Categoria: Caderno dos Mundos

  • O rochedo

    O rochedo


    As histórias de vida de quem se perdeu. Dos “deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração”.

    Condenados ao Inferno e a regressar, a viver, numa terra a que não pertencem, com o coração ainda na terra prometida para onde emigraram, no outro lado do Atlântico. Na terra do tio Sam.


    Ilha de São Miguel.

    Açores.

    Lá ao fundo, atrás dos montes verdejantes e das ravinas amanhadas, mesmo diante do mar, fica o povoado rural: Ajuda da Bretanha, a freguesia, como eles dizem por estas paragens.

    Rua da Assomada.

    Tony Brum, lá à frente, no carreiro. (Imagem: Rui Pereira)

    O cenário é este: uma encosta, necessariamente campestre e as ruínas do casebre nativo de António Trindade Brum.

    É o homem, enrodilhado nas memórias da infância e nos desaires do presente — sabe-se lá… —, que vai ali à frente no carreiro estreito e torto cheio de silvas.

    Tony nasceu, aqui, há 62 anos.

    — Eu fui nascido naquele quarto ali. E eu quando eu vim para cá, eu acho que tinha 16 anos. Acartei a estátua da Fátima até ao pico lá em cima. E a minha mãe disse-me que eu nasci ali e que andei ali a dormir. E isso foi quando ela me trouxe para trás aqui, quando eu tinha 16 anos, para me meter juízo na cabeça. Mas eu fui para trás para a América e lá não havia muito juízo… 

    A casa da infância. (Imagem: Rui Pereira)

    Primeira confissão de um deportado de luto na alma a contas com o desalento, a desesperança ou, tão simplesmente, com o destino que é o seu.

    Os paredões, que só são negros por dentro, que o digam… Tony Bruno — é assim que lhe chamam, agora — foi feliz aqui. Foi, mas por pouco tempo…

    Em 1960, partiu com os pais, seis irmãs e um irmão para Fall River, Massachusetts, nos Estados Unidos. 

    — A vida na América é coisas materiais. O mais que a gente tem, melhor. O vizinho pinta a casa… A gente pinta a nossa casa numa cor mais melhor. Eles compram um Cadillac. Eu compro um Lincoln Continental. Era desta maneira que eu vivia lá. Eu sempre queria ter mais. A mulher mais bonita. O carro mais melhor. A casa mais melhor. E é o que é…

    — É o American Dream

    — Ya. O American Dream.

    Tony Brum – um homem só. (Imagem: Rui Pereira)

    — O Sonho Americano

    — O Sonho Americano é bullshit (treta).

    — É um pesadelo para si?

    — Ya. Isso é um sonho. O sonho que estás a falar é o American Dream. Não há American Dream!

    Aos 16, furtou um carro: um mês de cadeia.

    100 acusações e 7 anos de prisão mais tarde foi expulso. Foi deportado para os Açores.

    — Eu fiz coisas que não devia ter feito, mas eu fui para a cadeia e paguei o meu tempo. 

    Hoje, vegeta, roído de solidão, na miséria.

    A exclusão é uma realidade. E a crença ou a fé no regresso (improvável) mais um castigo, redentor ou nem por isso…

    Maria João Tavares (Imagem: Rui Pereira)

    Ponta Delgada.

    Mais uma manhã como as outras no refúgio que dá pelo nome de centro de acolhimento da Associação de inclusão social Novo Dia.

    A renovação dos corpos e das mentes (para algumas mulheres, deportadas, prostitutas, drogadas, vítimas de violência e das misérias) passa por aqui.

    Maria João Tavares que o diga…

    — Eu vou pagar para o resto da vida porque eu não vou estar ao pé da minha família. 

    Como Tony Brum há muitos mais: deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração.

    — Ya. Eles chamam a isto aqui The Rock (alusão à antiga prisão da ilha de Alcatraz, na Califórnia). 

    — O meu país, para mim, é os Estados Unidos, a América porque eu fui criada foi lá. Eu, aqui, na escola só fui até à terceira classe. Nem a quarta classe eu tive aqui. Fui para lá, estudei e casei-me e tudo. Fiz família. Fiz a minha vida toda lá.

    Foi para os Estados Unidos com os pais e um irmão quando tinha 10 anos. Estudou até aos 15. Casou com 16. Foi deportada no dia 21 de Setembro de 2004.

    The Rock – A cadeia de Alcatraz, na Califórnia. (Foto: National Park Service)

    — Eu estou pagando pelo meu crime para o resto da minha vida, está percebendo? Por causa que… o que eu… o que custa mais a entender é o gelo no coração daquelas pessoas para separarem famílias: mães, filhos… Filhos que não ver a sua mãe mais. Vão crescer sem ter a mãe, vão-se casar sem ter a mãe, vão morrer, não têm a mãe. A mãe morre aqui, ou o pai, mãe ou o pai vão morrer aqui e não têm a família ao lado deles. Como eu. Não sou eu, mas muitos que já morreram e foram repatriados — não estou falando só de mim, estou falando de muitos mais. Eu acho que isso é uma injustiça o que eles fazem. A gente fazemos o crime lá fora, paga-se. E é a pessoa ir para a frente com a sua vida.

    — Mas não se paga…

    — Mas não se paga. A gente paga lá e depois paga aqui o resto do tempo.

    A confissão lancinante e corajosa merece tanto mais respeito que Maria João Tavares não se conforma.

    — Eu nunca voltei para Portugal desde que eu fui para a América. Com 10 anos nunca voltei. 36 anos depois sou uma estrangeira no meu país. Na minha terra natural…

    Desenraizada, longe do mundo que é o seu e da sua gente, condenada a esta outra masmorra, que dá pelo nome de insularidade, não arreda do espírito o hipotético regresso à América. E luta por isso…

    — Eu fui deportada por causa de droga. Por causa que eu fui apanhada com um quilo de cocaína naquela altura. Eu comecei a consumir. Depois, eu tornei-me em traficante. Por muitos anos estava tudo na boa. Depois, pronto, aconteceu, que eu fui apanhada. Estive na cadeia três anos, lá fora.

    A outra cadeia dá pelo nome Açores. (Imagem: Rui Pereira)

    Deixou em Rhode Island três filhos e quatro netos. E as mazelas de um passado que teima em assombrar o seu quotidiano. Clamorosamente…

    — Mas muitos perdem a esperança, sem sombra de dúvida. E voltam a recair, seja nas substâncias, voltam… deprimem, perturbações de adaptação. É muito complicado. A réstea de um regresso é quase impossível… — diz a psicóloga Sónia Pereira. 

    Associação Novo Dia faz o que pode. Faltam apoios apesar de a exclusão, a miséria e a criminalidade constituírem, sobretudo, um problema em São Miguel.

    — Essas pessoas vêm completamente desenraizadas. Este acontecimento da deportação é traumático, afecta profundamente a vida delas e a sua identidade. Dificilmente ou impossivelmente conseguem-se recuperar porque deixam a família, as suas referências, as suas pessoas significativas lá. Vêm para cá para uma cultura que eles não reconhecem como sua, apesar de serem portugueses. Não dominam a língua, os valores, os hábitos, todas as práticas culturais. Facilmente são discriminados pelas outras pessoas porque não são iguais aos de cá e não se sentem iguais, também não se sentem mais americanos. Digamos que são pessoas que estão presas ao passado e muito dificilmente sonham já com um futuro. São pessoas que estão quase mortas por dentro, muitas delas. — explica Paulo Fontes da Associação Novo Dia.

    Penas a dobrar para todos os deportados, sem excepção. (Imagem: Rui Pereira)

    Cadeia da Boa Nova, Ponta Delgada.

    José Eduardo Pacheco.

    50 anos. Natural de Vila Franca do Campo, São Miguel. Foi para Providence, Rhode Island, em 1967.

    Tinha 9 meses.

    No estabelecimento prisional de Ponta Delgada há, hoje, 200 reclusos. 18 são deportados, sobretudo dos Estados Unidos. Por outros números: 14 condenados e 4 preventivos.

    Mais um testemunho triste e previsível. Em inglês!

    — Isto é o Rochedo (The Rock, o nome que davam à penitenciária de Alcatraz). Para mim é como se fosse o Rochedo. Não conheço ninguém aqui. Não conheço nada aqui. Nem sequer me lembro onde vivia quando parti de São Miguel. St. Michaels…

    Eduardo Carreiro. 49 anos. Divorciado, quatro filhos. Foi deportado em 2008.

    Uma desgraça nunca vem só. Seis anos mais tarde foi condenado a uma pena de prisão nos Açores, designadamente, por tráfico de estupefacientes: cocaína e heroína, recebidas de Lisboa.

    — O que é que custa…

    — Mais…

    — É não ter a família ao meu lado. Ninguém com quem falar para desabafar. Para se rir. Para brincar. 

    — Na vida na América não faltava nada. Trabalhava, tinha tudo o que queria. Tinha tudo o que queria. Tinha sempre coisas para fazer. Eu gostava muito de sair com os meus pequenos. A mulher, eu chamo-a mulher, ela ia para o bingo. Ela gostava de fazer bingo. E eu tinha o dia com os meus pequenos. Os meus dias — quarta e sábado — era para mim a noite para vender (droga), mas o Domingo e a terça era para eu estar com os pequenos. Ficava em casa ou levava-os ao restaurante Chuck E. Cheese’s. É uma coisa para os pequenos e eles gostam muito de ir lá. Aquelas coisas das bolas… Eu estava sempre com os meus pequenos.

    Em 2001, foi deportado por tráfico de cocaína. A companheira e os filhos ficaram nos Estados Unidos.

    — Eu não gostei nada de vir para cá. Quando cheguei cá, eu não percebia nada daquilo. Isto é uma ilha. Comparada com aquele país de onde eu vim, é uma vergonha. Aqui não há nada. Isto é um pedaço pequenino. Vês a ilha toda em duas ou três horas. Vês a ilha toda…

    José Eduardo Pacheco foi, entretanto, condenado em Portugal a seis anos e cinco meses de cadeia por tráfico. Tinha quatro gramas de “castanha” e três de “branca” em casa.

    A maioria dos deportados presos comete, em Portugal, crimes mais graves do que aqueles que motivaram a sua expulsão.

    A crença num futuro menos sombrio é uma constante.

    E todos ou quase sonham com a liberdade e com a fantasia confusa do regresso.

    Arrifes. Concelho de Ponta Delgada.

    Terra de agricultores e de emigrantes.

    Carlos Correia. Nasceu na Travessa dos Milagres.

    Tinha 12 anos quando abalou com os pais e os irmãos para a América.

    Aos 16, meteu-se no haxixe.

    Aos 18, na cocaína.

    Depois, enveredou pelo crack. E a criminalidade.

    Cumpriu 14 anos de prisão. Foi deportado em 2009. Já não vinha aos Açores há mais de 30 longos anos…

    — É só andar nas ruas por aí… sem destino. A parte mais difícil é acordar de manhã. E já pensei no suicídio muitas vezes. Pensei no suicídio muitas vezes. Acordo todos os dias de manhã e é sempre a mesma coisa. É sempre a mesma coisa e eu não quero levar esta vida assim.

    Perdeu um filho — por causa da droga. Tentou suicidar-se.

    Agora, sobrevive (desvinculado de tudo e todos) com os cento e tal euros mensais que o Estado português lhe dá.

    — Eu vou para um quarto agora. Eu vou para um quarto no fim desse mês. Eu vou pagar 60 euros da minha algibeira. E fico com 120 euros para comer durante todo um mês. Não dá! Não dá para sobreviver. Eu passei fome. Eu passei fome. Muita fome que eu passei. Não tinha comida nenhuma.

    O inferno no meio do paraíso. (Foto: Rui Araújo)

    Há dias em que passa fome, mas… mas o pior ainda é o desassossego. Absurdo ou não, como, por vezes, a própria vida.

    A Universidade dos Açores estudou o fenómeno da repatriação — da deportação.

    E faz sentido: os açorianos são a maioria.

    Entre 1987, ano da primeira deportação — um homem de São Miguel — e hoje, 1316 pessoas naturais do arquipélago foram expulsas dos Estados Unidos, Canadá e Bermudas.

    Inquirimos Álvaro Borralho, um sociólogo da Universidade dos Açores.

    — É, sobretudo, homem. Tem uma idade entre os 25 e os 45, 50 anos. Vem de um meio social algo desfavorecido. Tem uma escolaridade baixa. Tem um emprego precário. Empregos que muitas das vezes se sucederam uns aos outros sem grande estabilidade laboral. Vêm de áreas urbanas muito grandes, seja da costa Leste, seja da costa Oeste. Estão ligados a áreas urbanas. Estão no fundo ligados aquilo que foram os destinos principais da emigração açoriana que se fez a partir da década de 50. 

    1.316 emigrantes naturais do arquipélago foram expulsos dos EUA, Canadá e Bermudas.

    As agruras do quotidiano estão estampadas no rosto. (Imagem: Rui Pereira)

    — Nalguns casos estes crimes foram cometidos muitos anos antes e foram aplicadas as penas retroactivamente sobre eles, quando eles já estavam perfeitamente integrados na sociedade norte-americana. Vêm sem empregos, em alguns casos as famílias não os acolhem ou acolhem muito dificilmente. Por outro lado, na sociedade açoriana também encontramos um choque e uma certa resistência à sua integração. É evidente que esse choque e essa resistência já foi maior. Hoje, há uma abertura mais facilitada mas o que é facto é que acaba por haver esse anátema de que cometeram crimes. — acrescenta o sociólogo.

    Os dados do Relatório anual de Segurança Interna são terminantes.

    Em 2015, foram deportados 25 portugueses (dos quais 22 são açorianos).

    No ano passado, 51.

    Os que se sabe… porque pediram apoio.

    Lagoa das Furnas. Leste da ilha de São Miguel.

    É a terra das fumarolas, das nascentes termais e do cozido — e é ainda a freguesia materna de José Costa.

    Portugueses de primeira e portugueses de segunda… (Imagem: Rui Pereira)

    Imagem deslumbrante. E, por isso mesmo, equívoca…

    O nosso homem nasceu há 54 anos num dos recantos do povoado.

    Tinha 7 anos quando foi parar à América.

    Deu largas à juventude.

    Foi tropa — 11 anos. Foi pedreiro. Casou. Descasou. Tem três filhos de uma faialense e um de uma cidadã americana.

    Em Dezembro de 2014 foi deportado por causa de uma história de saias e de transgressões quixotescas (ou coisa que valha!): para iludir o (des)amor, deu-lhe para ameaçar a companheira.

    Há 45 anos que não pisava o solo da terra natal…

    E a Oeste nada de novo… (Imagem: Rui Pereira)

    — O meu país é a América. Foi onde eu fui criado, basicamente, e onde vivi quase 50 anos. Eu não quero voltar para trás. O meu país e a minha vida é aqui, mas eu tenho uma grande mágoa de ser deportado para aqui. Tudo o que eles me fizeram… Eu dei a minha vida por um país que não foi onde eu nasci.

    O passado militar (11 anos no Exército norte-americano) contrasta definitivamente com as agruras do presente. A pobreza. E a solidão. E o sentimento de injustiça. 

    — A maneira como aqui em São Miguel olham para as pessoas como eu que foram deportadas… Apesar de termos vivido nos Estados Unidos é como se a gente fosse um negro. Como a gente… fosse lixo. Não analisam as pessoas para as capacidades que elas têm. Fazem de nós… não valemos nada. Nós somos filhos de gente portuguesa, gente açoriana e eu estou aqui. Às vezes, quero educar alguns que não têm compreensão nenhuma. E isso é o que faz irritar, fico irritado e fico um pouco mal disposto com a disposição das pessoas que dizem que nós somos repatriados. Nós não somos repatriados. Nós somos açorianos filhos da mesma Pátria que eles são. 

    Partimos para Sul à descoberta de outra história. Outras raízes e mais desgraças, porque é aquilo de que a gente nunca esquece…

    A contas com o passado. (Imagem: Rui Pereira)

    O sol rompe a penumbra do horizonte.

    São 25 minutos de viagem. O nosso destino fica a oitenta e um quilómetros — umas 43 milhas náuticas.

    Sara Sebag. 49 anos. Solteira.

    Entrevista na placa do aeroporto.

    — Há quantos anos é que não vinha aqui?

    — Há 46 anos quase…

    — E qual é a sensação?

    — É uma sensação muito boa. 

    A casa onde Sara Sebag nasceu. (Imagem: Rui Pereira)

    Santa Maria.

    É a ilha mais a Sul e mais a Oriente do arquipélago. Primeira a ser descoberta e primeira a ser povoada. 

    Vila do Porto foi, aliás, a primeira localidade dos Açores a receber (no século XV) o foral de vila.

    Sara Sebag nasceu aqui. É a terra da mãe, Maria Ferreira. Foi locutora do Rádio Clube Asas do Atlântico.

    O pai, José Sebag, poeta do surrealismo português e jornalista, era do Faial.

    — Eu penso muito nas pessoas que estão vivas e nas que já faleceram. penso muito na minha mãe e no meu pai. E que eles gostavam… gostavam de ver-me melhor na vida. Também penso nos meus filhos e na família que eu tenho lá fora. 

    Tony Arruda: vida nova e regresso à prosperidade de antanho. (Imagem: Rui Pereira)

    Aos sete Sara foi para o Canadá. Toronto. Queria ser advogada, mas não passou do 10º ano. Perdeu-se. Em 2000 (com 33 anos), foi deportada para os Açores. Mais uma história de droga.

    — Estou presa desde que eu saí do Canadá. Isto para mim é como se estivesse presa. Uma cadeia maior, mas é como se estivesse presa. A solidão é estar presa. 

    Esta manhã, Sara pisa pela segunda vez esta terra. Quer dar com o lugar de nascença, mas (passado tanto tempo) não é fácil. Já ninguém se lembra da família dela.

    Às tantas, vamos parar a um banco.

    Sorte ou tenacidade… as coisas ganham, repentinamente, mais significação. E acabamos por ir parar ao número 60 de uma rua sem nome do Bairro de Santa Bárbara.

    Os homens e os ratos… (Foto: Rui Araújo)

    O tijolo substitui, hoje, a chapa ondulada de antanho (do tempo dos americanos).

    Nem todos se queixam das desgraças e da rotina dos dias. Há males que vêm para o bem…

    Há excepções…

    Lomba da Maia, Ribeira Grande.

    Tony Arruda. 47 anos. Foi deportado dos Estados Unidos há 27 por tráfico. Aqui na freguesia chegou a haver 10 como ele… Mas… o ex-emigrante aviltado recusou a segunda prisão (apesar de esta não ter grades!): juntou a coragem à esperança e montou um negócio.

    Agora, trabalha por conta própria. É mestre-de-obras e pintor da construção civil. Por descargo de consciência, conseguiu recuperar a boa reputação e a prosperidade de outrora.

    O outro lado da deportação. (Imagem: Rui Pereira)

    — Eu consegui! Estou contente com a vida que tenho. Consegui livrar-me dessas porcarias. Tenho trabalho. Acho que qualquer pessoa pode fazer o mesmo com força de vontade..

    Mais paleio para quê?

    José Borges.

    47 anos. 45 de Canadá. E 20 de prisão.

    Com a ambição cega do dinheiro, tudo lhe parecia legítimo, a começar pelo tráfico de estupefacientes e os assaltos. Mais uma entrevista na língua de Shakespeare…

    — Escolhi a vida que queria e paguei o preço. Deportaram-me. Fui mandado para cá e… Isto é lindo. Olhe para isto. Isto é lindo, mas o problema é que aqui não há nada para mim. É de loucos! Não há nada para mim.

    O deportado e o horizonte sem perspectivas. (Imagem: Rui Pereira)

    Ponta Delgada.

    Muitos deportados vieram, aqui, parar. Vencidos, renderam-se ao alívio da morte. Ocupam campas anónimas.

    Não resistiram à agonia do tempo e à distância. À ruptura. À exclusão. À miséria. À ausência de perspectivas. E à pressão social (estigmatizante) da sociedade açoriana.

    Não os acolhemos com respeito e dignidade. Para não falar em afecto. E era o nosso dever ético e moral. Era…


    NOTA:

    National Park Service divulga dados factuais sobre a cadeia de Alcatraz [ver AQUI]

    Esta reportagem de Rui Araújo, com imagem de Rui Pereira e edição de Miguel Freitas, foi originalmente emitida na TVI, em Abril de 2017. [ver AQUI]


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  • Portugal: Clandestinos da vida

    Portugal: Clandestinos da vida


    DEUS CHAMOU-ME DESTE MUNDO.

    JÁ CHEGOU A MINHA HORA.

    A CULPA FOI DO DESTINO.

    NÃO FOI DA FÁBRICA DO MORA.

    DEIXO PAI IRMÃOS E AMIGOS NA SAUDADE.


    A culpa é do Destino. Francisco José morreu num acidente de trabalho. O patrão da fábrica não teve culpa. E mandou gravar isso mesmo na lápide cinzenta de mármore depois de pagar a campa. Um descargo de consciência que lhe custou cento e tal contos, mas pouco importa.

    Francisco José da Silva tinha 13 anos.

    Morreu a trabalhar.

    O pai do miúdo ainda vai ao cemitério de vez em quando. A lápide, as flores murchas e o vento não farão perdoar o que aconteceu porque ninguém é culpado. É a versão do pai: a culpa é do Destino. E o Destino não é gente…

    Imagem: Norberto Lopes

    — O meu filho andava a trabalhar. E no elevador, ou seja, um porta-cargas, que subia de um andar, ou seja do rés-do-chão para cima…

    — Numa fábrica…

    — Numa fábrica. Ao para cima ia carregado. E ao para baixo eles iam de volta para aproveitar a vir no elevador vago para baixo, não é? Porque eles podiam-se deixar estar lá, mas com aquela coisa de brincadeiras iam de volta e vinham…

    — Duas crianças juntas num elevador.

    — É. Duas crianças juntas no elevador. Acontece que ele vinha a comer uma maçãzita e distraíu-se ao passar, que aquilo era uma espécie de um tunelzinho, só tinha coisas para transportar a carga. Lá ia com a cabeça levantada mais para cima, distraído, e apanhou-lhe a cabeça. E morreu. Ficou instantâneo. Eu julguei na ocasião que não tinha ficado instantâneo, mas depois é que acabei por saber que tinha ficado instantâneo.

    — Tinha 13 anos…

    — 13.

    — Morreu a ganhar o pão…

    — Pois. — responde-me Manuel Joaquim da Silva, o pai.

    O homem coça a orelha lentamente e prossegue.

    — Andava na escola industrial. Perdeu um ano porque mudou de ambiente. ..

    — E o senhor tirou-o da escola e meteu-o o trabalhar. O senhor acha que lhe deu a existência que ele merecia ter?

    — Eu dei-lhe a existência que ele merecia ter em virtude de não o deixar andar por aí na ‘vadiice’ ou seja para aí juntamente com outros…

    — E a única solução era metê-lo numa fábrica?

    — A única solução era metê-lo a trabalhar para que ele não andasse a fazer asneiras, não é?

    — O senhor não sente remorsos do que aconteceu ao seu filho?

    — Eu não sinto remorsos porque afinal de contas aquilo foi o Destino. Sim, isso foi o Destino. Absolutamente…

    — O senhor não sente culpa nenhuma?

    — Absolutamente nenhuma. Não tenho culpa nenhuma!

    Imagem: Norberto Lopes

    — Acha que é normal o que aconteceu a uma criança de 13 anos?

    — Eu acho que é normal em virtude de ela estar a trabalhar, não é? Se andasse na brincadeira até também podia ser apanhado por um carro numa estrada ou numa coisa qualquer…

    — O que é que aconteceu ao patrão?

    — O patrão…

    — Foi condenado?

    — Pagou uma multa.

    — Só uma multa?

    — Sim. Pagou uma multa porque houve um acordo entre o tribunal…

    — E ao senhor? O que é que ele pagou?

    — A mim pagou-me… A companhia de seguros deu-me à volta de 100 contos.

    — E o patrão o que é que lhe dá a si?

    — …

    — Umas meias pelo Natal?

    — Sim.

    Francisco José não é a única vítima do trabalho infantil. Como ele há mais alguns e em muitos casos eles até são mais novos. Trabalham em fábricas, oficinas e sementeiras, sobretudo no Norte do país.

    Estrada Guimarães – Felgueiras.

    Sete da manhã.

    Três miúdos à espera de transporte para a fábrica.

    — Bom dia.

    — Bom dia. — reponde o petiz de saco de plástico verde dependurado numa mão.

    — O que é que tens aí dentro do saco?

    — É a comida.

    — Para quê?

    —  Para levar para o trabalho.

    — Para o trabalho. E já trabalhas há muito tempo?

    — Há dois meses.

    — Que idade é que tu tens?

    — 10 anos.

    — 10 anos. E o que é que tu fazes?

    — Faço várias coisas…

    — Numa fábrica de quê?

    — Calçado.

    — E vocês agora estão aqui à espera da camioneta…

    — Já aí vem.

    — Então até já.

    Paulo mais o irmão José e um amigo aproveitam a boleia do patrão. A estrada é sempre a subir e depois também dá para falar um pouco com os outros colegas, com o patrão.

    Aproximo-me da carrinha da fábrica Lirifel

    [NOTA: a firma ainda existe. Está sediada em Três-Cancelas – Lagares].

    — Bom dia.

    — Bom dia.

    — O senhor vai levar as crianças para a fábrica? É?

    — É. É.

    — É?

    — Está claro vou levar tudo para a fábrica.

    — E  qual é a fábrica?

    — Fábrica de calçado Lirifel.

    — E tem lá muitas crianças a trabalhar?

    — Não. Crianças, não. Desculpe…

    — Não?

    — Crianças depende do ponto de vista que vocês vêem… Não se pode considerar crianças, vá…

    É uma explicação. Depois de a mãe dos rapazes combinar com o homem uma desculpa para o caso de haver mais perguntas indiscretas, a carrinha arranca.

    Quando lá chegamos acabaram as surpresas para toda a gente.

    — Era o seu filho que ia na camioneta a guiar? Era?

    — Era.

    — Então nós gostávamos de falar com ele porque o que acontece é que ele tem crianças muito novinhas a trabalhar… Havia uma criança de 10 anos a trabalhar…

    — Parece que não…

    — Parece que sim… Olhe, que sim.

    — Parece-me que não…

    — Não é verdade?

    —  Não… 14 anos para cima…

    —  14 anos para cima… Então onde está a criança que vinha na camioneta?

    — Foi uma boleia.

    — Foi uma boleia… — sublinho.

    Ninguém ousa chamar as coisas pelo seu nome. Até o contra-mestre depois de se descair inventa um filho que não teve só porque está a trabalhar com um menor de menos de 14 anos. Sabe que a lei o proíbe.

    O decreto-lei 286 de 88 não deixa margem para dúvidas: «A utilização do trabalho de menores (…) é punida com multa de 50.000$00 a 250.000$00 por qualquer situação individual (…) e no caso de o menor não er ainda atingido o termo da escolaridade obrigatória ou de o trabalho se realizar em condições especialmente perigosas para a saúde ou moralidade do menor, a multa será elevada para o dobro» – entre 100 e 500 contos.

    O facto é que a lei no seio de muitas empresas é a do patrão. O flagelo do trabalho infantil continua a propagar-se no Norte do país. Quem o diz são os sindicatos, sobretudo a União dos Sindicatos de Braga, mas também e curiosamente a própria Inspecção-Geral do Trabalho.

    Um relatório síntese confidencial da Inspecção sobre trabalho de menores ou infantil datado de Julho deste ano (1988) refere que só entre o primeiro e segundo trimestres de 1988 houve um acréscimo de mais de 25%.

    Imagem: Norberto Lopes

    O mesmo documento indica que há sobretudo menores de 14 anos a trabalhar nas indústrias do vestuário e confecção, calçado, construção civil e hotelaria.

    As razões: a ganância de alguns patrões e de muitos pais, a ineficácia dos organismos estatais como a Inspecção, uma política económica e social controversa, mas sobretudo a miséria — a económica e a outra.

    A carrinha da fábrica passa agora sem parar. Paulo, José e o vizinho apearam-se algumas curvas antes. Desta vez, é preciso um corta-mato para irem almoçar a casa.

    Os miúdos vivem nesta casa com os pais e uma avó. A família não é abastada, mas também não passa fome. O pai é funcionário na Câmara Municipal de Felgueiras. A mãe trabalha numa escola.

    O casal tem casa, dois ordenados, um carro de serviço ao dispor, uma motorizada e um pastor alemão. E… uma vivenda em construção do outro lado da estrada.

    — Não se importa só  de se virar para mim um segundo? É uma reportagem sobre trabalho…

    — …

    — A pergunta é assim: a senhora tem uma criança — tem mesmo duas…

    — Sim.

    — E o seu filho de dez anos está a trabalhar numa fábrica…

    — Não está, não. Ele é família. Ele é sobrinho…

    — Aí, não a estamos a ver. Não se importa de… Sim, diga lá.

    — Ela é sobrinha da minha mãe.

    Imagem: Norberto Lopes

    — Quem?

    — A senhora da fábrica. E o meu filho vai para lá para olhar por eles. Eu trabalho. O meu marido trabalha na Câmara. Eu trabalho na Escola. E não temos a quem deixar o miúdo…

    — E acha que uma fábrica…

    — É uma fábrica de calçado.

    — É o melhor sítio onde pode estar uma criança?

    — Sim. Sim.

    — Melhor do que em casa?

    — Sozinho?

    — Melhor do que na escola? Está aqui gente. Está aqui a sua vizinha. Está aqui mais gente…

    — Ele anda na escola…

    — Anda de escola à tarde e vai fazer depois também umas horas à fábrica…

    — Não vai… Vai para ela ficar a olhar por ele.

    — Mas não foi o que ele nos disse…

    — Coitadinho… Sabe o que é…

    — Ele disse que trabalhava, quantas horas, e temos amigos dele que nos confirmaram que é verdade. Temos testemunhas de que ele trabalha lá todos os dias. E o irmão também…

    —  O irmão…

    — O irmão feriu-se na fábrica!

    — Não foi, não.

    — Não foi? Então o que é que foi?

    — Foi na brincadeira.

    Há pessoas que não sabem mentir talvez por nem sequer elas próprias acreditarem naquilo que contam.

    — Aqui por estas fábricas há muitas crianças a trabalhar e os seus dois filhos seriam duas das crianças…

    O pai das crianças põe-se a olhar para o relógio de pulso.

    — Vem aí o carro.

    O sujeito abala rapidamente.

    Imagem: Norberto Lopes

    O pai, pelo menos esse, com a desculpa de estar cheio de pressa não disse nada. A situação dos filhos até nem é das piores da região. Há crianças a sofrer bem mais e não é só em termos de dureza do trabalho ou de vencimento. A grande maioria ganha menos de 10 contos por mês e nem se queixa. É também a violência física tanto por parte dos patrões como dos empregados.

    Exemplos não faltam.

    Participação ao Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vilaverde.

    O proprietário de uma padaria admitiu Fernando. Despediu-o quase logo a seguir depois de o ter agredido corporalmente. As testemunhas acrescentam que o miúdo trabalhava entre as 22:30 da noite e as 14:00.

    Fernando tinha 12 anos. Tinha jornadas de mais de 15 horas…

    Uma fábrica de balanças de Celeirós processou um trabalhador que bateu num miúdo depois de o ter repreendido. O empregado voltou a agredi-lo segunda vez e como não há duas sem três voltou a arriar-lhe forte e feio a pretexto de coisa alguma. A nota de culpa refere que o agressor foi suspenso durante seis dias. A criança era muito novinha…

    Oficialmente até estava a trabalhar na fábrica a título gratuito… durante as férias escolares para não andar pela rua a pedido dos seus pais.

    Alguns já nem têm férias. Nem sequer chegam a entrar na escola… Vão directamente para a fábrica aprender o que é a vida.

     — O que constato directamente nas aulas que dou é que turmas de 30 alunos na programação estão reduzidas a metade porque eles na idade em que estão de escolaridade obrigatória encontram-se já a trabalhar nas empresas vizinhas, sobretudo a zona de Moreira de Cónegos, que é para o lado em frente, e na zona da entrada de Vizela, vindo de Guimarães, a zona de Enfias. São zonas carenciadas de mão-de-obra a tal grau que são obrigados a recrutar o seu pessoal não só na zona em que estamos como estendendo a sua captação até à área do concelho de Cabeceiras de Basto. Fica-lhes mais barato evidentemente recorrer aos alunos e alunas locais.  — denuncia Egídio Guimarães, professor da Escola Preparatória de Vizela.

    Francisco abandonou a escola há uma eternidade. Agora, só conta com a força dos braços e das pernas para aguentar 11 e 12 horas de trabalho a fio, seis dias por semana. No dia de folga, amanha a horta da família. O momento de descanso ainda mais agradável é o do almoço, apesar da comida.

    — E a seguir, vais para o trabalho…

    — Hum…

    — O que é que tu fazes?

    — Ora bem, eu lá ando a descascar paus, faço qualquer coisa lá: ajudar…

    — Numa serralharia…

    — Sim.

    — E há quanto tempo é que trabalhas?

    — Um ano e meio.

    Imagem: Norberto Lopes

    — E que idade é que tu tens?

    — 13 anos.

    — E tens mais irmãos?

    — Tenho.

    — Quantos?

    — Oito.

    — E trabalham todos?

    — Menos dois.

    — Menos dois. E porque é que tu abandonaste a escola?

    — Eu não gostava dela…

    — E os teus pais também precisavam de dinheiro?

    — Não era bem isso. Eu é que não gosto muito daquilo…

     — E há mais rapazes novos a trabalhar na serralharia onde tu estás?

    — Não. Sou o mais novo que ando lá.

    — És o mais novo. E o patrão quanto é que te paga por mês?

    — 11 contos.

    — E trabalhas quantas horas por dia?

    — 10.

    — 10 horas. Todos os dias?

    — Todos os dias. Só menos ao sábado que pegamos às seis e largamos às seis…

    — E se nós agora formos lá à empresa onde tu estás a trabalhar o que é que tu achas que pode acontecer? O patrão manda-te esconder, o patrão… O que é que acontece?

    — Não sei. Não sei o que pode acontecer.

    — Não sabes o que pode acontecer, mas sabes que é proibido estar a dar trabalho a rapazes com a tua idade. E fala-se nisso lá na oficina? O patrão já te disse alguma vez alguma coisa?

    — Já me disse isso.

    — O que é que ele disse?

    — Disse que se for lá alguém, um fiscal, pode mandar-me embora e ele pode pagar uma multa.

    — E o que é que o patrão disse para tu dizeres ao fiscal ou às pessoas que lá forem?

    Imagem: DR

    — Eu escondo-me, não é? Para eu esconder ou que eu tenho mais que 13 anos. Que já saí da escola…

    A descida ao inferno da clandestinidade passa contudo por situações bem mais sombrias.

    «Esta sociedade esmaga sem dar conta» — palavras de Torga. Palavras de hoje no Norte onde atrás da prosperidade das pequenas e médias indústrias se esconde a degradação humana.

    — O povo diz que quem não aproveita o trabalho das crianças embora pouco é louco. Efectivamente as crianças podem fazer muita coisa. Dar-lhes o sentido do trabalho, da educação por coisas pequenas, mas aliás há escolas. O escotismo, por exemplo, é uma escola maravilhosa nesse sentido. Por exemplo, o escotismo ocupa as crianças, os adolescentes na limpeza de praias, na limpeza de pinhais. Tem feito esse serviço, quer o escotismo de rapazes quer o escotismo das meninas e guias de Portugal.   — diz-me Eduardo Melo, vigário geral da Arquidiocese de Braga. Ainda no verão passado limparam as praias de Esposende. Limparam matas, como por exemplo, ali de Bouro, na zona de Albergaria. São trabalhos que se fazem desportivamente sob a orientação de responsáveis. Educam e podem ganhar alguma coisa…

    — O desporto na fábrica é mais difícil, senhor Cónego…

    — Efectivamente que sim, mas eu julgo que um trabalho proporcionado, adequado no tempo, no lugar, na intensidade… Eu julgo que será profundamente educativo.

    Nem todos os padres pensam como o vigário de Braga. Progressistas indecisos há-os por toda a parte. Uma coisa porém é certa: não se sabe qual é a dimensão real do trabalho infantil em Portugal. As previsões, quando existem, são muitas vezes curiosas ou duvidosas.

    Para o Instituto Nacional de Estatística existiam no primeiro trimestre deste ano 46.900 crianças a trabalhar.

    A Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), um departamento governamental especialmente vocacionado para este assunto, apenas detectou durante esse mesmo trimestre 65 menores de 14 anos.

    Das duas, uma: ou 46.835 crianças se perderam a caminho do trabalho ou a ineficácia da IGT é total…

    Francisco trabalha em Moreiras numa serração de madeiras. O patrão está a chegar agora mesmo no camião com os troncos.

    — Há falta de trabalhadores aqui nesta zona? — indago.

    — Ora bem, isto é como em todo o lado. Nesta altura, há falta não é de trabalhadores. Há falta é quem queira trabalhar. Trabalhadores há muitos, está a ver… só que é trabalhadores para o café, está a perceber?

    — E trabalho infantil? Tem garotos a trabalhar para si?

    — Não!

    — Não?

    — Temos um com 14 anos…

    — Quem é?

    — É este. Tem 14 anos.

    — Tem 14 anos.

    — Ele em recibos? O senhor dá-lhe…

    — Ora bem, ele veio para aqui há dias, está a perceber, e vai começar a trabalhar… Nesta altura está aqui. Está a ver, o meu irmão não está e ele está aqui a guardar isto, não é?   

    —  Está a guardar? Só? Não trabalha?

    — Para já não está metido ao trabalho porque…

    — E está cá só há um mês e meio… Diga-me uma coisa: quantas horas é que ele trabalha por dia?

    — Oiça lá, o horário normal, como nós.

    Imagem: DR

    — Quantas horas?

    — O que trabalha mais aqui sou eu, está a perceber?

    Mentiras e conivências que o hábito tece. E quem se desvia do rigor sumário do silêncio é imediatamente ou quase excomungado.

    Este homem vive na região de Felgueiras há uma série de anos. Conhece bem a terra e a gente. Aceitou denunciar a situação. Depois, porventura pressionado por familiares industriais que empregam menores, proibiu a emissão das suas acusações.

    A cobardia é outra maleita comum a esta situação. Só não vê quem não quer. Praticamente toda a gente tem crianças a trabalhar… Há crianças que ainda andam a estudar. Trabalham em part time. Outras, trocaram definitivamente a escola pela fábrica ou pelas obras.

    — Esta situação acontece no distrito de Braga e não só – consideramos que é um problema nacional. É lamentável que os patrões vejam nas crianças o seguinte objectivo: hipotequem o futuro das mesmas crianças – portanto, abandonam a escola com a garantia de lhes pagarem miseráveis escudos a troco de trabalho que é feito por elas que devia ser feito pelos adultos. — constata Vítor do Vale da União de Sindicatos de Braga.

    Mão-de-obra clandestina só na aparência legal. A teia de cumplicidades e a ineficácia das autoridades são tais que muita gente nem sequer se dá ao trabalho de se esconder.

    — Não gostavas mais de estar a brincar? A estudar?

    — Hum… Não sei.

    — Os teus pais… o que é que eles acham disto?

    — …

    — Quantos irmãos tens?

    — Lá em casa somos três irmãos.

    — E trabalham todos?

    — Não. Só dois…

    — Um tem 11 e o outro tem quatro.

    — E trabalham?

    — Não. Trabalha só um.

    — Que idade tem o que trabalha?

    — Tem 12. (sic)

    — E o que é que ele faz?

    — É também desta profissão.

    — É trolha?

    — Sim.

    — E ele quanto é que ganha?

    — Não sei. Não sei quanto é que ganha. Ele começou há pouco. Começou ontem a trabalhar… (sic)

    — E o teu pai trabalha?

    — Trabalha.

    Imagem: Norberto Lopes

    Jorge foi para trolha, tentado por media dúzia de tostões e a fuga ao aborrecimento da escola. Trabalha 10 horas por dia. Ganha 18 contos por mês. Não gosta muito do que faz, mas também não se lamenta. É a opção do possível. Proibir o trabalho infantil não chega. É preciso criar alternativas — melhores alternativas. Caso contrário o trabalho infantil aumentará ainda mais à medida das misérias.

    — Vieram aqui uns miúdos e disseram-me se que queria deixar o miúdo ir trabalhar e eu disse que não porque ele que não tinha 14 anos. E eles disseram-me que o patrão que diz que como ele está próximo a fazê-los que não fazeria mal, que não teria perigo. Prontos. Foi, mas não foi logo nessa ocasião. Eles vieram aqui uns dias e depois o miúdo foi. Passados aí uns dias é que foi trabalhar. — conta Maria Rosa Gomes.

    António, o filho de Maria Rosa Gomes, começou a trabalhar aos 11 anos de idade. Primeiro, esteve numa fábrica de cerâmica. Depois, foi para as obras. O último emprego que teve foi numa fundição. E aí é que foram elas…

    — Estava a trablhar como serralheiro. Trabalhava nove horas por dia. E assim…

    — Quanto é que tu ganhavas por mês?

    — 15 contos.

    — 15 contos… E o que é que aconteceu?

    — Ah… (silêncio) Um dia o disco apanhou a camisola e cortou-me o braço.

    — E o que é tu achas desta história toda? É justo o que te aconteceu?

    — É justo. Isso é justo. (sorriso imensamente triste e longo silêncio)

    — E agora? Viver sem um braço é muito diferente?

    — Já estou habituado. Para mim… já não… já não me interessa. Já pouca diferença faz.

    António tem agora 13 anos. Talvez acabe por voltar para a escola primária. O dinheiro vai ter de dar com a pensão do pai e a indemnização que porventura venha a pagar o patrão, mas isso é outra história.

    Para a família do rapaz o dono da fundição até nem é má pessoa. É verdade que não mandou avisar a família do acidente, não foi ver o miúdo ao hospital nem a casa, mas já avançou uma outra proposta de trabalho.

    Meto conversa com a avó de António.

    — O que é que a senhora acha das crianças que trabalham?

    —  Coitadinhos, eles agora não trabalham sem terem 14 anos, mas antigamente… — responde-me Ana Borges.

    — Não. Agora também trabalham. O seu neto começou a trabalhar aos 12…

    — Sim, trabalham. Mas antigamente trabalham mais cedo. Assim que pudesse começar a sacar um pouquinho de aqui e de acolá, já ia para ganhar o pão para comer.

    — Mas as coisas mudaram. Passou muito tempo.

    Imagem: Norberto Lopes

    — As coisas mudaram mas…

    — Ou não mudaram?

    — Mudaram. Agora é mundo novo.

    — Mas as crianças continuam a trabalhar…

    — As crianças continuam a trabalhar, está bem, mas ele…

    O patrão da fundição parece ter outra noção das responsabilidades. mandou encerrar as portas da fábrica por causa dos olhares intrusos. Recusou responder às nossas perguntas. (NOTA: A Fundibraga, Comércio de Metais, Lda já não está activa).

    As oficinas e fabriquetas clandestinas que pululam por estas bandas, lugares comuns do trabalho negro começaram, contudo, a criar alguns esquemas defensivos.

    Aqui, nesta oficina de Esporões o cartaz exterior da legalidade imposta não deixa margem para dúvidas: o patrão só aceite adolescentes com mais de 15 anos.

    — Que idade é que tu tens?

    — Ah… 13 anos.

    — E estás a trabalhar aqui nesta oficina?

    — Sim, senhor.

    — E já trabalhas há muito tempo?

    — Há mais ou menos um ano.

    — E antes? Já tinhas trabalhado noutro sítio?

    — Não, senhor.

    — É o teu primeiro emprego?

    — É, sim senhor.

    — E saíste da escola há muito tempo?

    — Não. Ainda ando a estudar. Trabalho de manhã e de tarde estudo.

    — E quanto é que ganhas aqui por mês?

    — Aqui não ganho nada. (sic) Estou aqui é para ocupar os meus tempos livres… (sic)

    — Os teus tempos livres a trabalhar?

    O miúdo acena que sim.

    — Sim, senhor.

    — E qual é o teu trabalho aqui?

    — Faço… ajudo…

    — O que é que fazes exactamente?

    — Faço janelas quando posso… pequenas e ajudo a cortar ferros.

    — E há mais rapazes com a tua idade a trabalhar?

    — Não, senhor.

    (Ouvem-se gritos)

    Imagem: Norberto Lopes

    — É o teu patrão que te está a chamar?

    — Um momento. Já vou…

    (Mais gritos insistentes ao longe.)

    — O teu patrão está a chamar-te. E tens mais irmãos?

    — Tenho.

    — E trabalham também?

    — Não.

    — Não trabalham…

    Passo à ofensiva.

    — O senhor não se importa de vir aqui um segundo? ­O senhor é o patrão dele? Vamos ver se este senhor quer falar… O senhor dá-me licença? Podemos entrar? Bom dia, dá licença?

    — Não, não.

    — O senhor não quer falar? Tem menores a trabalhar aí…

    — Ponha-se lá fora, de faz favor.

    — Metemo-nos lá fora. É?

    Pois é. O que vimos não devíamos ter visto. Se perguntámos não devíamos ter perguntado. Se ouvimos não devíamos ter ouvido. Deixem as crianças trabalhar em paz.


    NOTA:

    Esta reportagem foi efectuada em apenas três dias. Foi apresentada no programa «A Hora da Verdade» da RTP, no dia 22 de Dezembro de 1988 [ver AQUI]

    O empenho de Norberto Lopes e de Sérgio Ramos (imagem), José António Fernandes (montagem VT e pós-produção vídeo), Carlos Germano (vídeo-grafismo electrónico), Rogério Lagos e Vítor Matela (pós-produção audio), Albano da Mata Diniz (sonoplastia) e de Luís Gonçalo Bettencourt da Câmara foi decisivo para fazer esta reportagem.

    Miguel Sousa Tavares e Margarida Marante apoiaram o meu projecto.

    Considero, aliás, que «Clandestinos da Vida»  foi uma das reportagens mais importantes da minha carreira profissional.

    E das mais difíceis também.

    Tenho uma profunda admiração por aquelas crianças. E imenso respeito também pela sua coragem e força.

    Rui Araújo


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  • Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra

    Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra


    “Um alfaiate faz de um torto um jeitoso”, mas, mesmo assim, o ofício está a desaparecer por esse país fora e a “Alfaiataria Cerqueira”, em Longra, não é exceção.

    Corria o ano de 2020. Rui Araújo passou uma tarde com os alfaiates e as costureiras do atelier do Mestre Cerqueira, que passou a vida na Senhora Aparecida, e, precisava de um milagre para o negócio sobreviver.


    Longra.

    Bati de fugida e entrei na loja sem saber ao que ia.

    Ao fundo, no atelier, dei com os alfaiates e as costureiras.

    Joaquim Cerqueira, apesar de céptico, deu-me as boas vindas.

    Admiro a bonomia ou a cordialidade desta gente honrada e trabalhadora do interior a contas com o isolamento e a adversidade.

    (Foto: Rui Araújo)

    A alfaiataria Cerqueira a é a única da vila e das redondezas.

    Chegou a ter 14 costureiras e alfaiates mais o mestre. Hoje, já só trabalham, aqui, quatro pessoas, incluindo a esposa e o sobrinho do dono. E uma costureira.

    A prosperidade de antanho pertence irremediavelmente ao passado apesar de a alfaiataria ser mais do que um mero ofício para esta gente.

    — Isto é uma arte. Uma prisão. Tem que se estar com a perna cruzada a trabalhar, a aprender, a dar pontinhos. É… é impossível, senhor Araújo. Eu sou o último alfaiate de Longra, se calhar sou o último de Felgueiras e, se calhar, vou ser o último do Distrito do Porto… — segreda o mestre com um sorriso tímido de candura.

    O solilóquio é sincero. O tom é triste. As coisas são o que são… O negócio está a definhar. 

    Joaquim Cerqueira aprendeu a arte quando ainda era gaiato. Tinha acabado de deixar a escola. 10 anos de idade.

    — Eu fiz sempre trabalhar a mão. Isto é a mão. Ó senhor Rui, trabalhar com a mão demora anos a aprender. E se posso… se puder recuar atrás, eu, quando fui trabalhar, no meu tempo pagava-se para aprender a arte. Ainda é o tempo que se pagava. E eu andei e porque… anda que o meu pai não pagou, mas toda a gente pagava naquela altura: três contos ou 500$00. Era assim… Eu andei assim um ano de graça. A seco. E no fim de um ano começaram a dar-me 15 tostões por dia. Sem horário de trabalho…

    A desilusão é tremenda, mas no atelier ninguém esmorece.

    Dona Maria Cidália Pinto, a esposa, começou a trabalhar como bordadeira com oito anos.

    Hoje, ousa recordar a significação de alguns momentos singulares aqui vividos.

    Uma vida cheia…

    — Eu não era para contar esta, mas pronto, já agora vou contá-la… Houve uma altura que eu estava aqui com os meus filhos nos primeiros anos, que nós não morávamos aqui, era um bocadinho longe e, muitas vezes, antes de ter os filhos eu ia mais o meu marido numa motita às 2… 3 da manhã com frio, com chuva. Depois, entretanto, nasceu a minha filha, a primeira filha, e nós para não ir com a menina na mota ao frio, montámos, aqui, neste cantinho um divãzinho, aqui ao lado, um fogãozinho daqueles pequeninos aonde eu fazia a refeição da noite e dormíamos aqui para não apanharmos frio por aí abaixo com a menina…

    As voltas que a vida dá…

    E não vale a pena encobrir a verdade por mais absurda que seja.

    Antigamente, a «Alfaiataria Cerqueira» fazia 15 ou 20 fatos e 90 pares de calças por semana — tudo à medida do freguês.

    Hoje… com a pandemia e a crise aparece um trabalho ou outro.

    As prateleiras aprumadas repletas de alpaca, fazenda, entretela, caxemira, cetim, algodão, surrobeco, burel e lã pura — tecidos de qualidade, alguns importados de Inglaterra e de Itália — só revelam que ainda se fazem aqui bons fatos à antiga portuguesa, trajes de equitação, samarras, capotes e casacas de gala para toureiros e devotos. E.… não só.

    Joaquim Cerqueira Machado escuta-nos, mas (incansável) não tira os olhos do tecido. O padrão para ele é a excelência.

    — Há uma coisa de que nunca mais me esqueci. Um dia, em Guimarães, tinha um senhor alfaiate dava cursos de recosa, a fazer os cursos de corte. E uma coisa que ele sempre me disse: um alfaiate de um torto faz um jeitoso. De um homem torto nós pomos um jeitoso porque nós conseguimos pôr… fazer as alterações todas. O alfaiate, enquanto que a confecção não faz alterações nenhumas. Se… O homem pode estar assim torto que nós conseguimos pôr o fato direito. E o resto ninguém consegue…

    Não é arte. É milagre! — acrescento, como quem não quer a coisa.

    Às vezes é mesmo milagre. (RI-SE) Às vezes faço cada milagre…

    Afinal de contas, os milagres existem e os homens são todos iguais. Quem o diria (concluo no meio destas vidas estranhas ou desconchavadas fora do mundo do consumismo do pronto-a-vestir e do pronto-a-pensar).

    Cláudia Mendes, a costureira mais nova, já está cá há mais de 20 e tal anos.

    Cortar, coser, casear, chulear, guarnecer, alinhavar — tanto faz! — é com ela.

    — Às vezes uma pessoa tenta, tenta, tenta, faz, desfaz, volta a fazer, volta a desfazer, levanta-se e vai dar uma voltinha para conseguir fazer perfeito… (RI-SE)

    A nobreza da costura e da alfaiataria reside na busca permanente da perfeição. Do contentamento de se atingir a perfeição…

    — A alfaiataria é uma arte que é pena ela desaparecer, senhor Rui, mas não há volta a dar. Hoje é muito difícil criar-se um artista. Muito difícil. Só com um milagre, mas os milagres já não se fazem.

    A grandeza ou a força moral desta gente que não me canso de admirar é a luta por um amanhã menos desconsolado apesar de o raio da pandemia, que está a dar cabo do negócio e do resto, nunca mais acabar…

    É outro dia calmo sem horas devolutas.

    Fotos extraídas de vídeo de Romeu Carvalho/TVI (com excepção da foto da autoria de Rui Araújo)

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2020.


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  • Dona Rosa, a pastora dos milagres

    Dona Rosa, a pastora dos milagres


    A solidão e a vida cheia de momentos de silêncio, cantigas, prantos e preces da pastora Carmelina Rosa Afonso, em Parâmio, Trás-os-Montes.

    As memórias e histórias de milagres de quem já não espera nada, ‘apenas’ ora, chora, pensa e caminha… por caminhos que as pernas já conhecem de cor.


    Parâmio.
    Terra de choupos, amieiros, carvalhos e castanheiros.
    Terra ainda de pastores e de milagres.

    A manhã rompeu gélida quiçá invernosa.
    Lá adiante, a rua tosca desemboca na igreja matriz, que data de 1783 ou de 1787.

    Dona Rosa está a tocar o sino. Conscienciosamente. E sem esforço de maior, apesar de já ter 81 anos generosos como a vida que é — e foi! — a sua.
    É o desafio ou a chamada para a celebração do caminho da cruz, a Via Sacra.
    Fiéis à fé e ao burgo, que já só tem quarenta e quatro almas, ou simplesmente solidárias, Dona Palmira e a outra Dona Rosa aparecem de roldão para responder ao apelo do sagrado. E do intangível…

    As três mulheres percorrem com afinco as catorze estações da igreja. A sabedoria, aqui, ao contrário de lá fora, passa por um único caminho e as mesmas rezas de sempre.

    Carmelina Rosa Afonso, pastora. (Foto: D.R.)

    A anciã, que tem a chave da igreja, trauteia de boa fé as orações com um timbre de circunstância.

    — Sem Deus não há nada! Nós não podemos viver sem Deus. Não é viver. O viver sem Deus não é viver.

    O padre de Bragança só cá vinha por dever. Um dia — já lá vai uma data de anos — abalou para terras de África. Santos de casa não fazem milagres…

    Ficou São Lourenço, o padroeiro da aldeia, que não é para aqui chamado.

    Daqui a nada são dez da manhã. É mais do que tempo de Dona Rosa desandar.

    Parâmio: ruas desertas e casas abandonadas. E algumas ruínas. A mocidade desapareceu. E a escola está fechada.

    Vou ver a Fonte do Caílho, que cura moléstias e quebra feitiços. É o que dizem…
    A água que corre ao lado da imagem de Nossa Senhora dos Milagres e os preceitos rituais curariam o caílho, o anqueilhado, o angaranho, por outras palavras, uma espécie de raquitismo que impede as crianças de andar.
    Crendice ou realidade? Já lá iremos… porque há por estas bandas quem saiba a missa toda.

    Poiares, terra do pão.
    Estamos  a menos de uma légua de Parâmio.

    Lá em baixo, a pastora, mais o rebanho e os cães. E uma melodia de há uma eternidade…

    — Toda a vida fui pastora.
    Toda a vida andei com o gado.
    Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.
    Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.

    Dona Rosa é pastora e gaba-se de ser pastora.

    Faz das tripas coração para levar o rebanho ao pasto. Dia após dia… porque a coisa, aqui, não fia de outra maneira…

    Faça sol ou faça chuva, com geada, com neve, mal o sol desponta no horizonte, a anciã assoma por entre montes e vales. Solitária como um lobo tresmalhado.

    — O que custa mais é a solidão. A gente viver sozinha, não é? Por cá, passo os dias sozinha. Canto, choro, rezo… Rezo muito o tercinho. Rezo as minhas orações todas. E passo assim o meu tempo, não é? Mas é uma solidão. Não se vê ninguém. Não se vê ninguém pelo campo. Não se vê nada!

    Os quatro cães de virar seguem-na — que é como quem diz, seguem o rebanho — maquinalmente.

    — Ai, a puta da cadela. Ó Irís, ó Irís, ó Irís, ai sua marota. Rasgava a ovelha para as fazer vir para aqui…

    Feitas as contas são 136 ovelhas e 100 cordeiros.

    Na “loja”, que é o nome que dão ao curral, só ficaram os animais que acabaram de nascer.

    Antigamente, havia sete ou oito rebanhos maiores do que este e outros tantos pastores.

    — Eu sou a única pastora aqui. Os mais velhos já morreram. Já estão no Céu. Os mais novos não querem esta vida. Procuram vidas melhores…

    Dona Rosa sai todos os dias com o rebanho. Sem pressas que o caminho é comprido.

    E oito, nove, doze horas a calcorrear veredas e clareiras passam devagar.

    — Penso em tudo. Nos filhos, nos netos, nos bisnetos, na vida. Na morte quando ela virá. Quando Deus me quiser levar estou ao dispor dele.

    Deus ou a roleta do tempo não poupam nada nem ninguém. Nem a verdade. E, no fim de contas, tudo acaba em ficção: a morte é a morte.

    — Canto muitas vezes a Cantiga da Mãe como já não tenho mãe. “Ó minha Mãe, minha Mãe. Ó minha Mãe, minha amada. Quem tem uma Mãe tem tudo. Quem não tem Mãe não tem nada. É. Sei-a toda.”

    Os animais têm preocupações mais prosaicas: enchem o bucho.

    Os cães, atentos, vigiam o movimento. E a pastora aproveita para orar.

     Eu rezo este terço das chagas do Senhor. Rezo o terço da Misericórdia. Rezo o terço vulgar que é as dez estações a Nossa Senhora e rezo o terço da chama de amor a Nossa Senhora. Todos os dias rezo estes terços…
     Porquê? Para quê?
    — Porque… dá-me impressão que me dá outra vida, não sei. Não sei, pronto. Confio em Deus e em Nossa Senhora.
    — E Deus confia na senhora?
    — Ora aí é que eu não sei. Não é? Mas eu acho que sim… Eu acho que sim… (RI-SE)
    — Acha?
    — Acho. Acho que sim. Acho que sim porque eu chamo tanta vez por Ele… Chamo tanta vez por Ele…

    A confissão é sincera.
    Perdeu o marido há demasiados anos.
    Reza, canta, chora…

    É tempo de rilhar uma côdea. No saco tem um naco de bacalhau frito, pão e café.
    O pior é o frio intenso, que se entranha, apesar do céu  limpo.

    — Diz-se que no Verão é viver de cão a vida de pastor. E no Inverno é vida de inferno. (RI-SE) É assim…

    Sempre foi.

    Lá ao longe, ali atrás da primeira colina, é Espanha.
    A naturalidade, aqui, na raia é irredutível, mas não é o mais importante. Nunca foi.

    — No tempo que houve lá a guerra, na Espanha, a gente também passou fome. E vinha, aqui, a Portugal. Era no tempo que se cozia nos fornos muito pão de centeio e eles vinham aqui. Traziam chocolates e trocavam os chocolates pelo centeio. E para levar para os filhos, pois. E então paravam muitos muitos em casa dos meus pais. Eles davam-lhes um cobertor e dormiam em cima de uns bancos e depois da madrugada é que eles saíam para se livrar da Guarda. Pois… A Guarda tirava-lhes os pães. Tirava-lhes o que levavam daqui. Naquele tempo houve fome na Espanha…

    Os animais continuam a comer: malva, joio, língua de ovelha, carrajó, serradela, cardo molar…

    A terra é generosa.
    À imagem da água que por aqui corre.

    — Temos a Fonte do Caílho que é a fonte milagrosa para as crianças encaílhadas. A criança que é ancaílhada põe as perninhas em ruz e não anda. É. Depois de ir à Fonte do Caílho fazer a oração, se a criança for encaílhada anda ao cabo de quinze dias. É. Se não for encaílhada não há nada a fazer. Só por médicos, não é? Pois… Mas o milagre é esse. Se for ancaílhada, a criança cura. A gente leva-as, vai por um caminho, sem falar, até à fontinha. Depois, lá, estão duas pessoas. Se houver madrinha, de preferência é a madrinha. E a outra pessoa. E põe-se uma do lado da fonte e outra do outro lado e diz:
     Toma lá esta criança. Esta criança ancaílhada.
    E a outra responde:
     Dá-me a cá sã e salva.
    E pega na criança. Depois, devolve-a outra vez nove vezes e nove Pais Nossos e nove Avé Marias.
     E a seguir, o que é que acontece?
     E depois, pronto, a gente rezou essa Avé Rainha, antes reza-se o Acto de Contrição, e benzer e pronto. E a gente sai com fé, não é?
     E a criança começa a andar… – indago.

     Se for ancaílhada, começa a andar. Logo passados dias começa a andar.

    Parâmio.
    A aldeia da deslumbrante pastora Carmelina Rosa Afonso e dos milagres que acontecem para acudir às desgraças das crianças.

    Na Terra Fria o impossível só pertence ao passado. As negações são como as sentenças: inúteis…

    Fotos extraídas de vídeo de João Franco/TVI

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Março de 2018.


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  • Mariana Maria, só

    Mariana Maria, só


    A vida de Mariana Maria – conhecida por Mariana Campaniça – no Alentejo profundo… e deserto.

    Do alto dos seus 86 anos, a viver uma vida solitária tendo como centro do mundo a sua taberna.

    Uma história de pobreza e trabalho. E amor.


    Terras agrestes e escalvadas.

     Alentejo, uma tarde destas… abrasadora.

    Primeiro, um casario velho, em ruínas.

    Um dia, já lá vão muitos anos, aqui, neste monte, viveu gente…

    Ao lado de um charco sem nome um macho mata a sede ou engana a caloraça.

    (Imagem: Valter Leite)

    Lá ao fundo, na estrada secundária (as mais interessantes!), damos com dois pastores e um rebanho. E com os carris. Calha bem, o nosso destino é a Gare de Ourique.

    A imagem do progresso é ardilosa, mas é assim mesmo. O despovoamento e a desertificação também não pouparam este lugar recatado. É a sina do interior de Portugal.

    Na estação já não param comboios. Os poucos que ainda passam por este ramal da Linha do Alentejo são os da mina (de cobre e zinco) de Neves Corvo.

    Diante do edifício fica o Café Primavera.

    Clientes, esses, nem vê-los ou quase. O estabelecimento está às moscas…

    Mariana Maria, conhecida desde cachopa por Mariana Campaniça, é a dona da taberna. Tem 86 anos feitos, nasceu no Atravessado.

     A minha vida foi sempre no campo e sempre a trabalhar. Eu desde os 10 anos, vim a trabalhar: cuidar bestas, cuidar vacas, descalça, vim trabalhar. Ia ganhar um panito. Ia ganhar uns 5 tostões ou 10 tostões. Nesse tempo era assim. E era para levar para casa que era para a gente comermos todos. Era o pai e a mãe a trabalhar e não chegava. Doze moços de roda de uma mesa, não dá. Com mais 2, o pai e a mãe…

    É preciso deixar passar as horas e os minutos. E o tempo, aqui, quer se queira quer não, arrasta-se.

    (Foto: D.R.)

    Mariana Maria, vive, aqui, sozinha, paredes meias com a negrura do lugar e as recordações do mundo que é o seu. E com os sonhos…

    — Quando era criança queria ser muita coisa. (RI-SE) Era o que eu podia fazer. Queria ser rico, queria ser rica, queria ser bonita, nunca fui uma coisa nem outra…

    Mas o pior é a miséria.

    Mariana Maria começou a trabalhar ainda catraia. E nunca parou, até hoje. É a mulher dos sete ofícios. E correu o país: Odemira, Vila Nova, Beja, Serpa, Carregueiro, Funcheira… até que um dia comprou a tasca, em Ourique.

     — A minha vida foi andar ceifando e mondando no campo.  E quando eu ia para casa, ia a um baile, a uma festa, via as outras senhoras, outras meninas, todas vestidas de ar, todas bonitas e eu com o vestido de chita, daquele que nem sequer se podia tocar numa esteva. Não havia cascanhol… Eu, com o vestidinho de chita, digo: vida de um cabrão. Só eu é que nasci pobre…

    (Foto: D.R.)

    Mariana Maria é, acima de tudo, uma rebelde. Faz o que quer (sempre fez!) e não tem medo de ninguém.

    — Eu não tenho medo! Tenho ali uma debaixo da cabeceira que é assim deste tamanho. (SIMULA UM DISPARO) Está mesmo debaixo da cabeceira da cama. Se eu ouvir mexer na porta, não preciso de me levantar. É só olhar para a porta e quando aparecer qualquer coisa lá à porta, toma.

    Ia à caça, fumava, bebia uns canecos e era danada para o fado, as «modas» e o «cante ao baldão» (o despique ou as desgarradas!). Era e é…

     Vou cantar a moda da Marianita. Oh, não. Vou cantar outra…

    Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…

    Quero ir ver o meu amor,

    Visitar lá mais alguém…

    Quero ir ver o meu amor,

    Visitar lá mais alguém…

     Agora é que eu vou andar,

    Agora é que eu vou andando


    Da noite para o dia, o pai das suas três filhas partiu. Para nunca mais voltar.

    Mariana Maria não se queixa. Há males maiores. Há a morte. E há Deus.

    — Quem é que viu Deus? Ninguém vê, mas eu já o vi. Fui obrigada a vê-lo…

    — Como?

    — Eu vou-lhe contar…

    A filha morta apareceu-lhe uma noite no quarto. A imagem pode parecer irreal, mas cumprida a promessa sumiu-se. Para esta mulher, Deus… Deus e a Fé datam daí…

     — Todas os dias rezo na minha cama quando me deito e quando me levanto. Tenho uma oração que eu digo todas as noites.

    (Foto: D.R.)

    “Com Deus me deito. Com Deus me levanto. Por amor de Deus e do Espírito Santo.

    Digo isto três vezes.

    Foi uma vida sacrificada, mas cheia.

    E há sentimentos que ganham hora a hora outra dimensão.

    — Isto agora é a moda:

    Se ele adora mais alguém,

    Se me ama a mim sozinha,

    Quero ir para o altar…


    (CALA-SE)

     — Não é isto!

    — Gostou mesmo…

     — Já me enganei…

    — Gostou mesmo daquele homem…

    — Não pode tirar esse bocadinho?

    — Não. Não se pode. Gostou mesmo daquele homem…

    — Gostei mesmo. Foi bom moço. Não era… coitado.

    — Ele foi o grande amor da sua vida…

    — Foi. Já não namorei mais nenhum.

    — O que é que é o amor?

    — A gente… A gente gostar da pessoa. Aproximar-se à pessoa. Gostar dela. sentir… Sentir… Isso é coisa que não se pode explicar.

    Há muitas mais coisas que não dá para explicar…

    (Foto: D.R.)

    Aqui fora, o dia está a morrer.

    A luz incerta do lusco-fusco ou a penumbra, anuncia o momento das despedidas.

    Lá dentro, Mariana Maria dorme ou vela. Ou fecha os olhos, simplesmente, a pensar que amanhã continuará a lutar pela vida… já que apesar de estar entrevada foi condenada a viver só.

    Nota: Mariana Maria faleceu pouco depois de estarmos juntos.

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2018.


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  • Mercenários e meninos soldados

    Mercenários e meninos soldados


    O PÁGINA UM publica a segunda reportagem do jornalista Rui Araújo sobre uma guerra esquecida em África, mais precisamente na República Centro-Africana, palco de interesses geoestratégicos, comerciais e de delapidação de recursos, e onde mercenários e crianças se digladiam.

    Em 2021, o jornalista Rui Araújo esteve (pela segunda vez no espaço de três anos durante mais de um mês outra vez) na República Centro-Africana, um país dilacerado por uma contínua e atroz guerra . Inicialmente, esta reportagem foi publicada na revista galega Luzes, na revista espanhola FronteraD e ainda no jornal digital português Sete Margens e na edição online da CNN Portugal

    Apesar de algumas fotografias chocantes, pelo que avisamos, desde já para este facto, o PÁGINA UM decidiu publicar as imagens colectadas pelo Rui Araújo, por serem testemunhas da crueldade das guerras e, infelizmente, da natureza humana.



    Bria. República Centro-Africana.

    A quietude é perfeitamente enganadora. O país está a ferro e fogo há quase 10 anos. Catorze grupos armados continuam a controlar 80 por cento do território onde o Estado faz figura de ausente. Os mercenários estrangeiros, incluindo russos, matam indiscriminadamente a torto e a direito e pilham e estoiram o que podem. A impunidade é total…

    Ao meu lado uma mangueira frondosa. Diante de mim, no campo de futebol de terra ocre, os miúdos de pé descalço correm desenfreadamente no meio dos apitos do árbitro branco sem presunção.

    (Foto: Movimento Rebelde)

    Bakita Ousma assiste à partida com deleite. A cachopa não é uma espectadora qualquer. Encontrou, aqui, na associação Esperança a salvação ou o apaziguamento. E alguém que cuide dela (com o apoio, designadamente, das Nações Unidas). Tem doze anos. É orfã. Aos oito entrou para o grupo de guerrilheiros numericamente mais importante do país.

    — A minha mãe e o meu pai morreram quando os cristãos atacaram a aldeia e é por isso que eu fui para o grupo armado FPRC (Front Populaire pour la Renaissance de la Centrafrique).

    O desabafo é claro e sincero. Tinha oito anos bem contados. Um ano depois escapou-se, mas a sua tenacidade nem por sombras esmoreceu. A guerrilha foi para ela o lenitivo ou o remédio de encarar a morte dos pais, matar a fome e quiçá a solidão. Mesmo se tivesse nascido noutro lugar a sua postura seria exactamente igual. A doçura da voz de Bakita é falaciosa. É uma resistente…

    — E como era a vida lá? — indago por indagar.

    — Estava no mato. 

    — E que mais?

    — Já não tinha família…

    As primeiras vítimas da guerra… (Foto: Rui Araújo)

    Bakita olha maquinalmente para os jogadores mais ruidosos. Queira ou não queira — como diria Miguel Torga —, vive duas vidas. Uma que se vê e outra que não se vê. Como todos nós, aliás.

    — Tens um sonho? Qual é?

    A menina, alheia à minha conversa, limita-se a sorrir. Insisto.

    — Qual é?

    — Quero ser comerciante. Quero fazer negócios… — lá me responde com convicção ao fim de uma eternidade.

    Segundo uma estimativa da UNICEF, datada de Setembro de 2015, os movimentos rebeldes da República Centro-Africana recrutaram 10.000 crianças.

    A única certeza é que os 14 principais grupos rebeldes — muçulmanos e cristãos — contam nas suas fileiras com muitos meninos combatentes. O seu número exacto, hoje, é uma incógnita.

    Encontro seguinte: Koyo Haroune, futuro grande fotógrafo. Tem 15 anos cumpridos. Foi para a guerra aos nove. Passou cinco com os rebeldes da FPRC.

    As crianças só terão um futuro se a guerra acabar, mas… (Foto: Rui Araújo)

    — Os rebeldes, que se chamam anti-Balaka, mataram o meu irmão mais velho.

    — Os cristãos…

    — Sim.

    — E ele tinha 36 anos…

    — 36 anos.

    — E tu foste para a FPRC para fazer o quê?

    — Os anti-Balaka mataram o meu irmão mais velho. Foi por isso que fui para o grupo armado. Queria vingá-lo!

    — E foste para soldado com 9 anos de idade…

    — Com 9 anos de idade.

    — E o que fazias lá?

    — No grupo armado? Eu só matava as pessoas. Ia para o terreno…

    — E viste muita gente morrer?

    Ninguém passa impunemente pela guerra. (Foto: Rui Araújo)

    Koyo deve ter sentido qualquer coisa fender-lhe o peito e desata a rir, envergonhado, com a mão a tapar-lhe a boca.

    — Sim. Eu matei muita gente.

    — Muitas?

    — Muitas. — responde-me.

    — E muitas são quanto?

    — Eu não conto. Eu não conto…

    — E matar. É o quê? — pergunto, teimoso.

    — Matar? Eu mato com as armas.

    — AK-47. Kalashnikov…

    — Kalashnikov. E com foguetes RPG…

    — O que sentiste a primeira vez?

    — Não me faz nada.

    — Nem depois?

    — Nada.

    Dois guerrilheiros da UPC… (Foto: Rui Araújo)

    — E vingaste-te?

    — Sim, é verdade. Vinguei-me.

    — Qual é a principal lição desses anos com o grupo armado?

    — Perdoei tudo.

    — E a guerra? O que pensas da guerra hoje?

    — Hoje, penso que a guerra não é boa. A guerra não é boa… Na guerra perdem-se muitas vidas. É por causa disso que me fui embora.

    — E… E para o teu irmão?

    — Para o meu irmão… Ele está morto. Os anti-Balaka (ndr: cristãos) mataram-no. Os filhos dele ficaram sozinhos. Os filhos, agora, andam na rua ao Deus dará. Custa-me ver isso. Andam aí pelos caminhos. São meninos de rua…

    — Ouvi dizer que tens um sonho lindo… —  alvitro sem cálculo.

    — O que eu gostava de fazer na vida?

    Reparo na alegria a arder nos seus olhos irrequietos. Há utopias que se realizam.

    — Sei lá… Fotógrafo. Trabalhei uma vez como fotógrafo num estúdio de fotografia. 

    — A fotografia também é memória…

    — É a memória!

    — E a memória não é um problema?

    — Não é um problema para mim…

    Miséria generalizada num país rico… (Foto: Rui Araújo)

    Dito e feito. Koyo tem carradas de razão. Eles estão destinados a desafiar o passado para poderem vencê-lo e conciliarem-se com a vida, mas não é fácil…

    O insólito árbitro de apito nos lábios acicata os putos. Mahamat Damine senta-se diante de mim, aflito. Foi soldado durante cinco anos. Tinha 11 quando abalou para a guerra. Foi pelas melhores razões, não vá o Diabo tecê-las…

    — Os cristãos massacraram a minha família. Os meus pais! Via muitos anciães a sofrer. É por isso que eu fui para o grupo armado FPRC. Queria salvar as pessoas que estavam a sofrer…

    — A guerra é o quê para ti?

    O adolescente coça a cabeça embora conheça a resposta.

    — A guerra? Brincamos muitas vezes à guerra, mas a guerra não é boa. Vi muitos homens morrer. Mulheres. Crianças… A guerra não é boa.

    — Mataste também?

    — Sim, também matei.

    — Sabes quantos?

    — Sim, eu sei.

    — Quantos?

    — O máximo foram 11.

    — E depois?

    A capital não escapa ao flagelo da violência… (Foto: Rui Araújo)

    O rapaz hesita, pensa, torna a pensar e desata a rir.

    — Depois, nada. Eu queria deixar aquilo. Agora, já não creio que podia fazer aquilo. Eu só queria largar a guerra. A guerra não é boa. Eu queria abandonar o grupo armado.

    — E havia muitas crianças nesse grupo?

    — Sim. Há muitas crianças nesse grupo.

    — A partir de que idade?

    — Há homens… há uns a partir dos 11 anos, 12 anos, 13 anos, 14 anos, e mesmo 15 anos também. Há crianças pequenas…

    — Ainda hoje?

    — Sim. Ainda as há hoje.

    — Qual é a coisa mais bonita hoje na tua vida?

    — Pois… A coisa mais bela na minha vida? Acho que jogar futebol é uma boa solução para a minha vida.

    — E uma namorada?

    — Nenhuma. Não tenho… É a vida. Não é mentira!

    Guerrilheiros cristãos: matar de qualquer maneira… (Foto: Serviço secreto ocidental)

    O seu ídolo é Leo Messi, que foi recentemente condenado pelo Tribunal Provincial de Barcelona a pagar as custas do processo contra el Economista. A empresa LIMECU (acrónimo de Lionel Messi Cuccittino) declarou prejuízos sucessivos, não pagou impostos e não registou lucros desde a sua criação em 2010.

    Nos dias de hoje, a reinserção e a adaptação psico-social de muitos meninos soldados passa pela escola, o desporto, a música e a reconstrução dos afectos e porventura das quimeras da infância.

    O guarda-redes arregaça as mangas e posiciona-se. Tem um ar soturno, claro está. O jogo está renhido. E estes miúdos estão habituados a lutar. Todos eles passaram pelos grupos armados. Uns, foram recrutados. Os outros, raptados. Tinham oito, nove ou 12 anos de idade. Eram combatentes, informadores, mensageiros, cozinheiros ou guardas das barreiras. Muitas meninas foram violadas e eram escravas sexuais.

    Bria continua a ser um dos bastiões da FPRC, que controla o centro da urbe. Os muçulmanos da UPC (L’Unité pour la paix en Centrafrique), do RPRC (Le Rassemblement patriotique pour le renouveau de la Centrafrique) e os cristãos anti-Balaka (AB) mandam no resto. O campo PK 3 com mais de 90.000 deslocados é dos cristãos. Mas mesmo os lugares onde a vida é uma porcaria têm direito a nome…

    Os guerrilheiros cristãos anti-Balaka são iguais ou piores que os muçulmanos.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    Pé ante pé, calado, avanço em direcção à porta. O insólito comité de recepção é composto por dois rapazes de espingarda-automática 7,62 pendurada no ombro. São os guarda-costas do general Ali Ousta, chefe de Estado-Maior da FPRC. Explico ao que vou. Penetro numa assoalhada esconsa a cismar nas perguntas incómodas que tenciono fazer.

    — No Norte não há estradas. Não há escolas. Não há hospitais. Não há electricidade. O governo esqueceu-se do Norte desde a independência…

    O chefe rebelde podia arrotar postas de pescada, mas não o faz. Dou a mão à palmatória. É verdade aquilo que me diz. 

    — Mas há personalidades e países que estão por detrás disto tudo. Fazem com que as pessoas andem a matar-se umas às outras…

    — São os recursos que constituem, hoje, a principal causa do conflito?

    — O que penso é que as pessoas mandadas para cá para nos proteger andam a roubar as riquezas do país…

    — E os russos, que estão a apoiar o regime?

    — Não há um único russo que tenha entrado nesta sala. Foi o governo que os trouxe. É com o governo que eles falaram…

    Mercenários armados do grupo russo Wagner na cidade “sem armas” (segundo a ONU) de Bria.
    (Foto: Rui Araújo)

    — Os grupos armados estão associados ao crime, à extorsão, aos raptos, roubo, violações. Fala-se de coisas verdadeiramente sombrias… É tudo mentira?

    — Senhor jornalista, tudo isso são mentiras. Quem diz isso são as pessoas que não gostam dos grupos armados e fazem relatórios falsos. 

    É mentira. Com quem me fui meter? Sondei o general com mais uma pergunta.

    — A FPRC tem meninos soldados?

    — Libertámos todos os que tínhamos. Já não há mais nenhum!

    Não quis saber. Fui-me embora.

    O comerciante Mahamat Zène Abrass foi assassinado pelos bandidos de Wagner.
    (Foto: Movimento Rebelde)

    19 de Abril de 2021.

    A mensagem de Hassan, um jovem  “peul” que conheci no mato há uns anos, é terminante: “Os russos chegaram ao PK7 (ndr: quilómetro 7 antes da cidade) de Bria: Pensamos que eles vão entrar esta noite. Estamos cheios de medo. Muitos querem fugir para o mato e levar as famílias.”

    De facto, segundo um relatório militar da MINUSCA (ONU) a que revista LUZES teve acesso, “12 veículos, incluindo seis blindados russos”, oriundos de Ippy entraram nesse dia em Bria. 

    “O comboio ocupa duas posições: BASE MINE no centro de Bria e BASE GARAGE na periferia de Bornou (eixo PK3 – OUADDA).”

    A avaliação U2 (elaborada pelo responsável da secreta da MINUSCA) em Bria é a seguinte: a missão dos russos e das Forças Armadas da República Centro-Africana (FACA) é “um reconhecimento ofensivo nos eixos BRIA-IPPY e BRIA-YALINGA” onde os rebeldes muçulmanos da UPC e da FPRC “estão particularmente activos”.

    Mercenários do grupo Wagner no interior da RCA. (Foto: Serviço secreto ocidental)

    “BRIA é uma cidade estratégica para a CPC” (La Coalition des patriotes pour le changement), uma aliança de seis grupos armados que controlam os dois terços do país), cujo objectivo confesso é derrubar o presidente Touadéra.

    As operações de CORDON e SEARCH por parte das forças bilaterais sucedem-se nos dias seguintes.

    A 2 de Maio, Hassan envia-me outra mensagem sobre os mercenários russos. 

    “Em Zako, eles pediram ao senhor presidente da câmara para registar as pessoas com idades entre os 25 e os 45 anos. Dão-lhes 500 francos (ndr: 500 francos CFA correspondem a 0,76 €) e uma lata de sardinhas por dia para lavarem o cascalho. As que andavam à cata dos diamantes fugiram…”

    “URGENTE URGENTE! Os mercenários russos também mataram, ontem, em Kaga-Bandoro o influente comerciante árabe Mahamat Zène Abrass, mais conhecido por 11-11. O corpo foi descoberto hoje. Foi raptado no mercado. Depois foi levado para a base dos russos. Foi torturado com selvajaria e a seguir cortado aos pedaços antes de ser decapitado e queimado. Uma morte atroz e abominável. O povo descobriu ao lado de 11-11 um outro corpo sem vida. A cidade de Kaga-Bandoro está a transformar-se numa cidade fantasma. Os mercenários russos estão a transformar a RCA noutra Ucrânia…”

    Mais um crime sem castigo dos pulhas do grupo Wagner.
    (Documento classificado da ONU)

    A Federação Russa aumentou as operações com as firmas tecnicamente ilegais de mercenários (ChVK’s) a partir de 2014. As principais firmas são a MSGroup, a RSB, a MAP, a CENTRE R, a ATK Group, a SLAV CORPS, a ENOT, a COSSACKS e a PMC WAGNER, que está presente, designadamente, nos teatros de operações da Ucrânia, Síria e República Centro-Africana.

    A “exportação” de mercenários (ex-operacionais das Forças Especiais e do serviço militar de intelligence GRU) permite à Rússia criar condições favoráveis para os negócios de armamento e a exploração dos recursos naturais.

    O grupo de mercenários mais proeminente é o da firma Wagner (fundada em 2013 por Dimitri Utkine, um neonazi que tinha a patente de tenente-coronel no GRU).Especialidades: fomentar a exploração ou o saque dos recursos naturais, propagandear as teses de Putin, divulgar fake news, desinformar as opiniões públicas, raptar e matar com total impunidade…

    Mercenários do grupo Wagner (ao serviço de Moscovo) numa bomba de gasolina.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    Os operacionais (“contractors”) da Wagner são acusados de “matar crianças, violar e torturar mulheres como animais e de executar homens nas mesquitas”. 

    A demissão das consciências chegou a Nova Iorque e a Bangui. A ONU fecha-se em copas. Há mesmo quem questione o peculiar “pacto de silêncio” celebrado entre a MINUSCA e os mercenários russos…

    De acordo com o Instituto Francês das Relações Internacionais, “a única investigação realizada até hoje pela MINUSCA sobre as violências cometidas pelos russos diz respeito a um centro-africano que foi torturado em Bambari em 2019.”

    No início desse ano, ainda segundo o IFRI,“a operação militar contra a CPC teria provocado numerosas vítimas civis, nomeadamente numa mesquita de Bambari em Fevereiro desse ano, mas a MINUSCA optou pelo silêncio.”

    A MINUSCA é a ONU. Está tudo dito… (Foto: Rui Araújo)

    O imã Hamat Hamadi da mesquita Central de Bambari é um homem moderado, inteligente e particularmente bem informado. Já nos conhecemos pessoalmente há vários anos. Peço-lhe para me contar.

    — Foi a 15 de Fevereiro às 13 horas no exterior da mesquita Al Takwa, no bairro Carrefour, aqui em Bambari. Uma coluna de homens da Seleka (grupos armados muçulmanos), dirigida pelo General Amadou Boungou da UPC apareceu diante dos russos e dos soldados das FACA.

    Perante a força de ataque de estas forças, os rebeldes recuaram e penetraram na mesquita. Havia nessa altura muitos fiéis no interior.

    Quando os grupos armados fugiram, algumas pessoas tentaram escapar, e os russos e as FACA apareceram. Pensaram que eram rebeldes e dispararam na sua direcção.

    Confirmo a morte de três civis na mesquita. O balanço é de 18 mortos, sobretudo rebeldes. Uma mulher morreu. Levou com uma bala perdida. A vítima mais jovem tinha 20 anos…

    Escuto o religioso. A desgraça não tem nome. É toda a gente ou quase que é culpada…

    — Combater nas zonas habitadas é o modus operandi dos homens armados. É uma maneira de transformar civis em escudos humanos…

    Adiante. O relato da imprensa local não deixa margem para dúvidas: “Os mercenários não queriam saber quem era rebelde e quem era civil: Eles queriam era matar, declarou uma testemunha ocular. Os mercenários teriam executado três jovens no interior da mesquita e outros 15 terão sido abatidos no decorrer do ataque à mesquita, incluindo crianças e velhos.”

    Acampamento e camião dos mercenários de Wagner no interior da RCA.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    A Amnistia Internacional denunciou os crimes, mas a MINUSCA fez ouvidos de mercador…

    Os jornalistas russos Orhan Djemal, Alexandre Rastorguev e Kirill Radchenko, que estavam a fazer um documentário sobre as actividades do grupo Wagner na RCA, foram misteriosamente assassinados perto de Sibut em 2018. Teriam sido eliminados pelos mercenários ou pelos seus capangas locais. A investigação da MINUSCA é, aparentemente, inconclusiva…

    A demissão das consciências é real.

    Em Nova Iorque, o Conselho de Segurança da ONU modificou o mandato da MINUSCA. 

    O parágrafo sobre a “exploração ilícita e o tráfico de recursos naturais” da resolução votada em 2017, desapareceu, entretanto, na que foi adoptada a 13 de Dezembro de 2018.

    Um país imensamente rico sem infra-estruturas. (Foto: Rui Araújo)

    É a luz verde para a rapina organizada do país.

    Doravante, a MINUSCA deixou de ter legitimidade ou competência para atacar as redes de traficantes e impedir o rapinanço dos diamantes, ouro, urânio e de todos os outros recursos naturais do país…

    Pelo menos 2.500.000 habitantes (mais de metade da população da RCA) continuam a precisar de ajuda humanitária. 100.000 civis refugiaram-se desde o último processo eleitoral no interior e na capital enquanto que mais 60.000 procuraram abrigo nos países vizinhos. 

    O regime de Moscovo oferece armas e munições (desde 2018), treina e apoia as operações das Forças Armadas (FACA), propõe medidas políticas, garante a protecção do presidente Touadéra, e desenvolve ainda tarefas supostamente humanitárias (com comboios de camiões blindados provenientes do Sudão que ninguém controla ou com hospitais como o de Bria, que não tinha médicos nem enfermeiros).

    A influência da Rússia não pára de aumentar na República Centro-Africana desde, pelo menos, 2017. À medida dos crimes dos 1.700 mercenários da Wagner (1), a parceira privada do governo de Bangui, que estariam a ser investigados pela MINUSCA.

    A França, antiga potência colonial, não consegue travar o avanço da Rússia. O último episódio da rivalidade entre os dois países ocorreu a 10 de Maio de 2021 quando a unidade especial da Polícia centro-africana OCRB deteve o ex-pára-quedista francês Juan Rémy Quignolot, 55 anos por posse de armas de guerra, em Bangui.

    O russo Valery Zakharov, ex-agente do FSB e actual conselheiro nacional de segurança do presidente Touadéra, deu a notícia num tweet: “Um cidadão estrangeiro foi detido em Bangui com uma enorme quantidade de armas e de munições”.

    Os soldados das FACA começam a estar fartos de Wagner…. (Foto: Rui Araujo)

    Quignolot é apresentado na RCA como um bandido ou um mercenário.

    O governo de Paris denunciou, entretanto, a “manifesta instrumentalização de esta detenção” numa terra que já foi o seu “pré carré”…

    Nas redes sociais circularam algumas imagens do ex-militar com o general Ali Darassa, responsável da UPC. Tentei falar com ele, porquanto já o entrevistei em anos diferentes no quartel-general da UPC (Bokolobo), mas o líder rebelde encontra-se no mato. As minhas perguntas foram, portanto, enviadas por um canal mais moroso…

    Juan Rémy Quignolot é “malgré lui” uma vítima da guerra suja dos russos na RCA.
    (Foto: Captura de ecrã)

    Seja como for, as recentes acusações onusianas de “graves violações dos direitos humanos”  cometidas pelos mercenários da Wagner e as tropas centro-africanas não impedem as autoridades de Bangui de louvar a cooperação com Moscovo.

    “Falam-nos do grupo Wagner, mas o governo centro-africano não assinou nada com um grupo Wagner, nem com nenhum outro. O governo celebrou um acordo com outro governo, o da Rússia, com instrumentos que ela considerou úteis, pôs à nossa disposição instrutores, armas e coisa e tal”, afirmou Ange-Maxime Kazagui, ministro da Comunicação e porta-voz do governo, ao canal TV5 Monde.

    É dia de mercado e dia do Senhor. Entro no campo de deslocados PK 3. É o maior do país. Com as abominações da guerra mais de 90.000 cristãos e animistas procuraram refúgio neste monte desolado. Soa um sino. É a hora da missa.

    A detenção em Bangui do ex-paraquedista foi anunciada por um oficial russo…
    (Foto: Captura de ecrã)

    Redentora ou nem por isso, pouco importa.Cada um traz o seu banco ou cadeira. A igreja da paróquia de São Luís de Bria fica ali ao lado. Alguns, poucos, aparecem de traje domingueiro. O que conta, agora, é a santa oração… a partilha da desgraça e da angústia, mas sobretudo da esperança. A celebração é efectuada dentro e fora do barracão. É o que há para tantas almas.

    O calor é tanto que já nem se presta atenção. Ninguém arreda pé. Penitência e fé andam de mãos dadas… Os pobres dão uma nota ou uma moeda. Os que podem. A seguir, é o momento crucial da comunhão. Da salvação sem glória. Fim da liturgia. Meto conversa com o abade Bruno Kongbo. Os putos brincam à guerra…

    — Estas crianças terão um futuro se esta guerra acabar. Mas no preciso momento em que lhe falo, nem as escolas funcionam sequer. E há muitas crianças neste campo. Chega a haver 400 alunos numa sala de aulas…

    Wagner é sinónimo de terror e de impunidade na RCA. (Foto: Movimento Rebelde)

    —  Não há água potável… — insinuo, acanhado, fazendo de jornalista.

    —  Não há água potável nem centro de saúde. A comida… A escola. Tudo deixou de funcionar…

    —  Foi a guerra que os levou a refugiarem-se, aqui, neste lugar. Se olhar para eles, se os vir, pode sentir o que estão a viver nos confins do seu corpo e nos confins da sua alma e do seu espírito também. Olhe, olhe, olhe…

    É impossível arrepiar caminho sem olhar primeiro. Imaginar a desgraça é sempre pior do que vê-la… quem o diria… Calcorreio as veredas. A banca do merceeiro. O carregador de telemóveis… A latrina ao ar livre (já que não há esgoto). A roupa a secar… e o céu. O Céu que, aqui, fica longe.

    Na penumbra um homem tenta esconjurar o sofrimento ou perdeu mesmo a razão. Uma vida amortalhada, mais uma. Mais adiante, um recém-nascido deixa correr as horas, que, aqui, já ninguém mede…

    Saio atordoado.

    A vida continua… (Foto: Rui Araújo)

    As tréguas com Deus raramente deixam um sabor tão amargo na boca…

    Fora do PK 3, do outro lado do caminho, está o atelier de costura dos ex-combatentes anti-Balaka – o nome que dão às milícias cristãs. Anti-Balaka quer dizer em sango, uma das duas línguas do país, “anti-catana” ou “anti-balas de AK-47”.

    Aqui há gente que não consegue pedir esmola e recusa o absurdo. 

    (1) Oficialmente há apenas 535 mercenários da Wagner no país. Uma parte deles garante a segurança do presidente Touadéra.


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  • Repórter em guerra

    Repórter em guerra


    Nota aos leitores

    É uma honra ter os meus textos publicados no PÁGINA UM, um jornal livre e independente (depende exclusivamente das doações dos seus leitores!), que sai fora da casca e tenta dar notícias e promover a verdade dos factos e, do mesmo modo, uma cultura de cidadania (considera a Informação um serviço e não uma mera mercadoria) ao invés do que defende a quase totalidade da “comunicação social” pacóvia cá da praça com a cumplicidade dos poderes que nos desgovernam.

    O PÁGINA UM é, portanto, um projecto ambicioso, fascinante e particularmente importante nos tempos que correm porquanto a Informação (livre, crítica, acessível e responsável) está a ser ameaçada pelos mercadores de vento ou de coisa alguma dos grandes grupos económicos, religiosos, políticos (incluindo wokistas, ecologistas radicais, etc.) cujos “produtos” tendem a monopolizar a produção e a difusão de notícias e a ocupar o espaço público.

    As redes sociais são outra praga com a qual estamos, hoje, confrontados: contribuem para o fim do Jornalismo já que nos impedem de dissociar o real do artefacto ou daquilo que é falso ou simples propaganda.

    A Inteligência Artificial já produz, por outro lado, artigos (textos, imagens e sons) cuja veracidade dos “factos” é impossível verificar. O mesmo sucede com os rumores que se propagam e proliferam rapidamente e de maneira incontrolável, com ou sem fake news — como escreve Jacques Attali na sua recente obra (não publicada cá) “Histoires des Médias: Des signaux de fumée aux réseaux sociaux, et après”.

    O meu velho amigo Alfonso Armada, escritor, poeta e grande repórter (El País, ABC, Frontera D, etc.), vai ainda mais longe: “no espectáculo das notícias a mercadoria somos nós.”

    No fim de contas, aquilo que está, aqui, essencialmente em causa é a preservação da própria Democracia. E sem Jornalismo digno desse nome não há Democracia que valha!

    Seria desnecessário eu mencionar as outras razões que me animam, mas não resisto…

    O grande repórter e escritor Ryszard Kapuściński considerava (?) que “os cínicos não servem para esta profissão” (“Los cínicos no sirven para este oficio – Sobre el buen periodismo”, livro também não publicado em Portugal).

    Para o mestre polaco do “jornalismo literário” (autor, aliás, de um livro sobre o período que antecede a independência de Angola, em 1975, publicado em Portugal pela Tinta da China) “o verdadeiro jornalismo é intencional, a saber: aquele que se fixa um objectivo e que tenta provocar algum tipo de mudança. Não há outro jornalismo possível. Falo, obviamente, do bom jornalismo.”

    Parece-me que o jornal PÁGINA UM procura isso mesmo: a mudança, questionando por isso os abusos de poder, a corrupção generalizada (que só gera mais miséria e pobreza!), a impunidade que a caracteriza desde sempre, mais a promiscuidade e o conluio entre os grupos de comunicação social (“comunicação” quê?), os governos e as grandes empresas, etc.

    E o seu fundador e director Pedro Almeida Vieira é um homem honesto e corajoso.

    É quanto me basta para ceder ao PÁGINA UM alguns artigos sobre as andanças por esses mundos fora.

    Histórias de gente, sempre e ainda de gente. Histórias de guerras esquecidas ou nem por isso, os combates e a coragem silenciosa dos outros. Dos anónimos. Ou tão somente da vida que corre, aqui, mesmo ao nosso lado ou nos confins do mundo. Estórias de sofrimento, de alegria e da morte, que acaba irremediavelmente por dar sentido à nossa existência.

    Aquilo que proponho são algumas reportagens que efectuei durante os últimos 40 e muitos anos em Portugal e nos quatro cantos do Mundo (como Timor, EUA, Zaire, Bósnia, Ruanda, Colômbia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, Espanha, …). E a Sul de parte alguma, num dos derradeiros espaços de liberdade do planeta: o mar.

    O resto é conversa, que não diz respeito a mais ninguém…

    Rui Araújo


    No dia do segundo aniversário do PÁGINA UM, começamos a publicar os ‘Cadernos dos Mundos’, uma selecção de dezenas de reportagens, de grandes reportagens (grandes) do jornalista Rui Araújo. Não há palavras para quantificar a honra que recebemos pela permissão do Rui Araújo em ‘ceder’ os seus trabalhos de grande e corajoso jornalismo que realizou ao longo da sua vida profissional na RTP, na Grande Reportagem, na TVI e em muitos órgãos de comunicação social internacional. Rui Araújo é uma referência de ousadia, de irreverência, de rigor (em todos os aspectos) e de verticalidade. É também um leitor atento e crítico do jornalismo, por isso fez um trabalho incómodo como Provedor do Leitor no Público. Mais do que a publicação dos seus textos, as suas palavras introdutórias aos ‘Cadernos dos Mundos’ constituem um incentivo e uma confirmação do bom caminho do PÁGINA UM. Mesmo que tenhamos um Almirante a gastar dinheiro dos contribuintes para me processar por ter escrito verdades incómodas.

    Pedro Almeida Vieira


    Ilha de Kos, Grécia, um dia destes. No quarto bafiento do hotel em ruínas, Marsal, acocorada junto da porta, abana mansamente a cabeça e fita-me. Tem olhos negros, buliçosos, quiçá enigmáticos, e ao mesmo tempo selvagens.

    — Estamos a gravar… — profere Rui Pereira, o meu companheiro.

    Um silêncio ponderoso apodera-se do cubículo. Faço sinal à moça para começar a contar.

    — Eles mataram a minha avó e o meu avô. E queriam matar-nos. Aí, decidimos vir para a Europa para termos uma vida boa e segurança.

    — E agora? — questiono.

    Marsal (Foto: Rui Pereira)

    A rapariga de dezoito anos sorri-me. Um sorriso bonacheirão, salpicado de afoiteza. E esfrega as mãos.

    — Como é que imagina a sua vida, amanhã?

    — Quero estudar Medicina. Quero ser médica para poder ajudar os outros, aqueles que sofrem e não têm nada. Médica…

    Apetece-me dizer “Inch’Allah”, mas quedo-me calado. Uma sineta rachada soa ao longe. Lá fora, a terra arde. Marsal Ziaee agarra-se ao seu sonho com o desespero da esperança, e dá-lhe corpo. Há doze dias, ela, o pai, a mãe e seis irmãos apanharam uma lancha em Bodrum para chegar aqui. Pagaram oito mil dólares ao passador da máfia turca por meia dúzia de milhas e outras tantas horas de navegação. Cabul pertence irremediavelmente ao passado e o tempo para esta gente do “cemitério dos impérios” ganha outra dimensão.

    Hoje, a família vegeta no Captain Elias, um hotel abandonado (longe do centro de Kos e dos olhares dos turistas), sem electricidade, sem água potável, sem portas e janelas, sem apoios. Só os Médicos Sem Fronteiras e os voluntários gregos de Kos Solidarity se dignam aparecer, uns para tratarem do corpo e da alma, os outros para darem sandes, única refeição a que têm direito por dia. Como eles há, aqui, mais quatro ou cinco centenas de refugiados, afegãos, iraquianos, somálios, eritreus, náufragos de uma tragédia humana que nos ultrapassa. Todos esperam o salvo-conduto que lhes permitirá entrar na Alemanha.

    Entrada LIBIA livre (Foto: Rui Araújo)

    As lágrimas e as imprecações de pouco ou nada valem agora. A Europa da solidariedade é um mito. A islamofobia alastra pelo continente há mais de duas décadas. A política externa europeia para o mundo árabe foi indexada à de Washington em nome do pragmatismo, da conivência e da exportação da democracia (como se de uma mera mercadoria se tratasse) ou mais prosaicamente de interesses inconfessados. Puseram a ferro e fogo o Próximo e o Médio Oriente: Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. E aquilo que está a suceder, hoje, é, em parte, a consequência directa do seguidismo face ao “polícia do mundo” e da falência dos princípios éticos, se alguma vez os houve.

    As imagens e os relatos dos refugiados (ou dos migrantes, porque a semântica é incómoda) atordoaram e atordoam muitas consciências. Nem a mim, que pensava estar vacinado – passei pelos conflitos de Timor, durante a ocupação indonésia, do Zaire (actual República Democrática do Congo), de Moçambique, da Bósnia, do Ruanda e da Líbia – me deixaram indiferente. O sofrimento não pode ser reduzido a palavras.

    Esfaqueados e esquartejados

    Foi ontem. Só dei por ele tarde e a más horas. A camisa branca, vermelha de sangue, destoava naquele cenário. Estaquei o jipe. O miúdo negro sentado na terra ocre do caminho, encostado a uma parede sem cor, pregou os olhos nos meus.

    — Ajude-me! — implorou em francês, enquanto “abria os braços no grande gesto das coisas que brilham e se apagam”, como diria Miguel Torga.

    Libia check point (Foto: Rui Araújo)

    Espreitei pelo retrovisor quantos carros parados havia. Cinco. A imobilidade naquela posição significava a morte. A vulnerabilidade da coluna era total. Para eu salvar um, podiam perder a vida os quinze ou vinte que iam atrás de mim. Encolhi os ombros, resignado, e arranquei com presteza. Condenei o rapaz. E, do mesmo modo, condenei-me a mim próprio. Aqueles malditos segundos perseguem-me há mais de duas décadas. Para mal dos meus pecados…

    É ontem. 12 de Abril de 1994. Kigali. Ruanda.

    Era noite cerrada quando o C-130 das tropas especiais belgas que me deram boleia aterrou no aeroporto Grégoire Kayibanda.

    — Está toda a gente a fugir deste inferno. O que vêm para cá fazer?

    Meditei na pergunta e expliquei-lhe, com algum menosprezo, que tinha razão, mas não éramos turistas.

    — Devem estar loucos! — tornou o sujeito, cada vez mais histérico.

    — So-mos jor-na-lis-tas! — respondeu Alfonso Armada, grande repórter do El País, saindo subitamente do seu mutismo.

    Tanque na Líbia (Foto: Rui Araújo)

    O responsável branco das evacuações, compadecido, desatou a correr, desenfreadamente, pela placa do aeroporto fora, destino a parte alguma.

    Era, de facto, o pior momento para se estar ali. Cinco dias antes, dez pára-comandos (integrados no contingente MINUAR da ONU, chefiado pelo general Roméo Dallaire, com a missão de proteger a primeira-ministra moderada Agathe Uwilingiyimana[1]), tinham sido executados por elementos das Forças Armadas Ruandesas (FAR) a pretexto de os belgas terem abatido na véspera o bireactor Mystère Falcon do presidente do Ruanda, Juvénal Habyarimana, durante a aproximação à pista.

    Os capacetes azuis belgas foram capturados diante da residência da primeira-ministra. Seguidamente, viram-se conduzidos para o Campo Kigali. Seis foram esfaqueados e esquartejados. Os outros, comandados pelo Tenente Lotin, resistiram algumas horas. Às três da tarde, uma granada rebentou com eles. Ironicamente, foi o centro de decisão da MINUAR situado a escassas centenas de metros, que os desarmou… psicologicamente. A indecisão, a irresponsabilidade do comando poderão explicar o massacre…

    Destroços na Líbia (foto: Rui Araújo)

    Os sacos de plástico que eu tinha visto ao lado de um C-5 norte-americano, no aeroporto de Nairóbi, eram os dos corpos deles. Quando os foram buscar à morgue encontraram-nos uns em cima dos outros, nús e despojados de tudo.

    No dia 7 de Abril, mal o Sol rompeu, dois mil homens das unidades de elite das FAR, apoiados por dois mil elementos das milícias, iniciaram a “limpeza” dos Tutsi e dos Hutu moderados, de acordo com listas previamente elaboradas.

    A 21, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu reduzir a presença da MINUAR no país. O contingente passou de 2.500 para 250 homens.

    Passados nove dias, a ONU debateu a crise ruandesa durante oito horas. A resolução a condenar os massacres omitiu o termo “genocídio”, o que teria implicado uma intervenção.

    No epicentro da chacina

    As rajadas tracejantes iluminavam a noite. De repente, surgiram diante do edifício principal da aerogare camiões e pick-ups carregados de miúdos. Eram uns 50, sobretudo órfãos. Feridos, incapacitados, perdidos numa guerra que não entendiam…

    A violência alastrava à medida dos ódios e do sentimento de impunidade. Era fartar vilanagem: mulheres violadas, mutiladas, bebés atirados ao ar e decepados à catanada, homens enterrados vivos. Únicos crimes confessos: pertencerem à etnia errada ou serem moderados. No espaço de 100 dias 75% da população Tutsi desapareceu do mapa. Feitas as contas, perderam a vida, pelo menos, umas 800.000 pessoas.

    Guerrilheiros e soldados no Ruanda. (Imagem: RTP)

    Quando o Hércules C-130 com as crianças descolou de Kigali, dei de caras com uma figura anacrónica naquele caos: um tipo, sentado no chão, lia um livro à luz de um cubo para aquecer rações. Confiei-lhe a mochila e o equipamento.

    As tropas das FAR ocupavam o aeroporto e parte da capital. Os rebeldes da FPR cercavam-nos. E estavam a ganhar a guerra. O tiroteio prosseguiu, interrompido apenas por gritos ocasionais de crianças feridas. Um militar abeirou-se e meteu conversa comigo.

    — É tarde. Porque é que não vai dormir?

    Eu não podia.

    — Qual é exactamente o ponto da situação, aqui, capitão? — perguntei.

    — Complicado. Temos um golpe de Estado para colocar no poder uma facção política radical e acabar com o processo de paz e de transição para a democracia, mas…

    Ninguém impedia aquele jogo de massacre. No átrio do aeroporto, o tema das conversas era o mesmo. As operações da ONU para salvar o mais importante — as vidas e os princípios — eram uma autêntica fraude. Qualquer semelhança com a actual postura dúbia da Europa é, obviamente, uma coincidência…

    Por volta da meia-noite, um coronel carrancudo convocou-nos para uma reunião.

    — Ponto um…

    Puxámos imediatamente dos blocos (que era o que havia naquela altura) e gatafunhámos: 12 jornalistas autorizados a integrar a última missão atribuída às tropas especiais belgas ou, por outras palavras, autorizados a reportar a evacuação de um grupo de freiras “perdidas” no interior do país. A partida da coluna estava prevista, impreterivelmente, para o nascer do Sol.

    — Ponto dois…

    Alfonso Armada, enviado especial do jornal madrileno EL PAÍS. (Foto: RTP)

    Pediu-nos a lista dos 12 eleitos. Éramos 23; 23 loucos, dispostos a perder a vida a troco de nada para contar a guerra; 23 viciados em adrenalina e no resto; 23 tipos perdidos naquele inferno à procura de uma verdade, porque ali não dava para mentir.

    Decidimos sortear a invejável viagem com palhinhas: quatro lugares para a imprensa escrita, quatro para a rádio e outros tantos para a televisão e para os fotógrafos.

    — Simone Reumont, RTBF. Alfonso Armada, El País…

    Eu sorri com o embuste. Como o nome do meu companheiro galego saiu na rifa iam ter de abrir jogo.

    — Não pode ser! Ele não é belga. Isto é uma operação militar da Bélgica só para jornalistas belgas! — rosnou um jornalista necessariamente belga.

    — É uma operação belga! — reforçou o coronel.

    Toda a gente — ou quase — concordou. Era de esperar. Encolhi os ombros e provoquei:

    — Pensava que aqui só havia jornalistas, mas, pelos vistos, enganei-me. O jornalismo com bandeira é que conta. E como isto é uma farsa, não vale a pena perdermos mais tempo com fingimentos…

    — Eu passo-te as minhas imagens, não há problema — disse-me, apaziguadora, Simone Reumont, da RTBF, a televisão pública francófona de Bruxelas.

    Puxei do cigarro, calma e profundamente, e reprimi um suspiro. Tinha sido confrontado com cenas idênticas noutros teatros de guerra, mas teimava em continuar a indignar-me. Longe dos grandes “circos mediáticos” e sem tecnologia, só me restava acreditar na sorte e improvisar…

    Inseri dois tampões nos ouvidos (por causa do ruído do tiroteio), assentei praça no alcatrão tépido e adormeci. O cameraman despertou-me pouco depois.

    — Como é que consegues dormir no meio dos tiros?

    — Dormir é preciso. É como navegar… — ironizei.

    O grupo dos jornalistas embandeirados abalou às seis. Alfonso Armada arranjou boleia dos militares italianos. A meio da manhã, foi constituída uma coluna que não estava prevista no programa.

    Rui Araújo no Ruanda. (Imagem: RTP)

    — Qual é a missão?

    — É preciso resgatar três gajos no centro de Kigali! — respondeu-me o oficial.

    O tipo devia estar a brincar. A cidade estava a ferro e fogo, era o epicentro da chacina. Guerrilheiros e tropas governamentais disputavam troço a troço, rua a rua, prédio a prédio, apartamento a apartamento…

    — Não tenho lugar para si. Se arranjar carro, pode acompanhar-nos! Não tem medo da morte? — indagou em tom de desafio.

    — Tenho, mas preciso de uma reportagem. Televisão é imagem. Dê-me cinco minutos — retorqui.

    Larguei a correr em direcção ao parque, repleto de carros abandonados. Dei com uma carrinha Volkswagen. Pedi a um soldado para rebentar um vidro com a coronha da espingarda automática. À falta de chave, optei pela ligação possível, a directa, mas a carripana deu um solavanco e foi-se abaixo: faltava gasóleo. E o tempo corria. Aproximei-me de um jipe branco novinho em folha. Bingo. Depósito cheio. Pedi ao solícito militar para partir o vidro do pendura para o cameraman poder filmar.

    A procissão lá partiu — depois de eu dar boleia a outras seis “sentinelas do desastre” que, como eu, tinham ficado apeadas. Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) e Vincent Dudant (freelance) sorriram, irónicos.

    No caminho, ziguezagueámos entre troncos, pedregulhos e mortos. Tropas governamentais e rebeldes disputam o troço, restam ainda alguns corpos na estrada de adolescentes abatidos à catanada, corpos despedaçados.

    Avistámos o cadáver de uma menina prostrada na picada. Depois, evitámos um homem esquartejado — os cães famintos começam sempre pelas pernas.

    No domicílio do diplomata egípcio que procurávamos não vislumbrámos vivalma. A primeira emboscada ocorreu instantes depois: rajadas de AK-47. Eles não estavam longe. A coluna parou. Por um longo, estúpido momento, fiquei petrificado. Abri a porta, atirei-me ao chão e rastejei para o outro lado. Os soldados belgas responderam de imediato ao fogo inimigo. O meu cameraman não estava a filmar.

    — Então? Não gravas imagens? — questionei.

    — Nunca estive numa guerra!

    Era uma desculpa de mau pagador. Ou talvez não. Eu também tinha medo, felizmente, mas tentava controlar as emoções. Deitei a mão ao bolso, saquei de um cigarro, mas não encontrei o meu Zippo de estimação. O isqueiro estava diante da minha porta, do outro lado do jipe. Fui recuperá-lo. Enfiei um Peter nos lábios. Instantes depois, passou uma coluna da UNAMIR com tropas africanas e a saraivada cessou. Ao fim daquele interminável quarto de hora retomámos a marcha forçada.

    Mal chegámos ao hotel Méridien, onde se encontravam alguns capacetes azuis, sofremos o segundo ataque da manhã: morteirada com fartura, incluindo no jardim. Decididamente, preferia o som das Kalashnikov ou, em alternativa, o tac-tac-tac das “costureirinhas”. Arrancámos em direcção ao estádio de triste sina: campo de detenção e extermínio – ali como na América Latina…

    Como o recinto estava cercado não parámos. Mais adiante sofremos nova emboscada. Os atacantes usavam espingardas automáticas. A estrupada de 7.62 tinha um som especial? Era urgente optar por outro percurso. Metemos por um troço de terra batida. Foi aí que dei de caras com o miúdo ferido.

    No aeroporto encontrei Alfonso Armada. Tinha uma reportagem do arco-da-velha.

    — Foi fascinante, mas muito triste — confidenciou-me em galego-português.

    Alfonso sacou um “scoop” de triste memória. Fora o único repórter a conseguir entrar em Musha. 1.180 aldeões massacrados só porque eram da etnia errada, Tutsi. Decidi entrevistar o pároco Litric Danko, um dos raros sobreviventes.

    — Eram seis e meia da manhã quando começaram a matar toda a gente com granadas de mão, espingardas, forquilhas e catanas. No dia seguinte fui à igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: “Padre, Padre, Padre…” O que é que eu podia fazer? — narrou.

    — De onde é?

    — Sérvia. Sérvia…

    Padre Litric Danko (imagem: RTP)

    Outra tragédia que eu conhecia bem. 45 dias de reportagem na Bósnia, Sérvia e Croácia, mais uma guerra igual às demais.

    Naquele dia, em Kigali, em vez de ficar-me pelas lamúrias patéticas e a indignação bem pensante, pedi uma arma para matar. Acabei por regressar sem ter dado cabo de ninguém, nem sequer do Diabo dentro de mim. Tento escapar aos pesadelos. Jurei que nunca mais faria reportagens de guerra. Promessa ou intenção inútil. Desde então, estive noutras. Pensava que pior que o Ruanda era impossível, mas cheguei à conclusão — veja-se o que está a acontecer hoje na Europa com os refugiados — que os conflitos são todos iguais. E as vítimas também…

    N.D. Esta reportagem foi publicada originalmente na revista mensal espanhola Luzes, em Dezembro de 2015.

  • Síria – O outro lado da guerra

    Síria – O outro lado da guerra


    Os repórteres Rui Araújo e Tiago Ferreira percorreram durante três semanas a Síria de Sul a Norte: Damasco, Qarah, Maalula, Homs, al-Salamiyah, Ithriya, Khanasir, al-Safirah, al-Nayrab e Alepo.

    Este diário inútil é o outro lado de uma reportagem sobre a guerra para a cadeia de televisão TVI (PRISA), que narra as desventuras do jornalista em busca da verdade e da adrenalina. E… do esquecimento.


    13 de Novembro de 2016

    Aterramos em Beirute a meio da tarde. Ponho-me a pensar em futilidades: nas minhas guerras e nas  palavras de Miguel Torga a propósito de uma outra cidade, Lisboa. “É uma dor de alma ver uma terra bonita como esta a servir de cenário a tanta coisa feia.” Constatação que podia ser aplicada à capital libanesa…

    Depois do jantar, Tiago, o meu parceiro, e eu damos um passeio pela cidade. Passamos ao lado de um edifício imponente com um domo azul: a mesquita Mohammad al-Amin, associada à Arábia Saudita e, sobretudo, a Rafik al-Hariri, o primeiro-ministro sunita assassinado em 2005. O seu filho, Saad, vendeu a alma ao diabo. Fez um pacto com os assassinos do pai. É o novo chefe do governo.

    (Foto: Rui Araújo)

    14 de Novembro

    Cedo pela manhã, recuperamos no aeroporto as malas extraviadas e partimos para a esplanada do Pain d’Or, local do encontro com o “motorista de confiança” que deve conduzir-nos a Damasco.

    Hora marcada: 10:15. Aparece um pouco antes das 13. E queixo-me eu da pontualidade ibérica…

    Na fronteira síria, o equipamento é retido manu militari. Um guarda-fiscal particularmente zeloso toma nota das marcas, dos modelos, dos números de série. Lentamente. Muito lentamente. O material apreendido é depositado num local esconso repleto de tralha, mas acabamos por recuperar tudo. Pagamos 260 euros ao condutor. É caro, mas não há alternativa. A ideia é o malão do equipamento regressar a Beirute para depois entrar clandestinamente na Síria.

    Ao fim da tarde, arranjamos transporte para Damasco. Primeira etapa: Cidade Velha. São horas de almoçar e de jantar ao mesmo tempo. Percorremos as ruelas (sem luz ou quase) a passos lestos, atrás dos nossos cicerones sírios. Estaco. Uma melodia paira no ar. Não dá para perceber se a porta está aberta ou se não há porta.

    Vislumbro na penumbra o busto de um velho debruçado sobre algo que parece ser um vestido. É, portanto, costureiro. E, ao lado dele, estão duas moças, agachadas. Tocam instrumentos orientais de cordas. Fico ali um momento a escutar. Elas fitam-me, sorrindo. Teria ali permanecido o resto da noite. Vim para a guerra expiar não sei muito bem o quê e a paz vem à tona logo no primeiro encontro mais do que improvável…

    (Foto: Rui Araújo)

    Meto ao restaurante, que está praticamente cheio. Na nossa mesa, encontro o motorista e os outros: Tiago mais um militar fardado, um responsável local do Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha local) e a filha, adolescente. E uma civil cujas funções ignoro. Perguntar é denunciar. Não pergunto…

    Eles falam pouco e em árabe. Opto pela deserção. Fico-me a pensar na razão da minha presença aqui. Embrenho-me nos conflitos por onde já passei (Timor, Zaire, Bósnia, Ruanda, Líbia, etc.).

    Logo a seguir ao genocídio do Ruanda, jurei a pés juntos que era a minha última reportagem de guerra. Promessa vã ou intenção baldada. Desde então, corri outras. Os conflitos são todos iguais. E as vítimas também…

    Depois da refeição, partimos com destino à aldeia de Qarah. Hora e meia de caminho pela estrada de Homs e de Alepo. Passamos por vários check points controlados por militares. No de Qarah, somos travados! Turistas acidentais (ou ocidentais, é a mesma coisa) num lugar ermo (a linha da Frente não está longe!) fora de horas é no mínimo estranho… É.

    Acabamos por pernoitar no hotel de um lugarejo a meia dúzia de quilómetros. Faz frio.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    15 de Novembro

    A paisagem é árida. O mosteiro de Santiago, o Mutilado, fica ao fim de um caminho de cabras, à saída de Qarah. Depois do check point e antes dos tanques e da artilharia.

    É aqui que residem um padre, cinco postulantes, dois residentes e oito religiosas, incluindo uma portuguesa.

    Sem material não podemos iniciar a reportagem.

    Tenha paciência… — diz-me John, o seminarista norte-americano.

    Que remédio. O tempo, por estas bandas, tem outra dimensão.

    E o quotidiano desta gente é frugal. A purificação ou a harmonia espiritual, se calhar, passam por isso. Digo eu, que já não acredito em Deus.

    16 de Novembro

    Tiago e eu decidimos oferecer o jantar. Compramos frangos, azeite, batatas, massa, legumes, bebidas. E fruta. À falta de assumir a divindade (como sugerem os Evangelhos!) avoco o estatuto de Chefe. Os meus commis são Tiago e Jean, um jovem frade flamengo. O frango é acompanhado de penne com cebolinho, pimentos e queijo francês (congelado). Fácil. Fácil quando há electricidade ou gás. Coisas que só existem, aqui, com parcimónia…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    À hora do jantar, aparece uma freira. É peremptória. É um telefonema urgente da Superior. O material já se encontra em território sírio, mas não podemos gravar imagens. É preciso falar pessoalmente com o responsável da imprensa estrangeira no Ministério da Informação. Regresso ao refeitório. Encontro o tacho vazio. Mistério divino ou santa fominha. Seja como for, é injusto, mas quem é que disse que a vida tem de ser justa? É, portanto, uma noite para esquecer. A primeira de muitas…

    Dou as boas noites ao grupo e ocupo os meus aposentos: um quarto cheio de lixo e de material das obras sem água e sem isolamento. Enfio-me na cama, vestido. Os quatro cobertores são insuficientes.

    Eu cheguei a usar sete… — confidencia-me na manhã seguinte um seminarista.

    Concluo que o frio é um instrumento do diabo. Que mais?

    17 de Novembro

    Às oito, partimos para Damasco. A freira portuguesa despede-se de mim, comovida. Diz-me que espera encontrar-me na eternidade. Assim seja, mas quanto mais tarde melhor… mesmo se a eternidade é longa de mais para o meu gosto.

    Assentamos arraiais no Ministério. Ao cabo de uma espera interminável, o director da Imprensa estrangeira recebe-nos. A hora é dele. É um tipo arrogante. Só estamos autorizados a visitar o mosteiro de Qarah. É escusado eu insistir. O morticínio fica, pois, para os privilegiados, que têm direito a cicerones pagos e a censores…

    (Foto: Rui Araújo)

    Fico transido. Apresento-lhe o pedido da TVI, que ele desconhece. Foi enviado em Outubro. Pede-me para regressar às três da tarde, depois de ele falar com o ministro. É meio-dia e vinte. Horas de tomar o pequeno-almoço e de almoçar. 

    Encontro com uma deputada sunita. É preciso arranjar maneira de poder trabalhar. Legal ou ilegalmente.

    — Alguém foi dizer ao nosso ministro da Informação que o Rui escreveu artigos a criticar a Síria…

    É mentira. Ela liga de novo ao ministro. O Ministério da Informação vai reestudar o caso. Imprimimos os currículos. 

    Escassos minutos depois, informam-nos que, afinal, temos autorização para trabalhar. Partimos. A prioridade é comer algo. O tráfego na capital é caótico. Com o pára-arranca o motor do jipe aquece excessivamente. Depois de uma paragem para encher o radiador, abancamos no restaurante Haretna da Cidade Velha. É a terceira refeição decente em quatro dias atribulados. 

    Regressamos ao parque de estacionamento. Num botequim da rua Bab Tuma, antes da porta de São Tomé, damos com um velhote a torrar café.

    É de que país? — pergunto.

    Brasil. É o melhor. Querem provar?

    (Foto: Rui Araújo)

    Acedemos de bom grado. É óptimo. Depois, passamos diante de um barbeiro. Optamos por arriscar: barba e cabelo. O escanhoador diz que a primeira vez é grátis. Pagamos na mesma.

    São sete da tarde. É perigoso regressarmos a Qarah de noite. Abu, o nosso solícito motorista, propõe ficarmos na casa da sua mãe. Sugiro um hotel para não ficar devedor de ninguém e, sobretudo, para não devassar a intimidade alheia. É sempre um risco. Ele recusa. E eu dou-me por vencido. O apartamento está situado no bairro cristão de Damasco. Entramos. As duas camas do único quarto livre são para a equipa da televisão.

    O nosso anfitrião dormirá no sofá.

    Mal metemos os telemóveis a carregar, Abu pede-nos para o seguirmos. Os familiares, que moram numa casa das redondezas, prepararam uma ceia para nós. Encontramos uma dezena de pessoas sorridentes e uma mesa repleta de manjares locais. Este povo é generoso apesar ou por causa das dificuldades. O salário médio (para quem ainda tem emprego) não ultrapassa os 40 euros…

    Levanto-me e puxo de um cigarro.

    Pode fumar aqui… — diz alguém.

    Prefiro fumar lá fora. Shukran! — respondo.

    (Foto: Rui Araújo)

    O meu árabe resume-se a duas ou três palavras básicas (saudações, agradecimentos, sou jornalista, é maluco!, etc.).

    Saio para o pátio. O dono da casa, um velhote simpático, apanha ar. Ouvem-se disparos esporádicos de armas ligeiras e rebentamentos de morteiros.

    Os terroristas estão a menos de um quilómetro de aqui… 

    Não comento. A fachada apresenta buracos de bala. Guerra é guerra. E as plantas estão a precisar de água. Instantes depois, ouve-se um impacto de um tiro num carro estacionado mesmo diante de nós. Tiago vai para a rua procurar a bala. Em vão.

    18 de Novembro

    Alvorada às seis. Dormimos quatro horas. Às nove, mal chegamos a Qarah, dizem-nos para prepararmos rapidamente o equipamento. Destino: Alepo, depois de uma paragem a meio do caminho, em Homs, outra cidade mártir. 

    Passamos por inúmeros check points. A meio da manhã, “almoçamos” (sic) num tasco à beira da estrada: uma sandes e uma garrafinha de iogurte azedo. É o que há. A clientela é composta essencialmente por militares, que se deslocam para a Frente Norte.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Às 14:37, estacionamos diante do armazém dos cristãos, em Homs. Encontro três camiões com 32 toneladas de alimentos oferecidos pela comunidade internacional. É a nossa coluna, protegida por dois soldados rasos de AK-47 (a arma padrão do Exército sírio) e granadas defensivas (as mais devastadoras) nos bolsos da frente.

    O primeiro é Mansour. Tem 35 anos, seis de guerra e 10 tiros no corpo. Tem a farda rasgada e calça, como tantos outros militares, ténis. Combateu em Damasco, Alepo, Idilib, Tadmor, Ama… Tiago irá no camião vermelho, juntamente com ele e o motorista Ahmad. Eu, sigo no jipe.

    Ao fim da tarde, estacionamos num terreiro isolado de Al-Waha, uma vila da província de Alepo que os rebeldes ocuparam até Novembro de 2013. Um prédio abandonado, que terá sido hotel antes da guerra, é o local onde devemos pernoitar.

    O soldado Assad protege o local. E protege-nos a nós, os únicos clientes. De quem?

    E jantar? — indago.

    Não há. — responde-me com um sorriso bonacheirão.

    — E café?

    — Não há.

    — Mas podem ficar aqui comigo a ver televisão…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Dá o que tem e a mais não é obrigado…

    Amanhã, a partir das 05:30, podemos gravar imagens da feitura das refeições para os deslocados.

    Dormimos 13 longas horas. Dão, pelo menos, para enganar a barriga…

    19 de Novembro

    É sábado. Faz frio. Despertamos cedo para nada. Afinal, só preparam as refeições amanhã. E a vila está fechada para obras. Procuramos um sítio para tomar o pequeno-almoço.

    Descobrimos uma máquina de café num passeio. Oferecem-nos dois cafés. Regressamos, felizes, ao “hotel” ou quartel ou coisa que valha. A felicidade é sempre algo efémero, mas do mal o menos…

    07:04. Alepo Leste está a meia hora. A guerra, aqui, tão perto. E nós a matarmos o tempo com a televisão. Escutamos a cantora libanesa نهاد وديع حداد ou, por outras palavras, Nouhad Wadie’ Haddad, mais conhecida por Feiruz, que complementa a mira de barras de um canal árabe.

    A meio da manhã, conseguimos arranjar transporte para Alepo.

    Passamos pela estrada da morte. Do lado direito do troço, bidons e autocarros amontoados protegem-nos dos atiradores furtivos. Antes de colocarem as protecções, só se circulava, aqui, a mais de 120 à hora…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Nunca ninguém filmou isto. É proibido! — anuncia-me a acompanhante.

    Ao cabo de anos de guerra, Alepo está parcialmente desfigurada. O ruído rouco e ensurdecedor dos bombardeamentos já não interpela ninguém.

    Estacionamos. O motorista oferece-me o masbaha (“rosário”) com 99 contas, tantas quantos os nomes de Alá, que decora o retrovisor. Digo-lhe que não acredito em Deus.

    — É uma recordação. Também transmite energia positiva…

    Estou a precisar. Saímos do carro. Apesar de ser sábado, os comércios estão abertos. Para matar a fome, compramos sete  bananas sul-americanas.

    Temos de esperar pelo transporte. Na impossibilidade de captar imagens, observo a vida que corre. O dono de um estaminé de tabaco arranja-me uma cadeira. Tenho vista para a “fronteira”, que se resume a uma rua desolada, atulhada de escombros. Um pano enorme estendido de parte a parte tapa a vista. É suposto proteger os do lado de cá dos tiros dos snipers.

    É já noite quando regressamos a al-Waha depois de um lauto jantar. A luz espectral das explosões ilumina o horizonte do lado esquerdo da estrada.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    20 de Novembro

    Tiago e eu madrugamos com as… cozinheiras e um chefe magrito.

    Sorrio cá para comigo ao pensar numas palavras de Aquilino Ribeiro: “Tinha de trazer o cinto bem atarraxado senão escorregavam-lhe os calçotes pela barriga abaixo”.

    Em seis horas aviam com 12 panelas enormes 25.000 refeições previstas para os deslocados de Alepo dispersos por 16 vilas da região. Indago qual é a ementa: arroz, carne (dizem-me que sim…), e ervilhas. Há ainda salada de tomate com couve.

    A seguir, passamos à distribuição dos caixotes de alimentos numa povoação esburacada. Histórias tristes de gente humilde, que não anda de mal com o mundo e ainda não perdeu a esperança (absurda!) de conhecer dias melhores. Não antevejo desenlace para esta guerra nos próximos tempos…

    A seguir, partimos para al-Nayrab (a Leste de Alepo). É lá que está instalado o hospital de campanha, que recebe os feridos da Frente.

    No espaço de uma hora chegam cinco feridos, incluindo crianças.

    Enquanto Tiago grava imagens, deambulo pelo estabelecimento, falo com os médicos e com o general tunisino Adan, que encontrou abrigo na Síria depois de o regime de Ben Ali implodir. O homem é afável e o seu francês excelente. Diz-me que estão a ganhar a guerra apesar da falência do Ocidente. Refere a solidez dos desígnios do Senhor. Apetece-me complementar: e dos russos, e dos iranianos, e dos…, mas calo-me.

    A conversa no cubículo tosco é interrompida pela entrada de um militar. A escolta fica no corredor.

    O coronel palestiniano do Batalhão Jerusalém. Adnan al Sayed é um homem ainda novo. E jovial. Saímos e retomamos a conversa no passeio. Tiago corre na rua com os putos que regressam da escola. É o momento da despedida.

    Somos amigos! — diz-me o meu coronel de estimação.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Fito-o, os meus olhos pregados nos seus, e respondo-lhe, atrevido:

    — Não somos amigos. Tenho, aliás, pouco amigos. E por si não dava a vida…

    É a resposta que ele não espera.

    Leva os dedos em forma de V aos olhos e seguidamente ao coração. É um gesto tradicional para muitos palestinianos.

    — Não me vou esquecer de ti. Estás aqui! E se queres ir para a guerra, eu levo-te.

    A amizade, por estas bandas, é como o tempo. Tem outra dimensão, mas, mesmo assim, decido arriscar, aceitar a proposta. Pego no caderno e escrevo um termo de responsabilidade. “Ninguém é responsável pela nossa morte em combate…” Peço ao Tiago para preparar o pouco equipamento que temos connosco, mas minutos depois somos informados que sem o famigerado papel do Ministério da Informação, não podemos ir.

    O coronel palestiniano dá-me três beijos na face e um abraço. É inútil perder mais tempo por estas paragens. 

    Chegamos a Homs de noite. Enquanto esperamos por duas shawarmas (sandes locais) e dois refrigerantes, consulto as mensagens na Internet. Tenho duas da TVI: uma da Paula e outra do Sérgio. Dormimos em Qarah. Escuto “Imagine” e “Palabras para Julia” (de José Agustín Goytisolo). Mais momentos melancólicos ou penosos do Parque del Buen Retiro ou do raio que me parta. Continuo a defender que o melhor dos outros perdura (muito mais do que o pior) na nossa memória…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    21 de Novembro

    Damasco. Missão (im)possível: arranjar autorização para filmar. O responsável da imprensa estrangeira anuncia-nos que, afinal, podemos gravar imagens na Síria. Myrti Ahmad será o nosso cicerone e o nosso fixer. Fala castelhano. Estudou em Granada. Comunico que queremos ir a Homs, Alepo e al-Nayrab. Queremos ver a guerra. Fica decidido que abalamos daqui a dois dias, na manhã de quarta-feira. O motorista será Bassel, um ex-soldado particularmente divertido.

    Vamos comer: pequeno-almoço, almoço e, já agora, jantar. É de aproveitar a oportunidade. Em oito dias tivemos direito a quatro refeições de garfo e faca…

    A caminho do restaurante recebemos um telefonema. Mudança de planos. A autorização é anulada no espaço de meia hora. Fico perplexo, desespero. Aquela cambada é insuportável, mas de nada valem os meus protestos. A malha da censura é mesmo assim. Temos, portanto, de efectuar novo pedido. É que faremos. É proibido fraquejar. É preciso tentar, lutar (independentemente do resultado!) e, feitas as contas, sou tão persistente quanto eles. Chato, radical, impulsivo, dirão alguns…

    A tarde morre, morosa. Regressamos a Qarah. Rabisco no caderno: “vou (des)consolado e com a sensação do dever (im)cumprido.” Acho que estou a precisar de um electrochoque. Nem mais. Entenda quem puder…

    Recuso a falência da esperança e o imprevisto não me mete medo. Tenho a estrelita de BE. A presença da sua ausência é suficiente para eu continuar a arriscar. O que tinha para perder, já o perdi. Adormeço com um Marlboro turco enfiado nos lábios.

    (Foto: Rui Araújo)

    22 de Novembro

    09:00. Faz frio.

    10:10. Peço a um seminarista flamengo para encomendar sanduíches e bebidas.

    O marceneiro, clarividente, sorri e prega-me um púcaro de chá nas mãos.

    Horas de contar a usura do raio do tempo. Inútil ou nem por isso.

    Desta feita, refugio-me no átrio para conjurar não sei o quê. Opto por sentar-me, de costas para o sol, ao lado da estátua de uma Santa de pedra bruta e acendo um cigarro.

    Penso no meu amigo (jornalista do El Mundo e poeta) Marcos García Rey, que adora Damasco. Eu já imaginava. Em “Haiku-Crónicas de diez ciudades árabes” escreve: “Damasco – Son tres mil años de atalayas que leen versos con laúd”. E refere a capital síria noutro poema: “Amarte es fumar contigo un narguile en Damasco, ciudad milenaria habituada al amor licuado entre cien fuegos”. Eu já imaginava que Marcos adora Damasco, mas nunca ousei perguntar-lhe a razão. Era irrelevante. Eu, por exemplo, prefiro Los Jarales e a Sierra de San Vicente…

    15:00. Tomo um duche. É o segundo em nove dias. Hoje, há água quente (depois de se encherem sete ou oito baldes dos grandes!) no quarto do Tiago. A canalização do meu é um logro: está entupida ou andamos desencontrados.

    17:20. Quatro telefonemas e cinco horas de espera para a comida aparecer. Apetece-me desandar. A penitência não é a minha especialidade…

    18:05. A irmã francesa Claire Marie dá-me conta das novas: a autorização do Ministério deve chegar amanhã.

    Meto-me no quarto.

    Acendo duas velas (o aquecimento possível!). Hoje, tivemos direito a 32 minutos de electricidade. Deram para carregar as baterias. Como uma sande e pevides insossas para matar a fome. Oiço “Pale Blue Eyes”, “I’ll Follow You Into The Dark”, … enquanto escrevo estas linhas com letra titubeante.

    21:49. Eles jantam. Ouvimos quatro detonações. Os tanques e as peças de artilharia, que estão a escassos 300 metros, fazem fogo para a montanha.

    (Foto: Rui Araújo)

    23 de Novembro

    08:00. Acordo a meio de um sonho. O Sérgio eu entrávamos num restaurante. Ríamos. Dantes, despertava com pesadelos por causa do inferno do Ruanda. Com BE deixei subitamente de os ter. O inferno não se conta, vive-se, mas felizmente nada dura para sempre.

    A meio da manhã, encontro no pátio Abu e o filho. Dizem-me que vão a Damasco buscar a autorização para podermos filmar.

    Inch’allah

    Tiago capta mais imagens do mosteiro.

    12:30. Almoço. É o que determina o regulamento. Aqui, há horas para tudo. Ementa: arroz frio desfeito com arroz frio mais do que desfeito e salada (sic) de couve sem azeite e vinagre. Fico-me pelo pão duro que me resta da véspera e por um café morno. Faz frio. Demasiado. Ontem, tapei as gretas da janela por onde penetra um ar gélido com papel higiénico. É insuficiente.

    Da parte da tarde, somos informados que, afinal, podemos ir para a guerra, mas não podemos filmar nada. É ilógico, sendo o jornalismo o nosso ofício. Aqui, a burocracia e a censura são como a morte: presunçosa e sem salvação. Não resisto à tentação de dar um berro. Eu sei que é uma reacção idiota, mas quem não se sente não é filho de boa gente. Marcam-nos uma reunião para as oito da manhã. Dou largas à intuição (que me engana menos do que a Razão): estamos definitivamente tramados!

    (Foto: Tiago Ferreira)

    24 de Novembro

    Desperto com o cheiro nauseabundo no corredor.

    Há um cano entupido. É o do quarto do Tiago, digo meio a rir ao seminarista armado de dois baldes.

    08:00. A reunião prevista não acontece, obviamente.

    É, portanto, mais do que tempo de tomar o pequeno-almoço: um café (o último, já que o frasco de Lisboa está quase vazio!) emborcado lentamente e um cigarro.

    Esta terra cansa-me, mas mesmo assim dou um passeio pelo vasto quintal deserto de gente com oliveiras e cedros. E um poste de alta tensão desfigurado por um morteiro. No meio dos sulcos gelados, recupero uma insólita pedra castanha em forma de coisa alguma. Preciso de cinzeiro…

    10:00. Tomo um chá. É o que há. O nosso “guia” do Ministério deve chegar daqui a duas horas.

    11:45. Nova comunicação de serviço: os nossos vistos estão a caducar. Jornalistas clandestinos num país em guerra… Para quê renovar os vistos se estamos proibidos de exercer a profissão? Esta viagem não é tormentosa. É de loucos! E a culpa é minha, exclusivamente minha.

    Pergunto-me se não seria melhor reconhecer o fracasso. Aqui, aquilo que fazemos é matar o tempo sem remendo. E pouco mais…

    12:00. Peço ao meu amigo marceneiro para ir de motorizada comprar-nos sandes e tabaco mentolado para um amigo.

    12:39. Milagre. Habemus comida.

    17:29. Mais uma jornada a raparmos de frio e não fazermos nada. É noite há coisa de uma hora. E o tipo do Ministério perdeu-se no caminho. A questão não é quando vai chegar. É se vai chegar e eu duvido que apareça…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Medito à falta de outra actividade normal. O jovem seminarista francês Theo anda descalço. O solo gelado e a sujidade não o incomodam. Ou incomodam e fá-lo propositadamente. Não o julgo, mas não entendo tais contrições e auto-flagelamentos.

    20:47. Escrevo estas linhas à luz titubeante das velas. Tremo de frio num quarto silencioso, silêncio excessivamente ruidoso para o meu gosto.

    21:02. Alguém bate à porta com os nós dos dedos. Um seminarista entrega-me um pijama e três camisolas. É da parte da freira portuguesa. Deus lhe pague, mas o meu problema, agora, já nem é o frio. É a fome. As dores de cabeça sucedem-se e custam a passar…

    21:12. Nova informação: estamos proibidos de filmar. E com um bocado de sorte ainda somos expulsos do país…

    Opto, pois, por desafiar o destino (qual destino?). Plano B: amanhã, peço ao coronel de Al Nayrab que mande a escolta buscar-nos. Vamos para a guerra clandestinamente!

    Se o desastre provável se concretizar, enterro a ideia da reportagem, falo com o Tiago e regressamos a Queluz de Baixo. Somos uma equipa. A sua caução é essencial… enquanto os juízos dos outros pouco me importam.

    21:37. Falo por Skype com o meu contacto que se encontra em Nicósia.

    Coluna russa. (Foto: Tiago Ferreira)

    — Ajudei o Gilles Jacquier a ir para Homs e ele morreu. Fui acusada de tudo e mais alguma coisa…

    — Mas…

    — Tive muitos problemas com a família dele e com a televisão. E não quero que, agora, suceda o mesmo consigo…

    O repórter Gilles Jacquier da France 2 morreu com um morteiro no dia 11 de Janeiro de 2012, em Homs. Tinha 43 anos. Foi o primeiro repórter ocidental a morrer na Síria. Acompanhava com mais 11 jornalistas uma coluna do Exército. Ninguém assumiu, curiosamente, a paternidade do ataque. Os militares sírios fugiram. A Presidência da República francesa acusou a Síria de manipulação. O regime de al-Assad procuraria desencorajar os jornalistas estrangeiros de cobrir a guerra e, ao mesmo tempo, diabolizava os rebeldes.

    E? — indago.

    — E só o ajudo se me assinar um papel em que exclui a minha responsabilidade e diz ainda que caso morra em combate a culpa é só sua.

    Escrevo de imediato o termo de responsabilidade solicitado. Programa das festas: partida para o norte amanhã às 09:00. Em Homs, estará alguém à nossa espera para nos levar a Ithriyah, o ponto de encontro com a escolta armada.

    25 de Novembro

    09:00. A partida para a guerra é adiada. O retiro neste mosteiro fora de mão começa a roer-me uma data de coisas, a começar pela paciência. Mas não é possível abolir o presente…

    10.25. A freira francesa quer falar a sós comigo. Propõe-me o compartimento que dá pela designação pomposa de sala de espera. Diz-me à queima-roupa que há vários problemas (in)esperados:

    1- É preciso a autorização do Ministério;

    2- O contacto de Homs não consegue combinar com o coronel o encontro em Ithriyah.

    Temos, portanto, de aguardar. Como é sexta-feira, início do fim-de-semana, recuso fazer prognósticos.

    (Foto: D.R.)

    Estamos isolados do mundo (sem electricidade, telemóvel, Internet, sem aconchego) e a passar frio e fome…

    Majnun! — diz Tiago em tom provocador ao nosso amigo motorista Bassel.

    É loucura. Pois é. Total. O outro ri-se. E eu desato a rir-me, sem hesitar. Nos atoleiros o humor é a única postura a adoptar…

    O que é que estou aqui a fazer? Que justificações posso inventar? Sinto arrepios. As guerras são todas sujas e iguais. E pungentes mesmo para mim, que pensava estar vacinado. Faço um esforço para encontrar respostas autênticas, mas só encontro dúvidas, convincentes. Não sei como narrá-las. Já o fiz uma vez para a revista LUZES. Memórias dolorosas e, por isso mesmo, inolvidáveis. É sempre assim. E regresso ao presente.

    Bassel conduz-nos a Qarah, uma vila “protegida” pelo Hezbollah. Precisamos de ir às compras. As pessoas saúdam-nos na rua com sorrisos francos e abertos. Cumprimentam-nos, sistematicamente.

    Horas de comer. Afinal de contas, acaso feliz, há um tasco aberto. Entramos no restaurante RIM. O senhor Thaaer, dono do estabelecimento, serve-nos um café turco a fumegar. Oferta da casa! Devoramos uns panadinhos de frango com batata frita sem sabor diante do cartaz com a foto de al-Assad. O culto da personalidade invadiu o espaço público sírio: estradas, instituições, estabelecimentos comerciais, carros, fardas de soldados, etc.

    Depois, cumprimos a missão: compramos bananas (estamos os dois cansados da diarreia!), maçãs e bolachas. E Pepsi para matar a sede e o resto. A água do convento não é potável.

    A meio da tarde, voltamos ao nosso retiro de ociosidade. Tenho direito a mais um ponto da situação: estão a tentar obter a extensão dos nossos vistos de turista. A partida para a guerra só ocorrerá na segunda-feira. Proponho maquinalmente uma ida a Maalula, apesar da proibição peremptória do Ministério.

    Os estrangeiros não podem lá ir! — disse-me em Damasco o responsável da imprensa estrangeira.

    É normal não os deixarem lá ir. Há guerra! — confidencia-me uma acompanhante.

    Maalula está indirectamente associada a Portugal. É essa a minha principal motivação para a viagem.

    Não dá! — decide a a minha interlocutora de Qarah.

    Mais dois dias perdidos aqui, esfalfados de nada fazer…

    Tiago dá uma ajuda aos religiosos ou passeia pelo mosteiro. Eu, refugiado na penumbra do quarto, escrevo estas linhas. Tenho três velas acesas. Três! É um luxo.

    Uns tempos depois o meu companheiro aparece.

    Levanta-te, meu! — sugere ou manda.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Ergo-me. Tiago dá-me, então, um valente abraço murmurando: “Somos uma boa equipa!”. Somos, pois. Quem é que disse que autencidade significa sempre infelicidade? Há excepções…

    Proponho ao meu parceiro das desventuras jornalísticas um chá a meias. É o que há. Sem electricidade e sem gás, restam-nos as velas para aquecer a água. Acendemos três, mais outras tantas, e mais duas (que aquilo aquece devagar, devagarinho), que colocamos debaixo da chaleira com a ajuda do seminarista norte-americano David.

    21:30. É a hora do fecho e do silêncio como nas prisões. Aqui, só faltam as grades e os ferrolhos. Escuto as minhas músicas, escrevo e leio. Trouxe três livros: “Passion Arabe” (Gilles Kepel), “Lengua(s) de cobre” (do meu amigo Marcos García Rey) e “A Tentação do Abismo – Sanz Blues” (um policial assaz triste escrito por mim, que pretendo oferecer ao Tiago).

    22:09. Oiço música. Angie.

    You can’t say we never tried.

    Angie, you’re beautiful

    But ain’t it time we say goodbye

    Angie, I still…

    Batem à porta. Desligo o i-Phone. É a freira francesa.

    Afinal, podem ir a Maalula apesar da proibição.

    Quando? — indago.

    Amanhã.

    Porque hoje é Sábado… — respondo.

    — Amanhã é que é Sábado…

    O poeta Vinicius de Moraes não chegou a Qarah. Infelizmente.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    26 de Novembro

    10:29.

    — Se há tantas dificuldades é porque a vossa reportagem é importante! — insinua uma religiosa.

    As preces bem-intencionadas de pouco serviram até agora. Deus é misericordioso? É capaz. A culpa é minha. Só minha. Deixei de tentar matar o diabo dentro de mim. Não é possível. O grande Aquilino Ribeiro, que viveu mais ou menos a mesma experiência que eu, só conseguiu fazê-lo porque o seu romance (“El Hombre que Mató al Diablo”, Madrid, 1924) tinha de ter um fim…

    Estou a precisar de mais um chá. Na cozinha gelada o candidato a padre Charles corta batatas.

    Se pudesse, voltava hoje para a Nigéria — lança-me, em inglês.

    Sorrio penosamente. Entendo-o melhor do que ninguém. África é outro mundo (maravilhoso) e faz mais calor…

    És bom homem! — acrescenta.

    — Às vezes. Sou bom homem às vezes. É a minha sina…

    Levo a caneca de chá morno para o quarto. Oiço “Catch in the dark” (Passenger). E, sem querer, ponho-me maquinalmente a sonhar com Trujillo. Podia ser com Paris ou Palma, mas não. É com Trujillo. No dia 25 de Abril, instalo-me no quarto 110 do Hotel Victoria. É uma maneira de matar saudades dos fantasmas (que estão necessariamente vivos porquanto eu ainda não estou louco) e de lavrar no bloco mais sonhos ou pesadelos insensatos. Escrever é (re)viver outra vez, para mal dos meus pecados…

    12:00. É a hora programada para a ida a Maalula apesar de os estrangeiros estarem proibidos de lá entrar.

    Maalula é uma das comunidades cristãs mais antigas do mundo.

    Os poucos cristãos que ousaram lá permanecer são cada vez menos: umas 900 almas, bem contadas. Tempos houve em que eram duas mil, três mil. Ou mais. Essencialmente católicos e ortodoxos. Falam aramaico, a língua de Cristo.

    Agora, restam, sobretudo, muçulmanos naquela terra que já foi de tolerância.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    No dia 4 de Setembro de 2013, os rebeldes moderados e os do grupo Jabhat al-Nusra (associado à Al Qaeda) ocuparam a vila. Mataram 30 habitantes.

    14:00. Daqui a duas horas deixa de haver luz para podermos gravar imagens. E nós, aqui, parados. É um desconsolo.

    O nosso jipe acaba por aparecer tarde e a más horas. Arrancamos. A câmara vai escondida no assento entre Tiago e eu.

    No check point à entrada da vila um soldado, cordial mas pragmático, apreende os nossos passaportes com vistos de turista a caducar.

    — Têm de ir falar com o responsável da Segurança!

    Apetece-me dizer “obrigado”, mas não digo. A máscara da perfídia e o silêncio são, aqui, a melhor opção. E um soldado armado tem sem sempre razão!

    Tiago filma às escondidas enquanto subimos a ladeira.

    Desolação: conventos esventrados e saqueados, hotéis em ruínas.

    Apresentamo-nos ao “responsável da Segurança”.

    O homem é proprietário de um motociclo de 125 cm3 sem marca. Falamos de duas rodas e de preços, apesar de eu detestar cifras. Mostro-lhe uma foto da minha Honda. Simpatizamos ou ele simpatiza comigo. E acaba por acompanhar-nos a casa dos “mártires da fé”.

    Numa casa humilde, a meio de uma ruela sem nome, primeiro testemunho. Primeiro retrato do drama sírio…

    Antoinette Saalab, 50 anos. Mataram-lhe o irmão, um primo e um sobrinho na manhã de 7 de Setembro.

    — Despertámos às 6 e meia da manhã com os rebentamentos e os gritos Takbir e Allahu Akbar. Desataram aos tiros aqui dentro. Fui para ali. Uma bala bateu na parede, bateu-me na cruz e entrou aqui. Pressionei o peito com a mão e meti-me debaixo deste armário. Pedi à Virgem para não me abandonar…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Tiago grava o relato com uma mão, na outra segura uma lanterna. Sem corrente eléctrica é a iluminação possível…

    — Sarkis, que estava no interior, ouviu-os dizer: Escolham a religião muçulmana! Antun respondeu-lhes: Eu nasci cristão e cristão hei-de morrer! Micael disse a mesma coisa: Não odeio nenhuma religião, mas sou cristão. Sarkis repetiu aquelas palavras.

    Foram assassinados à queima-roupa à porta de casa. As cápsulas das balas encontram-se, agora, no Santuário de Fátima.

    É noite fechada quando abalamos. Na praça de Maalula, as fotografias dos  três “mártires da fé” revelam, no fim de contas, o drama de todo um país condenado a sobreviver com a peste ou a cólera…

    Chegamos a Qarah às 18:00. Somos convidados para jantar por um sírio influente. Acedemos. A única coisa que temos no bucho é um chá insípido.

    Posteriormente, passamos por casa de Bassel para tomar café.

    No meu quarto tenho direito a nove minutos de electricidade, ou seja: de aquecimento. Com a negrura, acendo sete velas de uma assentada. E Ligo o i-Phone. Escuto “Pale Blue Eyes” (Lou Reed) e “Concerto de Colónia” (Keith Jarrett).

    Tiago arquiva as imagens do dia nos seus aposentos.

    (Foto: D.R.)

    27 de Novembro

    Mais um dia de espera em perspectiva!

    Seria óptimo podermos ir para norte amanhã de manhã (Homs, Alepo, al-Nayrab), mas será preciso um milagre. E eu já deixei de acreditar em milagres há uma eternidade…

    15:00. Ataco a tradução da entrevista da senhora de Maalula. É um testemunho comovedor. Falamos do indulto.

    — Perdoa-lhes?

    Queda-se muda.

    — O que mudou na sua vida depois do drama?

    Não responde.

    — Sabe onde estão as cápsulas das balas que mataram os seus três familiares?

    Ignora (sic).

    — Estão no Santuário de Fátima, em Portugal, juntamente com as do Papa João Paulo II…

    — E agora?

    — Agora, rezo pela paz.

    Faz bem.

    Maalula e Saidnaya são as únicas povoações cristãs nas montanhas de Qalamun.

    Tiago coloca fita adesiva na janela do meu quarto e tapa um buraco na parede. O papel higiénico na fresta não impedia o frio de entrar.

    Ao fim da tarde sou confrontado com a pior notícia: o contacto de Homs tem medo de participar numa operação ilegal. É uma explicação. Não há, por isso, transporte até ao ponto de encontro com a escolta.

    É o desaire que compromete definitivamente a reportagem sonhada. Continuo a pensar que é aborrecido, mas não é grave. A maior vitória é sempre sobre nós próprios. E nós tentámos, porra!

    A solução mais sensata é regressarmos a Beirute ainda hoje ou o mais tardar amanhã de manhã. O problema é o equipamento, que entrou clandestinamente na Síria e tem de sair pela mesma via.

    O flamengo doido bate à porta. Precisa de tabaco.

    E eu gostava de tomar um chá, mas não há água.

    (Foto: Rui Araújo)

    19:30. Bassel e um primo, soldado, aparecem. Temos de entregar-lhe os passaportes. É urgente tratar da renovação dos vistos. Caso contrário, a partir de amanhã somos considerados ilegais.

    — Querem ir a minha casa tomar um café?

    — E fumar shisha… — diz alguém.

    Há quem diga que o narguilé (cachimbo de água) é pior do que o tabaco. É possível…

    A caminho da casa paramos numa mercearia para comprar água, bolos, etc.

    Ficamos na sala de estar do apartamento, que está situado no segundo piso de um edifício em bom estado. Constato que há plantas na escada. Num país árido, é coisa que se note…

    Bassel, hospitaleiro, serve-nos milho, bolachas e café.

    O cunhado aparece logo a seguir. É um homem novo. Era engenheiro civil. Era. Agora, cuida da farmácia local para sobreviver com a mulher e os dois filhos. Conta-nos que antes da guerra recebia 600 dólares. Hoje, aufere 60. É insuficiente.

    O tempo corre. À meia-noite regressamos ao mosteiro. Boa noite.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    28 de Novembro

    Segunda-feira. Os vistos de turista caducam hoje.

    09:18. Acordo com a freira portuguesa, salvo seja. Tem uma mensagem importante. Sorri-me. Afinal, podemos regressar a Alepo. Estão a tratar da nossa ida. Tudo isto seria divertido se não estivesse em causa a reportagem. É desgastante!

    10.34. Alguém bate à porta do meu quarto. Há novidades. Mais?

    — As tropas sírias destruíram dois postos inimigos em Alepo. No ataque faleceu um coronel do Exército. Foram apresentadas as condolências. Ficaram sensibilizados com o gesto. O Comando aceita levá-los para a Frente. A condição é a TVI dar uma prenda aos militares…

    Desconfio da excelência das prendas ou pagamentos encapotados.

    Única conclusão possível: a procissão ainda vai no adro.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    10:59. Tradução de outra entrevista.

    12:30. Toca o sino. Hora do almoço. O meu é uma caneca de massa chinesa.

    15:10. David, seminarista do Colorado, anuncia-me que amanhã às 16:00 podemos começar a filmar a guerra. Blaise Pascal dizia que duvidar é crer. Eu não duvido. Não acredito, mas aproveito o pretexto para celebrar. Pedimos ao motorista para nos levar ao restaurante dos panadinhos de frango, em Qarah.

    22:00. Confirmo a exactidão da tradução da manhã com o seminarista Ibrahim, outro mensageiro de Deus.

    29 de Novembro

    09:00. Pequeno-almoço: chá e cigarro.

    13:30. Entrevista do deslocado que vive nas traseiras.

    16:00. Ida a Deir Atiyah (estrada de Homs). O coro juvenil de uma igreja ortodoxa é uma tristeza. Desfiguram a música. Terei de recorrer a música gravada.

    Jantamos pizza com os padres e o motorista.

    20:20. Mosteiro. Partida para Alepo amanhã (08:00). Há horas cruciais que nunca chegam…

    22:15. Ida adiada sem razão, sem apelo nem agravo. É vilania. Preciso de um lenitivo para aliviar a indignação. Dou com o Tiago a falar com a família. Eu não ligo nunca. É escusado. Assim, não há engulhos. Ninguém fica à espera de contactos que, por vezes, são impossíveis. No news, good news!

    (Foto: Rui Araújo)

    30 de Novembro

    09:38. A freira francesa Claire Marie vem falar comigo.

    — Ontem, esqueci-me de lhe dizer que a prenda para poderem filmar a guerra são 3.000 euros.

    — É pena não me ter dito isso ontem. É que eu não alinho em esquemas desses. Nunca paguei e não é agora que vou começar a pagar entrevistas ou filmagens por mais providenciais que elas sejam — respondo.

    Assentamos que acabou. Pretendo regressar a Beirute o mais rapidamente possível.

    10:06. Sou convocado para mais uma conversa com a Superior. Podemos abalar meia hora depois.

    17:30. Cinco horas depois continuamos à espera do transporte.

    Rui, temos de fazer contas antes de se ir embora… —anuncia-me a religiosa.

    Apresenta-me uma factura manuscrita com o carimbo do mosteiro: 4.000 e tal euros. Dou um salto. Feitas as contas, só de transportes são 3.000. Cada quilómetro é cobrado três euros.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    —Parece-me excessivo! A Síria é um país pobre com combustível barato…

    Ela escuta-me, profundamente incomodada. O cristianismo, pelos vistos, continua a não dar paz a algumas consciências mais sinceras…

    — Eu não decido. Tenho de falar com a Madre…

    Fale.

    Deambulo pelo mosteiro a sonhar com os missionários combonianos que são o oposto desta gente. Passados uns minutos, a freira diz-me que só tenho a pagar 1.000 e poucos. Poupámos 3.000, o valor exacto da “prenda” pelas filmagens de guerra. É, obviamente, uma coincidência…

    14:19. Abandonamos Qarah. Serão necessários cinco veículos e sete longas horas para conseguirmos chegar a Beirute com o equipamento.

    EPÍLOGO

    A minha cabeça pesa, agora, chumbo quando a poiso no teclado, deslavado pelas histórias dolorosas dos outros e a minha consciência atordoada pela impotência.

    A Síria é uma tragédia inquietante e deveras absurda. Mais uma. E o sofrimento daquele povo admirável não pode ser reduzido a palavras.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Esperar é preciso. E a última cartada pertencerá aos sírios anónimos e corajosos que ainda sonham com outro destino a cumprir contra tudo e contra todos. E por detrás de cada resistência tem de estar algo… Inch’allah… Oxalá…

    Não contem comigo para ir a mais guerras.

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Janeiro de 2017, e publicada na Revista Luzes, em Junho de 2017, e na Revista FronteraD, em Agosto de 2018.


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  • A sombra

    A sombra


    Histórias de marinheiros que bebem e que choram, putas, tubarões, tartarugas, peixes-voadores com fartura, e solidão.

    Diário das desventuras no mar a Norte de parte alguma de um tipo a contas com o Diabo. E a morte.


    5 DE JANEIRO

    Largamos cabos do Mindelo, ilha de São Vicente. Cabo Verde. São duas da tarde. O mar está bravo. O calor pesado e húmido é insuportável. Fico acordado até ao alvorecer.

    (Foto: Rui Araújo)

    6 DE JANEIRO

    Às oito da manhã, avistamos a Brava. Rumamos em direcção a Furna, porto e aldeia piscatória.

    Às nove em ponto atracamos. O mestre Luís Laje oferece moreia e cavala-preta aos ilhéus que nos esperam no cais.

    Nova Sintra fica mil e tal curvas mais acima — é a principal vila da ilha, tem vegetação e um clima frio. Falo com o padeiro — pão, só da parte da tarde. Tomamos um café de frasco numa casa que também serve de estabelecimento comercial. O mestre e eu encontramos um velhote que não vai para o mar há dois meses por causa do mau tempo. Os botes de três metros (que mais parecem os dóris de antanho da pesca do bacalhau) não permitem devaneios marítimos.

    — Vivem da fome… — diz Luís.

    Estranhamente ou talvez não, há por estas bandas muitas crianças.

    — É fazer filhos e deixá-los de pé na tchon. Ao Deus dará…

    É a realidade.

    — Há dois anos, cinco moças, que tinham entre treze e catorze anos, apostaram qual delas engravidava primeiro. Acabaram por ficar todas prenhas ao mesmo tempo… — conta um pescador.

    Abandonamos a ilha às duas. A nossa «maré» fica a umas 250 milhas a Sul. O tempo continua incerto. Força 6, pelo menos, vagas de três a quatro metros.

    7 DE JANEIRO

    Estou sentado no passadiço, de costas para a porta que dá acesso à casa do leme. Os peixes-voadores acompanham o Intrujão. Voam 30 a 100 metros, mesmo por cima das ondas, antes de mergulharem nas cristas das vagas.

    O vento continua a soprar de nordeste. Largada de palangre de superfície: 44 milhas (uns 80 quilómetros) de artes compostas por balizas emissoras, dezenas de bóias e milhares de anzóis de cavala congelada, que teremos de recuperar com o peixe que aparecer: espadarte, atum, serra, blue marlin e tubarão, sobretudo tubarão, que será exportado para a Galiza (e daí enviado para a Ásia).

    Está a anoitecer, os peixes-voadores desapareceram, mas avisto um pássaro negro, lindo.

    — É um painho, um stormy petrel! À popa, aparecem muitos. Têm pulgas que parecem “chatos” e cheiram mal p’a caraças — explica-me o mestre.

    — Os painhos, de noite, com o barco iluminado, encandeiam-se e caem no convés — diz um pescador.

    Não caiu nenhum.

    — E cagarraz? — quero saber.

    Cagarraz é um mergulhão, uma ave marinha.

    — Hoje, cá ten — responde o ancião em crioulo, a língua franca em Cabo Verde. «Hoje, não há.» Português, a língua oficial, é só às vezes.

    Lat. 11.01.587 N. Long. 23.18.510 W. Às 21h00, paramos os motores. A faina só recomeçará às 4h30: recuperar quarenta e quatro milhas de linha com dois mil e quinhentos anzóis.

    O jantar é atum com feijão-frade. O chefe José é excelente — e cozinhar nestas condições requer perícia. O espaço é exíguo, o movimento do barco permanente e o calor sempre intenso. Depois, vamos à pesca da lula. E o cozinheiro é o melhor apanhador. Eu apanho só quatro — das médias. As lulas são castanhas, mas mudam progressivamente de cor, até ficarem brancas, depois de caírem no convés.

    8 DE JANEIRO

    Desperto em sobressalto.

    — Levanta, levanta! Dentro dessa cabeça só tens merda. É uma cabeça de merda com cabelo por fora — grita o mestre a um pescador mais lento.

    No parque de pesca, os homens matam e prepararam o peixe. O tubarão é «anestesiado» com umas pauladas na cabeça, cortam-lhe a cauda (que é perigosa), decepam-no. Depois, espetam-lhe uma vara de metal na espinha e retiram as alhetas. O resto é atirado borda fora. Mata-se um animal com meia tonelada ou mais para aproveitar 30 de quilos de alhetas…

    Os peixes-voadores continuam a acompanhar-nos. Acabamos por içar uma tartaruga de 300 quilos, ainda viva. Enrolou-se na linha e por lá ficou.

    10h30.

    A tartaruga vai morrer a bordo. Tem um sem número de fios enrolados em torno da cabeça e de uma barbatana. Pedi para os cortarem. Mendonça e Magrás (alcunha do marinheiro mais magro) respondem-me que não podem — são ordens do mestre. «A linha não se desperdiça.» De cabeça para o ar, a tartaruga «chora». É um pranto pungente.

    Refugio-me na cozinha. Ti John insiste que é necessário ter cuidado com «o mar, o fogo e as mulheres» — a propósito de uma panela sem tampa que o ia queimando. Esqueceu o mais perigoso: a terra. E a terra, para quem está no mar é frequentemente sempre sinónimo de desastre.

    13h20.

    A recuperação do aparelho é cadenciada pelos berros do mestre e os pachorrentos oito nós do Intrujão. Uma ou duas toneladas de peixe seria um resultado óptimo, mas até agora só apanhámos quatrocentos quilos. Os dias e as noites, aqui, sucedem-se ao ritmo da faina. Somos capazes de ir mais para Sul…

    14h00.

    Os homens estão no convés a cortar barriga de tubarão-martelo. As tiras são, seguidamente, colocadas num alguidar com sal. Serão vendidas pela tripulação. Tonton diz-me que tenho direito à minha parte.

    — Dá-te para três putas na Achada de Santo António.

    Pois.

    9 DE JANEIRO

    Não consigo pregar olho com o calor, humidade e o estado do mar. Mau tempo no Atlântico Norte. Primeiro, as pernas e os pés travam o movimento de estibordo para bombordo. Depois, agarro a aresta da cama (que se resume a um colchão gasto colocado em cima de pires, cinzeiros, canetas, pilhas, cadernos, latas, etc.). Depois, agarro o rebordo da cama para o corpo não deslizar para trás. É toda a noite assim, só adormeço quando o Sol começa a despontar no horizonte.

    Esta manhã, as capturas não são famosas: sete tubarões e três espadartes. E mais uma tartaruga…

    13h00.

    Avistamos e falamos com o capitão galego de um arrastão britânico. O navio começa por ir buscar tripulantes a Montevideu. Depois, ruma às Malvinas onde deverá pescar lula durante seis meses. Só daqui até Montevideu é um mês de mar…

    O mundo da pesca é árduo. E, aqui, é impossível mentir aos outros e, sobretudo, a nós próprios. Como todos têm uma alcunha a bordo, atribuem-me uma: Ruy Blas. Tenho de voltar a reler Victor Hugo…

     — Era um homem porreiro! — adianta Tonton.

    Era? Mas acabou, decididamente, mal. Era esperto, eloquente e romântico (apaixonou-se pela rainha de Espanha) e suicidou-se. Seja como for, creio que à falta de querer integrar-me fui adoptado por todos. Embora a maioria não entenda por que estou aqui. Para estes homens não faz sentido alguém ir para o mar sem ser obrigado. Quem diz que não fui?

    17h50.

    José da Paz prepara um refogado. Lá fora, o mar está cada vez mais bravo.

     — Peixe frito, tinto, jeropiga! — grita um pescador, meio a cantarolar, antes de deitar a mão ao rabo de outro e de levar um murro.

    Desatamos a rir.

    Malulula aparece com uma garrafa de refrigerante e oferece-me uma rolha cheia de grogue de Santo Antão — o melhor.

    10 DE JANEIRO

    Mil setecentos e cinquenta anzóis para capturar apenas um peixe-espada de 43 quilos, um tubarão-limão (ou Costa-d’África) e uma tartaruga.

    — Peixe no chicote, é fartura ou capote… — diz o mestre.

    É capote. Porque no primeiro anzol recuperado apanhámos o peixe-espada e a seguir praticamente mais nada.

    (Foto: Rui Araújo)

    Passamos a noite a capear. No radar aparece um eco durante a minha longa noite de vigia. É provavelmente o navio russo que já entrou uma vez no canal 16. E há também alguém a dizer coisas incompreensíveis até o mandarmos calar, delicadamente.

    — Shut up, philippino monkey…

    Troco dois dedos de conversa com o mestre sobre a pesca. Damo-nos bem. É um tipo ainda mais radical do que eu. Um dia, quando era oficial, deu um murro a um almirante. A partir daí não tinha futuro na Marinha de Guerra, enveredou pela faina da pesca.

    O azul-escuro do oceano contrasta com a espuma alva das cristas. Vagas de seis metros. Estou sentado no convés, de costas para a proa. Foi até hoje o dia que mais me custou. E agora, que está a anoitecer, ainda é pior. Tenho saudades das pessoas que amo. Das coisas, não. As poucas que contam estão, aqui, comigo: cinco livros sobre o mar com histórias de tipos amaldiçoados ou condenados como Jack London, Ernest Hemingway, Aquilino Ribeiro, Camilo José Cela e Josep Pla. Eu sou apenas um tipo só, mas começo a descobrir a sombra que me acompanha e na qual não me reconhecia.

    Aparecem quatro pescadores na cozinha.

    — Tem de saber a história do Mendonça — grita um, a rir.

    — Mendonça, puxà besta! — diz outro.

    A história de Mendonça é simples.

    — Mendonça vinha do mar. Naquele tempo, não tinha mulher. Vinha com aquela graça de foder. Tinha uma besta (mula) agarrada ao pé da casa. E todas as vezes que vinha do mar ia foder a besta. Aconteceu que a bestinha acostumou muito, acabava de ver o Mendonça e voltava logo o rabo para o Mendonça foder. A dada altura, a bestinha foi vendida a alguém de Santo Antão. Passado muito tempo, o Mendonça foi a Santo Antão. Foi para terra passear. A tal bestinha, que ele andava a puxar, reconheceu logo o Mendonça e meteu-se a jeito… — conta Tonton.

    — É verdade, Mendonça? — pergunto ao interessado.

    — É verdade, sim.

    — E Mendonça já não reconhecia ela… — acrescenta o cozinheiro.

    — A bestinha gostava dele — diz outro.

    O Mendonça é um sortudo.

    Ti John, o motorista, está sentado ao meu lado, pensativo. Lá fora, é a penumbra. A vigia de bombordo é um buraco negro. Não tenho fome. Hoje, bebi chá e comi dois ovos estrelados.

    Mendonça regressa com um álbum de fotografias.

    — Pode ver. Ten lá mulher, filhos e…

    — E bestinha — adianto com um sorriso cúmplice.

    E de facto há uma foto com a mula querida ao lado de umas ruínas. Como a vida é fácil…

    11 DE JANEIRO

    11h14.

    Tenho uma profunda admiração por estes homens rijos de corpo e alma, como diria Torga. Estou contente por estar no mar. Sinto-me tranquilo, em paz. Tenho o corpo todo partido, mas é suportável. Tenho sorte de não enjoar apesar de nunca ter apanhado mar assim.

    A tripulação está a meter o peixe no túnel de congelação e a lavar o parque de pesca. Enumero, como um aluno bem comportado: o Intrujão pesca tubarão azul ou tintureira; o Costa-d’África; o tubarão de pontas negras ou jaquetão; o tubarão-tigre; espadarte; atum; blue marlin ou peixe-agulha azul. O espadarte é o que tem maior valor comercial (50 euro/quilo), seguido do atum (35 euro/quilo) e do tubarão (entre 5 e 10 euro/quilo e alhetas a 20/25 euro/quilo). O tubarão azul predomina. É tudo exportado para a Europa (e posteriormente para a Ásia e o Médio Oriente), mas os dois peixes com valor comercial capturados em Cabo Verde são o espadarte (espadim azul, aliás Xiphias gladius), e o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvieri).

    Estou sozinho na cozinha — as moscas não contam. Ponho-me a ler Love of Life, de Jack London. O mestre surge pouco depois.

    — Se não tivesse o espírito que tenho, metia-me nos copos ou dava um tiro nos cornos… — diz. 

    Não comento. É a única questão filosófica importante, já dizia Albert Camus.

    12 DE JANEIRO

    Ontem à noite, no refeitório, Mendonça quis dar-me a morada para lhe enviar uma cópia da prosa.

    Malulula recusou.

    — Porquê?

    — Não sei escrever.

    — Queres aprender a ler e escrever?

    Malulula acenou que sim e riu-se. Um sorriso é sempre dúbio. Tem 40 anos. Perdeu a mãe quando ainda era criança. O pai não o mandou para a escola. Dei-lhe de imediato 15 páginas de exercícios (escrever as letras a, b, c, d…). A dignidade de um homem começa pela literacia…

    23 tubarões. 

    No mar, não há dia do Senhor. Só jornadas de faina que se sucedem e se assemelham. Dormir, comer, pescar, dormir, etc. As únicas pausas permitidas são a pesca da lula.

    16h00.

    Rumo 340. Hoje, apanhámos um tubarão que tinha a barriga cheia de crias. Foram deitadas ao mar. Parece que, por vezes, se comem umas às outras dentro do próprio ventre da mãe. E um pescador conta-me que alguns tubarões chegam a devorar a mãe por dentro (quando não os consegue expelir).

    É a primeira vez em muitos anos que não tenho os pesadelos da «arma apontada à cabeça» — recordações das guerras que vivi (Timor, Bósnia, Zaire, Ruanda, Líbia) e das outras. As minhas. Mas continuo a ter dificuldade em adormecer. Mato o tempo a escrever. A comunicação, aqui, é escassa. No mar fala-se pouco. Os pescadores falam pouco. E alguns nem sequer Português falam. A língua franca é o crioulo — ou os crioulos, porque cada ilha tem o seu dialecto.

    03h56.

    «Aqui, confundimos espaço e tempo, contamos as distâncias em dias. Aceitei o risco de estar preso na minha prisão, no único espaço de liberdade – o mar. Aceitei o sal nos olhos e nos lábios, os ventos de nordeste e as noites de solidão (organizada). Aqui, não há nada para ganhar, não é preciso provar nada a ninguém, não é preciso derrotar ninguém. Limito-me a ser prudente, púdico e discreto. É essencial um tipo ser assim. E eu gosto do mar e gosto de estar no mar. A bordo, fala-se muito pouco. Evitam-se as palavras inúteis. Só se diz aquilo que é preciso, mais nada.» (palavras de François Deniau).

    O aparelho está sempre a quebrar. E uma ruptura representa horas perdidas a procurar balizas emissoras que desfalecem porque as baterias não estão carregadas.

    (Foto: Rui Araújo)

    14 DE JANEIRO

    Ontem, dei a Malulula a primeira aula a sério: as vogais. Ele já consegue escrever «pai», «meu», «teu», «um»… E rabiscou o nome pela primeira vez na vida. Só tem 4 letras, mas ele ficou deveras radiante.

    O mestre Luís Laje (Foto: Rui Araújo)

    Tonton e Ti John, os motoristas, não arredam pé da casa do leme durante o meu quarto. Entre muitos silêncios, o primeiro pergunta-me o que é um filósofo. E por que razão o homem procura a Verdade, mas, no fim de contas, tudo acaba em ficção.

    15 DE JANEIRO

    04h30.

    O mestre benze-se antes de a pesca começar.

    — Acredita em Deus?

    — Acredito em mim.

    Fico com algumas dúvidas, mas parece que é bom sinal. (1)

    Apesar de ser contra-mestre, passo a tarde a cortar barriga de tubarão para isco. É uma experiência. A pele é rija e áspera. Entretanto, fico todo molhado. O parque de pesca é o pior sítio para se estar quando o vento sopra com força.

    Os homens estão, neste momento, a retirar do túnel de congelação rápida o peixe apanhado ontem para o depositarem no porão número Um. Dedico-me às paciências. O mestre tenta, sem sucesso.

    — Quem tem sorte com o jogo… — insinua, provocador.

    — Tem sorte no amor! — respondo.

    Lá fora, a companha labuta. Estes homens têm jornadas de 16, 17 horas por dia por 600 euros mensais.

    16 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA

    06h45.

    Ajudo o cook a descascar um balde cheio de batatas. Ti John cantarola uma morna que desconheço, triste.

    — São Tomé, tempo de escravos. Os cabo-verdianos iam para lá trabalhar nas roças de cacau — conta o motorista.

    A memória da miséria no império com pés de barro é tenaz.

    11h20.

    O Sol está a rasgar o horizonte. O vento vai soprar com mais intensidade. Perdemos três tubarões (por causa dos anzóis portugueses torcidos) e um atum, só ficou a cabeça.

    Malulula confirma a sua disponibilidade para a explicação de português desta noite.

    (Foto: Rui Araújo)

    18h15.

    — Pára! Pára! Pára, pára… — grita alguém desde a popa.

    O mestre reduz. Durante o lançamento do aparelho ao mar (balizas emissoras, bóias, anzóis com isco) um anzol arrancou um pedaço de peito ao Luís — um jovem pescador do Calhau. Os anzóis, aqui, têm nove centímetros – aguentam um tubarão de 600 quilos. Um velho chora. Peço a caixa dos primeiros socorros.

    Instalo o ferido no passadiço. É urgente efectuar um balanço dos ferimentos: o buracão no peito é o mais grave, tem uns cinco centímetros por dois e meio, com três de profundidade. O anzol levou o que apanhou pela frente. E rasgou-lhe a mão e uma unha. Mando Luís para a casa do leme. Depois de lavar as mãos, limpo a ferida no peito com água oxigenada e Betadine. Tonton vai-me passando algodão e a fita. Tapo o buraco com gaze embebida de Betadine. É o que há — qual antibiótico, pomadas, nem sequer há fita que chegue. Em seguida, trato do resto. O moço aguenta sem pestanejar. Ofereço-lhe um cigarro, aceso. Depois, dou-lhe dois comprimidos para as dores. E peço a Tonton para o ajudar a ir para o beliche. Tenho as mãos cobertas de sangue e de Betadine. Encho um balde, lavo o chão. E desloco-me ao parque de pesca para dar uma palavra ao meu acidentado de estimação.

    Luís está deitado. Por detrás da cabeça há uma gravura de Cristo.

    — Estás bem acompanhado, Luís — comento.

    O pescador sorri e puxa do cigarro.

    — Tens cinzeiro? — pergunto.

    Ele abre uma caixa de fósforos indonésia e põe os olhos no tecto.

    — Dói-me muito a mão…

    — A mão não é grave.

    É urgente levar o pescador para o hospital. Em Cabo Verde, não há operações SAR (busca e salvamento). Aqui, a sigla que prevalece é: PPP, Praias, Putas e Pedregulhos.

    Na Brava e no Fogo – as ilhas mais próximas – a única coisa que há são centros de saúde onde, quando não se morre da doença, morre-se da cura. O estabelecimento hospitalar mais próximo é o de São Vicente. Fica a cento e tal milhas náuticas, duzentos e muitos quilómetros…

    18h36.

    Regresso antecipado ao ponto de partida. Previsão para a chegada: amanhã de manhã.

    Horas de jantar: tubarão anequim de 10 quilos (os anequins grandes não são comestíveis e as outras espécies sabem a mijo, mas os habitantes da ilha de Santiago comem tudo o que vem à rede) com batatas.

    A companha salga a barriga de tubarão que não presta para isco (demasiado macia). Sempre dá mais uns escudos para as putas da Achada de Santo António (Cidade da Praia) e o grogue de Santo Antão. O grogue é a aguardente de cana-de-açúcar produzida, essencialmente, em Santo Antão e na Cidade Velha, ilha de Santiago. O problema aqui, é a origem. Há anos, produziam grogue com o ácido das baterias, e não só. É fartar vilanagem…

    22h00.

    Estou de quarto. Navegamos a uns 10, 11 nós. O mar está bravo. A proa embate violentamente nas vagas — que não consigo descortinar, apesar de ter mandado apagar as luzes do parque de pesca que me encandeavam. Pela frente, tenho mais sete horas de quarto. E ainda estamos a 113,5 milhas do hospital…

    01h45.

    O mar está pior. Não estamos longe de uma força 9 Beaufort — o que corresponde a ventos da ordem dos 75-88 quilómetros/hora, ondulação entre sete e 10 metros. Tempestade!

    As vagas desabam sobre o Intrujão. Com vento de proa e sem visibilidade, não consigo descortinar as mais altas, sobretudo quando se sucedem a curta distância. Apanho com duas das valentes. Depois de subir, violentamente, com a primeira, apanho com a seguinte. É a pior. A proa penetra dentro de água.

    Os pescadores em pânico invadem o parque de pesca, uns de cuecas, outros nus, e acendem o néon. E eu ainda vejo menos – o barco não dispõe de limpa pára-brisas. Foram ejectados. Não posso reduzir a marcha. Luís tem de ser socorrido o mais rapidamente possível. Que se lixe o desconforto e o furor das águas. E as rajadas de vento. A vigia é, entretanto, reforçada a meu pedido. Preciso de alguém com a cabeça de fora a dar conta da evolução das vagas para eu poder reagir…

    03h00.

    Estou exausto.

    17 DE JANEIRO

    A chegada ao Mindelo, prevista para as 11h34, acaba por só ocorrer às 15h30.

    A meio da noite, tive mesmo de abrandar a marcha. A tempestade não permitia navegar a mais de seis ou sete nós.

    Esta manhã, «tratei» do ferido (uma aspirina). O mar continua agitado. As rajadas de vento danificaram duas antenas da CV Telecom — e as comunicações por telefone cessaram (demorariam dois dias a reparar o material). Parece que o temporal não poupa o Brasil, Cabo Verde, Angola, etc.

    Dou uma mija no passadiço de bombordo antes de ir beber um chá de água tépida.

    — Não dormi nada, não conseguia. Muito balanço. O mar estava perigoso — diz Flávio.

    — Ninguém dormiu — respondo.

    11h30.

    Comunicação rádio entre pesqueiros espanhóis refere mau tempo generalizado no Atlântico Norte.

    Há tempos, o Sal Rei naufragou entre São Nicolau e Sal. Transportava bidões de metanol, que foram dar à costa de Santiago. Aquela gente pensava que era grogue e bebeu aquilo.

    — Morreram alguns e muitos foram parar ao hospital — conta Ti John.

    Mendonça completa a história.

    — Badio disse pode beber que o homem de terpiche [o produtor de grogue] é a caveira que está no bidão.

    É uma noite imprevista em terra. A conversa em torno da mesa é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

    — Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

    — São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

    Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

    — Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

    — Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

    Acabamos por atracar no Mindelo. Luís é, imediatamente, transportado para o hospital. Largamos amarras (os pescadores preferem a expressão “largar cabos”) segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me melhor no mar do que em terra. E não estou aqui a fazer nada.

    Malulula morreu no próprio dia da chegada. Pediu-me dinheiro emprestado, meteu-se nos copos e o carro em que seguia capotou. Mas valeu a pena, independentemente do resultado. Tentei. É isso o mais importante. E a maior vitória será sempre sobre nós próprios…

    (1) Alusão propositada a Pascal (Les Pensées).

    Texto publicado originalmente na revista Grande Reportagem de Abril de 2002 e, posteriormente em 2016 na revista Luzes.


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