
Paulo Vero é homem dos sete ofícios
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Paulo Vero é homem dos sete ofícios
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Os verões da infância, passados na horta, eram uma memória quase tão doce quanto os figos lampos, maduros e reluzentes, que então colhia. Dias inebriantes, quentes e saturados de uma luz que obrigava a semicerrar os olhos para poder ver.
Trepava às árvores e, protegida pela sombra intermitente das folhas, saboreava lentamente os frutos, enquanto, por entre as pestanas quase unidas, olhava o céu.
Em silêncio, tão distantes que mal se viam, os aviões riscavam o azul. Às vezes, pegava na bicicleta e pedalava com quanta força tinha pelos campos fora. Perseguia-os. Não podiam ir assim tão longe. Pois se nem batiam as asas… Mas nunca apanhou um, nem descobriu para onde iam.
Imaginava que os rastos eram trilhos suspensos entre mundos invisíveis. Aos poucos desfaziam-se no ar, tornando-se migalhas espalhadas numa floresta — promessas de destinos imaginados.
Mas mais do que saber para onde iam, interessava-lhe quem lá ia dentro. Uma gente diferente vinda de longe: os estrangeiros. Quando andava pela vila, observava-os com a mesma curiosidade com que seguia os aviões. Altos, loiros, de pele e olhos claros. Falavam línguas que lhe soavam como a música que saía do quarto do irmão adolescente: bela e indecifrável.
Os mais velhos chamavam-lhes camones, palavra estranha, que percebeu ser sinónimo de bifes, que, por seu lado, nada tinha a ver com o almoço de domingo, e que também era sinónimo de turistas.
Alguns pareciam mendigos. Mochila às costas, pouco banho, cabelo desgrenhado. Ficavam horas à boleia junto à 125. Seguravam cartões onde se lia Portimão, Albufeira, Lagos… Soube mais tarde que esses vinham de comboio. Eram turistas de pé descalço. A mãe dizia que eram hippies e que não sabia como é que alguém metia no carro aqueles encardidos com ninhos de ratos na cabeça. A ela, fascinavam-na. A liberdade, os olhos cheios de estrada…
Já os que chegavam de avião cheiravam a protetor solar. Viajavam em família e exibiam roupas leves e diferentes nas esplanadas dos cafés e restaurantes. Percebia neles a leveza e o ar de quem não tem uma preocupação na vida. Estranhou, por isso, quando mais tarde lhe disseram que aqueles turistas eram, afinal, a classe baixa inglesa. Ela, que sonhava ter uns óculos de sol espelhados como os deles, que nunca fora com os pais para além de Lisboa e que, do estrangeiro, conhecia apenas Ayamonte, não podia compreender.
As idas à outra margem do Guadiana eram dias de festa. Conferiam-se os passaportes, trocavam-se escudos por pesetas e inventavam-se artimanhas para atravessar a fronteira com o dinheiro. As crianças, raramente visadas pelos fiscais, escondiam-no nos bolsos, cosido nos forros dos casacos, nas meias, sob as palmilhas dos sapatos…
Saindo do ferry, era o delírio. Saltava-se de loja em loja, compravam-se bonecas, cortinados e roupa de cama, enchidos, Peta Zetas, caramelos com pinhões, licor Tía Maria, whisky intragável, — que o pai reservava para visitas indesejadas, na esperança de que não voltassem — e garrafas Bols, que ficavam lindas no bar da sala a fazer pendant com a alcatifa azul.
No regresso, a ansiedade tomava conta de todos. Só então se apercebiam da verdadeira dimensão do tesouro acumulado. Fazia-se contas ao que poderia ser apreendido na alfândega, ainda que fosse raro não passar tudo. A ela, ninguém convencia de que os fiscais não tinham mais de cúmplices do que de polícias.
Durante muitos anos, a visita à terra de nuestros hermanos foi uma aventura, mas nunca lhe bastou. Nem mesmo quando, num dia especial, se aventuraram até Huelva e lhe compraram um vestido de sevilhana. Ficou encantada, mas queria mais.
Sonhava com comboios que atravessavam outras fronteiras e, sobretudo, com aviões que rasgavam nuvens. Ansiava por ver os países de onde vinham os turistas.
Na adolescência, aprender inglês permitiu-lhe contactar com alguns: ingleses, franceses, alemães, holandeses, americanos. Falavam de realidades tão diferentes da sua. Em Portugal cantava-se, então, Quero ver Portugal na CEE, mas o país, apesar de desejar abraçar o futuro, tinha ainda bem visíveis as cicatrizes do “orgulhosamente sós”.
Assim que a idade permitiu, começou a trabalhar nas férias escolares. Juntava tudo o que ganhava com um único intuito: viajar. Fê-lo, nos primeiros anos, com o encantamento de quem descobre novos mundos. Cada país, a sua língua, a sua gastronomia, a sua moeda. Guardava como recordação liras, francos, marcos, dracmas.
Depois, veio a fase em que percebeu que, nas visitas a países europeus, encontrava mais semelhanças do que diferenças. As mesmas lojas, os mesmos restaurantes, as mesmas marcas. Os souvenirs “autênticos”, fabricados em série na China. Peças exatamente iguais, apenas com estampagens diferentes, porque sobre a mesma base de íman, cabia tanto a Torre Eiffel como a dos Clérigos ou a de Pisa. Nada que não pudesse ser encomendado online. Nada que fosse, de facto, sinónimo de viagem.
Cruzava fronteiras, mas os cafés continuavam a ter os mesmos toldos, as mesmas mesas, os mesmos copos, pratos e talheres. Tudo disposto em torno dos mesmos vasinhos de metal, brancos e rendilhados. Nas zonas turísticas, a gastronomia local fora substituída por refeições feitas à medida do turista que sai de casa, mas prefere não ser surpreendido: hambúrgueres, batatas fritas, kebabs, pizzas e bolonhesas congeladas.
Começou, por essa altura, a procurar destinos mais longínquos. A idade era outra e atingira um estatuto que lhe permitia explorar continentes distantes e culturas exóticas. No entanto, alguns itens teimavam em ser universais. Ecos de uma gentrificação silenciosa, lá estavam os ímanes, as canetas, os sacos de pano e as canecas. Tão iguais que decidiu trazer, como recordação do Brasil, uma caneca com a imagem de Carlos Drummond de Andrade e a legenda Fernando Pessoa. Ambos escreviam. Ambos usavam óculos. É normal. Tão normal como a idade ter substituído nela a ira pela ironia.
Mas o que realmente mudou nas suas viagens foi a maneira como, no presente, olha para os lugares e a forma como deles se despede. A consciência de que não voltará a pisar aquele chão, não voltará a mergulhar naquelas águas, não tornará a ver cada uma das pessoas com quem se cruza e de quem se despede com um “até à próxima”.
A viagem faz-se agora com a mesma alegria e curiosidade de sempre, mas também com a urgência silenciosa de agarrar o tempo e a oportunidade. O desejo, maior do que nunca, de ver e experimentar tudo, como quem devora um livro, sedento por cada linha e assombrado pela iminência da página final. Detém-se em cada centímetro de chão, em cada onda do mar, em cada rosto, com a certeza de ser a última vez que o faz. Instala-se nela a sombra de uma saudade anterior à partida.
Sabe que continuará a viajar, que seguirá sempre o rasto dos aviões — mesmo que apenas com os olhos semicerrados e um figo lampo a desfazer-se na boca e nas mãos, como outrora — e que, em cada turista, continuará a procurar os sinais de uma alteridade por desvendar.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
O Campo Pequeno foi inaugurado, numa arquitectura a imitar o estilo mourisco, em 1893 para ser uma praça de corrida de touros, mas, ao invés de uma arena, transformou-se — mesmo que por breves (demasiado breves) momentos — em altar escandinavo na passada sexta-feira.
E quem ali entrou, pés desnudados em passos de elfo e olhos de estrela, foi Aurora, uma espécie de sacerdotisa dos fiordes e das florestas encantadas, transportando, com ingenuidade e por vezes travessura, as dores do mundo. Não veio apenas cantar. Veio dizer, em tom de profecia gentil, que ainda há música capaz de sarar a linguagem — essa que já ninguém ouve — e de devolver ao palco o seu valor ancestral: o de câmara de iniciação.
Desde o primeiro instante, com gestos que pareciam mais exorcismo do que coreografia, a norueguesa nascida em 1996 emergia, para os mais veteranos, como uma figura trans-histórica. Para quem viveu os anos oitenta e noventa, o espanto era redobrado: ali estavam todas as deusas fundidas numa só — a fragilidade orgânica de Kate Bush, o lirismo dilacerado de Sinéad O’Connor, o sussurro tribal de Enya, a excentricidade encantada de Björk, a espiritualidade de Loreena McKennitt, a braveza poética de Annie Lennox. E também David Bowie, pela sua plasticidade camaleónica, aqui já bem evidente quando canta Life on Mars (que não incluiu no Campo Pequeno). Mas tudo isso transfigurado, não por imitação, mas por reinvenção. Aurora é a sua própria linhagem.
Inserido na promoção do seu novo álbum, What Happened to the Heart?, menos conceptual do que os anteriores, Aurora trouxe consigo uma mensagem para Lisboa, ainda que não verbalizada: a emoção não desapareceu, e a música não precisa de pirotecnia nem de outros artefactos da indústria pop, mas apenas de luz e carne, sombra e voz. E isso houve.
E que voz! O timbre de Aurora, ao vivo, surpreende — sobretudo porque consegue algo que raramente se mantém na transição entre estúdio e palco: uma verdade vocal que não vacila. Ouvindo-a em disco, dir-se-ia tratar-se de mais uma voz bem produzida por software, encaixada num dream pop estilizado e polido. Mas bastam poucos segundos em palco para que essa impressão ceda lugar a algo mais raro: autenticidade vocal, domínio técnico e, sobretudo, uma capacidade de encarnar a canção, como se cada verso fosse, simultaneamente, lamento, encantamento e exorcismo.
Aliás, bastaria ouvi-la nas variadíssimas versões ao vivo, disponíveis no YouTube (que vai desde isto até isto, passando por isto), que tem composto de Murder Song — essa elegia íntima à morte por amor, feita com uma beleza crua, e que deveria figurar num upgrade de Murder Ballads, curiosamente editado no ano do seu nascimento, mas com o Nick Cave remetido ao estatuto de backing vocals.
O timbre de Aurora, embora de aparente tessitura leve e aguda, está longe de ser frágil. Pelo contrário: há nele uma firmeza cristalina, quase mineral, sem esforço. O vibrato, discreto mas natural, não é artifício — mostra-se como pulsação interna, sobretudo nas canções mais intimistas — como em The River, Exists for Love ou Invisible Wounds e, claro, em Murder Song —, porque nas produções mais ‘electrónicas’, por vezes, perdem-se esses detalhes.
Não é o caso, porém, de canções como The Seed, que evoca uma festa pagã, onde o crescendo emocional não depende da batida nem da produção, mas do modo como a sua voz vai ganhando densidade. Ou em Runaway, talvez a sua música mais conhecida, mas não necessariamente a melhor, que se torna quase um hino à infância perdida, cantado com uma pureza que parece desafiar a lógica. No meio disto, apesar de extremamente expressiva e de preferir os gestos à dança — apesar de algumas correrias —, Aurora nunca parece estar a representar. Está, simplesmente, a ser.
Aliás, chegou a ser desconcertante que se tenha queixado da vontade de urinar logo no início do espectáculo, ou tenha falado do seu rabo — não sendo uma artista que se queira destacar pela parte física, até por a sua beleza ser mais onírica —, ou que se tenha interrompido num repente em Invisible Wounds porque se lembrou de agradecer ao seu guarda-costas.
Mas não há ali loucura, nem ingenuidade. Não há ali diva, nem estrela pop. Não há performer. Há uma rapariga que canta como se estivesse sozinha ou em redor de uma fogueira na tundra.
Há em Aurora algo de paradoxal: ao mesmo tempo que nos lembra todas as deusas do passado — de Kate Bush a Sinéad O’Connor, de Enya a Annie Lennox —, ela subverte todas essas influências, criando algo que não se pode arquivar em nenhuma prateleira. Não é pop, nem folk, nem new age. Não se gosta de tudo, mas tudo é revelação — música para depois do fim do mundo.
O público presente no Campo Peqeuno, maioritariamente jovem e feminino, com o espiritualismo e o gótico bem representados, mostrou-se grande. Cantou, gritou e até coreografou luzes com as cores da bandeira nacional. E Aurora agradeceu sempre com gentileza. No meio da sua actuação, agradeceu em português — “Muito, muito obrigada!” — não foi só um gesto de cortesia: foi a confirmação de que ela também sentiu a simbiose, embora em algumas músicas fosse preferível o silêncio e a contemplação.
Mas ouvir em silêncio, isso já seria exigir em demasia: concertos como o que Aurora ofereceu em Novembro de 2017 na Catedral de Nidaros, quando tinha apenas 21 anos, não se fazem todos os dias. Aquilo são heresias dos deuses…
Nota final: 5 em 5.
Meu velho avô Kurama Takahashi, o mais gentil dos homens, pediu permissão a meus pais para que eu faltasse às aulas a fim de acompanhá-lo à Cerimônia de Adeus do grande Amoyama.
Meu velho e cego avô, Kurama Takahashi, queria que alguém de sua máxima confiança, alguém de sensibilidade semelhante à dele, lhe relatasse em detalhes a retirada daquele que considerava o maior lutador de sumô de todos os tempos.
Meus pais cederam, claro, embora fossem rigorosos no controle dos meus estudos. Jamais eu havia faltado um só dia à escola. Mesmo quando estive com febre alta naquele inverno das fortes nevascas. Cederam porque ninguém resistia a um apelo do mais gentil dos homens, que era meu falecido avô Kurama Takahashi.
Então fomos, meu idoso avô e eu, ele agarrado ao meu braço, pelas ruas de Tóquio, pela sempre cambiante paisagem colorida que se desdobrava diante de nossos olhos, os meus olhos cheios de luz e os de meu avô, plenos de sombras.
Foi na manhã de um dos últimos dias do torneio de setembro.
Embalado por uma entusiasmada orquestra de aplausos, o sempre majestoso Amoyama ingressou no estádio imenso que, naquele dia, tinha só uns poucos lugares vagos.
Ladeado por uma dúzia de homens gordos, que vestiam quimonos azuis, o grande yokozuna subiu ao dojô a fim de cumprir o ritual da sua aposentadoria.
Ali estava ele para, pela última vez, repetir com supremo rigor e elegância os gestos que haviam impressionados os japoneses ao longo de quase três décadas.
Que gestos eram esses?
Primeiramente, de olhos fechados, Amoyama abriu seus imensos e poderosos braços como se fosse um albatroz preparando-se para alçar voo na praia cinzenta de um mar sacudido por ventos furiosos.
Depois, por três vezes, bateu com a mão direita fechada no peito, como alguém que, na porta do céu, implora aos deuses que lhe franqueiem o ingresso, o ingresso merecido por todos os que foram bons e justos ao longo de sua vida.
A seguir, ainda mais vagaroso, demorou-se na certeira disposição dos pés.
– Ele está se agachando – contei ao meu avô. – Acho que procura o ponto certo para obter depois o mais devastador dos impulsos.
– É mais que isso – disse meu querido avô Kurama Takahashi. – Ele sabe o exato local em que sopra a energia represada no centro incandescente da terra.
Sobreveio o silêncio. Um silêncio tão denso que só poderia ser cortado pelo afiado sabre ritual de um samurai.
Imóvel, agachado, com as mãos fechadas apoiadas no chão, o yokozuna estava pronto para sua derradeira luta.
Um combate de sumô, me disse certa vez meu amado avô Kurama Takahashi, é aquele mínimo espaço de tempo em que os homens conseguem se transformar nos animais mais ferozes: búfalos, leões, tigres…
Ah, esqueci-me de narrar aqui, como também me esqueci de relatar a meu avô Kurama Takahashi naquele dia, que, enquanto Amoyama encenava sua preparação guerreira, do outro lado do dojô, de frente para ele, um menino repetia os mesmos gestos simbólicos.
Que menino era esse?
Era um pequeno ser magricelo – com a fina cintura envolvida por um mawashi branco – que um homem gordo de quimono azul colocara ali e, com gestos severos, ordenara a ele que se mostrasse um adversário à altura de Amoyama.
Bem, concretamente: era um garotinho de quatro anos, noventa e cinco centímetros e quinze quilos, chamado Akira Nakamura.
Dele veio a grande surpresa.
Sem esperar que o árbitro ordenasse o início do combate, o destemido Akira Nakamura lançou-se contra o colossal homem seminu que tinha diante de si e aplicou-lhe um vigoroso e certeiro uwatê-naguê.
O que se viu então foi uma maravilha, uma cena jamais registrada em qualquer outra Cerimônia de Adeus, a cena que tive a suprema felicidade de narrar, em todos os seus muitos pormenores, a meu bondoso avô Kurama Takahashi.
O que se viu então foi o movimento elástico de um corpo de 150 quilos de músculos sendo projetado no ar, girando, o queixo enterrado no peito, os braços cruzados, os cotovelos projetados, as pernas flexionadas, girando, girando, até que se espatifou no solo com o estrépito de uma grande árvore que cai, abatida por um raio, na clareira de uma exuberante floresta tropical.
Foi uma cena de segundos como são todas as cenas inesquecíveis do imorredouro sumô.
Novamente a plateia explodiu. Muitos jogaram para o alto suas pequenas almofadas como se tivessem assistido, de fato, à derrota de um consagrado yokozuna por um maegashira novato.
Amoyama levantou-se lento, mais lento que nunca, zonzo como jamais, trêmulo, atônito, assustado e incrédulo. Digna e dolorosamente, como se estivesse mesmo muito machucado, como se tentasse esconder dores insuportáveis, encaminhou-se com passadas incertas para o lugar de onde deveria cumprimentar o vencedor. E dali, com a reverência respeitosa que sempre destinara aos raros homens que conseguiram vencê-lo, saudou Akira Nakamura.
Ainda no centro do dojô, porque esquecera que deveria voltar à sua posição, o pequeno rikishi não conseguiu nem mesmo abaixar a cabeça. Permaneceu imóvel, boquiaberto. Era uma delicada estatueta de assombro. Jamais imaginara as consequências quase fatais do tremendo golpe que aplicara naquele gigante que, agora, com as costas sujas de areia fina, se vergava diante dele, humilde.
Nesse momento, o mesmo homem gordo de quimono azul, segurando na mão esquerda um pequeno banco, subiu ao dojô e pegou o pequenino Akira com a mão direita, como um pai que recolhe do gramado um brinquedo esquecido pelo filho, e, numa ação quase simultânea, colocou o banquinho no exato centro da arena.
Nesse banquinho, demorado e majestoso, sentou-se Amoyama.
Pouco depois subiu as escadas do dojô o avô de Amoyama, um velhíssimo pastor mongol, franzino e encarquilhado, com uma barbicha de uns poucos fios e uma espetada cabeleira branca, ainda íntegra.
Olhos tomados por uma úmida luminosidade, ele agarrou com suas mãos nodosas a grande tesoura que lhe confiaram, aproximou-se do seu neto, seu único e adorado neto, e com golpes rápidos e certeiros lhe cortou os longos cabelos pretos.
Passemos agora ao rosto de Amoyama.
O que expressava aquela carantonha imberbe de maçãs salientes, olhos negríssimos e queixada de baleia?
Nada além de tristeza. Exibia apenas a melancolia que o acompanhara nos seus muitos anos vitoriosos. A tristeza permanente que lhe dera o cognome famoso:
Amoyama, o Triste.
Lourenço Cazarré é escritor
Publicado no número 69 da revisita Brasil Nikkey Bangaku
Era uma vez um pequeno país. Era uma vez o povo desse país. E era uma vez a fina flor do entulho que o governava.
Queixava-se o povo de viver mal, de ganhar pouco, de ter um mau serviço de saúde, uma educação pública débil… lamentavam-se em casa, nos cafés, no trabalho… Lamúrias, lamúrias e mais lamúrias.
Uma gente exasperante, que parecia não entender que podia ser muito pior. Uma multidão de pobrezinhos, incapazes de apreciar a sorte que tinham: o céu eternamente azul, o clima deliciosamente temperado, sucessivos governos constituídos por uma elite de empreendedores abastados e generosos. Com o dinheiro alheio, é verdade, mas magnânimos.
Se dúvidas houvesse, bastaria ouvir atentamente os discursos destes beneméritos: “demos”, “aumentámos”, “oferecemos”, “proporcionámos”, “construímos”, “garantimos”, “reforçámos”, “promovemos” … E tudo, tudinho a muito custo. Com incalculável sacrifício pessoal. Mas ao povo pouco interessava quantas vezes tinham tido de trocar lagosta por rosbife, só para que uma série de pelintras, de utilidade discutível, pudesse continuar a receber mensalmente somas generosas, prontamente convertidas em latas de salsichas e demais indulgências pouco recomendáveis. Andavam de mãos dadas a ingratidão e a inconsciência que entupia indiferentemente as artérias e as salas urgências.
Abnegadas, altruístas, as elites deste povo chegavam mesmo ao ponto de abandonar repetidas vezes o conforto dos seus palacetes para se irem sentar nas incómodas cadeiras de ministérios repletos de funcionários públicos acomodados e mal-agradecidos. Gabinetes e corredores cheios de uma gente sem discernimento, que exigia tudo, que queria esbanjar o orçamento da nação como se fosse Natal todos os dias.
Neste país, os pobrezinhos eram uma enorme turba, a que não se via o fim. Dava-se, dava-se, dava-se. E eles ali, com a mão estendida. Sempre insatisfeitos. Mal-agradecidos. Nem um simples “obrigado”. Um beija-mão à passagem de Suas Excelências. Uma proposta de canonização. Cheios de direitos. Cheios de reivindicações. A tresandar a ordenado mínimo. Um pesadelo!
A bem dizer, o País das Esmolinhas não era propriamente um país. Era uma sopa dos pobres: morna, requentada, azeda. Servida com caridade, mas de avental, máscara e luvas calçadas para evitar o contágio.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
Partiu Jorge Mario Pedro Vargas Llosa.
Fê-lo com a mesma elegância estoica com que enfrentava os seus detractores e as suas próprias contradições. Tinha 89 anos e uma obra que atravessa o século, como se apenas a pena lhe bastasse para esculpir a História, os vícios do poder e as misérias da alma humana. Com ele, o romance ibero-americano perdeu o seu último Príncipe das Letras – um que, ao contrário de outros, não cedeu à tentação fácil do populismo, nem literário, nem político.
Nascido no Peru, em 1936, ainda sob o peso colonial da alma espanhola, foi cosmopolita desde sempre – e, por isso, universal. Viveu em Lima, Madrid, Londres, Paris e até em barricadas ideológicas que não raro se desfaziam à força da lucidez. Começou esquerdista, apaixonado por Castro e pelas utopias da revolução. Mas cedo se desiludiu. Denunciou a tirania cubana quando tantos preferiam ainda cantar loas à igualdade das fardas. Desistiu das promessas da esquerda autoritária e caminhou, sem pedir desculpa, para um liberalismo firme, racional, incómodo. A sua coerência, como toda a coerência verdadeira, pagou-se cara – e ele nunca pediu troco.
Na Literatura, foi monumental. A Cidade e os Cães, a sua estreia em 1963, explodiu como granada na paisagem literária sul-americana. Rompia com o realismo mágico, que ele admirava mas recusava imitar. Os seus romances não tinham mariposas cor-de-rosa nem coronéis centenários: tinham soldados brutos, burocratas corruptos, mulheres inteligentes e trágicas, paixões ferozes e uma imensa desilusão com a humanidade. A seguir vieram obras-primas: Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo, Tia Júlia e o Escrevedor, O Peixe na Água, Travessuras da Menina Má – para mim, o seu mais deslumbrante romance. Uma galeria de vidas e fracassos, revoluções e exílios, narrada com a precisão de um historiador e a volúpia de um esteta.
Ganhou o Nobel em 2010, tarde – como quase sempre acontece aos que não alinham pelas capelas literárias do politicamente correcto. Mas o prémio foi apenas confirmação do que já era evidente: Vargas Llosa estava entre os maiores, mesmo entre os que o invejavam em silêncio. Nenhum outro autor do “boom” latino-americano se expôs tanto – política e esteticamente. Nenhum outro escreveu com tanta clareza sobre o embuste das ideologias totalitárias, sobre a decadência moral do autoritarismo populista e sobre a fragilidade da liberdade quando não se cultiva a responsabilidade.
Também tentou a política activa: foi candidato à presidência do Peru em 1990 e perdeu para Fujimori. Talvez tenha sido melhor assim. Vargas Llosa não era um político disfarçado de escritor, mas um escritor que compreendia o poder melhor do que muitos políticos. A derrota presidencial salvou-o da corrupção do Estado e devolveu-o à pureza da Literatura e do pensamento livre. Nunca deixou de intervir. Escreveu ensaios brilhantes, colunas provocadoras, discursos memoráveis. Fez inimigos, mas manteve o respeito dos que preferem a frontalidade à subserviência.
Era homem de paixões: teve amores, escândalos, divórcios, reconciliações. Amou a liberdade como se ama uma mulher difícil: com fervor, ciúmes e uma fidelidade tumultuosa. Nunca pediu licença para pensar e, por isso, nunca foi cúmplice da indigência moral que hoje tanto se tolera em nome da virtude pública.
Vargas Llosa deixa-nos órfãos de um certo humanismo viril, de uma tradição literária que não tinha medo de ser grandiosa nem vergonha de ser elitista quando a mediocridade se fazia norma. Era culto, sem pedir desculpas. Escrevia bem, com orgulho. E pensava com clareza, sem receio de desagradar.
No seu túmulo, se houver justiça, não se escreverá apenas “Prémio Nobel”, mas sim: “Aqui jaz um escritor livre.”
Paulo Vero é homem dos sete ofícios
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Pede-me o discreto senhor doutor Tchevov, graduado em Medicina pela Universidade de Moscou, meu mantenedor estilístico e intelectual, que, em face de estarmos neste momento nos dirigindo a Portucale, em companhia do senador Rosario La Ciura, eu lhe conte (a ele, Anton) alguma história que tenha porventura vivido naquela antiga nação marítima. Vamos lá!
Certa vez, há mais de vinte anos, depois de conhecer a portuária cidade do Porto, dirigi-me a passeio ao concelho de Cinfães, pois foi de lá, mais exatamente da aldeia de Santiago de Piães, que partiu há muito, em direção ao Brasil, um de meus ascendentes.
Estava eu na Conservatória daquele concelho a tentar obter a certidão de nascimento de minha avó pelo lado materno quando parou ao meu lado, diante do balcão, um homem enxuto de carnes e de rosto martelado em granito.
– Ora, pois, que os diabos me carreguem se não se trata do senhor Torga, escrevente e esculápio! – exclamei.
– Pois não – retrucou, sereno e seco, o referido senhor, facultativo e, também, plumitivo, como o ínclito senhor doutor Tchecov.
– Sou cá leitor dos vossos contos – disse eu. – Admiro-os.
– Aos contos? Ou aos contos e a mim?
– Admiro ambos, pois sim, os contos e o senhor doutor, que é deles o escrevedor – respondi sorrindo e acrescentei de pronto: – É dura a vida na montanha, pois não?
– Pois sim, é.
– As coisas acabam sempre mal por lá. Brigas, mortes violentas, partos solitários, sangrentas capações de varões lúbricos, homens partindo para o Brasil, mulheres abandonadas, muita reza, padres trêfegos, cabras escoiceando nas lojas, chicanices, aldrabices, traições e bandalheiras.
– Pois assim é.
– Muito aprecio as palavras desconhecidas que as usa o senhor Torga, embora eu não lhes atinja o sentido. Padeço. Quando o leio, doutor, peno com o pai dos burros ao colo, folheando-o incessantemente, embevecido com o palavrório exótico…
– Exótico, diz o senhor?
– Guardo na mente alguns dos seus lindos vocábulos que carregarei para sempre: talefe, gravelhos, quelhas, bragal, jalapa, relheiras, escarolado, pirisca, engrunhada, taró, desembelinhava, sedeiro, bagalhoça, sarrafusca, lampo, enfrenisava, alanzoar, murra, rinhado, panasco, lapedos, cainça, garanho, lódão, churra, cieiro, capilota, moca, preguiceiro, carolos, ilhentas, monco, trasfegas, farroncas, pedrado, courelas, sulipas, gravelho, desolhada, andilha, reloucaste, pútegas, parança, corcódea, esbarrondas, larinhoto, pantanas, coiras, estrafegada, sanguinidades, boldrego, borga, poviléu, farsola, paleio, daimoso, estopinhas, regueifas, conques, escândula, catraio, cibo, palhiço, bacelo, santanária e cardenha. Ufa! Só lembro destas.
– Mas quanto às histórias, o senhor alcança-lhes o miolo, pois não?
– Pois sim, doutor.
– E com qual delas mais o senhor se impressionou?
– Falando seriamente, doutor Miguel, apaixonei-me pela história da Maria Lionça, mulher de um belíssimo nome, já que unifica e condensa as forças de uma leoa e de uma onça. Um nome dessa grande beleza só poderia resultar em mulher de redobrada fortaleza a ponto de suportar, sem lamúrias, a longa ausência do marido, o Ruivo, que fora garimpar ao Brasil e que só retorna quando muito doente e desenganado, por males ruins, para defuntear-se logo. Mas aí, quando o ledor acredita que se exterminaram os infortúnios de Maria Lionça, eis que, um dia, já idosa, recebe ela um telegrama de Leixões instando que vá buscar seu filho, que retorna estrompado, não por ter ido gastar-se ao Brasil, mas porque se destroçou, de marujo, varejando o salso argento. Deram-lhe o filho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então a Maria Lionça no comboio com seu rebento ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, recitando que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo todos. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço de sua mãe. É isso, senhor doutor Miguel Torga?
Silêncio e compostura!
Não me venham dizer que o português lusitano, quando impresso, parece uma inepta tradução de um livro escrito originalmente em basco ou húngaro. E nem defendam que o português lusitano, quando falado, é claramente uma língua germânica, cuja pronúncia se assemelha à do francês canadense, língua, esta sim, falada única e exclusivamente pelo nariz. Lusitanu, locale.
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas
Está um dia que muitos achariam mau: cinzento, chuvoso, frio… Para mim é perfeito. A casa vazia, uma caneca de café XXL, uma tablete de chocolate com amêndoas — 553 calorias por 100 gramas — terá de pagar o mal que faz com o bem que sabe —, e um audiolivro, porque a moleza é tanta que nem dá para virar páginas.
Apetece-me hibernar. O único senão é ter prometido a uma amiga ir ao lançamento do seu primeiro romance. Vem-me à mente um conjunto de desculpas esfarrapadas: já comprei o livro, chove a potes, tenho o carro na oficina, vai estar imensa gente… Espero que não se ofenda, que não dê pela minha ausência. Porém, uma notificação no telemóvel diz-me o contrário:
— Jantamos juntas depois da apresentação?
Sinto-me a pior amiga do mundo. Como pude sequer pensar em não ir? Levanto-me, arranjo-me e dirijo-me à estação. Aos domingos, o comboio costuma ir vazio. Hoje, não. Há uma multidão a aguardar, e já vem cheio. Percorro a carruagem em que entrei, depois a seguinte e, finalmente, avisto um lugar vago. Um passageiro colocou uma mala de viagem e uma mochila no banco. Aproximo-me, na expectativa de que desvie os pertences. Olha para mim, eu para ele… e nada. Avanço mais um pouco. Voltamos a encarar-nos, mas, desta vez, tem no rosto uma expressão de desagrado. Digo-lhe:
— Dá-me licença?
Responde, num inglês com sotaque alemão, que não tem onde colocar a bagagem. Aponto para cima:
— Ali! — digo em português.
E, enquanto ele continua com ar de enfado, ouço uma voz:
— Há de querer que o senhor ponha as malas à cabeça!
Ignoro e insisto. Percebendo que não vou recuar, e com uma irritação indisfarçável, o homem coloca a mala no corredor e a mochila ao colo.
Sento-me, e uma senhora, indignada com a minha petulância, lamenta o facto de o coitado ter de ir assim até Lisboa.
Acomodada no meu lugar, coloco os auscultadores e continuo a ouvir a leitura, entretanto interrompida. Procuro relaxar e concentrar-me, mas sem sucesso. Há um barulho e uma movimentação fora do comum nestas viagens. Os passageiros, maioritariamente mulheres de meia-idade, agitam os braços no ar de modo sincronizado e cantam. Fico curiosa. Retiro um auricular: cantigas de amor, daquelas em que “coração” rima com “canção” e que se entoam revirando os olhos. O volume aumenta, no que é claramente uma competição para mostrar quem sabe melhor as letras, quem é a maior fã, a verdadeira. A excitação está ao rubro. Erguem-se cartazes, cachecóis, camisolas, almofadas com o rosto do ídolo, fotografias tiradas ao seu lado.
É dia de concerto e caí no olho do furacão. Estou no Inferno! Espreito de soslaio o senhor das malas e, pela expressão, aposto que não volta a Portugal. Bem feita!
Regresso ao meu livro, aumento o volume e vou ouvindo o que consigo até chegarmos ao Parque das Nações. As fãs, enlouquecidas, atropelam-se para sair. Sim, porque também na pressa de chegar se expressa a devoção.
Lá fora, avisto vendedores de grinaldas de flores brancas e luzinhas, rodeados de senhoras que se enfeitam como podem, na ânsia de serem notadas.
— Amo-te, Tony! – Grita uma.
— Bates forte cá dentro, Tony! – Grita outra.
— Ai, Tony, se eu não fosse casada! – Ameaça uma terceira.
É muito amor! Podia até ser comovente, não fosse a mesma senhora que expressou grande preocupação com o cavalheiro alemão ter chocado com um grupo de rapazes que estava na plataforma. Estes, percebo de imediato, não batem forte lá dentro.
Mão na anca, o pêlo eriçado e a mandíbula escancarada a escorrer saliva de quem ataca em matilha, vocifera:
— Isto está cheio desta gente!
— Não se pode andar na rua sem dar com esta canalha!
— Não há quem tenha mão nisto e os mande para a terra deles?
Tento imaginar que crime hediondo poderão ter perpetrado aquelas criaturas para assanharem, desta forma, uma senhora tão doce, tão misericordiosa, tão preocupada com o próximo… E não posso deixar de pensar como teria ela reagido quando entrei na carruagem se, em vez de um alemão loiro e de olhos azuis a ocupar dois lugares, lá estivesse sentado um daqueles rapazes, mesmo que encolhido.
Tanto amor para dar… a alguns.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
Há sempre uma sensação estranha que se nos entranha quando, diante de um palco iluminado pela maestria de um artista, percebemos que o espaço à nossa volta permanece desapropriadamente vazio. Não falo do desconforto logístico de cadeiras desocupadas, mas do vazio simbólico de uma sala como o Capitólio, apenas de 400 lugares, que não reflete a grandiosidade do que ali se está a passar.
Este sabádo, essa sensação foi inequívoca. Dardust – a persona artística do italiano Dario Faini – apresentou-se com o seu espetáculo Urban Impressionism, e fê-lo com uma entrega rara, num concerto que, por direito e mérito próprio, merecia casa cheia, e talvez mesmo um espaço mais condizente, não apenas em número, mas sobretudo em reconhecimento.
Dario Faini é uma das figuras mais prolíficas e discretamente influentes da música italiana contemporânea. Como compositor e produtor, assina sob o seu nome próprio sucessos que atravessam fronteiras linguísticas e emocionais. Mas embora essa sua faceta de compositor, produtor e pianista lhe granjeiem estatuto na Itália e mesmo nos circuitos de música comercial europeia, é como Dardust que Faini se transcende e, simultaneamente, se recolhe.
Dardust não é um simples nome artístico; é uma persona cuidadosamente construída, onde habita a sua vertente mais introspectiva e experimental. Aqui, não há canções pop nem refrões simples. Há um laboratório estético e emocional onde o piano se funde com a eletrónica minimalista, criando um território de expressão que oscila entre o neoclássico e o ambiental.
O próprio nome Dardust carrega em si essa duplicidade conceptual. Trata-se de uma fusão de referências fundamentais para o compositor: por um lado, Dar , evoca Darren Aronofsky, o cineasta norte-americano conhecido pela intensidade emocional e pelo rigor estético das suas obras, como Requiem for a Dream ou Black Swan ; por outro, Dust, numa alusão directa a Stardust , o universo de David Bowie, símbolo de uma visão cósmica, experimental e profundamente inovadora.
A conjunção destas duas influências – o peso dramático de Aronofsky e o espírito vanguardista e espacial de Bowie – deu origem a Dardust, uma entidade artística que habita o espaço entre a solenidade da música erudita contemporânea e a liberdade imaginativa da pop mais visionária.
A coleção Urban Impressionism, lançada no final do ano passado – que sucede a 7 (2015), Birth (2016), S.A.D. Storm and Drugs (2020) e Duality (2022) -, é o mais recente testemunho desta identidade múltipla. Trata-se de um projeto ambicioso em que Dardust propõe um ciclo de peças para piano e sintatizadores que mescla uma música neoclássica e contemporânea com influências explícitas da arquitetura urbana e do impressionismo pictórico. Cada composição é inspirada em diferentes lugares e atmosferas das cidades europeias por onde passou, desde edifícios brutalistas às periferias modernas, traduzidas em expressões musicais depuradas e tangíveis.
Ao longo deste álbum – e da sua versão deluxe, que conta com 19 arranjos instrumentais – Dardust abandona propositadamente os elementos convencionais da música popular, mergulhando em territórios minimalistas e de vanguarda para criar um universo sonoro profundamente emocional. As composições evocam uma ampla gama de estados de espírito, do melancólico e introspectivo ao esperançoso e quase eufórico.
A precisão quase cirúrgica da sua execução pianística, conjugada com harmonias intrincadas e delicadas camadas de cordas, cativa imediatamente o ouvinte. O álbum propriamente dito funciona como refúgio e convite à contemplação, permitindo ao espectador um afastamento da atracção do quotidiano. O espectáculo, por sua vez, aparentou-se-me mais visceral e mais techno, mas, embora menos melodioso (a sonoridade do Capitólio não ajuda), torna-se mais efusivo e contagiante e deconcertante, no bom sentido.
De facto, no concerto no Capitólio, Dardust não se limitou à execução das peças, até pela interacção com o público (onde pontificavam muitos italianos); foi antes uma experiência imersiva, onde a música se fundiu harmonicamente com um bom jogo de luzes e samples de sons ambientais ou loops minimalistas.
Ao piano e aos comandos dos sintetizadores, Dardust é um intérprete comedido e elegante, com uma boa sintonia e diálogo com o pública. Evita o histrionismo dos performers electrónicos habituais e opta antes por uma presença discreta, quase tímida, que sublinha a solenidade da experiência estética. Mas denota-se a mestria capaz de tanto colocar um estádio a dançar, na sua faceta mais techno, como a contemplar o sentido da vida, na sua faceta de pianista na sua faceta de pianista que esculpe silêncios e melodias com as soluções de uma arte da emoção. Aliás, o seu toque ao piano, aparentemente minimalista, é preciso, mas nunca frio. Cada nota parece medida e fortemente intencional, como se cada acorde fosse um ato de comunicação direta com o íntimo do ouvinte.
A acústica do Capitólio, embora não seja ideal para a transparência das camadas eletrónicas, foi suficiente para que se mantivesse a clareza das diferentes linhas melódicas. Mas a grande dissonância da noite esteve na sala: demasiadas cadeiras vazias, um eco de indiferença que não deveria ter lugar quando se apresenta uma obra desta natureza. Não por vaidade do artista, mas por uma questão de justiça: Urban Impressionism é uma proposta séria, desenvolvida, que reconcilia a música contemporânea com uma dimensão emocional acessível sem ser simplista.
Dardust continua, assim, a ser um segredo resguardado – um artista que trilha um caminho entre o pop que escreve para outros e a música erudita que assume para si. Mas quem esteve no Capitólio sabe que testemunhou um momento raro: um espectáculo de maturidade e beleza contida, que permanecerá longamente na memória.
Nota final: 4,5 em 5.
Fotos: © Everything is New