Categoria: Cultura

  • O malandro 

    O malandro 

    Fortunato estava rico. Riquíssimo. Fizera um grande negócio. Desses que aparecem uma vez na vida:  um golpe de pura sorte. Não exigira visão, nem talento, nem sequer o mínimo esforço. Vendera a propriedade que herdara havia anos. Vendera-a bem. Muito bem, na verdade. E foi assim que,  de um momento para o outro, aquele homem que nunca tivera um tostão, se viu dono de uma fortuna.

    Engana-se quem acredita que a sorte bate à porta dos que mais trabalham. Que o esforço é sempre recompensado e que um dia os preguiçosos pagarão pelo seu pecado. A velha história da formiga e da cigarra – pura ficção. Coisa de fábula e  de livros edificantes, criados para nos convencer a passar a vida a trabalhar. Não da vida real. Fortunato era a prova viva disso mesmo. O mais acabado exemplo de malandro à face da Terra. Nunca fez nada, nunca quis fazer. Dizia a própria mãe que não valia a água que bebia. E aqui estava ele, abençoado pelo acaso  com o que outros procuram, em vão, durante uma vida inteira de labuta e sacrifício.

    Fortunato nunca duvidara de si próprio. Sabia que tinha nascido para ser rico. Era uma vocação. Um talento que a falta de liquidez o impedia de demonstrar. Chegara a sua oportunidade. Multiplicaram-se os brinquedos – carros desportivos, motas de alta cilindrada, barcos, relógios extravagantes – almoços demorados, jantares principescos regados com vinhos escolhidos a dedo. A mesa cresceu. A cada dia surgiam novos amigos. Pessoas que finalmente tinham tido a oportunidade de perceber o seu requinte, os seus atributos ofuscados pela falta de recursos.  Não havia médico, advogado, juiz ou comerciante de prestígio que ousasse faltar: todos corriam a sentar-se à mesa do ilustre anfitrião.

    Mas, como a água que cai do céu e tomamos como certa, também o dinheiro de Fortunato se sumiu rapidamente. A conta encolhia a olhos vistos e, com ela, o séquito que o acompanhava para todo o lado. Pertences, viagens, aventuras, amigos, tudo foi rareando.

    A riqueza foi-se, a malandrice, essa, ficou. Era o mesmo Fortunato de sempre. É que, ao contrário do que sucede nas fábulas e histórias de embalar, não aprendeu nada com a queda. Pelo contrário, revoltou-se contra a injustiça de regressar a uma condição que não combinava consigo.  Não compreendia como podia o destino ser tão cruel. Até a Ritinha, colega da filha  a quem generosamente pagara o curso e montara casa junto à universidade, sempre tão dedicada, teve de regressar para junto da mãe que adoeceu subitamente.

    Vendeu o imóvel para ajudar nas despesas médicas e partiu inconsolável com a separação. Entre lágrimas, confessou-lhe que talvez tivesse de se desfazer também do jipe e das joias que lhe oferecera, tão difícil era a situação.  Uma tragédia. Uma falta de sorte inexplicável. A revolta de Fortunato era tal, que  o deixou incapaz de trabalhar. Viveu, por isso,  o resto dos seus dias à conta do trabalho da mulher, que teve a honra de sustentar a distinta figura até ao final dos seus dias. 

    Não, no final nem todos têm o que merecem, a lei do retorno universal não existe, a justiça divina é uma miragem, e um malandro será sempre um malandro.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Perceba-se: um tipo anda já a meio dos cinquenta, com ares de respeitabilidade — pouca, é certo, porque o cabelo comprido não ajuda — e com o peso da idade a cair-lhe nos joelhos e nas pálpebras, e de repente dá por si a enfiar-se no Meo Arena para ver Shawn Mendes. Sim, Shawn Mendes, um rapaz com metade da minha idade, de apelido português, mas canadiano de nascença, que canta baladas capazes de fazer suspirar uma geração que poderia ser filha (ou, pior ainda, neta) deste escriba.

    É a vida a passar e a passear-se. Os de hoje têm Shawn Mendes como nós tivemos George Michael na fase dos Wham! — pré-metafísica de Jesus to a Child — ou até Rick Astley, com aquele pop asseado que parecia saído de uma lavandaria britânica. E se quisermos rebobinar a cassete para os anos 90, o paralelo mais directo será talvez Robbie Williams na transição dos Take That para a carreira a solo — ainda sem o sarcasmo autodestrutivo — ou o Bryan Adams de (Everything I Do) I Do It for You, que fez suspirar meio planeta. Há até uma pontinha de Glenn Medeiros, também ele de raízes lusitanas, para quem se lembra de ouvir Nothing’s Gonna Change My Love for You nas rádios de 1987.

    João Padinha / Everything is New

    Aliás, o sucesso de Shawn Mendes em solo português não deixa de ter graça: há aqui uma espécie de herança lusófona que faz lembrar Nelly Furtado nos anos 2000, esse orgulho luso-canadiano que conquistou os tops mundiais like a bird.

    Cheguei ao concerto quase às cegas: conhecia três ou quatro músicas, mas confesso que não saberia entoar o refrão de nenhuma. E aterrei, sem ver as actuações da belga Lubiana e da portuguesa Maro, num mar de adolescentes e jovens adultos, talvez 95% mulheres — os outros 5%, presumo, seriam namorados resignados — e esperei para ver o que dali saía.

    Antes de Shawn Mendes aparecer, depois da entrada dos músicos, concebi um título possível da crónica: Um concerto de telemóveis e (de) gritos. Os telemóveis formaram uma maré luminosa constante — grava-se tudo, mesmo que se veja pouco — e os gritos surgiam em modo sirene, sobretudo cada vez que o rapaz sorria, dizia “Lisboa” ou pegava na guitarra. Confesso: para quem está ali apenas para escrever uma crónica sociológica, quase como um extraterrestre, há encanto nisto. Mas também fica a sensação de que estamos num karaoke gigante: as fãs cantam tão alto que às vezes quase não se percebe se o homem canta mesmo bem ao vivo. Suspeitei logo no início que sim, mas só nas baladas mais intimistas consegui confirmar.

    João Padinha / Everything is New

    O concerto abriu com um foguetório e There’s Nothing Holding Me Back, e Mendes tomou conta do palco com uma naturalidade desarmante: calças largas, colete negro, um sorriso de fazer corar as adolescentes. O som esteve sempre coeso, a banda entusiasmada, e o alinhamento trouxe alguns temas que já conhecia: Wonder, Treat You Better, Monster, Lost in Japan em modo disco, e, inevitavelmente, Señorita, com as fãs a cantar de forma ensurdecedora.

    E pelo meio, uma ligação genuína ao público. Mendes falou da família, disse sentir-se “em casa”, embora sem dizer uma frase em português, vestiu a camisola 21 em homenagem a Diogo Jota — uma espécie de ritual de ligação a Portugal — e até deixou cair umas palavras sobre Gaza, apelando ao fim do ódio e à escolha do amor. Foi o momento político da noite, relevante para uma plateia que talvez não siga de perto o que se passa no Médio Oriente.

    Entre as músicas novas e as “velhas glórias” — não são assim tantas, que o rapaz tem apenas 27 anos —, Shawn Mendes equilibrou intimismo e espectáculo, emoção e energia. O cenário foi minimalista, sem grandes parafernálias, mas eficaz: uso ponderado dos ecrãs, fogo-de-artifício na medida certa, nada de Las Vegas, mas o suficiente para dar aquele sabor de noite grande.

    Foto: Pedro Almeida Vieira

    Na recta final, a sequência If I Can’t Have You, Why Why Why e In My Blood levou o público ao delírio, culminando com confettis, bandeiras de Portugal e a deliciosa ironia de sair ao som de Uma Casa Portuguesa. Há programadores de setlist que merecem um abraço só por estas ideias.

    Saí do Meo Arena surpreendido: não porque sobrevivi sem perda auditiva permanente, mas porque percebi que Shawn Mendes tem mais estofo do que a simples máquina de hits pop faria supor. Tem carisma, voz, uma ligação genuína aos fãs e uma presença de palco que não se aprende nos reality shows. Tem, acima de tudo, uma coisa rara no mundo do mainstream: autenticidade. E, por entre telemóveis erguidos e gritos esganiçados, é isso que um bom concerto deve mostrar.

    Nota final: 4 em 5.

  • Moderna 

    Moderna 

    Ficar na aldeia nunca fora uma opção. Sempre sentira o apelo de um mundo maior, mais arrojado, vanguardista, e ansiava por vê-lo de perto. Tinha a certeza de que era esse o seu lugar. Dizia, muitas vezes, que a cegonha a deixara ali por engano. Só podia!

    Tudo na aldeia lhe parecia pequeno: os lugares, as distâncias, os horizontes, as mentes das pessoas. 

    O facto de ter sido colocada numa pequena universidade do interior só veio acentuar o desejo de partir à descoberta. Por isso, agarrou sem hesitar a primeira oportunidade de fazer Erasmus. O destino escolhido foi Berlim. Mal podia acreditar que, finalmente, estava prestes a realizar o seu sonho. Chegado o dia, levou uma mala quase vazia — na expectativa de no regresso a trazer cheia de objetos fantásticos —, o computador, um salpicão e um pão caseiro, um casaquinho de malha e um cachecol a condizer enrolado ao pescoço. É que mãe que é mãe não deixa a filha ir para a Alemanha desprevenida e desagasalhada. Nunca se sabe…

    Mal aterrou, a Mimi teve a certeza de ter chegado a casa. Berlim era tudo o que antecipara: enorme, vibrante, excitante, moderna. Uma cidade de acontecimentos marcantes, movimentos arrojados, exposições memoráveis, artistas consagrados. Estava convicta de que dali sairia outra. Já se imaginava a regressar e a deixar todos boquiabertos com a nova Mimi.

    Não perdeu tempo. Ao segundo dia, já tinha adquirido um passe cultural e iniciado a maratona pelos museus e galerias da cidade. Passou rapidamente pela Ilha dos Museus. Fazia parte. Mas os Antigos, os Clássicos e os Românticos eram demasiado literais para o seu gosto: bustos de rainhas de perfil perfeito, guerreiros e cavalos de bronze, naturezas-mortas com flores e frutas eternamente frescas, homens e mulheres a contemplar a paisagem de costas para o visitante. Nada de extraordinário. Qualquer um olha e entende. O que ela queria mesmo era desafiar-se com os contemporâneos, mergulhar no enigma, no conceito, no indecifrável. Desvendar as mensagens que se escondem por detrás de uma disforme mancha azul sobre um fundo branco; de um olho triangular que espreita numa tela amarela com riscas vermelhas; ou de centenas de pinceladas soltas lançadas sobre uma base de serrapilheira. Não os percebia, nem mesmo depois de ler as longas descrições que os legendavam. Mas espantavam-na. Tão ousado. Tão à frente… Ah, se as pessoas da aldeia a vissem ali!

    As obras de arte, essas, nem valia a pena tentar explicar. Aquilo era uma gente que não percebia nada e ainda fazia pouco. O pai aproveitava todas as oportunidades para dizer:

    — Se vires uma banana colada à parede, não deixes apodrecer. Joga-lhe a mão, que estragar comida é pecado.

    Santa paciência! A verdade é que ela também não percebia, mas ao menos tentava e sabia que tinha tudo muito valor. Era uma rapariga persistente. Se ali tinha chegado, não era agora que ia desistir de ser moderna. Durante meses, percorreu galeria após galeria, com a folha de sala na mão. Observava as peças de vários ângulos: de perto, mais ao longe, com os dois olhos abertos, depois semicerrados, fechava um, depois o outro. Sempre à espera da revelação que teimava em não acontecer.

    Um dia, deparou-se com um tríptico fabuloso: sobre cada uma das três telas estavam coladas duas folhas arrancadas de um caderno de argolas pautado e, sobre estas, desenhadas linhas que, por mero desconhecimento, lhe pareciam aleatórias, feitas com pasta de dentes. Reparou que não era sempre o mesmo dentífrico: um era branco, vermelho e azul; o outro, branco, verde e vermelho; e o último, apenas azul e branco. A legenda explicava: Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. Leu e releu e, para grande desgosto seu, continuava a ver apenas folhas coladas e pasta de dentes. O único trauma ali era mesmo o dela, até porque as pessoas ao redor pareciam encantadas: “Ah!”, “Oh!”, “Profundo!”, “Audaz!”, “Maravilhoso!”, exclamavam.

    A Mimi sentia-se deslocada. Frustrada. Chegou a perguntar-se se o seu lugar não era mesmo na aldeia, se os anos ali passados não lhe teriam acanhado o espírito. Perguntava-se o que lhe faltava para ser como aquelas pessoas. E foi então que parou para as observar. Sentou-se. Ouviu as conversas. Fotografou-as e filmou-as como se estivesse a apontar aos quadros.

    Não se ia dar por vencida. Estudou cuidadosamente o material recolhido. Na semana seguinte, voltou à galeria. Transformada. Franja curtíssima (para alargar o campo de visão), cabelo rapado de um lado e pintado de rosa pastilha elástica. Alargadores nas orelhas (que, mais do que alargar lóbulos, alargavam horizontes). Uma argola no nariz, que a avó diria servir para prender bezerros, mas que ela usava como símbolo de resistência estética. Um vestido largo até aos pés, vintage, que é como quem diz, da Feira da Ladra, e um saco de pano estampado, que lhe garantiram dizer, em japonês, “Arte ou Morte!”. Os óculos com aros espessos de massa branca completavam o visual. Não tinha falta de vista, mas tinha percebido que a arte era muito mais do que a obra — estava no olhar, no léxico, no gesticular, no estilo. Ia compreender aquele tríptico, desse por onde desse.

    Parou diante das peças. As telas, as folhas, a pasta de dentes. 

    Estratificação do quotidiano sobre a memória visual traumática do corpo coletivo. —murmurou.

    Uma senhora com ar excêntrico aproximou-se dela, lançou-lhe um sorriso cúmplice e, sem tirar os olhos dos quadros, fez um comentário sobre a poética da desmaterialização. Ela anuiu subtilmente. O coração quase lhe saltava do peito, mas controlou-se. Ajeitou os óculos, levou a mão delicadamente ao queixo e acrescentou:

    — A tensão entre a materialidade da pasta e a fragilidade do suporte…

    — E aquela escolha cromática? Disruptiva. — continuou a interlocutora.

    — Disruptiva! Disruptiva! — repetiu a Mimi confortada.

    Tinha chegado lá.

    Era, finalmente, uma intelectual moderna.

    Ah, se a vissem agora lá na aldeia!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O cavaleiro

    O cavaleiro


    Passeava nas tardes de domingo, sempre domingo à tarde.

    Às três em ponto, com vento ou frio, chuva ou sol, os empregados-fantasmas de sua mansão derruída moviam-se como bailarinos de corda e abriam os portões carunchados da cocheira. Pouco depois, ele surgia no alto da escada, magro, duro e invencível, os olhos azuis fincados em lugar nenhum. Com passos largos atravessava o pátio sombreado. Os galhos de todas as árvores, que haviam crescido sem controle, vinham bater-lhe no rosto, mas ele não fechava os olhos.

    Empertigado, impaciente, batendo com o chicote na perna, esperava que lhe trouxessem seu cavalo de transparente fumaça. Com gosto escutava os relinchos poderosos do mais garboso dos corcéis que se aproximava batendo os cascos nas pedras centenárias do pátio e sacudindo-se em corcoveios que tiravam brilhos inesperados dos aperos de prata.

    Com o capataz segurando as rédeas do animal arisco e fogoso, ele montava. Com um imperceptível gesto da cabeça leonina, ordenava ao empregado que se afastasse para o lado.

    Então, olhando duro para o nada mais distante, saía à rua.

    Os moradores dos edifícios próximos, pelas frestas das cortinas, observavam-no em silêncio. Os meninos tentavam enxergar a montaria invisível. Desalentadas, as mulheres, que geram os homens, sacudiam a cabeça.

    Era assim que ele iniciava seu único passeio semanal. Sereno e digno, cortava as ruas sem lançar um só olhar aos pequenos edifícios que agora conspurcavam a elegância do bairro. Também não se voltava para os antigos casarões porque ali talvez ainda residisse gente que tinha conhecimento da derrocada de sua família.

    Seguia em direção à praça. Passava pelas infinitas portas cerradas do Mercado, pelas agências bancárias e pelas soturnas repartições públicas. Em frente ao Grande Hotel, invadia o passeio que dividia a praça ao meio e, ignorando os meninos que corriam a seu lado, rindo, cotovelando-se e saudando-o com palavrões, levava seu cavalo para beber no chafariz. Deixava que o animal bebesse à vontade. A seguir, dirigia-se à estreita rua principal, onde ouvia, ainda mais claramente, a explosão dos cascos do seu cavalo inexistente sobre as pedras polidas pelo tempo.

    Atrás dele, de dedo colado na buzina, vinham os motoristas impacientes que, assim que podiam, dobravam na primeira transversal.

    Indiferente aos homens, ao frio, à chuva, ao vento, aos automóveis, aos palavrões, ele seguia tranquilo em direção à catedral.

    Passeava assim há mais de trinta anos, desde o tempo em que não havia um só edifício e os carros eram poucos. Passeava assim desde o dia em que, jovem ainda, viu levarem os dois automóveis de seu pai, desde o dia em que soube que não mais poderia voltar ao campo porque não eram mais proprietários daquelas terras, desde o dia em que soube que só lhe tinha restado aquele imperceptível cavalo na cocheira vazia, desde o dia em que ouviu o estampido do tiro no gabinete, desde o dia em que viu o corpo forte do seu pai caído sobre o tapete, desde o dia em que sua mãe refugiou-se no silêncio mais amargo.

    Aos domingos, inalcançável, imperturbável, cavalgava.

    Durante a semana, comia o feijão com arroz e o naco de carne que as empregadas de vizinhos bondosos, sorrateiramente, colocavam todos os dias à cabeceira da grande mesa do salão. Ao meio-dia, enquanto soava o relógio de pêndulo, envergando o melhor dos seus puídos trajes negros, descia para o almoço frugal, sua única refeição diária. Invariavelmente deixava restos, como lhe fora ensinado pela mãe.

    Depois de comer voltava ao seu quarto de jovem a fim de contemplar as gravuras de puros-sangues ingleses ou para escrever bilhetes endereçados aos capatazes das fazendas desaparecidas.

    Às vezes lia sem compreender os livros de Eça e de Machado de Assis.

    De noite, estendido no seu leito dirigia galanteios às moças que conhecera em sua juventude. E passeava pelos campos de sua imaginação marcando bezerros, orientando a preparação das pastagens e observando as mãos grosseiras das mulheres apertando os úberes das vacas. E trotava pelos campos congelados de inverno com a faca do vento a lhe cortar o nariz de imperador romano. E cavalgava mesmo sob os mais terríveis sóis vermelhos de todos os verões.

    Quando o sono demorava, caminhava pela mansão às escuras, esbarrando em móveis decrépitos, espirrando por causa das nuvens de poeira que suas botas de sola furada erguiam das tábuas frouxas, enredando-se nas teias de aranha. Durante esses passeios de sonâmbulo costumava conversar com seu pai sobre a necessidade de expandir os negócios, de buscar reprodutores na Argentina.

    No derradeiro domingo de sua loucura, fez o mesmo de sempre até que o raio da morte, na infalibilidade de um motoqueiro encourado, o abateu na frente da catedral.

    Era perto das cinco da tarde. Mês de julho. A neblina tinha se instalado nas ruas como que para impedir que as casas se chocassem umas contra as outras. Porque as pedras do calçamento estavam úmidas seu cavalo resvalou varias vezes, numa delas quase se indo de peito ao chão. Por isso ele segurava com firmeza as rédeas, a fim de manter o animal de seu sonho num trote muito leve.

    Altaneiro como sempre, atravessara a cidade indiferente às piadas dos rapazes, aos xingamentos dos meninos e às buzinas dos carros, mas naquele dia estava sendo muito custoso dominar o ímpeto do macho, mais arisco ainda por causa da cerração.

    Naquele maldito domingo de julho o homem magro e alto de desgrenhados cabelos prateados sustentou o trajeto de todos aqueles trinta anos. Não encurtaria em um só quarteirão o seu roteiro porque precisava mostrar àquela cidade, como vinha fazendo durante todos os domingos de todos aqueles anos de feitiço, que tudo continuava como antes. Não, não tinha acontecido nada. Eles precisavam saber, e estava tentando mostrar isso a eles havia trinta anos, que um fazendeiro de verdade jamais dobra o espinhaço, nem mesmo quando alguns ladrões lhe roubam as terras e o gado.

    Vinha enterrado na vertigem de seus pensamentos, quando a figura rubro-negra surgiu na esquina. Não, ele não viu o negro das roupagens de couro sobre o vermelho do cavalo de rodas. Não, não ele escutou o rugido daquela fera que não era do seu tempo. Seus ouvidos eram afinados apenas para o ploqueteploque dos cavalos e para o zurrar das manadas.

    Então um raio de aço e calor o atingiu entre as pernas e o projetou, desengonçado pássaro pernalta, sobre as ásperas tijoletas da pracinha da catedral.

    Deitado, fitando o manto da névoa que o cobria nos derradeiros minutos de sua longa vida de embruxado, pôs-se a dar ordens urgentes aos peões: que levassem o gado para outra invernada, que marcassem os novilhos, que sacrificassem aquele pobre cavalo que estava sofrendo sobre as pedras da rua.

    Depois seus lábios secos não se moveram mais.

    Nos últimos segundos de sua solitária vida de encantado, enquanto as garras secas da morte cravavam-se em seu peito murcho, ele deflorou finalmente a garota com a qual não pudera se casar. E, morto, voltou pela primeira vez, depois de um longo exílio, aos vastos campos de sua infância.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Enfeitiçados todos nós.

  • Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Deambular por Riga é um prazer de altos rendimentos: histórico, arquitectónico e sensorial, sobretudo no Verão — ou melhor, no Verão, porque no Inverno ignoro como seja —, quando a luz se estende até depois das 22 horas e os cafés ao ar livre vibram com línguas que, imagino, vêm de todos os cantos do mundo.

    Era isso que fazia — perambulava — pelas ruelas medievais e praças seculares desta cidade báltica, com um olhar ora absorto nas fachadas de inspiração germânica, ora atento aos movimentos do presente.

    Deparo-me, porém, junto à Catedral de Riga, com um concerto de música rock — vejo, mais tarde, tratar-se de um festival organizado por uma empresa local, que decidiu este ano abrir o espectáculo à cidade.

    Saio dali pouco depois de ter despejado, inadvertidamente, parte de uma garrafa de água com gás sobre a minha t-shirt, e começo a contornar a imponente Rīgas Doms. Dou então por mim a menos de meia hora do início de um recital de órgão.

    O dilema era real: valeria a pena interromper a caminhada para “gastar” uma hora dentro de uma catedral — ainda que grandiosa — a ouvir música que não saberei decifrar tecnicamente? Havia ainda o detalhe do bilhete: vinte euros. Aqui, ao contrário de certas instituições culturais portuguesas, que estendem credenciais aos jornalistas como quem oferece rebuçados, não se fazem favores de última hora.

    A ponderação económica impôs-se: de um lado, a continuidade da exploração urbana — gratuita, imprevisível, luminosa; do outro, a hipótese única de assistir a um recital integrado no 38.º Festival Internacional de Música de Órgão de Riga, com um instrumento histórico e uma intérprete consagrada. Qual o custo de oportunidade? A pergunta que qualquer economista faria. E a resposta pareceu-me quase óbvia: seria um desperdício não arriscar.

    A compra do bilhete foi, assim, uma decisão racional — e, como haveria de constatar, também sensorialmente acertada. Primeiro, porque o instrumento em causa era o órgão construído em 1884 pela célebre firma E. F. Walcker & Co., tido como o mais inovador do mundo à data da sua inauguração.

    Não sendo um entendido — muito pelo contrário —, as suas características impressionam: quatro manuais, 124 registos, 17 combinações de registos, um pedal de crescendo, 26 foles e um total de 6718 tubos. Um colosso romântico. Descubro online que mede 22 metros de altura, por 11 de largura e 10 de profundidade — e a sua imponência, mas também beleza, são de uma teatralidade solene, como se a própria arquitectura do som ali ganhasse corpo de pedra e fôlego divino.

    A sua história está ainda ligada ao próprio Franz Liszt, que terá composto o arranjo coral “Nun danket alle Gott” — “Agora agradecemos todos a Deus” — para a inauguração do instrumento.

    E por falar em Liszt, ele era um dos três compositores do programa da noite. Os outros dois: Felix Mendelssohn e Louis Vierne. Mendelssohn, prodígio alemão, foi dos primeiros a redescobrir e divulgar a obra de Bach, escrevendo música de apurada clareza e fervor protestante.

    Liszt, o virtuoso húngaro, criador do poema sinfónico, exprime na sua música para órgão um dramatismo quase litúrgico. Vierne, francês, organista titular da Notre-Dame de Paris, compôs algumas das obras mais densas, visionárias e comoventes do repertório organístico do século XX — mesmo sendo cego desde a infância.

    Quanto à intérprete, Liene Andreta Kalnciema, é natural da Letónia, mas a sua carreira está também estabelecida na Alemanha. Laureada em diversos concursos internacionais — entre eles o Petr Eben, na República Checa, e o Wadden Sea, na Dinamarca —, percorreu já salas e igrejas da Suécia, Canadá, Espanha, Bélgica e Polónia.

    No folheto não constava qualquer passagem por Portugal, apesar de termos também órgãos belíssimos, como os da Igreja de São Vicente de Fora e da Basílica da Estrela, em Lisboa. Desde 2006, é presença regular nas actividades musicais da Catedral de Riga.

    E nesta noite, embora uma pequena câmara permitisse aos espectadores acompanhar, num ecrã discreto, os movimentos firmes e silenciosos de Liene Andreta Kalnciema — mãos ágeis, pés exactos, gestos contidos —, a experiência manteve-se profundamente envolta num mistério acústico. Porque, ainda que se vislumbre a intérprete por vários pequenos ecrãs distribuídos pela nave da catedral, a música não se entrega ao olhar: impõe-se pelo espaço, pelo eco, pela vibração.

    Em todo o caso, para um neófito como eu, as imagens revelavam também algo de insólito: ao lado da organista, surgia, quase imóvel mas vigilante — embora por vezes se movesse de um lado para o outro com agilidade —, uma figura auxiliar. Uma espécie de segundo cérebro e terceiro braço, cuja função não se limitava a virar páginas, mas incluía mudar registos, accionar combinações, antecipar intenções. A música, percebemos então, é ali fruto de uma simbiose silenciosa.

    O órgão, por vezes, parece um murmúrio subterrâneo de catedrais soterradas; noutras, um exército de trombetas celestes em alvorada litúrgica; e, ainda noutros instantes, assemelha-se ao resfolegar de um titã adormecido, prestes a erguer-se em colunas de som. Escutá-lo foi como assistir a um ritual antigo, em que a matéria sonora, mais do que compreendida, é sentida com o corpo inteiro.

    Houve momentos em que o som parecia brotar do subsolo da catedral, como se cada tubo fosse uma raiz a conduzir o espírito para dentro da terra; noutros, o som erguia-se como cúpula, abraçando a nave e elevando os ouvintes até zonas sublimes da emoção. Para quem não é especialista — como é o meu caso —, valeu a experiência pela sensação de tempo suspenso e de contemplação. Não é todos os dias que se escutam, de uma só vez, três gigantes do romantismo europeu em diálogo íntimo com uma catedral de pedra e eco.

    E se a dúvida inicial era entre continuar a deambular ao ar livre ou ceder à sedução de uma hora sob um tecto sacro, a resposta veio em forma de recompensa estética. Saí da catedral com as pernas descansadas, sim, mas sobretudo com o espírito mais pleno. O preço do bilhete, afinal, foi barato para o que se ganhou: beleza, grandeza e silêncio — esse silêncio precioso depois do último acorde, quando ninguém ousa aplaudir por alguns segundos, como se o tempo, enfim, tivesse de pedir licença para voltar a avançar.

    Por vezes, vale a pena entrar para dentro das coisas. Mesmo em Riga. Mesmo com sol.

    Nota final: 4 em 5.

  • Chamadas anónimas

    Chamadas anónimas


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Meninos 

    Meninos 

    Viajo até São Tomé e Príncipe em busca da literatura. Na mala, levo notas de algumas leituras, uma lista de obras e escritores por descobrir, e uma ansiedade imensa de começar a associar os textos aos seus lugares, às paisagens e às vozes que os inspiraram.

    Um feliz acaso leva-me ao encontro de Conceição Lima: jornalista, professora, escritora, voz maior da lírica são-tomense. Há dias assim, raros e luminosos, em que a vida nos surpreende com encontros que ultrapassam as nossas melhores expectativas. Ocasiões felizes, em que temos a sorte de nos cruzar com pessoas verdadeiramente extraordinárias.

    Nesse instante, a literatura deixa de ser apenas texto: transforma-se em território vivo, partilhado. Conceição falou-me, com entusiasmo e generosidade, da literatura, dos escritores e da história do seu país. Escuto-a, encantada, absorvendo cada palavra.

    A certa altura, menciona um romance de Orlando Piedade: Os meninos judeus desterrados de Portugal para São Tomé e Príncipe por ordem d’El-Rei D. João II em 1493. Interrompo-a. Li que a ilha fora povoada por judeus forçados a embarcar para este destino longínquo e inóspito, mas não compreendo a referência às crianças.

    Conta-me, então, a história de dois mil meninos e meninas, com idades entre os seis e os oito anos, filhos de judeus castelhanos que, fugindo da Inquisição, procuraram refúgio em Portugal. Crianças arrancadas dos braços dos pais e enviadas, por ordem do rei português, para as ilhas de São Tomé e Príncipe. Uma sentença de morte para a maioria. Um crime entre tantos outros cometidos em nome de um desígnio supostamente maior: o Império. Um crime contra crianças judias que, inevitavelmente, faz o meu pensamento recuar até às imagens de pequenos pijamas às riscas, alinhados por detrás do arame farpado dos campos de concentração nazis.

    O massacre de crianças judias não foi apenas um episódio sombrio da história da Humanidade — é, na verdade, uma prática recorrente da Desumanidade. Tão cruel, tão insuportavelmente pesada, tão indigerível, que torna ainda mais chocantes as imagens que hoje vejo no ecrã da televisão: o massacre de crianças palestinianas, perpetrado por israelitas. E digo por israelitas, e não por Israel, de forma intencional. Incomoda-me a facilidade com que se diluem as culpas dos homens, transferindo-se a responsabilidade para um país, um império, uma religião ou uma qualquer instituição.

    Os corpos dos meninos palestinianos embrulhados em panos ensanguentados, alinhados como um código de barras tenebroso,  tal como os dos meninos judeus que antes deles foram levados para as naus e para as câmaras de gás,não são acasos da História. Não são tragédias inevitáveis. São crimes. Todos estes meninos foram assassinados por homens e mulheres. Gente com nome. Seres de carne e osso. Sem alma, acredito, mas de carne e osso.

    E é, por tudo isto, de uma tristeza indizível que os meninos da Palestina morram agora às mãos de israelitas que um dia também foram meninos. Que tiveram o direito de o ser. Que cresceram com a memória da dor inscrita no corpo do seu povo. E que, ainda assim, se tornaram os carrascos: sem memória e sem misericórdia.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.

    Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.

    Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.

    Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).

    No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.

    Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.

    Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.

    Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.

    Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.

    Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.

    Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.

    O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.

    Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.

    Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”

    Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.

    Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.

    Nota final: 5 em 5.

    Fotografias: Matilde Fieschi / Everything is New

  • Políticos, marcas e negócios: a música segue amanhã

    Políticos, marcas e negócios: a música segue amanhã

    O relógio já marcava as dez da manhã e o sol de Oeiras – e talvez de boa parte de Portugal – resistia a libertar-se das nuvens. E eu, como umas boas dezenas de jornalistas, fotógrafos e repórteres de imagem, lá estava no Passeio Marítimo de Algés. Não foi a promessa de um croissant e de um sumo de hotel – nem mesmo os dois cafés que pedi – que me puxou da cama, por mais que a organização do NOS Alive tenha tido a gentileza de incluir pequeno-almoço no convite.

    Também não se tratava de qualquer contrapartida: nestas coisas de cobertura de espectáculos comerciais, bem sei que os promotores têm, legitimamente, a esperança – e alguns o desejo explícito – de que a imprensa se preste a servir interesses de marketing. Mas a vida, como deveria ser, exige separações claras: uma coisa é jornalismo, outra coisa é publicidade.

    E, portanto, não sendo os festivais a ‘praia’ do PÁGINA UM, se tivesse de indicar a razão que me moveu a atravessar Lisboa de lés a lés – aproveitando, já agora, um sempre aprazível passeio de bicicleta eléctrica pela zona ribeirinha –, foi a curiosidade: a de ver os últimos retoques na montagem de um festival de música, e a de confirmar que, por detrás da música e do entretenimento, vive um aparato logístico, político e empresarial de precisão quase militar.

    À porta do recinto, ainda fechado ao público, a azáfama era total: carros, carrinhas, camiões, empilhadores, técnicos de som, electricistas. Decoradores ultimavam stands e lojinhas; afinavam-se ângulos, tensões e estruturas. Porque o NOS Alive não é apenas música – apesar dos seus sete palcos e da promessa de mais de uma centena e meia de artistas.

    O cartaz é, dizem-me, robusto – como um catálogo de tendências musicais em três actos. Am,anhã, já esgotado, a estrela é Olivia Rodrigo, acompanhada por nomes como Noah Kahan, Barry Can’t Swim, Benson Boone, Glass Animals e Parov Stelar. Mas há também sotaque português, com Johnny Sequeira, Mão Cabeça, Motherflutters, Nuno Cabral, Gisela Mabel e até a Orquestra Chiuinha Gonzaga.

    No dia 11, a batuta cabe a Justice, The Wombats, Girl in Red, Finneas, St. Vincent e Sammy Virji. Será, dizem, o dia mais inclinado ao indie e à electrónica, mas com espaço para projectos nacionais como Capicua, Alta Avenue, Herlander, Carlos Contente ou Sérgio Onze.

    A fechar, a 12 de Julho, o cartaz carrega peso e decibéis: Muse, Nine Inch Nails, Future Islands, Foster the People e os sempre eléctricos Amyl and the Sniffers. E há mais: Dead Poet Society, Bright Eyes, Cmat, Erol Alkan, Bombazine, Luís Severo, João Maria – e muitos outros para melómanos exploradores.

    Confesso, desde já, que não conheço metade – e não pagaria para ver grande parte da outra metade. Mea culpa: não sou crítico musical, apenas curioso. Mas aproveitarei, seguramente, um ou outro dia para ouvir o que ainda não ouvi. E, garantido, estarei no dia 12 para ver os Muse – que, para mim, substituíram em boa hora os King of Leon. As derivas mais comerciais do grupo de Matthew Bellamy pouco me agradam, mas quem os conheceu, como eu, com Showbiz (1999) e Origin of Symmetry (2001), perdoa quase tudo.

    Mas voltemos aos bastidores – foi para os ver que aceitei o convite. É aí que pulsa o nervo óptico do evento, e onde se alinham os três elos fundamentais deste festival: Álvaro Covões, director da promotora Everything is New, que conduz a orquestra com ar de maestro em ensaio geral; Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, o anfitrião político omnipresente; e Miguel Almeida, CEO da NOS, o patrocinador-mor.

    Este trio – que conduziu a imprensa com o à-vontade de quem sabe o peso das câmaras – não se limita ao cerimonial: constitui o verdadeiro triângulo de poder que sustenta o evento. Entre as três breves actuações musicais (incluindo Iolanda, que canta muitíssimo bem e que merecia melhor palco do que a palermice do eurofestival), houve tempo para paragem no stand oficial do Gov.pt, logo à entrada. Houve discurso institucional. Terá sido um piscar de olho ao Governo? Talvez. Mas se o festival serve também de montra política, que seja: ali vão circular milhões de euros – e recolher-se, presume-se, bastantes impostos.

    Até amanhã ainda haverá muito que afinar: estruturas, cabos, fibra óptica, microfones, luzes. Haverá bares a abastecer, carrinhos eléctricos a ziguezaguear como formigas entre bastidores, zonas de imprensa a preparar entrevistas.

    Tudo isto faz parte da engrenagem. Porque isto é muito mais do que um festival de música: é uma feira corporativa de alto gabarito, onde o capital se mistura com os decibéis, e onde as marcas não querem apenas vender – querem associar-se à emoção, ao ritmo, à energia e à juventude.

    Na verdade, como em muitas outras coisas, a música é um pretexto: para encontros, emoções e recordações. Mas o NOS Alive parece ser mais do que isso: uma alegoria contemporânea do entretenimento enquanto mercado, da política enquanto espectáculo e do jornalismo enquanto convidado de honra – com sumo natural e croissant de manteiga.

    Esta quinta-feira, quando se abrirem os portões e os primeiros acordes ecoarem no palco principal, poucos pensarão na logística que ali foi investida. Mas sem esta maquinaria invisível – feita de técnicos, operacionais, políticos, patrocinadores e comunicadores – a música não teria esta pujança.

    E talvez seja por isso que o NOS Alive seja mais do que um festival. É um palco onde todos querem actuar – mesmo que sem microfone. E até eu lá fui…

  • Velho é o Eddie the Head

    Velho é o Eddie the Head

    Na adolescência, quando os “tops” musicais ainda se viam e ouviam uma vez por semana na televisão pública, quando as rádios tinham medo do volume das guitarras e o acesso à música era mediado pelos LPs que os irmãos mais velhos conseguiam comprar com o pouco dinheiro que havia, era raro descobrir bandas fora do radar comercial.

    O meu irmão mais velho tinha os seus altares bem definidos — Genesis, Pink Floyd e Yes — e era nessa maré sinfónica que eu, já na juventude adulta, mergulhava com gosto e algum deslumbramento. Mas um meu outro irmão, esse, era devoto de outro culto: Iron Maiden. Teria eu doze ou treze anos quando chegou a casa com The Number of the Beast. Não era apenas o som. Era a capa. Era o bicho. Era o Eddie the Head. E foi, confesso, amor ao primeiro susto.

    Vieram depois outros discos, alguns com o vocalista Paul Di’Anno — antes da entrada meteórica de Bruce Dickinson — e muitos com capas tão aterradoras quanto fascinantes. Foi também nessa fase que aprendi os nomes dos músicos como quem decora santos de um altar profano: Dave Murray, o mais carismático com aquela cabeleira luminosa; Steve Harris, o comandante; Clive Burr, baterista expulso por causas tão comuns quanto trágicas no rock de então; Dennis Stratton, guitarrista de carreira breve; e Paul Di’Anno, voz crua e desregrada. Alguns já mortos. Todos, eternos.

    A minha separação dos Iron Maiden aconteceu por volta de Seventh Son of a Seventh Son, disco de 1988. A vida levava-me para outras sonoridades e os Maiden foram ficando, como ídolos guardados numa estante. Depois, era só o acaso de uma faixa no Spotify, de um vídeo no YouTube — e a constatação, sempre renovada, de que o heavy metal, bem feito, ainda me dizia qualquer coisa.

    O concerto de ontem, no MEO Arena, marcou os cinquenta anos da fundação da banda em East London. Ir a este concerto era para mim uma viagem pessoal com dois propósitos: celebrar meio século de uma banda que me acompanhou na adolescência e ver de perto a energia vital de uma banda de heavy metal com uns senhores já perto dos 70 anos — e que não estão propriamente sentados a dedilhar umas guitarradas.

    Concerto dos Iron Maiden em foto da própria banda.

    Para lá chegar, contudo, não me bastou a vontade nem a carteira de jornalista. A Prime Artists, produtora do espectáculo, optou por ignorar a legislação nacional e recusou-me a acreditação. Saiu uma deliberação da ERC, in extremis, na sexta-feira passada, mas mesmo assim, num gesto de arrogância, a ‘coisa’ só não teve consequências penais imediatas (crime de atentado à liberdade de informação e crime de desobediência) graças à intervenção diplomática — e pedagógica — de um comissário da PSP. Em todo o caso, perdi a actuação da banda de suporte, os suecos Avatar, que me pareciam promissores para se assistir, pelo que já ouvira antes.

    A resistência à entrada foi amargo, mas o primeiro impacto, já dentro da arena, foi doce: t-shirts dos Iron Maiden por todo o lado, gente de duas gerações — com cervejas… e até pipocas.

    Nova surpresa ao chegar ao local de destino: o lugar atribuído pela Prime Artists era um mimo — Balcão 2, Sector 18, Lugar J.3 — para todos os efeitos, o melhor sítio para não ver o palco. Mas, como em tudo na vida, algum improviso permite vencer a má vontade: dali saí para um ponto superior, em pé, com visão integral do altar de luz, fogo e som que é um concerto dos Iron Maiden.

    Comissário da PSP ‘conferenciando’ sobre a recusa de acreditação e as consequências criminais face à deliberação da ERC.

    Na perspectiva onde me encontrava, mesmo assim perdi a parte cénica mais espectacular, de que apenas me apercebi nas fotografias da própria banda no seu perfil do Facebook. Mas esqueçamos a produtora — que, se houvesse avaliação, levaria zero, com direito a machadada do Eddie the Head de três metros. Aquilo que interessa é que tivemos, aqui sim, um grande concerto à moda antiga: como deve ser.

    Apesar das crónicas deficiências acústicas do Meo Arena, o público ligou-se à corrente eléctrica de Harris, Dickinson & Ca., como num ritual logo à primeira música. Murders in the Rue Morgue, lançada no álbum Killers (1981) — e inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe — inaugurou a noite, precedida de um vídeo onde se revive o nascimento da banda no Cart and Horses Pub. Bruce Dickinson esteve sempre como me recordo, mesmo contando já 66 anos: viaja com a mesma facilidade entre tons graves sólidos, médios expressivos e agudos poderosos, mantendo sempre clareza e controlo técnico, acima das potentes guitarras e da omnipresente bateria.

    Os clássicos sucederam-se sem piedade: Wrathchild, Killers (com Eddie the Head em cena, ameaçador, embora me pareça hoje um adereço desnecessário), Phantom of the Opera, The Number of the Beast (a pedir melhor acústica), 2 Minutes to Midnight, Rime of the Ancient Mariner (com referências visuais ao poema de Coleridge e atmosfera épica), Run to the Hills, The Trooper, Hallowed Be Thy Name. Houve tempo para parte de maior teatralidade, com Dickinson mascarado de faraó em Powerslave, houve bandeiras a tremular com um Eddie-soldado perante a ameaça nuclear, houve Bruce numa cela elevatória.

    E houve, também, oportunidade para a apresentação de Simon Dawson, o novo baterista para substituir, pelo menos nos concertos, o já septuagenário Nicko McBrain. Foi discreto, mas conseguiu manter a pulsação do grupo ao longo de todo o concerto — talvez no lugar mais exigente fisicamente numa banda de heavy metal.

    Quando Wasted Years encerrou a noite, Dickinson pareceu sincero ao dizer que fora a “melhor noite das nossas vidas”. Terá sido retórica, mas deu para perceber que os Iron Maiden apreciam verdadeiramente Portugal. Aliás, desde o ano passado, o vocalista fez uma parceria com a Van Zeller Wine Collection para lançar um tinto do Douro, o Darkest Red, com um rótulo alusivo à banda. Depois deste concerto, uma coisa parece certa: ali, velho, só mesmo o Eddie the Head.

    Nota final: 4,5 em 5.