Categoria: Crónicas do Hemiciclo

  • Entre o eco da Palestina e o silêncio dos bahá’ís

    Entre o eco da Palestina e o silêncio dos bahá’ís


    Há quem pense que o jornalismo é apenas a busca incessante de desvios e de injustiças, uma espécie de lupa moral colocada sobre as falhas da sociedade para as corrigir; há quem o entenda como uma engrenagem destinada a manter os cidadãos bem informados, dotados da consciência crítica para escolher com liberdade; e há ainda quem acredite que o jornalismo é sobretudo investigação, o farejar da pista oculta, o gesto destemido de arrancar véus ao poder.

    Tudo isto é verdade, mas também é incompleto. O jornalismo tem, no seu âmago, uma dimensão de acaso e de oportunidade que se abre num corredor — ou, neste caso, na porta da Assembleia da República, ou no hall de entrada. Em suma, tanto nas investigações jornalísticas mais aprofundadas como nos mais banais relatos de um assunto — ou, para diminuir a exigência, numa crónica deste género — não basta ter faro: é preciso deixar-se conduzir pelo imprevisto, porque é nesse espaço da surpresa que muitas vezes reside a matéria-prima da narrativa.

    Por exemplo, nesta terça-feira, na minha agenda desenhava-se apenas um almoço no ISEG, com o seu presidente João Duque — e espero não estar a comprometê-lo — para trocar meras impressões e, sobretudo, para me entregar ao orgulho de ver finalmente impresso o livro que assinala os 111 anos dessa instituição, onde tenho a honra de deixar um pequeno e singelo depoimento. Já não era pouco: há vaidades que, mesmo bem disfarçadas, merecem o seu quinhão de celebração.

    Mas, dado o almoço ter lugar ali pelos Quelhas, pensei: porque não aproveitar a proximidade e espreitar o que se passa em São Bento? Afinal, tinha de alimentar a promessa — esse compromisso que fui deixando em surdina com duas edições — de escrever com regularidade umas Crónicas do Hemiciclo.

    Por isso, sem plenário, dei comigo, perto das 15 horas e de barriga cheia, a folhear a carta do dia no ‘restaurante de São Bento’. A ementa era farta e variada, servida em simultâneo em várias salas, como convém a uma casa que se diz democrática. À entrada, logo a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias oferecia uma degustação de proprietários — primeiro a associação portuguesa, depois a lisbonense —, como quem começa o banquete lembrando que a terra e as casas continuam a ser assunto de Estado.

    Seguia-se, em travessa mais singela, a Comissão de Ambiente e Energia, que punha à mesa a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), tempero insípido mas inevitável para a digestão do país.

    Já a Comissão de Educação e Ciência apresentava um cardápio completo, bem apimentado de polémica há umas poucas semanas pelo Expresso: o reitor da Universidade do Porto como entrada fria, o director da Faculdade de Medicina como prato de substância e, para sobremesa, o presidente da Federação Académica do Porto, adoçando a boca aos que ainda acreditam na juventude estudantil.

    A Comissão de Economia e Coesão Territorial servia uma petição de doentes bariátricos, enquanto a Comissão de Agricultura e Pescas vinha guarnecida pela Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), um guisado de cinzas que nunca falta na estival mesa portuguesa. Com certeza.

    Na sala ao lado, a Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública servia especialidades da casa: da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) ao Instituto de Proteção e Assistência na Doença (ADSE), prato a prato, como quem exibe a maquinaria digestiva do Estado.

    E havia ainda mais: a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, que punha sobre a toalha o eterno prato da Palestina; a Comissão de Saúde, onde a ministra Ana Paula Martins se apresentava como chef convidada; e a Comissão de Infraestruturas, Mobilidade e Habitação, prato inevitável de Transtejo e Soflusa, guarnecidos com o saboroso protesto dos utentes do Seixal. Para completar o banquete, um Grupo de Trabalho de Peticionários, condimentado pelo ministro Manuel Castro Almeida.

    Confesso que, perante tal banquete, hesitei como conviva em mesa farta: se escolhesse os proprietários, perderia o Seixal; se me deixasse tentar pela sobremesa académica, perderia a Palestina. O Parlamento, ao contrário de certos restaurantes, não admite meias-doses, e por isso o cronista é forçado a escolher — ainda que, no fundo, todos os pratos deixem no paladar o mesmo travo burocrático.

    A princípio, a minha curiosidade empurrava-me para a Sala do Senado, ainda por cima no mesmo dia em que, noutra sala, decorria a primeira reunião da comissão de inquérito ao INEM. Não pela ministra, mas pela majestade da sala, carregada de história e simbolismo: não é todos os dias que se pisa aquele espaço amplo, outrora palco da câmara alta da Monarquia Constitucional, com as suas galerias austeras e a memória impregnada de nomes maiores e menores da política.

    Cartão de acesso ao pescoço, já me preparava para entrar quando reparei num pequeno grupo em pose fotográfica à entrada. Enfim, o típico retrato para memória futura, esse ritual de prova de presença que se pratica. Identifiquei logo duas conhecidas figuras — Sampaio da Nóvoa e Ricardo Sá Fernandes —, mas o que me fez parar foi uma gargalhada: Ana Maria Pereirinha, minha amiga e antiga editora, agora excelentíssima tradutora.

    “A que vens?”, perguntei, de rompante. “À Comissão de Negócios Estrangeiros. Viemos apresentar a petição pela Palestina”, respondeu-me, com a serenidade de quem cumpre um dever cívico. Pronto, pensei, e disse-lhe logo: “então vou ver”. Nada como trocar de ementa antes mesmo de pedir: se a Saúde me prometia interrogações mais previsíveis, a Palestina oferecia-me, pelo menos, o sabor da actualidade — embora já temperada com um travo de inutilidade: apesar das 12 mil assinaturas que a sustentavam, a petição de Julho caiu agora em terreno já decidido, porque entretanto o Governo português reconheceu politicamente o Estado palestiniano, antecipando-se ao desejo popular.

    A sala, porém, não se esgotaria nesse tema — havia mais de uma vintena de assuntos, alguns adiados por pirraças dos grupos parlamentares, incluindo um sobre Charlie Kirk. Enquanto aguardava, entabulei conversa com um jovem que também estava interessado num dos tópicos em votação: Ricardo Borges, rapaz simpático, de fala clara e modos cordiais, desses que ainda nos fazem acreditar na bondade da juventude. Vinha, não em nome próprio, mas em representação de uma comunidade mais do que invisível: os bahá’ís.

    Não tive coragem de lhe confessar a minha ignorância — que aqui confesso, porque tive de ir pesquisar entretanto: os bahá’ís são seguidores da Fé Bahá’í, religião monoteísta nascida na Pérsia no século XIX pelas mãos de Bahá’u’lláh, que proclama a unidade de Deus, da humanidade e das religiões. Defendem a paz mundial, a igualdade entre homens e mulheres e a conciliação entre ciência e fé. Estão presentes em mais de 200 países, haverá cerca de dois mil em Portugal — o Ricardo e a sua família, embora bem lusitanos, sem ligação à Pérsia, integram-na há quatro gerações — e têm a sede mundial na cidade de Haifa, na região norte de Israel, mas continuam a ser alvo de forte perseguição no Irão, onde a religião nasceu.

    Visto está que não possui a mesma projecção mediática da causa palestiniana, presumo que nunca haverá manifestações no Terreiro do Paço nem flotilhas até ao Golfo Pérsico. Porém, ali estava ele, sozinho, pela primeira vez na Assembleia da República, esperançoso pelo projecto de resolução n.º 194/XVII/1.ª da Iniciativa Liberal, a pedir um sopro de atenção para uma minoria religiosa cujo sofrimento se perde na vastidão indiferente do mundo.

    É nestes instantes que o verdadeiro jornalismo deve relativizar o número de assinaturas de uma petição. E deve inflacionar a voz daquilo que não tem eco, traduzir em palavras o sofrimento de quem não encontra plateia. A Palestina tem já muito por quem fale — mas os bahá’ís no Irão, não. É fácil encher páginas com a palavra “Palestina”: arrasta paixões, mobiliza ideologias, convoca solidariedades. Mas quem se lembra de escrever sobre uma comunidade religiosa longínqua, tão remota que quase parece exótica, e que por isso mesmo é ainda mais vulnerável ao esquecimento?

    Ricardo Borges na sala da Comissão Parlamentar dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas.

    Ao falar com o Ricardo Borges percebe-se bem que há uma imensa grandeza mesmo em gestos aparentemente inglórios, em lutar por aqueles que não têm voz. E há também qualquer coisa de jornalismo puro nesse levantar de mão tímida, nesse acto de interceder por quem não tem plateia. De facto, um jornalismo não se limita a combater a injustiça que já todos reconhecem, mas também a revelar a injustiça que ninguém vê.

    Saí de São Bento com a sensação de que a crónica — que esteve para ser sobre a Saúde e mudou para a Palestina, e depois para a persistência de uma petição tornada (felizmente) obsoleta — seria dedicada sobretudo à coragem digna e silenciosa de um jovem que, sem microfones nem câmaras, ousou ser o único representante de uma pequena comunidade perseguida, embora todas as comunidades perseguidas sejam, humanamente, grandiosas.

  • Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos

    Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos


    A língua é um arsenal subtil: nesse caldeirão coexistem punhais de lâmina fina e canhões de estrondo, palavras que servem tanto para acariciar como para fulminar. Entre essas, os adjectivos ocupam um lugar peculiar. Não se contentam em descrever; inflamam, exageram, dramatizam, conferem ao substantivo uma gravidade suplementar. São como carimbos de urgência colados à pressa nos dossiers da realidade. E, porém, como todas as moedas gastas em excesso, também eles perdem valor. A adjectivação é, pois, um recurso retórico cuja abundância corre sempre o risco de arruinar a eficácia: quanto mais se grita, menos se ouve.

    Tomemos o caso português. Desde o PREC — que foi sobretudo um PREC de palavras inflamadas —, Portugal vive mergulhado na adubagem semântica dos discursos. Já em 1975, esse ano em que o Parlamento era mais um teatro do que uma câmara, a tribuna enchia-se de adjectivos altissonantes para descrever quer os feitos, quer os desastres. E nestes, já estavam os incêndios.

    Aliás, corrijo: mesmo no Estado Novo já se adjectivavam os fogos florestais. Por exemplo, o deputado por Coimbra da União Nacional, Augusto Simões, num longo discurso em Janeiro de 1963, já não os poupava: “não é sem estremecimento que recordo agora todas as dolorosas angústias que sofremos no Verão passado com os pavorosos incêndios que flagelaram todo o Portugal, e nomeadamente os concelhos do Centro do País”. Ardiam então poucos milhares de hectares por ano em todo o território nacional.

    Em Portugal, se se pesquisar nos debates parlamentares, um incêndio nunca foi adjectivado simplesmente como grande: no mínimo, era pavoroso. Não sucede, convenhamos, apenas com incêndios. Um acidente rodoviário nunca é apenas grave: é terrível. Um défice orçamental não é apenas elevado: é assustador. E assim se foi criando uma inflação adjectiva que rivaliza com a inflação monetária de muitos períodos históricos de Portugal.

    Mas detenhamo-nos no adjectivo pavoroso, porque surge em diversas situações nos discursos parlamentares ao longo das décadas. Ora, etimologicamente, pavoroso deriva do latim pavor, que significa medo súbito, aquele frio no estômago que nos paralisa. “Pavor” é o terror instintivo, visceral, que antecede a fuga.

    Logo, um acontecimento pavoroso deveria ser reservado a situações em que a própria sobrevivência colectiva se sente ameaçada: o incêndio do Reichstag em 1933, o terramoto de Lisboa em 1755, a explosão de Pompeia sob o Vesúvio. Mas em Portugal, desde tempos idos, um simples fogo já bastava para que o orador parlamentar, em pose trágica, lhe colasse o rótulo de pavoroso, desde que fosse considerado relevante.

    O curioso é que o exagero de ontem se transforma no eufemismo de hoje. Se um deputado do Estado Novo falava de um “incêndio pavoroso” em 1963, quando ardiam menos de 10 mil hectares em todo o país, pode dizer-se agora que estava a puxar pela corda da tragédia. Quando, no dia 18 de Julho de 1985, o deputado socialista José Vitorino relatava que uma “ponta de cigarro inadvertidamente deixada por apagar” causou um “pavoroso incêndio [que] durou 29 horas e envolveu no seu combate 37 viaturas e 170 bombeiros”, só podemos sorrir depois de se saber que afinal arderam 250 hectares.

    Hoje, passados quarenta anos desse “pavoroso incêndio” que destruiu 250 hectares em 29 horas, e poucos dias depois de termos assistido a um fogo que durou 13 dias e dizimou 64.451 hectares, não percebemos já o que é “pavoroso”.

    Pavoroso já não faz sentido se em 2017 arderam 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. E já não se adequa àquilo que sucedeu no presente mês de Agosto. Por isso, nem este nem outro mais altissonante adjectivo foi hoje usado na Assembleia da República durante o debate morno — olhem-me eu também a usar um adjectivo — da comissão permanente sobre os incêndios, onde sobretudo se demonstrou que as férias são sagradas para os deputados dos diversos quadrantes, porque a ‘casa’ esteve a meio-gás; ou melhor, estiveram para aí umas 80 almas… Bem sei que a comissão permanente desonera a maioria dos deputados a interromperem as férias, mas assim mostraram os parlamentares de todos os quadrantes a importância do tema.

    Mas, na verdade, enfim, talvez não tenhamos tido assim tão grande hecatombe. Nos anos 60, um incêndio era pavoroso aos 1.000 hectares; nos anos 70 e 80, só aos 5.000 hectares. Nas últimas duas décadas e meia, pavorosos passaram a ser apenas aqueles que ultrapassavam os 10 mil hectares, depois veio 2017 e já passou a ser preciso mais de 50 mil. E agora já nem o de 65 mil hectares, como o do Piódão, leva este título. Talvez estejamos à espera da fasquia dos 100 mil. A adjectivação dos incêndios foi-se desgastando, como as botas dos bombeiros que enfrentam labaredas ano após ano.

    Eis, pois, a perversão política da adjectivação, que hoje esteve arredada do hemiciclo com discursos batidos e sem chama: ao invés de graduar a realidade, esgotou-se, e ninguém teve sequer a noção da gravidade de 2025, sobretudo porque ainda ficam aquém de 2003, 2005 e 2017. Em Portugal, uma catástrofe é uma bênção política, porque aumenta, para o futuro, a margem da incompetência.

    As palavras que outrora assustavam — terrível, horrível, pavoroso — soam agora como diminutivos face à magnitude dos desastres actuais, mas já nem se usam. É a aplicação de uma espécie de Lei da Inflação Semântica: quanto mais adjectivos se emitiram no passado, menos eles hoje representam a realidade. A economia da linguagem não difere muito da economia monetária.

    Este jogo entre retórica e catástrofe revela uma ironia nacional, que hoje confirmei enquanto assistia a uma ópera bufa onde o Governo Montenegro e os deputados se entretiveram a esgrimir argumentos para não se queimarem mais (no caso do PSD e PS) ou para puxarem a brasa à sua sardinha (no caso do Chega): Portugal é talvez o único país em que a floresta arde ao ritmo de uma inflação literária. A cada Verão, não apenas se queimam hectares — queimam-se também as palavras, ao ponto de já não assustarem ninguém.

    Um dia, quando tudo já for cinza, talvez descubramos que a adjectivação política foi o mais inútil extintor do nosso léxico.

  • Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)

    Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)


    Em 2001, salvo erro — e com a humildade própria de quem aceita errar um ou outro ano —, escrevi uma análise sobre o estado do país em diversos sectores para a já saudosa Grande Reportagem. Intitulei-a, com toda a justeza e sentido premonitório, ‘O Estrago da Nação’, prescindindo deliberadamente da enfadonha e rotineira expressão “O Estado da Nação”. Mais tarde, reciclei o título para um livro, em 2003 — e hoje sobrevive como denominação de um podcast do PÁGINA UM. Afinal, há designações que perduram porque se colam à realidade como resina.

    Duas décadas depois, predispus-me, mais por curiosidade antropológica do que por dever de ofício, a assistir ao verdadeiro “Estado da Nação”, essa encenação parlamentar revestida de solenidade, em que os deputados fingem debater o país como se não tivessem nada a ver com o seu estado.

    Não era, pois, com expectativa noticiosa que me sentava, mas numa função de observação sociológica: nunca acreditei — nem por um segundo — que, num par de horas, os nossos representantes fossem capazes de dissecar, com seriedade e substância, o verdadeiro estado da pátria. Mas há ritual. Há solenidade. Há espetáculo. Mesmo sem novidade, há espetáculo. E, mesmo sem a esperança de encontrar lucidez, ali estava eu, qual entomólogo do hemiciclo.

    Nutro há muito uma convicção (partilhada por muitos, receio): os políticos, em regra, são incapazes de produzir diagnósticos acertados sobre o país porque vivem dele apartados. Desconhecem os ritmos e agruras da vida quotidiana. Habitam, por assim dizer, numa outra galáxia. Isso talvez explique, por exemplo, que se sirvam de uma bica a 40 cêntimos — metade do que custa fora do Olimpo parlamentar, no mundo onde vivem os comuns mortais.

    Talvez seja esta a forma expedita de complementarem vencimentos que consideram modestos: vivendo abaixo do custo real da vida. A austeridade, pelos vistos, começa no bar da Assembleia.

    Feito este introito, bastaram-me poucos minutos — ou melhor, bastou-me o discurso inicial do primeiro-ministro — para encontrar o mote desta crónica. Luís Montenegro brindou-nos, num discurso inaugural, com um idílio político digno de arcádia: elogiou a sua governação, clamou por estabilidade, prometeu reduções fiscais em catadupa e, já num tom náutico de retórica camoniana, resolveu terminar com uma tirada de impacto. “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”, anunciou altitonante.

    E, com convicção de quem crê citar Homero, atribuiu-a a Sophia de Mello Breyner Andresen. Fica sempre bem citar uma poeta. Mesmo tendo sido (brevemente) deputada (na Constituinte) do Partido Socialista.

    Acontece, porém, que a frase não é de Sophia, mas de outro português, mas assumidamente comunista: José Saramago, que a escreveu em 1994 nos Cadernos de Lanzarote. O episódio é revelador do estado real da nossa governação: o primeiro-ministro — que, presumo, terá assessores cultos e diligentes — não só ignora a autoria da frase como, pior ainda, nem sequer compreendeu o seu significado completo. Porque a frase, que Montenegro repetiu com ar de estadista grave, prossegue com algo ainda mais inquietante: “Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”

    Ora, se é verdade que Montenegro demonstrou não ter memória — ao atribuir mal a citação —, e se também falhou na responsabilidade — ao não corrigir o erro nem reconhecer a ignorância —, resta a inquietante conclusão de que a sua existência política é, no mínimo, um equívoco ontológico.

    Mas o mais patético — sim, que não encontro palavra mais branda — foi ver a plateia parlamentar a reverberar a asneira. Falou André Ventura, falou Hugo Soares, falou Carneiro pelo PS, e o nome de Sophia continuou a bailar entre discursos. As bancadas do PS e do Chega andaram entretanto às turras com a coreografia habitual. Desta vez, Aguiar-Branco teve de arbitrar sobre se ‘frouxo’ e ‘fanfarrão’ são termos ofensivos. Só depois de o PÁGINA UM ter assinalado a gafe (ou ignorância) às 15h49 nas redes sociais (se calhar houve quem identificou antes) é que o deputado do Livre, Rui Tavares, tentou, já fora do plenário, repor a verdade, esclarecendo que a frase era de Saramago.

    Mas já era tarde. Ninguém percebeu — ou pelo menos, o Público não entendeu patavina: a jornalista Ana Bacelar Begonha escreveu que Rui Tavares “lembr[ou] uma frase de José Saramago (a que Montenegro citara e atribuíra erradamente a Sophia) e, num rasgo digno de crónica de costumes, indicou que foi o deputado do Livre a dizer que “sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, como se fosse ele o autor do aforismo saramaguiano. Este jornalismo – a quem falta também memória e sobra ligeireza – também é um sinal do Estado da Nação.

    Aguentei estoicamente até às 19h20, escrevendo esta crónica ao som intermitente dos discursos de dois minutos (por vezes de cinco), enquanto o Governo escutava em silêncio, pois Montenegro esgotou rapidamente o seu tempo. E no final, aquilo que mais me chamou a atenção não foram os argumentos, mas o cenário: a bancada socialista a meio-gás — como quem acha que tem lugares a mais — e o Chega a ocupar com disciplina o espaço da Oposição, com Ventura a saber gerir o cronómetro e a acabar o debate com mais tempo do que qualquer outro partido para ‘brilhar’ no fim. Os outros partidos, esses quase não contaram, sobretudo os pequenos partidos (BE, PAN e JPP) que tiveram apenas cinco minutos.

    Conclusão: se isto a que eu assisti foi o Estado da Nação, continuarei a preferir o Estrago da Nação. Sempre me parece termo mais exacto. E mais honesto.

    Adenda às 20h03: O ministro dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, no discurso final, voltou à carga da asnice, relembrando a frase apócrifa de Sophia dita por Montenegro, e ainda conseguiu ser pior. Armado em literato, relembrou o célebre “Minha pátria é a língua portugueses” (acertando, vá lá, no autor), e proclamou ufano: “Eu sou Pessoa; eu sou Sophia; eu sou Camões; eu sou Natália Correia; eu sou António Nobre; eu sou Florbela Espanca”. Só lhe faltou dizer “eu sou Saramago”, o autor do aforismo usado por Montenegro. E talvez também confessar: “Eu sou burro”. A estultícia, com efeito, tomou conta da Nação!