidadão não é um destinatário passivo: é parte activa da normatividade democrática.
Quando o Direito se divorcia da Liberdade, o que resta é o ritual jurídico sem alma. Um Estado formalmente legal, mas materialmente servil. Um país onde tudo é permitido ao poder — desde que com carimbo. E o carimbo, como sabemos, é algo barato.
6. A liberdade é indivisível: da extrema-direita ao pensamento radical
A verdadeira prova de uma sociedade livre não está na liberdade concedida aos que dizem o que todos querem ouvir, mas sim na liberdade reconhecida àqueles que nos causam repulsa, inquietação ou desconforto intelectual. A liberdade é fácil de tolerar quando serve para reproduzir o consenso; torna-se insuportável quando serve para o desafiar. É aí, precisamente aí, que se mede o seu valor — não como ornamento institucional, mas como princípio moral e político.
Nos tempos hodiernos, esta prova tem sido sistematicamente falhada. A liberdade de expressão transformou-se num privilégio condicional, amiúde reservado apenas àqueles que sabem modular o tom, que frequentam os salões certos, que mantêm o equilíbrio entre o politicamente aceitável e o socialmente bem-visto. Quem ousa falar fora desse perímetro — seja à direita, à esquerda ou em órbitas não cartografadas — é empurrado para a zona do indizível. Não por ilegalidade, mas por indignidade. A censura moderna, como vimos, é higiénica — e essa higienização passou a aplicar-se também à legitimidade do interlocutor.
É assim que se chega à contradição contemporânea: defende-se a liberdade como valor universal, mas só se aplica a quem fala dentro das fronteiras morais desenhadas pelos comissários do discurso aceitável. Quem escapa a essa cartografia — mesmo que por crítica legítima, mesmo que por denúncia documentada — é logo rotulado de “extremista”, “radical”, “populista”, “desinformador”. E a conversa morre ali, com e pelos rótulos.
Mas a liberdade não é divisível. Não se pode defender a liberdade apenas para os que estão do “nosso lado”. Um liberal que apenas tolera liberais é apenas um sectário cortês. Um democrata que apenas defende a democracia para os seus é apenas um autoritário disfarçado. A liberdade exige coerência — e essa coerência inclui o direito à palavra dos que nos ofendem.
Peguemos, por exemplo, num caso extremo: Tommy Robinson, figura incómoda e indigesta da extrema-direita britânica, foi detido, censurado, impedido de divulgar documentários, silenciado nas redes sociais. Discordo profundamente das suas posições, que estão nas antípodas das minhas. Porém, quando o Estado britânico lhe exige o código PIN do telemóvel sob ameaça de pena de prisão — como sucedeu —, aquilo que está em causa já não é uma ideologia reprovável: é um modelo de sociedade que se está a construir, onde o inimigo é pretexto para o alargamento do controlo estatal sobre todos.
O mesmo se aplica aos tratamentos que foram dados a Julian Assange, a Edward Snowden, a Glenn Greenwald, a Craig Murray — e, nestes casos, nenhum pode sequer ser rotulado como de extrema-direita. Pelo contrário: são, em muitos casos, herdeiros da melhor tradição da esquerda crítica e dos direitos civis. Mas o sistema não distingue entre radicalismos ideológicos: o que incomoda já é a fractura no discurso dominante, seja ela feita com megafone ou com documentos classificados.
A liberdade é indivisível porque não há liberdade se não houver espaço para o erro, para a provocação, para o excesso. Se não houver margem para o discurso que nos tira o sono. Se não houver lugar para o confronto real — não o debate domesticado dos talk-shows, mas a dissonância verdadeira, o choque de mundividências, o pensamento incivilizado que força a pensar. E é precisamente esse tipo de liberdade que se está a extinguir. Invoca-se o combate à desinformação, ao ódio, à radicalização. Mas raramente se define com rigor o que esses conceitos significam. O resultado é a elasticidade punitiva do vocabulário institucional. Hoje é um extremista de direita que é silenciado. Amanhã será um comunista nostálgico. Depois um jornalista incómodo. Por fim, um cidadão comum que ousou dizer o que não devia num jantar com amigos.
Veja-se o que acontece agora no espaço europeu com a proposta do chamado Chat Control. Sob o pretexto irrepreensível de combater a pedofilia, pretende-se instituir a vigilância sistemática de comunicações privadas — até das mensagens encriptadas. O objectivo declarado é proteger crianças, mas o efeito real é criar a ferramenta que faltava para legitimar a devassa universal. Hoje a senha é “abuso infantil”, amanhã será “terrorismo”, depois “desinformação”. E a cada nova etiqueta moral, abrir-se-á um pouco mais a caixa negra da vida privada de milhões de cidadãos. Quem aplaude este primeiro passo fá-lo em nome da virtude, mas está a aplaudir, na verdade, a construção lenta de um regime onde todos passam a ser suspeitos até prova em contrário. A História ensina — a quem quiser aprender — que as liberdades não se perdem todas de uma vez. Perdem-se aos poucos, com aplauso. A repressão não começa com censura geral, mas com silêncios selectivos. Primeiro os extremos. Depois os arredores. Depois o centro — que já não tem forças para resistir.
Por isso, a única posição coerente é esta: defender a liberdade mesmo de quem a despreza. Defender o direito à palavra de quem a usa para atacar-nos — porque ao defender esse direito, defendemo-nos a nós próprios. O liberal que se cala perante a censura ao conservador é cúmplice do silêncio futuro do progressista. O democrata que aplaude a repressão ao populista está a saudar a sua própria sentença adiada. A liberdade não pode ser partida em fatias morais. Ou se defende para todos — ou já não é liberdade: é apenas privilégio rotativo.
7. Conclusão: Liberdade para viver, não apenas para obedecer
Não há liberdade estática. Ou esta é um acto permanente — e, portanto, um risco —, ou é uma palavra decorativa, ritualizada, acomodada. Os regimes modernos tendem a preferi-la como símbolo: cabe no preâmbulo constitucional, no discurso de Ano Novo, na campanha institucional. Mas a liberdade verdadeira não se presta a cartazes: perturba, compromete, exige, resiste.
A liberdade só vive onde existe memória de resistência. Não há liberdade sem os seus mortos, os seus exilados, os seus queimados, os seus silenciados. Cada direito conquistado foi, antes, um crime. Cada liberdade reconhecida foi, antes, um sacrilégio. É essa genealogia que a nossa época parece querer apagar, como se a liberdade fosse um produto da prosperidade e não da luta. Como se bastasse pagar impostos, votar de quatro em quatro anos e estar actualizado sobre os termos de uso.
Mas não há liberdade sem herança de conflito — e sem disposição para o repetir, se necessário. A liberdade de expressão, por exemplo, não foi criada para proteger consensos, mas dissensos. O seu valor está no desconforto que provoca, não na unanimidade que facilita. Quando se começa a moldar a liberdade à medida da sensibilidade do outro, o que sobra já não é liberdade: é civilidade tutelada.
E, contudo, o discurso dominante parece hoje preferir uma liberdade sem vértebra — uma liberdade protocolada, validada, certificada; uma liberdade que não escapa ao algoritmo nem ao moralismo; uma liberdade “segura”, como se isso não fosse já um oxímoro, uma contradição.
Mas a liberdade é, por definição, incerta. Carrega o risco de nos confrontarmos com o erro, com o disparate, até com a ofensa. E é nesse risco que ela encontra sentido. Se tudo está regulado, moderado, contextualizado, desinfectado, então já não é liberdade — é comportamento autorizado.
Mais grave ainda: perdeu-se a ideia de que a liberdade não é apenas um direito presente, mas uma responsabilidade futura. Aquilo que toleramos hoje — por comodismo, por medo ou por pragmatismo — será o que os nossos filhos aprenderão como natural. E se a liberdade não lhes for entregue como valor central, não saberão como a reconhecer, quanto mais como a defender. Não serão servos revoltados, mas súbditos gratos.
É por isso que a liberdade exige transmissão. Não apenas por manuais escolares ou discursos parlamentares, mas como exemplo: pela recusa em aceitar o silêncio como custo social; pela coragem de não pactuar com o absurdo; pela escolha de ser livre mesmo quando a liberdade é incómoda, solitária ou improvável. Chegados ao fim deste capítulo, importa dizer sem ornamentos: a liberdade não é uma condição natural, nem um direito adquirido. É um exercício contínuo e uma luta renovável. Não precisa de nos ser retirada à força para desaparecer — basta que nos habituemos a viver sem ela.
Por isso, viver livremente não é o mesmo que viver à vontade. Não é fazer tudo: é recusar que o essencial seja decidido por outros — é não obedecer por reflexo; é perguntar sempre: “Quem decide o que posso dizer? Quem define o que posso saber? Quem determina até onde posso ir?”
Quando já não houver quem pergunte isso — mesmo em voz baixa, mesmo a sós —, a liberdade terá deixado de existir. Não com um golpe, mas com um consentimento.
E, por isso, viver em liberdade é recusar a vida mansa da obediência. É preferir o desconforto da autonomia à anestesia da tutela. E isto nada tem de ideológico.
Há momentos na História em que o discurso político, o pensamento público e até a consciência individual parecem mergulhados num torpor feito de palavras repetidas, de ideias ocas, de rituais sem alma. Vivemos um desses tempos. Um tempo em que as ideologias, outrora projectos estruturantes de mundo, caíram no descrédito ou na irrelevância, sendo substituídas por etiquetas vagas, por alinhamentos circunstanciais e por automatismos discursivos que já não mobilizam consciências nem iluminam caminhos.
A política deixou, em larga medida, de ser a arte da escolha entre visões de sociedade para se converter num mercado de slogans, numa arena de reacções instintivas, numa sequência de performances ajustadas ao algoritmo ou ao inquérito de opinião. Por isso, mostra-se cada vez mais urgente recentrar o debate nos valores — não nos rótulos, não nos programas, não nos partidos, mas nos valores perenes que dão sentido à liberdade, à verdade, à responsabilidade e à soberania do indivíduo e da comunidade.
1. O colapso das ideologias tradicionais e a ascensão do dogmatismo funcional
Durante grande parte do século XX, os confrontos ideológicos não eram apenas jogos de poder: eram confrontos de visões do mundo. O liberalismo clássico, o socialismo democrático, o conservadorismo nacional — com todas as suas variantes e degenerescências — disputavam entre si não apenas votos, mas sentidos, princípios e horizontes. Discutia-se o papel do Estado, o valor da propriedade, a relação entre liberdade e igualdade, o lugar da tradição e da inovação.
Discutia-se, de facto, política — com paixão, com erro, com demagogia por vezes, mas com substância. Havia, para o bem e para o mal, uma batalha de ideias. A própria luta contra as formas totalitárias — o nazismo, o comunismo, o fascismo — exigia posicionamento e coragem intelectual. Ser de direita ou de esquerda implicava, até certo ponto, uma coerência moral, um conjunto de referências, um mapa do mundo.
Essa arquitectura ruiu. Não de forma repentina, mas por erosão lenta. O liberalismo económico divorciou-se do liberalismo político, convertendo-se numa técnica de gestão de mercados. O socialismo sucumbiu entre a burocracia estatal e a sedução do consumo. O conservadorismo deixou de conservar seja o que for — perdeu o sentido de pertença e rendeu-se ao marketing político. Aquilo que sobra das ideologias do século XX são versões anémicas de si mesmas: a esquerda que defende bancos e vacinações compulsórias; a direita que aceita défices, censura e dissolução da soberania nacional; os centristas que vegetam entre um simulacro de consenso e a rendição à tecnocracia.
As ideologias perderam conteúdo porque foram cooptadas pelos aparelhos institucionais, pelos interesses económicos, pela lógica da comunicação instantânea. Como defendeu o recém-falecido filósofo britânico Alasdair MacIntyre, vivemos um tempo de “fragmentação moral”: já não há um quadro partilhado de sentido, mas apenas segmentos dispersos de valores instrumentais, sem hierarquia nem finalidade comum.
O resultado não tem sido a emancipação do cidadão, mas a sua reprogramação funcional. O vazio deixado pelas ideologias não foi ocupado por um renascimento do pensamento, mas por um novo dogmatismo: mais discreto, mais eficaz, mais domesticador. Não se apresenta como ideologia, mas como inevitabilidade. Não propõe um projecto político, mas uma engenharia social. Este novo dogmatismo é funcional, não doutrinário: não tem como missão formar convicções, mas produzir comportamentos. Apresenta-se sobretudo como tecnocracia apostada na neutralidade, na moral institucionalizada que se confunde com virtude, no higienismo que se impõe como salvação, na burocracia da igualdade que desumaniza em nome da inclusão — é o poder sem rosto, sem narrativa, sem contestação visível; é um poder que normaliza o anormal e rotula como extremista quem apenas ousa pensar fora da grelha predefinida.
Estamos perante uma nova forma de tirania da maioria, como já antecipava Alexis de Tocqueville no século XIX: uma maioria não necessariamente numérica, mas mediática, algorítmica, institucional — uma maioria fabricada e legitimada não pelo debate, mas pela repetição. Este novo consenso moral-operativo não precisa de censura formal: basta-lhe a difamação mediática, o cancelamento digital, o controlo subtil da linguagem, o medo socialmente inculcado. O triunfo da tirania da maioria surge com a instalação da uniformidade do pensamento, da obediência voluntária, da infantilização do juízo. Embora numa outra perspectiva, Hannah Arendt alertou para a banalidade do mal — e esse mal implanta-se agora não pelo fanatismo ideológico, mas pela normalização da passividade, pela rotinização da mentira, pela aceitação preguiçosa da ordem estabelecida.
Esse novo dogmatismo apresentou-se, sobretudo na última década, e particularmente desde 2020, com múltiplas máscaras: sanitária, climática (não ambiental), identitária, digital. Mas por trás de todas essas máscaras está o mesmo impulso: manter o indivíduo sob vigilância e a sociedade sob tutela, convencer-nos de que a liberdade é perigosa, a dúvida é ofensiva, a responsabilidade é opressiva, a verdade é relativa. Tudo é reconfigurado ao serviço da funcionalidade: a Ciência como validação de políticas, a Educação como engenharia comportamental, a Cultura como entretenimento subvencionado, o Jornalismo como extensão do poder. E o mais grave é esse processo muitas vezes ser aceite pelos próprios agentes sociais — médicos, professores, jornalistas, juristas — que, em vez de resistirem, adaptam-se, integram-se, reproduzem as lógicas institucionais sob o pretexto de servirem o bem comum.
Estamos, pois, num tempo em que os partidos e os políticos já não pensam, apenas reagem; em que os parlamentos já não deliberam, apenas carimbam; em que os cidadãos já não escolhem, apenas consentem. A democracia formal mantém-se — com eleições livres, debates condicionados, liberdades reguladas —, mas a substância do regime democrático esvaziou-se: sem ideologias com conteúdo e sem valores em disputa, a política degenerou numa luta de máquinas, de narrativas e de ressentimentos. Restam alguns focos de lucidez, por vezes na periferia, por vezes fora do sistema político, mas são tratados como excentricidades ou ameaças, nunca como interlocutores legítimos.
É neste cenário que este conjunto de crónicas se inscreve — não como manifesto partidário, nem como catecismo ideológico, mas como exercício de resgate do essencial. Não proponho substituir uma ortodoxia por outra, mas recentrar o debate no que verdadeiramente importa: os valores que permitem pensar e agir com liberdade, integridade e responsabilidade. Contra a lógica das etiquetas e das fidelidades tribais, sugiro aqui uma grelha de princípios que, sendo antigos, se tornam hoje revolucionários. Por exemplo, o simples acto de afirmar que a liberdade é um valor superior à segurança, que a soberania é um direito democrático e não uma relíquia nacionalista, que a verdade importa mesmo quando é incómoda, que o Jornalismo deve vigiar o poder e não servi-lo — tudo isso, que há poucas décadas seria senso comum liberal ou republicano, tornou-se subversivo.
Estas crónicas, por isso, não servem para crentes, mas para pensantes. Não ofereço soluções mágicas nem convido à adesão automática. Convido, sim, ao exame crítico, à recusa do automatismo, à recuperação do juízo moral. Inicio a partir de um diagnóstico duro — o colapso das ideologias e a ascensão de um dogmatismo funcional e anónimo — para propor um caminho exigente: o da reconstrução do espaço público com base em valores sólidos, não em alinhamentos convenientes. Um caminho que não se faz com indignações epidérmicas nem com palavras de ordem, mas com coragem intelectual, memória histórica e sentido de responsabilidade.
Aquilo que proponho, portanto, não é o regresso a um passado idealizado, mas a recuperação daquilo que foi abandonado por preguiça, por medo ou por conveniência. A liberdade, a verdade, a responsabilidade, a soberania, a integridade, a crítica, a expressão livre — não como bandeiras identitárias, mas como fundamentos de uma vida cívica digna. Dizer isto é, hoje, um acto político — e, talvez, um acto de resistência.
2. A necessidade de um novo referencial baseado em valores perenes
A erosão das grandes ideologias não deu lugar ao pensamento, mas ao vazio. E esse vazio, incapaz de suportar a exigência do juízo crítico, foi rapidamente preenchido por sucedâneos discursivos que prometem tudo e significam quase nada.
O mais insidioso destes sucedâneos é o centrismo, essa palavra cómoda que disfarça a abdicação do pensamento sob a aparência de equilíbrio. O centro político, que poderia ser um espaço de síntese ou de ponderação, converteu-se num refúgio para os que recusam escolher, os que temem afirmar, os que preferem a gestão à visão. O mesmo se aplica à chamada moderação, termo que nos tempos actuais deixou de significar prudência ou contenção para se tornar sinónimo de capitulação moral. Já não é o radicalismo que assusta: é a possibilidade de ter convicções claras, de afirmar valores como inegociáveis, de recusar as zonas cinzentas que anestesiam o juízo.
A consciência social, por sua vez, tornou-se uma fórmula piedosa para justificar políticas contraditórias, assistencialismos estruturais e moralismos públicos. Com ela, legitima-se tudo: da restrição de liberdades à imposição de comportamentos, desde que embrulhado numa linguagem de inclusão e compaixão institucionalizada. Trata-se, no fundo, de uma operação de ocultação: esvaziar o conteúdo político do debate, neutralizar os conflitos de valor e transformar a deliberação democrática num ritual de consenso forçado, onde discordar é ser extremista e questionar é ser perigoso.
Estas soluções fáceis não são apenas intelectualmente pobres: são mecanismos activos de erosão da cidadania, pois promovem a obediência revestida de virtude e a conformidade disfarçada de ponderação.
Neste cenário, torna-se fulcral um novo referencial, mas não um referencial ideológico — já vimos como as ideologias se tornaram cascas vazias, instrumentos de marketing ou de sobrevivência partidária. Aquilo que se impõe é a substituição das etiquetas por uma arquitectura de valores, que sirvam de critério normativo e de fundamento ético para a acção pública e individual. Esta arquitectura não é um sistema fechado, mas uma grelha de referência; não impõe conclusões, mas fornece critérios de orientação, que permitem distinguir entre o essencial e o acessório, entre aquilo que pode ser negociado e o que deve ser preservado, entre o que é opinião e aquilo que é princípio.
A proposta destas crónicas assenta precisamente nesse resgate dos valores estruturantes, que não dependem de programas eleitorais, de conveniências partidárias ou de consensos fugazes. Falo de valores que não mudam com o ciclo noticioso nem oscilam ao sabor das redes sociais. Falo da liberdade, da verdade, da responsabilidade, da soberania, da expressão crítica, da integridade — valores que moldam o carácter de uma sociedade e a dignidade de um cidadão. Não são fórmulas — são fundamentos. Não são sentimentos — são compromissos. E é essa distinção que urge recuperar, pois a confusão também se mostra quando se acredita que “valores” são apenas slogans ou posturas públicas.
Mas, afinal, o que são valores perenes? A resposta deveria ser simples: são aqueles princípios que resistem ao tempo, à moda e à manipulação, que exigem constância, coragem e clareza — precisamente por não serem adaptáveis ao gosto do dia. São aqueles que, como dizia Simone Weil, nos enraízam: não nos prendem ao passado, mas impedem que sejamos levados pela corrente de cada presente. A liberdade, por exemplo, não é uma política — é um princípio. A verdade não é um ponto de vista — é uma exigência. A responsabilidade não é uma função — é uma escolha pessoal. A soberania não é um capricho nacionalista ou patriótico — é o direito a decidir o próprio destino. Estes valores não são acessórios: são a gramática da dignidade.
Já os valores acessórios — como a eficiência, a inovação, a sustentabilidade ou a competitividade —, embora possam ser desejáveis, não fundam nada por si mesmos. São instrumentais, não estruturantes. Podem servir a liberdade ou a tirania, a responsabilidade ou o servilismo, consoante o fim que os enquadra. A confusão entre uns e outros é, aliás, um dos grandes perigos do tempo presente: tomam-se meios por fins, virtudes técnicas por virtudes morais, consensos operacionais por princípios políticos. E assim, pouco a pouco, perde-se o sentido do essencial — como quem, em nome de conduzir mais depressa, se esquece do destino.
Proponho, assim, um acto de ordenação — não no sentido autoritário, mas no sentido aristotélico: recolocar cada coisa no seu lugar, distinguir os planos, hierarquizar os critérios. Vivemos agora, como advertiu no século passado Isaiah Berlin, num mundo de conflitos trágicos entre valores; mas o pluralismo de valores não é relativismo. Saber que há valores em tensão não significa que todos valham o mesmo. A liberdade pode entrar em tensão com a segurança, mas não é por isso que se pode abolir uma em nome da outra. A verdade pode colidir com a conveniência, mas não é por isso que se pode renunciar à sua busca como se fosse um luxo. A responsabilidade pode ser dura, mas não é por isso que se deve infantilizar o cidadão sob o pretexto da protecção.
Neste contexto, os valores perenes funcionam como âncoras num tempo líquido, para usar a célebre metáfora do sociólogo polaco Zygmunt Bauman. São antídotos contra a manipulação emocional, contra a oscilação retórica, contra a volatilidade programática. Permitem, sobretudo, resgatar a autonomia do juízo, que é o verdadeiro fundamento de uma democracia viva. Quando tudo é opinião e tudo é sensibilidade, os valores fornecem uma base para o discernimento. Quando tudo é ruído e reacção, os valores permitem distinguir o necessário do acessório, o essencial do conjuntural.
Talvez seja esse, afinal, o maior desafio contemporâneo: reaprender a distinguir. Distinguir entre liberdade e permissividade, entre verdade e narrativa, entre responsabilidade e delegação, entre soberania e isolamento, entre expressão e propaganda. Só essa capacidade de discriminar, de julgar, de hierarquizar — e de agir em conformidade — permite que o indivíduo se afirme como sujeito cívico, e não como peça funcional de uma engrenagem social ou económica. E é essa distinção, esse juízo, essa coragem que os valores perenes exigem e oferecem.
Estas crónicas serão, pois, um convite para essa reconstrução. Não com arrogância moral, nem com nostalgia restauradora, mas com a serenidade crítica de quem acredita que há coisas que não passam — e que, por isso, nos podem orientar quando tudo parece disperso. Valores em vez de ideologias; critérios em vez de slogans; consciência em vez de reflexo. Essa é a proposta. E também a provocação.
3. Uma crítica à infantilização da cidadania e à política performativa
Entre os efeitos mais perversos do esvaziamento ideológico e do colapso valorativo está a lenta, mas eficaz, infantilização da cidadania. O cidadão emancipado, consciente dos seus direitos, mas também dos seus deveres, informado e capaz de deliberar, deu lugar a uma figura tutelada — um menor cívico perpétuo, que não pensa, mas consome; que não questiona, mas subscreve; que não age, mas espera que alguém o represente, o proteja, o salve.
O Estado, outrora pensado como expressão da vontade política do povo soberano, converteu-se numa entidade paternalista, uma espécie de tutor universal que administra riscos, distribui subsídios e regula comportamentos, sempre em nome do bem, da segurança, da inclusão ou da saúde pública. E o cidadão, por sua vez, já não é um sujeito político, mas um cliente de direitos, sempre pronto a reclamar, mas pouco disposto a participar; sempre ávido de garantias, mas alérgico à responsabilidade.
Esta cultura da tutela, alimentada por décadas de pedagogia estatal, de retórica protectora e de engenharia social, produziu um modelo de cidadania que já não é autónomo, mas dependente por design — dependente do Estado, das instituições, dos especialistas, das plataformas. A autonomia tornou-se suspeita; a dúvida, subversiva; a exigência de coerência, um luxo burguês. Promoveu-se a ideia de que o cidadão precisa de ser guiado, esclarecido, conduzido — como se a maturidade política fosse uma meta inalcançável e a liberdade, uma ameaça à ordem. Esta concepção tutelaresca do poder reduziu o espaço público a uma espécie de sala de aula infantilizada, onde os “bons alunos” recebem prémios e os “mal-comportados” são punidos com censura, marginalização ou rotulagem.
Paralelamente, a política tornou-se espectáculo. Não no sentido clássico de representação — que pressupunha uma ligação simbólica com a vontade colectiva —, mas no sentido contemporâneo de simulação. O Parlamento deixou de ser um fórum de debate para ser um palco de encenação. As redes sociais converteram-se no verdadeiro hemiciclo do presente: é ali que se ganha ou perde o dia, que se define a agenda, que se forjam reputações.
O político performativo não tem ideias, mas frases; não tem visão, mas pose; não tem projecto, mas indignações rotativas. A acção política resume-se a hashtags, a vídeos de 15 segundos, a indignações de serviço, a gestos simbólicos que nada mudam, mas servem para manter a coreografia do envolvimento cívico. Estamos perante o império da estética sobre a ética, da forma sobre o conteúdo, da visibilidade sobre a substância.
No século passado, Guy Debord já proclamara a “sociedade do espectáculo” — mas hoje o espectáculo político ainda é mais perverso do que aquele que este teórico francês descreveu nos anos 1960: é interactivo, personalizado, algorítmico. Sobretudo por via das redes sociais, o cidadão já não é apenas espectador: é convidado a participar — desde que dentro dos limites do guião. Pode reagir, pode comentar, pode partilhar, mas não pode mudar nada. A ilusão da participação substituiu a prática da cidadania. A emoção substituiu o juízo. A reacção substituiu a deliberação. O debate real desapareceu — e com ele a possibilidade de conflito produtivo, de divergência estruturada, de construção comum. Finge-se que há debate onde só há marketing. Finge-se que há diversidade onde só há variações sobre o mesmo tom. Finge-se que há democracia onde só há gestão da percepção pública.
Este ambiente favorece, naturalmente, a docilidade política. Um cidadão infantilizado é mais fácil de mobilizar — ou de desmobilizar. Basta-lhe um susto, um escândalo, um escudo fiscal. Não exige princípios, apenas resultados. Não quer verdade, apenas conforto. E, acima de tudo, não quer responsabilidades. O preço da autonomia torna-se demasiado alto para quem foi educado na lógica da tutela e da promessa: é mais cómodo seguir o fluxo, alinhar com o “lado certo da História”, repetir as palavras permitidas, partilhar os slogans da moda. A liberdade, neste contexto, é não ter de decidir; a cidadania, não ter de pensar. Por isso, os poderes instalados — sejam políticos, mediáticos ou económicos — fomentam esta infantilização: não por malícia, mas por conveniência. Um cidadão que pensa, questiona. Um cidadão que duvida, atrasa. Um cidadão que exige, complica. Melhor, então, mantê-lo entretido, indignado, emocionado — mas nunca desperto.
Este processo de adormecimento da cidadania seria, porventura, reversível se existissem instâncias de formação crítica capazes de operar uma contra-narrativa. Mas aquilo a que outrora chamávamos Escola, Imprensa e Cultura deixou, em larga medida, de cumprir essa função. A Escola, rendida ao utilitarismo e ao relativismo, já não forma para o juízo, mas para a adaptação — ensina competências, não pensamento. A Imprensa, em vez de questionar o poder, tornou-se seu apêndice — ora laudatório, ora servil, ora simplesmente ausente. O Jornalismo transformou-se numa extensão do marketing institucional ou numa tradução apressada de agências noticiosas. E a Cultura, cada vez mais reduzida ao entretenimento, deixou de ser um espaço de elevação para ser um palco de identidades ou um produto de consumo rápido.
O norte-americano Neil Postman advertia, com lucidez profética, que nos poderíamos “divertir até à morte” — não pela censura explícita, mas pelo colapso da relevância. Quando tudo é espectáculo, nada importa. Quando tudo é indignação, nada permanece. Quando tudo é emoção, nada se transforma. E é precisamente esta lógica de ruído, de dispersão e de excitação permanente que impede a emergência de um espaço público maduro, onde a política seja mais do que um teatro e a cidadania mais do que um contrato de prestação de serviços.
Muito a propósito, o filósofo grego Cornelius Castoriadis falava, no século passado, da “cidadania autónoma” como a capacidade de auto-instituição colectiva: não apenas participar nas regras, mas pensar as regras, questioná-las, recriá-las. Ora, essa cidadania autónoma é hoje o maior desafio — e o maior tabu.
A proposta destas crónicas é, também aqui, clara: recusar a tutela e o espectáculo, e reivindicar o juízo e a responsabilidade. Não se trata de idealizar um cidadão perfeito ou um modelo abstracto de participação. Trata-se, antes, de defender a ideia de que a cidadania é uma exigência, não uma concessão; que a liberdade não se delega, a verdade não se terceiriza, a responsabilidade não se subcontrata. Trata-se de recordar que viver em democracia não é apenas votar ou opinar, mas agir com consciência, com risco, com consequência. E que sem essa atitude, sem essa disposição, sem essa vigilância, a democracia degenera em administração, e a cidadania em obediência decorada.
4. O papel da integridade e do Jornalismo vigilante como balizas da democracia
Nenhuma democracia sobrevive sem vigilância. E nenhuma vigilância é eficaz sem Jornalismo independente, corajoso, íntegro — um Jornalismo que não se limite a relatar o que convém, mas que ouse investigar o que incomoda, que não se deixe enredar em protocolos de obediência, mas que conserve a capacidade de perturbar, de revelar, de acusar.
O Jornalismo, quando é digno do nome, não é neutral — é leal à verdade, à liberdade e ao interesse público, mesmo quando esses colidem com o poder instituído. O problema é que, na prática, nas décadas mais recentes, a imprensa transformou-se no contrário do que proclama: deixou de ser um contra-poder para se tornar um reprodutor de discursos oficiais, um braço comunicacional de instituições públicas ou privadas, um gestor de narrativas em vez de um escrutinador de factos.
Esta mutação tem causas múltiplas: económicas, políticas, culturais. A progressiva dependência da publicidade institucional e empresarial, os projectos editoriais subsidiados pelo Estado ou pela União Europeia, a promiscuidade entre redacções e gabinetes ministeriais, os conselhos reguladores capturados por interesses partidários, o declínio da leitura crítica e a ascensão do infotainment digital — tudo isso corroeu a base ética do Jornalismo, substituindo a vigilância pela reverência, a interrogação pelo eco, a independência pela conveniência. O jornalista, que deveria ser incómodo, tornou-se afável; que deveria ser desconfiado, tornou-se confidente; que deveria ser livre, tornou-se alinhado. Não por censura imposta, mas por domesticação progressiva.
A chamada neutralidade, nesse contexto, é uma das ficções mais perigosas, porque não há neutralidade possível quando se trata da verdade. Fingir imparcialidade enquanto se escolhe sistematicamente o ângulo favorável ao poder, ou se omitem vozes dissonantes, ou se reverberam comunicados como se fossem investigações, é uma forma de traição ao princípio fundacional do Jornalismo. Alguém atribuiu a George Orwell a frase: “Dizer a verdade é um acto revolucionário”, mas independentemente de ser apócrifa, representa aquilo que o Jornalismo perdeu: o sentido de missão, o compromisso com a verdade como valor e não como produto.
Em vez disso, temos narrativas construídas por conveniência, indignações selectivas, fact-checkings de conveniência, silêncios cúmplices e uma ausência ensurdecedora de investigação real sobre temas sensíveis, incómodos ou politicamente desconfortáveis.
É neste vazio que o poder tem prosperado. E um poder sem Jornalismo vigilante é um poder sem freios — porque a primeira fronteira da liberdade não é a urna, é a palavra livre. Quando o discurso público é condicionado, tutelado, homogeneizado, a democracia torna-se uma farsa elegante, com aparência de pluralismo, mas sem substância deliberativa. Cabe ao jornalista perguntar aquilo que não se deve perguntar, escavar onde ninguém quer que se escave, expor o que se quer esconder — é esse jornalista que mantém vivo o espaço democrático. E quando ele desaparece, desaparece com ele o oxigénio da República.
Por isso, não me dirijo apenas ao leitor enquanto cidadão, mas também enquanto potencial jornalista — no sentido mais nobre da palavra. Porque, em tempos de silêncio coreografado, todo cidadão pensante é um jornalista em potência. Aquele que observa, que confronta, que recolhe factos e os analisa, que se recusa a repetir palavras alheias sem passar pelo crivo do juízo — esse é irmão do jornalista vigilante. Ambos são expressões de uma democracia viva, não domesticada. Ambos recusam o papel de papagaio, de técnico de comunicação, de reprodutor de slogans. Ambos sabem que a liberdade não é compatível com a preguiça intelectual nem com a cedência ao conforto institucional.
O também jornalista franco-argelino Albert Camus defendeu que o Jornalismo, para ser digno, deve ser um combatente ético — contra a mentira, contra a injustiça, contra a indiferença. E é esse combate que importa recuperar: não como heroísmo retórico, mas como prática quotidiana de vigilância, de integridade e de independência. A integridade, aliás, é aqui palavra-chave: integridade como coerência entre aquilo que se pensa, aquilo que se diz e aquilo que se faz; como recusa da duplicidade e da omissão; como fidelidade à consciência e não ao alinhamento; como base moral de qualquer crítica que se queira legítima.
É essa integridade que está em causa quando se permitiu — ou se legitimou — que os media fossem instrumentos de propaganda sanitária, educativa, climática ou financeira, ou se silenciaram denúncias de promiscuidade entre reguladores e regulados, entre anunciantes e redacções, entre governos e comentadores. E é essa integridade que se deve exigir, sem concessões, aos que se dizem jornalistas, mas preferem o conforto da obediência ao desconforto da exposição. Não há Jornalismo sem risco. E, sobretudo, não há democracia sem jornalistas que aceitem correr riscos — por vezes profissionais, outras vezes apenas morais, mas sempre necessários.
Este conjunto de crónicas, ao propor uma arquitectura de valores, coloca o Jornalismo onde ele pertence: no centro da vigilância cívica, como sentinela da verdade, da liberdade e da dignidade pública. Não como profissão reservada a uma classe, mas como atitude intelectual acessível a qualquer cidadão que se recuse a ser espectador passivo da mentira ou cúmplice voluntário do silêncio. E é por isso que não se fala de imprensa, fala-se de Jornalismo. Não se fala de media, fala-se de integridade. Porque o que está em causa não é a sobrevivência de um sector, mas a possibilidade de existir ainda um espaço público onde se pense, se discuta, se resista.
E se a resistência hoje se faz mais com palavras do que com barricadas, mais com arquivos do que com slogans, mais com investigação do que com indignação, então que seja essa a missão: resistir dizendo, pensando, denunciando. Sem concessões, sem reverências, sem receio. Até porque, como nos ensinou o jornalista norte-americano Isidor Feinstein Stone, se “todos os governos mentem”, só quem ousa desconfiar com método e publicar com coragem poderá merecer ainda o nome de jornalista.
Fecho da Introdução — Convite ao leitor
Esta primeira crónica é, acima de tudo, um gesto de compromisso. Compromisso com a liberdade como valor inegociável, com a verdade como dever público, com a responsabilidade como condição da cidadania, com a soberania como expressão da dignidade democrática. Não é uma convocatória à militância, nem um apelo sentimental ao reformismo bem-pensante, e muito menos um catecismo doutrinário — é sobretudo uma proposta de reencontro com fundamentos esquecidos, numa época em que pensar por conta própria se tornou acto de ousadia e em que recusar alinhar se tornou suspeita de deslealdade.
Recusemos, pois, o niilismo de quem já não acredita em nada, mas também o partidarismo de quem tudo reduz à luta tribal entre etiquetas. Nenhum dos dois serve a democracia. Ambos servem, aliás, os poderes instalados: o niilismo, porque paralisa; o partidarismo, porque divide. Entre a apatia e o automatismo, proponho outra via: a da consciência — a consciência de quem decide pensar com clareza, agir com coerência, resistir com responsabilidade. Não se trata de propor utopias — mas de recuperar aquilo que foi abandonado: o valor da palavra, o peso do juízo, o sentido da liberdade, a nobreza da responsabilidade cívica.
Por isso, deixo um convite exigente ao leitor: não peço adesão, mas atenção; não solicito concordância, mas presença, porque não escrevo para os que procuram pertença, mas para os que procuram critério. Escrevo para aqueles que se cansaram de slogans e desconfiam das unanimidades. Escrevo para os que suspeitam que a política não se reduz a campanhas, que o Jornalismo não se esgota em soundbites, que a cidadania não pode viver de indignações partilhadas. Escrevo para aqueles que ainda acreditam que viver livre é mais do que ter direitos — é ter deveres, critérios, memória, responsabilidade.
Vivemos tempos em que a ambiguidade é premiada, a coragem punida, a lucidez silenciada. Por isso, não proponho consolo, mas discernimento. É esse o convite. E é também o desafio.
1. Quando falta o corpo: um caso recente em Portugal
O recente acórdão do tribunal do júri em Aveiro (Portugal), no caso da chamada “grávida da Murtosa” voltou a colocar sob os holofotes da opinião pública uma das questões mais complexas do direito processual penal: pode haver condenação por homicídio quando o corpo da suposta vítima nunca apareceu? E que tipo de evidências são juridicamente aceitáveis para presumir a morte e responsabilizar criminalmente um arguido?
Em Portugal, o desaparecimento de uma pessoa pode, ao fim de certo tempo, dar lugar à presunção de morte por via civil (artigos 114.º e seguintes do Código Civil Português). Contudo, essa presunção não se confunde com a prova da morte exigida no processo penal. Para condenar por homicídio, o tribunal tem de estar convencido, para além de dúvida razoável, de que a pessoa está efectivamente morta e de que essa morte foi causada por um acto humano. Sem corpo, essa prova exige um raciocínio indutivo sustentado em evidência indireta, o que levanta desafios éticos, epistemológicos e práticos.
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2. Os Estados Unidos: condenações com base em indícios
Nos Estados Unidos, onde centenas de condenações por homicídio sem corpo já ocorreram, o ex-procurador Tad DiBiase compilou e analisou centenas de casos (mais concretamente 399). No seu livro “No-Body Homicide Cases, A Pratical Guide to Investigaating, Prosecuting, and Winning Cases When the Victim is Missing”, DiBiase identifica três pilares essenciais para a prova indiciária em tais situações:
Motivo claro e documentado, como conflitos familiares, relações abusivas ou interesses patrimoniais;
Evidência circunstancial coerente e cumulativa, como testemunhos, mudanças abruptas no comportamento do arguido, desaparecimento inexplicável da vítima, e cessação de rotinas e contactos;
Evidência forense indireta, como vestígios hemáticos, ADN, pegadas, geolocalização, ou buscas online comprometedoras.
Segundo o próprio DiBiase, até Setembro de 2024 registaram-se 604 julgamentos por homicídios sem corpo nos EUA, com uma taxa de condenação de cerca de 87%. Esses números, também confirmados pelo FBI em mais de 660 casos, mostram que a ausência de corpo não impede uma condenação, mas também revelam o peso crescente da prova indireta no processo penal moderno.
Plataformas como www.nobodycases.com ou www.charleyproject.org reúnem dezenas de casos em que a investigação digital, os metadados, os comportamentos suspeitos e os testemunhos indiretos permitiram condenações sem corpo. Mas essa mesma tendência tem levantado preocupações legítimas sobre a margem de erro nos julgamentos baseados exclusivamente em indícios. Como adverte DiBiase, “a ausência de um corpo não é ausência de um crime, mas obriga a uma investigação mais difícil, mais longa e com muito menos margem para erros”.
O National Registry of Exonerations dos EUA reporta que, desde 1963, pelo menos 1.226 pessoas foram exoneradas de condenações por homicídio (ou seja, viram as suas condenações anuladas), muitas das quais baseadas em provas circunstanciais ou técnicas forenses posteriormente invalidadas. Destas, 381 envolviam erro ou má conduta processual grave.
Em 2024, das 147 exonerações ocorridas nos EUA, 85 ocorreram em casos de homicídio (57,82%), dos quais 67 tiveram como causa a má conduta oficial, que pode incluir a falha em divulgar provas exculpatórias à defesa, casos de adulteração de prova, perjúrio, má conduta policial em interrogatórios, desonestidade do Ministério Público no tribunal, ou má conduta forense.
Mais alarmante ainda: 51 do total das exonerações, onde se incluem os casos de homicídio, foram classificados como “no-crime”, ou seja, em que se concluiu mais tarde que nenhuma morte ocorreu. A média de tempo passado na prisão por estes inocentes é superior a dez anos. Réus negros, em particular, enfrentam um risco desproporcional: são exonerados por homicídio a uma taxa até sete vezes superior à dos brancos e, em média, passam mais tempo presos antes da reversão judicial.
Entre os casos mais emblemáticos estão: o caso de Lawrence Martin que foi preso sob a lei “Three Strikes” por posse de faca num contexto sem crime — exonerado em 2020; o de Clifford Williams Jr. & Hubert Nathan Meyers, que passaram 42 anos presos por homicídio que não cometeram, e só foram exonerados em 2019; e alguns casos de homicídio infantil “no-crime”, em que 53 réus foram condenados e depois exonerados, com base em diagnósticos forenses errados (ex: “shaken baby syndrome”).
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3. Espanha: o precedente de Ramón Laso
Mesmo na Europa, onde os tribunais tendem a tratar com maior cepticismo os casos de pretenso homicídio sem cadáver, surgem algumas decisões paradigmáticas em Espanha, França, Alemanha ou o Reino Unido, demonstrativas de que, mesmo sem corpo, ainda é possível condenar, mas apenas com evidência indiciária técnica irrepreensível.
A acusação e posterior condenação baseou-se em provas como o ADN encontrado em ferramentas e o rastreamento por GPS e telemóvel, demonstrando que o “Reo” foi a última pessoa a ter estado com ambas as vítimas. Esta condenação foi confirmada pelo Supremo Tribunal Espanhol em 2016.
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4. França: o caso Narumi Kurosaki e a revisão judicial
Entretanto, em 26 de Fevereiro de 2025, o Tribunal de Cassação, o mais alto tribunal de apelações de França, ordenou novo julgamento porquanto ficou demonstrado que os investigadores omitiram evidências da equipa de defesa.
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5. Alemanha: condenação sem corpo… e reabilitação póstuma
Na Baviera, Alemanha, o caso de Todesfall Rudolf Rupp mostra a fragilidade das provas indiciárias. Hermine Rupp e as suas duas filhas, assim como Mathias E., namorado de uma delas, foram condenados em 13 de Maio de 2005 pelo homicídio de Rudolf a 13 de Outubro de 2001.
O corpo não apareceu, não existiam evidências robustas, para além de inúmeras contradições nas testemunhas da acusação, e a ausência do cadáver foi justificada pelo facto dos culpados terem morto a vítima e seguidamente desmembraram-no e deram como alimento aos cães. Toda a prova se baseou exclusivamente nas confissões supostamente “voluntárias” dos Réus.
Em Fevereiro de 2009 o carro de Rudolf foi encontrado e retirado do Rio Danúbio com seu corpo ainda no banco do motorista e nenhum sinal de prática de crime.
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6. Reino Unido: confissões falsas e vítimas vivas
Em Dezembro de 2003, no Reino Unido, Harry MacKenney e Terry Pinfold, viram anuladas as suas condenações de 1980 por vários homicídios cujos corpos nunca foram encontrados.
As suas condenações, foram baseadas na confissão de um suposto co-autor, John Bruce Childs que se encontrava a cumprir pena de prisão por outros crimes, que confessou e implicou MacKenney e Pinfold na morte de Terence Eve e mais cinco pessoas, que tinham desaparecido no período entre Novembro de 1974 e Outubro 1978, invocando que estes geriam um negócio como assassinos contratados.
Em 1980, Pinfold foi julgado por quatro assassinatos e MacKenney por seis. Não havia evidências de que as seis pretensas vítimas estivessem mortas, excepto para o testemunho de Bruce Childs. Pinfold foi condenado pelo homicídio de Eve. MacKenney foi condenado por quatro homicídios, mas foi absolvido pelo de Eve.
Em 1986, Childs retratou as suas declarações em julgamento e disse que testemunhou falsamente porque os promotores lhe ofereceram “o incentivo de que minha ‘cooperação’ no julgamento garantiria a sua libertação antecipada da prisão”.
Uma das razões apontadas para o facto da Scotland Yard ter protegido a nova identidade de Terence Eve, a ponto de permitir que Terry Pinfold e Harry MacKenney fossem julgados, condenados e presos por mais de duas décadas por um crime hediondo que nunca aconteceu, e pelo homicídio de mais cinco pessoas de que não existe qualquer evidência que estejam mortas, foi a existência de uma política/prática entre algumas polícias de protecção dos informadores, ainda que sacrificando pessoas inocentes.
Por exemplo, em Janeiro de 2001 o FBI foi exposto publicamente por acusar injustamente e conseguir a condenação de quatro pessoas pela morte de Edward Teddy Deegan em 1965. Os condenados passaram décadas na prisão. Louis Greco e Henry Tameleo acabaram por falecer enquanto estavam recluídos. Peter Limone e Joseph Salvati foram libertados em 2001.
Veio também a demonstrar-se que a testemunha principal da acusação, Joseph Barboza, mentiu para proteger um companheiro que era informador do FBI, e o FBI sempre o soube. A juíza Nancy Gertner afirmou que a postura do governo neste caso era “absurda”.
7. Brasil: o caso Eliza Samudio e as zonas cinzentas da justiça penal
Em Junho de 2010, a modelo brasileira Eliza Silva Samudio desapareceu após alegar que o futebolista Bruno Fernandes, então guarda-redes do Flamengo, era pai do seu filho. O corpo nunca foi encontrado. Ainda assim, Bruno e outros coarguidos foram condenados por homicídio e ocultação de cadáver com base em testemunhos, confissões parciais, elementos circunstanciais e sinais de violência no local.
O caso gerou enorme atenção mediática e reacendeu o debate sobre julgamento por presunção narrativa. Em 2013, Bruno e outros arguidos foram julgados por um tribunal do júri e foram condenados pelo homicídio qualificado de Eliza, a penas de prisão efectiva entre os 17 anos e 6 meses e os 22 anos.
A ausência do corpo não foi um obstáculo às condenações, o processo assentou numa construção coerente, mas essencialmente indiciária, confirmando o poder da narrativa mesmo sem cadáver.
8. Portugal: entre a prudência judicial e a pressão pública
Ao contrário dos EUA, a jurisprudência portuguesa tem sido cautelosa, mais em linha com a tradição de alguns países europeus. No caso conhecido como o da grávida da Murtosa, e de acordo com o que foi noticiado, o tribunal do júri terá absolvido o arguido, por, além do mais, considerar que não estava provado, para além de dúvida razoável, que Mónica tivesse morrido.
Os tribunais reconhecem que a inexistência de corpo não impede, por si só, a condenação, desde que a prova indiciária seja robusta, convergente e sem explicação alternativa plausível. A chave é a coerência interna do quadro probatório.
Mas justamente por serem casos em que falta a evidência mais objectiva, o cadáver, o grau de exigência da investigação tem de ser exponencialmente mais elevado. A tentação de encaixar factos em narrativas plausíveis, mas não demonstradas, multiplica o risco de erro. A prova indiciária deve formar um todo coerente, sim, mas também resistir ao contraditório e à dúvida razoável, sem lacunas ou interpretações forçadas.
O homicídio sem corpo desafia as categorias clássicas do processo penal. A ausência de cadáver é uma ausência simbólica e técnica que pode ser ultrapassada por investigações bem conduzidas e provas digitais e comportamentais. Mas também exige uma cultura judiciária capaz de lidar com a incerteza sem ceder ao desejo de punição e da pressão pública.
Na tensão entre a proteção da inocência e a busca da verdade, estes casos revelam-se como verdadeiros testes de maturidade para o sistema de justiça penal. E mostram que, quando o corpo não aparece, a prova tem de ser tanto mais densa quanto mais invisível é o crime. E, por isso mesmo, deve ser escrutinada com mais rigor.
Os casos de homicídio sem corpo não confrontam apenas a estrutura legal do processo penal, desafiam a percepção, os afetos e as expectativas de todos os actores do sistema de justiça. A ausência do cadáver abre espaço à dúvida, mas também ao preenchimento dessa ausência com suposições, desejos e vieses.
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9. A tentação narrativa: neurociência, cognição e enviesamento
9.1. A necessidade da análise interdisciplinar
Analisemos agora como é que estas situações se podem manifestar nas diferentes perspectivas, começando pela relevância de se fazer tal análise.
Rodrigo Santiago, Professor de Direito Processual Penal e Advogado com especial intervenção em processos crime mediáticos, costuma dizer que ensinava o processo penal tal como ele vem nos códigos e nos livros, e não como ele é muitas vezes aplicado nos tribunais.
Os anglo-saxónicos têm uma expressão interessante para esta divergência, a law in action e a law in books. Existem vários motivos para que este “fenómeno” ocorra, alguns são contextos histórico-políticos de determinado país, mas a maioria estão relacionadas com a natureza humana e as suas dinâmicas (na verdade, como nos ensina António Damásio, é redutor referirmo-nos à natureza humana em algumas dessas circunstâncias, em especial em situações de cooperar ou enganar, porquanto elas fazem parte sim da natureza dos organismos vivos).
Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal, Promotor de Justiça, Juiz de Direito, Juiz Desembargador e Advogado, elaborou uma reflexão, que tem tanto de impressiva, como de corajosa, desde logo porque em contracorrente com o status quo, identificando e assumindo a existência de um problema e elencando algumas das razões pelas quais ele existe e persiste na justiça brasileira, dos quais nos merecem relevo, por ora, os seguintes trechos relacionados com a assunção da questão:
“O texto deste trabalho surgiu de angústias e conversações… conversações sobre angústias. O lugar em que foi pensado não poderia ter sido melhor: o Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra. E os diálogos travados com o pensador Rui Cunha Martins, no âmbito de um projeto mais alargado, de reflexão sobre a construção sócio-político-econômica das categorias centrais do processo penal teria de rumar para o tema central das democracias em Estados cuja tradição autoritária consolidara-se fortemente no século XX.
Como investigador do processo penal brasileiro incomodava-me a persistente evocação de práticas autoritárias em um processo penal cujas linhas gerais, traçadas pela Constituição de 1988, não comportava interpretação dessa natureza.
Sem dúvida que o estado da arte do processo penal, como saber jurídico, pouco podia socorrer-me em minhas aflições. Afinal, o passar de olhos pela literatura sobre o assunto no Brasil, malgrado as distintas densidades das abordagens, parecia indicar o sucesso do processo democrático em dotar o Sistema de Justiça Criminal das ferramentas jurídicas adequadas para harmonizar o processo penal com as orientações extraídas dos principais textos de direitos humanos.
Como magistrado eu sabia que isso, porém, não correspondia à realidade onde quer que o Sistema de Justiça Criminal se manifeste.
A questão, portanto, residia em interrogar o que assegurava a permanência das citadas práticas autoritárias, em um ambiente aparentemente esquizofrênico no qual discurso e ação estavam visivelmente desencontrados.
Claro que um problema dessa magnitude é bastante complexo e não se presta a ser abordado ou explicado por um ângulo exclusivo.” (ob. citada em referências, pág. 11 e 12).
Alexandre Morais da Rosa, Professor de Direito e Juiz de Direito e Salah H. Khaled Jr., Professor de Direito, além do mais, em Sistemas Processuais Penais, também tocam na “ferida”, de forma bastante marcante:
“A Constituição brasileira completará trinta anos em 2018. Para um país com pouca tradição democrática como o Brasil, trata-se de uma data marcante, pois estamos historicamente acostumados a testemunhar a ruptura autoritária da ordem política. No entanto, não temos muito que comemorar: seu déficit de efetividade é claramente visível, particularmente no que se refere ao âmbito das práticas punitivas. Os atores do sistema penal permanecem propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada do devido processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo.
No que diz respeito ao universo jurídico-penal, a Constituição representa uma abertura democrática em sede processual, consagrando um sistema eminentemente acusatório. No entanto, continua irrealizada sua promessa acusatória, uma vez que nosso sistema processual penal ainda é animado por uma doentia ambição de verdade, que se recusa a arrefecer. Em nome dessa insaciável busca, permanece imperando um processo penal do inimigo, cujo sentido consiste na obtenção da condenação a qualquer custo.
O fetiche pela legislação infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias e antidemocráticas. Nada parece impedir a continuidade de sua aplicação e muito menos que diante da perspectiva de um novo código, os juízes se manifestam temerosos com a possibilidade de retirada de poderes que lhes permitam buscar a verdade real. Ainda temos que avançar e muito, pois permanecemos presos a um núcleo de pensamento autoritário que é preciso urgentemente superar para fortalecer a democracia.” (ob. citada em referências, pág. 22 e 23).
Da mesma forma que o Brasil, também Portugal teve um regime autoritário que se consolidou fortemente no Séc. XX. Os códigos e as normas mudam, mas as mentalidades e as práticas não mudam por decreto, levam o seu tempo.
Deste lado do Atlântico também existem algumas vozes que alertam para algumas divergências, entre teoria e prática, no âmbito do direito aplicado nos tribunais. Para tanto, veja-se o que o Juiz Desembargador Jubilado Eurico Reis (de nome completo, Eurico José Marques dos Reis), escreveu num artigo de 2021 da Revista de Direito Comercial:
“E como nunca será demais repetir, o direito a ver integralmente cumprido, na prática quotidiana (Law in action), que não apenas na proclamação que consta de inúmeros diplomas legislativos (Law in books), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso e mediante processo equitativo [para usar a mundialmente conhecida expressão em língua inglesa, sendo que foi nesse ambiente cultural/jurídico que o conceito foi construído e apresentado pela primeira vez], constitui um pilar fundamental que dá corpo a um Princípio Ético sem cuja efectiva consagração não existe verdadeiramente um normal funcionamento das instituições do Estado de Direito.” (ob. citada em referências, ponto 44, pág. 779).
O primeiro passo para mitigar tais dissonâncias é a sua tomada de consciência, como em grande parte das situações em que é preciso resolver algo. Esta temática, sobretudo no âmbito do processo penal e dos seus imensos impactos, merece estudo autónomo, pelo que não nos alongaremos por ora. Deixemos pois, apenas uma breve introdução do problema (e sim, infelizmente, configura um problema).
No conceito utilizado por Nassim Nicholas Taleb – Professor Jubilado da cadeira de Engenharia de Risco no Tandon School of Engineering do Polytechnic Institute da New York University, autor do best-seller O Cisne Negro, e que teve como um dos seus principais temas de estudo a tomada de decisões num sistema opaco –, o Direito, tal como a Economia, entre outras áreas do saber, são ciências essencialmente normativas, baseadas numa perspectiva kantiana, do é porque deve ser, que permite lucubrações filosóficas muito bem elaboradas e sustentadas mas, em determinadas circunstâncias, têm pouca ou nenhuma adesão com a realidade (law in action versus law in books). Contrariamente, as ciências positivas baseiam-se no comportamento real das pessoas. (ob. citada em referências, pág. 227 e 228).
Isto é tanto mais assim, quanto maior for a relevância das emoções na aplicação de determinada teoria, o que em termos de ciências jurídicas, ocorre com especial relevância nas disciplinas de Direito adjectivo, como é o caso do processo civil, mas sobretudo no processo penal. Para que exista uma correcta aplicação das diversas teorias, bem como do que resulta das mesmas em sede de legislação processual, é fundamental a observação de estudos empíricos. Quando eles não existem, maior é a probabilidade de estarmos a cometer erros.
Só os estudos de campo, testados e replicados, permitem perceber se o “é porque deve ser” é confirmado na prática, ou se o resultado se afasta largamente do objectivado aquando da elaboração da norma.
Em países como Portugal, são conhecidos poucos estudos empíricos (e infelizmente também não existe grande incentivo para que estes se realizem) que analisem de forma interdisciplinar, se os vários momentos de tomada de decisão no processo penal estão a ser bem aplicados, ou se existem desvios na sua concretização que urgem correcção face ao princípios subjacentes e, em caso afirmativo, em que termos deverá esta ser efectivada.
No entanto, são conhecidos inúmeros estudos internacionais das mais diversas áreas do saber que podem, e devem, ser observados e que nos podem auxiliar a melhorar esses mesmos processos de tomada de decisão que ocorrem ao longo de um processo penal.
Aury Lopes Jr., Professor de Direito Processual Penal e Advogado Criminalista, enuncia muito bem a necessidade de uma visão interdisciplinar quando refere que: “vivemos em uma sociedade complexa, em que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a todos de forma indiscriminada. Concomitantemente, é uma sociedade regida pela velocidade e dominada pela lógica do tempo curto. Toda essa aceleração potencializa o risco.
Alheio a tudo isso, o direito opera com construções técnicas artificiais, recorrendo a mitos como “segurança jurídica”, “verdade real”, “reversibilidade de medidas” etc. Em outros momentos, parece correr atrás do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acompanhar o “tempo da sociedade”. Surgem então alquimias do estilo “antecipação de tutela”, “aceleração procedimental” etc.
O conflito entre a dinâmica social e a jurídica é inevitável, evidenciando uma vez mais a falência do monólogo científico diante da complexidade imposta pela sociedade contemporânea. Nossa abordagem é introdutória, um convite à reflexão pelo viés interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incursão para além de um saber compartimentado. Sem esquecer que, em meio a tudo isso, está alguém sendo punido pelo processo e, se condenado, sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa.” (Lopes Jr., Aury, ob. melhor citada em referências, pág. 45 e 46).
Os elementos da investigação, pressionados pela urgência da resolução e pela visibilidade mediática, enfrentam um dilema: quanto mais ausência de provas físicas, maior o risco de se saltar para conclusões por associação e do posterior viés de confirmação. A tendência para “amarrar o caso” à hipótese inicial compromete o escrutínio de outras possibilidades, criando uma visão de túnel. A ciência forense, quando usada como muleta narrativa em vez de ferramenta de validação, torna-se um instrumento de erro.
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9.2. Sistema 1 e vieses
“Um traço essencial da constituição da máquina associativa é representar apenas ideias ativadas. A informação que não é evocada (mesmo de forma inconsciente) da memória é como se não existisse. O Sistema 1 é excelente na construção da melhor história possível que incorpore ideias ativadas no momento, mas não permite (nem pode) informações que não possui.
A medida do sucesso para o Sistema 1 é a coerência da história que consegue criar. A quantidade e a qualidade dos dados em que a história se baseia são em grande parte irrelevantes. Quando a informação é escassa, o que ocorre com frequência, o Sistema 1 opera como uma máquina de saltar para conclusões.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 117).
Na sequência desta citação de Daniel Kahneman – que em 2002 recebeu o Prémio Nobel da Economia por uma investigação pioneira na área da Psicologia (o prémio atribuído em Economia denomina-se Prémio do Banco da Suécia em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel – foi atribuído pela primeira vez em 1969), sobre o modelo racional que preside à tomada de decisões, trabalho que teve um impacto profundo em campos como a Economia, a Medicina, ou a Política. Foi professor de Psicologia e de Relações Institucionais na Princeton School of Public and International Affairs –, importa perceber que Sistema 1 e Sistema 2 são metáforas que alguns autores utilizam para a forma de funcionamento do cérebro, de forma mais intuitiva, associativa e de resposta mais rápida ou de modo mais ponderado e não tão célere.
A propósito das metáforas sobre o cérebro, Lisa Feldman Barrett –Investigadora no campo da Psicologia e Neurociência, especialista mundial na Psicologia das emoções, Professora de Psicologia na Northeastern University, com ligação à Harvard Medical School e Massachusetts General Hospital, onde dirige o Center for Law, Brain & Behavior –, observou o seguinte: “Se ouviram dizer que o lado esquerdo do nosso cérebro é lógico e o lado direito é criativo, isso é apenas uma metáfora. Tal como a ideia de que o nosso cérebro tem um «Sistema 1» para respostas rápidas, instintivas, e um «Sistema 2» para um processamento mais lento e reflexivo, conceitos discutidos no livro Pensar, Depressa e Devagar, do psicólogo Daniel Kahneman. (Kahneman é muito claro ao dizer que os Sistemas 1 e 2 são metáforas sobre a mente; mas frequentemente, são confundidos com estruturas cerebrais).” (“7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, pág. 41 e 42).
Tenhamos presente que o cérebro funciona por previsão, com base nas informações existentes no nosso corpo, pelo que em situações de investigação criminal contribuirão as experiências passadas e vivenciadas pelos investigadores directa ou indirectamente, a que acrescem os dados sensoriais que recebemos do mundo exterior (vd. por todos Barrett, Lisa Feldman, “7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, Lição n.º 4, pág. 79 a 97).
Situações como as investigações de homicídio com alta exposição mediática, podem gerar enorme pressão nos investigadores, tendo em vista uma resolução tão rápida quanto possível da investigação. E é aqui que, com base nas experiências passadas, o cérebro dos investigadores lhes pode pregar uma rasteira, ou seja, existe a possibilidade de partirem de palpites para hipóteses de trabalho demasiado delimitadas, descurando ou até ignorando os indícios que surgem em sentido contrário. Tais circunstâncias podem ter como resultado a tentação de encaixar indícios em narrativas pré-existentes e não construírem narrativas a partir do aparecimento dos indícios… com a elasticidade investigatória necessária para alterar rumos à medida que as evidências vão surgindo.
Assim nos explicam Daniel Kahneman, Olivier Sibony – Professor de Estratégia Empresarial e Estratégia Corporativa na HEC Paris Business School, escritor e consultor especializado em tomada de decisões estratégicas e organização de processo de decisão – e Cass R. Sunstein – Professor em Harvard, onde dirige o Programa de Economia Comportamental e Políticas Públicas. Entre 2009 e 2012, esteve à frente do gabinete para a Informação e Questões Regulamentares, na Casa Branca, e, entre 2013 e 2014, fez parte do Grupo de Estudo criado pelo presidente Barack Obama para Tecnologias da Informação e Comunicações. Em 2018, recebeu o Prémio Holberg do governo da Noruega, por vezes descrito como o equivalente ao Prémio Nobel do Direito e das Humanidades. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde nomeou-o Presidente do seu grupo de consultoria técnica sobre Insights Comportamentais e Ciências para a Saúde: “Este exemplo ilustra um tipo diferente de enviesamento, a que chamamos enviesamento de conclusão, ou juízo prematuro. A exemplo de Lucas, começamos muitas vezes o processo de formulação de um juízo com uma inclinação para chegar a uma determinada conclusão. Quando fazemos isso, deixamos o nosso rápido e intuitivo Sistema 1 de pensamento sugerir uma conclusão. Ou tiramos essa conclusão precipitada e ignoramos o processo de reunir e integrar informações, ou então mobilizamos o Sistema 2 de pensamento – envolvendo-nos em pensamento deliberado – para conceber argumentos que apoiam o nosso juízo prematuro. Neste caso, a prova será selectiva e distorcida: devido ao enviesamento de confirmação e ao enviesamento de desejabilidade, tendemos a reunir e interpretar elementos de prova de forma selectiva para beneficiar um juízo em que já acreditamos ou que gostaríamos que fosse verdadeiro.
As pessoas apresentam muitas vezes racionalizações plausíveis para os seus juízos e pensam que elas são a causa das suas convicções. Um bom teste ao papel do juízo prematuro é imaginar que os argumentos que parecem apoiar a nossa convicção são de repente considerados inválidos.” (ob. citada em referências pág. 206 e 207).
O elevado risco deste modo de actuação, é que podem existir linhas de investigação que faria todo o sentido serem analisadas com base nos indícios já recolhidos, mas que pelo facto de estarem em contradição, ou até desmontarem por completo as hipóteses de trabalho em curso, são ignoradas. A coerência excessiva entra em acção e os erros podem acumular-se sem que os investigadores se apercebam: os vieses de confirmação fazem o seu trabalho e apenas os indícios que encaixam na narrativa são valorizados.
Conforme nos ensina Daniel Kahneman: “Não se consegue evitar lidar com a limitada informação que se possui como se fosse tudo aquilo que há para saber. Constroem-se as melhores histórias possíveis a partir da informação disponível e, se for uma boa história, acredita-se nela. Paradoxalmente, é mais fácil construir uma história coerente quando se sabe pouco, quando há menos peças para encaixar no puzzle. A nossa reconfortante convicção de que o mundo faz sentido baseia-se num alicerce seguro: a nossa capacidade quase ilimitada de ignorar a nossa ignorância.” (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 265 e 266).
Vale a pena recordar António Damásio, Médico, Neurologista e Neurocientista de renome internacional, conhecido pelas suas contribuições pioneiras para a compreensão das relações entre o cérebro, as emoções e a racionalidade. Professor da cátedra David Dornsife de Neurociência, Psicologia e Filosofia, bem como Director do Brain and Creativity Institute, que fundou em 2006 na University of Southern California, em Los Angeles:
“O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória.” (ob. citada em referências, pág. 294).
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9.3. Confiança e ausência de dúvida
Como bem refere David J. Lieberman, Psicoterapeuta e líder internacionalmente reconhecido nos campos do comportamento humano e das relações interpessoais. Formou membros de todos os ramos das forças armadas dos EUA, bem como do FBI, da CIA e da NSA:
“As pessoas tendem a encontrar o que procuram e a ver o que esperam ver. Sempre em busca de provas que corroborem as nossas ideias, fechamos os olhos a qualquer prova que não esteja de acordo com as nossas expectativas. Este é um fenómeno conhecido como viés de confirmação. Concentramo-nos no que confirma o nosso pensamento, e subconscientemente filtramos as inconsistências.
Quando o viés de confirmação está em ação, a prova surge por si só – quase misticamente –, em padrões de identificação imediata. Isto faz parte do processo neurobiológico que o cérebro utiliza para dar sentidoao mundo. Os nossos cérebros basicamente criam ficheiros, tal como nós fazemos nos nossos computadores. No nosso cérebro, esta categorização enquadra-se no âmbito dos atalhos mentais, chamados heurística.
(…)
A heurística é útil para nos ajudar a resolver problemas de forma eficiente, mas pode conduzir a preconceitos que nos levam a entrar num modo «culpado até prova em contrário». Por exemplo, se um detetive que investiga o assassinato de uma mulher sabe que uma elevada percentagem de mulheres assassinadas são mortas pelos seus cônjuges, pode ser mais provável que assuma que o cônjuge o fez e comece a filtrar mentalmente as provas para se adequarem à sua teoria.” (ob. citada em referências, pág. 121 e 122).
Por seu turno, o Ministério Público com base na sua função acusatória, pode desenvolver uma narrativa incrivelmente persuasiva a partir de fragmentos, nomeadamente se tiver eco nos meios de comunicação social. Mas quando o corpo não está presente, essa construção depende fortemente de inferências.
Não podemos esquecer, como bem nos enuncia Aury Lopes Jr., que o Ministério Público no exercício da sua pretensão acusatória, formula a acusação, mas para que o devido processo Penal funcione: “é preciso que cada um ocupe o seu “lugar constitucionalmente demarcado” (clássica lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), com o MP acusando e provando (a carga da prova é dele), a defesa trazendo seus argumentos (sem carga probatória) e o juiz, julgando. Simples? Nem tanto, basta ver que a estrutura inquisitória e a cultura inquisitória (fortíssima) fazem com que se resista a essa estrutura dialética por vários motivos históricos, entre eles o mito da “busca da verdade real” e o anseio mítico pelo juiz justiceiro, que faça justiça mesmo que o acusador não produza prova suficiente.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 224).
Acresce que, como já vimos, o risco de viés da narrativa coerente é acentuado: o procurador que constrói uma história lógica e emocionalmente satisfatória tenderá a ignorar dados que a contradigam (sucessão e perpetuação de erros que já vêm da investigação).
Como adverte Daniel Kahneman: “A confiança subjetiva num juízo não é uma avaliação sensata da probabilidade de esse juízo ser correto. A confiança é uma sensação, que reflete a coerência da informação e a facilidade cognitiva de a processar. É prudente levar as admissões de incerteza a sério, mas as declarações de elevada confiança dizem-vos principalmente que um indivíduo construiu uma história coerente na sua mente, não necessariamente que a história seja verdadeira.” (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências pág. 279).
Para a família da vítima, o desaparecimento é bastante doloroso, porque não há ritual de luto, nem corpo, nem sepultura.
O reencontro do corpo, segundo estudos qualitativos com famílias, é frequentemente o momento que marca o início do luto: subitamente, o processo ganha uma base sensorial e simbólica, permitindo às vítimas iniciarem a reconciliação emocional.
Na ausência do corpo, porque não foi encontrado, bem como em situações de absolvição do arguido, persiste uma situação de ambiguidade que dificulta o processo de encerramento e início do luto. Pauline Boss, Professora Emérita da University of Minnesota, membro da Associação Americana de Psicologia e da Associação Americana para Casamento e Terapia Familiar, e ex-presidente do Conselho Nacional de Relações Familiares, define este processo como ambiguous loss: sem corpo e sem condenação (embora o próprio processo judicial em si, seja muito difícil de suportar para os familiares das vítimas), não há rituais nem prova que simbolizem a morte e, portanto, a dor pode permanecer suspensa.
O sistema judicial é, muitas vezes, instrumentalizado como substituto do funeral: punir alguém torna-se a única forma de “fazer justiça”, o que pode pressionar as autoridades e os tribunais. Sobretudo se existirem meios de comunicação que já tenham providenciado “o pacote completo e fechado”, ou seja, tenham divulgado quem foi o autor do crime, de que modo o fez, e qual a motivação.
Casos sem corpo geram fascínio público e atraem mediatismo intenso. Isso tende a promover juízos precipitados, julgamentos paralelos e a exigência de “justiça emocional”.
Conforme nos descreve Morris B. Hoffman, Juiz Jubilado no Colorado, onde presidiu a várias divisões judiciais, incluindo o grande júri de Denver. Membro da MacArthur Research Network on Law and Neuroscience e investigador no Gruter Institute for Law and Behavioral Research, tem escrito e ensinado sobre direito penal, neurociência aplicada ao julgamento, história do júri e seleção de jurados:
“Nas minhas instruções iniciais aos jurados, esforço-me sempre por alertá-los para um problema fundamental: um julgamento é um processo profundamente antinatural, e o maior desafio será resistir à tentação de tirar conclusões antes do tempo. O ser humano não está feito para esperar passivamente até que todos os factos estejam em cima da mesa antes de julgar, muito menos para o fazer de forma linear, como exige o processo: primeiro uma parte, depois a outra. Julgamos continuamente, com base em fragmentos mínimos de informação, e esses juízos iniciais alteram profundamente a forma como recebemos e processamos o que vem a seguir, sobretudo aquilo que contradiz o que já decidimos.
O maior desafio para qualquer jurado é este: transformar-se de uma ‘máquina de julgamento instantâneo’ num recipiente paciente de julgamento ponderado.
Mas este problema não afeta apenas os jurados. Nos julgamentos sem júri, em que sou eu o decisor, há sempre um momento, por vezes cedo, por vezes tarde, em que se acende uma ‘luz’ na mente: parece que se vê o todo, que se compreende o essencial, que se antecipa o resultado. Tento lutar contra esse momento, voltar mentalmente ao estado de incerteza anterior, e até prestar atenção redobrada à prova que aponta noutra direção. Ainda assim, devo confessar: quando esse momento chega, raramente mudo de opinião quanto ao essencial.
Passei anos a pensar em formas de mitigar este problema, o do julgamento precoce, do veredito em piscar de olhos. A verdade é que esses momentos de “luz acesa” surgirão inevitavelmente. Fazem parte do modo como decidimos. Talvez o melhor que possamos fazer seja empurrá-los o mais possível para o fim do processo. E, para isso, talvez baste reconhecer que o problema existe, e obrigar o jurado, ou o juiz, a reconhecê-lo também. Recordá-los, e recordarmo-nos, de que o julgamento é um processo antinatural, em que pedimos aos decisores que resistam à sua tendência natural de saltar para conclusões.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 272, 274 e 275).
O fenómeno da justiça performativa, que analisámos no artigo Punir (e ver punir) sabe bem!, está aqui particularmente activo: sem cadáver, o espetáculo judicial substitui a prova.
Nos sistemas com jurados, os riscos poderão ser amplificados: a ausência do corpo é muitas vezes compensada por emoção, empatia com a vítima ou desconfiança do arguido.
Juízes togados, por seu lado, podem ser vítimas do viés da coerência institucional, para além do viés de confirmação: validar o trabalho da investigação e acusação com base na construção lógica interna, mesmo sem evidência física central.
“É importante sublinhar que o “viés confirmatório” é um processo inconsciente, que independe das boas ou más intenções do juiz, sendo um dos muitos erros cognitivos que pode o juiz incorrer nos diferentes processos decisórios que é chamado a realizar.
O viés confirmatório – confirmation bias –, explicam Morais da Rosa e Wojciechowski, constitui uma tendência natural das pessoas a procurarem ou favorecerem apenas as informações que corroborem os seus pontos de vista, hipóteses ou preconcepções, negligenciando evidências que apontem em sentido contrário. Parafraseando Cordero, é exatamente a prevalência da hipótese sobre os fatos. Ocorre quando o agente (pode ser o juiz ou, durante a investigação, a autoridade policial) primeiro decide e depois vai atrás da prova que (apenas serve para) confirmar a decisão já tomada, desconsiderando outras hipóteses. Primeiro decide “foi ele”, depois busca a prova exclusivamente confirmatória daa decisão já tomada. O viés de confirmação é o erro mais comum nas investigações e decisões judiciais, ainda que não seja o único, gerando graves injustiças.
Como apontam Alexandre e Paola, “as ideias são pegajosas”, conduzindo ao efeito perseverança. Por isso, é importante um agir contraintuitivo, que, consciente daa existência desse enviesamento, o agente busca atrasar ao máximo a tomada de decisões, estando cognitivamente aberto para confirmar ou negar a hipótese trazida.
O quadro mental é agravado pelo chamado “efeito aliança”, em que o juiz tendencialmente se orienta pela avaliação realizada pelo promotor. O juiz “vê não no advogado criminalista, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de padrão de orientação”. Inclusive, aponta a pesquisa, o “efeito atenção” diminui drasticamente tão logo o juiz termine sua inquirição e a defesa inicie suas perguntas, a ponto de serem completamente desprezadas na sentença as respostas dadas pelas testemunhas às perguntas do advogado de defesa.
Tudo isto acaba por constituir um “caldo cultural” onde o princípio do in dubio pro reo acaba sendo virado de ponta-cabeça – na expressão de Schünemann –, pois o advogado vê-se incumbido de provar a incorreção da denúncia! Entre as conclusões de Schünemann encontra-se a impactante constatação de que o juiz é “um terceiro inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 81 e 82).
Por outro lado, na ausência de corpo, que numa análise sumária poderá parecer uma grande mais-valia para o arguido, existe o outro lado da moeda pois nessas circunstâncias o arguido também não pode partir da análise do cadáver em todas as suas vertentes periciais, para poder demonstrar que, por esta ou aquela razão, não pode ter sido ele o autor do crime. Inclusive, ficam mais difíceis as situações de tentativa de direcionamento para um outro possível agente do crime, que são estratégias de defesa comuns, sobretudo em latitudes em que existe uma verdadeira investigação defensiva e obrigatoriedade de partilha de indícios entre investigação/acusação e defesa.
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9.4. Remorso e julgamento emocional
Nestas situações, a atitude do arguido em julgamento (frieza, silêncio, contradições) pode ser sobrevalorizada como “indício de culpa”, ainda que emocionalmente neutra ou até justificada por medo ou trauma por estar a passar por todo o processo. O direito ao silêncio, longe de proteger, pode aqui funcionar contra si, contribuindo para alimentar narrativas especulativas.
A ausência de corpo transforma o processo penal num campo de disputa entre lógicas narrativas, emoções colectivas e percepções enviesadas. Mais do que em qualquer outro crime, o homicídio sem cadáver exige da justiça não só provas indiciárias coerentes e irrepreensíveis, mas um sistema imune à sugestão, à simplificação e ao desejo social de punição.
Por seu turno, a ausência de um corpo no contexto de um possível homicídio não é apenas uma lacuna probatória: é um vazio simbólico que o cérebro humano tem dificuldade em aceitar. Do ponto de vista neurobiológico e cognitivo, isso tem consequências profundas para todos os envolvidos, não só no processo penal propriamente dito, como em toda a atmosfera envolvente.
Um vazio como a ausência de um corpo numa situação de possível homicídio, tende a ser preenchido pelo cérebro humano do mesmo modo que processa a falta de pormenores de um acontecimento passado, numa situação de reconstituição de memória episódica.
Tal como descrito por Charan Ranganath, Professor de Psicologia e Neurociência na University of California, e Director do Dynamic Memory Lab da mesma universidade. É um pesquisador líder no campo da memória, usando imagens cerebrais, modelagem computacional e estudos de indivíduos com distúrbios de memória para investigar como nos lembramos de eventos passados e como a memória afecta vários aspectos de nossas vidas: “Acredito decididamente que o hipocampo nos permite entrar num estado mental passado e invocar alguns pormenores de um acontecimento passado. Mas também concordo com a opinião de Bartlett de que, assim que regressamos ao passado, não reproduzimos simplesmente as coisas à medida que elas aconteceram. Se assim fosse, ao relembrar uma conversa telefónica de dez minutos, passaríamos dez minutos a reviver tudo o que experienciámos durante essa conversa. Não é isso que acontece. Pelo contrário, geralmente comprimimos essa experiência numa narrativa mais breve que capta a sua essência. Assim, o hipocampo pode levar-nos até algumas das unidades celulares que estavam ativas durante alguns momentos dessa conversa, mas continuamos a ter de utilizar esquemas na rede-padrão para dar sentido àquilo que estamos a recordar. Contudo, esta reconstrução é suscetível ao erro porque os esquemas captam o que geralmente acontece, não o que deveras aconteceu.
Quando recordamos, somos como detetives a tentar resolver um mistério ao juntar as peças de uma narrativa a partir de um conjunto limitado de pistas. Um detetive pode alicerçar um caso com base numa compreensão do motivo do assassino, o que pode ser útil, mas também pode levar a vieses. Da mesma forma, quando recordamos acontecimentos, o motivo pode ter um importante papel explicativo, ajudando-nos a dar sentido ao que que aconteceu. Dá sentido à ação, o que nos permite reunir fios de informação e tecê-los numa narrativa memorável. Mas suposições sobre as motivações das pessoas também podem estimular a nossa imaginação, levando-nos a preencher os espaços em branco de acontecimentos de formas que deformam as nossas narrativas daquilo que aconteceu.” (ob. citada em referências, pág. 82 e 83).
O cérebro humano detesta incerteza, sendo que estudos de neuroimagem mostram que a incerteza ou situações de tensão podem activar o circuito do stress, preparando o corpo para a acção, mais comumente conhecida pelo termo inglês fight or flight.
“Para iniciar a reação de lutar ou fugir, a amígdala ativa o hipotálamo. Com isso, envia sinais para os nossos nervos autonómicos, que controlam processos como a digestão e a respiração. O sistema nervoso simpático ativa então a reação de lutar ou fugir, levando as glândulas adrenais a libertarem duas hormonas da mesma família, a adrenalina e a noradrenalina, na corrente sanguínea.
As duas hormonas viajam pelo corpo, gerando um conjunto de alterações: o nosso ritmo cardíaco acelera, a respiração aumenta e o fluxo sanguíneo para os músculos cresce para lhes levar o máximo possível de oxigénio, caso precisemos de correr. Uma quantidade adicional de oxigénio viaja para o cérebro, fazendo-nos sentir alerta, e os nossos sentidos ficam mais despertos. Os níveis de açucar no sangue disparam, sendo libertado pelo fígado para alimentar os músculos.
Passados alguns segundos, o hipotálamo liberta um mensageiro químico que, através de uma reação em cadeia aciona a libertação de, entre outros, cortisol (uma hormona que conhecemos no Capítulo 2) pelas glândulas adrenais, que se situam por cima dos rins. Muitas vezes considerado a hormona do stress, o cortisol mantém o corpo num elevado estado de alerta, aumentando a pressão sanguínea e os níveis de glicose no sangue. É o cortisol que nos permite lidar com as situações tensas que duram mais do que alguns minutos.
Entretanto, quaisquer processos que não sejam necessários, e possam desperdiçar energia preciosa, são desligados. A digestão abranda ou acaba mesmo por parar, a produção de lágrimas e saliva sofre uma forte redução (gerando a sensação familiar de boca seca) e o precioso sangue é redirecionado para longe da pele, fazendo-nos ficar pálidos. O sistema imunitário é suprimido e, em casos extremos, os músculos da bexiga ficam relaxados. Libertar a urina que transportamos para reduzir o nosso peso poderá dar-nos aquela pequena melhoria na corrida que faz a diferença entre a vida e a morte. Estas duas vias, uma rápida mas de curta duração, viajando através dos nervos, e a outra mais lenta mas de maior duração, levada no sangue por substâncias químicas, significam que a reação durará o tempo que for preciso para nos livrar do perigo.” (Smith, Ginny, ob. citada em referências, pág. 88 e 89).
Este desencadear de reacções pode ocorrer a qualquer um dos intervenientes, inclusive na sala do tribunal em plena audiência. A intensidade com que as reacções do corpo se desenvolverão, terão a ver em grande medida, primeiro, com a rapidez do córtex pré-frontal em anular o que a amígdala iniciou, dizendo que foi falso alarme e que não existe um perigo real, segundo, que a pessoa não desenvolva um ataque de ansiedade, sem conseguir que o córtex pré-frontal anule a situação despoletada pela amígdala.
A maior ou menor duração deste processo nervoso-químico, vai ditar que tipo de consequências o corpo vai sentir ou somatizar, na medida em que a libertação de hormonas e a preparação do corpo para uma reacção física intensa (mas que depois não ocorre) pode ter efeitos desgastantes e até devastadores no estado físico e sobretudo psíquico da pessoa, diminuindo-lhe grandemente a capacidade mental.
Curiosamente, conforme nos adverte Ginny Smith, especialista em Neurociência e consultora de comunicação científica, uma das consequências deste tipo de situações, e sobretudo da existência de stress, é o facto deste ter a capacidade de nos tornar mais susceptíveis a vieses. (ob. citada em referências, pág. 216, adaptado).
Tudo isto, permite-nos perceber porque a ausência de corpo pode ser emocionalmente mais perturbadora do que a visão de um cadáver, independentemente do estado deste, porquanto esta ausência causa uma ideia de não resolução, de não encerramento de uma narrativa, que obviamente se agrava em situações de absolvição em sede de processo crime. Nas circunstâncias em que o processo tiver sido muito mediatizado, as pessoas, mesmo aquelas que têm conhecimentos técnicos, tendem a dizer que não foi feita justiça (porque nessas situações fazer-se justiça, significa obrigatoriamente a existência de uma condenação).
Voltando a David J. Lieberman: “O nosso desconforto crónico com a ambiguidade leva-nos a interpretações previsíveis, confortáveis e familiares, mesmo que sejam apenas representações parciais ou totalmente desconectadas da realidade… Outras coisas que não encaixam, ficam pelo caminho. Estamos a impor interpretações coerente. Vemos o mundo de uma forma muito mais coerente do que é.” (ob. citada em referências, pág. 124).
Acresce que esta ambiguidade gera o que a psicologia chama de “aversão à incerteza” (uncertainty aversion), que normalmente se relaciona com decisões mais punitivas (sobretudo com muita emoção subjacente).
Estudos de neurociência social, como o de Buckholtz – Neurocientista e Professor na Stanford University, no Departamento de Psicologia. A sua investigação foca-se nos mecanismos cerebrais da moralidade, da punição e da regulação do comportamento social. Recorrendo a neuroimagem funcional, modelação computacional e psicologia experimental, estuda como o cérebro processa normas, emoções e julgamentos, especialmente em contextos de justiça criminal – e Marois – neurocientista e Professor no Departamento de Psicologia da Vanderbilt University (EUA), onde dirige o Laboratório de Neurociência Cognitiva. O seu trabalho investiga os limites da atenção, da tomada de decisão e do controlo executivo, com ênfase na forma como o cérebro processa informação em contextos de sobrecarga e incerteza –, demonstram que o julgamento penal activa um circuito que integra emoção (amígdala), inferência de intenção (Junção Temporoparietal TPJ) e avaliação normativa (Córtex Pré-Frontal medial mPFC e Córtex Pré-Frontal DorsoLateral DLPFC). O castigo emerge da conjunção entre culpa presumida e dano sentido, mesmo que este último não seja empiricamente demonstrado, como sucede nos homicídios sem corpo. A punição, nestes casos, parece compensar cognitivamente a incerteza factual com a certeza emocional. E essa certeza é, como demonstram os autores, construída por processos cerebrais de generalização e inferência moral, não por evidência direta. (Buckholtz, Joshua W e Marois, René, ob. citada em referências, síntese adaptada).
Reiteramos, tal como descrito em Punir (e ver punir) sabe bem!, a punição activa os circuitos de recompensa, incluindo o núcleo accumbens, associado à dopamina. O desejo de ver punido o alegado autor de um homicídio sem corpo pode, assim, funcionar como compensação emocional da incerteza.
O cérebro prefere claramente uma história errada ou com lacunas mas completa, do que uma verdade incompleta. Este mecanismo explica por que razão a comunidade, os jurados, e até os magistrados podem, inconscientemente, favorecer uma narrativa acusatória coerente em detrimento da dúvida razoável.
“Quando os jurados não recebem uma narrativa socialmente coerente, tendem a inventá-la. Tal como bebés que atribuem intenções boas ou más a figuras geométricas em movimento, os jurados (e também os juízes) atribuem intenções morais às partes em conflito, mesmo que os advogados não apresentem o julgamento nesses termos. Mais impressionante ainda: os jurados, depois do veredito, reconstroem mentalmente as provas para que se tornem consistentes com a decisão tomada. Em entrevistas realizadas após o julgamento, verificou-se que muitos já nem se lembravam de elementos que contradiziam o veredito. Esta vasta literatura sobre narrativas permite inferir que, durante as deliberações, os jurados fazem o mesmo que fazem depois: constroem uma história a partir das provas, ignoram os factos que não se encaixam e sobrevalorizam os que servem a coerência da narrativa.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 278).
“A confiança que os indivíduos têm nas suas crenças depende sobretudo da qualidade da história que conseguem contar acerca daquilo que veem, mesmo que vejam pouco. Falhamos muitas vezes na admissão da possibilidade de o testemunho que deveria ser crítico para o nosso juízo estar ausente – só há aquilo que vemos. Além disso, o nosso sistema associativo tende a contentar-se com um padrão coerente de ativação e suprime a dúvida e a ambiguidade.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 120).
Como nos elucida Rui Cunha Martins, Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecciona nas áreas de Filosofia do Direito, Epistemologia Jurídica e Teoria Crítica. É investigador integrado no Instituto de História Contemporânea (IHC) e Professor visitante em várias universidades no Brasil, Alemanha e América Latina. A sua obra explora as interfaces entre direito, tempo, linguagem e imaginação, tendo refletido criticamente sobre a função hermenêutica dos tribunais, o conceito de justiça narrativa e a crise da imparcialidade judicial no mundo contemporâneo:
“Terceiro “operador de contágio” residente no dispositivo da convicção: a confiança. A confiança não se opõe propriamente à prova. É mais sério que isso, torna-a desnecessária. O que há para provar ali onde nenhuma inquietude, nenhuma incerteza e nenhuma perturbação na força ostensiva do real pode instalar-se? A confiança tem contrato implícito com a evidência.
Epistemicamente falando, o exercício da confiança corresponderá a uma crença declaradamente não fundada. Ela “é um redobramento, um ´crer na crença´, uma disponibilidade para aderir que sai para fora da lógica da argumentação. A confiança, em termos empíricos, não é mesmo questão de argumento. O seu suporte é antes o de uma primordialidade roubada à discussão. Uma imagem do mundo´ que se aceita indiscutível – aquela onde o nosso questionamento retrospectivo sobre a ordem das coisas e sobre nós próprios acaba por se deter, incapaz ou sem vontade de cavar mais fundo – e que, a partir desse momento, se institui como base primordial de confiança, passando a sedimentar a nossa posição no mundo. Eis o que faz dos padrões de confiança uma espécie de “gonzos imóveis das práticas de que eles constituem as regras”.” (ob. citada em referências, pág. 34 e 35).
A ausência de cadáver gera uma lacuna sensorial que o cérebro tenta preencher com sinais substitutivos: olhares, posturas, contradições verbais, passados conturbados. Como vimos, o córtex pré-frontal medial e o circuito da teoria da mente (junção temporoparietal e sulco temporal superior) avaliam intenções, mas fazem-no com base em padrões arquétipos, ou seja, o cérebro procura encaixar o arguido num papel, por exemplo como mentiroso, como assassino, e, por vezes, ainda que de forma mais rara, como uma vítima de tudo o que lhe estão a fazer passar.
Este processo está na raiz da heurística da representatividade, em que o cérebro avalia a culpa com base na adesão ao “perfil típico” de culpado, mesmo sem prova empírica.
Em tais situações, o direito ao silêncio tende a ser interpretado por via racional como um mecanismo de proteção. Mas do ponto de vista neurológico e emocional, o silêncio perante a acusação é lido como dissonância, desvio ou manipulação, principalmente em contexto de alta emocionalidade colectiva.
Num estudo experimental com jurados simulados, Joseph Thomas, investigador e Mestre em Psicologia pela Northern Illinois University, com uma dissertação sobre comportamentos não verbais de arguidos e a sua influência nas decisões dos jurados, demonstrou que a exibição de remorso – expressa por choro, olhar cabisbaixo ou postura encolhida – gera simpatia e conduz com frequência a recomendações penais mais brandas. Curiosamente, tanto a ausência total como o excesso de emoção foram interpretados como sinais de culpa, enquanto uma resposta emocional ‘moderada’ foi percepcionada como mais aceitável e menos condenável.
Os participantes no estudo traziam consigo expectativas prévias sobre o modo como um arguido “culpado” se deve comportar. Quando essas expectativas eram violadas, tendiam a interpretar o desvio como sinal de frieza ou desumanização. Tal como o autor conclui, o comportamento não verbal do arguido – mesmo sem relevância jurídica direta – torna-se um factor determinante no juízo de culpabilidade e na severidade da pena sugerida. (Thomas, Joseph, ob. citada em referências, abstract, pág. 3 e 27, adaptado).
O cérebro social interpreta o silêncio como incongruente com a inocência. A ausência do corpo e o silêncio do arguido amplificam a lacuna manifesta: não há corpo, não há palavra, logo, há espaço para projecção.
Tal como nota a jurista norte-americana Susan Bandes, Professora na DePaul University College of Law, especialista em emoções no julgamento criminal, mesmo em processos de pena capital (pena de morte), onde a vida do arguido está em jogo, a avaliação do remorso baseia-se frequentemente em expressões faciais e posturas corporais durante o silêncio em julgamento. A ausência de palavras ou emoção visível é muitas vezes interpretada como frieza ou culpa. É o corpo que fala, mas a leitura desse corpo raramente é neutra.
Como salienta Bandes, mesmo que o remorso seja autêntico e profundo, dificilmente poderá ser adequadamente transmitido apenas por expressões faciais ou linguagem corporal. O problema não é apenas o fingimento: é a própria suposição de que o “íntimo” pode ser lido no rosto do outro, e que isso deve guiar decisões de vida ou morte. (Bandes, Susan A., ob. citada em referências, pág. 6 e 28, adaptado).
“As emoções não são reveladas de forma objetiva no rosto, na voz ou no corpo, apenas inferidas. Não é possível ‘ver’ remorso, raiva ou tristeza numa testemunha ou num arguido; só se pode formular suposições, umas mais informadas do que outras. Um julgamento justo exige sincronia entre quem vive a emoção (como o arguido) e quem a interpreta (como o juiz ou o jurado), mas essa sincronia é difícil, sobretudo quando existe distância emocional, ideológica ou étnica. A falta de empatia ou o desacordo político, por exemplo, podem tornar muito mais difícil reconhecer e compreender a emoção do outro.” E, como adverte Lisa Feldman Barrett, “as emoções não são expressas, exibidas ou reveladas de forma objetiva – só podem ser adivinhadas”. Daí que a frieza, o silêncio, ou a ausência de gestos codificados não possam ser lidos como sinais de culpa, apenas como projeções moldadas por contextos, expectativas e estereótipos.” (Barrett, Lisa Feldman, “How Emotions are Made, The secret life of the brain”, melhor citada em referências, pág. 244 e 245, adaptado).
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10. Últimas notas
A complexidade dos homicídios sem corpo transcende a prova penal e desafia os próprios alicerces da racionalidade judicial. Como vimos, a ausência do cadáver não é apenas uma dificuldade técnica de investigação ou de demonstração factual, mas um catalisador de enviesamentos cognitivos, de distorções emocionais e de pressões sociais intensas.
A tentação narrativa, os vieses de confirmação, a busca de coerência, o desejo de punição, o sofrimento das famílias e a influência mediática convergem para um terreno de altíssimo risco. E nesse terreno, o sistema judicial é chamado a decidir não apenas com base no que falta – o corpo –, mas sobretudo no que sobra: fragmentos de indícios, leituras emocionais e construções interpretativas. Exige-se, por isso, mais do que nunca, uma justiça epistémica: lúcida perante os seus próprios limites, crítica das suas tentações internas e consciente de que o erro judicial, nestes casos, não é apenas provável – é estruturalmente possível.
E é precisamente nestes casos que o princípio da presunção de inocência, tantas vezes invocado como mero enunciado retórico, deve ser elevado à sua dimensão mais plena: a de verdadeira garantia contra o colapso do racional sob o peso da emoção.
Em suma, quando falta o corpo, o julgamento decorre tanto no tribunal como no cérebro dos intervenientes (mais ainda do que em situações de existência de cadáver). O cérebro, por natureza, detesta o vácuo e tende a preenchê-lo, com medo, com suposições, com desejo de castigo. Por isso, a justiça sem cadáver tem de ser a mais exigente, a mais rigorosa e a mais fria das justiças. Porque todos os outros sistemas – o imunológico, o límbico e o mediático – já estarão em ebulição.
Em particular, o sistema mediático, muitas vezes formatado para entregar uma história antes do processo, tende a ocupar o espaço do corpo ausente com uma narrativa fechada, antecipando culpados, intenções e desfechos. A sua pressão simbólica pode, assim, não só moldar a opinião pública, como infiltrar-se, subtil mas persistentemente, nos próprios operadores judiciários.
Entre um culpado solto e um inocente condenado, a História ensinou-nos – nas masmorras, nos pelourinhos e nas fogueiras – que o verdadeiro erro da justiça não é falhar a punição, mas consagrá-la sem prova.
Quando não há corpo, que ao menos haja memória: da razão, da prudência e do primado da dúvida.
Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.
Referências:
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Uma pequena nota introdutória, no sentido de informar que a presente crónica deve ser lida em conjunto com a anterior “Punir (e ver punir) sabe bem!”, e que ambas são parte de um ensaio contínuo que se pretende levar a efeito sobre algumas questões no âmbito da Justiça.
Como explicar que um dos países mais pacíficos do mundo apresente níveis tão elevados de encarceramento e prisão preventiva?
1. O Paradoxo da Paz Punitiva
Em 2025, Portugal voltou a figurar entre os países mais pacíficos do mundo, alcançando o 7.º lugar entre 163 países avaliados, no Global Peace Index do Institute for Economics & Peace, ficando apenas atrás de nações como a Suíça, Singapura, Nova Zelândia, Áustria, Irlanda e Islândia, e à frente de países como a Dinamarca, a Eslovênia, o Canadá e a Finlândia, para citar alguns.
A criminalidade violenta a nível nacional, por comparação com a realidade internacional, é diminuta, tendo inclusive, alguma dela, vindo a baixar, por exemplo, o número de homicídios voluntários consumados participados tem vindo em queda (em contraciclo com a realidade europeia), registando em 2024 um dos números mais baixos dos últimos tempos (89), as tensões sociais são moderadas, e a população expressa níveis de sentimentos de segurança adequados, mesmo com uma comunicação social muito activa e a poder contribuir para o aumento de uma percepção de insegurança.
De acordo com os dados do Eurostat, em termos de criminalidade participada anualmente, por cem mil habitantes, Portugal está, reiteradamente, por exemplo: nos homicídios voluntários/ intencionais, a baixo da Bélgica, da Bulgária, da Dinamarca, da Alemanha, da Grécia, da França, de Chipre, da Áustria, da Polónia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia e da Noruega, em linha com Espanha e Países Baixos; na criminalidade sexual, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Estónia, da Irlanda, de Espanha, de França, do Luxemburgo, da Áustria, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega, e da Suíça.
Mesmo nos chamados crimes de roubo, Portugal encontra-se, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Irlanda, da França, de Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos, da Áustria, da Eslovênia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega e da Suíça.
Contudo, estes indicadores de tranquilidade social contrastam de forma abrupta com outros dados do sistema penal português: a taxa de reclusos por 100.000 habitantes é de cerca de 116, um valor superior à média da União Europeia (103) e praticamente em linha com a média da OCDE (117), que é bastante elevada por integrar países com valores altos, como os Estados Unidos da América (614), Turquia (366), Costa Rica (343), Chile (281), Israel (217), Hungria (203), Polónia (199), Colômbia (198) e México (174), segundo a Prison Policy Initiative.
Para além disso, segundo os relatórios SPACE (SPACE I e SPACE II) do Conselho da Europa, Portugal é consistentemente um dos países com maior duração média das penas de prisão efectiva e com uma das mais altas taxas de recurso à prisão preventiva. Isto significa que, não apenas se prende mais do que a maioria dos parceiros europeus, como se prende por mais tempo e mais cedo, frequentemente antes do julgamento.
No tocante à duração média das penas de prisão aplicadas em Portugal, permite suscitar dúvidas sobre a proporcionalidade das sanções aplicadas, especialmente num país onde os índices de criminalidade grave são relativamente baixos. Assim sendo, que racionalidade penal legitima a manutenção de pessoas presas durante 5, 10 ou mais anos, em contextos onde a reinserção e a reabilitação raramente são mais que fórmulas retóricas?
Em vários anos da última década, mais de 20% da população prisional portuguesa encontrava-se privada de liberdade sem condenação transitada em julgado, ou seja, por aplicação de medidas de coação, um número que coloca o país na faixa superior da Europa Ocidental.
Ora, esta realidade contraria o princípio basilar do direito penal democrático: a presunção de inocência. A prisão preventiva, que deveria ser excepcional e devidamente fundamentada, parece muitas vezes funcionar como instrumento antecipatório da punição, ou como meio de gestão processual perante atrasos e insuficiências do sistema judicial.
A taxa de encarceramento de Portugal ultrapassa inclusive a de alguns países com níveis de criminalidade e instabilidade significativamente superiores.
2. A Violação Sistemática das Garantias
A revisão crítica do uso da prisão, tanto preventiva como efectiva, deve ser uma prioridade para qualquer Estado que se pretenda verdadeiramente de Direito. Reduzir a taxa de reclusão e encurtar a duração das penas não significa leniência, mas sim compromisso com os princípios constitucionais da proporcionalidade, da legalidade e da dignidade da pessoa humana.
Portugal não precisa de prender mais. Precisa, sim, de julgar melhor, com mais imparcialidade, mais transparência, e menos medo de parecer brando quando estará, simplesmente, a ser justo.
A pergunta que se impõe é tão simples quanto inquietante: para que serve um sistema de justiça criminal severo num país objectivamente pacífico? Sobretudo, quando hoje é claro em todo o mundo, que uma maior punição não gera uma menor taxa de criminalidade, tendo sim, o efeito contrário.
A prisão, quando usada em excesso, não é apenas cara e ineficaz, é, sobretudo, injusta. A justiça criminal deve ser proporcional, cautelosa e centrada na dignidade humana. Num país como Portugal, continuar a prender tanto e por tanto tempo não é sinal de força institucional, mas de desajuste sistémico.
Está na altura de perguntar: será que a paz social que temos conquistado se constrói, ou se destrói, atrás das grades?
A Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar a presunção de inocência e o direito a estar presente no julgamento penal, continua por transpor devidamente em Portugal. Tanto assim que, em fevereiro de 2025, a Comissão Europeia formalmente instou Portugal a cumprir essa obrigação.
O incumprimento desta Diretiva contribui para práticas que comprometem gravemente os direitos fundamentais dos arguidos. Basta observar os comunicados regulares de alguns órgãos de polícia criminal, que frequentemente antecipam a culpa e descrevem os factos como provados (embora não o invoquem expressamente) antes mesmo de qualquer decisão judicial.
A Resolução do Parlamento Europeu de 28 de Fevereiro de 2024 sobre o Estado de Direito, destaca precisamente este tipo de preocupação com a efectividade das garantias processuais em vários Estados-Membros, entre eles Portugal.
O que explica então este paradoxo? Mais uma vez se questiona: Como pode um país pacífico encarcerar tanto? A resposta não se encontra no crime, mas provavelmente na estrutura e mentalidade dos intervenientes do próprio sistema de justiça.
Portugal parece encarcerar mais, não porque haja mais crime, mas porque o sistema judicial opta, reiteradamente, pela privação de liberdade como a principal resposta. A prisão, inclusive a preventiva, parece ter-se tornado uma rotina institucional, e não uma excepção rigorosamente ponderada.
A resposta não é simples, mas começa a delinear-se ao analisarmos os dados do World Justice Project (Rule of Law Index 2024). Portugal obtém uma pontuação de 0.59 (de 0 a 1) no indicador de “Justiça Criminal”, longe dos países do topo como Finlândia (0.79), Países Baixos (0.76) ou Noruega (0.78). Em particular, surgem fragilidades nos subindicadores de imparcialidade do sistema judicial criminal (situando-se em 28.º lugar em 31 países no ranking regional, ou seja, quase em último lugar!), no respeito pelas garantias dos arguidos e a ausência de discriminação institucional.
Curiosamente, ou talvez não, este indicador/índex (que ano após ano tem avaliado de forma preocupante a justiça criminal portuguesa) não tem merecido qualquer destaque na comunicação social portuguesa, ao contrário de outros bem mais favoráveis ao populismo penal.
3. Cultura Judicial e Pressão Mediática
O mais recente relatório do GREVIO (2025) – Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence (que faz um trabalho muito meritório no âmbito da violência contra as mulheres e da violência doméstica) –, referente a Portugal, e que foi divulgado nos média portugueses, dá ênfase a algumas das fragilidades apontadas ao sistema judicial português no tratamento de casos de violência contra as mulheres, com decisões que reproduzem estereótipos, culpabilizam as vítimas ou minimizam a gravidade da violência.
Infelizmente (no sentido de que seria menos mau para o velho Continente se fosse só um problema do sistema português), quando comparado com os outros relatórios, revela que Portugal não se encontra particularmente desalinhado face a outros países europeus monitorizados.
Por exemplo, a Áustria, a Dinamarca e a Finlândia, ainda que com reformas legislativas significativas (como a consagração do consentimento como critério central no crime de violação), enfrentam dificuldades semelhantes no plano jurisprudencial: persistência de decisões lenientes, resistência à incorporação da dimensão de género, e aplicação desigual da lei. Mesmo Espanha, considerada uma referência no combate à violência de género, enfrenta casos pontuais de revitimização judicial.
Uma leitura transversal dos relatórios GREVIO evidencia que o problema não reside apenas na moldura penal ou no grau de punição, mas na cultura jurídica e no perfil hermenêutico dominante entre os magistrados. Na verdade, a tendência punitiva do sistema de justiça criminal português não se traduz automaticamente num sistema mais eficaz ou justo em matéria de violência baseada no género, antes pelo contrário, pode coexistir com práticas judiciais que perpetuam desigualdades, desconfiança e ineficácia protectiva.
Com efeito, a dissonância entre os dados de segurança objectiva e os indicadores de severidade penal pode ser interpretada como um sintoma de um sistema que não responde proporcionalmente ao nível real de criminalidade, mas sim a pressões internas – mediáticas, institucionais ou corporativas – que favorecem uma lógica de controlo social e demonstração de força.
Em linguagem foucaultiana, poderíamos dizer que o sistema penal português funciona menos como resposta a riscos concretos e mais como mecanismo simbólico de gestão “disciplinar”, com especial incidência, como não poderia deixar de ser, sobre grupos vulneráveis.
A situação portuguesa, de uma possível hipertrofia punitiva num contexto de baixa criminalidade real (desde logo em termos comparativos internacionais), pode ser interpretada à luz do que vários criminologistas chamam de punitivismo estrutural. Ou seja, uma cultura penal enraizada que, apesar das garantias constitucionais, favorece:
– A detenção como ferramenta de investigação processual, e não como último recurso cautelar;
– Um conservadorismo judicial, com preferência por medidas privativas de liberdade;
– Pressão mediática e populismo penal, que associam a severidade à eficácia;
– A manutenção de um sistema judicial fechado sobre si mesmo, onde a responsabilidade pelas decisões excessivas raramente é escrutinada, onde, contrariamente a outras realidades, a assunção do erro judiciário é quase inexistente, prevalecendo fortemente em termos jurisprudenciais o critério da segurança jurídica face à dignidade do indivíduo, quase ignorando a possibilidade de terem sido cometidos erros na sua condenação – existindo como que um mito da infalibilidade da justiça criminal portuguesa, sem qualquer fundamento que o justifique, acrescendo ainda, a ausência de cultura de prestação de contas pelas decisões cautelares abusivas.
Em suma, é um modelo que persiste, não porque os factos o justifiquem, mas porque as instituições não são desafiadas a evoluir.
A razão profunda deste desajuste pode residir na herança sociocultural e institucional do autoritarismo português. Como referiu o sociólogo António Barreto no seu artigo “É difícil viver em Portugal” em 29 de Julho de 2023 no Jornal Público, os mitos da excelência nacional escondem uma realidade mais incómoda: impunidade dos poderosos, ineficácia da administração da justiça e desprezo pelo princípio da equidade.
A transição democrática não desmantelou inteiramente o ethos punitivo do Estado Novo. Muitos dos seus mecanismos de controlo social mantiveram-se institucionalmente activos, e a práctica penal continua, em larga medida, marcada pela presunção de culpa e pelo privilégio das instituições sobre a lei (um verdadeiro primado das instituições).
Este quadro é agravado por um contexto social em que, segundo o mais recente Inquérito às Competências dos Adultos da OCDE, os níveis de compreensão crítica e de literacia (também jurídica) da população adulta estão abaixo da média europeia. Tal contexto favorece um discurso populista punitivo e dificulta o escrutínio dos abusos institucionais.
O punitivismo penal, em sociedades com baixos níveis de criminalidade, não é só injusto: é irracional. Não reduz a reincidência, não aumenta a segurança objectiva, e descredibiliza a ideia de justiça como bem comum. Temos um sistema que prende muito, prende cedo (preventivamente), e prende por muito tempo — não por necessidade, mas por inércia, ideologia e pressão simbólica.
Reiteramos, a verdadeira pergunta é, pois: como se justifica tanta prisão num país tão pacífico?
A resposta pode estar no desequilíbrio entre legalidade formal e prática institucional. É tempo de recentrar o sistema penal nos seus fundamentos constitucionais: proporcionalidade, reinserção, presunção de inocência e respeito pela dignidade humana. Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos campeões da paz… e da prisão.
Mais grave: como é que perante este cenário, e estes dados objectivos, continuamos a ouvir por parte das forças políticas e da justiça, uma necessidade de aumento da moldura penal de alguns crimes, a possibilidade de criação de novos tipos de crime, bem como, propostas de redução de algumas garantias dos arguidos? Como é possível tamanha contradição? Por vezes esquecemos que o direito criminal é a ultima ratio de resposta de um Estado Democrático de Direito, e que não serve seguramente para resolver problemas da sociedade, que podem e devem ser resolvidos de outra forma.
4. Punitivismo Cognitivo e Neurobiologia do Medo
Para além do contexto histórico, provavelmente a criminologia, a sociologia, a psicologia cognitiva e a neurobiologia possam explicar um pouco desta “perturbação homeostática” das estruturas sociais ligadas à justiça. Deixemos alguns apontamentos breves, que merecerão textos autónomos oportunamente.
Independentemente dos níveis de criminalidade existentes num determinado país, propalar aumentos de penas e redução de garantias é fórmula com sucesso garantido junto da opinião pública.
A razão é simples, o cidadão recebe este tipo de informação colocando-se no papel de vítima, ou seja, como beneficiário deste tipo de medidas, gerando um sentimento de reforço da sua segurança, pelo que, facilmente lhes adere.
Depois, com base nesse apoio popular criado artificialmente, bradam-se aos quatros ventos a necessidade de aumentar o limite máximo (e por vezes também o mínimo) de algumas pena de prisão, mesmo nas situações em que as penas efectivamente aplicadas não se aproximam do limite superior da moldura penal (ainda antes do cúmulo da pena), ignorando que as razões de política criminal que justificam a criminalização de comportamentos, ou a alteração das suas molduras penais, não são (não podem ser) o apoio popular nesse sentido com pré-activação para o efeito.
Mas esta forma de manipulação e aproveitamento das “massas”, que contribui para a criação e manutenção de uma cultura punitiva, não é um fenómeno exclusivo português. A política Law and Order de Donald Trump é um exemplo disso mesmo, chegando ao ponto de prometer penas mais pesadas e construção de novas prisões, com amplo apoio popular (e obrigando os Democratas a colocar o mesmo tema na agenda, com receio de perderem base eleitoral), num dos períodos com mais baixa taxa de criminalidade violenta dos EUA nas últimas décadas.
Muitos teóricos do estudo do populismo penal consideram que o apogeu dessa tendência (com forte contaminação no discurso de políticos de outros países onde se inclui Portugal) se dá exactamente com Trump, recuperando o slogan Law and Order fortemente utilizado por Barry Goldwater nos anos 60´s do século XX. Aliás, o próprio se autointitulou “the law and order candidate” (na campanha de 2016) e em 2020 “your presidente of law and order”.
No entanto, a realidade tem demonstrado que existe ampla divergência entre o discurso e a práctica (sobretudo no que diz respeito à protecção de grupos a que pertencem aqueles que se encontram mais próximos, de que é disso exemplo mais recentemente a sua ordem executiva de 9 de Maio de 2025, intitulada Fighting Overcriminalization in Federal Regulations e a perseguição a Juízes que contrariem as suas ordens executivas).
David A. Graham, jornalista e editor sénior na revista The Atlantic, editou um livro em 2020, composto por uma coleção de artigos e ensaios que publicou durante a presidência de Trump, com um título bem sugestivo: “Trump Has Delivered Only Chaos”.
Importa referir que existem pessoas que geram e se alimentam do caos, e que não são apenas os motivos partidários que explicam o porquê de partilharem rumores políticos hostis nas redes sociais. Existe também um impulso psicológico profundo em certos indivíduos, designado como “necessidade de caos” (Need for Chaos), que os leva a querer destruir a ordem social e política estabelecida como forma de afirmação pessoal e ganho de estatuto, sendo, aparentemente, não uma perturbação ou um traço de personalidade, mas sim uma adaptação psicossocial em contextos de exclusão e frustração.
Pessoas com este comportamento, com especial proliferação nas redes sociais, contribuem grandemente para a desinformação e a instabilidade social, que gera insegurança e serve de terreno fértil para políticas criminais punitivas, como suposta forma de repor a ordem social.
É exactamente este “caldo de cultura” vigente e transversal à grande maioria de países do eixo ocidental, onde se inclui o nosso, que potencia o populismo penal. Acresce o facto de existir uma crise grave de sustentabilidade dos meios de comunicação social ditos tradicionais (mas não só, veja-se que os algoritmos da redes sociais também funcionam no mesmo sentido), que os leva a optar pelo caminho mais fácil (na maioria das vezes), para obtenção de audiências e clickbaites, onde, obviamente, a punição e o gosto pela mesma tem lugar de destaque, como já tivemos a oportunidade de escrever na crónica anterior.
Em Portugal existe ainda a circunstância de termos uma prática de violação de segredo de justiça, que alguns designam por selectiva (conforme demonstrado pelo projecto que resultou na obra “Murder In Our Midst”, melhor citada em referências), e que em muito contribui para derrubar a presunção de inocência e conduzir a uma maior taxa de punição através do juízo paralelo feito pela opinião pública, que pressiona e contamina os tribunais.
O relatório da OCDE sobre a competência dos adultos portugueses, acima citado, é especialmente grave neste campo, porque articulado com alguns estudos científicos existentes, permite perceber que existe uma maior apetência pelo discurso punitivo de extrema direita, por ser aquele que é menos complexo, mais directo e que aparentemente parece dar respostas aos anseios populares de maior segurança.
Importa referir que, mesmo que em minoria, as pessoas insatisfeitas e ressentidas com o estado do país, têm uma muito maior capacidade de mobilização e agitação, do que uma maioria silenciosa.
Para compreendermos com maior profundidade os mecanismos que sustentam uma cultura punitiva em sociedades pacíficas, como é o caso de Portugal, é indispensável convocar também os contributos da neurobiologia do comportamento social e moral. O impulso para punir, sobretudo de forma ostensiva ou exemplar, não decorre apenas de opções políticas ou de falhas institucionais: ele é também resultado de disposições neuropsicológicas profundamente enraizadas, que interagem com o contexto cultural e mediático.
Já sabemos (ver primeira crónica) que a amígdala (uma coleção de neurónios em forma de amêndoa), é uma estrutura cerebral com especial relevância na percepção do medo e da ameaça, um género de sistema de alarme neural, hiperactiva em contextos de incerteza social, ainda que a ameaça objectiva seja residual ou até inexistente. Esta hiperactividade correlaciona-se com uma maior adesão a políticas securitárias e punitivas.
Sabemos também que a actividade do núcleo accumbens (é o principal componente do estriado ventral), ligado ao sistema de recompensa, é activado em sujeitos pela simples observação da punição de um “transgressor”, existindo um prazer neurobiológico no castigo.
Tudo isto, ajuda a explicar por que razão, mesmo perante níveis baixos de criminalidade, parte significativa da população continua a apoiar políticas penais mais severas: o castigo funciona como válvula de escape simbólica para frustrações acumuladas e ansiedades difusas.
Tendo presente que o cérebro humano foi moldado, em termos evolutivos, para punir violadores de normas, como forma de proteger a coesão do grupo, importa não esquecer que já não vivemos em bandos ou em tribos, e que este impulso adaptativo, poderá ser desajustado em sociedades modernas complexas, como as actuais, em que o devido processo penal deve obedecer a garantias racionais e não se deixar levar por reflexos emocionais, o que, infelizmente, ainda acontece demasiadas vezes.
Acresce que o cérebro humano funciona por previsão, com base na informação do interior do nosso corpo, onde se incluem as experiências passadas, juntamente com os dados sensoriais que nos chegam do mundo, calculando uma série de probabilidades do que possa ter acontecido, preparando-nos para agir. Acontece que muitas vezes as previsões não estão correctas. Tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos e saboreamos no mundo e sentimos no nosso corpo é totalmente construído na nossa cabeça.
Um dos problemas desta forma de funcionamento do cérebro, tendo em vista a acção (rápida, se necessário for), com os parâmetros da sobrevivência e preservação do corpo em lugar de destaque, é que com pouca informação disponível, saltamos rapidamente para conclusões. Ou seja, fazemos julgamentos intuitivos, rápidos, emocionais e punitivos com demasiada facilidade, dos quais, por vezes temos não só dificuldade de sair – coerência excessiva – como potenciam os vieses de confirmação.
Neste ponto último, António Damásio elucida-nos deste modo: “O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória” (ob. citada em referências pág. 294).
O que acabámos de descrever é exactamente o que acontece no processo penal português, com o julgador a ter acesso a todos os elementos da acusação, quando a defesa ainda não compareceu nos autos. Razão pela qual, Morris B. Hoffman (ob. citada em referências) nos alerta para o facto do processo penal ser contranatura (no caso dos EUA pelo facto de a acusação ser a primeira a apresentar a sua argumentação e prova).
Não falando, pelo menos neste texto, o facto de termos as duas Magistraturas de “mãos dadas” desde o CEJ, quem acusa e quem decide… e o mais estranho é “ninguém” (sobretudo o legislador), achar nada de anormal em tal circunstância, mesmo com o princípio acusatório e da igualdade de armas com respaldo constitucional.
Facilmente se compreende que num clima de polarização mediática, excesso de carga sensorial e baixa literacia, as decisões colectivas (em obediência aos fenómenos de massas) tendem a ser dominadas por instintos de punição e exclusão, em vez de deliberativas e justas.
Em Portugal, onde os indicadores de literacia crítica e jurídica são baixos, e onde o discurso mediático, como vimos, tende a favorecer o sensacionalismo penal, este desvio intuitivo é ainda mais acentuado.
Pensamos pois, que é através destas condições gerais, misturadas com o nosso contexto histórico-social, que será possível compreender o porquê de um país tão pacífico como o nosso, ter níveis de punição e de reclusão tão elevados.
Se quisermos recentrar o sistema de justiça criminal nos seus fundamentos constitucionais e humanistas, é essencial reconhecer e conter o substrato neuroemocional que alimenta o punitivismo, bem como precisamos de mais informação objectiva, mais estudos empíricos, nomeadamente sobre os erros judiciários cometidos anualmente no sistema de justiça criminal português, de modo a finalmente (nem que seja por modo comparativo com outras latitudes), conseguirmos compreender o fenómeno (ou o mito) da infalibilidade da justiça criminal portuguesa… ou se se trata apenas de corporativismo e de modo de preservação do primado das instituições.
Uma coisa é certa: não é razoável fazermos reformas no âmbito penal e processual penal com base em meras percepções, ou emoções, sobretudo, por iniciativa daqueles que, mesmo fazendo parte do sistema, não são capazes de fazer o seu diagnóstico, e apontar as verdadeiras falhas do mesmo. Mas para isso, reiteramos que são necessários muitos mais dados e estudos de campo, que infelizmente não existem.
Conclusão: entre a lucidez constitucional e a ilusão punitiva
O caso português demonstra, de forma exemplar e inquietante, como um país objectivamente pacífico pode alimentar um sistema penal hiperactivo, desproporcional e estruturalmente disfuncional. A dissonância entre os dados objetivos de criminalidade e a intensidade das respostas punitivas revela um desequilíbrio profundo entre legalidade formal e prática institucional, potenciado por factores históricos, mediáticos, emocionais e até neurobiológicos.
A crítica aqui desenvolvida não se limita a denunciar estatísticas ou denunciar abusos. Ela pretende lançar as bases de uma transformação: uma justiça que não reaja por instinto, medo ou pressão simbólica, mas que decida com racionalidade, proporcionalidade e plena consciência constitucional.
Num tempo de ruído, polarização e simplificação populista, urge devolver à justiça criminal o seu verdadeiro lugar: última ratio de um Estado de Direito Democrático. Para isso, precisamos de mais dados, mais pensamento crítico, mais escrutínio público, e sobretudo, mais coragem para reconhecer os nossos próprios erros, e corrigi-los.
Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos, em simultâneo, campeões da paz… e da prisão.
Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.
Referências:
António Damásio, “A Estranha Ordem das Coisas, A vida, os sentimentos e as culturas humanas” (2017, Temas e Debates)
David A. Sklansky, “Criminal Justice in Divided America, Police, Punishment, and the Future of our Democracy” (2025, Harvard University Press).
Gordon Hodson and Michael A. Busseri, “Bright Minds and Dark Attitudes: Lower Cognitive Ability Predicts Greater Prejudice Through Right-Wing Ideology and Low Intergroup Contact”. Psychological Science published online 5 January 2012. DOI: 10.1177/0956797611421206.
Lisa Feldman Barret, “7 lições e meia sobre o cérebro” (2022, Temas e Debates).
Michael Bang Petersen, Mathias Osmundsen, Kevin Arceneaux, «The “Need for Chaos” and Motivations to Share Hostile Political Rumors», American Political Science Review (2023) 117, 4, 1486-1505, doi:10.1017/S0003055422001447
Morris B. Hoffman, “The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury” (2014, Cambridge University Press).
Onraet, Emma, Van Hiel, Alain, Dhont, Kristof, Hodson, Gordon, Schittekatte, Mark and De Pauw, Sarah (2015) “The Association of Cognitive Ability with Right-wing Ideological Attitudes and Prejudice: A Meta-analytic Review”. European Journal of Personality, 29 (6). pp. 599-621. ISSN 0890-2070. DOI: 10.1002/per.2027.
Owen D. Jones, Jeffrey D. Schall, Francis X. Shen, Morris B. Hoffman and Anthony D. Wagner, “Brain Science for Lawyers, Judges, and Policemakers” (2024, Oxford University Press).
Robert Sapolsky, “Comportamento” (2018, Temas e Debates).
Romayne Smith Fullerton & Maggie Jones Patterson, “Murder In Our Midst, Comparing Crime Coverage Ethics in a Age of Globalized News” (2021, Oxford University Press).
Porque é que ver sofrer nos sabe tão bem – ainda que o neguemos? Esta pergunta, desconfortável mas inevitável, percorre silenciosamente a história da Humanidade. A resposta não se encontra nos tribunais, sob as suas mais diversas formas desde a Antiguidade até ao sistema judicial actual, mas sim no cérebro humano, devido aos atalhos emocionais que utilizamos, e na estranha satisfação que sentimos quando o “outro” sofre aquilo que “julgamos” que merece.
Do Coliseu romano (morte por lançamento às feras) à forca de Owensboro, no Kentucky, onde em 1936 ocorreu o último enforcamento público da história dos Estados Unidos da América (em Portugal foi em 22 de Abril de 1846, na Praça d’Armas, em Lagos, e o executado foi José Joaquim Grande); da guilhotina francesa – proposta pelo médico parisiense Joseph-Ignace Guillotin, tendo em vista acabar com a tortura dos executados e, por uma questão de igualdade, submeter todos os condenados à mesma forma de execução, tendo sido utilizada pela primeira vez em 1792 – à cadeira eléctrica da Florida, onde em 1989 Ted Bundy foi executado; da fogueira inquisitorial à câmara de injecção letal em Terre Haute, Indiana, onde em 2001 Timothy McVeigh deu o seu último suspiro. Ao longo dos séculos, a execução de criminosos foi mais do que justiça: foi espectáculo. E o que se celebrava não era apenas a lei — era o prazer socialmente aceite de ver o outro sofrer: a schadenfreude.
Em 1321, em França, a população acreditou que os leprosos estavam a contaminar os poços com veneno. Sob tortura, confessaram a existência de uma conspiração diabólica com judeus e muçulmanos, tendo tudo culminado com massacres — sobretudo de leprosos e judeus — que ficaram conhecidos como a “Trama dos Leprosos”. A população, mais do que tolerar os castigos, regozijou-se com eles.
O mesmo aconteceu no caso de Robert-François Damiens, o último homem a ser esquartejado em França, em 1757. A sua execução foi um grande evento social. Alugaram-se apartamentos com vista privilegiada, houve venda antecipada de lugares, e entre a aristocracia encontravam-se figuras como Casanova, que inclusive relatou a execução como uma experiência quase erótica.
Em Owensboro, mais de 20 mil pessoas apareceram para assistir ao enforcamento de um jovem afro-americano, Rainey Bethea, acusado de violar uma mulher branca. A maioria das pessoas dormiu ao relento para garantir um bom lugar. Houve comida de rua, bebidas, diversões, apostas. Euforia. Tudo para ver um corpo cair.
A execução de Ted Bundy foi recebida com churrascos temáticos e a multidão a gritar fora da prisão: “Frita, Bundy, frita!”. Com Timothy McVeigh, organizaram-se eventos mediáticos e existiram zonas VIP para jornalistas com serviço de catering.
Nenhuma destas execuções foi apenas justiça: eram um grande espectáculo!
E se hoje as execuções perderam alguma visibilidade pública, existem menos e o sofrimento ocorre dentro das prisões, fora dos olhares do público, não significa que o impulso popular tenha desaparecido. Transferiu-se para outros palcos: as redes sociais, os tribunais mediáticos com os seus juízos paralelos a tentar interferir (e a conseguir) na realização da justiça, os reality shows da indignação. A propósito de um episódio recente, em que se viu agentes da PSP a “carregar” sobre determinados manifestantes com bastões, foi possível ler vários comentários nas redes sociais: “Soube mesmo bem”! A schadenfreude modernizou-se, mas continua bastante activa. Cancelamos. Expomos. Punimos.
Eventualmente, o mais difícil não será explicarmos porque nos juntávamos para ver morrer. Talvez o mais inquietante seja perguntar: porque ainda o fazemos, ainda que com outras ferramentas?
O prazer de punir, ou de ver punir, continua a saber bem. A diferença é que agora, por vezes, tendemos a negar esse prazer a nós mesmos.
Schadenfreude é uma palavra de origem alemã que combina duas ideias: Schaden (dano, prejuízo) e Freude (alegria, prazer). Em resumo, refere-se ao sentimento de prazer ou satisfação diante do infortúnio de outra pessoa. Embora esse sentimento seja frequentemente considerado socialmente inaceitável ou moralmente questionável, ele é mais comum do que muitas vezes admitimos — e possui raízes psicológicas e sociais bastante profundas.
Estudos com neuroimagem (fMRI) mostram que a schadenfreude activa áreas do cérebro ligadas ao prazer, como o estriado ventral, a mesma região activada por recompensas como comida ou dinheiro. Ou seja, o cérebro literalmente recompensa-nos com uma sensação prazerosa quando testemunhamos o fracasso de alguém que invejamos ou não gostamos.
Um estudo clássico (Takahashi et al., 2009) demonstrou que os participantes experimentavam mais schadenfreude ao ver pessoas que invejavam sofrerem dor, e essa resposta era maior quando sentiam inveja activa. Isto reforça a ideia de que a emoção está interligada a sentimentos como inveja, comparação e justiça.
Efectivamente, essa emoção “prazerosa”, directamente relacionada com o infortúnio alheio, é quase sempre acompanhada por uma micro-expressão de franzir de cenho involuntário, realizado em simultâneo com as agressões a que assistimos, a par de um sorriso. Nas situações em que o castigado é alguém que vemos como tendo tido um comportamento anti-social, e como tal merecedor de castigo, esse acto involuntário pode aumentar exponencialmente, para cerca de quatro vezes.
Este prazer não surge de forma isolada. Está relacionado com vieses cognitivos profundos: o viés da justiça, consubstanciado na crença de que o mundo deve ser justo e de que os maus devem ser punidos exemplarmente. Por exemplo, quando vemos alguém que acreditamos ter enriquecido de forma duvidosa ser preso, a sensação é de prazer moralizado, como se a ordem tivesse sido restaurada. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que reforça este viés.
O viés da comparação social decorre da tendência do ser humano em comparar-se constantemente com os outros, de modo a avaliar o seu próprio valor ou sucesso. Numa situação em que um colega, que está sempre a gabar-se de ser mais competente do que nós, é repreendido, sentimos um alívio quase satisfatório. A schadenfreude, neste caso, é a emoção que sentimos na redução da distância percebida entre nós e o nosso colega, melhorando a nossa auto-estima.
O viés da aversão à perda é a circunstância de sofrermos mais ao perder algo que possuímos do que temos prazer em ganhar algo de valor equivalente. Se sentirmos que estamos a perder por comparação com outros (estatuto, oportunidades, atenção, etc.), ver esses outros a sofrerem uma perda mitiga a nossa sensação de perda. Existe como que um reequilíbrio, actuando aqui a schadenfreude como a emoção que faz a compensação emocional.
O viés endogrupal/exogrupal concretiza-se na tendência para favorecer os membros do nosso grupo e olhar os membros de outros grupos com mais desconfiança ou hostilidade. Sentimos prazer quando um grupo rival sofre uma perda, porque isso reforça a superioridade e identidade do nosso grupo. Um bom exemplo é o adepto de futebol sentir alegria quando o clube rival é eliminado, mesmo que o próprio clube tenha perdido. A schadenfreude é a emoção colectiva partilhada socialmente.
O viés de confirmação é a tendência de procurar, interpretar e lembrar informações que confirmam as nossas crenças prévias. Temos uma opinião negativa sobre alguém; vê-lo fracassar não só confirma a nossa visão como gera prazer. A schadenfreude funciona como uma espécie de recompensa emocional por estarmos certos.
O prazer que sentimos ao ver um “culpado” sofrer tem explicação neurológica. O nosso sistema mesolímbico dopaminérgico, responsável pelo processamento de “recompensas” no nosso cérebro, é activado perante o sentimento de que a “justiça” foi feita. Os estudos de neuroimagem demonstram que o núcleo accumbens, associado ao prazer, reage à punição de quem percepcionamos como tendo tido um comportamento anti-social, ou mesmo de quem julgamos ser anti-social, mesmo que não exista nenhum comportamento associado (por exemplo, em situações de racismo e xenofobia).
O sistema mesolímbico dopaminérgico envolve a área tegmental ventral (VTA), onde se inicia a libertação de dopamina; o núcleo accumbens (NAcc), que é o principal centro de recompensa e motivação; a amígdala, o hipocampo e a zona do córtex pré-frontal, que são responsáveis pela emoção, memória e regulação cognitiva.
Este circuito mesolímbico dopaminérgico é activado por experiências gratificantes: comida, sexo, cocaína, sucesso social, elogios, etc., e surpreendentemente (ou não), também pelo sofrimento alheio, na medida em que esse sofrimento nos satisfaça um desejo psicológico, como ver restaurada a justiça, superar a inveja ou reduzir a frustração. Em situações em que o terceiro nos tenha feito algo directamente que consideremos injusto, a ínsula, o córtex cingulado anterior e a amígdala activam-se, configurando um quadro de repulsa, sofrimento e raiva, o que poderá originar um aumento de prazer pelo infortúnio alheio.
Ou seja, em contextos de schadenfreude, o sistema mesolímbico dopaminérgico interpreta a queda do outro como uma “vitória relativa”, mesmo que inconsciente, activando o núcleo accumbens responsável pela sensação de prazer, libertando dopamina (de forma mais ou menos prolongada, consoante a intensidade do prazer) — o neurotransmissor da recompensa e da motivação.
Acrescendo a tudo isto, tornando-o mais interessante e até inquietante, está o efeito cumulativo da via dopaminérgica, porque a dopamina não só é um sinal de prazer momentâneo como condiciona e refina os nossos comportamentos futuros, através de reforço positivo, criando rotinas mentais e predispondo-nos a buscar experiências semelhantes.
Em casos extremos, pode reforçar padrões malévolos ou gerar insensibilidade, se o prazer em ver os outros “falhar” for constantemente recompensado. Nestas situações, o cérebro pode associar automaticamente o fracasso alheio à sensação de alívio ou de prazer, moldando uma tendência emocional condicionada inconsciente.
O juiz e académico (também ao nível da neurociência) Morris Hoffman argumenta, em The Punisher’s Brain, de 2014, que o impulso para punir é tão natural quanto o impulso para cooperar — são ambos faces da mesma moeda evolutiva. António Damásio tem defendido que as emoções são centrais na tomada de decisões morais, sendo a punição social uma dessas decisões moldadas por afectos.
Alguns autores, como Robert Sapolsky, explicam que este tipo de respostas socioemocionais está enraizado num complexo cruzamento entre neurobiologia e contexto. Em Determined (2023), vai ainda mais adiante, defendendo que o livre-arbítrio é uma ilusão e que os comportamentos humanos, incluindo o impulso de punir, resultam de causas neurobiológicas e ambientais.
Segundo esta visão determinista, até o prazer que sentimos com o sofrimento alheio não é escolha nossa, mas sim consequência de uma cadeia causal complexa, onde não existe margem para o livre-arbítrio — ou, pelo menos, ele é muito mais reduzido do que pensamos.
Punimos, muitas vezes, não por justiça — mas por prazer. A questão não é se isso é humano. A questão é: o que fazemos com esse facto?
Miguel Santos Pereira é advogado.
Referências:
António Damásio, O Erro de Descartes (2011, Temas e Debates).
Helmut Ortner, Uma Breve História da Pena de Morte (2024, Alma dos Livros).
Leach, C. W. et al. (2003). Malicious Pleasure: Schadenfreude at the Suffering of Another Group.
Morris Hoffman, The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury (2014, Cambridge University Press).
Robert Sapolsky, Comportamento (2018, Temas e Debates) e Determinado (2023, Temas e Debates).
Takahashi, H. et al. (2009). When Your Gain Is My Pain and Your Pain Is My Gain: Neural Correlates of Envy and Schadenfreude.