Categoria: O Cabo da Vergonha

  • Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor

    Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor


    A substituição do cabo do Elevador da Glória — que rompeu na passada quarta-feira, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas — foi executada no ano passado pela MNTC, empresa responsável pela manutenção dos ascensores de Lisboa desde Setembro de 2022, mas não existem garantias de que os seus técnicos possuíam as certificações exigidas por lei para inspeccionar e intervir em sistemas técnicos desta complexidade.

    De acordo com a análise dos relatórios de manutenção disponibilizados pela Carris na sexta-feira passada, a MNTC usou quatro técnicos – João Antunes, Rafael Rosado, Sérgio Carvalho e Tiago Ribeiro. De acordo com as normas, quando uma empresa solicita o alvará EMIE à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) , tem de indicar pelo menos um técnico responsável pela execução (TRE) e, se aplicável, um técnico responsável pela exploração. Estes técnicos ficam associados ao registo da empresa e constam da sua ficha no processo de licenciamento.

    Mas a empresa MNTC recusa responder às questões do PÁGINA UM sobre este assunto – aliás, apenas quebrou o silêncio por uma vez para indicar que estava a ser representada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, mas sem adiantar contactos –, embora tudo indique que estes mesmos colaboradores já executariam tarefas de inspecção e manutenção ao longo do período de três anos de um contrato saído de um concurso público que vigorou entre Setembro de 2022 e 31 de Agosto de 2025.

    A certificação EMIE não é um mero detalhe burocrático: trata-se de uma exigência destinada a assegurar que apenas profissionais qualificados, com provas dadas e reconhecidas pela autoridade reguladora, possam intervir em sistemas cuja falha representa risco directo para a segurança de passageiros. Por outro lado, a Lei n.º 65/2013 exige que empresas e técnicos de manutenção e inspecção de elevadores (EMIE, TRM, EIIE, directores técnicos e inspectores) tenham reconhecimento prévio da DGEG. Ora, nas três manutenções diárias de Setembro e na mensal, realizada no dia 1, um técnico de nome Tiago Ribeiro é sempre o mesmo que valida os relatórios.

    Esta questão ganha ainda maior gravidade quando se sabe que o cabo de tracção — peça crítica do sistema dos elevadores — foi substituído no âmbito de contrato entre a Carris e a MNTC, por via de uma reparação intermédia realizada entre finais de Agosto e o início de Outubro do ano passado. Essa intervenção, que deveria ter sido acompanhada de rigorosos procedimentos de ensaio e registo documental, foi executada pela MNTC, conforme era obrigação prevista no caderno de encargos, sem que haja provas de que técnicos certificados tenham participado na sua montagem.

    O PÁGINA UM solicitou formalmente à Carris que esclarecesse a data exacta da instalação, se foi elaborado algum relatório técnico, quem foram os engenheiros ou técnicos presentes na operação, se existem fotografias ou imagens que documentem o acto, e que tipo de testes foram realizados para aferir da resistência e da correcta colocação do cabo. Solicitou ainda a identificação do fornecedor e cópia da factura da compra do cabo.

    Na resposta recebida, a Carris limitou-se a afirmar que “a substituição do cabo do Ascensor da Glória decorreu no âmbito da reparação intermédia realizada entre 26 de Agosto e 1 de Outubro de 2024” e que “os trabalhos foram acompanhados por técnicos da Carris”, acrescentando que “a documentação solicitada está na posse das entidades que conduzem a investigação no âmbito do inquérito em curso”.

    Contudo, apesar da insistência do PÁGINA UM, a Carris não revelou se detém cópia desse relatório nem confirmou se a presença de técnicos próprios era suficiente para suprir a eventual falta de certificação da equipa da MNTC. A empresa municipal também se recusou a fornecer o nome do fornecedor do cabo, não enviou a factura nem revelou o respectivo custo, criando um manto de opacidade sobre uma operação que deveria ser transparente, sobretudo quando está em causa um acidente com 16 mortes e mais de uma dezena de feridos.

    No passado sábado, em conversa com o PÁGINA UM, o presidente da Carris, Pedro Bogas, prometeu “máxima transparência”, incluindo a colocação de relatórios de inspecção no seu site. Ora, o relatório mais fundamental para desvendar eventuais falhas – a colocação do cabo, operação que nunca antes tinha sido realizada pela MNTC – é logo escondido, alegando-se ter sido enviado para a equipa de investigação.

    Fontes ligadas ao sector da manutenção de sistemas de transporte vertical sublinham que a instalação de cabos de tracção deve ser acompanhada por engenheiros especializados, sujeita a procedimentos de tensionamento controlado e seguida de ensaios mecânicos que comprovem a correcta fixação.

    A ausência de documentação acessível ao público e a falta de clareza sobre a qualificação dos técnicos da MNTC colocam novas interrogações sobre a forma como a Carris supervisionou os contratos de manutenção. Recorde-se que o caderno de encargos que vigorou até ao passado dia 31 de Agosto é completamente vago ao ponto de apenas exigir a realização de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais, sem especificar que tipo de ensaios ou medições deviam ser efectuados. A expressão usada — “verificação” — deixa em aberto se bastava uma inspecção visual ou se seriam obrigatórios testes com instrumentação.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    A revelação de que o cabo foi instalado por técnicos sem certificação reconhecida pela DGEG torna-se ainda mais inquietante tendo em conta que este mesmo componente falhou menos de um ano depois da sua colocação, num acidente que se transformou na maior tragédia nos tempos recentes envolvendo um sistema de transporte público em Lisboa.

    Apesar das tentativas de agora se debater o acidente numa perspectiva de responsabilidade política a ser ‘resolvida’ nas eleições autárquicas de Outubro, o PÁGINA UM continuará a pressionar a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa para que toda a documentação referente à substituição do cabo e à manutenção do Elevador da Glória seja tornada pública, incluindo relatórios técnicos, lista de intervenientes, fotografias, facturas e comprovativos de ensaio.

    Entretanto, Pedro Bogas, presidente da Carris, mantém-se em incumprimento legal quanto à publicitação no Portal BASE do ajuste directo da manutenção dos ascensores iniciado este mês, que chegou a exibir aos jornalistas — numa conferência de imprensa — sob a forma de minuta sem assinaturas, forjada para parecer um contrato válido.

    Apesar de o presidente da Carris insistir que tal publicação não é obrigatória para entidades dos “sectores especiais”, como os transportes, esta alegação cai por terra com a própria prática da empresa municipal. Ainda hoje, a Carris publicou dois contratos no Portal BASE, incluindo um concurso público para a manutenção de 123 autocarros MAN no valor de 430 mil euros e a aquisição de 15 mini-autocarros eléctricos para serviço urbano no valor de cerca de 4,4 milhões de euros.

    O argumento de isenção legal, além de contrariado por juristas, fica assim desmentido pela evidência documental fornecida pela própria Carris. Aparentemente, Pedro Bogas considera que usufrui do direito de disponibilizar contratos não de acordo com a lei, mas com as suas vontades pessoais, que incluiu enganar jornalistas com uma minuta mal forjada, culpando depois os seus serviços por excesso de zelo em meter tarjas negras onde nem sequer existiam assinaturas.

  • Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022

    Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022


    A Administração da Carris aceitou que a MNTC – a empresa que assegurou, nos últimos três anos, a manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e do Elevador de Santa Justa – concorresse ao concurso público lançado em 2022 sem sequer possuir, na altura, o obrigatório alvará EMIE, emitido pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que certifica a aptidão técnica para executar trabalhos de manutenção de instalações de elevação. Ou seja, nos últimos três anos, os elevadores de Lisboa estiveram literalmente nas mãos de uma ‘empresa novata’.

    A exigência de alvará, prevista na lei para a esmagadora maioria das actividades económicas mais complexa, visa precisamente garantir que apenas empresas com competências reconhecidas e equipas qualificadas possam intervir em equipamentos de transporte vertical, cuja segurança depende de rigorosos procedimentos de manutenção.

    Porém, de acordo com informação obtida pelo PÁGINA UM, a MNTC só viria a obter o alvará para o sector da manutenção de equipamentos de elevação no dia 29 de Junho de 2022 – cerca de três semanas depois de terminado o prazo de apresentação de propostas para o concurso, que fora aberto em 11 de Maio desse ano. Ou seja, à data da candidatura, a MNTC não tinha qualquer histórico ou experiência certificada no sector de manutenção de ascensores. Antes, a MNTC somente tinha contratos públicas para manutenção de piscinas e de revisão de veículos eléctricos.

    Contudo, em 2022, a Administração da Carris, já então presidida por Pedro Bogas, acho que não era necessário que os concorrentes tivessem ainda certificação ou outra habilitação para apresentarem propostas. À data do concurso existiam, segundo os registos da DGEG, exactamente 100 empresas em Portugal com o alvará EMIE válido, pelo que não se pode alegar falta de oferta no mercado.

    Apesar disso, a Carris permitiu que empresas sem alvará, e portanto com experiência nula, apresentassem propostas para a manutenção dos quatro ascensores públicos de Lisboa – equipamentos classificados como Monumentos Nacionais ou de elevado valor histórico e turístico.

    Desastre do elevador da Glória: colapso ‘repentino’ do cabo coloca dúvidas sobre qualidade da manutenção.

    O caderno de encargos do concurso não atribuía qualquer ponderação à experiência ou ao currículo técnico das concorrentes: o critério de adjudicação era exclusivamente o preço. Assim, numa decisão que hoje se revela catastrófica, a Carris escolheu a proposta mais barata, independentemente da falta de historial ou de capacidade comprovada do adjudicatário.

    No concurso de 2022, cuja adjudicação foi decidida a 21 de Julho, a MNTC apresentou um preço de apenas 995.515 euros para um contrato de três anos, valor que representa cerca de 58% do preço base fixado pela Carris, que era de 1.728.000 euros. Ou, noutra perspectiva, 42% abaixo do preço base. A diferença foi esmagadora e tornou praticamente impossível às empresas com histórico e experiência competir em igualdade de circunstâncias.

    Importa referir que a MNTC não foi a única empresa sem alvará que a Carris deixou concorrer. Entre as quatro concorrentes – MNTC, Gasfomento, GMF e Liftech –, apenas esta última detinha o alvará EMIE e experiência consolidada no sector.

    Pedro Bogas, presidente da Carris: em 2022 aceitou que empresas sem experiência e sem licença activa pudessem concorrer para a manutenção dos elevadores.

    A Liftech – que pertenceu até 2002 ao Grupo Efacec – é, de facto, uma referência na manutenção de ascensores, funiculares e teleféricos em Portugal, contando no seu portefólio com o funicular dos Guindais, no Porto, o teleférico da Penha, em Guimarães, o funicular de Viseu, o funicular de São João da Malta, na Covilhã, e o funicular de Santa Luzia, em Viana do Castelo, entre outros.

    Em Lisboa, esta empresa foi ainda responsável pela instalação do funicular da Graça, gerido pela Carris e inaugurado no ano passado, tendo mesmo recebido o Prémio Valmor de Arquitectura. A Liftech foi também, pela sua experiência de reabilitação de equipamentos histórica, a responsável pela remodelação profunda do elevador de Santa Justa também em 2024. Tem ainda contratos relevantes com entidades públicas, incluindo a manutenção de elevadores nos bairros sociais da Gebalis, contrato esse renovado em Abril deste ano por 4,6 milhões de euros.

    A opção da Carris, em 2022, de escolher exclusivamente com base no preço, sem qualquer valorização da competência técnica ou da experiência acumulada, é tanto mais grave quanto o caderno de encargos permitia que as “verificações” fossem meramente visuais.

    Não havia qualquer obrigatoriedade de ensaios mecânicos ou testes não destrutivos aos cabos de tracção, limitando-se o contrato a prever que as empresas entregassem relatórios de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais – relatórios que, como se veio a verificar, se resumiam muitas vezes a registos com a palavra “OK”.

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    Elevador de Santa Justa teve uma profunda remodelação em 2024.

    Aquilo que então parecia ser um bom negócio para a administração presidida por Pedro Bogas revelou-se ruinoso. O trágico descarrilamento do Elevador da Glória na passada quarta-feira, que provocou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos, tornou evidente que a opção por uma manutenção de preço mínimo pode ter comprometido a segurança.

    O desastre resultou também em danos irreversíveis num dos veículos, na suspensão por tempo indeterminado da operação dos quatro ascensores de Lisboa – todos eles rentáveis e importantes para a mobilidade e o turismo da cidade – e numa crise reputacional grave para a Carris, para Lisboa e para o turismo de Portugal.

    Funicular dos Guindais, no Porto, foi instalado e mantido pela Liftech / Foto: STCP/D.R.

    Convém ainda sublinhar que o processo de obtenção do alvará EMIE não é complexo: é um procedimento administrativo, praticamente automático para empresas já detentoras de certificação de qualidade ISO 9001, não exigindo auditorias nem verificações prévias da existência de técnicos qualificados para o serviço. Este dado reforça a estranheza de a MNTC só ter obtido o alvará depois de concorrer e não antes, bem como a permissividade da Carris em aceitar uma proposta de quem ainda não tinha sequer dado esse passo formal.

    No final, o que deveria ser um procedimento de contratação pública destinado a assegurar a melhor relação qualidade-preço para um serviço de segurança crítica acabou por se transformar numa escolha baseada exclusivamente no preço, ignorando a qualificação e o histórico das empresas. Hoje, com um elevador destruído, quatro ascensores parados, dezenas de vítimas e danos reputacionais incalculáveis, a decisão de há dois anos revela-se um exemplo paradigmático do que acontece quando se confunde poupança com gestão eficiente.

  • Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapsou

    Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapsou


    Os serviços de manutenção e segurança do Elevador da Glória — o funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional — não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada terça-feira, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas. Era tudo feito visualmente – ou se se quiser ser jocoso, mesmo se a hora é dramática, com recurso à tecnologia do ‘olhómetro’.

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e Santa Justa, que vigorou até 31 de Agosto – e que continuaria a manter-se com o ajuste directo que a Carris garante ter sido assinado no mês passado por um período de cinco meses –, apenas para os dois últimos, com tecnologia diferente, existiam referências à contagem de arames partidos como critério para substituição de cabos.

    No caso da Glória (e também do Lavra), o caderno de encargos limita-se a exigir uma “verificação” dos cabos, sem qualquer norma técnica específica, periodicidade diferenciada ou referência a métodos de ensaio. Ou seja, se já se sabe que a inspecção diária era apenas visual, como demonstram os registos entregues pela Carris, nenhuma exigência existia para que as outras inspecções com periodicidade semanal, mensal e semestral fossem diferentes. Fica, porém, por esclarecer se a empresa responsável pela manutenção — a MNTC — complementava essas verificações com algum tipo de ensaio mais aprofundado, uma vez que o contrato não o exigia expressamente.

    O PÁGINA UM apurou junto de especialistas que existem diversos ensaios que poderiam ser aplicados para detecção precoce de falhas em cabos de tracção, para além da simples observação visual. Entre eles contam-se os ensaios de magneto-indução (que permitem detectar fios partidos no interior do cabo), correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente úteis para verificar a integridade da zona de ancoragem no trambolho.

    Também é possível realizar medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos. Estes procedimentos são considerados boas práticas internacionais em sistemas de transporte por cabo e estão descritos em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Foto: Frederico Carvalho

    O contrato de manutenção da Carris, contudo, não exigia nenhum destes ensaios, remetendo para a prestadora de serviços a decisão de realizar ou não ensaios complementares. A ausência de uma norma técnica clara poderá vir a ser um elemento central na atribuição de responsabilidades civis e criminais, uma vez que o Estado, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista num sistema que transporta milhares de passageiros por dia em forte declive urbano.

    Em conversa com o PÁGINA UM esta noite, Pedro Bogas, presidente da Carris, afirmou que “serão em breve disponibilizadas mais inspecções do que as diárias, para que se saiba que tipo de ensaios eram executados”, sem, contudo, confirmar se existiram alguma vez medições de carga ou ensaios de magneto-indução ao cabo que colapsou no trambolho superior da cabina número um, tanto mais relevante porque o relatório preliminar apresentado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) mostra que a ruptura do cabo ocorreu no ponto de fixação dentro do trambolho superior, isto é, numa zona que não é passível de inspecção visual sem desmontagem.

    Assim, mesmo que a inspecção diária tivesse sido cumprida escrupulosamente — como os registos parecem comprovar —, não havia forma de detectar a degradação incipiente do cabo. A questão, portanto, é saber se alguma vez, em inspecções semanais, mensais e semestrais, a MNTC fez a desmontagem dessa peça ou se usou algum instrumento de medição para verificar as condições de segurança do cabo.

    Especificações do caderno de encargos são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    Quer a empresa tenha feito ou não, o caderno de encargos era (e será) omisso, uma vez que apenas exigia uma “verificação”, termo técnica e juridicamente vago. Ou seja, responsabilizar a empresa de manutenção com base num caderno de encargos omissos pode ser complicado.

    Certo é que esta noite, já depois da conversa do PÁGINA UM com Pedro Bogas, a Carris disponibilizou o mais recente relatório mensal, com data de 1 de Setembro, dois dias antes do acidente. E aparente confirma-se: as “verificações” eram elementares, sem recurso a equipamentos, embora mais demoradas(a última durou duas horas e quatro minutos). Na prática, consistiu apenas em verificar visualmente se existiam ruídos anómalos, empenos ou parafusos desapertados, bem como testar o funcionamento da bomba submersível do sistema do cabo de equilíbrio.

    A ficha de manutenção é preenchida com um simples “OK” e uma nota genérica de que a inspecção foi realizada, sem qualquer valor medido ou referência a ensaios técnicos. Este nível de controlo é manifestamente insuficiente para detectar a degradação interna de um cabo de tracção, já que não inclui desmontagens, medições de carga, ensaios de magneto-indução ou outros testes não destrutivos considerados boas práticas internacionais para sistemas de transporte por cabo.

    people standing beside yellow and white tram during daytime

    Em todo o caso, o relatório do GPIAAF sublinha um aspecto ainda mais aterrador: embora o sistema de corte de energia e de accionamento automático dos travões pneumáticos tenha funcionado como previsto, estes não tinham capacidade suficiente para imobilizar o veículo sem o equilíbrio de massas garantido pelo cabo.

    Ou seja, os freios não constituem um sistema redundante à falha da ligação por cabo, o que, na prática, significa que milhões de passageiros andaram ao longo dos anos literalmente presos por um fio – que rompeu no dia 3 de Setembro. Significa isto que, no actual desenho do sistema, uma ruptura como a que ocorreu dificilmente poderia ter outra consequência que não um acidente grave.

    Sobre as dúvidas da validade contratual dos serviços de manutenção – que o PÁGINA UM tem noticiado –, Pedro Bogas assegura que existe mesmo um contrato válido, por si assinado no dia 25 de Agosto mas com data do dia 20. E diz que a distribuição de uma minuta na conferência de imprensa de quinta-feira – que continha a assinatura tapada do gerente da MNTC – mas colocava uma pequena tarja negra numa zona onde ainda não estavam sequer as assinaturas – foi um lamentável lapso dos seus serviços. “Não fazia sentido terem disponibilizado esse documento preliminar; ainda mais porque existia já o contrato assinado e nunca as suas assinaturas deveriam ter sido tapadas”.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Pedro Bogas diz que uma garantia de que existe um contrato mesmo em vigor está no facto de que, se não houvesse, a empresa de manutenção teria já descartado responsabilidades, mas não deu uma explicação cabal sobre a razão de não ter optado pela assinatura digital (com timestamp), que anularia quaisquer dúvidas na legalidade do processo.

    Prometendo transparência máxima, Pedro Bogas diz que a Carris disponibilizará todos os documentos envolvendo o acidente, incluindo as inspecções e demais documentos.

  • Ajuste directo de manutenção dos elevadores: Carris forjou minuta para parecer contrato

    Ajuste directo de manutenção dos elevadores: Carris forjou minuta para parecer contrato


    O caso do ajuste directo de manutenção dos elevadores de Lisboa ganha novos contornos e aumenta as dúvidas sobre a veracidade das declarações prestadas ontem por Pedro Bogas, presidente da Carris, na conferência de imprensa realizada um dia após a tragédia no Elevador da Glória.

    O documento entregue aos jornalistas não passava, afinal, de uma minuta, sem assinaturas e com informação rasurada, e aparentemente só hoje, após insistência deste jornal, foi enviada uma versão com assinaturas manuscritas dos dois administradores da empresa municipal: o presidente e a vice-presidente Maria Lopes Duarte. Mas pior ainda: a tarja colocada na minuta entregue ontem aos jornalistas não era mais do que uma simulação mal feita, sugerindo estar a proteger as identidades dos subscritores.

    Pedro Bogas, presidente da Carris, disse que disponibilizaria cópia do contratos aos jornalistas. Afinal, forjou uma minuta, colocando tarjas negras, para tapar inexistente assinaturas.

    O polémico contrato, que a Carris alega ter sido assinado em 20 de Agosto para não deixar sem cobertura contratual os serviços de manutenção dos elevadores – uma vez que o anterior contrato de três anos expirou no dia 31 de Agosto – foi exibido aos jornalistas como prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores estava assegurada.

    Porém, apesar de o PÁGINA UM não ter sido convocado, acabámos por ter tido acesso a esse documento da Carris, através de dois jornalistas de órgãos de comunicação social, um dos quais director de um jornal de grande dimensão.

    Ora, o documento de ontem continha tarjas negras nas linhas de identificação das partes e sobre as áreas onde deveriam constar as assinaturas de dois membros do Conselho de Administração da Carris e do gerente da MNTC. Mas hoje, por insistência do PÁGINA UM, a Carris acabou por enviar o documento, salientando ser “cópia do contrato distribuído, ontem, na conferência de imprensa, onde é possível identificar os representantes da CARRIS e respectivas assinaturas”.

    Última página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e última página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A tarja negra da imagem da esquerda jamais conseguiria tapar as duas assinaturas da imagem da direita, o que revela que foi entregue uma minuta forjada aos jornalistas para aparentar uma cópia com nomes anonimizados.

    Porém, uma singela análise confirma diferenças evidentes entre aquilo que ontem foi mostrado aos jornalistas na conferência de imprensa e o documento enviado hoje ao PÁGINA UM: além de surgirem já os nomes dos representantes da Carris, as folhas são rubricadas no canto superior direito (como habitualmente em contratos já celebrados) e surgem visíveis as assinaturas dos administradores da Carris na última página, manuscritas – ou seja, houve a clara opção de não usar assinatura digital com timestamp, que deixaria uma ‘impressão digital’ do dia e da hora da assinatura.

    Em todo o caso, a versão enviada hoje pela Carris ao PÁGINA UM mantém uma tarja sobre a assinatura do gerente da MNTC, que teria de existir de forma visível para o contrato ser válido. Aliás, em contratos públicos não se aplica qualquer protecção de identidade no âmbito do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

    Ora, a prova de que, na conferência de imprensa desta quinta-feira, a Carris entregou uma minuta forjada para parecer um contrato está no facto de o documento entregue aos jornalistas conter uma tarja negra no espaço que supostamente taparia as assinaturas dos administradores da Carris que é demasiado pequena. Com efeito, confrontando com o documento enviado hoje ao PÁGINA UM, a superfície dessa tarja negra mal taparia a assinatura de Pedro Bogas e jamais conseguiria tapar a assinatura da administradora Maria Lopes Duarte. Ou seja, ontem o contrato ainda não estaria assinado.

    Primeira página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e primeira página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A ausência de rubricas no canto superior direito já evidenciava que o documento entregue ontem aos jornalistas se tratava de uma minuta sem validade contratual.

    Esta discrepância aumenta as suspeitas sobre a real cronologia da celebração do ajuste directo, se é que foi mesmo assinado. O PÁGINA UM remeteu um pedido à MNTC, mas recebeu como resposta que está a ser representada agora pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que não foi ainda possível contactar.

    Saliente-se que, em muitos casos de contratação pública, apesar de ser uma prática contrária à transparência e às boas regras de gestão pública, muitos ajustes directos apenas acabam formalizados após um acordo verbal ou informal para início da prestação de serviços – sobretudo quando é o mesmo prestador de um contrato que terminou –, sendo depois datados com efeitos retroactivos para regularizar a situação.

    Porém, no presente caso, a gravidade da tragédia do descarrilamento do Elevador da Glória – com 16 mortes e duas dezenas de feridos – torna esta questão muito mais sensível: se não existia contrato válido à data do acidente, as consequências jurídicas e indemnizatórias poderão ser colossais, uma vez que a Carris poderá ter operado os ascensores sem cobertura contratual de manutenção e inspecção.

    Calçada da Glória: existir ou não um ajuste directo juridicamente válido não será um pormenor para o apuramento de responsabilidades indemnizatórias de um desastre que causou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos.

    O PÁGINA UM solicitou ainda à Carris o envio da acta da reunião do Conselho de Administração de 14 de Agosto, indicada no alegado contrato por ajuste directo como tendo deliberado a adjudicação. Até ao fecho desta edição, o gabinete de relações públicas da Carris não forneceu qualquer resposta a este pedido, mantendo a incerteza sobre se a deliberação foi efectivamente tomada nessa data e se foi respeitado o procedimento de contratação exigido pelo Código dos Contratos Públicos.

    Este caso poderá, assim, evoluir para uma questão não apenas de gestão, mas de responsabilidade civil e criminal: a confirmação de que o contrato não estava assinado no dia do acidente pode implicar um vazio legal sobre quem tinha a obrigação de assegurar a manutenção dos equipamentos naquele momento, abrindo espaço para um cenário litigioso de proporções imprevisíveis.

  • Carris vai gastar mais em arranjos de jardins do que em segurança dos elevadores

    Carris vai gastar mais em arranjos de jardins do que em segurança dos elevadores


    À medida que se intensificam as críticas às opções de gestão da Carris sobre a externalização da manutenção e do controlo de segurança dos ascensores de Lisboa – após o trágico descarrilamento na Calçada da Glória, que causou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos –, o PÁGINA UM apurou que a administração liderada por Pedro Bogas se prepara para gastar 600 mil euros, apenas num ano, na manutenção de espaços verdes, sobretudo no complexo de Miraflores, sede da empresa municipal de Lisboa.

    Este novo encargo resulta de um concurso público lançado em Julho e que encerrou a recepção de propostas a 21 de Agosto. O contrato, segundo o caderno de encargos, poderá ser prorrogado por mais dois anos, o que elevará a factura total para 1,8 milhões de euros em três anos.

    Canteiro de 45 metros quadrados do funicular da Graça está integrado num contrato de 600 mil euros. Créditos: LPP – Lisboa Para Pessoas.

    Recorde-se que, no mês passado, a Carris decidiu anular um concurso público para a manutenção dos quatro ascensores da cidade – Glória, Bica, Santa Justa e Lavra – por considerar excessivo o preço das propostas apresentadas, que ultrapassavam os 1,2 milhões de euros para um contrato de três anos. O anterior contrato para a manutenção dos elevadores – que terminou a 31 de Agosto – tinha custado 995 mil euros no mesmo período, mas não evitou o acidente mortal da passada quarta-feira.

    Desde 1 de Setembro, a Carris mantém o serviço através da mesma empresa, a MNTC, mas recorrendo a um ajuste directo assinado a 20 de Agosto, cujo documento suscita dúvidas quanto à autenticidade, no valor de cerca de 221 mil euros por cinco meses – uma média de pouco mais de 44 mil euros mensais. Com o novo contrato para os espaços verdes, a factura mensal da Carris para jardinagem e relvados rondará os 50 mil euros.

    Apesar do valor elevado do contrato de manutenção de espaços verdes, a dimensão das áreas é surpreendentemente modesta. No total, a Carris tem apenas 1,45 hectares para manter — o equivalente a menos de dois campos de futebol —, distribuídos por várias localizações, muitas delas de dimensão quase simbólica.

    Vista aérea do Complexo de Miraflores da Carris. Foto: Google Maps.

    A maior parcela encontra-se em Miraflores, complexo da Carris com oficinas gerais, estação de serviço e núcleo administrativo. Aí se concentram 12.929 metros quadrados (cerca de 1,3 hectares) de áreas ajardinadas e relvadas, dos quais 5.480 metros quadrados têm sistema de rega automática. Destacam-se a zona ajardinada do edifício B, junto ao muro sul, com 1.383 metros quadrados, e o jardim central de 664 metros quadrados, junto ao Parque dos Visitantes do Conselho de Administração.

    As restantes áreas são muito mais pequenas e dispersas. Em Santo Amaro, os espaços verdes somam apenas 270 metros quadrados; na Pontinha, a área não ultrapassa 150 metros quadrados, dos quais apenas 53 têm rega automática; e na Alta de Lisboa o total é de 1.110 metros quadrados, quase todos sem rega automática, incluindo um pequeno jardim interior de 76 metros quadrados no edifício A e uma área junto à portaria do edifício C.

    people standing beside yellow and white tram during daytime

    Por fim, no Funicular da Graça, a responsabilidade da Carris resume-se a um canteiro de 45 metros quadrados — literalmente um rectângulo de nove metros de comprimento por cinco de largura.

    Este retrato revela que a quase totalidade do esforço de manutenção recai sobre Miraflores, mas evidencia também o carácter fragmentado e a dimensão reduzida das restantes áreas. A dispersão geográfica e o custo global do contrato levantam questões sobre a racionalidade e o custo-benefício da despesa, sobretudo num momento em que a empresa é criticada pela insuficiente manutenção dos ascensores de Lisboa.

  • Portugal: este país não é para vivos

    Portugal: este país não é para vivos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

    ***

    Há em Portugal uma escola de prantear tragédias que faria inveja às carpideiras de Tebas, às viúvas de Jerusalém e, ouso dizer, ao próprio São Roberto Belarmino – sim!, esse mesmo, o cardeal jesuíta que quis tratar da saúde a Galileu Galilei –, que em De Arte Bene Moriendi ensinava que a boa morte é a consumação de uma vida virtuosa, e não o coroamento de uma existência de incúrias e descuidos.

    Pois, sim. Mas se é verdade que Belarmino pregava o arrependimento como chave para o bem morrer, Portugal prefere só o espectáculo: não se arrepende, antes decreta luto e soleniza. Por isso, neste Estado luso – e no estado em que andais –, asseguro-vos, discretas donzelas e circunspectos cavalheiros: mesmo que pequeis à vontade, que vivais na incúria, na preguiça, no desleixo, no comodismo, na desatenção, na negligência, na imperícia, na omissão, no descuido e até no dolo mais descarado, no momento da vossa morte — se ela se der com estrondo e sobretudo com culpa pública — sereis guindados à glória dos altares cívicos, com missa de corpo presente, luto nacional, coroas de flores e lágrimas televisivas que fariam corar as bem-aventuranças.

    Foi assim na queda da ponte de Entre-os-Rios em 2001, quando a engenharia lusitana, num acto de fé pascaliana, apostou que a ponte se manteria de pé sem manutenção — e perdeu a aposta. Foi assim nas chamas de 2017, quando mais de cem almas se transformaram em holocausto rodoviário, encerradas em estradas sem escape, como se o Leviatã hobbesiano tivesse decidido cobrar tributo. E é assim agora, com o funicular da Glória — que ironia nominal! — que se despencou, depois de uma vistoria feita poucas horas antes, certificada com a mesma solenidade de um sacramento, garantindo que estava apto a durar. Durou, sim: mais umas horas até à derradeira viagem, quando se fez do trilho catre e da cabine esquife, para lamento das famílias e gáudio das estatísticas da criminalidade travestida de acidente.

    Eu, Brás Cubas, que expirei na minha chácara de Catumbi com onze amigos à beira do meu buraco, sem coroas de flores nem discursos de Estado, confesso que às vezes invejo este vosso país. Não tive luto nacional, não tive trombetas nem orquestra, e tampouco um imperador que me enviasse condolências. Mas Portugal, esse país que me poderia ter mantido súbdito se tivesse deixado a Inglaterra ficar com o apêndice cecal da Europa que Napoleão tanto ambicionou, sabe fazer funerais. Portugal é, em pleno, um país que não se governa, mas que se enterra com magnificência.

    Olhem o ritual: primeiro, a comoção mediática, de três ou quatro dias, com luto oficial, envio de condolências, directos televisivos junto aos destroços e coroas de flores à farta. Depois, a romaria política aos velórios e homenagens, como o da Igreja de São Domingos com a presença simultânea dos contritos 3M — Marcelo, Montenegro e Moedas —, gravata preta, desempenhando o seu papel num evangelho cívico.

    Seguir-se-ão missas de sufrágio, televisionadas, com homilias que citam o Livro de Jó (“O Senhor o deu, o Senhor o tirou”) e a Carta aos Coríntios (“A morte foi tragada pela vitória”), misturadas com um pouco de Rousseau para temperar o caldo. Tudo para que o povo chore em uníssono e a catarse colectiva seja integral.

    Enquanto isso, havia um ortopedista de plantão nos serviços de urgência de toda a cidade de Lisboa e o pomposo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários, esse Sísifo lusitano, tem menos inspectores do que palavras na nominata, contando somente um investigador ferroviário para carregar a pedra da responsabilidade até ao topo do monte burocrático, de onde ela invariavelmente rolará para o esquecimento. Mas o que importa isso? Importante é um país decretar luto nacional sem saber ainda quantos mortos há, mobilizar quinze médicos legistas para imediatas autópsias nocturnas — enquanto nas urgências os vivos esperam sem médicos — e garantir que as lágrimas e as palavras sugeridas por spin doctors sejam devidamente transmitidas em directo.

    Portugal não sabe prevenir, mas sabe lamentar: é um país que, como disse Santo Agostinho, “ama a cidade dos homens mais que a Cidade de Deus”, e por isso celebra a morte com solenidade, como se fosse um sacramento cívico. Recordo-me do Eclesiastes — “há tempo de nascer e tempo de morrer” —, mas em Portugal há sobretudo tempo para decretar luto, tempo para discursar, tempo para mandar coroas de flores.

    E aqui entra a parte mais sublime da liturgia: desde 2022, fazendo jus a um país funesto, o vosso Presidente da República já encomendou 190 mil euros em coroas fúnebres. Sim, noves fora, é muita flor – e muito dinheiro. Seria dinheiro suficiente para arranjar os cabos do funicular da Glória? Ou seria preferível que a Carris não gastasse 600 mil euros por ano em jardineiros? Não sei: afinal, para quê prevenir se é tão mais edificante carpir depois?

    Dir-me-ão que sou cáustico, que exagero, que o país não é só lágrimas nem cerimónias fúnebres, que também faz leis, governa, constrói estradas, gere hospitais – nem sempre bem e a custos módicos, é certo. Concedo. Mas há aqui uma estética da morte que em Portugal é cultivada como um jardim barroco: as bandeiras a meia-haste, as notas de pesar, os retratos das vítimas em montagem audiovisual ao som de Samuel Barber, tudo é preparado para a fotografia, para o directo, para o lamento partilhado nas redes sociais.

    Enquanto os vivos esperam anos por justiça, os mortos são velados em altares de veludo. Enquanto os vivos padecem nas listas de espera, os defuntos têm prioridade de autópsia e honras de corpo presente. Mas não se diga que isto é pouca coisa. Certos países nada têm disto que o Estado vos concede: um consolo colectivo, uma espécie de purgatório antecipado: já que se falhou em garantir a segurança dos vivos, ao menos se canonizam os mortos. Mesmo se, convenhamos, se trate de uma economia moral curiosa: o Estado falha em zelar pela vida, mas compensa com pompa na morte, como se a bandeira a meia-haste fosse indulgência plenária para os pecados de omissão.

    Eis o triunfo da liturgia sobre a prudência, da estética sobre a ética. Pascal diria que é a grandeza e a miséria do homem: falhar na vida, redimir-se na morte — em Portugal, os políticos assim procedem, embora para tratar da vida deles e cuidar do funeral dos outros – e com fundos do Orçamento de Estado.

    E, assim, o vosso país continuará, entre lágrimas e velas, seguindo os passos do seu fatídico destino, paradoxalmente à espera da próxima tragédia para logo depois repetir o rito. De certo modo, é comovente. De outro, é aterrador – grotesco, mesmo. Como defunto que sou, ouso porém aconselhar: vivei com prudência perante as obras e feitos dos políticos, para que não preciseis de ser carpidos com tanto esmero, mas se morrerdes por negligência, incúria ou omissão do Estado, tende ao menos a consolação de que tereis missa de homenagem, transmissão em directo e, com sorte, uma coroa de flores presidencial. Talvez até duas, se o orçamento permitir.

    E, no fim, Marcelo vos elogiará do púlpito, Moedas soluçará de emoção, Montenegro jurará que ‘jamais’ — e se não forem estes, serão outros —, de sorte que a Nação sentirá que cumpriu a sua parte. O resto — o resto é silêncio, e o crepe fúnebre cai.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Elevador da Glória: do OK ao KO, ou crónica da inspecção por olhómetro

    Elevador da Glória: do OK ao KO, ou crónica da inspecção por olhómetro


    Há relatórios técnicos que são, eles próprios, documentos de acusação. A ‘Ordem de Trabalho’ da MNTC/Main para a Carris sobre o Elevador da Glória – convenientemente divulgada ontem para a crédula imprensa (com poucas e meritosas excepções) criar a ideia de estar tudo bem – tem afinal o condão de mostrar em duas singelas páginas a filosofia de manutenção de um equipamento centenário que transportava pessoas ao longo de 275 metros com uma inclinação de 18%, e que descambou poucas horas depois de uma inspecção supostamente diária.

    Atente-se: duração estimada 00:30:00, tempo de execução 00:33:00 e, um detalhe que diz tudo, tempo real de paragem do activo 00:00:00, sendo que era 9:13 horas quando se iniciou. Ou seja, a “inspecção” fez-se sem parar o funicular com passageiros dentro da carruagem. A prioridade? Média. O rótulo da tarefa? “MP Glória Diária (4.ª-Feira – Dia)”, com trigger “Data cada 1 Quarta-feira”.

    Primeira página da inspecção do elevador da Glória no dia do acidente.

    Esta parte merece letras garrafais: “TEMPO REAL DE PARAGEM DO ACTIVO: 00:00:00.” Verificar “na fossa” uma “viagem completa” e, simultaneamente, não registar qualquer paragem operacional levanta dúvidas práticas (e de segurança do próprio técnico). Mais: sem imobilização não há testes de emergência, não há estabilização para medições, não há desmontagens mínimas.

    Pior ainda, apesar de o caderno de encargos referir que estas operações de manutenção deveriam ser executadas no período nocturno, para se fazerem sem pressão, fora do período de funcionamento comercial, a Carris autorizou a MNTC a fazer a manutenção durante o dia, a despachar. Deve ter sido para não pagar horas extraordinárias aos funcionários da Carris que teriam de acompanhar as inspecções.

    Enfim, mas o “procedimento” reduziu-se, em abono da verdade, a uma sucessão de inspecções visuais assinaladas “01 – OK”. Item 1: “O Ascensor tem todas as condições para a operação?” – OK. Item 2: “Analítica – registo da contagem decrescente para mudança do cabo (600 dias)” – 263 dias. Chama-se analítica, mas é uma mera contagem burocrática. Seguem-se os itens 3 a 8, todos com a mesma matriz: “Inspecção visual” aos bogies, correntes, ferragens, carril, rede aérea, cabo de equilíbrio (“na fossa, verificar por inspecção visual uma viagem completa”) e iluminação da fossa. Tudo OK. No fim, duas linhas lapidares: “Observações: Inspecção realizada.” e “Quais os recursos utilizados: Não utilização de recursos.”

    Primeira página da inspecção do elevador da Glória no dia do acidente.

    Repito, também em letras garrafais: “NÃO UTILIZAÇÃO DE RECURSOS.” Não sendo a Mecânica a minha engenharia de formação, presumo que talvez ali se esperasse o uso de tensiómetro, uma medição de diâmetro do cabo, uma verificação de afrouxamentos com dinamómetro, uma análise de vibração, uns ensaios não destrutivos aos cabos (fluxo magnético, ultra-sons, sei lá…), um teste funcional de travões sob carga, uma simulação de falha.

    Não. Não foi considerado necessário. Bastou um formulário, um par de olhos e trinta minutos. Isto não é um capricho semântico: é a diferença entre rotina administrativa e garantia de segurança.

    Num sistema como um funicular do século XIX, as falhas críticas raramente se anunciam à vista desarmada. A fadiga metálica não escreve bilhetes; o fio partido interior não se exibe em pose; a perda de tensão no cabo não se adivinha pelo brilho do aço; a degradação do sistema de travagem não se certifica com um olhar para a cabine. A engenharia de segurança existe precisamente porque o “parece estar tudo bem” é, demasiadas vezes, uma ilusão.

    Há ainda outra incongruência: a própria grelha menciona, entre parêntesis, o que fazer se for NOK (“reparar ou substituir”, “informar Carris”, “parar de imediato”), mas nada define como se chega, tecnicamente, a um NOK através de um simples olhar. A fronteira entre “OK” e “NOK” ficou entregue ao “olhómetro” do operador. Num activo ferroviário com transporte de passageiros, esta ambiguidade pode transformar o OK em KO.

    E por fim, os nomes dos técnicos da MNTC foram rasurados – não se fosse descobrir um dia que tinham o poder da ubiquidade – e não há qualquer registo, fotográfico ou outro, que confirme a inspecção in loco. Pode dizer-se que estou a desconfiar — e estou —, até porque foi por se confiar em demasia que estava tudo bem que tudo acabou mal.

    Depois desta amostra de inspecção, a pergunta óbvia é: quando foi a última medição instrumentada da integridade dos sistemas de segurança? O papel não responde. Nem o caderno de encargos do contrato que expirou no dia 31 de Agosto, porque a Carris omitiu a divulgação pública das normas técnicas de verificação.

    Conselho de Administração da Carris.

    A esta inspecção se pode chamar manutenção de “passagem”, feita “à vista”, com o veículo em serviço. Low-cost, low-tech e, inevitavelmente, low-effort: um convite para que o OK se transformasse em KO.

    Não há aqui nenhum preciosismo. As boas práticas em transportes por cabo e funiculares exigem, em diferentes cadências, três camadas: (i) verificações diárias com testes funcionais simples e registos auditáveis; (ii) inspecções periódicas com paragem programada, desmontagem, calibração e medições; (iii) exames aprofundados com ensaios não destrutivos e validação por entidade independente. Aquilo que o ‘relatório’ feito na manhã do dia do desastre mostra é que a primeira camada foi reduzida a um checklist minimalista; as restantes, não as vemos – e o público não tem como saber se existiram, quando e com que resultados.

    A pergunta política, portanto, impõe-se: quem aprovou que a segurança diária do Elevador da Glória se fizesse assim? Quem definiu que trinta minutos bastam, a despachar durante o dia, e que não era preciso parar o equipamento? Quem aceitou a ficção de que um “OK” genérico sobre “todas as condições de operação” substitui medições objectivas? E quem fiscalizou o fiscalizador?

    Portugal é especialista em rituais pós-tragédia: decretos de luto, coroas de flores, homilias e promessas de “nunca mais”. Precisamos do oposto: ritos pré-tragédia. Publicação integral dos planos de manutenção, checklists com métricas e tolerâncias, registos electrónicos de testes, sensorização permanente de cabos e travões, paragens técnicas obrigatórias com comunicação pública, assinaturas digitais com timestamp de quem verifica e de quem assume a responsabilidade técnica. E, sobretudo, independência entre quem explora, quem mantém e quem certifica.

    Um elevador como o da Glória não é, apesar da sua classificação como Monumento Nacional, uma peça de museu a reboque de turistas. É um sistema de transporte com riscos específicos. E trinta minutos de “olhómetro” não chegam para o declarar apto. O papel aceita tudo; os cabos não. E quando um cabo cede, não há “OK” que valha. Só KO.

  • Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros

    Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros


    Quinze mortos, dezenas de feridos, turistas em pânico, comércio local paralisado. Lisboa está de luto, e por mais do que um dia. O descarrilamento do Elevador da Glória não foi um acidente no sentido puro da palavra. Foi uma tragédia anunciada, consequência directa da irresponsabilidade estatal, do desleixo burocrático e da lógica perversa de um sistema que vive do assalto ao contribuinte e nunca presta contas.

    Desde finais de Agosto que o contrato de manutenção e segurança caducara. Não havia substituto, não houve sequer um ajuste directo para garantir serviços mínimos. O funicular histórico, símbolo da cidade, circulava sem cobertura contratual de manutenção quando o cabo de sustentação partiu. A carnificina não foi uma surpresa: foi a consequência inevitável de um Estado que funciona sem responsabilidade real.

    A história desta tragédia começa em 2017, quando a Carris foi municipalizada e transferida do Estado central para a Câmara de Lisboa. O discurso foi o habitual: proximidade, gestão de proximidade, mais controlo democrático. Na prática, significou apenas que a Câmara passou a usar a empresa como um instrumento político e como sorvedouro de fundos.

    Em 2022, o globalista Carlos Moedas nomeou Pedro Bogas presidente da Carris. Nesse mesmo ano, a manutenção dos elevadores históricos foi externalizada para a empresa MAIN – Maintenance Engineering, através de concurso público. O trabalho passou a ser feito por subcontratação, afastando os trabalhadores internos que conheciam as máquinas e que sempre tinham garantido a sua manutenção.

    Dois anos depois, em 2024, realizou–se a última grande intervenção. Os trabalhadores continuaram a alertar para falhas, denunciaram problemas nos cabos de sustentação, pediram que a manutenção regressasse a casa. Foram ignorados. A 31 de Agosto de 2025 caducou o contrato. Não havia manutenção, não havia segurança. Três dias depois, o Elevador da Glória despenhou–se.

    Contudo, nada mudará. A Carris não é uma empresa privada sujeita ao veredicto do mercado. É uma vaca sagrada do poder político. Desde 2017 é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Em termos claros, o “dono” político da tragédia chama–se Carlos Moedas. Mas esse não sofrerá consequência alguma. Nenhum gestor público verá a sua carreira destruída, nenhum administrador perderá a casa para pagar indemnizações, nenhum político responderá em tribunal até ao fim da sua vida. O contribuinte, o assaltado, sempre ele, pagará a conta.

    Os números não deixam margem para dúvidas. A Carris recebe todos os anos cerca de trinta milhões de euros em subsídios à exploração. Entre 2020 e 2024, só para tapar o buraco estrutural da operação, foram quase cento e cinquenta milhões extorquidos aos residentes em Lisboa. A isto somam–se cento e quarenta e três milhões em subsídios ao investimento para frota e infra–estruturas, canalizados por fundos europeus e pelo Orçamento de Estado. Ao todo, quase trezentos milhões de euros em cinco anos. Dinheiro em catadupa, mas que não chegou para garantir a manutenção mínima de um funicular centenário.

    Aqui reside a diferença fundamental entre um accionista privado e um “accionista público” como a Câmara Municipal de Lisboa. O privado vive sob a disciplina férrea do mercado. Se um operador privado permitisse a morte de quinze pessoas por negligência, seria imediatamente arrasado pelo risco reputacional.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Os turistas e residentes deixariam de usar os seus serviços. As indemnizações civis seriam devastadoras, as seguradoras rescindiriam contratos, a falência seria inevitável. O accionista privado veria a sua fortuna arruinada, passaria os próximos anos nos tribunais, perseguido até ao fim da vida por processos judiciais e execuções patrimoniais. É essa a lógica saudável do mercado: quem falha paga, e paga caro.

    O “accionista público”, pelo contrário, é imune. A Câmara Municipal de Lisboa não enfrenta risco reputacional: não há concorrência, não há alternativa. O “cliente” é obrigado a usar o serviço subsidiado, e a conta é paga por todos através dos impostos – um eufemismo para designar um assalto.

    As indemnizações não saem do bolso dos administradores nem dos políticos: saem do bolso do contribuinte. O desastre não significa falência, significa mais impostos, mais subsídios, mais inquéritos que nunca dão em nada.

    Conselho de Administração da Carris.

    O presidente da Câmara aparece agora nas televisões com ar compungido, mas são lágrimas de crocodilo. Hoje chora frente às câmaras, amanhã já estará a procurar a próxima inauguração, a próxima fotografia, o próximo vídeo nas redes sociais, para se promover. Trabalhar, resolver, assumir responsabilidades não é com ele.

    É um indivíduo que vive do saque e precisa de garantir os próximos quatro anos de carreira. Pedro Bogas continuará a dormir como um bebé de um ano, os administradores da Carris prosseguirão as suas carreiras douradas, e o ciclo recomeçará. A irresponsabilidade não tem preço para quem manda, porque o preço é sempre empurrado para os bolsos dos contribuintes – os eternos assaltados.

    O cinismo é total. Depois da tragédia, alguém teve a ousadia de declarar que “os protocolos foram cumpridos”, quando na prática não havia protocolos em vigor desde o primeiro de Setembro. Eis a lógica degenerada da gestão pública: proteger-se com burocracia enquanto corpos jazem no chão.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

    Os trabalhadores tinham avisado que a manutenção externalizada em 2022 não tinha o rigor da realizada internamente. Tinham alertado para os cabos de sustentação. Tinham exigido que a Carris reassumisse o controlo técnico. Foram ignorados; no fim, a narrativa oficial é a de que “tudo estava em ordem”.

    Não nos iludamos também quanto aos sindicatos, que se apresentam agora como voz da moralidade. Os sindicatos não são santos: são cartéis de trabalhadores com poder legal, capazes de impor condições de exclusividade salarial ou de protecção profissional, mesmo a quem não está sindicalizado. Ao contrário do empresário privado, que só sobrevive se alguém comprar voluntariamente o seu produto ou serviço, o sindicato usa a arma da lei para forçar terceiros. É a perversão legal transformada em regra.

    people riding yellow tram on road near building during daytime

    Este desastre é a metáfora perfeita do funcionamento do Estado. O Estado não presta contas. O Estado não assume riscos. O Estado não responde às vítimas. No privado, o erro significa falência. No público, o erro traduz-se em mais impostos. Cada tragédia é convertida em argumento para reforçar orçamentos, pedir mais dinheiro, alargar a eterna roubalheira. A disciplina do mercado castiga o erro; o regime estatal recompensa-o.

    Lisboa está de luto, mas devia estar furiosa. Furiosa com um presidente da Câmara que é o responsável político máximo e que continuará intocável. Furiosa com uma empresa que em cinco anos devorou trezentos milhões de euros e não assegurou a manutenção mínima de um símbolo da cidade. Furiosa com um sistema que rapina os contribuintes e devolve cadáveres. Furiosa com a mentira de que “o público é de todos”, quando na realidade não é de ninguém.

    Há ainda as externalidades negativas que ninguém contabiliza. O turismo em Lisboa sofrerá inevitavelmente com este desastre. Quem confiará a vida a uma cidade que deixa descarrilar um funicular? Os negócios em redor do Elevador da Glória verão menos clientes, menos movimento, menos receitas.

    houses near sea

    Em qualquer mercado livre, esses negócios processariam a empresa responsável por negligência, reclamando indemnizações pelos danos sofridos. Aqui, não. Aqui o prejuízo espalha-se, os danos diluem-se, e a factura regressa sempre ao contribuinte.

    A tragédia do Elevador da Glória não foi apenas um acidente. Foi o Estado em funcionamento puro: rios de dinheiro, incentivos perversos, sindicatos cartelizados, manutenção cancelada, protocolos inexistentes e responsabilidades nulas. A máquina política já trabalha para transformar a morte de quinze pessoas em mais um álibi para reforçar o orçamento. Os contribuintes, os eternos confiscados, lá estarão outra vez a pagar tudo. Mas tenhamos esperança: o governo já declarou um dia de luto nacional.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Elevador da Glória: contrato de manutenção revelado pela Carris não é eficaz e suscita dúvidas de autenticidade

    Elevador da Glória: contrato de manutenção revelado pela Carris não é eficaz e suscita dúvidas de autenticidade


    O contrato de ajuste directo que o presidente da Carris, Pedro Bogas, apresentou esta tarde como alegada prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores de Lisboa estava assegurada levanta sérias dúvidas de legalidade e, em qualquer caso, é juridicamente ineficaz por não ter sido publicado na plataforma pública de contratação.

    Apesar de ter disponibilizado cópia do alegado contrato na conferência de imprensa — para a qual o PÁGINA UM não foi convocado —, o documento do ajuste directo com a empresa MNTC ostenta a data de 20 de Agosto, mas apresenta diversas anonimizações (isto é, ocultação de informação em documentos, normalmente através de tarjas pretas ou outros meios, com o objectivo de proteger dados pessoais ou sensíveis), incluindo nas assinaturas do próprio presidente da Carris e de uma das suas vice-presidentes.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Ora, numa parte considerável dos contratos da Carris desde 2024 disponíveis no Portal Base, os administradores utilizam assinatura digital com timestamp, de modo a confirmar, sem possibilidade de adulteração, o dia e a hora da assinatura. Em outros casos, em menor número, quando os contratos são assinados a caneta, nunca são colocadas tarjas pretas.

    Além disso, a anonimização do documento disponibilizado aos jornalistas, abrangendo inclusive as assinaturas dos responsáveis da Carris, é incompreensível: o Tribunal Administrativo já tem decidido, em várias sentenças, que os nomes e assinaturas dos funcionários não estão abrangidos pela protecção do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

    Acresce um outro pormenor relevante, que deveria merecer até análise forense: a área anonimizada no documento mostrado pela Carris é significativamente mais pequena do que o espaço ocupado pelas assinaturas de Pedro Bogas e da outra administradora em contratos similares consultados pelo PÁGINA UM no Portal Base, quer quando usarem assinatura digital quer assinatura com caneta. Ou seja, a tarja preta aposta na cópia disponibilizada pelo presidente da Carris pode estar a tapar absolutamente nada.

    Alegado contrato de manutenção entre a Carris e a MNTC celebrado por ajuste directo em 20 de Agosto foi expurgado das assinaturas, mas espaço tapado é anormalmente pequeno comparado com outros contratos com assinaturas visíveis, o que coloca em dúvida a sua autenticidade.

    Ao longo de todo o dia, o PÁGINA UM tentou obter a cópia integral do alegado contrato e outros esclarecimentos junto da Carris, mas a responsável pela comunicação da empresa municipal, Margarete Oliveira, nunca respondeu. Também foi feito um pedido para a MNTC enviar cópia do original deste contrato, mas não se obteve resposta.

    Saliente-se que a MNTC tem, nesta hora complicada, vantagens em agradar à administração da Carris, uma vez que a empresa municipal é um dos seus principais clientes. De acordo com as contas de 2024, consultadas pelo PÁGINA UM, a MNTC, que conta 28 empregados, teve uma facturação de 1.288.840 euros no ano passado, sendo que a Carris representou cerca de 26% das suas receitas.

    Na conferência de imprensa, Pedro Bogas afirmou ainda que a Carris não estaria obrigada a publicitar o contrato no Portal Base, alegando que a empresa municipal, por integrar o sector dos transportes, estaria isenta dessa obrigação. Contudo, tal alegação não corresponde à verdade.

    Contratos da Carris com aposição de assinatura digital.
    Contratos da Carris com aposição de assinatura manuscrita.

    O artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é claro ao estabelecer que a publicação dos contratos no Portal Base é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados sectores especiais, independentemente da flexibilidade procedimental ou dos limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.

    A questão da eficácia contratual — e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente de ontem com o elevador da Glória — poderá ter implicações relevantes no processo de apuramento de responsabilidades pela tragédia que já provocou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá invocar a inexistência de contrato válido de manutenção como incumprimento dos deveres contratuais, com impacto no valor da indemnização a pagar às vítimas e suas famílias.

    Importa sublinhar que o regime dos sectores especiais, resultante das directivas europeias, apenas confere às entidades adjudicantes uma maior liberdade na escolha do procedimento (concursos públicos, concursos limitados ou negociação directa) e afasta a aplicação da Parte II do CCP para contratos de valor inferior a 5 milhões de euros, no caso de empreitadas, e a 400 mil euros, no caso de fornecimentos e serviços.

    Porém, sempre que exista contrato celebrado, a obrigação de publicitação no Portal Base mantém-se, constituindo um requisito essencial de transparência e de controlo público da contratação.

    A ausência de publicação do contrato — que deveria estar acessível na plataforma para permitir escrutínio — poderá ser uma peça central nas investigações em curso, não apenas para apurar se houve negligência contratual, mas também para determinar se o elevador da Glória circulou sem cobertura válida de manutenção, circunstância que poderá ter impacto decisivo no apuramento de responsabilidades civis e criminais.

  • Elevador da Glória: Fidelidade é a seguradora da Carris

    Elevador da Glória: Fidelidade é a seguradora da Carris


    A Fidelidade, da chinesa Fosun, é a companhia de seguros contratada pela Carris, à qual deverá caber pagar as eventuais indemnizações devidas às vítimas e respectivas famílias, na sequência do trágico acidente que ceifou 17 vidas e deixou duas dezenas de feridos graves.

    A companhia de seguros foi contratada pela Carris no dia 16 de Novembro de 2023, após o lançamento de um concurso público. O contrato, no valor de 11.738.184 euros, teve início a 1 de Janeiro de 2024, com um prazo de 12 meses, sendo prorrogável até ao máximo de três anos.

    / Foto: D.R.

    Segundo o contrato, a apólice cobre “serviços de seguros para a Carris, nos seguintes ramos: responsabilidade civil automóvel; acidentes de trabalho; multirriscos; responsabilidade civil exploração”.

    Refere que “no ramo automóvel (Lote 1), estão os riscos e responsabilidades a transferir, e abrangem: seguro obrigatório de responsabilidade civil; coberturas facultativas (para a frota de apoio – danos próprios, furto ou roubo, quebra isolada de vidros, fenómenos da natureza e actos de vandalismo, assistência
    em viagem, ocupantes e viatura de substituição”.

    As especificações técnicas respeitantes a este procedimento constam das cláusulas técnicas e respetivos anexos, que são parte integrante do caderno de encargos, o qual não está disponível publicamente.

    / Foto: D.R.

    Ao concurso público lançado em 2023, concorreram, além da Fidelidade, a Generali, a Lusitânica, a MDS e a Willis.

    Este contrato com a Fidelidade é o mais recente adjudicado pela Carris para a aquisição de serviços de seguros e divulgado no Portal Base. Não consta na plataforma outro contrato de seguros da Carris recente, designadamente um específico para os ascensores.

    As indemnizações a pagar na sequência deste trágico acidente poderão ser superiores ao habitual se forem abertos processos contra a Carris nos países de origem das vítimas.

    Uma das questões que se colocou ontem, após o acidente, foi o facto de a Carris não ter nenhum contrato de manutenção dos ascensores em vigor que esteja divulgado no portal de registo de contratos públicos, o Portal Base, como o PÁGINA UM noticiou em primeira mão.

    A companhia terá indicado que tem um contrato de manutenção válido por via de um ajuste directo que adjudicou. Mas, até ao momento, ainda não divulgou qualquer contrato. Resta agora saber se o contrato eventualmente efectuado por ajuste directo, a existir, foi assinado antes ou depois do dia 1 de Setembro ou se terá sido assinado com efeitos retroactivos. Aspectos que são, eventualmente, cruciais para uma seguradora.

    Foto: D.R.

    Por norma os contratos são assinados com assinatura digital, cujo registo contém um ‘timestamp‘, um resgisto do dia e da hora da assinatura que torna quase impossível a adulteração de datas. Caso se conclua que não existia contrato de manutenção válido na altura do acidente, pode agravar o grau de negligência.

    O PÁGINA UM tentou obter respostas junto da Carris, através de diversos meios de contacto, designadamente solicitando a disponibilização do contrato de manutenção que a empresa afirma ter adjudicado por ajuste directo, mas até à publicação deste artigo, ainda não obtivemos respostas. Também consultado o Portal Base, não se encontra ainda publicado esse eventual contrato. Ainda não possível contactar a Fidelidade.

    Adenda:

    Cerca de 45 minutos depois da publicação desta notícia, a Fidelidade fez um comunicado de imprensa onde expressa “o seu profundo pesar e endereça sentidas condolências às famílias e amigos das vítimas”, Adiantou que “a prioridade absoluta neste momento é apoiar todos os que foram afetados por esta tragédia”.

    A companhia de seguros anunciou ainda a disponibilização de linha directa de atendimento telefónico “para apoiar as vítimas e as suas famílias”. Frisa que, “tendo em conta o elevado número de cidadãos estrangeiros envolvidos”, a linha está disponível em português, inglês e francês, “através do número (217948826), disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana”. A seguradora disponibiliza também “equipas especializadas de apoio psicológico”.

    Concluiu o comunicado reiterando a “total disponibilidade para colaborar com todas as entidades competentes e facilitar de forma rápida e transparente os processos de indemnização e de assistência necessários”.