Categoria: O Cabo da Vergonha

  • Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda

    Elevador da Glória: confira o que escrevemos e o que o relatório preliminar agora desvenda


    O Relatório Preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre o acidente do Elevador da Glória de 3 de Setembro hoje revelado pode e deve ser confrontado com todo o trabalho de investigação do PÁGINA UM – e que demonstra a virtude do jornalismo independente. Confronte-se aquilo que diz o relatório com aquilo que fomos revelando desde o dia do acidente:

    O que o relatório estabelece, em pontos-chave

    1) Onde e como falhou o sistema? A ruptura do cabo ocorreu dentro do destorcedor do trambolho superior da cabina 1, a poucos centímetros da pinha (soquete) de amarração. A análise macroscópica realizada pelo GPIAAF mostra roturas progressivas dos arames (degrau a degrau, ao longo do tempo). Após a libertação, formou-se a meio do traçado um laço no sentido de torção — assinatura típica de rotação acumulada. Este ponto de ruptura não era visível numa inspeção convencional sem desmontar o destorcedor.

    2) Que cabo estava montado? O cabo era um 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang direita (zZ), com alma de fibra sintética. Entrara em serviço a 1 de Outubro de 2024; à data do acidente tinha 337 dias. Embora a sua carga mínima de rupttura (662 kN) fosse “largamente suficiente” para a carga do sistema, não estava conforme com a especificação interna da Carris para o Ascensor da Glória e, mais grave, o certificado do fabricante proibia o uso com destorcedor — exatamente o que existe no Glória.

    3) Porquê a incompatibilidade com destorcedor? A norma EN 12385-3  classifica cabos que não são resistentes à rotação e não devem trabalhar com extremidades livres de girar (caso de destorcedores). O cabo 6x36WS-FC enquadra-se nesse grupo; o certificado entregue ao operador também o dizia. Nada disto foi considerado na recepção e aplicação do cabo.

    4) A pinha (soquete): defeitos internos e método empírico. Radiografias às duas pinhas do trambolho, realizadas pelo GPIAAF, onde a ruptura ocorreu detectaram zonas menos densas e vazios numa delas. A execução das pinhas seguia um processo empírico histórico, registado num “caderno antigo” da Carris fora do sistema documental, sem norma interna específica para preparação do cabo, composição da liga, ensaios ou critérios de aceitação. O procedimento não cumpria os preceitos das normas EN 12927 (instalações por cabo – requisitos de segurança) e EN 13411-4 (terminações metálicas/resina), que exigem preparação, qualificação e inspeções periódicas à zona da pinha.

    5) Sequência operacional e falência da redundância. Após a ruptura do cabo no acidente do Elevador da Glória, a cabina 1 acelerou pela calçada; o guarda-freio actuou corretamente, mas os freios não imobilizaram o veículo. O primeiro embate, já com descarrilamento e tombamento parcial, deu-se entre 41 e 49 km/h, cerca de 20 segundos após o início de movimento. A cabina 2 recuou e ficou presa no limite inferior. O relatório descreve um sistema de frenagem cuja eficácia não estava assegurada para o cenário de falha de cabo, sem ensaios regulares para esse caso.

    6) Manutenção, aceitação e qualidade. Existia um plano de manutenção, mas os registos nem sempre correspondiam ao executado. A MNTC actuava de facto como “mão de obra” sob orientação da Carris. Não houve ensaios/controlo após a execução das pinhas nem inspeções magneto-indutivas que cobrissem os últimos 2 metros junto às terminações. Em 2024–25 ocorreram ainda dois incidentes (colisão da cabina 1 nas escadas e embate com veículo de manutenção) que solicitaram anormalmente o cabo e as fixações.

    7) Compras e especificação do cabo: o desvio de 2022. A investigação do GPIAAF documenta como, numa consulta lançada para o Elevador de Santa Justa, foram adicionados os artigos do Glória/Lavra e acabou contratualizado (e depois rececionado e aceite) um tipo de cabo divergente da especificação interna da Carris para o Elevador da Glória (que pedia 6x19S-IWRC gr1770, admitindo 6x19S-FC gr1770 como alternativa). Desde Dezembro de 2022 passou a ser usado no Glória o cabo 6x36WS-FC gr1960 zZ, não conforme com a especificação. O primeiro desses cabos durou 601 dias sem incidentes registados; o segundo foi o do acidente.

    8) Enquadramento legal e supervisão pública. O relatório do GPIAAF reconstrói a “zona cinzenta” jurídica que deixou os Elevadores da Glória e Lavra fora da supervisão regular do IMT/ANSF, ao contrário da Bica e de Santa Justa. Mas afirma explicitamente que nada impedia a aplicação adaptada de regras e supervisão efetiva — por iniciativa do operador ou do IMT — e recomenda agora um quadro legislativo que cubra todos os funiculares e sistemas assimiláveis.

    ***

    Onde a nossa investigação bateu certo — e cedo

    O Relatório Preliminar do GPIAAF hoje conhecido confirma, com linguagem pericial, o essencial do que o PÁGINA UM apurou e publicou entre 5 e 27 de setembro. Abaixo confrontamos, ponto por ponto, as constatações oficiais com as nossas peças — com títulos e datas — mostrando como o jornalismo independente chegou primeiro aos nós críticos desta tragédia.

    1) O ponto de falha estava “escondido” — e nós avisámos

    O GPIAAF localiza a ruptura dentro do destorcedor, a poucos centímetros da pinha/soquete, com rupturas progressivas e formação de laço por rotação acumulada — um local invisível numa inspeção visual sem desmontar. Já a 27/09/2025, explicámos que a questão decisiva não era “partir como corda velha”, mas ceder na união cabo–soquete, um ponto que exige processos e ensaios formais de selagem, e não meras rotinas visuais.

    2) O cabo aplicado desde 2022 era de alma de fibra — e isso importa na amarração

    O relatório descreve umcabo 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang (zZ), colocado 01/10/2024, com 337 dias de serviço — não conforme com a especificação da Carris e vedado pelo próprio certificado a uso com destorcedor. Em 22/09/2025, mostrámos a viragem de 2022 de IWRC (alma de aço) para CF (alma de fibra), e revelámos as facturas, e a poupança de 43%, sublinhando que o risco não estava na carga mínima de ruptura (CRM) nominal, mas no comportamento em serviço na amarração. Em 25/09/2025, detalhámos por que a CF é mais vulnerável à compactação e à perda de eficácia no soquete.

    3) Incompatibilidade cabo–destorcedor-soquet: a regra técnica que foi ignorada

    O relatório preliminar do GPIAAF regista que o próprio certificado do cabo proibia o trabalho com extremidade livre para girar (destorcedor), pelo facto de o cabo não ser resistente à rotação — justamente o caso do 6x36WS-FC. Na nossa leitura técnica (27/09/2025) já alertávamos para a eventual não conformidade normativa das terminações e da compatibilidade geometria–material, por serem determinantes na segurança.

    4) Pinha executada por “método empírico” e sem ensaios — aquilo que denunciámos

    Radiografias revelaram vazios internos numa das pinhas e um procedimento transmitido por “caderno antigo” da Carris, sem norma, sem ensaios e sem critérios de aceitação. A 27/09/2025 já escrevêramos que a selagem não é artesanato: exige materiais, provas de carga e qualificação em linha com as normas europeias de segurança. A ausência destes controlos deixava o sistema exposto.

    5) Falhou a redundância: travões que não param sem o cabo

    O guarda-freio (que morreu no acidente) actuou, mas os travões não imobilizaram a cabina; o primeiro embate deu-se entre 41–49 km/h, cerca de 20 segundos após a rutura do cabo. Nunca se ensaiou o cenário de falha de cabo. Em 05/09/2025, denunciámos a “inspeção por olhómetro” feita sem parar o equipamento (tempo real de paragem: 00:00:00), sem testes funcionais sob carga; e em 06/09/2025 provámos que o caderno de encargos nem exigia ensaios mecânicos ou não destrutivos ao cabo. Revelámos também em 13/09/2025 que, ao contrário do que sucedia na Carris, a manutenção no Porto, feita para os eléctricos dos STCP também pela MNTC, eram muitíssimo mais exigentes.

    6) Manutenção e aceitação: registos formais ≠ trabalho real

    O GPIAAF aponta registos que não batiam com as tarefas, formação sobretudo on-the-job, ausência de ensaios após execução das pinhas e inspeções magneto-indutivas que não cobriam os últimos 2 metros junto à terminação; documenta ainda incidentes em 2024–25 que solicitaram cabo e fixações. A 08/09/2025, revelámos a opacidade documental (sem relatório de instalação de 2024, sem prova de qualificações) e exigimos traçabilidade técnica e ensaios de aceitação. Em 06/09/2025, expusemos o modelo de manutenção reduzido a checklists visuais e a ausência de prescrições técnicas para desmontagens/medições/ensaios.

    7) Compras e especificação: o pivot de 2022 ficou provado

    O GPIAAF reconstruiu o processo que levou à escolha, para o elevador da Glória, de um cabo de alma de fibra em 2022. Em 22/09/2025, já tínhamos ligado os pontos: 2020 (cabos IWRC com certificação EN 12385-8) vs 2022 (CF), com uma poupança de 43% no preço e dúvidas de certificação — uma poupança ilusória com custos de segurança. Em 25/09/2025, identificámos a decisão de topo (de Tiago Lopes Faria, então presidente da Carris e professor do Instituto Superior Técnico) em 2022 e a ausência de ensaios/pareceres prévios à mudança.

    8) Enquadramento legal e supervisão: a “zona cinzenta” não desculpa ninguém

    O relatório do GPIAAF explica por que os elevadores da Glória e Lavra ficaram fora da supervisão regular do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMT), mas acrescenta que nada impedia regras e supervisão adaptadas. Em 11/09/2025, demonstrámos que a substituição do cabo é alteração significativa: exige projecto, plano de ensaios, análise de segurança independente e autorização prévia do IMT, além de documentação e inspeções periódicas.

    9) Quem tinha a incumbência de trocar o cabo — e quem o fez

    Revelámos em 08/09/2025 que a substituição do cabo era incumbência contratual da MNTC, sem prova pública de que a equipa tivesse as certificações exigidas. A Carris nunca respondeu e confirmou-se agora que foram técnicos da empresa municipal que procederam á substituição sem garantias de cumprimento das normas.


    Linha do tempo das nossas publicações (antes do relatório)


    Balanço

    O relatório preliminar corrobora o núcleo das nossas revelações: cabo errado e não conforme, incompatível com destorcedor e aplicação no soquete; falha na terminação com método empírico; manutenção/aceitação deficitárias; e supervisão pública omissa onde devia existir. A diferença é que hoje tudo isso vem escrito na gramática da peritagem. O jornalismo do PÁGINA UM chegou lá antes, e continuará acompanhar este caso para que o acidente da Glória modifique práticas e responsabilidades.

  • ‘Low cost’ no contrato  dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações

    ‘Low cost’ no contrato dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações


    A Carris dispensou a MNTC — a empresa também responsável pela manutenção do Elevador da Glória no momento do acidente mortal de 3 de Setembro — de apresentar qualquer comprovativo das qualificações profissionais dos técnicos afectos à manutenção dos eléctricos históricos e articulados Siemens , antes da adjudicação.

    Ou seja, a empresa municipal está a permitir que a manutenção seja realizada por pessoas sem experiência ou qualificações. Recorde-se, aliás, que, apesar de ser uma obrigação contratual da MNTC, o cabo do Elevador da Glória terá sido substituído por técnicos da Carris, uma vez que a empresa contratada não detinha conhecimentos para essa função.

    a yellow trolley car on a city street

    Aliás, a respeito do acidente do Elevador da Glória, caso se prove que a Carris assumiu a substituição do cabo e a ligação deste ao trambolho, através de um soquete de liga metálica, a responsabilidade passará a recair directamente sobre a própria empresa municipal, por ter violado as regras contratuais — ao intervir num equipamento cuja manutenção estava externalizada —, passando a assumir integralmente o ónus técnico e jurídico de um acto de montagem que exige certificação específica segundo as normas EN 13411-4 e EN 12385-8, com todas as consequências em termos de responsabilidade civil e criminal.

    De acordo com os elementos do procedimento do concurso público da manutenção dos eléctricos de Lisboa, a que o PÁGINA UM teve acesso, o programa do concurso previa que “o júri do procedimento pode solicitar aos concorrentes quaisquer comprovativos das formações, certificações ou experiência profissional mencionados no currículo de qualquer um dos elementos a afectar à prestação dos serviços”.

    No entanto, esse poder nunca foi exercido. Aliás, o júri do concurso — Isabel Cruz, Alexandra Silva e Ana Tomás, técnicas da Carris — acabou por tranquilizar a MNTC, esclarecendo por escrito, ainda antes da decisão final, que não seria necessário cumprir esse requisito durante a fase de concurso, embora tenha ressalvado que a empresa municipal “reserva-se o direito de solicitar, em sede de execução contratual, todas as certificações que se demonstrem necessárias”. Porém, tal nunca sucedeu até agora, segundo apurou o PÁGINA UM.

    Resposta do júri do concurso público de manutenção dos eléctricos, esclarecendo a MNTC de não ser necessário cumprir uma norma do programa de concurso sobre os comprovativos do currículo dos elementos das equipas.

    Com essa flexibilização, a MNTC pôde concorrer e vencer o procedimento, apresentando uma proposta abaixo do preço base (475.200 euros), derrotando a concorrência da Gasfomento. A Carris aceitou, assim, celebrar um contrato de manutenção de três anos sem comprovação prévia das competências técnicas da adjudicatária — uma lacuna grave, tendo em conta que se trata da mesma empresa envolvida no acidente do Elevador da Glória, onde se verificaram falhas estruturais e ausência de certificações válidas no cabo de tracção.

    Mas o problema não se resume ao controlo da adjudicação. O PÁGINA UM analisou o caderno de encargos da manutenção dos 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados de Lisboa, tendo concluindo que é tecnicamente pobre, revelando, tal como já sucedia com o caderno de encargos dos ascensores, um nível de exigência muito inferior ao praticado pela STCP, no Porto, em matérias de segurança, rastreabilidade e rigor metrológico. Saliente-se que a MNTC é também a empresa responsável pela manutenção dos eléctricos na Cidade Invicta.

    Com efeito, enquanto a operadora portuense estruturou o seu plano de manutenção segundo princípios de engenharia industrial, com verificações periódicas diferenciadas (diárias, quinzenais, mensais, semestrais, anuais e de revisão geral), a Carris limita-se a prever revisões a cada 3.000 quilómetros no caso dos eléctricos, com verificações diárias, mas sem qualquer diferenciação por subsistema nem definição de critérios técnicos de aceitação ou rejeição.

    Exigências dos eléctricos históricos do Porto são incomensuravelmente superiores aos de Lisboa.

    Por outro lado, o plano da STCP obriga a ensaios não destrutivos (magnetoscopia e ultrassons), medições dimensionais com registo obrigatório, testes de equilíbrio dinâmico conforme a norma ISO 1940 G 2.5, verificação geométrica dos bogies segundo padrões UIC (Union Internationale des Chemins de Fer) e certificação de estanquidade de reservatórios de ar por entidades acreditadas. No caso do Porto, cada operação deve ser registada em ficha própria, com valores medidos, instrumento utilizado, data, técnico responsável e assinatura, garantindo rastreabilidade integral.

    Já a Carris não exige nenhum ensaio metrológico à MNTC, não define instrumentos nem tolerâncias e limita-se a indicar que devem ser efectuadas “verificações” e “revisões”, sem qualquer método prescrito. As “verificações”, como sucedia com os elevadores, podem ser a ‘olhómetro’.

    Essa diferença traduz-se num fosso de cultura técnica: enquanto o plano de manutenção da STCP demonstra a existência de engenharia aplicável a sistemas críticos de transporte, o da Carris é uma listagem funcional, assente na observação empírica e sem referências normativas. Em Lisboa, não há menção a normas ISO, EN ou UIC, nem exigência de certificações independentes de componentes críticos, como rodados, eixos, travões ou molas. Também não se prevê qualquer sistema de rastreabilidade técnica: o controlo documental resume-se a folhas de obra e relatórios administrativos, sem fichas metrológicas nem rastos de auditoria.

    Manutenção engloba eléctricos históricos e os modernos eléctricos articulados da marca Siemens. Foto: Carris.

    A pobreza técnica do caderno de encargos da Carris contrasta com a gravidade dos riscos envolvidos. Os eléctricos históricos — tal como os funiculares — são equipamentos antigos, sujeitos a fadiga estrutural e esforços dinâmicos que exigem inspecções especializadas e ensaios periódicos. Ainda mais no caso dos eléctricos de Lisboa, como o famoso 28, que percorrem zonas de grande declive, como a Calçada da Estrela, mesmo ao lado da Assembleia da República, a Calçada do Combro, a zona que liga o Chiado à Baixa, a Rua da Voz do Operário e a Rua Angelina Vida.

    A ausência de critérios técnicos e de medições verificáveis fragiliza o controlo de integridade e aumenta o risco de falhas não detectadas. Mesmo as penalizações contratuais, de 100 a 150 euros por omissão de manutenções, são simbólicas e não contemplam as consequências de incumprimentos que ponham em causa a segurança operacional.

    O PÁGINA UM já havia revelado, ao longo do mês passado, que a Carris tem adoptado um modelo de fiscalização essencialmente formal sem exigências escritas, baseado na confiança contratual. Agora, comprova-se que esse laxismo se estende à fase de planeamento técnico, com um caderno de encargos desprovido de parâmetros objectivos e metodologias de verificação.

    Conselho de Administração da Carris: a privilegiar o baixo custo e a elevada insegurança.

    Na verdade, a Carris aparenta privilegiar o preço baixo, algo que pode sair caro quando se trata de segurança. Com efeito, para a manutenção de 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados, a empresa municipal de Lisboa vai gastar, em média, 158 mil euros com a manutenção da MNTC. Por sua vez, a STCP está disposta a gastar 380 mil euros por ano, em média, para a manutenção de apenas oito eléctricos históricos. Numa outra perspectiva, o custo no Porto por veículo é de De um lado, o ‘low cost’; do outro, a segurança.

    A comparação entre a STCP e a Carris – que há poucos dias até suspendera um concurso pública de ‘remotorização’ de 57 eléctricos antigos, que nada tem a ver com manutenção, para melhorar o caderno de encargos, conforme revelou a CNN Portugal – evidenciam dois modelos distintos: enquanto no Porto se seguem regras e se mede com rigor, em Lisboa continua a valer o improviso e o “olhómetro”. Adivinhe-se qual aquele modelo com maior probabilidade de estar sujeito aos ‘azares’ que resultam em desastres.

    N.D. O PÁGINA UM optou, intencionalmente, por desta vez não colocar questões à Carris, uma vez que, invariavelmente desde Setembro, a empresa municipal não remete nem revela quaisquer documentos, alegando que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social” e prometendo que “a todos está a ser dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”.

    Como há questões formuladas à Carris há mais de três semanas ainda sem resposta, presume-se que novas perguntas não seriam respondidas em tempo útil, juntando-se ao rol de promessas não cumpridas pela administração liderada por Pedro Bogas. Naturalmente, o PÁGINA UM incluirá quaisquer comentários que a Carris entenda relevantes.

  • Elevador da Glória: o que se sabe, o que eles escondem e o que você precisa (já) de saber

    Elevador da Glória: o que se sabe, o que eles escondem e o que você precisa (já) de saber


    Mais de três semanas depois do acidente no Elevador da Glória, que lançou novamente a sombra sobre a segurança em Portugal — e perante um vergonhoso manto de obscuridade que remete o relatório para as calendas e esconde tudo sob o conveniente segredo de justiça —, a pergunta essencial permanece sem resposta oficial: por que razão colapsou o cabo de tracção?

    Não basta, como têm feito a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa, remeter o caso para investigações administrativas ou debates pós-eleitorais. É necessário explicar de forma transparente, com informação completa e assumpção de responsabilidades.

    A Carris, quer na actual administração liderada por Pedro Bogas, quer na anterior, chefiada por Tiago Lopes Farias, não pode continuar no silêncio nem recusar a divulgação de contratos que deveriam ser públicos. E o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que deveria ser garante de segurança, não pode permanecer numa espécie de coma regulatório, indiferente ao escrutínio público.

    Mas há, ainda assim, aspectos que já se sabem e que são fundamentais para compreender o que poderá ter estado na origem do desastre. Primeiro: até 2022, o cabo do Elevador da Glória era de alma de aço. A mudança para um cabo com alma de fibra ocorreu nesse ano, ainda sob a presidência de Tiago Lopes Farias, e justamente no mês anterior à sua saída.

    Antes dessa substituição, os cabos utilizados cumpriam a norma europeia EN 12385-8, que estabelece os requisitos técnicos para cabos de aço usados em transporte de pessoas por funiculares. Depois de 2022, ninguém sabe — ou ninguém quer esclarecer — se o cabo de alma de fibra possuía ou não certificação compatível com as normas harmonizadas da União Europeia para transporte de pessoas. O silêncio sobre este ponto é, por si só, revelador.

    Segundo: tanto os cabos com alma de aço como os cabos com alma de fibra têm uma característica fundamental — possuem resistência à tracção suficiente para suportar cargas muito superiores às que lhes eram exigidas em serviço no Elevador da Glória. Traduzindo: o cabo jamais romperia por esforço de tracção em condições normais. Logo, se o cabo colapsou, não foi por “partir” como um fio de corda velho, mas sim porque se soltou do seu encaixe.

    Ora, aqui entramos num domínio ainda mais técnico: o das terminações dos cabos. No caso do Elevador da Glória, a selagem é, em termos simples, o coração da segurança — ainda mais sabendo agora que o sistema de travagem era absurdamente inoperacional. É nesse encaixe metálico, denominado bucha cónica ou socket (soquete), que as dezenas de fios de aço que compõem o cabo são presos, por meio de cunhas ou resinas.

    Quando a selagem é perfeita, a resistência atinge praticamente a do próprio cabo — ou seja, por aí jamais haveria acidente. Porém, se existirem falhas de montagem, má escolha do tipo de cabo ou envelhecimento do material, a selagem pode transformar-se num ponto frágil, iniciando-se uma ruptura lenta: um processo que começa com pequenos deslizamentos internos, invisíveis a olho nu, até ao colapso total. Ora, o colapso repentino ocorreu cerca de um ano após a substituição do último cabo e, portanto, da criação desse encaixe metálico.

    Cabo de aço em preparação para ser unido no soquete. Foto: Carl Stahl GmbH.

    Para perceber a vulnerabilidade deste ponto, importa explicar como se faz a selagem — e muito bem o mostrou o jornalista Carlos Enes, na CNN Portugal, a partir de imagens da empresa alemã Carl Stahl GmbH, especializada em tecnologia de guindastes e elevadores. Primeiro, a extremidade do cabo é destrançada e cuidadosamente limpa, expondo fios e alma. Depois, o conjunto é introduzido numa bucha metálica em forma de cone. Segue-se a fixação, através de um de dois métodos principais.

    No método mecânico, insere-se uma cunha que, sob tracção, comprime os fios contra a parede do cone: quanto maior a carga, maior o aperto. No método químico — que será o utilizado neste tipo de ascensor —, a bucha é cheia com resina epóxi ou, em versões clássicas, com metal fundido, que endurece e encapsula todos os fios, criando um bloco sólido. Finalmente, deve ser feita uma prova de carga para garantir que a selagem resiste à tracção máxima prevista.

    Quando tudo é feito segundo as regras, a terminação é tão forte como o próprio cabo. Mas quando algo corre mal — seja pela má preparação dos fios, pelo uso de uma bucha inadequada ou pela escolha errada do cabo — cria-se um ponto crítico onde a falha pode ocorrer.

    Exemplificação da criação de um soquete em cabo de aço. Vídeo da empresa alemã Carl Stahl.

    Os engenheiros que lidam com sistemas de tracção sabem que os pontos de amarração — onde o cabo entra no soquete — são os mais sensíveis. Aí concentra-se a fadiga por flexão, aí se inicia a ovalização que abre caminho a quebras de fios, aí se manifesta a incompatibilidade entre o tipo de cabo e a geometria da selagem. Se não houver ensaios prévios de carga, se não se verificar se existem ou não alongamentos anómalos durante os dias de serviço, o sistema pode parecer seguro até ao dia em que, subitamente, cede. Ou seja, o cabo não rompeu por fadiga de aço: deslizou do soquete.

    É precisamente aqui que importa desfazer um equívoco que alguns poderão alimentar para desviar atenções. Quem pense que, tratando-se de um ascensor histórico, estes aspectos técnicos poderiam ser menorizados, sob a alegação de que quem “mandava” era o instituto público Património Cultural — que sucedeu ao IPPAR e ao IGESPAR —, desengane-se. Isso é areia atirada para os olhos dos ingénuos. O encaixe metálico, por exemplo, é uma operação de elevada responsabilidade técnica — não uma soldadura improvisada por um curioso, mas uma selagem que exige materiais certificados, controlo de processo e ensaio de resistência segundo norma europeia.

    Em sistemas de transporte público de pessoas, mesmo que em veículos históricos, tudo está subordinado a normas europeias de segurança. No caso dos cabos de aço, a norma de referência é a EN 12385-8; no caso das terminações e soquetes, a EN 13411-4; no caso da liga metálica das buchas, são exigidas especificações estruturais de aços forjados como C45, S355 ou 42CrMo4, constantes das normas EN 10250 e EN 10025.

    O processo de enchimento do soquete com uma liga metálica ou resina especial é um processo que requere o cumprimento de normas europeias de segurança. Foto: Carl Stahl.

    O primeiro é um aço carbono médio, robusto mas simples, usado em peças de solicitação intermédia; o segundo, um aço estrutural de baixa liga, com limite de escoamento mínimo de 355 MPa (megapascal), combina ductilidade e soldabilidade com resistência adequada; o terceiro, uma liga de crómio-molibdénio (Cr-Mo) de alta performance, oferece elevada dureza e resistência à fadiga, sendo indicada para componentes críticos de segurança. É, pois, evidente que a escolha do material e da certificação não pode ser secundária nem deixada à arbitrariedade de quem executa a obra.

    Perante este quadro, as hipóteses plausíveis para o acidente do Elevador da Glória são três. A primeira hipótese: o problema estava no cabo. E aqui importa esclarecer que, no contexto de funiculares e ascensores desta natureza, os cabos com alma de aço são preferíveis aos cabos com alma de fibra. A alma de aço garante maior estabilidade dimensional, reduz a deformação sob carga cíclica e oferece melhor resistência ao esmagamento nos pontos de amarração. Já a alma de fibra, embora mais flexível e com melhor capacidade de retenção de lubrificante, pode retrair-se sob tensão prolongada e ceder progressivamente em ambientes húmidos ou sujeitos a variações térmicas, criando espaços internos que diminuem a eficácia da ligação no soquete e favorecem o deslizamento.

    A segunda hipótese é que o problema tenha residido no material usado no soquete: se, em vez de um aço forjado de tenacidade comprovada como o C45, o S355 ou o 42CrMo4, foi utilizada uma liga inadequada, ou se o enchimento foi feito com resina não certificada ou mal curada, a fixação ficou condenada desde o início.

    16 mortes e mais de duas dezenas de feridos: três semanas depois, aumentou o obscurantismo para descobrir as causas e responsabilidades.

    A terceira hipótese é a de erro humano na instalação, seja na preparação deficiente do cabo, sem a abertura e desfiamento adequados dos fios antes da inserção no cone, seja na execução apressada do enchimento — que pode não ter penetrado devidamente entre os fios —, seja ainda em falhas de controlo dimensional.

    Não se pode excluir, claro, que o desastre do Elevador da Glória resulte da conjugação de dois ou mais destes factores: um cabo de alma de fibra menos adequado, um soquete fabricado ou enchido com materiais questionáveis e uma instalação executada com erros de método. E quando factores técnicos frágeis se somam a falhas de fiscalização e de ensaio, o resultado torna-se inevitável: um sistema vulnerável, que cedo ou tarde acabaria por falhar.

    Mas há algo ainda mais grave: em qualquer cenário, o acidente revelou falhas incompreensíveis de manutenção e de fiscalização. É sabido que a fadiga ou o deslizamento progressivo de um cabo no soquete podem ser detectados com ensaios periódicos — testes não destrutivos, medições de deslizamento, verificações de integridade interna com equipamentos adequados. Aparentemente, nada disto foi feito. O regime de manutenção da MNTC parece ter-se limitado a uma rotina burocrática de verificações visuais — um olhómetro e relatórios de circunstância —, deixando de fora aquilo que é verdadeiramente essencial: ensaiar, testar, certificar.

    João Caetano, presidente do Conselho Diretivo do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT): apenas mais um responsável que tenta passar pelos ‘pingos da chuva’. A entidade reguladora deveria ter acompanhado da mudança do cabo, exigido ensaios de segurança e executado fiscalizações trianuais, Nada disso foi feito.

    O caderno de encargos para a manutenção concebido pela Carris seria apenas anedótico, se não fosse trágico pela ausência de exigências técnicas. Essa fragilidade permitiu à MNTC esmagar o preço base para quase metade e ganhar um concurso sem sequer saber substituir o cabo, como era exigível. De facto, tudo indica que o encaixe metálico terá sido executado na paragem regular do Elevador da Glória por técnicos da própria Carris, entre Agosto e Setembro de 2024.

    E, como complemento desta sucessão de irresponsabilidades e obscurantismo, constata-se agora um dado de pasmar: nunca ninguém testou a hipótese de um colapso súbito do cabo para verificar se os sistemas de travagem responderiam de forma eficaz. Andou-se convencido de que existiria sempre um “segundo paraquedas” pronto a actuar, quando afinal não havia paraquedas nenhum. O Elevador da Glória do século XXI era um sistema assente na fé, não na redundância técnica — uma confiança ingénua de que o improvável jamais aconteceria.

    Certo é que, independentemente da origem última — e teme-se que se vá atribuir responsabilidades a um qualquer funcionário da Carris, um “marido da culpa” que acaba sempre em parte incerta —, estamos perante uma sucessão de falhas que não podem ser reduzidas a um inquérito interno ou a um relatório técnico para um incerto julgamento e eventuais indemnizações.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Este não é apenas um episódio de falha mecânica; é uma falência institucional. E se a Carris não esclarece, se o IMT não fiscaliza, se a Câmara Municipal de Lisboa se refugia em discursos de pesar, resta-nos concluir que os cidadãos são transportados em veículos cuja segurança depende mais da sorte do que da técnica e da regulação.

    As últimas semanas têm mostrado, mais uma vez, a atitude dos políticos e gestores perante os erros: um muro de silêncio. Mas esse muro fala demasiado alto: fala da arrogância das administrações que se julgam acima do escrutínio; fala da impotência dos reguladores que preferem esconder-se em vez de agir; e fala da cultura da opacidade que domina tantas empresas públicas, onde os cidadãos são tratados como intrusos sempre que ousam pedir transparência.

  • Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica

    Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica


    Foi um professor catedrático de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), Tiago Lopes Farias, que decidiu em Abril de 2022, um mês antes de deixar a presidência da Carris – que ocupou durante seis anos – substituir os tradicionais cabos de tração do elevador da Glória – e dos outros ascensores – passando de alma de aço por cabos com alma de fibra. E foi ele próprio, mais um dos seus vice-presidentes, quem assinou o contrato com a Sociedade de Aprestos por Navios, de acordo com documentos a que o PÁGINA UM teve acesso.

    Qual a razão desta alteração, Tiago Lopes Farias mantém um comprometedor silêncio. Aliás, apesar de inúmeros especialistas e investigadores do IST já se terem pronunciado sobre o desastre de 3 de Setembro, este professor catedrático – que esteve durante cerca de seus anos à frente da Carris e teve outros cargos em empresas públicas no sector dos transportes – mantém um comprometedor silêncio.

    Tiago Lopes Farias foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022. Foi ele que assinou o contrato que mudou a tipologia dos cabos dos ascensores. Não respondeu sobre os motivos técnicos dessa escolha, apesar de ser professor de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico.

    O PÁGINA UM questionou Tiago Lopes Farias, através de e-mail, sobre os fundamentos da troca dos cabos em 2022, sobre a existência de pareceres técnicos que sustentaram a mudança, se foram realizados ensaios de fadiga e de durabilidade antes da instalação, se houve comparação da vida útil dos dois materiais em condições reais de operação e se a alteração partiu da Carris ou foi sugerida pelo fornecedor. Nenhuma destas perguntas obteve resposta.

    A troca do cabo de alma de aço por cabo de alma de fibra não reside, segundo apurou o PÁGINA UM, na resistência à tracção, porque aí são praticamente semelhantes, se cumprirem as normas europeias de segurança. A diferença poderá estar no comportamento distinto sobretudo no ponto mais sensível: a zona de amarração, onde o cabo é fixado por terminais, grampos ou cunhas. É nesse local que se concentram esforços e curvaturas e onde se inicia, na maior parte das vezes, situações de degradação, por vezes lenta, que pode levar à ruptura ou ao deslizamento.

    O processo de amarração do cabo, que devem ser substituídos a cada cerca de dois anos, consiste em prender o cabo de forma a que este não deslize nem se solte, transmitindo toda a carga ao terminal. No caso de cabos com alma de aço, o núcleo metálico ajuda a manter a geometria interna e distribui parte das tensões, resistindo melhor ao esmagamento provocado pela pressão do terminal.

    Foto: D.R.

    Já nos cabos com alma de fibra, como o núcleo é deformável existe o risco de processos de ‘compactação’ ao longo do tempo, o que, a ocorrer, reduz o diâmetro do cabo, criando folgas internas e permitindo micro-movimentos dos fios exteriores. Esses movimentos não causam uma falha imediata – e, portanto, não é detectável no momento da substituição do cabo –, mas funcionam como uma espécie de ‘corrosão’ mecânica invisível, acumulando desgaste até gerar uma zona de fragilidade crítica.

    Caso suceda, como é uma hipótese plausível no acidente do elevador da Glória, o risco pode manifestar-se de duas formas. A primeira é o deslizamento lento: à medida que a alma de fibra se acomoda, a pressão do terminal deixa de ser suficiente para garantir a fixação, e o cabo pode começar a ceder milímetro a milímetro até perder totalmente a ancoragem. A segunda é a ruptura progressiva: os fios exteriores, sobrecarregados porque o núcleo não absorve esforços, vão sofrendo fadiga, partindo-se um a um até que o conjunto já não resiste à carga e colapsa subitamente. Ambos os processos podem ser demorados, desenvolvendo-se ao longo de meses – e pior: sem sinais visíveis até à iminência do acidente.

    Primeira página do contrato assinado por Tiago Lopes Farias que escolheu o cabo de alma de fibra, com boa resistência à tracção, mas mais vulnerável na zona da amarração.

    É por isso que, segundo especialistas consultados pelo PÁGINA UM que preferem o anonimato, os manuais técnicos e normas europeias, como a EN 12385-8, insistem que a escolha da alma do cabo não se deve limitar à resistência nominal, mas ao comportamento em serviço real, com destaque para a zona de amarração. A ciência dos materiais destaca, aliás, que falhas como as que terão ocorrido no elevador da Glória, raramente são instantâneas: começam com pequenas deformações internas, prossegue com micro-movimentos repetidos, instala-se com a fadiga acumulada e termina num colapso que, quando ocorre, já não pode ser evitado.

    Um presidente da Carris com formação em Engenharia Mecânica ou os departamentos de segurança e manutenção da empresa municipal tinham a obrigação de ter noção destes riscos? A resposta pode ser dada pelo senso comum – que já pouco vale para as 16 vítimas mortais.

  • Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’

    Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’


    A Carris gastou, em Agosto de 2020, apenas 7.783 euros na compra do cabo de aço que literalmente sustentava o Elevador da Glória. Dois anos depois, em Março de 2022, já em vésperas da entrada em funções da actual administração liderada por Pedro Bogas, decidiu “poupar” e adquiriu um cabo de menor qualidade, com alma de fibra, por um custo unitário 43% inferior. O barato poderá ter saído bem caro, com 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos no desastre de 3 de Setembro passado.

    De acordo com facturas e notas de encomenda a que o PÁGINA UM teve acesso — e perante a incompreensível recusa da Carris em disponibilizar documentos que deveriam estar há anos no Portal Base —, tudo indica que a empresa municipal julgou poder “poupar uns cobres” optando por cabos com menos aço.

    Acidente de 3 de Setembro causou a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Na primeira metade de 2020, a Carris adquiriu à empresa ExtraCabos, com sede em Paio Pires, cabos certificados para uso em elevadores de passageiros, com alma de aço (IWRC), configurados para garantir boa resistência à tracção e maior durabilidade à fadiga provocada pelo contínuo dobrar e desdobrar nas polias.

    Essa opção seguia a prática consolidada no sector dos transportes e o espírito da norma europeia EN 12385-8, que admite diferentes tipos de núcleo, mas cuja aplicação em transporte de passageiros tem levado, por regra, à utilização de alma metálica, pelo nível de segurança exigido. Para assegurar essa conformidade, a Carris pagou mais 6.000 euros pela certificação, garantindo o cumprimento das regras específicas para transporte de pessoas.

    Tanto para o cabo do Ascensor da Glória como para o do Lavra, tratava-se de um modelo específico para transporte de passageiros, em aço galvanizado, com 32 milímetros de diâmetro e resistência de 1770 N/mm², cumprindo a norma EN 12385-8. Era um cabo 6×19 Seale IWRC, isto é, seis pernas com 19 fios cada, assentes sobre uma alma de aço independente, garantindo maior robustez e segurança. A carga mínima de ruptura (CRM) era de 662 kN, cerca de 67 toneladas-força. Para o Glória foram fornecidos 276 metros, ao preço unitário de 28,20 euros, num total de 7.783 euros (sem IVA).

    Em 2020, a Carris ainda comprou cabos com alma de aço e certificação EN 12385-8.

    Porém, em 2022, a Carris optou por uma solução distinta: cabos com alma de fibra (CF). À primeira vista, o diâmetro era o mesmo (32 mm), com CRM de 662 kN — equivalentes a cerca de 66 toneladas-força. Apesar de teoricamente suficiente para suportar as solicitações estáticas de um funicular, especialistas ouvidos pelo PÁGINA UM explicam que a questão crítica não é a resistência bruta, mas sim o comportamento em serviço.

    A alma de fibra — que, ao contrário do que escreveu erradamente o Expresso, só começou a ser usada em 2022, já no mandato de Carlos Moedas, e não em 1999, ainda no tempo de Fernando Medina — oferece menor resistência à compressão, maior alongamento e degrada-se mais rapidamente sob flexão repetida: exactamente o esforço a que estão sujeitos os ascensores históricos lisboetas.

    Além disso, ao contrário de 2020, a Carris não terá solicitado à fornecedora Sociedade de Aprestos para Navios, então ainda no Cais do Sodré, a certificação segundo a norma europeia. A decisão, em Março de 2022, foi da anterior administração, liderada por Tiago Farias, curiosamente doutorado e professor em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico.

    Cabos mais baratos, menos resistentes e sem garantia de certificação foram comprados apenas a partir de 2022: a Carris nem sequer quer agora explicar as explicar as decisões de um passado recente.

    “O problema destes cabos não é a força de ruptura, mas sim a fadiga. Um cabo com alma de fibra perde estabilidade mais depressa quando sujeito a ciclos repetidos de flexão — e isso é precisamente o que acontece nos funiculares da Glória, Lavra e Bica”, explicou ao PÁGINA UM um engenheiro de materiais com experiência em certificação de cabos de tracção.

    O argumento económico também ajuda a compreender a escolha. Entre 2020 e 2022 os preços das matérias-primas, sobretudo do aço, dispararam devido sobretudo à pandemia e à guerra da Ucrânia. Seria de esperar que os cabos de aço para elevadores históricos se tornassem mais caros. Mas os documentos mostram o inverso: em 2022 a Carris comprou cabos mais baratos por metro do que em 2020, apesar da conjuntura adversa.

    Nesse ano foram adquiridos 1.000 metros de cabos de 32 mm, suficientes não apenas para a substituição de 2022 mas também para a de 2024, dado que o Glória necessita de 276 metros e o Lavra de 188.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris, ao fundo, no anúncio da Carris da formalização da candidatura da empresa para fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    Em suma, ao mudar a especificação técnica, a Carris reduziu o custo por metro de 28,20 euros para 16,05 euros — uma poupança de 43% a preços nominais, mas sacrificando a durabilidade e o desempenho. “É uma poupança ilusória. Os cabos de fibra custam menos à cabeça, mas duram metade do tempo, e isso talvez não tenha sido ponderado quando se atribuiu a durabilidade prevista”, nota a mesma fonte.

    A diferença entre cabos com alma de aço (IWRC) e cabos com alma de fibra (CF) é crucial. Os primeiros oferecem maior resistência à ruptura, menor alongamento e duram mais sob esmagamento em polias e tambores, sendo por isso os mais indicados para sistemas de transporte de passageiros como os funiculares e acensores.

    Já os segundos — mais baratos e flexíveis, mas menos robustos — são adequados a guinchos, gruas de oficina ou sistemas auxiliares, mas não a equipamentos que puxam “trambolhos” como os ascensores de Lisboa. A capacidade de ruptura sobretudo em zonas sensíveis de ligação pode cair entre 7% e 10% face a um cabo equivalente com alma de aço.

    Logo após o acidente, o PÁGINA UM pediu repetidamente à Carris documentação sobre as compras de cabos. A administração, que inicialmente prometeu fornecer todos os elementos, passou a recusar, invocando que decorrem inquéritos do GPIAAF e do Ministério Público.

    Confrontada com os documentos relativos às aquisições de 2020 e 2022 — estes últimos usados, em princípio, na substituição de 2024 e que romperam em Setembro —, a Carris respondeu que “os elementos e a documentação, referidos nas perguntas, abrangem um período alargado que começa em 2020”, apesar de se tratar apenas de duas ou três compras em seis anos. E acrescentou que, por estarem em curso os inquéritos, “neste momento não nos podemos pronunciar sobre estas matérias”. Uma justificação que se tornou, afinal, uma conveniente desculpa para obscurecer um processo que exigia transparência absoluta.

    O PÁGINA UM também contactou a empresa Sociedade de Aprestos para Navios, agora com sede em Alcântara – que terá fornecido os cabos em uso aquando do acidente – no sentido de saber se estes cumpriam as normas europeias, mas não foi ainda possível falar com nenhum responsável.

  • Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto

    Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto


    O contraste não podia ser mais brutal. Em Novembro de 2022, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) adjudicou à MNTC — a mesma empresa que desde 2019 assegura para a Carris a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa — um contrato de quase 1,9 milhões de euros para garantir, durante 1826 dias (exactamente cinco anos), a manutenção de oito eléctricos históricos.

    O contrato termina no final de Novembro de 2027, e a exigência imposta no caderno de encargos da STCP ao nível da manutenção e da segurança é de uma minúcia que faria inveja a qualquer operador ferroviário europeu. Bem diferente do que a Carris exigia à mesma MNTC: vistorias a “olhómetro”, lubrificação e pouco mais, com indicação de tarefas a desempenhar estranhamente ambíguas e tecnicamente vagas.

    Eléctrico do Porto…

    O plano de manutenção preventiva da STCP, analisado pelo PÁGINA UM, é um verdadeiro manual de engenharia: 136 itens, treze secções abrangendo carroçaria, chassis, bogies, rodados, motores de tracção, sistemas de suspensão, travagem, circuitos pneumáticos, comandos, circuitos eléctricos, areeiros e ensaios finais.

    Neste último caso, estão previstos, quinzenalmente e após reparações de maior monta, ensaios completos ao carro: colocam-se pontos no controller e utiliza-se o freio de parque para confirmar, em condições reais, que o eléctrico acelera, trava e se imobiliza de forma segura, garantindo que os sistemas de tracção e de travagem funcionam correctamente antes de regressar ao serviço.

    Está igualmente prevista, em base anual, a realização do ensaio de freio estático para medir os parâmetros dos cilindros de freio, do depósito e das válvulas do sistema, assegurando que a travagem cumpre as normas da UIC – União Internacional dos Caminhos-de-Ferro, entidade que estabelece padrões técnicos internacionais para garantir segurança e interoperabilidade no transporte ferroviário.

    Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
    … e ascensores de Lisboa: mesma empresa de manutenção; exigências avassaladoramente distintas.

    As tarefas de manutenção dos eléctricos da STCP estão distribuídas por sete periodicidades — diária, quinzenal, mensal, semestral, anual, intermédia (cinco anos) e geral (dez anos) — e são descritas com rigor quase cirúrgico: lubrificação de cavilhas e rodas de troley, verificação de estores, ensaios de magnetoscopia e ultrassons nos eixos, medições de esquadria de bogies segundo normas UIC, reapertos com torque controlado, equilibragem dinâmica de motores de tracção de acordo com a norma ISO 1940 G 2.5, ensaios estáticos e dinâmicos de travagem com registo de valores, purgas programadas do sistema pneumático, desmontagem e montagem de rodados, pintura com especificações RAL predefinidas, etc, etc.. Tudo tem de ser registado em fichas normalizadas, permitindo rastreabilidade, identificação de tendências de desgaste e planeamento de substituições antes da falha.

    Agora desçamos para Lisboa — e, ironicamente, desçamos mesmo pela Calçada da Glória. Desde 2019 — e não desde 2022, como erradamente se escreveu inicialmente — , a MNTC ficou também responsável pela manutenção dos ascensores lisboetas. Mas aqui, por opção da Carris, o cenário é radicalmente diferente. O caderno de encargos imposto pela empresa municipal de Lisboa — que vigorou até 31 de Agosto e foi prorrogado por ajuste directo por mais cinco meses — parece mais uma lista de verificação do que um plano de engenharia.

    Aquilo que exige — se se pode dizer que se trata de exigências — é, na generelidade dos casos, genérico e vago: verificar pantógrafos, baterias, cabos de tracção, purgar compressores, lubrificar roldanas. Não há referências nem explícitas, nem implícitas a ensaios não destrutivos, a medições calibradas ou a periodicidades diferenciadas de controlo que permitam detectar falhas latentes. Nada que garanta testes de segurança e de travagem.

    Páginas 1 e 4 das cinco páginas do caderno de encargos da STCP que detalha as manutenções a executar pela MNTC nos eléctricos do Porto.

    O caso do Elevador da Glória é paradigmático — e trágico. Os serviços de manutenção e segurança do funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional, não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada semana, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Era tudo feito visualmente — ou, para usar a ironia que a tragédia quase não consente, com recurso à avançadíssima tecnologia do “olhómetro”. Apesar de a lei exigir ensaios após alterações de sistemas de segurança e comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como o PÁGINA UM já salientou com base na lei, aparentemente nada disto alguma vez foi feito.

    Pior ainda: aparentemente nunca ninguém se apercebeu de que os sistemas de freio dos ascensores eram incapazes de travar caso houvesse, como houve, colapso do encaixe do cabo no trambolho.

    Especificações do caderno de encargos da Carris são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da Carris, apenas para a Bica e para o Elevador de Santa Justa existia referência expressa à contagem de arames partidos como critério de substituição de cabos. No caso da Glória e do Lavra, a exigência era apenas uma vaga “verificação”, sem norma técnica, sem especificação de método, sem obrigatoriedade de desmontagem ou uso de instrumentos de medição. Se a inspecção diária, semanal e mensal era apenas visual — como confirmam os registos da própria Carris — nada obrigava a que as inspecções semestrais fossem diferentes.

    O PÁGINA UM ouviu especialistas que foram claros: existem hoje métodos de detecção precoce de falhas que são standard internacional em sistemas de transporte por cabo — ensaios de magneto-indução, capazes de detectar fios partidos no interior do cabo; correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente importantes na verificação da integridade da zona de ancoragem no trambolho, onde precisamente se deu a ruptura; medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos, procedimento previsto em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Nada disto estava previsto no caderno de encargos, que, como parte integrante do contrato, foi aprovado pelo Conselho de Administração da Carris, presidido por Pedro Bogas. O contrato deixava ao critério da MNTC a decisão de realizar ou não ensaios complementares. Resultado: se a empresa não os fazia por iniciativa própria, nada a obrigava.

    Manutenção em Lisboa: uma autêntica e trágica ‘balda’.

    Esta omissão poderá ser determinante na atribuição de responsabilidades civis e criminais: o município de Lisboa, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista para um sistema que transporta milhares de pessoas por dia num declive acentuado, expondo os passageiros a um risco inconcebível.

    Perante isto, o contraste entre Carris e STCP é avassalador e demonstra que o problema é de gestão e de exigência. No Porto, os eléctricos históricos têm direito a centenas de operações programadas, medições rigorosas, registos de torque, ensaios não destrutivos e análises de tendências de desgaste; em Lisboa, os ascensores tinham direito apenas a um olhar de relance e a um visto de conformidade. A mesma empresa, dois contratos, dois mundos.

  • Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes

    Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes


    Mesmo tratando-se de verdadeiras relíquias do património urbano, como o Elevador da Glória, a lei nunca desresponsabilizou a Carris nem a dispensou de submeter ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) um vasto conjunto de elementos sempre que realiza intervenções estruturais. Ao contrário daquilo que o IMT tentou fazer passar numa primeira fase do acidente, antes de se saber da ruptura do cabo, uma leitura atenta do diploma legal que regula o regime especial para instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial é, na verdade, apenas uma flexibilização documental, e não uma dispensa de obrigações de segurança ou de fiscalização.

    O cabo é o coração do sistema dos ascensores históricos: sem ele, os elevadores não sobem nem descem — e se falham, como falhou na semana passada, a viagem transforma-se em tragédia. Por isso, a lei trata-o como componente de segurança crítica, exigindo homologação, ensaios e autorização antes de transportar passageiros.

    Com efeito, o regulamento em vigor desde 2020, e que revogou um decreto-lei de 2002, estabelece que as chamadas “instalações por cabo classificadas como instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial” — como os elevadores da Glória, Bica e Lavra — apenas beneficiam de dispensa da marcação CE ou da apresentação de declarações europeias de conformidade para componentes especialmente concebidos para elas.

    Porém, a regra de fundo mantém-se: qualquer alteração significativa que inclua “os subsistemas e componentes de segurança das instalações” carece de autorização prévia do IMT, e só pode ser executada após a apresentação de projecto, plano de ensaios e uma análise de segurança por organismo independente, escolhido pelo dono da obra (no caso, a Carris) mas aceite pela entidade reguladora.

    Isto significa que a substituição do cabo tractor, efectuada no ano passado no Elevador da Glória pela MNTC – e que a Carris ainda não quis disponibilizar ao PÁGINA UM –, não poderia ter sido tratada como uma mera operação de manutenção rotineira. Por lei, mesmo para elevadores históricos, a Carris deveria ter instruído um processo administrativo prévio junto do IMT, contendo “análise de segurança para a fase de entrada em serviço e relatório de segurança” e posteriormente uma declaração que a alteração fora terminada acompanhada de “documentos que demonstrem a conformidade da instalação com os requisitos essenciais do regulamento”. Nessa linha, teria de ser enviado um “dossier técnico contendo o relatório final dos ensaios e verificações realizadas”.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Se este procedimento não foi cumprido na íntegra, o elevador poderá ter estado a operar de forma irregular, sem cobertura legal para transportar passageiros. E esta não é uma mera formalidade: trata-se do coração do sistema de segurança pública, destinado a prevenir acidentes graves e a responsabilizar as entidades exploradoras por todas as etapas do ciclo de vida do equipamento.

    Mas as obrigações da Carris não se esgotam nesta fase em que houve uma alteração de uma componente do funcionamento e da segurança do elevador da Glória. E nem o IMT pode lavar as mãos por se tratar de infraestruturas de transporte histórico. Com efeito, em nenhum aspecto da legislação se isenta a empresa transportadora da obrigatoriedade de manter um sistema de manutenção documentado e um sistema de gestão da segurança capaz de lidar com situações normais e excepcionais.

    Além disso, a lei impõe ainda que, de três em três anos, o IMT realize uma inspecção completa e emita autorização de continuação em serviço, após análise de um relatório intercalar de segurança que a Carris tem de enviar, acompanhado da prova de que dispõe de quadro técnico adequado, contratos de subcontratação aceites pelo IMT e seguro de responsabilidade civil válido.

    Mesmo em regime patrimonial, a lei é clara: cópias do relatório de segurança, declarações de conformidade, documentação técnica dos componentes e registos de restrições de utilização teriam de estar disponíveis nas próprias instalações para que a fiscalização pudesse, a qualquer momento, auditar o histórico da infraestrutura. Caso se verificasse falhas graves, o IMT tem competência para determinar a suspensão da exploração, com um prazo máximo de seis meses para reposição das condições de segurança, sob pena de revogação da autorização.

    E mais: mesmo em elevadores históricos seria inadmissível que fossem colocados cabos que não estivessem homologados. A legislação refere que caso o IMT verificasse que “um componente de segurança provido de marcação CE de conformidade” pudesse colocar “em risco a segurança e a saúde de pessoas ou a segurança de bens” tinha a competência para determinar “a proibição da sua utilização ou a restrição ao seu campo de aplicação”. Ora, a Carris nem sequer quis informar ainda o PÁGINA UM quem foi o fornecedor do cabo e qual foi o custo.

    Em suma, o discurso de que o estatuto patrimonial dos elevadores justificaria uma espécie de auto-regulação artesanal é, assim, insustentável. A responsabilidade continua a ser da Carris, que responde perante os utentes, trabalhadores e terceiros pelos riscos de exploração e pelos contratos de fornecimento de produtos e serviços. A subcontratação de técnicos ou de empresas para realizar inspecções e manutenções não transfere essa responsabilidade: apenas é admitida se os contratos forem previamente aceites pelo IMT e se for assegurado que os trabalhadores cumprem os requisitos de qualificação e que permanecem sob a direcção funcional da entidade exploradora.

    Conselho de Administração da Carris.

    A pergunta que agora se impõe, perante o desastre do Elevador da Glória, é simples: cumpriu a Carris todos estes passos? Foram submetidos ao IMT o projecto de substituição do cabo, a análise de segurança e o plano de ensaios? Existe relatório final de ensaios assinado por entidade independente? Foi emitida autorização de entrada em serviço antes de o elevador retomar a operação?

    Questões para as quais não há resposta da Carris, até porque a empresa municipal, em relação às questões anteriores do PÁGINA UM, respondeu ontem a dizer que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social”, prometendo apenas que será “dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”. Foram endereçadas mais questões, que serão incluídas quando e se houver resposta.

  • Não, Moedas não é responsável pela tragédia no Elevador da Glória

    Não, Moedas não é responsável pela tragédia no Elevador da Glória


    Quando ocorrem tragédias, há, infelizmente, logo quem delas se quer aproveitar. Foi assim também com o acidente trágico que ceifou 16 vidas depois de, aparentemente, se ter partido um cabo no mítico Elevador da Glória, em Lisboa. Um cabo que prendia os passageiros à vida.

    Nos media e nas redes sociais, foi um desfile de figuras, oportunistas, a por as garras de fora e a tirar proveito do luto e do choque. A principal vítima destes ataques tem sido o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas.

    Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
    Foto: D.R.

    Não vou citar um a um porque são muitos e porque não lhes quero dar mais palco. Mas colheram aplausos, ‘likes‘, partilhas nas redes sociais. As hienas puseram-se em campo: políticos; adversários de Moedas e do Governo; comentadores das TVs. Enfim, os do costume. Tudo lhes serve para reforçar a fama, a qual está indexada ao que depois recebem para ir a programas de variedades — que é como classifico os actuais painéis de comentadores televisivos e das rádios.

    Os factos pouco interessam a esta gente. O que interessa é ‘malhar’ no Moedas. É vender ideologias, berrar acusações absurdas. Uns aproveitam para vender as “benesses” e os “milagres” proporcionados pelos sindicatos, e que se “estes tivessem mais poder nada disto acontecia” — uma enorme tolice. (Servem hoje, sobretudo, para manter intacto um mercado de trabalho obsoleto, em que a maioria dos trabalhadores sobrevive com migalhas, num regime democrático corrompido). Outros aproveitaram para “puxar a brasa à sua sardinha” a tempo das eleições autárquicas. Outros opinam porque sim. Os factos? Isso é chato. Não interessa.

    Mas há, pelo menos, 16 razões para atender aos factos. As vítimas mortais merecem o apuramento dos factos. E também os feridos do acidente merecem o apuramento de todos os factos. E de todas as responsabilidades. Técnicas e de gestão.

    Carlos Moedas, com a ministra do Ambiente e o presidente da Carris, no anúncio da formalização da candidatura da empresa para o fornecimento de 15 elétricos, em 28 de Junho de 2024.
    / Foto: CML/ D.R.

    É já evidente que o acidente não ocorreu, assim, do nada. Do que se sabe até agora, terá ocorrido na sequência de uma série de acontecimentos que criaram a “tempestade perfeita” para uma tragédia.

    O acidente terá tido origem em eventos que tiveram início há, pelo menos, três anos, quando a Carris lançou um concurso público para a manutenção dos centenários ascensores.

    No concurso lançado em 2022, concorreram quatro empresas: três sem o obrigatório alvará da Direcção-Geral da Energia e da Geologia (DGEG) e uma empresa muito experiente e com licença. Uma das empresas sem alvará e sem experiência na manutenção de ascensores era a MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia.

    Nesse concurso, o preço era de 1.728.000 euros. A MNTC ganhou com uma proposta que esmagou esse preço. O contrato acabou por lhe ser adjudicado por 995.515,20 euros.

    Foto: D.R.

    Além do preço, o que é chocante é ver que o caderno de encargos desse concurso é paupérrimo em termos de exigências e requisitos para a prestação da manutenção.

    O que se seguiu foi uma catadupa de acontecimentos que resultaram no trágico desfecho.

    Como é que a Carris colocou nas mãos de uma empresa sem experiência e com alvará com poucas semanas a manutenção dos ascensores? Sabemos o porquê: poupar nos custos.

    Quem tomou a decisão de adjudicação deste contrato, em 2022, pode enfrentar acusações criminais. Os nomes que constam do contrato são dois: Pedro Gonçalo de Brito Aleixo Bogas, presidente da Carris; e Maria de Albuquerque Rodrigues da Silva Lopes Duarte, vice-presidente da empresa. O conselho de administração da Carris tem ainda outra vogal executiva: Ana Cristina Coelho.

    Pedro Bogas, presidente da Carris. / Foto: D.R.

    Entretanto, este ano, a Carris cancelou um concurso público para a manutenção dos ascensores. No dia do acidente, não havia nenhum contrato válido e eficaz publicado no Portal Base referente à manutenção daqueles elevadores. O anterior contrato conhecido, com a MNTC, tinha terminado a 31 de Agosto.

    Pressionada, a Carris mostrou então aos jornalistas uma minuta de um contrato, alegadamente adjudicado por ajuste directo à mesma empresa, MNTC, com data de 20 de Agosto. A Carris tem mantido a narrativa de que o contrato foi mesmo assinado a 20 de Agosto, mas sem assinaturas digitais, vale a palavra dos gestores da Carris. (Resta saber se terá algum valor para as seguradoras e o Ministério Público.)

    Será que a tragédia poderia ter sido evitada se, em 2022, a Carris tivesse entregado a manutenção dos elevadores a uma empresa experiente? Será que teria sido evitada se, no passado mês de Agosto, a Carris tivesse entregado a manutenção a uma empresa com mais experiência? Será que a nova empresa teria conseguido detectar, no dia 1 ou 2 de Agosto, que o cabo dos ascensores da Glória não se encontrava em condições? Jamais saberemos.

    O que sabemos é que a manutenção dos ascensores foi deficiente. Falhou. Foi negligente. Foi uma brincadeira. Isso é evidente. Se tivesse sido bem feita, não teria havido esta tragédia.

    Foto: D.R.

    O que sabemos é que uma empresa, a Carris, para poupar nos custos, entregou a manutenção dos emblemáticos elevadores nas mãos de uma empresa que fazia sobretudo contratos de manutenção de piscinas públicas.

    O que sabemos é que a empresa de manutenção MNTC não tinha experiência. E nunca deveria ter postos os pés na Calçada da Glória para ali prestar serviços à Carris.

    O que sabemos é que as 16 vidas perdidas no acidente tiveram um preço: 732.484,80 euros. É o valor da “poupança” que a Carris teve em 2022, quando decidiu adjudicar o contrato de manutenção à MNTC.

    732.484,80 euros. Foi por este valor que se perderam 16 preciosas vidas. Foi por este valor que os gestores da Carris meteram as suas responsabilidades debaixo do tapete e entregaram a vida dos passageiros dos ascensores nas mãos da sorte.

    a hand with a finger pointing at a red and white dice
    Foto: D.R.

    Desde o dia 1 de Agosto de 2022, quando a MNTC começou a fazer a manutenção dos elevadores da Carris, os passageiros arriscaram cada vez que subiram os degraus para andar nos ascensores. Nos últimos três anos, a Carris fez os passageiros dos elevadores jogar uma espécie de roleta russa, sem que nenhum suspeitasse que aquela viagem poderia ser a última na vida.

    Agora, é preciso atender aos factos e apurar responsabilidades. Tudo parece apontar para a existência de negligência, menosprezo pelas regras de segurança e de cuidados com a manutenção do elevador da Glória.

    É certo que num país “preso por fios”, onde o bem público é muitas vezes gerido como bem privado de alguns, só surpreende que não haja mais tragédias.

    Mas querer usar esta tragédia para promover ideologias, reforçar a fama de comentador ou ganhar votos nas eleições é simplesmente nojento — e raramente uso esta palavra.

    Foto: D.R.

    Os factos já conhecidos são claros. Concretos. Querer culpar Moedas não só não faz sentido, como é estúpido. É fechar os olhos a dos maiores males que corrói o país: a eterna desresponsabilização efectiva.

    Alguém tomou decisões de gestão. Alguém fez um trabalho deficiente. Alguém foi negligente. Alguém matou 16 passageiros que apenas queriam subir a Calçada da Glória no histórico Elevador da Glória (não se excluindo que entre as vítimas haja pessoas que circulavam no passeio). Isto é indiscutível.

    Esta tragédia precisa servir para alguma coisa. Pode servir para se corrigir alguns grandes males do país. E garanto que tudo mudará, em Portugal, se houver, desta vez, pelo menos uma coisa que nunca há: Justiça. Célere.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base

    Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base


    Não queria, mas teve de ser. Na passada quinta-feira, o presidente da Carris, Pedro Bogas, garantiu em conferência de imprensa, com a firmeza de um leão, que o ajuste directo alegadamente celebrado a 20 de Agosto com a empresa MNPC – responsável pela manutenção dos elevadores de Lisboa – não tinha de ser publicado no Portal BASE, por se tratar de um contrato no âmbito dos chamados “sectores especiais”. Mas, sem escapatória legal, o ajuste directo já é público desde o final do dia de ontem.

    Recorde-se que as declarações de Pedro Bogas sobre a não obrigatoriedade de publicação do contrato na plataforma da contratação pública foram proferidas no mesmo evento em que foi disponibilizada aos jornalistas presente uma minuta forjada para simular a existência de um contrato. O documento não tinha as assinaturas das partes, apesar de os serviços da Carris terem colocado uma tarja negra no documento – o que Pedro Bogas admitiria ao PÁGINA UM ter sido “um erro”.

    Em conversa com o PÁGINA UM no sábado seguinte, o presidente da Carris, licenciado em Direito, voltou a sustentar que a empresa não estava obrigada a divulgar os contratos na plataforma da contratação pública – uma posição que, na prática, equivaleria a admitir uma completa ausência de transparência na utilização de dinheiros públicos.

    Mas a pose altiva durou pouco: pressionada pelo PÁGINA UM, e também após diversas opiniões jurídicas que foram sendo transmitidas na imprensa sobre o facto de a a publicitação ser obrigatória – independentemente de se tratar de “sectores especiais” –, a Carris foi forçada a recuar. Ontem, 9 de Setembro, a empresa acabou por publicar no Portal Base o contrato por ajuste directo, não por voluntarismo ou por “transparência acrescida”, mas por imposição legal.

    Com efeito, já a 4 de Setembro, o PÁGINA UM sublinhava que o artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é inequívoco: a publicação dos contratos no Portal BASE é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados “sectores especiais”, sendo irrelevante a maior flexibilidade procedimental ou os limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.

    Conselho de Administração da Carris, com Pedro Bogas ao centro.

    Além disso, a própria deliberação do Conselho de Administração da Carris de 14 de Agosto, apenas assinada por Pedro Bogas, não deixava margem para dúvidas sobre a aplicação do artigo 127.º, uma vez que expressamente refere que não se aplicaria ao ajuste directo “o Regime da Contratação Pública, previsto na Parte II do CCP”, sendo então aplicável os procedimentos de “locação, aquisições de bens, serviços e empreitadas”, que obrigaria a uma consulta prévia, e depois à publicitação do ajuste directo.

    Por esse motivo, mostra-se completamente absurdo que o presidente da Carris tenha afirmado à imprensa o contrário daquilo que assinou em 14 de Agosto. E mais ainda a insistência da Carris em classificar no Portal Base o contrato como sendo relativo aos “sectores especiais”, o que demonstra o desnorte da empresa municipal.

    Aliás, a deliberação de Pedro Bogas mostra-se um atropelo às boas normas de gestão pública porque, no mesmo dia, cancelou o concurso público iniciado em Abril, aceita uma consulta prévia entretanto feita (que só deveria ser exequível depois do cancelamento do procedimento anterior), selecciona a empresa (a MNTC em detrimento da Liftech) e aprova a minuta do contrato.

    Registo no Portal Base do polémico ajuste directo da manutenção da Carris foi colocado ontem, dia 9.

    Esta questão – da eficácia e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente com o Elevador da Glória – pode ter implicações relevantes no apuramento de responsabilidades pela tragédia que vitimou 16 pessoas e feriu mais de duas dezenas. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá alegar irregularidades colocando em causa nos tribunais a validade do contrato à data do acidente.

    O contrato agora publicado no Portal BASE é o mesmo que a Carris tinha enviado ao PÁGINA UM – e só uma análise forense poderá determinar se foi efectivamente assinado a 20 de Agosto ou apenas após o acidente –, contendo já as assinaturas de dois administradores da Carris e do gerente da MNTC. Tem um prazo de 153 dias, decorrendo assim até 31 de dezembro de 2026, e um montante máximo de 221.333 euros, mas, segundo as cláusulas, não será executado se os elevadores permanecerem inactivos.

    Mesmo que venha a ser cumprido na parte que respeita aos outros elevadores, o caderno de encargos é extremamente vago, limitando-se a exigir lubrificações e verificações visuais. A MNTC é ainda responsável pela substituição dos cabos – operação sensível que poderá ter estado na origem da ruptura do cabo do Elevador da Glória, que desencadeou o acidente.

    Mantém-se, contudo, o secretismo sobre a maioria dos contratos anteriores. Garantidamente, sabe-se apenas que a MNTC presta serviços desde 2022, sendo que Pedro Bogas sublinhou que a manutenção está externalizada “pelo menos desde 2007” e que “a segurança é uma prioridade absoluta da Carris há 152 anos”.

    Em 2022, a MNTC venceu o concurso público com uma proposta de cerca de 995 mil euros – cerca de 42% abaixo do preço-base. Apesar de não ter qualquer experiência no sector e de não possuir sequer o alvará da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) à data do concurso, venceu com base no único critério de adjudicação: o preço. Porquê? A Carris ainda não explicou.

  • Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor

    Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor


    A substituição do cabo do Elevador da Glória — que rompeu na passada quarta-feira, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas — foi executada no ano passado pela MNTC, empresa responsável pela manutenção dos ascensores de Lisboa desde Setembro de 2022, mas não existem garantias de que os seus técnicos possuíam as certificações exigidas por lei para inspeccionar e intervir em sistemas técnicos desta complexidade.

    De acordo com a análise dos relatórios de manutenção disponibilizados pela Carris na sexta-feira passada, a MNTC usou quatro técnicos – João Antunes, Rafael Rosado, Sérgio Carvalho e Tiago Ribeiro. De acordo com as normas, quando uma empresa solicita o alvará EMIE à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) , tem de indicar pelo menos um técnico responsável pela execução (TRE) e, se aplicável, um técnico responsável pela exploração. Estes técnicos ficam associados ao registo da empresa e constam da sua ficha no processo de licenciamento.

    Mas a empresa MNTC recusa responder às questões do PÁGINA UM sobre este assunto – aliás, apenas quebrou o silêncio por uma vez para indicar que estava a ser representada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, mas sem adiantar contactos –, embora tudo indique que estes mesmos colaboradores já executariam tarefas de inspecção e manutenção ao longo do período de três anos de um contrato saído de um concurso público que vigorou entre Setembro de 2022 e 31 de Agosto de 2025.

    A certificação EMIE não é um mero detalhe burocrático: trata-se de uma exigência destinada a assegurar que apenas profissionais qualificados, com provas dadas e reconhecidas pela autoridade reguladora, possam intervir em sistemas cuja falha representa risco directo para a segurança de passageiros. Por outro lado, a Lei n.º 65/2013 exige que empresas e técnicos de manutenção e inspecção de elevadores (EMIE, TRM, EIIE, directores técnicos e inspectores) tenham reconhecimento prévio da DGEG. Ora, nas três manutenções diárias de Setembro e na mensal, realizada no dia 1, um técnico de nome Tiago Ribeiro é sempre o mesmo que valida os relatórios.

    Esta questão ganha ainda maior gravidade quando se sabe que o cabo de tracção — peça crítica do sistema dos elevadores — foi substituído no âmbito de contrato entre a Carris e a MNTC, por via de uma reparação intermédia realizada entre finais de Agosto e o início de Outubro do ano passado. Essa intervenção, que deveria ter sido acompanhada de rigorosos procedimentos de ensaio e registo documental, foi executada pela MNTC, conforme era obrigação prevista no caderno de encargos, sem que haja provas de que técnicos certificados tenham participado na sua montagem.

    O PÁGINA UM solicitou formalmente à Carris que esclarecesse a data exacta da instalação, se foi elaborado algum relatório técnico, quem foram os engenheiros ou técnicos presentes na operação, se existem fotografias ou imagens que documentem o acto, e que tipo de testes foram realizados para aferir da resistência e da correcta colocação do cabo. Solicitou ainda a identificação do fornecedor e cópia da factura da compra do cabo.

    Na resposta recebida, a Carris limitou-se a afirmar que “a substituição do cabo do Ascensor da Glória decorreu no âmbito da reparação intermédia realizada entre 26 de Agosto e 1 de Outubro de 2024” e que “os trabalhos foram acompanhados por técnicos da Carris”, acrescentando que “a documentação solicitada está na posse das entidades que conduzem a investigação no âmbito do inquérito em curso”.

    Contudo, apesar da insistência do PÁGINA UM, a Carris não revelou se detém cópia desse relatório nem confirmou se a presença de técnicos próprios era suficiente para suprir a eventual falta de certificação da equipa da MNTC. A empresa municipal também se recusou a fornecer o nome do fornecedor do cabo, não enviou a factura nem revelou o respectivo custo, criando um manto de opacidade sobre uma operação que deveria ser transparente, sobretudo quando está em causa um acidente com 16 mortes e mais de uma dezena de feridos.

    No passado sábado, em conversa com o PÁGINA UM, o presidente da Carris, Pedro Bogas, prometeu “máxima transparência”, incluindo a colocação de relatórios de inspecção no seu site. Ora, o relatório mais fundamental para desvendar eventuais falhas – a colocação do cabo, operação que nunca antes tinha sido realizada pela MNTC – é logo escondido, alegando-se ter sido enviado para a equipa de investigação.

    Fontes ligadas ao sector da manutenção de sistemas de transporte vertical sublinham que a instalação de cabos de tracção deve ser acompanhada por engenheiros especializados, sujeita a procedimentos de tensionamento controlado e seguida de ensaios mecânicos que comprovem a correcta fixação.

    A ausência de documentação acessível ao público e a falta de clareza sobre a qualificação dos técnicos da MNTC colocam novas interrogações sobre a forma como a Carris supervisionou os contratos de manutenção. Recorde-se que o caderno de encargos que vigorou até ao passado dia 31 de Agosto é completamente vago ao ponto de apenas exigir a realização de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais, sem especificar que tipo de ensaios ou medições deviam ser efectuados. A expressão usada — “verificação” — deixa em aberto se bastava uma inspecção visual ou se seriam obrigatórios testes com instrumentação.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    A revelação de que o cabo foi instalado por técnicos sem certificação reconhecida pela DGEG torna-se ainda mais inquietante tendo em conta que este mesmo componente falhou menos de um ano depois da sua colocação, num acidente que se transformou na maior tragédia nos tempos recentes envolvendo um sistema de transporte público em Lisboa.

    Apesar das tentativas de agora se debater o acidente numa perspectiva de responsabilidade política a ser ‘resolvida’ nas eleições autárquicas de Outubro, o PÁGINA UM continuará a pressionar a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa para que toda a documentação referente à substituição do cabo e à manutenção do Elevador da Glória seja tornada pública, incluindo relatórios técnicos, lista de intervenientes, fotografias, facturas e comprovativos de ensaio.

    Entretanto, Pedro Bogas, presidente da Carris, mantém-se em incumprimento legal quanto à publicitação no Portal BASE do ajuste directo da manutenção dos ascensores iniciado este mês, que chegou a exibir aos jornalistas — numa conferência de imprensa — sob a forma de minuta sem assinaturas, forjada para parecer um contrato válido.

    Apesar de o presidente da Carris insistir que tal publicação não é obrigatória para entidades dos “sectores especiais”, como os transportes, esta alegação cai por terra com a própria prática da empresa municipal. Ainda hoje, a Carris publicou dois contratos no Portal BASE, incluindo um concurso público para a manutenção de 123 autocarros MAN no valor de 430 mil euros e a aquisição de 15 mini-autocarros eléctricos para serviço urbano no valor de cerca de 4,4 milhões de euros.

    O argumento de isenção legal, além de contrariado por juristas, fica assim desmentido pela evidência documental fornecida pela própria Carris. Aparentemente, Pedro Bogas considera que usufrui do direito de disponibilizar contratos não de acordo com a lei, mas com as suas vontades pessoais, que incluiu enganar jornalistas com uma minuta mal forjada, culpando depois os seus serviços por excesso de zelo em meter tarjas negras onde nem sequer existiam assinaturas.