Categoria: Cultura

  • Sova, tunda, camaçada, surra, sumanta, coça

    Sova, tunda, camaçada, surra, sumanta, coça


    Credo!

    Não exagero quando vos digo que, naquela noite, senti a proximidade do Cão. Não dele, propriamente, mas de um agregado seu, talvez um afilhado. Teria o Senhor da Escuridão mandado até nós como seu embaixador aquela figura pouca?

    Admito que me arranharam os costados umas várias tremuras de pavor.

    Ao fim daquela impressionante algaravia, decidi retomar o meu costumeiro eu. Enquadrei os ombros, passei a mão pela cara, como se ajeitando as feições, e levantei-me. Suspirei devagar e fundo, a fim de permitir que a brabeza, vinda do centro da Terra, entrasse em mim, após atravessar a sola reforçada de minhas botinas. Quando me pus em pé já estava armado de fúria. Pouco me importava que ele tivesse vínculos com o Tinhoso.

    short-coated black dog

    Estamos no mundo real e eu sou um servidor da Lei e da Justiça, pensei.

    Decidi verificar se aquilo que estava diante de meus olhos, molambo que não era nem homem nem bicho, como ele próprio admitira, mas que sabia perorar com esperteza, possuía mesmo lombo reforçado, como alardeara orgulhoso.

    Chegamos, então, à mais dolorosa das estações dessa nossa sacrílega via sacra, a sexta. Não perca a conta, Excelência! A sexta!

    Trabalhar vagabundo é arte que exige malícia e determinação, Excelência.

    Pelo diálogo na Sala do Comando e pela confissão que acabara de escutar, eu havia detectado que o chaguento era mais que um simples matreiro: possuía adestramento na arte de apresentar-se como um toleirão zombeteiro.

    Saiba, Excelência, que todo campesino esperto é dessa mesma composição, mas aquele era fora da série, um raro exemplar polido por pó de tijolo.

    Bem. Tem profissional que acha que se deve ir logo para a apelação à ignorância. Já eu começo pela beirada. Uma distraída pisada num pé. Um beliscão quase amistoso. É só para desorientar o indivíduo, que está esperando pancadaria brutal. O trabalho deve seguir num crescente.

    brown wooden coffee table near wall inside room

    Se ganha de cara um murro, a vítima já sabe que dali para diante a humilhação vai diminuir. Bofetada só se emprega para esculachar meliante aprendiz ou inofensivo.

    Levantei-me, apanhei um banquinho que mantenho naquela cela para uma finalidade específica e me encaminhei até o bandidaço, genuflexo e ainda de mãos amarradas atrás.

    Ordenei então a ele que se acomodasse no banquinho, que se colocasse bem à vontade. Até brinquei.

    – Tome assento, cabeça de vento!

    Ressabiado, pressentindo maus bocados, ele se sentou devagar e cuidadosamente.

    Ato contínuo, principiei a sessão pela orelha.

    Ao lado dele, segurei-lhe o tampo da cabeça com uma mão e, com a outra, eu lhe grampeei o ouvido. Foi como se alguém, mal comparando, um gigante, tivesse agarrado a porta aberta de uma casa. De repente, dei um forte puxão. Eu era o gigante arrancando a porta do seu marco.

    O sujeito assombrou-se. Deve ter pensado: se o homem começa desse modo é porque vai me destruir a fachada.

    Deixei que se recuperasse um pouco enquanto esperava pelo próximo ataque. Onde será?

    Você se retarda. Deixa o indigitado aguardando. Aí, acaba fazendo o que ele de certo modo já esperava: ataca-lhe a outra orelha. Porém, num movimento contrário. Premiei-o com uma tapona de fora para dentro, de modo que ele teve a clara impressão de que a cartilagem ia penetrar-lhe pela lateral do crânio.

    Sabendo explorar, orelha rende bem.

    – Já estás me ouvindo melhor, minha flor?

    photography of lightning storm

    Nem era uma pergunta a valer, era mais uma informação à besta: que se preparasse para ser cozinhada em fogo baixo.

    Ele então me encarou pela primeira vez. Foi por fração de segundo, mas consegui perceber pelo risinho que escorria dos olhos dele que, interiormente, o danado já comemorava minha derrota.

    Por entre os dentes cerrados, caçoou.

    – Será dessa maneira que o coronel pensa me fazer recitar a tabuada?

    Sou um trabalhador controlado que raramente perde as estribeiras. Por isso, fervi sem soltar vapor e até motejei.

    – Erraste, burro. Vou te ensinar astrologia. Verás estrelas.

    Admito que não devia ter fornecido tanta trela a ele, porque prisioneiro gosta de ouvir a voz de quem lhe aplica a correção. O raciocínio é simples: esse aí tem boca e fala, portanto, é humano.

    O verdugo deve ser mudo.

    Chegou-me então uma ideia estranha. Encostei minha botina esquerda no nascedouro das costas dele e com as duas mãos agarrei a ponta da corda que lhe amarrava os punhos. Puxei-a para mim e para o alto, mas devagarzinho, testando a resistência da ossamenta dele.

    Botei muita força, me creia. Fui até ouvir uns estalidos de graveto seco. Parei antes de alcançar o ponto de ruptura. Julguei para mim que o indivíduo tinha ossos de borracha. Mas não lhe dei repouso.

    – Vou aumentar a pressão nas caldeiras. Ministrarei ao estimado companheiro um medicamento indicado para febre alta.

    Destaquei do cinto a bainha do facão.

    – Pode berrar à vontade. Não se acanhe. Dependendo da sonoridade, seu choro será educativo. Sinalizará à bicharada da Jaula Grande como a Justiça trata malfeitores que se deixam apanhar em flagrante.

    black and silver knife on brown wood

    De bainha em punho, eu me postei um pouco para trás do vadio, mas num ângulo bom para que ele pudesse me capturar pelo ladinho do olho. Num movimento muito vagaroso, levei a mão direita para o bem alto, muito acima da minha cabeça, alargando a extensão toda do braço. Dei um tempo para que ele me admirasse a postura. Só então comecei a contagem.

    – Um!

    Quando o meu braço se veio abaixo, eu, no meio do movimento, desmunhequei. Então, em vez de encontrar o alto do cocuruto, a bainha se acomodou na lateral do pescoço da personagem.

    Saltou faísca!

    Se eu batesse na cabeça, ele teria o resguardo da caixa craniana. Já o gasganete não tem amortecimento de gordura ou osso. É pura pelanca. Deve ter doído uma enormidade, mas ele nem mugiu. Não nego que fiquei meio desacorçoado.

    Aí, acintosamente, eu me plantei diante dele. Abri o braço para o lado, de modo que ele pudesse, depois, captar a aproximação do improvisado açoite. Eu queria acertá-lo no cume do nariz, mais precisamente no intervalo entre os olhos. Foi o que fiz com bom aproveitamento.

    – Dois!

    O golpe propriamente não deve ter doído tanto, mas o infrator se sobressaltou bastante. Afinal, o olho é dos nossos organismos o mais precioso. O que valeu, enfim, foi a surpresa ruim: o couro duro aparecendo de supetão, rente às órbitas, anunciando cegueira.

    Quando inteirei a primeira dúzia de lapadas, distribuídas por muitas superfícies, percebi que a faxina não estava rendendo. Naquela noite eu não me encontrava inspirado. Em busca de aconselhamento, fui ao pátio consultar o grande disco de prata.

    Lá fora, comecei botando em dia a respiração. Minutos depois, de chofre, enquanto distraído fitava o círculo que cintilava no firmamento, uma sugestão de origem transcendente penetrou-me no âmago da alma. Apanhei balde, atopetei de água e voltei ao prédio.

    three empty bottles are shown in black and white

    Sem palavreado, verti o precioso líquido sobre o custodiado, atentando para que os lados todos recebessem rega por igual. Diante daquela ducha fora de horário e em sítio inadequado, o sujeito alvorotou-se. Notei o corpo se encolhendo e a cabeça questionando: o que será que me vem pela frente?

    Molhado, o ser humano perde a atitude. Vira pintinho. Isso em se tratando de pensamento. Mas o mais importante se dá ao nível da epiderme, que fica mais sensibilizada.

    – Treze!

    Dei começo à fase molhada, limitando-me ao comezinho: a lambada corriqueira, sem muito método ou ciência. Eu, porém, nunca executo como os demais representantes da Lei. Não! É uma questão muito minha. Tenho a tentação de ser diverso e variante. Era um açoite no ombro direito, outro na paleta esquerda. O seguinte na base do crânio, de atravessado. Um na polpa da bunda. Outro, bem sonoro, no alto da coxa, de jeito que a bainha se transformasse em cobra e ameaçasse morder a virilha do condenado. Parei duas vezes para enxugar o suor da testa.

    – Quarenta e dois!

    Na última dessas paradas cheguei a agachar-me para analisar a fuça dele, que permanecia abaixada. Era a mesma, inexpressiva, de antes do suplício.

    Resumindo: parei de numerar em voz alta as pancadas ao inteirar meio cento.

    O porquê da contagem? É o efeito que ela causa no espírito de quem sofre a flagelação. O padecente imagina, penso eu, que o carrasco vai contar até o infinito. Acaba sofrendo tanto pelos golpes quanto pela enumeração.

    pink petaled flower closeup photography

    Bater é maquinal. Pode parecer exagero, mas aquele que fustiga se transforma em máquina acionada pelo seu próprio movimento. Motor perpétuo, como se diz.

    Não, Excelência, ele não soltou nome nenhum. Nem mesmo um suspiro exalou. Os recolhidos à Jaula Grande não ouviram nada além da estridência das lambadas. O sentenciado recebeu a coça sem dar resposta visível e retardou-se para amolecer.

    – Cinquenta!

    Foi só quando eu, consumido, resfolegava como cavalo após corrida forte que ele arriou. Aluiu de frente. Como uma casa arrastada pelas águas de um rio furioso depois que o barranco em que ela se assentava foi lambido pela inundação.

    Deitado no chão sujo, ele ficou sendo mesmo o que aparentava ser. Um traste. Aproveitei para encerrar com chave de prata, mas ele não acusou o pontapé que lhe mandei à junção das virilhas.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Publicado originalmente no livro O soldado amarelo.

  • O salão de festas

    O salão de festas

    Cansado de contar tostões, Inocêncio percebeu, a dada altura, que a pequena herança recebida podia abrir portas a um futuro mais risonho. Transmitida de geração em geração, a propriedade encontrava-se na posse da família desde tempos tão remotos que a sua origem se entrelaçava com a memória da fundação da pitoresca aldeia piscatória.

    Quem, vindo de fora, por ali passava, encantava-se com a beleza da quinta: rústica, singular, autêntica, repetiam. Faltava-lhe, porém, conforto. O que para o humilde e despretensioso Inocêncio era bastante, revelava-se insuficiente aos olhos requintados de quem chegava em busca de uma “autenticidade refinada”.

    As paredes caiadas e as portas de reixa eram lindas, mas a manutenção não dava tréguas; a cozinha, de lume aberto, um encanto, só que o fumo impregnava toda a casa; a cabana, very typical, não fosse a vaca tresandar, seria perfeita;  a água da nora fresca e deliciosa, já torneiras nem vê-las; e, pormenor fatal, ao fundo do terreno, quatro exíguas paredes de madeira a ocultar uma inesperada retrete.

    O que para  Inocêncio era apenas normal, constituía para os visitantes um excesso de autenticidade: suportável em pequenas doses, por algumas horas. Não mais do que isso.

    Ainda assim, foram os estrangeiros — cada vez mais numerosos na região — os primeiros a reconhecer o potencial daquela casa junto ao mar. Tentaram comprá-la por tuta e meia, justificando a pechincha com a extensa lista de obras indispensáveis: picar paredes, rebocar e pintar, substituir tetos e chão, derrubar a chaminé, remodelar a cozinha, instalar casas de banho, erguer uma pérgula na açoteia, mudar portas e janelas… um inventário tão exaustivo quanto conveniente.

    Inocêncio, aconselhado por um amigo dos tempos de escola que agora trabalhava num banco, recusou a proposta. Pediu ele mesmo um empréstimo, fez as obras e converteu a sua herança num amplo salão de festas.

    A inauguração foi um sucesso: rodeados por peças de artesanato e artes de pesca  restauradas e integradas na decoração, os convivas, elegantemente vestidos, deliciavam-se com canapés, petit fours e delicadas flûtes de champanhe.

    Inocêncio, que nunca vira tanta cerimónia, não conseguia entender. Com peixe fresco em abundância, vinho de qualidade à disposição… e eles ali, entretidos a mordiscar umas coisinhas e a molhar os lábios. Mas lá que tinham um ar distinto, isso tinham. Muito bem vestidos. Chiques, sem dúvida.

    Com o passar do tempo, porém, as festas transformaram-se. Os petit fours, que faziam as delícias nos primeiros eventos, desapareceram para dar lugar a outras miniaturas igualmente coloridas: rolinhos de arroz pastoso com peixe cru. Chamavam-lhe sushi. Inocêncio preferia chamar-lhe bolas de “arroz unidos venceremos”. Uma grande mistela, pensava ele. Mas os camones gostavam. Problema deles.

    As festas multiplicaram-se e a sofisticação inicial depressa deu lugar ao excesso. As pirâmides de taças de champanhe foram substituídas por grades de cerveja barata; os canapés vistosos e até o sushi acabaram trocados por fish and chips a escorrer gordura e devorados sem cerimónia.

    O espaço, cada vez mais irreconhecível, revelava-se surpreendentemente lucrativo. Tanto que Inocêncio decidiu ampliá-lo: primeiro uniu o salão às antigas cabanas e depois à casa onde sempre vivera. Ficou um belo mamarracho, é certo, mas a açoteia transformada em rooftop com DJ e música pela noite fora rendia ouro.

    Não se ralava por dormir agora num quarto improvisado no palheiro. Também pouco lhe importavam as noites em claro, o barulho, a agitação e os estragos feitos por clientes embriagados: tudo se compunha, e o lucro compensava.

    Até que as reservas começaram a rarear. O salão de festas perdera o encanto para os turistas: estava descaracterizado, já não tinha autenticidade. O que ali encontravam era igual a tudo o que existia na região, ou até nos países de onde vinham.

    Inocêncio não compreendia como é que tamanho investimento podia ter sido em vão. Tinha remodelado tudo: o espaço estava moderno, requintado, com todas as comodidades e, no entanto, vazio.  Não lhe restou alternativa senão vendê-lo para saldar as dívidas. Da velha quinta não sobrou rasto. No seu lugar ergue-se hoje um cinco estrelas luzente. O antigo anfitrião viu-se reduzido a espetro. Um fantasma que vagueia agora pelo bairro, onde mora num apartamento com vista para a entrada de serviço do colosso envidraçado.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Lisboa Fadista, de Sérgio Luís de Carvalho

    Lisboa Fadista, de Sérgio Luís de Carvalho


    PRÉ-PUBLICAÇÃO DE

    LISBOA FADISTA, de Sérgio Luís de Carvalho (Parsifal)

    Leia aqui a introdução do livro e o seu índice

    GESTAÇÃO

    Se há coisa sobre o fado que é controversa e polémica, é a sua origem. E talvez estejamos ainda longe de termos uma teoria incontestada sobre este assunto. Alguma vez lá chegaremos? Bem, ao contrário do que muitas vezes se pensa, as novas teorias e as novas conclusões em História não decorrem tanto do aparecimento de novos e determinantes documentos até aqui desconhecidos, mas decorrem sobretudo de novas formas de olharmos os documentos já existentes. Por outras palavras, as mais das vezes é o nosso olhar sobre as fontes históricas que se altera e não as próprias fontes em si ou o que elas dizem. Note-se que trazemos aqui a asserção “documento” e “fonte histórica” num sentido muito lato…

    Perante isto, o que temos? Temos teorias sobre o nascimento do fado, decerto. De entre essas teorias, iremos, neste primeiro capítulo, narrar as duas atualmente mais sustentadas e mais valoradas, a que acrescentaremos uma terceira, que hoje está um pouco posta de lado. Mas… nunca se sabe.

    A primeira, defendida, entre outros, por Rui Vieira Nery, enfatiza a importância decisiva das modinhas populares e das danças africanas (particularmente, do lundum) na origem do nosso fado.

    A segunda, pugnada, entre outros, por José Alberto Sardinha, defende que o fado resulta da evolução das antigas cantigas do Cancioneiro tradicional português, cantigas essas que, ao longo dos tempos, se foram popularizando no país e, sobretudo, em Lisboa, por intermédio dos cantores ambulantes, herdeiros da tradição do velho Cancioneiro.

    A terceira, hoje, menos defendida, entronca o nosso fado na tradição musical árabe. Um dos seus principais cultores é o historiador e arabista Adalberto Alves.

    Assim sendo, iremos de seguida descrever os principais argumentos destas teses.

    A origem do fado: a tese do lundum afro-brasileiro

    Comecemos pela tese defendida por Rui Vieira Nery – entrem outros –, que enfatiza a origem afro-brasileira do fado, uma origem que entronca nas danças, sons e ritmos que os escravos africanos levaram para o Brasil-colónia. Dessas danças, tem particular destaque o lundum.

    Para melhor enquadrarmos esta tese, parece-nos curial recuar aos séculos XVI e XVII, quando a capital era um local de confluência de várias culturas, de que se realça a cultura africana, representada pelos muitos escravos existentes na cidade – estima-se que seriam cerca de 10% da população para os séculos referidos (ver, desta coleção, Lisboa Africana). Dessa confluência, ter-se-á lentamente forjado um caldo de cultura e um ambiente que, nas primeiras décadas do século XIX, favoreceu a eclosão do fado em Lisboa. De facto, a cidade vivia, desde os tempos da Expansão, num clima cultural no qual fermentavam as tais danças, sons e ritmos, fruto de uma mescla de gentes e de costumes que se afirmou na capital a partir desses séculos.

    É verdade que, entre as classes mais altas, os costumes musicais reproduziam, em grande parte, as danças e os sons que existiam na Europa do seu tempo. Desde os finais da Idade Média, na corte e nos salões aristocráticos, dançavam-se as carolas e as estampidas, tal como em Paris; ao mesmo tempo e nos mesmos salões (mas também nas ruas), bailavam-se as mouriscas, como em Sevilha.

    E não esquecer a pavana, herdeira das famosas basse dances transpirenaicas. Enfim, eram galantes danças de salão, escutadas e bailadas por cá, à imitação do que se fazia lá fora (o termo português “contradança” vem do inglês country dances, por exemplo). Porém, era já clara alguma “contaminação” de ritmos mais populares, de que as citadas mouriscas são um exemplo.

    Todavia, numa curiosa mescla, algumas destas danças e destes ritmos de salão podiam ter uma “versão popular”, isto é, algumas podiam sair dos espaços aristocráticos e “descer” às ruas, onde a populaça as podia bailar e cantar com o seu jeito mais solto e os seus maneirismos mais desabridos.

    É assim que encontramos descrições de dança nos autos vicentinos, em que o mundo cortesão e o popular não têm fronteiras claras. Afinal, foi bailando e cantando que o finório frade cortesão se acercou das barcas da Glória e do Inferno, exclamando:

    — Deo gratias! Sou cortesão.

    Perante isso, perguntou-lhe o Diabo:

    — Sabes também o tordião?

    Ora, o tordião era uma espécie de cantilena popular bailada. Sim, o frade, que claramente se dava com as elites (declara-se “cortesão”), também sabia as artes do povo. E não foi bailando uma dança popular que Mofina Mendes partiu o pote de azeite? Ao mesmo tempo, no Auto da Fama, há clara referência a uma dança que percorria quer os salões finos, quer os bairros populares de Lisboa:

    “E achareis / em calma suas galés / e as velas feitas em isca / e balhando à mourisca / dentro gente português” (itálico nosso).

    Fixemos este dado: apesar de haver danças tendencialmente de salões nobres e danças tendencialmente populares, as coisas tendiam a misturar-se, num sincretismo que só beneficiava essas danças.

    A partir, sobretudo, do século XVI, com a chegada de imensos escravos – na grande maioria, africanos –, o panorama musical lisboeta ganha novos contornos e novas cores. Uma panóplia de sons desacostumados começa a escutar-se nas ruas da cidade, já que foi aqui que a maioria desses escravos se fixou. A partir de então, formou­-se o tal caldo de cultura musical em que sons e ritmos se cruzavam livremente, forjando outros sons e outros ritmos.

    Olhando com alguma atenção para as fontes, não teremos muita dificuldade em detetar a influência desses africanos (escravos e/ou forros) que compunham a paisagem visual da cidade, e graças aos quais Lisboa recebeu o bonito epíteto de “Cidade de Xadrez”, já que o preto e o branco das peles se cruzavam nas ruas, nas praças, nos becos.

    Estamos em pleno século XVI. O panorama da música popular lisboeta por esses tempos parece ser uma mescla entre a exuberância sensual dos corpos dos negros e a melancolia quase doentia das almas brancas. O caldo ia borbulhando…

    Ora, as danças e as músicas que compunham esse panorama têm nome: era a fofa e o oitavado, as cheganças e o fandango, o cumbé e o batoque, a charamba e o arrepia, a comporta e o lundum.

    De algumas, conhecemos as características. O fandango, por exemplo, era um tipo de dança popular ibérica marcado por rodopios e saltinhos, acompanhado por guitarra e castanholas.

    O fandango chegou ao nosso país durante o século XVIII, oriundo de Espanha. A partir daí, foi um sucesso, já que o seu ritmo era contagiante. Inicialmente, fez sucesso como dança de fidalgos em salões aristocráticos, mas não tardou que chegasse aos tascos, às tabernas ribeirinhas e aos malcozinhados que pululavam por Lisboa, frequentados por marujada e criadagem, por mesteirais e, claro, por escravos e forros (escravos alforriados, isto é, libertos). Tornou-se popular, interclassista, ultrapassando a cor da pele e a barreira dos géneros e condições, pois parece que até nos conventos era dançado. E como todas as melodias e danças nas quais os pares se confrontavam e entrelaçavam, não tardou a tornar-se veículo de sedução.

    Outra dança e outro ritmo que se escutava por Lisboa era o cumbé. Estamos perante uma manifestação etnográfica de clara origem africana, oriunda sobretudo da área da Guiné. O termo será de origem bantu (grupo etnolinguístico localizado, sobretudo, na África subsariana) e remete precisamente para um ritmo e dança da Guiné Equatorial.

    Como se bailava o cumbé, na Lisboa do Antigo Regime? Em Lisboa, como mais tarde por toda a América Latina, os participantes juntavam-se num círculo, cujo centro era ocupado pelos dançarinos, rodeados, por seu turno, por músicos com os respetivos instrumentos de percussão. Os movimentos eram sensuais e libidinosos, galantes e sedutores, característicos dos ritmos africanos que para aqui eram trazidos pelos escravos.

    O cumbé tem um desenvolvimento curioso que iremos aqui referir de forma sucinta. Depois da Europa, foi levado para a América Latina pelos escravos oriundos da Guiné. Ali se desenvolveu e evoluiu, estando na origem da que hoje é conhecida como a cúmbia, dança típica de vários países sul-americanos, principalmente da Colômbia.

    Aparentada com o cumbé, era também a fofa, referida pela primeira vez no “Folheto de Ambas Lisboas”, em 6 de outubro de 1730. Nas páginas deste folheto satírico que se publicou na capital entre 1730 e 1731, aponta-se a fofa como sendo uma forma de dança praticada ao lado do cumbé. Neste folheto, é referida como sendo bailada pelos negros de Lisboa na Festa do Rosário do dia 1 de outubro – um domingo – daquele ano de 1730, em Alfama. Note-se que a principal confraria lisboeta dedicada aos negros da capital era, precisamente, a Confraria do Rosário dos Pretos, situada no Rossio.

    Seja como for, teve grande aceitação entre os alfacinhas (não só nos negros), de tal modo que poucos anos depois, em 1766, o francês Charles François Dumouriez (1739-1823), que se tornaria célebre como general e diplomata, a descrevia como sendo uma “dança nacional”, opinião confirmada em 1777 por Louis Marie Florent du Châtelet, ao vê-la bailada pelas gentes pelas praças e largos olissiponenses (1727-1793).

    Lisboa Fadista integra a colecção de obras de Sérgio Luís de Carvalho dedicada à cidade de Lisboa, que as Edições Parsifal têm vindo a publicar, e da qual já fazem parte os seguintes títulos:

    Lisboa Nazi (2018)

    Lisboa Judaica (2021)

    Lisboa Árabe (2022)

    Lisboa Maldita (2023)

    Lisboa Africana (2024)

    Lisboa Maçónica (2025)

  • A esplendorosa melodia da globalização

    A esplendorosa melodia da globalização

    O caos do quotidiano é, por vezes, a mais refinada forma de poesia. Vivemos num tempo em que a pressa se tornou vício, e o movimento incessante substituiu o silêncio interior. As horas atropelam-se umas às outras, como se o dia fosse um palco em que o protagonista, aflito, corresse de cena em cena sem nunca dominar o guião.

    Dei por mim, em menos de quarenta e oito horas, a acumular no pulso direito duas pulseiras de contextos tão díspares quanto simbólicos: a primeira, no Hospital de São José, em Lisboa, após uma queda estúpida que me fez suspeitar de um osso partido no braço esquerdo (está tudo bem, felizmente); a segunda, já na noite seguinte, no LAV, onde Tamino – um belga de raízes egípcias – transformou o espaço num templo sonoro. Entre ambas, uma viagem relâmpago ao Porto para testemunhar como arguido, de pé, durante horas num julgamento kafkiano, só mitigada por um almoço de leitão à Bairrada e um jantar de pernil.

    E foi já quase no final do concerto, enquanto ecoava “Indigo Night” e depois “Habibi”, que me apercebi da ironia sublime desses dois selos de passagem — um hospitalar, outro musical — e de como a vida, mesmo no seu torvelinho, é bela, se soubermos escutá-la com atenção.

    Essa sucessão de episódios, quase cinematográfica, condensa bem a condição humana contemporânea: entre o prosaico e o sublime, entre a burocracia e o arrebatamento, entre a queda e o voo. Cada pulseira, como cada momento, é uma marca de pertença — ora ao corpo que dói, ora à alma que se eleva. Há quem veja nisto uma simples coincidência; eu vi um lembrete discreto da vida a dizer-me que o tempo, quando se vive intensamente, cabe inteiro em dois dias.

    Foi precisamente essa intensidade, de uma beleza por vezes inquietante, que Tamino trouxe ao palco do Lisboa ao Vivo (LAV). Com a sala completamente esgotada – eu tive a fortuna de ficar nos varandins –, o músico apresentou-se sem alinhamento fixo, preferindo deixar-se conduzir pela emoção do instante. “Tonight I’m trying something slightly different”, avisou ele, e foi essa imprevisibilidade que fez do concerto uma experiência quase ritual. O público, entregue, seguiu-o numa travessia pelas melodias do Crescente Fértil, onde as fronteiras entre Ocidente e Oriente se desvanecem em acordes de oud e sussurros de guitarra.

    Tamino é um daqueles raros artistas que parecem emergir de um tempo fora do tempo. A sua altura, a sua postura e sobretudo sua voz, situada entre o tenor e o barítono, carregam uma ressonância antiga, como se contivesse séculos de melancolia. A herança egípcia e a formação europeia encontram-se num ponto de equilíbrio que não é apenas geográfico, mas espiritual – a globalização no seu melhor.

    Dizem que se identificam semelhanças com Jeff Buckley ou Nick Drake, mas parece-me redutor e injusto: Tamino não é eco de ninguém – é antes um viajante entre mundos, um poeta da incerteza, um alquimista que transforma silêncio em som e dor em beleza.

    A viagem começou com “Every Dawn’s a Mountain”, tema que dá título ao seu álbum mais recente, lançado este ano. As primeiras notas soaram como um convite à introspecção. Seguiram-se “Raven” e “Sanpaku”, onde o oud — esse instrumento de alma árabe — traçou arabescos sonoros que evocaram o Cairo, o deserto e o murmúrio dos minaretes. Tamino alternou incessantemente entre guitarras clássicas e eléctricas, cruzando geografias e emoções. Em “Willow”, aproximou-se do folk europeu; em “A Drop of Blood”, revelou-se como um trovador místico dos tempos modernos.

    A meio do concerto, sozinho em palco, ofereceu “My Dearest Friend and Enemy”, num registo quase confessional, seguido de “w.o.t.h.”. Quando regressou a “Tummy” e “Sanctuary”, já com a sua banda (bem sincronizada), o público sentiu o concerto ascender a um plano mais luminoso, onde a emoção se tornava partilhada.

    Mas o clímax chegou, inevitavelmente, com “Indigo Night”. Este tema, um dos mais amados do seu repertório, transformou o LAV num santuário de contemplação. As luzes azuladas, o violoncelo em surdina e o timbre envolvente de Tamino criaram uma atmosfera quase litúrgica. Já no encore, surgiu “Habibi” – melancólica história de amor a um ente (físico ou espiritual), com o seu refrão em falsete que ecoou pela sala como um cântico de devoção. Era a consagração do instante, o triunfo da vulnerabilidade sobre o ruído do mundo – por mim, ficava por aqui e tudo o mais poder ser medíocre que já estavam asseguradas as 5 estrelas.

    Entre as sombras e os clarões, Tamino provou que ainda há espaço, na música contemporânea, para a beleza que não precisa de artifício. A sua arte é feita de despojamento, de entrega e de uma honestidade que desarma. Por isso mesmo, exige do público um grau de concentração e silêncio raros — o mesmo silêncio que faltou a alguns, incapazes de compreender que há concertos que são quase orações.

    Ao sair, voltei a olhar para o meu pulso e para a pulseira que restava. Já não era sinal de hospital nem de espectáculo: era um lembrete de que, entre o corpo que cai e a alma que canta, há uma vida que pulsa, desordenada e magnífica.

    E talvez seja esse o maior ensinamento de Tamino: que a beleza não é ausência de dor, mas a sua sublimação. Que viver é, afinal, andar entre quedas e concertos, entre ferimentos e melodias — e que cada um desses instantes, mesmo os mais caóticos, é uma nota indispensável da sinfonia maior que chamamos existência.

    Nota final: 5 em 5.

    Fotografias: Gonçalo Silva / Last Tour

  • O homem que amava os clássicos russos

    O homem que amava os clássicos russos


    Rindo, pestanejando e ameaçando a mancha verde com os dedos, Varka aproxima-se cautelosa do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de estrangulá-la, deita-se rapidamente no chão, ri de alegria porque já pode dormir e, um instante depois, dorme profundamente, como se estivesse morta…

    “Olhos mortos de sono”, Anton Tchecov


    Às cinco da tarde, com um pontapé, livrou-se do lençol e saltou da cama. Em vez de encaminhar-se diretamente para a cozinha, como fazia sempre, espreguiçou-se demoradamente. Depois, entreabriu a janela.

    Seus esverdeados olhos de animal noturno contraíram-se diante do brilho dourado nas pedras do calçamento.

    – Todos os seres ficam quietos no verão.

    Ninguém cruzava a rua sonolenta. Era domingo e as pessoas estavam dentro de suas casas, sufocadas. O sol forte as mantinha prisioneiras.

    Inverno ou verão, acordava pelo fim da tarde e descia à cozinha para beber um copo de leite. O gosto ruim na boca. Anos e anos, varando as noites obscenas. Uísque. Mas nos últimos meses decaíra para a cachaça.

    – A sede dos homens aumenta com o passar dos anos.

    Sua voz era estrangulada, áspera.

    Afastou-se da janela. O quarto era amplo e caótico. Pés desencontrados de sapatos esfolados espalhavam-se pelo tapete, entre a cama e a cômoda. Havia roupas empilhadas de qualquer jeito sobre as cadeiras. Os lençóis amarfanhados estavam visivelmente sujos.

    – A maldita empregada cansou de trabalhar de graça.

    Adquirira o hábito de falar sozinho após a morte da mãe. Conversava com ela e com todos os outros fantasmas soturnos que o seguiam pela casa imensa.

    Mirou-se no espelho da cômoda.

    Era seco de carnes, estatura mediana, cabelos grisalhos. O traço mais forte no rosto pálido era o dos lábios, descaídos, como que sujeitados por um permanente riso de escárnio.

    – Como os ratos, os empregados sabem prever os naufrágios – murmurou, irônica, a figura esguia no fundo do espelho.

    Deixou o quarto, desceu a escadaria.

    Nuvens compactas de teias de aranha pareciam ligar as paredes ao forro da sala. Dir-se-ia que as paredes viriam abaixo ou que o teto ruiria, se não houvesse aquelas teias. Nas paredes manchadas pela umidade viam-se as silhuetas de quadros arrancados dali. Grossa camada de poeira cobria o sofá remanescente, estofado em couro, e formava um diáfano tapete sobre as tábuas do assoalho. Uma espécie de trilho, aberto por pés descalços, cortava a sala.

    – Amanhã ou depois viriam mesmo cortar a energia elétrica – murmurou, dando de ombros. – E eu não posso viver sem o meu leite gelado. Um homem precisa ter os seus luxos.

    Parado no centro da sala, na trilha que o conduzia todo entardecer à cozinha, observou os poucos retratos restantes. O riso desdenhoso lhe acentuava as rugas em torno dos olhos. Sempre que mirava aquelas fotografias, via-se instantaneamente levado a um tempo sem urgências, um tempo suspenso em algum lugar fora do mundo. Sentia-se menino enrodilhado no colo da mãe.

    – Todas as mulheres cheiram a pão quente.

    Arrastando os pés nus, passou à frescura da ardósia do corredor. Chegou à cozinha. A luz crua da tarde, que penetrava por uma janela destroçada, fez com que seus olhos piscassem.

    – Cinquenta anos, hoje. Deus é ambíguo. Nunca se sabe onde Ele quer chegar com suas brincadeiras. São incontáveis as formas que arranja para nos atormentar. O certo é que Ele se diverte.

    Abriu a geladeira e apanhou o leite. Sentou-se e derramou o leite num copo sujo. Bebeu com volúpia.

    – Palavras também correm o risco de extinção. Um dia o mundo se verá livre, por fim, dos homens sôfregos. Sofreguidão é uma dessas palavras.

    Era uma sede antiga, incontrolável. Naquele tempo bebiam porque eram jovens, ricos, atléticos e debochados. Precisavam extravasar a energia represada. Bebiam para ter coragem na hora de tirar as meninas para dançar no Clube Comercial ou para provocar brigas no final dos bailes.

    – Mulheres são redondas.

    Agora as compreendia um pouco mais. Tateava por fim no mistério de todas elas: as mocinhas do centro e as decaídas dos puteiros. Eram redondas, fechadas em si mesmas. Embora, por mais de trinta anos, tivesse vivido apenas entre as rameiras, sabia que todas elas, indistintamente, só querem dos homens os filhos que eles podem, eventualmente, semear nelas. Porque as prostitutas bebem, choram e se confessam como todas as outras.

    Persignou-se, ergueu o copo e disse:

    – A purificação pelo leite.

    O silêncio da casa. Apreciava a quietude das horas perdidas da tarde. Em geral, voltava logo ao quarto para ler. Mas naquele dia, dia do seu aniversário, deixou-se ficar à mesa, bebericando um segundo copo de leite, com os mesmos tragos curtos e lentos que dava no uísque, antes. E na cachaça, depois.

    Não, não leria naquela tarde, a derradeira, porque tinha muito a fazer. Mas, se fosse ler, na certa ficaria com Gógol. Se fosse mais jovem, escolheria o gigantesco Tolstói ou o amargo Dostoiévski. Mas a verdade é que, nos últimos tempos, se identificava mais com a loucura risonha de Gógol e com a leveza trágica de Tchecov.

    – Fevereiro não é um mês decente para se morrer. Concordas, Ivan Ilitch? As pessoas ainda estão na praia, veraneando.

    Morto, era certo que ninguém iria ao cemitério. Dedicara toda sua vida a cortar laços.

    Por anos, sonhara com uma discreta morte solitária. Uma síncope. Nesse caso, quantos dias seriam necessários para que lhe encontrassem o cadáver? Uma semana? Um mês? Quem viria primeiro? Os bombeiros? Os urubus?

    Depois, se alguém insistisse nos tolos rituais da morte, quem apareceria no velório? As mundanas? Sim, gostaria de tê-las perto de si, escandalosamente pintadas e vestidas. Macilentas todas. Chorando como acham que devem chorar as pessoas de bem: teatrais.

    – Putas não existem mais. Agora se chamam garotas de programa, têm nomes exóticos e atendem nos hotéis. Vão aos apartamentos de casais jovens. Aceitam deitar-se com mulheres. Fazem amor dentro dos carros. Dizem obscenidades ao telefone.

    Os antigos bordéis. Música e alegria. Homens ricos e mulheres bem-vestidas. Noitadas regadas a contrabando – champanha francês e uísque escocês. Era um rapaz, então.

    Tudo parecia tão distante no tempo. As mulheres foram ficando mais feias e pobres. Os músicos desapareceram – levando a alegria com eles – espantados pelas vitrolas. Casas com lâmpadas vermelhas na porta foram surgindo nas ruas estreitas do Porto. Pouca luz para mascarar a sordidez. Mesquinhos homens culpados. Magras mulheres amargas. Um mundo entrara em decadência e desaparecera em poucos anos.

    – Sobrevivi. Mas por pouco tempo. Sou um animal noctívago em extinção.

    Voltou à sala. Empurrou lentamente o sofá – era pesado – para o centro da peça. Secou o suor da testa. Finas nuvenzinhas de poeira subiam do assoalho. Espirrou. Concluída a tarefa, sentou-se no velho sofá para descansar um pouco.

    – Éramos jovens e o mundo girava em nossas mãos.

    Estava de frente para a fotografia dos seis rapazes sorridentes. Dos seus amigos de loucuras juvenis, dois haviam morrido. Um num acidente de carro. Outro, como Ivan Ilitch, corroído por uma doença má. Os outros agonizavam nessa coisa que chamam vida, cercados por filhos estúpidos, mulheres levianas e pelo vazio do cotidiano.

    – A vida é um saco sem fundo de pequenas atrocidades, mamãe. Melhor fechar esse livro ruim.

    De olhos cerrados, ligeiramente arquejante, recostado no sofá, percebeu que de alguma parte vinha uma leve brisa que lhe esfriava o suor e lhe arrepiava a pele. Estava nu. Lembrou do frescor que sentia quando, menino, enfiava os pés no arroio da fazenda.

    – Onde estarão meus pais, Anton Pavlóvitch? Será que os encontrarei no outro mundo? Devo falar a eles sobre minha vida inútil? Não, talvez eu não consiga, como não pôde o cocheiro Jonas falar da morte de seu filho.

    Sua respiração voltara ao normal. Abriu os olhos e demorou-se observando na fotografia amarelada o rapaz bem-vestido que abraçava amigos sorridentes. Por que raios se transformara em um amargo e solitário cinquentão?

    – Os deuses são sempre mais impiedosos com os que leem muito.

    Depois de mais um espirro, levantou-se. Dirigiu-se à biblioteca. As paredes tinham estantes de alto a baixo. Só num pequeno trecho ainda havia livros. Por entre as teias de aranha, sobre a poeira, adivinhava-se a marca dos volumes que, alinhados, aguardaram por décadas o momento de serem levados, sacola por sacola, ao sebo.

    Parado diante dos livros remanescentes, olho acostumado a medir, calculou que lhe restavam uns duzentos volumes. Sorriu. Se quisesse, poderia comer por mais uma semana.

    Estavam ali também os livros mais queridos, os que por anos mantivera no quarto ao alcance da mão.

    – Eras madeira, palavra. Madeira voltarás a ser.

    Apanhou um volume. Almas mortas.

    Desde setembro (ou seria outubro?), comia livros. Vinte ou trinta por dia, conforme a encadernação. Enfiava-os numa sacola. A loja de livros usados ficava bem próxima e o dono sempre lhe oferecia um cafezinho.

    O alfarrabista simpático quis comprar tudo de uma sentada.

    – Mando um carroceiro apanhar a livralhada toda de uma vez só, doutor.

    – Prefiro viver à prestação – respondeu.

    Gostava de negociar os livros aos poucos, do mesmo modo como antes vendera móveis, prataria, relógios, armas, bibelôs e até mesmo as molduras de prata de alguns retratos. Devagarinho.

    – Retratos deixam marcas nas paredes, como os pés na terra úmida.

    Mercadejava com gosto. Ah, com que secreto prazer vendera tudo, lentamente, entregando só o mínimo para assegurar meia dúzia de magros jantares e discretas bebedeiras! Excitavam-no as demoradas negociações com os belchiores nos bricabraques escusos. Encantava-se com a dissimulação e com as trapaças chorosas dos mercadores avarentos.

    Avaro ele mesmo, mesquinhamente vivera sua vidinha, medida em poucas doses de uísque por noite. Falsamente lúbrico, dirigia galanteios às mariposas, prometia-lhes o céu e pagava-lhes a cuba, mas jamais gastava o que realmente queriam as madames: o dinheiro do quarto e o michê.

    Gastando o mínimo, vivendo o menos possível.

    Dois anos antes, travara a batalha final, o Armagedon, contra os usurários. Teve que caçá-los nos porões onde se entocavam. Perambulou muito até encontrar aquele que aceitou receber – como garantia de um empréstimo que, sabia-se de antemão, jamais seria resgatado – o decrépito casarão de dois andares.

    Encenaram uma farsa.

    O cínico agiota sabia que a casa caía aos pedaços, que ruía lentamente desde o dia em que morrera a mãe do homem que o mirava com olhos brincalhões. Sabia também que aquele homem jamais havia trabalhado um só dia na porca da sua vida e que era um boêmio inveterado que varava as noites na companhia das vagabundas. Sabia, em suma, que a dívida jamais seria quitada e que o casarão, um dia, lhe seria entregue.

    – Foi como vender almas mortas, meu caro Nicolau Vassiliévitch. O danado nunca esteve interessado na casa. Pretende pô-la abaixo para vender o terreno aos construtores de edifícios. Mas também está de olho nos tijolos antigos, nas janelas e portas lavradas e nos vitrais, que pretende repassar aos negociantes de material de demolição. Terá bem menos do que imagina.

    Deixou cair o livro.

    Um arrepio de frio o sacudiu. Avançou para a estante e, lento e metódico, se pôs a derrubar os volumes restantes. Braçada por braçada, os livros estrondeavam no assoalho, em meio a poeira. Aos poucos, os movimentos do homem tornavam-se nervosos, urgentes, incertos. Queria acabar logo com aquilo.

    – Companheiros de tantos anos, o inferno vos espera de boca aberta!

    Ao contrário da corja espalhafatosa que encontrava nos botecos e lupanares, os livros eram contidos e silenciosos.

    – Só existe dignidade no papel.

    Invariavelmente, lia três ou quatro horas por dia, entre o copo de leite do tardio despertar e o momento em que saía à rua. Aninhado nos braços da poltrona que pertencera a seu pai, e, antes dele, a seu avô, pés apoiados na cama, imerso na quietude da casa vazia, afundava nos mundos maravilhosos que se escondem nas folhas amareladas.

    – Na leitura reencontramos o tempo da infância, quando não nos atormentam as paixões e os remorsos.

    Nos últimos três dias relera, pela undécima vez, A morte de Ivan Ilitch. Há anos ocupava-se apenas dos poucos volumes que mantinha empilhados sobre o toucador. Sempre os mesmos autores, russos todos. Lia-os conforme o que lhe ia pela alma.

    – Ajudaram-me a vencer o tempo. Que mais me poderiam dar?

    Fitava a pilha de livros no chão.

    Espirrou novamente. Pela primeira vez não temeu o ataque de asma que certamente viria depois. Não o assustavam mais nem a poeira nem a brisa. Estranhamente, sentia-se bem. Mais que isso: exultava, leve, liberto.

    Voltou à cozinha, apanhou a caixa de fósforos e saiu para o pátio.

    Por uns instantes, seus olhos piscos passearam curiosos pelo capim crescido tentando descobrir os canteiros de tantos anos antes. Não os encontrou. Nem percebeu o lixo que se acumulara ali – latas enferrujadas, jornais velhos e garrafas quebradas -, mas pensou ter vislumbrado um menino a correr por entre flores que não existiam mais.

    Vagaroso, dirigiu-se à curta escada de pedra que levava ao porão. A porta, sem fechadura, cedeu ao primeiro empurrão.

    – Aqui começa o meu subsolo, Fiódor Mikháilovitch.

    Encurvado, tateando as paredes, avançou para dentro da escuridão sufocante. Tropeçou, praguejou e riscou alguns fósforos até chegar ao quartinho.

    Lembrou então de uma tarde igual, incendiada de calor, trinta e tantos anos antes. Voltou a sentir, uma vez mais, o cheiro azedo da mulher. Escutou-lhe a voz encatarrada. Fedia a tabaco e suor. Recordou com renovado horror o ruído de um corpo que se estendia crepitando sobre o colchão de palha.

    A saliva. Não conseguiu evitar um engulho quando lembrou do gosto da saliva dela. Mais uma vez, sentia-se abatido pelo medo e pela humilhação. De novo, tantos anos depois, sentia vontade de fugir dali como um menino assustado.

    – O imorredouro horror da vergonha.

    Riscou mais um fósforo e protegeu a chama com a mão em concha.

    Seus olhos correram pela parca mobília – a cama desconjuntada, a cadeira sem uma das pernas, a mesa tosca, o pequeno guarda-roupa – e se detiveram no garrafão com a gasolina.

    Soprou o fósforo e retirou a rolha do garrafão. Às cegas, verteu o combustível por cima da cama.

    Resfolegando, recuou uns passos. Acendeu outro fósforo e o lançou em direção ao leito. O clarão o ofuscou. Perseguido pelo calor e enfeitiçado pelas labaredas, recuou andando de costas.

    Ao sair do porão, fechou a porta e nela encostou a testa suada. Ouviu ou pensou ouvir o alvoroço das chamas que comiam o pequeno quarto que hospedara tantas empregadas.

    – Anônimas mulheres que o tempo leva e traz.

    Voltou à casa.

    Na sala, por trás da cortina, estavam dois outros garrafões de gasolina.

    O homem nu sorriu ao lembrar do atendente do posto de gasolina que quis saber por que viera ele, por vários dias seguidos, todo final de tarde, encher com gasolina aqueles empoeirados garrafões de vinho.

    Não resistiu à vontade de zombar.

    – Vou dar uma festa no dia do meu aniversário de cinquenta anos.

    Com o sorriso triste ainda encavalado nos lábios, verteu parte do primeiro garrafão sobre o sofá no centro da sala. Com o resto banhou os cortinados de veludo.

    Respirava com dificuldade quando parou e se pôs a escutar a voz do fogo que vinha do porão: um lamento surdo, crescente, que prenunciava um rugido furioso.

    Com o segundo garrafão, encaminhou-se para a biblioteca.

    – As subterrâneas labaredas sedentas já mordem ávidas as tábuas do assoalho, Fiódor Mikhailovitch.

    Verteu a gasolina sobre o emaranhado de livros, em que se destacava a lombada mais grossa de Guerra e paz.

    – Você sabia, Leão Nicolaiévitch, que os homens queimam livros sempre que há problemas?

    Lento, nauseado pelo cheiro do combustível, dirigiu-se à escada.

    Galgados três degraus, lançou um fósforo aceso sobre a mancha de gasolina no chão. A chama correu, azul e ligeira.

    – Estantes vazias também são boa lenha.

    Imóvel, o homem magro observou o altear das chamas que logo galgaram, famintas, as cortinas de veludo.

    – Eu queimo o tempo.

    Sarcástico, fez a contrafação de um gesto religioso.

    Passos pesados, subiu ao seu quarto.

    Lá apanhou as roupas jogadas sobre as cadeiras e as empilhou em cima da cama que pertencera a seus pais, e onde dormia, sozinho, há tantos anos.

    Quando esvaziava as gavetas, encontrou o pequeno dragão chinês de porcelana, o único bibelô da mãe que guardara.

    – Salve, impávido rei dos seres imaginários!

    Colocou o bibelô sobre o assento da larga poltrona de couro na qual se sentava para ler todo final de tarde.

    Empurrou a penteadeira vazia para junto da cama e depois apanhou o garrafão de gasolina, que verteu sobre aqueles dois móveis.

    Apesar do bruto cansaço que lhe estrangulava a respiração, ele tinha nos olhos claros um cintilo de satisfação – raro nele, raro em toda sua vida – ao contemplar a desordem do quarto.

    – Caos definitivo, derradeiro caos.

    Pegou o dragão de porcelana e com ele no colo sentou-se na poltrona.

    Concentrou-se nas diferentes vozes do fogo: o remoto rosnar das chamas do porão, o macio deslizar das labaredas pelas cortinas de veludo e o doloroso crepitar dos livros.

    Precisava esquecer a saliva amarga da mulher, o frio das águas do regato ancestral e os sorrisos das velhas fotografias.

    Foi sacudido por um arrepio.

    Para estancar a vertigem dos pensamentos, levantou-se. Abriu a porta do quarto e viu a língua amarela alcançando o topo da escada: o fogo sequioso, o fogo faminto.

    Fechou a porta.

    Avançou até a janela. O martelo e os pregos estavam no chão.

    Precisava estar certo de que não ia fugir no último instante, como na tarde em que a mulher se deitou sobre a cama com um ruído de labaredas queimando gravetos.

    Pela última vez, contemplou as lisas pedras do calçamento da rua que levava ao porto, larga rua de um bairro de casarões decrépitos. Não viu um só ser humano. Se quisesse pedir socorro, não teria a quem recorrer.

    – Janelas e portas abertas tentam os suicidas arrependidos.

    Cravou o primeiro prego. E muitos outros, até que a janela não poderia mais ser aberta.

    Exausto, voltou a sentar-se na poltrona abraçado ao dragãozinho branco.

    – A melhor purificação possível – murmurou. E, para as chamas que lhe batiam à porta, gritou:

    – A purificação pelo fogo!

    E se pôs a cantarolar uma cantiga obscena.

    Lourenço Cazarré é escritor

  • Os teus olhos 

    Os teus olhos 

    Dizem que herdei os teus olhos. Sempre encolhi os ombros, neguei, desviei a conversa. Insistem, garantem-me que não há outros iguais. Respondo que já vi muitos parecidos, que é certamente impressão.

    Hoje, sentada na cadeira, de frente para o meio-rosto do oftalmologista, ouço-o chamar a assistente:

    — D. Isabel, chegue aqui. Ora espreite — diz-lhe.

    Ela aproxima-se, ajeita-se, e eu sem perceber muito bem o que se passa. O que terá ele visto de tão estranho para chamar a senhora?

    — Olhe que estou quase na reforma e nunca tinha visto uns olhos desta cor — conclui.

    — Nem eu — responde a assistente, dando-me em seguida os parabéns, como se se tratasse de um grande feito

    — A quem saiu com estes olhos? — pergunta o médico.

    E respondo, pela primeira vez e quase para dentro, que foi a ti.

    Vejo-me agora ao espelho. Repito gestos e movimentos que fiz centenas de vezes: aproximo-me, aponto luzes, abro completamente os olhos. Fui buscar uma fotografia tua. Procuro a mais pequena diferença que me permita dizer, de uma vez por todas e com segurança, que não são os teus olhos. Mas são: estão aqui, no meu rosto.

    Noto, porém, que, felizmente, herdei apenas os olhos, não o olhar. Porque os teus olhos, diziam, enfeitiçavam. Quantas vezes juraste sinceridade? Quantos te confiaram vidas e bens? Quantas mulheres se perderam neles, fascinadas? Cheguei a acreditar que podias encantar serpentes, se quisesses.

    Mas não foram os olhos: foi o teu olhar. Foi o teu modo de fixar sem pudor, de medir os outros sem compaixão, de atravessar as pessoas como alvos. Os teus olhos eram belos; o teu olhar, devastador.

    Percebo agora que o que receio não é que descubram que herdei os teus olhos: é que confundam o meu olhar com o teu. É vergonha e temor de ter em mim o mais pequeno vestígio de ti.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O malandro 

    O malandro 

    Fortunato estava rico. Riquíssimo. Fizera um grande negócio. Desses que aparecem uma vez na vida:  um golpe de pura sorte. Não exigira visão, nem talento, nem sequer o mínimo esforço. Vendera a propriedade que herdara havia anos. Vendera-a bem. Muito bem, na verdade. E foi assim que,  de um momento para o outro, aquele homem que nunca tivera um tostão, se viu dono de uma fortuna.

    Engana-se quem acredita que a sorte bate à porta dos que mais trabalham. Que o esforço é sempre recompensado e que um dia os preguiçosos pagarão pelo seu pecado. A velha história da formiga e da cigarra – pura ficção. Coisa de fábula e  de livros edificantes, criados para nos convencer a passar a vida a trabalhar. Não da vida real. Fortunato era a prova viva disso mesmo. O mais acabado exemplo de malandro à face da Terra. Nunca fez nada, nunca quis fazer. Dizia a própria mãe que não valia a água que bebia. E aqui estava ele, abençoado pelo acaso  com o que outros procuram, em vão, durante uma vida inteira de labuta e sacrifício.

    Fortunato nunca duvidara de si próprio. Sabia que tinha nascido para ser rico. Era uma vocação. Um talento que a falta de liquidez o impedia de demonstrar. Chegara a sua oportunidade. Multiplicaram-se os brinquedos – carros desportivos, motas de alta cilindrada, barcos, relógios extravagantes – almoços demorados, jantares principescos regados com vinhos escolhidos a dedo. A mesa cresceu. A cada dia surgiam novos amigos. Pessoas que finalmente tinham tido a oportunidade de perceber o seu requinte, os seus atributos ofuscados pela falta de recursos.  Não havia médico, advogado, juiz ou comerciante de prestígio que ousasse faltar: todos corriam a sentar-se à mesa do ilustre anfitrião.

    Mas, como a água que cai do céu e tomamos como certa, também o dinheiro de Fortunato se sumiu rapidamente. A conta encolhia a olhos vistos e, com ela, o séquito que o acompanhava para todo o lado. Pertences, viagens, aventuras, amigos, tudo foi rareando.

    A riqueza foi-se, a malandrice, essa, ficou. Era o mesmo Fortunato de sempre. É que, ao contrário do que sucede nas fábulas e histórias de embalar, não aprendeu nada com a queda. Pelo contrário, revoltou-se contra a injustiça de regressar a uma condição que não combinava consigo.  Não compreendia como podia o destino ser tão cruel. Até a Ritinha, colega da filha  a quem generosamente pagara o curso e montara casa junto à universidade, sempre tão dedicada, teve de regressar para junto da mãe que adoeceu subitamente.

    Vendeu o imóvel para ajudar nas despesas médicas e partiu inconsolável com a separação. Entre lágrimas, confessou-lhe que talvez tivesse de se desfazer também do jipe e das joias que lhe oferecera, tão difícil era a situação.  Uma tragédia. Uma falta de sorte inexplicável. A revolta de Fortunato era tal, que  o deixou incapaz de trabalhar. Viveu, por isso,  o resto dos seus dias à conta do trabalho da mulher, que teve a honra de sustentar a distinta figura até ao final dos seus dias. 

    Não, no final nem todos têm o que merecem, a lei do retorno universal não existe, a justiça divina é uma miragem, e um malandro será sempre um malandro.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Perceba-se: um tipo anda já a meio dos cinquenta, com ares de respeitabilidade — pouca, é certo, porque o cabelo comprido não ajuda — e com o peso da idade a cair-lhe nos joelhos e nas pálpebras, e de repente dá por si a enfiar-se no Meo Arena para ver Shawn Mendes. Sim, Shawn Mendes, um rapaz com metade da minha idade, de apelido português, mas canadiano de nascença, que canta baladas capazes de fazer suspirar uma geração que poderia ser filha (ou, pior ainda, neta) deste escriba.

    É a vida a passar e a passear-se. Os de hoje têm Shawn Mendes como nós tivemos George Michael na fase dos Wham! — pré-metafísica de Jesus to a Child — ou até Rick Astley, com aquele pop asseado que parecia saído de uma lavandaria britânica. E se quisermos rebobinar a cassete para os anos 90, o paralelo mais directo será talvez Robbie Williams na transição dos Take That para a carreira a solo — ainda sem o sarcasmo autodestrutivo — ou o Bryan Adams de (Everything I Do) I Do It for You, que fez suspirar meio planeta. Há até uma pontinha de Glenn Medeiros, também ele de raízes lusitanas, para quem se lembra de ouvir Nothing’s Gonna Change My Love for You nas rádios de 1987.

    João Padinha / Everything is New

    Aliás, o sucesso de Shawn Mendes em solo português não deixa de ter graça: há aqui uma espécie de herança lusófona que faz lembrar Nelly Furtado nos anos 2000, esse orgulho luso-canadiano que conquistou os tops mundiais like a bird.

    Cheguei ao concerto quase às cegas: conhecia três ou quatro músicas, mas confesso que não saberia entoar o refrão de nenhuma. E aterrei, sem ver as actuações da belga Lubiana e da portuguesa Maro, num mar de adolescentes e jovens adultos, talvez 95% mulheres — os outros 5%, presumo, seriam namorados resignados — e esperei para ver o que dali saía.

    Antes de Shawn Mendes aparecer, depois da entrada dos músicos, concebi um título possível da crónica: Um concerto de telemóveis e (de) gritos. Os telemóveis formaram uma maré luminosa constante — grava-se tudo, mesmo que se veja pouco — e os gritos surgiam em modo sirene, sobretudo cada vez que o rapaz sorria, dizia “Lisboa” ou pegava na guitarra. Confesso: para quem está ali apenas para escrever uma crónica sociológica, quase como um extraterrestre, há encanto nisto. Mas também fica a sensação de que estamos num karaoke gigante: as fãs cantam tão alto que às vezes quase não se percebe se o homem canta mesmo bem ao vivo. Suspeitei logo no início que sim, mas só nas baladas mais intimistas consegui confirmar.

    João Padinha / Everything is New

    O concerto abriu com um foguetório e There’s Nothing Holding Me Back, e Mendes tomou conta do palco com uma naturalidade desarmante: calças largas, colete negro, um sorriso de fazer corar as adolescentes. O som esteve sempre coeso, a banda entusiasmada, e o alinhamento trouxe alguns temas que já conhecia: Wonder, Treat You Better, Monster, Lost in Japan em modo disco, e, inevitavelmente, Señorita, com as fãs a cantar de forma ensurdecedora.

    E pelo meio, uma ligação genuína ao público. Mendes falou da família, disse sentir-se “em casa”, embora sem dizer uma frase em português, vestiu a camisola 21 em homenagem a Diogo Jota — uma espécie de ritual de ligação a Portugal — e até deixou cair umas palavras sobre Gaza, apelando ao fim do ódio e à escolha do amor. Foi o momento político da noite, relevante para uma plateia que talvez não siga de perto o que se passa no Médio Oriente.

    Entre as músicas novas e as “velhas glórias” — não são assim tantas, que o rapaz tem apenas 27 anos —, Shawn Mendes equilibrou intimismo e espectáculo, emoção e energia. O cenário foi minimalista, sem grandes parafernálias, mas eficaz: uso ponderado dos ecrãs, fogo-de-artifício na medida certa, nada de Las Vegas, mas o suficiente para dar aquele sabor de noite grande.

    Foto: Pedro Almeida Vieira

    Na recta final, a sequência If I Can’t Have You, Why Why Why e In My Blood levou o público ao delírio, culminando com confettis, bandeiras de Portugal e a deliciosa ironia de sair ao som de Uma Casa Portuguesa. Há programadores de setlist que merecem um abraço só por estas ideias.

    Saí do Meo Arena surpreendido: não porque sobrevivi sem perda auditiva permanente, mas porque percebi que Shawn Mendes tem mais estofo do que a simples máquina de hits pop faria supor. Tem carisma, voz, uma ligação genuína aos fãs e uma presença de palco que não se aprende nos reality shows. Tem, acima de tudo, uma coisa rara no mundo do mainstream: autenticidade. E, por entre telemóveis erguidos e gritos esganiçados, é isso que um bom concerto deve mostrar.

    Nota final: 4 em 5.

  • Moderna 

    Moderna 

    Ficar na aldeia nunca fora uma opção. Sempre sentira o apelo de um mundo maior, mais arrojado, vanguardista, e ansiava por vê-lo de perto. Tinha a certeza de que era esse o seu lugar. Dizia, muitas vezes, que a cegonha a deixara ali por engano. Só podia!

    Tudo na aldeia lhe parecia pequeno: os lugares, as distâncias, os horizontes, as mentes das pessoas. 

    O facto de ter sido colocada numa pequena universidade do interior só veio acentuar o desejo de partir à descoberta. Por isso, agarrou sem hesitar a primeira oportunidade de fazer Erasmus. O destino escolhido foi Berlim. Mal podia acreditar que, finalmente, estava prestes a realizar o seu sonho. Chegado o dia, levou uma mala quase vazia — na expectativa de no regresso a trazer cheia de objetos fantásticos —, o computador, um salpicão e um pão caseiro, um casaquinho de malha e um cachecol a condizer enrolado ao pescoço. É que mãe que é mãe não deixa a filha ir para a Alemanha desprevenida e desagasalhada. Nunca se sabe…

    Mal aterrou, a Mimi teve a certeza de ter chegado a casa. Berlim era tudo o que antecipara: enorme, vibrante, excitante, moderna. Uma cidade de acontecimentos marcantes, movimentos arrojados, exposições memoráveis, artistas consagrados. Estava convicta de que dali sairia outra. Já se imaginava a regressar e a deixar todos boquiabertos com a nova Mimi.

    Não perdeu tempo. Ao segundo dia, já tinha adquirido um passe cultural e iniciado a maratona pelos museus e galerias da cidade. Passou rapidamente pela Ilha dos Museus. Fazia parte. Mas os Antigos, os Clássicos e os Românticos eram demasiado literais para o seu gosto: bustos de rainhas de perfil perfeito, guerreiros e cavalos de bronze, naturezas-mortas com flores e frutas eternamente frescas, homens e mulheres a contemplar a paisagem de costas para o visitante. Nada de extraordinário. Qualquer um olha e entende. O que ela queria mesmo era desafiar-se com os contemporâneos, mergulhar no enigma, no conceito, no indecifrável. Desvendar as mensagens que se escondem por detrás de uma disforme mancha azul sobre um fundo branco; de um olho triangular que espreita numa tela amarela com riscas vermelhas; ou de centenas de pinceladas soltas lançadas sobre uma base de serrapilheira. Não os percebia, nem mesmo depois de ler as longas descrições que os legendavam. Mas espantavam-na. Tão ousado. Tão à frente… Ah, se as pessoas da aldeia a vissem ali!

    As obras de arte, essas, nem valia a pena tentar explicar. Aquilo era uma gente que não percebia nada e ainda fazia pouco. O pai aproveitava todas as oportunidades para dizer:

    — Se vires uma banana colada à parede, não deixes apodrecer. Joga-lhe a mão, que estragar comida é pecado.

    Santa paciência! A verdade é que ela também não percebia, mas ao menos tentava e sabia que tinha tudo muito valor. Era uma rapariga persistente. Se ali tinha chegado, não era agora que ia desistir de ser moderna. Durante meses, percorreu galeria após galeria, com a folha de sala na mão. Observava as peças de vários ângulos: de perto, mais ao longe, com os dois olhos abertos, depois semicerrados, fechava um, depois o outro. Sempre à espera da revelação que teimava em não acontecer.

    Um dia, deparou-se com um tríptico fabuloso: sobre cada uma das três telas estavam coladas duas folhas arrancadas de um caderno de argolas pautado e, sobre estas, desenhadas linhas que, por mero desconhecimento, lhe pareciam aleatórias, feitas com pasta de dentes. Reparou que não era sempre o mesmo dentífrico: um era branco, vermelho e azul; o outro, branco, verde e vermelho; e o último, apenas azul e branco. A legenda explicava: Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. Leu e releu e, para grande desgosto seu, continuava a ver apenas folhas coladas e pasta de dentes. O único trauma ali era mesmo o dela, até porque as pessoas ao redor pareciam encantadas: “Ah!”, “Oh!”, “Profundo!”, “Audaz!”, “Maravilhoso!”, exclamavam.

    A Mimi sentia-se deslocada. Frustrada. Chegou a perguntar-se se o seu lugar não era mesmo na aldeia, se os anos ali passados não lhe teriam acanhado o espírito. Perguntava-se o que lhe faltava para ser como aquelas pessoas. E foi então que parou para as observar. Sentou-se. Ouviu as conversas. Fotografou-as e filmou-as como se estivesse a apontar aos quadros.

    Não se ia dar por vencida. Estudou cuidadosamente o material recolhido. Na semana seguinte, voltou à galeria. Transformada. Franja curtíssima (para alargar o campo de visão), cabelo rapado de um lado e pintado de rosa pastilha elástica. Alargadores nas orelhas (que, mais do que alargar lóbulos, alargavam horizontes). Uma argola no nariz, que a avó diria servir para prender bezerros, mas que ela usava como símbolo de resistência estética. Um vestido largo até aos pés, vintage, que é como quem diz, da Feira da Ladra, e um saco de pano estampado, que lhe garantiram dizer, em japonês, “Arte ou Morte!”. Os óculos com aros espessos de massa branca completavam o visual. Não tinha falta de vista, mas tinha percebido que a arte era muito mais do que a obra — estava no olhar, no léxico, no gesticular, no estilo. Ia compreender aquele tríptico, desse por onde desse.

    Parou diante das peças. As telas, as folhas, a pasta de dentes. 

    Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. —murmurou.

    Uma senhora com ar excêntrico aproximou-se dela, lançou-lhe um sorriso cúmplice e, sem tirar os olhos dos quadros, fez um comentário sobre a poética da desmaterialização. Ela anuiu subtilmente. O coração quase lhe saltava do peito, mas controlou-se. Ajeitou os óculos, levou a mão delicadamente ao queixo e acrescentou:

    — A tensão entre a materialidade da pasta e a fragilidade do suporte…

    — E aquela escolha cromática? Disruptiva. — continuou a interlocutora.

    — Disruptiva! Disruptiva! — repetiu a Mimi confortada.

    Tinha chegado lá.

    Era, finalmente, uma intelectual moderna.

    Ah, se a vissem agora lá na aldeia!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O cavaleiro

    O cavaleiro


    Passeava nas tardes de domingo, sempre domingo à tarde.

    Às três em ponto, com vento ou frio, chuva ou sol, os empregados-fantasmas de sua mansão derruída moviam-se como bailarinos de corda e abriam os portões carunchados da cocheira. Pouco depois, ele surgia no alto da escada, magro, duro e invencível, os olhos azuis fincados em lugar nenhum. Com passos largos atravessava o pátio sombreado. Os galhos de todas as árvores, que haviam crescido sem controle, vinham bater-lhe no rosto, mas ele não fechava os olhos.

    Empertigado, impaciente, batendo com o chicote na perna, esperava que lhe trouxessem seu cavalo de transparente fumaça. Com gosto escutava os relinchos poderosos do mais garboso dos corcéis que se aproximava batendo os cascos nas pedras centenárias do pátio e sacudindo-se em corcoveios que tiravam brilhos inesperados dos aperos de prata.

    Com o capataz segurando as rédeas do animal arisco e fogoso, ele montava. Com um imperceptível gesto da cabeça leonina, ordenava ao empregado que se afastasse para o lado.

    Então, olhando duro para o nada mais distante, saía à rua.

    Os moradores dos edifícios próximos, pelas frestas das cortinas, observavam-no em silêncio. Os meninos tentavam enxergar a montaria invisível. Desalentadas, as mulheres, que geram os homens, sacudiam a cabeça.

    Era assim que ele iniciava seu único passeio semanal. Sereno e digno, cortava as ruas sem lançar um só olhar aos pequenos edifícios que agora conspurcavam a elegância do bairro. Também não se voltava para os antigos casarões porque ali talvez ainda residisse gente que tinha conhecimento da derrocada de sua família.

    Seguia em direção à praça. Passava pelas infinitas portas cerradas do Mercado, pelas agências bancárias e pelas soturnas repartições públicas. Em frente ao Grande Hotel, invadia o passeio que dividia a praça ao meio e, ignorando os meninos que corriam a seu lado, rindo, cotovelando-se e saudando-o com palavrões, levava seu cavalo para beber no chafariz. Deixava que o animal bebesse à vontade. A seguir, dirigia-se à estreita rua principal, onde ouvia, ainda mais claramente, a explosão dos cascos do seu cavalo inexistente sobre as pedras polidas pelo tempo.

    Atrás dele, de dedo colado na buzina, vinham os motoristas impacientes que, assim que podiam, dobravam na primeira transversal.

    Indiferente aos homens, ao frio, à chuva, ao vento, aos automóveis, aos palavrões, ele seguia tranquilo em direção à catedral.

    Passeava assim há mais de trinta anos, desde o tempo em que não havia um só edifício e os carros eram poucos. Passeava assim desde o dia em que, jovem ainda, viu levarem os dois automóveis de seu pai, desde o dia em que soube que não mais poderia voltar ao campo porque não eram mais proprietários daquelas terras, desde o dia em que soube que só lhe tinha restado aquele imperceptível cavalo na cocheira vazia, desde o dia em que ouviu o estampido do tiro no gabinete, desde o dia em que viu o corpo forte do seu pai caído sobre o tapete, desde o dia em que sua mãe refugiou-se no silêncio mais amargo.

    Aos domingos, inalcançável, imperturbável, cavalgava.

    Durante a semana, comia o feijão com arroz e o naco de carne que as empregadas de vizinhos bondosos, sorrateiramente, colocavam todos os dias à cabeceira da grande mesa do salão. Ao meio-dia, enquanto soava o relógio de pêndulo, envergando o melhor dos seus puídos trajes negros, descia para o almoço frugal, sua única refeição diária. Invariavelmente deixava restos, como lhe fora ensinado pela mãe.

    Depois de comer voltava ao seu quarto de jovem a fim de contemplar as gravuras de puros-sangues ingleses ou para escrever bilhetes endereçados aos capatazes das fazendas desaparecidas.

    Às vezes lia sem compreender os livros de Eça e de Machado de Assis.

    De noite, estendido no seu leito dirigia galanteios às moças que conhecera em sua juventude. E passeava pelos campos de sua imaginação marcando bezerros, orientando a preparação das pastagens e observando as mãos grosseiras das mulheres apertando os úberes das vacas. E trotava pelos campos congelados de inverno com a faca do vento a lhe cortar o nariz de imperador romano. E cavalgava mesmo sob os mais terríveis sóis vermelhos de todos os verões.

    Quando o sono demorava, caminhava pela mansão às escuras, esbarrando em móveis decrépitos, espirrando por causa das nuvens de poeira que suas botas de sola furada erguiam das tábuas frouxas, enredando-se nas teias de aranha. Durante esses passeios de sonâmbulo costumava conversar com seu pai sobre a necessidade de expandir os negócios, de buscar reprodutores na Argentina.

    No derradeiro domingo de sua loucura, fez o mesmo de sempre até que o raio da morte, na infalibilidade de um motoqueiro encourado, o abateu na frente da catedral.

    Era perto das cinco da tarde. Mês de julho. A neblina tinha se instalado nas ruas como que para impedir que as casas se chocassem umas contra as outras. Porque as pedras do calçamento estavam úmidas seu cavalo resvalou varias vezes, numa delas quase se indo de peito ao chão. Por isso ele segurava com firmeza as rédeas, a fim de manter o animal de seu sonho num trote muito leve.

    Altaneiro como sempre, atravessara a cidade indiferente às piadas dos rapazes, aos xingamentos dos meninos e às buzinas dos carros, mas naquele dia estava sendo muito custoso dominar o ímpeto do macho, mais arisco ainda por causa da cerração.

    Naquele maldito domingo de julho o homem magro e alto de desgrenhados cabelos prateados sustentou o trajeto de todos aqueles trinta anos. Não encurtaria em um só quarteirão o seu roteiro porque precisava mostrar àquela cidade, como vinha fazendo durante todos os domingos de todos aqueles anos de feitiço, que tudo continuava como antes. Não, não tinha acontecido nada. Eles precisavam saber, e estava tentando mostrar isso a eles havia trinta anos, que um fazendeiro de verdade jamais dobra o espinhaço, nem mesmo quando alguns ladrões lhe roubam as terras e o gado.

    Vinha enterrado na vertigem de seus pensamentos, quando a figura rubro-negra surgiu na esquina. Não, ele não viu o negro das roupagens de couro sobre o vermelho do cavalo de rodas. Não, não ele escutou o rugido daquela fera que não era do seu tempo. Seus ouvidos eram afinados apenas para o ploqueteploque dos cavalos e para o zurrar das manadas.

    Então um raio de aço e calor o atingiu entre as pernas e o projetou, desengonçado pássaro pernalta, sobre as ásperas tijoletas da pracinha da catedral.

    Deitado, fitando o manto da névoa que o cobria nos derradeiros minutos de sua longa vida de embruxado, pôs-se a dar ordens urgentes aos peões: que levassem o gado para outra invernada, que marcassem os novilhos, que sacrificassem aquele pobre cavalo que estava sofrendo sobre as pedras da rua.

    Depois seus lábios secos não se moveram mais.

    Nos últimos segundos de sua solitária vida de encantado, enquanto as garras secas da morte cravavam-se em seu peito murcho, ele deflorou finalmente a garota com a qual não pudera se casar. E, morto, voltou pela primeira vez, depois de um longo exílio, aos vastos campos de sua infância.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Enfeitiçados todos nós.