Categoria: Caderno dos Mundos

  • Portugal: um dia com a brigada de homicídios

    Portugal: um dia com a brigada de homicídios


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente na revista GRANDE REPORTAGEM, em Abril de 2000. Um relato de Rui Araújo, que acompanhou a brigada de homicídios da Polícia Judiciária durante um dia.


    Um dia com a Brigada de Homicídios

    Os homens maus fazem aquilo que os homens bons gostavam de fazer…

    09:15

    É um rapaz inquieto e impaciente que entra na sala 1:14 da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária, em Lisboa.

    Jorge tem 26 anos, um físico de atleta e o respectivo fato de treino. 

    — Nem sei quantos tiros lhe dei. Só sei que disparei uma série de vezes… – refere de imediato. 

    — Mas também não tenho remorsos nenhuns. Se fosse preciso voltava a fazer o mesmo.

    Em causa estão os cento e tal contos que pagou a um vigarista por uma carta de condução (francesa) falsa e a honra ferida.

    Foi detido mal o comboio em que viajava parou em Santa Apolónia. É acusado de homicídio consumado.

    Mas os problemas do jovem emigrante (praticante de boxe) só começaram quando relatou alto e bom som num restaurante da capital aquilo que tinha feito. Um informador mais atento contactou a PJ. A escuta dos dois telemóveis da mãe do rapaz fez o resto.

    Jorge, agora aguarda. Já confessou tudo. Os seus próximos combates serão contra o tempo.

    O agente Paulo Riscado explica-lhe que antes de irem ao Tribunal de Sintra é preciso tratar da papelada.

    — Aquilo que está a acontecer, aqui, é exemplar. Chegamos a ter simpatia pelos arguidos porque quem mata é quase sempre o mais frágil. Jorge é uma dessas pessoas. Está aqui por causa de um desabafo, porque foi um desabafo. Desta vez, tivemos sorte. O problema na PJ é que continuamos a trabalhar com modelos arcaicos… — conta o sub-inspector António Teixeira.

    10:05

    O investigador Carlos Fonseca pára de ‘bater’ metodicamente (com dois dedos) mais um auto de inquirição e pega no telefone. É uma chamada da PSP de Santarém. 

    A máquina de escrever de estimação da Secção de Homicídios.
    (Foto: Rui Araújo)

    A comunicação dos “monos” refere uma mulher assassinada pelos homens que estavam a assaltar o seu apartamento. Parto com a equipa que está de prevenção. Como o lofoscopista (técnico das impressões digitais) e o fotógrafo já vão a caminho, só nos resta mesmo o velho Golf de serviço. 

    — Parece que desta vez é mesmo a sério… — comenta o agente Paulo Riscado.

    — Espero que tenhas razão, porque da última vez que nos chamaram era uma grande tanga. — adianta Carlos Fonseca antes de suspirar profundamente.

    — Era a história do feto, não era? — pergunto.

    — Sim, era a história do feto… — confirma o agente Carlos Fonseca.

    — Os “geninhos” descobriram o crime do século. E, como não tinham mais nada para fazer, venderam-vos uma história de feto por lebre… — ironizo.

    Carlos Fonseca, sem sorrir, acena que sim e o colega que conduz suspira, comovido ou indignado com tanto alheamento.

    A pedido da Guarda Nacional Republicana foram uma tarde a Vila Franca de Xira desvendar o caso do feto humano atirado para um poço, mas apenas acabaram por descobrir o esqueleto de uma pobre lebre que tinha tido a infelicidade de lá cair dentro.

    O local fica num prédio recente, perto da esquadra. Três pessoas aguardam no patamar da escada. Dois homens e uma mulher. Eles estão calados, a olhar para o chão de mármore branco. A mulher, que deve ser a filha da vítima, está a chorar. É um pranto surdo. O guarda da PSP saúda-nos antes de meter a chave na fechadura.

    A mulher morta que está deitada na alcatifa verde da sala-de-estar tem um corpo interessante. O pior é o resto. Os pés já estão ser devorados pelas larvas (ainda) brancas. E a testa está esfacelada. Tem algumas escoriações provocadas, aparentemente, por um objecto contundente. A posição do corpo também parece curiosa, mas, como a a PSP e os médicos do INEM estiveram aqui antes de nós para prestar algum socorro à vítima, tudo é possível.

    (Foto: D.R.)

    No resto do apartamento, predomina a ordem da banalidade. Só o magma de sangue que escorreu dos lábios da mulher contrasta um pouco com as paredes esverdeadas.

    O “Dedinhos” (lofoscopista) tenta encontrar impressões digitais úteis para a investigação.

    — Bate só uma foto daqui do corredor, o resto é chapa três, pá. — indica Paulo Riscado ao fotógrafo.

    O técnico prepara o enquadramento e começa a disparar.

    Os dois agentes iniciam então a inspecção judiciária ou, por outras palavras, começam a procurar toda a espécie de vestígios no local do crime, mas a primeira etapa, neste como em qualquer outro crime, é sempre o exame ao cadáver. Cada morto tem “respostas” que é importante reter desde logo. Só que, aqui, alguém mudou a mulher de sítio. É o que indicam os livores — as feridas post mortem que nunca sangram. Os agentes colocam a senhora na posição inicial. Depois, acabam por chegar à conclusão de que as lesões encontradas não podem ser a causa da morte. Aquilo que aconteceu não foi mais do que um simples acidente. A mulher teve um ataque cardíaco e quando caiu bateu com a cabeça no armário. A ferida na frontal direita vem daí.

    O processo do acidente, agora, vai para o tribunal da comarca. Mais um. E é tempo de comer qualquer coisa. A prevenção ainda não acabou.

    12.15

    Entramos no primeiro restaurante que encontramos. Bem dispostos — porque ri-se muito nos homicídios. Deve ser por causa do confronto permanente com a morte mesmo se esta secção investiga tudo e mais alguma coisa: propagação (in)voluntária de doenças, maus tratos, rixas, corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, agressões, suicídios, acidentes de trabalho, negligência médica, abortos e até homicídios. Porque também os há e aumentaram mesmo de ano para ano apesar de o sangue ainda continuar a correr mais em Portugal por conta da estrada.

    Cada vez é menor a relação entre o autor e a vítima de um homicídio. 

    Conclusão: a investigação é tanto mais difícil quanto hoje, pelo menos nas grandes cidades, se mata sobretudo “por dá cá aquela palha”… à excepção dos ajustes de contas e são alguns — essencialmente relacionados com o tráfico de estupefacientes e as dívidas.

    A vingança, a honra e acessoriamente a paixão continuam a ser as principais causas de homicídios nas zonas rurais. Os problemas associados à água têm, agora, uma dimensão cada vez mais reduzida no interior do país.

    — A sociedade evoluiu e a criminalidades acompanhou essa evolução. Os criminosos mudaram. Tipos como o Zé da Tarada, o Muleta Negra, o Dédé, o Delfim pertencem irremediavelmente ao passado. — diz Paulo Riscado.

    No fundo, é tudo uma questão de valores e de assinatura. O leque é, agora, mais vasto.  A investigação é mais complicada. A prova está também mais fragilizada. A confissão deixou de contar, felizmente, aquilo que conta é a prova em tribunal.

    (Foto: D.R.)

    Há um excesso de “garantismo” para alguns arguidos, pelo menos para os que têm maior poder económico porque para os outros a Justiça à portuguesa resume-se a uma corda esticada no meio da rua. Os grandes saltam por cima. Os pequenos passam por baixo. E alguns — poucos — tropeçam…

    O provérbio faz sorrir os homens da Gomes Freire, mas o autor é russo. A tendência por cá ainda é, hoje, haver mais homicídios por causa da droga, das “banhadas”, do tráfico de mulheres e do controlo da segurança nocturna. O resto são dramas anónimos. E alguns crimes sem solução…

    Estripador (das prostitutas) de Lisboa e o Estrangulador de Cascais são apenas dois exemplos públicos e notórios. O primeiro assassino não foi apanhado porque a recolha de vestígios foi deficiente. O segundo…

    Factos: Maria Antónia foi estrangulada, violada e assassinada numa noite de temporal entre um muro e um canavial, a 50 metros de uma estrada sem nome. Tinha 21 anos. Foi a primeira vítima do Estrangulador de Cascais. Ia ter com uma irmã à estação. Nunca lá chegou. O corpo da jovem foi descoberto na manhã seguinte por um miúdo das barracas que ia comprar vinho para o pai… Ninguém deu por nada. E, se deu, optou pelo silêncio.

    Carmel Josephine, irlandesa, foi a segunda. Mesmo local e circunstâncias e modus operandi idêntico.

    O inspector João de Sousa e os homens da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária não excluíram, então, a hipótese de se tratar do mesmo assassino só que testemunhas e pistas concretas, não as havia, mais uma vez.

    Para os investigadores a única certeza é que a ausência de suspeitos resultava, curiosamente, do facto de não ter sido definido (através dos espermatozoides) o grupo sanguíneo e sobretudo o ADN do agressor da portuguesa.

    A divulgação dos retratos robot de agressores sexuais — e eram alguns — a actuar em Cascais também não deu qualquer resultado.

    Meses depois, foi assassinada outra mulher. Victoria Owen, cidadã inglesa, foi encontrada morta dentro de um automóvel perto da praia do Guincho. Na cena do crime a Polícia Judiciária pouco ou nada descobriu. Mas o terceiro homicídio, pelo menos, permitiu traçar um perfil psicológico do assassino. Era um serial killer ou, por outras palavras, uma forma de delimitar a investigação.

    — Os serial killers representam uma ameaça tanto mais séria quanto são pessoas difíceis de apreender: na maioria dos casos, não têm qualquer relação com as vítimas. Têm um perfil muito diferente dos outros criminosos. São sádicos sexuais que só têm a sensação de existir através da morte e da dominação. Matam por prazer. — conta o agente António Cruz.

    Os escassos indícios existentes levaram a Judiciária a deter um pedreiro, Carlos Alberto, que foi rapidamente libertado por falta de provas. A imprensa “especializada” (e não só), entretanto, acabou por divulgar o caso — e do mesmo modo propagandear a paranoia do serial killer.

    A solução dos crimes acabou por depender do resultado de uma informação solicitada pelos investigadores ao Instituto de Medicina Legal (NOTA: denominado, hoje, Instituto Nacional de Medicina Legal). 

    Cadáver do sexo feminino, com marcas de mordedura no membro inferior esquerdo, na face anterior, e avançado estado de putrefacção.

    1. As duas mordeduras são humanas e realizadas pelo mesmo indivíduo.

    2. As equimoses nas áreas mordidas revelam que houve sucção (mordidas eróticas).

    3. A profundidade de algumas das lesões revelam-se compatíveis com sadismo.

    4. As lesões foram em vida da vítima.

    5. A comparação dos modelos do suspeito Carlos Alberto com as lesões de mordedura da vítima são concordantes, havendo uma relação estreita entre a área mordida e a forma da arcada e as dimensões dos bordos incisais dos dentes anteriores do suspeito. Há um intervalo entre a mordedura de 25 e 23 que coincide com o espaço de ausência de 24 no suspeito.

    O homem das obras foi novamente detido, mas não chegou a haver mandado de soltura. Foi julgado e condenado. Se um segundo Estrangulador continua a andar por aí, é outra história…

    15:28

    — Eu quero é ser preso! O senhor, prenda-me!

    A cara estanhada, os dentes amarelados e a fala arrastada do homem que acabou de entrar não estão decididamente a condizer com as calças de fantasia. 

    O agente Carlos Fonseca que tem mais que fazer (obviamente) propõe uma cadeira ao homem.

    — Eu quero ser preso! Eu quero ser preso! — repete o recém-chegado como uma contrição.

    — Porquê? — indaga o sub-inspector António Teixeira.

    — Porque matei ou devo ter matado seis pessoas. Eu quero é ser preso! — responde o outro, descomandado.

    — Quem é que matou?

    — Eu não consigo trabalhar. Eu ando desorientado. Matei, é um facto. O que eu posso dizer é que não sei quem é que matei, mas eu não suporto mais isto…

    — Mas matou quem?

    — Eu já não sei o que ando a fazer e preso estou melhor do que na rua. Eu ainda mato alguém no meu táxi. A minha cabeça não anda nada bem. Eu não ando nada bom, tá a ver?

    — Mas o que é que aconteceu?

    — Eles seguem-me. Eu não sei e capaz de serem os russos ou a CIA, não há provas. Isto tem a ver com o satélite, conforme  também escutam a casa dos vizinhos. Só queria que me deixassem em paz… — desabafa o motorista antes de começar a chorar de despeito.

    — Podia consultar um médico… — sugere o polícia, sentado ao meu lado.

    — Eu sei que estou apanhado e uma das coisas que lhes interessava era eu ir ao psiquiatra e passar por maluco. Já estou a ver o filme. Vocês estão mas é feitos com eles… — diz o homem, desesperado, ao constatar que as suas queixas tinham sido vãs. 

    Depois, enxuga lentamente as lágrimas, mete o lenço no bolso e desanda sem se despedir.

    Quando o Piquete está com muito serviço ou pouca paciência é assim: a Secção parece mais um anexo do Júlio de Matos. É que vem cá tudo parar.

    — Temos uma série de malucos a denunciar crimes imaginários. Há quem pense ter em casa esparguetes voadores, raios invisíveis, ficheiros secretos, só visto… E há ainda o tipo que tem a mania que é o Ramalho Eanes e que liga para cá com alguma frequência para confirmar que sabemos que ele é o verdadeiro e que o verdadeiro é falso. Muitas vezes somos mais assistentes sociais do que investigadores. É preciso é ter paciência e gostar muito disto porque senão… — comenta o sub-inspector Mário Bordaleiro, que já tem alguns anos de Homicídios.

    Senão, passavam-se. Entretanto, vão apaziguando a solidão de uns e a loucura dos outros.

    white painted wall
    (Foto: D.R.)

    16:03

    A sala das autópsias está decorada com quatro corpos e um tronco humano. É mais um dia movimentado para o Serviço de Tanatologia forense do Instituto de Medicina Legal. É ainda um dia como os outros porque os três médicos disponíveis só muito dificilmente conseguem dar conta do recado. E entende-se. Só no ano passado, tiveram de realizar mais de duas mil e tal autópsias — que eram tanto mais desnecessárias quanto a maioria era referente a doentes e a suicidas. Os da comarca de Lisboa são sistematicamente autopsiados. Para quê? Ninguém tem resposta porque, se calhar, já não há nenhuma justificação plausível para que isso suceda.

    Os corpos estão prontos para a autópsia: caixa torácica esventrada, pela descolada (por causa dos órgãos vitais) e cabeça encostada a uma placa metálica.

    — E o meu tronco? — pergunta o agente que está comigo.

    — O teu tronco… — responde o outro.

    O tronco humano foi encontrado na área da Fonte Luminosa dentro de uma mala de viagem em chamas. É preciso identificar o proprietário. E, em seguida, o assassino. É para isso que o agente dos Homicídios está aqui.

    Com o calor que está, o fedor é ainda mais insuportável. A sala tresanda a hidrogénio sulfurado ou coisa que valha.

    — Uma autópsia é a única operação feita sem anestesia, pá, mas ninguém se queixa… — comenta o médico em forma de introdução.

    O cortador pega num facalhão, efectua uma incisão torácico-abdominal e… desvio os olhos da mulher. O único refúgio que encontro, neste momento, são os néons esverdeados do tecto.

    — Eu trato do teu cliente daqui a um instante, mas primeiro tenho que dar assistência aqui aos meus bichinhos de estimação…

    — Ó F…, ataque aí com a serra vibratória! — ordena, entretanto, o médico.

    O cortador pega na ferramenta. A incisão mento-púbica é efectuada num ápice.

    Os “bichinhos de estimação” dele são as larvas. É o único médico legista que conheço que adora as larvas e tem uma explicação racional para tão curiosa paixão.

    — É fácil e tem dado excelentes resultados, pá: as moscas depositam nos olhos, nas narinas na boca e nas feridas dos cadáveres os ovos que se transformam em larvas logo ao fim de 24 horas… Depois, é tudo uma questão de tamanho e de côr para se poder determinar o momento — e eventualmente o local do óbito. É uma ajuda preciosa. — explica o doutor.

    A mala de viagem em pergamóide preto em que foi encontrado o corpo contém ainda alguns restos carbonizados de um pano de feltro negro e de uma manta que já foi porventura castanha. O cheiro a gasolina é insuportável. Há ainda no interior da mala papel de embrulho com um fio e uma medalha de prata com a imagem do Sagrado Coração de Jesus.

    grayscale photography of gray tombstone
    (Foto: D.R.)

    As probabilidades de o tronco pertencer a um indivíduo branco que teria uns 50 ou 60 anos, uma forte compleição física e uma altura provável de 1,70m são elevadas.

    A morte terá ocorrido na madrugada de ontem. Os esfregaços anais recolhidos no tronco permitem determinar, pelo menos, que o grupo sanguíneo é A negativo.

    É muito pouco para tirar quaisquer outras conclusões.

    — E queres saber o que é que é mais importante? — pergunta o médico.

    — Dispara!

    — As larvas só comem os tecidos necrosados e comem-nos, devoram-nos a uma velocidade incrível, pudera, é que têm poucos dias para multiplicar o seu peso por 1.000. Primeiro, são brancas. Depois, castanhas e por fim ficam pretas. E é sempre a mesma história: ao de fim de 21 dias, acaba-se. O ciclo termina: saem da crisálida e metem-se a voar.

    — E o meu tronco? Podes adiantar mais alguma coisa? — questiona o investigador.

    — Posso. Primeiro, foi esfaqueado. Cheira-me a crime de maricagem, porque as mulheres e os homens matam de outra forma. Certo?

    É plausível. Só alguém relacionado com o morto teria, de facto, interesse em desfazer-se do corpo.

    É preciso então apurar em que circunstâncias o homicídio teve lugar. Há uma participação de desaparecimento que descreve a medalha. A partir daí, a PJ descobre o assassino.

    Perguntado se queria responder sobre os factos que lhe são imputados, respondeu: que deseja, de sua livre vontade, esclarecer os factos em causa nestes autos.

    O arguido mantinha, a troco de 2.000$00 ou 2.500$00 relações anais com o M.

    Este relacionamento veio a estreitar-se uns meses depois, passando o arguido a viver em casa da vítima. Deixou de cobrar, mas passou a ter casa e comida à borla, mantendo com a vítima a mesma relação homossexual.

    Existiram episódios nos últimos tempos que o arguido levou a peito, ficando furioso com o facto de M. ter sido incorrecto com a sua mãe quando esta ligou a perguntar por ele para casa do M.

    Começou também o M. a telefonar para a sua terra natal dizendo aos seus familiares que o arguido não gostava de trabalhar, etc., a fazer queixas aos familiares, situação esta que o preocupava de sobremaneira. Na verdade, temia que a vítima denunciasse a relação  homossexual que ele mantinha aos seus familiares.

    Irritado, mesmo furioso, resolveu, nesta passada sexta-feira de manhã, marcar um encontro com o M. em sua casa para esse mesmo dia, às 19h00.

    Depois, foi buscar uma catana antiga que tinha arrumada no armário do quarto. Quando eram umas sete da tarde, foi para a varanda para assistir à chegada do M.

    Esperou que ele chegasse, o que só aconteceu por volta das 19h25. Depois de lhe abrir a porta, muniu-se da referida catana e, quando este entrava, desferiu-lhe de imediato uma forte pancada no pescoço, provocando-lhe um golpe bastante profundo.

    M. estava nesse momento de costas para o arguido. M. caiu e ainda tentou gritar, mas o arguido continuou a golpear-lhe o pescoço até a vítima não dar mais qualquer sinal de vida.

    Depois, embrulhou o corpo num cobertor usado e meteu-o dentro da banheira. Foi então buscar a bolsa de cabedal que o M. transportava e vasculhou a  encontrando uma nota de 5.000$00 e quatro notas de 2.000$00, num total de 13.000$00 (treze mil escudos).

    Em seguida, foi para os copos com dois amigos e só regressou a casa no domingo à tarde. Nessa altura, lavou as paredes, despiu o cadáver, deixando-o apenas com as peúgas.

    Cortou a cabeça de M.

    Neste momento, por serem já 23h24, o Exmo.º Inspector ordenou a interrupção deste auto e a sua continuação no dia…

    Para a maioria dos investigadores, qualquer assassino mete dó depois da confissão. Os mais frágeis é que matam. Só o facto de tentarem permanecer lúcidos impede os homens da Secção de sentirem simpatia por quem quer que seja. Na realidade, são caçadores. Que fazem suas as palavras de André Malraux: «Para julgar é preciso compreender e quando se compreende já não se pode julgar.»

    woman holding sword statue during daytime
    (Foto: D.R,)

    17:50

    O sub-inspector deixa o telefone tocar quatro vezes antes de atender. Os dois agentes que optaram pela comunicação via Tango (NOTA: inicial da letra T como Telefone) são peremptórios. É mais um processo para ser arquivado. O caso do velhote que se atirou para debaixo de um autocarro da carreira 43 na Rua da Junqueira está, irremediavelmente, solucionado. Quando o pessoal da Secção foi avisar a viúva, encontraram a mulher morta. E uma nota ao lado do corpo: “Matei-te sem querer. Amo-te. A única coisa que posso fazer é matar-me! Francisco.

    A autópsia acabaria por revelar que foi um ataque do coração e não o par de estalos que provocou a morte da senhora.

    01:27

    Concentração na zona das Docas por causa de um rapaz que foi esfaqueado por um segurança de uma discoteca. 

    — Há muita rapaziada dos ginásios a fazer cobranças difíceis, extorsões e a trabalhar como seguranças. O problema é quando tomam anabolizantes em excesso e se metem na ‘coca’… É aí que as conversas degeneram. — diz um dos agentes antes de sair do carro.

    Ninguém sabe de nada. Nem sequer o nome do segurança — que não consta dos registos do estabelecimento. A noite promete ser longa e pobre em resultados, mas ninguém se queixa porque o homicídio é, no fim de contas, o crime mais interessante, apesar de inspirar mais repugnância, mais temor e mais fascínio. E de nem sempre haver respostas.


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM n.º 109 – Abril 2000, Lisboa.


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  • As seitas à descoberta de Portugal

    As seitas à descoberta de Portugal


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, do grande repórter Rui Araújo, uma reportagem publicada originalmente em Abril de 1985, na revista GRANDE REPORTAGEM, sobre a Igreja de Cientologia em Portugal.


    Igreja de Cientologia: «chantagem económica», lavagem ao cérebro e ruptura com os laços afectivos. (Foto: D.R.)

    Uma seita exige ao Estado português três milhões de dólares de indemnização pelos prejuízos causados ao iate Apollo, assaltado por populares. 

    Foi no Funchal, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).

    O cônsul da Bélgica no Funchal acabou o último rolo de Super 8 e foi para casa jantar, descansado. Tinha cumprido a sua missão. As actividades da tripulação do iate «Apollo» estavam metodicamente anotadas e filmadas. Visitas, carregamentos de papel, etc. O barco interessava-o. Atrás dos seus proprietários oficiais — a Cindusta – Consultores Industriais e a Operation & Transport Corporation Ltd (registada no Panamá no dia 1 de Janeiro de 1968)— escondia-se uma seita religiosa das mais esquisitas: a «Igreja de Cientologia».

    3 de Outubro de 1974.

    O «Apollo» é assaltado durante a noite por um bando de populares exaltados que acusam a tripulação de trabalhar para a CIA. Os prejuízos elevam-se — segundo os jornais da época — a 115 mil contos. Com a subida progressiva do dólar e a morosidade do processo, a bagatela inicial subiu já para cerca de meio milhão de contos.

    Dez anos depois do incidente, a Auditoria Administrativa de Lisboa abriu o processo e deverá decidir em meados de Maio se houve de facto incúria por parte das autoridades portuguesas e tão elevados danos materiais.

    A história da Cientologia começou muitos anos antes. Em 1950, o «profeta», Ron Hubbard, abre uma clínica de «Dianética»  em New Jersey, nos Estados Unidos, para «libertar as pessoas de sentimentos, sensações e emoções indesejadas.»

    O negócio dá bons lucros, mas também levanta algumas dúvidas às autoridades do Estado de New Jersey e à Associação Médica Americana.

    É nessa altura que Hubbard começa a andar com uma caixa de sapatos cheia de notas, para o caso de se ver obrigado a partir para horizontes mais tranquilos.

    O «profeta» Hubbard cria em 1954 a «Igreja de Cientologia». A sua filosofia — considerada uma amálgama de ficção científica e de psicanálise de meia tigela — resume-se a um lacónico «saber como saber».

    Também eu quis saber, mas afinal aquilo é uma ciganada! Querem-nos é vender pechisbeque por ouro… — conta Rui S., 37 anos, criativo plástico numa multinacional, em Lisboa.

    Foi abordado, no Largo do Chiado, por uma rapariga que lhe pediu para «responder a duas ou três perguntas» de um inquérito sobre personalidade humana.

     — A princípio, não sabia que era uma seita religiosa; pensava tratar-se de mais uma daquelas sondagens chatas…

    Tratava-se, afinal, de um contacto da «Igreja de Cientologia», desta vez sob o nome de «Instituto de Dianética de Lisboa», uma das muitas denominações que a organização de Hubbard tem vindo a adoptar para esconder a sua verdadeira identidade nos 25 países onde está a actuar. Rui S. teve que comprar livros da seita no valor de algumas dezenas de contos para poder ver-se livre dela.

    Um outro processo bastante utilizado pela Cientologia é o anúncio discreto na imprensa. Aí se propõe «grande futuro» e melhoria de conhecimentos.

    Foi através de um desses anúncios (publicado no Diário de Notícias) que cheguei à fala com os cientologistas, na Travessa da Trindade, em Lisboa, a sede da organização.

    Uma sala nua, paredes decrépitas e muita sujidade. Luxuosos cartazes (em inglês) propõem a felicidade a toda a gente, amanhã. E um teste gratuito, para já.

    São 200 perguntas sobre a vida pessoal, os gostos, os temores, as ambições e as opiniões políticas de cada um de nós. Uma maneira hábil de a seita se informar sobre os eventuais adeptos  e assim poder preparar o melhor ângulo de ataque.

    Os métodos de marketing são subtilmente aplicados: «Custa-lhe aceitar um fracasso?; Acha que está a ser gasto muito dinheiro na Segurança Social?; Acha fácil ser imparcial?; Se invadisse um país, simpatizaria com os objectores de consciência desse país?; A sua voz é bastante variável em vez de calma?»

    São 10:30 da manhã quando  acabo de responder a 192 perguntas do questionário. Uma jovem, visivelmente ainda mal desperta, tira-me as folhas das mãos e manda analisá-las. Minutos depois, chama-me ao seu gabinete e comunica-me os resultados.

    Sou um tipo «porreiro, estável, calmo, certo, activo, agressivo, responsável causativo, crítico, discordante e retraído.» Em suma, «um elemento aceitável sob condições perfeitas, mas…»

    — Como é que cá vieste parar?

    — Li o anúncio do Diário de Notícias e, como ando à procura de emprego, dei uma saltada até cá…

    — O teu teste até nem está mau… Vejo que não precisas de tratamento. Tens disponibilidade?

    — Não tenho nada para fazer o dia inteiro…

    — Então, ofereço-te um emprego! Podes ser o nosso ‘PPO’, é uma espécie de Director do Pessoal. És pago à semana…

    — E quanto é que vou ganhar?

    — Isso, não sei. Mas o dinheiro também não é importante. O ambiente aqui é muito bom. Aqui, trabalha-se sete dias por semana. De segunda a sábado, trabalhas 11 horas por dia, mais duas horas e meia de estudos. Ao domingo só trabalhas nove horas.

    — Mas quanto é que vou ganhar?

    — Isso depende da tua produtividade… que é calculada segundo uns métodos complicados. O contrato é verbal.

    — …

    Em função dos resultados do teste a Cientologia  propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura». O tratamento é um sistema terapêutico (com implicações de natureza cósmica e uma justificação mística) intitulado «Dianética». Um método especulativo que pretende diagnosticar doenças mentais e outras, atribuídas a causas mais psicológicas do que bacteriológicas ou biológicas. Hubbard é o primeiro a tentar justificar a qualidade da terapêutica: «Estava cego devido a lesões no nervo óptico, coxo por causa de ferimentos na anca e nas costas e a minha caderneta militar indicava que sofria de incapacidade física permanente.» — conta o «profeta». Apesar de abandonado por toda a gente, conseguiu «recuperar em menos de dois anos».

    O homem terá sido, deste modo, o primeiro miraculado de uma técnica que ele próprio descobriu.

    Pseudo-teste de personalidade: a Cientologia propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura».

    A Cientologia define-se como um «guia espiritual e religioso destinado a tornar as pessoas mais conscientes de si mesmas enquanto seres espirituais.» «Não pretende tratar nem estabelecer diagnósticos para todas as doenças do corpo e da mente, nem se dedica ao ensino ou à prática das artes ou das ciências da Medicina.» Assim, o credo da «Igreja» afirma: «Nós acreditamos que o estudo da mente e a cura de doenças de origem mental não deveriam estar separadas da religião, nem ser toleradas em organizações não-religiosas.»

    Os cursos (cujos preços variam entre 1.000 e 132.000$00) têm como finalidade fazer os «doentes» ultrapassar escalões de uma «clarificação» crescente, desembaraçando-os progressivamente dos seus «engrams» (imagens mentais relativas a experiências de dor física; gravação na mente reactiva — o inconsciente — de um acontecimento do passado e até mesmo sensações pré-natais sentidas pelo feto…). Durante as sessões de «clarificação» — também chamadas audições — o auditor ajuda o paciente a descobrir e a suprimir os limites espirituais por ele fixados através de perguntas, de exercícios e de um aparelho que é apresentado como um protótipo denominado «E-METRO», uma maquineta do tempo da avozinha que serve apenas para medir reacções fisiológicas  (Wheatstone machine). As agulhas da máquina movem-se estupidamente da esquerda para a direita pela módica quantia de 31.000$00, a pagar antecipadamente à «Dianética», a tal associação sem fins lucrativos… A qualidade do tratamento é tão boa ou tão má que o ministro britânico da Saúde qualificou, em 1968, os métodos utilizados durante essas audições como «contrários à Sociedade, constituindo um sério risco para todos aqueles que a eles se submetem.»

    Os cientologistas só estão oficialmente em Portugal desde 1980 mas já nos frequentam há 16 anos. O «Diário de Notícias» (de 16 de Maio de 1969) alertava para o «mistério» de um barco de nome «Apollo» que navegava nas nossas águas em busca de «milhares de espíritos perturbados à procura de um significado para a Existência.»

    Dois anos mais tarde, o mesmo matutino volta a anunciar a presença do iate em Portugal, dessa vez com uma quantidade de gente a bordo: 380 pessoas. E como não há duas sem três, o «mistério» repete-se em Março de 1974, data em que o «Apollo» leva a vários pontos do país «um concerto de jazz para esconder um Ovo de Colombo.» É precisamente nessa altura que que se dá o ataque do Funchal, a pretexto de a tripulação pertencer à CIA. Ora, tal acusação não deixa de ser curiosa. Até aí, Hubbard e «companhia» sempre tinham sido associados ao KGB, como o comprovam relatórios de alguns serviços secretos ocidentais. O próprio filho do «profeta» garante que Hubbard «traiu os Estados Unidos por dinheiro.» Segundo Hubbard Junior «o KGB conseguiu, com a sua ajuda (a do pai) arranjar em plena Guerra Fria os planos de um míssil termo-orientado ocidental. Os soviéticos obtiveram a informação através da audição de um engenheiro membro da Igreja de Cientologia.»

    O KGB treinou ainda agentes da HVA (Administração Central das Informações), a espionagem leste-alemã, supostamente membros da seita, para se infiltrarem, via Dinamarca, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

    Iate Apollo: as águas turvas da seita.
    (Foto: Jorge Santos)

    O iate «Apollo» (proibido de entrar, por exemplo, nas águas gregas) é apenas a parte visível do «iceberg» Cientologia. As águas turvas são, de resto, as preferidas da seita.

    «A Sétima Vaga já cá está!» — assegura-me Victor Estrela, Director Executivo da seita, muito aborrecido porque me identifica como jornalista, depois de me ter lá visto como simples candidato a um emprego. Jura que «pertencemos todos a uma Geração que pela sétima vez consecutiva ocupa a Terra» antes de insinuar algumas ameaças e de voltar aos seus afazeres. Agradeço a preocupação, sorrio a um jovem apático de negro vestido, que se encontra por lá e saio.

    Resta saber como se articulam todos estes conceitos místico-filosóficos com a natureza, o objectivo e o funcionamento real da seita. Uma coisa é certa: a Cientologia foi e continua a ser associada à burla, à lavagem do cérebro e à ruptura com todos os laços afectivos.

    O Departamento sueco da Saúde acusou em 1975 a seita de ter exercido «pressões intoleráveis» e «chantagem económica» sobre os seus membros. Os cientologistas fizeram alguns adeptos assinar reconhecimentos de dívidas (fictícias) para com a «Igreja». Mais recentemente, em Fevereiro de 1978, a Justiça francesa julgou quatro dirigentes da organização por burla. Ron Hubbard, cujo paradeiro é, hoje, desconhecido, foi um dos condenados. O tribunal francês considerou a «Igreja de Cientologia» como uma associação «dissimulada em empresa comercial bem gerida e em pleno desenvolvimento (…) que pratica pseudo-testes de personalidade efectuados por pessoal sem qualificação e realiza por este meio uma pressão intelectual e moral sobre as pessoas esperançadas num melhor equilíbrio pessoal, num maior sucesso profissional (…) e que obteve de numerosas pessoas a entrega de importantes quantias de dinheiro, extorquindo assim toda ou parte da fortuna alheia.»

    A Cientologia muda logo a seguir o nome para «Igreja da Nova Compreensão» e continua a actuar em França. O Relatório Vivien, elaborado pelos serviços secretos franceses e divulgado há poucos dias, considera a Cientologia como uma das nove mais perigosas seitas presentes em França (num total de 120).

    Uma grande parte das organizações filosófico-religiosas internacionais (desde «Moon» aos «Meninos de Deus», passando pelos neonazis da «Nova Acrópole») estão em Portugal, mas ainda não há qualquer controlo das suas actividades. E mais: «Ainda não temos nenhuma lista das associações filosófico-religiosas existentes em Portugal porque o fenómeno ainda não é preocupante» — disse à GR um alto funcionário do MAI, aparentemente surpreendido com a formulação de tal pergunta…


    Reportagem originalmente publicada na revista GRANDE REPORTAGEM, 26 de Abril a 2 de Maio de 1985 – Lisboa.


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  • Portugal: a ameaça da fome

    Portugal: a ameaça da fome


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente em Fevereiro de 1985 na mítica Revista GRANDE REPORTAGEM, onde é feito um retrato da fome em Portugal. Com texto de Rui Araújo e fotos de José Paulo Boavida e João Bafo.


    O desemprego, o atraso no pagamento de salários e a inflação arrastam para a pobreza famílias operárias e alguns estratos da classe média baixa.

    Reaparecem os livros de fiados nas lojas da província.

    A GRANDE REPORTAGEM percorreu a geografia da fome portuguesa. Por enquanto ainda se enche a barriga com qualquer coisa, tirada da horta, pescada no rio, cedida pela família ou pelos vizinhos, oferecida pelas instituições de solidariedade social. Mas a fome chegará ao nosso país se a situação não se alterar. Rapidamente.

    DE TOMAR À MARINHA GRANDE

    CAMINHOS DA MISÉRIA

    Ela trinca um palito e conta que à medida que os meses correm se sente cada vez mais esquecida da vida. Atira de longe em longe um olhar vagaroso para a gente que passa sem se arredar das suas cogitações e sorri.

    — Aconteceu num sábado. Sábado, 29 de Julho. Era ainda noite ou a manhã estava a romper, já não me lembro. Envenenei-me porque não tinha nada para dar de comer aos meus quatro filhos. Tomei 60 comprimidos para me matar. Achei que era a única solução. Já tinha vendido os dois anéis do meu falecido marido por quatro contos e quinhentos cada um. Naquele momento queria desaparecer. E agora sou capaz de andar de manhã à noite a chorar. Tenho pessoas que me auxiliam. Eu choro-me às pessoas e os meus filhos já não passam fome, mas também não passam fartura… — Guilhermina, 35 anos, ex-operária da Fiação de Tomar, é uma das muitas sem salário da região de Tomar. Para sobreviver sem passar fome prostitui-se num centro comercial da cidade. Como ela há mais algumas.

    Dos 900 trabalhadores da Fiação de Tomar, uma empresa com nove meses de salários em atraso, apenas 120 continuam a trabalhar nos três turnos por falta de meios e matéria-prima. A firma está praticamente paralisada. A dívida à Banca ronda os 400 mil contos. Muito recentemente, a Secretaria de Estado da População e Emprego concedeu à empresa um empréstimo de 42 mil contos — a pagar em duas fracções de 21 mil contos — que ainda não foi levantado com receio de que seja imediatamente cativado. Se o cheque não vier a ser transformado em moeda, a administração declarará a falência da sociedade.

    — Há casos de fome e até roubos… Dia 11 foi julgada uma rapariga casada que tem uma filha paralisada e outra no ventre, porque roubou 20 contos a um tio que mais tarde veio a denunciá-la —, conta José Maria Serra, dirigente sindical, um homem que não dá sinal de fraqueza.

    A mulher «apanhou três anos com pena suspensa» por ela e o marido estarem na situação em que estão na fábrica.

    Enquanto Guilhermina e uma amiga se somem sorrateiramente do centro comercial, o sindicalista fala de sonhos desfeitos, de miséria e de fome.

    O Regimento de Infantaria de Tomar está a dar de comer aos «sem salário» e hoje em dia há gente que vai todas as tardes ao hospital pedir ao técnico radiologista Fininho os restos da comida dos doentes.

    — Isto não tem tendência para melhorar e olhe que não é só pessoal da Fiação: há também toda aquela gente das empresas João Salvador, Adelino Duarte, Fábrica de Papel da Matrena, mais as pequenas indústrias de que ninguém fala. — acrescenta José Serra antes de gritar com rancor que ao contactar partidos e Igreja «toda a gente disse que sim, mas sem passar daí».

    Pago o lanche e partimos. José Serra tenta ainda convencer outra rapariga a responder às perguntas da GR, sem sucesso.

    — Fome, há fome! — diz-me antes de apressar o passo.

    Pelo passeio fora as palavras soam-lhe como indecentes. Não se contém e pergunta-me se então não vou falar com os responsáveis da Fiação. Pois vou. Um dos directores, o dr. Machado, recebe-me mas considera  «inoportuno focar a questão», não dá entrevistas ou faz quaisquer declarações. Contente com estas fracas informações, põe-me praticamente na rua.

    Tomo um copo na tasca em frente da fábrica — agora com muitas dificuldades porque lhe faltam os clientes — e arranco com destino ao Tramagal, uma das raras zonas onde o Governo  detectou situações de «carência alimentar» e onde está a actuar o Centro Regional de Segurança Social de Santarém.

    A população do Tramagal (5.300 habitantes) depende inexoravelmente  da Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF), uma empresa com 10 meses de salários em atraso e que acaba de suspender 475 dos seus 1.500 trabalhadores.

    — A MDF é uma empresa do sector da indústria metalomecânica pesada, fundada  em 1880, no Tramagal, região que, em tempo não muito longínquos, fazia parte, com os outros vértices em Tomar e Torres Novas, de um triângulo considerado estrategicamente  como um forte pólo de desenvolvimento industrial do país — indica um relatório elaborado pela Assembleia da República em finais do ano passado.

    Para a Comissão Parlamentar de Trabalho, a MDF «tem uma importância simultaneamente nacional e regional, quer pela sua actividade quer pela localização das suas instalações» (Tramagal, Porto e Lisboa). A empresa esteve intervencionada  durante cinco anos (1974 – 1979) até ser entregue aos seus antigos proprietários, que não souberam ou não puderam superar as dificuldades resultantes da crise e da total indefinição governamental.

    O relatório parlamentar põe algumas questões pertinentes. «Por que razão o Governo não deu a ajuda solicitada, perfeitamente possível, no caso do DOSSIER MALANGE», a construção de uma fábrica de máquinas e alfaias agrícolas em Angola, no valor de 75 milhões de dólares, com fornecimentos durante seis anos e que acabou por ser realizada pela Jugoslávia, «apenas porque o Governo português não propiciou o único requisito exigido pelo Governo angolano para preferir a MDF e que tinha que ver com a necessidade de convencer a administração daquele país de que não se previa o fecho da empresa durante o tempo considerado para a execução do contrato».

    Fico-me por esta e outras respostas e dirijo-me à porta da MDF, onde está um grupo de operários suspensos.

    — O problema agravou-se a partir de 8 de Janeiro, quando a administração da empresa, numa demonstração de força e contra a legislação em vigor, resolveu suspender 475 trabalhadores. — diz João Constantino, da direcção do Sindicato dos Metalúrgicos do Distrito de Santarém.

    Oiço alguém gritar «raios os partam», mas Constantino acalma imediatamente os ânimos e prossegue: «Depois do Mário Soares nos dizer que temos de fazer sacrifícios, que tem de haver despedimentos e que os trabalhadores despedidos não morrem à fome, destacaram para aqui forças de intervenção da GNR, uns 120 homens com cães, policias e gases.»

    E o quotidiano? A resposta é que a vida está a degradar-se dia após dia. Já há mais empresas com salários em atraso. A SOMAPRE e as outras…

    Mais uma entrevista de gravador em punho: todas as palavras têm significado…
    (Foto: José Paulo Boavida)

    As pessoas vão-se amontoando à minha volta. Rostos sem uma aberta de esperança envolvem-me em mil dramas.

    — É triste a gente ter uma situação destas depois de estar a sobreviver há 63 anos. — conta Joaquim de Jesus, convulsionado.

    — Passo fome! Com quase 10 meses de salário em atraso e a vida cada vez mais cara, com certeza que as pessoas têm que começar a passar fome. Em vez de comer duas sardinhas, comem só uma. Ou nenhuma, em muitos casos. Ou comem uma sopa para enganar o estômago. Se tiver três sardinhas lá em casa, se calhar, cada filho come uma e eu nada. — lamenta-se outro.

    — Infelizmente, no Tramagal, não há estações de Metro para eu dormir mais a minha mulher e a minha filha. Agora, é só sopita… Parece que não há salvação para este país! Eu não queria de maneira nenhuma ir roubar, mas a minha filha não há-de passar fome. — chora Esteves Chaves.

    — Ao fim de 19 anos para a rua como um cão. Ao fim de tantos anos, não sei o que vai ser. Isto é uma infelicidade… — diz Manuel Marques, coberto de suor, trémulo, a concluir o rol das tragédias.

    Interpelo o porteiro da fábrica e peço para ser recebido pelos directores. O homem vem a passos lentos dizer-me que «os senhores directores mandam informar que não estão autorizados a falar com os jornalistas». 

    A caminho do consultório do centro médico paro na venda da dona Manuela Feliciana, que deixou de vender bifes para passar a vender «muita fruta tocada». Um homem de rosto seco, comido pelo cieiro, aproxima-se e pede para ser ouvido. Anda a palmilhar o Tramagal à espera que o tempo passe. Tem 34 anos — 12 de empresa — e vive com a mulher e dois filhos.

    — Eu tenho que desabafar! Estou farto. Não faço a mínima ideia do que é que isto vai dar. É muito natural que as pessoas venham a perder a ‘tramontana’ porque não têm dinheiro. E, digo-lhe, já que o Governo deste país não quer fazer justiça é muito natural que os trabalhadores deste país a façam pelas suas mãos. Há já aqui casos de pessoas que se querem matar e de pessoas que se desorientam…

    E largou. Não tinha mais nada para dizer.

    Vou falar com o médico do Centro de Saúde. O consultório está a rebentar pelas costuras. Chego-me a um enfermeiro e pergunto pelo doutor Vítor Goucha Jorge. Duas velhotas sentadas ao lado da janela «rosnam» que não é a minha vez. Entro no gabinete do médico.

    — Viva!

    — Boa tarde.

    O médico olha para a janela do gabinete onde se adivinha a trovoada já próxima e depois de um silêncio, para ganhar segurança — nunca deu entrevistas — faz o seu balanço.

    — Há uma insegurança nas pessoas, o que lhes dá uma instabilidade psíquica maior. Por isso, recorrem mais vezes ao médico para obterem tranquilizantes, uns hipnóticos ou qualquer outra coisa que as ajude a passar melhor. Vejo pessoas bastante caídas, depressões, síndromas depressivos… Quando isto começou notou-se um menor rendimento das crianças nas escolas devido à má alimentação.

    — Mas não há apoios?

    — Alguns. Para minimizar a situação, criámos um grupo — o Centro de Apoio e Desenvolvimento para o Tramagal — para ajudar as pessoas. Ocupamos as mulheres a fazer tapetes de Arraiolos. Temos um curso de ferros forjados e outro de tractoristas. Damos também um lanche, um suplemento alimentar a todas as crianças em idade escolar, que consta de uma refeição a meio da manhã. É leite que a Cáritas nos tem dado, com um suplemento vitamínico, marmelada, queijo e pão. O pão é oferecido pelo Campo Militar de Santa Margarida. São cerca de 800 pães diários para estas crianças… A situação é difícil. É possível que haja fome e que nós estejamos só a tentar minimizar as insuficiências, mas isso não resolve o problema porque depois faltam a carne e o peixe e os outros alimentos essenciais.

    A outra faceta da miséria…
    (Foto: João Bafo)

    Os «novos pobres» do Bairro Social do Tramagal vão enfrentando o tempo sem garantias. Mulheres — algumas muito novas — vestidas de negro e muita miudagem. Uma delas, com uma pequenita ao colo, diz que passa fome, muita fome. Chama-se Manuela Lopes e tem quatro filhos. Reparo que alisa continuamente a penugem do filho, sôfrego de colo.

    — Como uma refeição por dia e, muitas vezes, para dar aos meus filhos, não como. Tenho a loja a fiar-me, mas, coitada da pessoa, muitas vezes também não pode…

    — O que é que os seus filhos dizem?

    — Os mais pequeninos não percebem. Eles pedem-me pão. Os mais velhos é que vêem que já não podem comer tanto e que é preciso dividir.

    — O que foi o vosso almoço?

    — Grelos com batatas e um ovo para cada um.

    Cala-se. Uma vizinha aproxima-se. Maria F. Almeida, 55 anos, viúva há 24, tem um filho que é pintor na fábrica. Às tantas, ele já nem se admira de não comer e, se calhar, ela também não.

    — Não tenho de onde venha um pratinho de sopa. Não tenho casa nem eira. Estou junta com a minha filha. E ainda tenho mais dois filhos ao meu encargo. Um trabalha ali e o outro está desempregado. Sim, senhor! Tenho passado muita fominha. As almas boas é que nos têm valido., mas chegou-se ao mês de Janeiro e deixaram de dar fiado à gente…

    Fontela. Km 213,63 da CP. À frente dos portões selados da fábrica, um mar de vidro partido, uma tasca às moscas e o rio. Os 650 trabalhadores da Vidreira que se encontram no desemprego desde 23 de Dezembro de 1982 ainda continuam a aparecer aqui para matar saudades, mas qualquer dia já não vem ninguém. Agora, muitos já vão ficando pelo café de Vila Verde a conversar e a beber uns copitos.

    Fontela está a tornar-se definitivamente uma vila fantasma. Até nem padre há na igreja… Fontela é um calafrio.

    José Aranha Grilo é um dos despedidos da Vidreira, onde trabalhou dos 14 aos 24 anos. O rapaz recebe, hoje, um subsídio de desemprego  de 12 contos. O preço de uma existência. Trabalho, não há. Toda a gente «vivia da Vidreira». Fala telegraficamente dos casos dos outros. Dos cortes de linha, da história do rali e dos suicídios. José Aranha Grilo traz a amargura consigo. Diz adeus e desaparece.

    — As pessoas passam um mau momento. Passam muito mal. Há pessoas aí a lutar com grandes dificuldades. A Junta de Freguesia de Vila Verde não tem hipóteses de ajudá-las. Tem ajudado naquilo que pode — burocraticamente, mas é tudo. — conta o presidente da Junta PS, enquanto João Gomes, dirigente sindical PC, se ri por dentro. Aqui, como lá fora, socialistas e comunistas continuam a ter relações mancas. Para o sindicalista há que denunciar a miséria — a fome envergonhada. Logo que entra no carro berra um «ora bolas» e depois de acenar para o presidente da junta, afirma que «há fome e a prova disso é a campanha de solidariedade encetada pela organização holandesa Tulipa Vermelha com vista ao abastecimento de Fontela/Vila Verde em géneros alimentícios».

    Bairro dos Pobres, em Vila Verde, é uma aldeia onde vive uma grande parte dos operários da Vidreira. Roupa estendida, garotada a brincar e mulheres a trabalhar — atentas à chegada de estrangeiros. É aí que reside Cecília Oliveira. Acolhe-me de braços abertos e, logo a seguir, começa a queixar-se.

    — Quando o meu marido trabalhava, eu tinha dinheiro e governava-me bem, mas agora já não sei o que há-de ser da gente. Ou temos de morrer de forme ou não sei o que há-de ser isto. Se não nos dessem de comer, já tínhamos morrido…

    Atentas, as crianças dão por finda a sua intrusão e voltam para o beiral da porta. Dona Cecília aconselha-me a falar com o marido que está no café e mergulha na faina caseira.

    A caminho do café, por entre ruelas gastas, encontro um rebanho de ovelhas e, um pouco mais adiante, um grupo de pessoas. Vejo luto carregados e caras mortificadas. Paro. Depois da saudação, indago a vida que por ali corre.

    — O meu marido trabalhava na fábrica e o meu cunhado também. Depois, o meu cunhado  ficou sem emprego e agora está cá a comer e a beber, mais os seus cinco filhos. Se não fosse a gente, morriam à fome!

    Uma velhota, sentada na soleira da porta, aponta-me a casa 6 e espeta os olhos na negrura, sem dizer patavina.

    — Vossemecê vem dar alguma coisa?

    — Vim só falar com eles…

    Uma luz trémula escapa-se das fendas do barracão (3 quartos) onde vivem os Dias. Noémia, o marido, os seis filhos do casal, mais uma cunhada e a neta.

    Casa 6, rua 7, Ordem, Marinha Grande.

    Uma cachopa abre a porta e uma voz cansada manda-me entrar. No ar paira um cheiro de lenha. A mulher mastiga um pedaço de couve ­— saudação monossilábica — e bebe um trago. A miudagem, dispersa à volta da lareira, sorri. Uma lamparina a petróleo aparece na mesa onde acabo de deixar cair o meu bloco. A matrona começa a falar enquanto come a sopa. A sopa, aqui, é entrada, conduto e sobremesa.

    — Quando há feijão é todos os dias sopa de feijão. Hoje é uma espécie de cozido, porque deram um naco de carne à minha filha. Outras vezes, bebe-se café de cevada com um papo-seco. A minha comadre também me dá a sopa que não come lá em casa…

    Noémia Dias, 4 anos, 10 filhos, ex-operária do vidro, leva a mão gordurosa à cabeça do petiz mais novo e faz-lhe uma festa.

    — A minha menina, ao sábado vai pedir esmola. O dinheiro ainda não dá para viver. Eu, ao fim do mês, dou logo metade a cada merceeiro, senão não me fiam. O Governo deu-me alguma coisa para a escola dos miúdos o ano passado, mas este ano não deu nada. Ainda não lhes comprei os livros porque quando tenho algum dinheirito é para o leite do bebé, que anda a beber café.

    O bebé, o 10.º filho!

    — Porquê tantos?

    — O meu homem não tem cuidado! O médico dizia-lhe para ter cuidado que a vida não está para ter tantos filhos…

    O filho mais velho, Vítor Manuel, 23 anos, junto com a Lurdes, olha para a mãe.

    A lenha seca estala. O bafo da nossa respiração ergue-se, lentamente, na humidade.

    — E o futuro?

    Se isto não se resolver vai para pior… Mas temos esperança!

    Há meses atrás, a palavra ‘esperança’ já não fazia parte do vocabulário dos operários da indústria vidreira da Marinha Grande. A região, que durante anos tinha absorvido mão-de-obra de todo o país, viu-se subitamente confrontada com a realidade da crise. Cinco das maiores empresas do vidro — Dâmaso, Cive, J. Ferreira Custódio, Manuel Pereira Roldão e Ivima — cessaram de pagar salários em finais de 1983, princípios de 1984, colocando cerca de 2.650 trabalhadores em situação dramática. Cinco outras empresas de menor dimensão encerraram as portas, empurrando 410 operários para o desemprego. Mais de 70% do comércio fechou, segundo dados sindicais. O número de pedintes não parou de aumentar desde então. Houve pais que chegaram a mandar os filhos para a província e que ainda hoje continuam separados deles.

    A Vidreira da Portela deixou de ser um porto de abrigo…
    (Foto: José Paulo Boavida)

    O Pacto Social — acordo de viabilização — de 4 de Janeiro de 1985 foi apenas um balão de ar fresco para uma indústria em crise. E se hoje algumas destas empresas já actualizaram os ordenados, não é menos verdade que há centenas de trabalhadores a receber no «dia 50», de 50 em 50 dias. Em Março, a situação deveria estar regularizada, apesar de não haver certezas.

    — O Governo prontificou-se a tomar algumas medidas de apoio para minimizar a situação, mas há empresas que têm oito, nove meses de salários em atraso. Temos de nos apetrechar tecnologicamente. Não podemos ficar pelas meias tintas. Eu ainda não sei como vai ser o mês que vem… — diz-me um dos directores da Ivima.

    Entretanto, resta a caridade. A organização internacional Tulipa Vermelha fez, em fins de Dezembro, um donativo de 2.987 contos para ajudar os trabalhadores com salários em atraso. A verba foi distribuída pelo Sindicato dos Vidreiros e esgotou-se num mês.

    — Demos 1.650$00 [escudos] por criança até aos 13 anos — uma caderneta com senhas para os pais irem à Cooperativa do Povo da Marinha Grande comprar géneros alimentícios. — diz o presidente do sindicato, Raúl Ferreira, também ele com salários em atraso.

    — A fome não é tão visível porque houve recurso a outros lados, desde a venda de fios, pulseiras e alianças à concessão de facilidades por parte dos comerciantes. — conta o sindicalista. Na realidade, instaurou-se um clima de solidariedade. O próprio gerente da Sapataria Bom Preço, José Mendes da Silva, chegou a oferecer no Natal aos sem salário 50 pares de sapatos e, no Dia da Mãe, deu uma saltada à escola para entregar um cheque de 100$00 aos garotos mais pobres. Para o homem do Bom Preço «até houve muita humildade na escolha e se fosse necessário fazer o mesmo, voltava a fazê-lo, mas já não deve ser.»

    A situação parece estar a melhorar. Na Escola Preparatória da Marinha Grande já nenhuma criança vai buscar, às escondidas, restos de pão aos caixotes do lixo. Também já não há mais garotos que desmaiam na aula por causa da fome. E se no dia 2 de cada mês não era raro ver crianças espancadas — pagavam o desespero dos pais que não recebiam ordenado — hoje isso já acontece com menos frequência. Até princípios de 85, as bolachas, os chocolates  e os bolos não se vendiam na escola. As crianças comiam unicamente pão com manteiga. Alunos que não gostavam de peixe pediam sempre repetição, enquanto que agora já recuam quando aparece «peixinho» ao almoço.

    — A única vantagem foi começarem a gostar de salada porque, como tinham fome, comiam de tudo… — diz Abel Monteiro, o vice-presidente da escola, antes de levar a mão a um espesso «dossier» e garantir que «houve mães que chegaram a dar filhos a feirantes». A secretária, Maria Melo, enternecida, não deixa de acrescentar que testemunhou um dos casos em que uma mulher se dirigiu à professora para lhe oferecer o filho. Uma dessas crianças nunca mais voltou…

    Com ou sem melhoria, ainda houve 30 alunos que não se matricularam em 1985, apesar de a escolaridade ser obrigatória. A razão invocada é sempre a mesma: falta de meios. Senão vejamos: «Eu, João C., responsável pela educação do meu (neto) educando Marcos S., não compareci à matrícula, por motivo de me encontrar impossibilitado de trabalhar, já há um ano, tendo a necessidade de que o meu educando , logo que complete os 14 anos vá ganhar para sobreviver. Por este motivo peço a V. Ex.ª a máxima desculpa. 31/Outubro/84.»

    Dou mais uma saltada até à Ordem, zona  onde vive uma grande parte dos «sem salário» da indústria vidreira para saber até que ponto é que a esperança no futuro pode ser contabilizada.

    Chove. Ao lusco-fusco, personagens indistintas esgueiram-se paredes meias com a dormência que parece ter invadido a vila. Entro no primeiro comércio que vislumbro, a loja do senhor Madeira. O homem vende de tudo. O local é simultaneamente supermercado, tasca e salão de jogo. Meia dúzia de pessoas disputam uma partida de bilhar, na sala do fundo, enquanto uma cliente vai barafustando ao ajeitar as compras dentro de um saco de lona.

    — Eu dantes não vendia Kentucky e depois passei a vender. Por 12 mil réis mata o vício à malta. Agora é que começo a vender outras marcas… — diz-me o dono da loja, enquanto ampara uma lata aqui e acomoda uma embalagem acolá.

    Insiste:

    — Dantes até vendia roupas e tive de deixar de vender. O rol tem vindo a aumentar… mas é provável que a partir do mês que vem isto se recomponha. Já começaram a receber…


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM,  22 a 28 de Fevereiro de 1985 – Lisboa

    Nota do autor: Agradeço o empenho e o excelente trabalho dos repórteres fotográficos João Paulo Boavida e João Bafo. 

    N.D.: O PÁGINA UM agradece a João Paulo Boavida pela sua generosidade e contributo para a publicação desta reportagem e aproveita para deixar uma singela homenagem póstuma a João Bafo.


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  • Lotação esgotada

    Lotação esgotada


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, é publicada a reportagem que fez a capa do número 1 da mítica Revista “Grande Reportagem”. Com texto de Rui Araújo e fotos de Luiz Carvalho.


    «Há vinte e tal anos que estou aqui e nunca vi ninguém falar com tanta gente na prisão…»

    A surpresa do Chefe dos guardas da Penitenciária é exemplar. Universo carceral significa mistério. E se as autoridades levantam hoje a cortina é porque a instituição está muito doente…

    Prisões a abarrotar, insatisfação generalizada, medo quotidiano: o cocktail tornou-se explosivo…

    «Se o número de presos continuar a aumentar, vai ser o que Deus quiser…» Um responsável da Administração prisional é categórico: «As cadeias portuguesas estão a rebentar pelas costuras. O clima de tensão é preocupante!»

    Só por si, os números são assustadores. Em menos de um ano a colónia penal aumentou 27%, ainda mais do que a inflação. Há hoje em Portugal 8.400 presos quando a capacidade das prisões é de 6.800.

    Como tudo está apinhado de gente, dorme-se onde se pode: nas casas-de-banho, em Monsanto; nos corredores, em Faro; no chão, em Viana do Castelo.

    Vão ser reabertas as antigas prisões comarcãs de Braga, Covilhã, Monção, Odemira, Portimão e até um pavilhão especial para presos preventivos na cadeia de mulheres, em Tires. O próprio ministro da Justiça, Rui Machete, não hesita em pedir aos militares alguns quartéis emprestados.

    Vão-se tapando os buracos. Adia-se a resolução do problema. O mesmo responsável descreve-nos assim a realidade: «Os tribunais estão desorganizados, os juízes são irresponsáveis, a lei prisional não é exequível e o novo Código estende demasiado a noção de criminalidade.»

    Grades: Depois da revolta, a resignação.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    As prisões «3 estrelas» de ontem — se as houve — tornaram-se definitivamente as pensões da amargura de hoje. E se não há  boas prisões, como tendem a demonstrar os estudos sobre a reclusão prisional, também não pode haver bons guardas.

    «Vigiados por uma Administração hierarquizada, executores dóceis de decisões que muitas vezes lhes escapam, correias de transmissão de interesses dominantes, os guardas prisionais só dispõem de uma ínfima margem de manobra para dar à sua tarefa um toque pessoal», dizem os sociólogos.

    Os guardas são a prisão. Bem entendido, os presos fazem a distinção entre os guardas «beras» e os «porreiros». Guardas que também são reprimidos por uma Administração, obrigados a participar no «esquema», no uniforme e no quotidiano do refugo da sociedade. Tornou-se trivial sublinhar, com um pouco de miserabilismo condescendente, que o guarda passa, em regra geral, mais tempo na cadeia que o preso médio. É muito provável. Contudo o que faz também do guarda um recluso não são os ferrolhos, as grades ou os muros. É o desdém, é a rotina e é, sobretudo, o medo: o facto de haver um guarda para cada 20 presos é uma explicação plausível… , mas não será de forma alguma a única.

    Face às enormes carências de efectivos — um guarda chega a trabalhar mais de 62 horas por semana — a Administração pública improvisa soluções. Recentemente foi criado pelo Governo um quadro especial de «vigilantes tarefeiros», medida que o próprio ministro Rui Machete reconhece ser ilegal. «Até agora era preciso morrer um guarda para entrarem mais alguns…», desabafava um quadro dos Serviços Prisionais ao ministro da Justiça, na cadeia de Paços de Ferreira.

    Augusto José Mendes Rodrigues Ramos, 32 anos, 4.º ano da escola industrial, já foi sucessivamente empregado de escritório, fiel de armazém, comerciante por conta própria e desempregado. Depois de um estágio de três semanas, ele é hoje um dos 17 tarefeiros que trabalham no Estabelecimento Prisional de Lisboa, a Penitenciária.

    O seu sonho era ser polícia de choque, mas quando quis matricular-se já não tinha idade. Virou-se para a prisão porque assim estaria ao «serviço do Estado» e poderia aplicar os princípios do «Antigamente».

    Ramos tem consciência de que há duas partes distintas nesta «selva»: «de um lado, estão os guardas; do outro, estão eles…» E conclui: «o vigilante prisional, mesmo tarefeiro, tem de ser um indivíduo humano, 100% humano. Temos uma profissão como qualquer outra!»

    Prisões em Portugal.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Vergonha e culpabilidade. Dois sentimentos. Um drama para muitos guardas. Entre a missão de protecção da sociedade por 31.000$00 [escudos] mensais e o estatuto de «homens do lixo» mais ou menos contaminados pelo Mal que frequentam — é assim que os vê o imaginário popular — há uma grande diferença. «O guarda tem vergonha de si próprio. Sabe que o seu trabalho é guardar a ‘escória’ em vez de educar.» Esta opinião dos sociólogos é também partilhada pelo subchefe Carlos, guarda da Penitenciária há 21 anos: «As prisões portuguesas não são solução. Não há condições aqui para que um homem saia recuperado. Às vezes, vêm para cá e ainda aprendem mais do que trouxeram lá de fora. Não há dúvida que isto, para quem gosta de lidar com as pessoas e tenta tirá-las já recuperadas lá para fora, não é o sítio indicado. Além disso um guarda prisional é um escravo!»

    As tarefas «nobres» foram atribuídas a outros. Aos psicólogos, que não há. Aos 13 padres (em jargão oficial, Assistentes Religiosos), aos 10 técnicos de educação e aos 62 técnicos de orientação escolar. A lógica da repartição destas tarefas teve como resultado, até há pouco tempo, que o recrutamento dos guardas e a sua formação fossem insuficientes. Se as coisas se processam de forma diferente, hoje, é essencialmente porque há mais desempregados. E crise, neste caso, representa um nível escolar mais elevado. Contudo, ser guarda prisional ainda não é uma vocação.

    Evoluímos. Os carcereiros já não «espremem» o preso, vendendo-lhe caro as «graças da prisão» como acontecia frequentemente no século passado. Antigamente, os guardas «agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras (…), os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais», como escrevia Oliveira Martins. Agora, as coisas são diferentes mas violência e corrupção ainda andam de mãos dadas. A instituição prisional continua a ser o organismo de Estado com maior número de inquéritos por ano. Mas como de costume, grande parte dos resultados das investigações acaba por ir parar à gaveta dos ‘Arquivados’, a aguardar produção de melhor prova. Os raros processos conclusivos poucas repercussões têm de concreto.

    Rosa Maria, 18 anos: «Uma guarda chamada Dona Prazeres bateu-me dentro da cadeia e depois tive 10 dias de castigo!»

    Elizabete: «Eu sou uma boneca nas mãos das guardas, uma vítima. Rir pode ser considerado um delito. Criticar o leite em pó pode significar uma punição.»

    Guardas e reclusos partilham alguns vícios. Uns, bebem. A taxa de alcoolismo é bastante elevada entre os guardas. Outros, drogam-se ou mergulham nos «amores proibidos». A homossexualidade entre reclusos é vulgar. Um recluso em cada três pratica a homossexualidade.

    Ana Paula, 23 anos, conta que as colegas «fazem» mesmo à frente das guardas. «Da primeira vez que cá estive limpava as celas e aconteceu-me encontrar uma carta de uma colega para uma outra que eu, como mulher, não escrevia ao meu marido. Uma carta escandalosa…»

    A cadeia tem as suas imposições. A opção não existe. E a partir daí tudo é possível. A miséria moral ou física. Ou talvez as duas juntas. Com ou sem puritanismo.

    Universo carceral: um mundo com outras regras…
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Prisão de Tires.

    Às seis e meia da manhã, logo a seguir ao despertar cadenciado da sineta, nasce um burburinho que se repercute de andar em andar, se aproxima da cela e acaba por rebentar mesmo atrás da porta. Um, dois ferrolhos giram. A porta abre-se lentamente. A primeira coisa a fazer é respirar. A intimidade paga-se aqui com solidão. Então, fala-se. Fala-se de tudo e de nada. É falar por falar. É falar para esquecer. É tão somente falar para «ser-se gente». Aproveita-se cada segundo porque depois é outra vez tempo de esperar. É o inevitável reencontro com a solidão.

    — O momento mais difícil de todos é a noite! A gente sente falta dos nossos. Eu olho para as fotografias das minhas filhas, lembro-me do meu marido e dá-me vontade de chorar. À noite, a solidão dói mais…

    Ana Paula puxa do cigarrro e segue com o olhar a nuvem de fumo.

    Os dias vão passando, estéreis. Ela já passou várias vezes pelos «deslizes» cíclicos dos reclusos: a revolta, a melancolia, a resignação e… como não espera libertações precárias nem condicionais a curto prazo, apesar de ter pago «grande parte da dívida à sociedade», voltou ao princípio.

    Uma pessoa sai daqui ainda mais revoltada. É o regime da cadeia! Eu não penso voltar, mas isto não favorece ninguém.

    Ana Paula, 23 anos menos dois ou três de prisão, aconchega o uniforme, leva lentamente a mão à face para repelir uma lágrima e conclui a sorrir que agora vai ter a ajuda dos pais.

    — Eles ainda têm 10 filhos para criar mas estão a pensar comprar um táxi para eu andar durante o dia e o pai durante a noite…

    Ao lado do leito, a mesinha de cabeceira improvisada que ela conseguiu arranjar e a fotografia da família. Numa das paredes, mesmo por cima do penico, meia dúzia de recortes amarelecidos pelo tempo. A decoração possível. Publicidade para soutiens. Abraços principescos de Carlos e Diana. Travolta de jeans apertadas. Imagens. Fracos estimulantes de sonho. Míseros sucedâneos de Amor e Sucesso, como manda a lei. É a nivelação da personalidade pela despersonalização total.

    As actividades culturais são escassas. As acções de formação escolar ou profissional estão em fase embrionária. Dados oficiais garantem que 70% dos condenados trabalham. Os ordenados são baixos, entre 15 e 160$00 por dia. Trabalhar na prisão é mais uma forma de ganhar uns tostões e de ocupar o tempo do que um meio de obter uma formação profissional válida para a vida livre.

    Caminho nos terrenos da prisão de Tires. Os produtos são vendidos.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Segundo um técnico do recém-criado Instituto de Reinserção Social, a prisão isola momentaneamente o indivíduo  «sem lhe propor qualquer projecto social ou educativo ; depois liberta-o tal como chegou à cadeia, ou ainda em pior estado. Não se tem minimamente consciência do potencial de ódio e violência acumulados pelo preso, que só vai reforçar a sua rejeição pela sociedade.»

    Mas como não há estatísticas sobre a reincidência nem estruturas de acolhimento post-prisionais, não se sabe quantos voltam…

    Apesar da autorização concedida pelo Director-Geral dos Serviços Prisionais, o chefe dos guardas da Penitenciária proíbe-nos de falar com os presos. Entrego o meu gravador a um deles e peço-lhes que ditem os seus depoimentos. A Verdade fica, provavelmente, entre o silêncio a que o chefe os queria condenar e os excessos do anonimato.

    — Isto é a pior repressão que pode existir! É o regime nazista. As pessoas não aguentam isto.

    Oiço um ruído metálico. Passos distantes e uma voz que balbucia palavras ininteligíveis: «… comida, médicos.» Pela gravação imagino o aparelho mudar de mãos. O homem tem uma voz grave. Diz chamar-se Carlos Oliveira e estar de passagem. «Sou de Vale de Judeus e aquela cadeia é um buraco. Nós ali não temos direito a nada. Há agressões. Houve reclusos em greve de fome. Temos necessidades a nível da alimentação, da educação e sobretudo de comunicar com lá fora.»

    Penitenciária de Lisboa. Aproveitar todas as oportunidades para falar.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Comunicar com o exterior. A grande maioria, sem dinheiro, relações e a noção exacta dos seus direitos, pouco contacta com quem está lá fora. Os advogados vêm quando é preciso, os familiares quando podem e os amigos quando calha. A correspondência é toda aberta.

    O pai de Célia, 22 anos, morreu num desastre. A mãe da rapariga ficou cega. A Direcção da cadeia não a deixou ir ao funeral.

    Elizabete, 19 anos: «A minha mãe morreu. Deram-me conhecimento, mas não me deixaram ir ao funeral.»

    Isabel Madalena, 26 anos, talvez o caso mais dramático: «Tenho um filho com sete meses internado no Hospital de São José. Só me deixam ir ver o menino quando faço «barulho». Sujeito-me a ir de «castigo». A Directora responde que não dispõe de automóveis suficientes.

    Quando um recluso não acata as ordens restam a repreensão verbal e a «tarimba», a cela de castigo. Um cubículo de três metros por dois, escuro como breu, um balde para o que der e vier e uma cama de tábuas. O tempo de castigo varia muito: entre uma hora e um mês.

    O preso pode sempre recorrer ao juiz do Tribunal de Execução das Penas, mas muitas vezes prefere apelar para «instâncias superiores». Manda uma cartinha ao senhor Ministro da Justiça ou dá um telefonema à Dona Manuela Eanes. «A Dona Manuela Eanes é que me vai ajudar! Só acredito nela e em mais ninguém…», palavras de Dolores Sequeira, 30 anos, que diz não ver os filhos há dois anos.

    “A solidão à noite, dói mais…” – Penitenciária de Lisboa.
    (Foto: Luiz Carvalho)

    Em Outubro, 50% dos julgamentos dos presos preventivos  «residentes» na cadeia de Monsanto foram adiados. A percentagem foi ainda maior em relação à Penitenciária. É por esta e muitas outras razões que a população prisional bate cada mês novos recordes. É a crise económica, é o aumento da delinquência, é o novo Código que abrange mais crimes e é ainda a desorganização dos tribunais e o conservadorismo de alguns juízes que hesitam em aplicar penas alternativas.

    Com efeito, a aplicação de algumas penas de substituição previstas na Lei poderia reduzir substancialmente o número de presos: o trabalho a favor da comunidade, a prisão por dias livres (ou de fim-de-semana) e a multa.

    Entretanto, aplicam-se sentenças inéditas de legalidade duvidosa: um juiz do Porto condenou há semanas dois jovens assaltantes de uma mercearia a trabalhar gratuitamente para o comerciante lesado durante 10 dias — ou irem parar à prisão.

    A ruptura é iminente. Monsanto já está fechada aos jornalistas por razões de segurança interna. Paços de Ferreira está à beira da revolta — na opinião de uma educadora do Instituto de Reinserção Social. Faro, Custóias, Coimbra e as demais cadeias não escapam à regra.

    Por toda a parte o aumento do número de presos só veio acentuar a degradação da instituição prisional. A degradação da sociedade. Para solucionar os problemas do imediato o Governo vai precisar mais do que de boa vontade. Vontade e mais nada.

    CONTAR OS DIAS

    06H30 Toca a sineta – Alvorada.

    06H45 Abertura das celas e saída para o banho.

    07H15 «Conto» (contagem, em calão carceral) das reclusas.

    07H30 Sineta.

    07H45 «Conto» das reclusas.

    08H00 Regresso para as celas ou saída para o trabalho

    11H45 Sineta.

    12H00 «Conto das reclusas e sineta.

    12H15 Almoço.

    12H45 Recreio.

    14H20 Sineta.

    14H30 Regresso para as celas ou saída para o trabalho.

    17H00 Regresso do trabalho.

    17H30 Abertura das celas.

    18H30 Sineta e «conto» das reclusas.

    18H45 Jantar.

    19H15 Convívio.

    20H30 Sineta e regresso para as celas.

    20H45 Sineta – Recolher.

    TAXA DE HOMICÍDIOS POR CEM MIL HABITANTES

    Toda a gente parece preocupar-se com o «aumento da criminalidade. À Direita, os adeptos da doutrina da segurança denunciam o aumento da delinquência e aproveitam para justificar a posteriori os seus apelos para uma justiça mais rija. À Esquerda, argumenta-se com o agravamento das desigualdades. «Cada qual tortura os factos até chamar os seus carrascos ao poder», afirma o jornalista francês François de Closets. «E o público, fascinado pela grande criminalidade, não parece comover-se com uma nova forma  de violência aterradora: a violência automóvel. Cada um de nós tem 100 vezes mais probabilidades de morrer atropelado por um motorista domingueiro do que ser assassinado por um criminoso.» O que acontece, de facto, é que temos outra percepção da violência. Antigamente, tinha-se apenas conhecimento da violência mais próxima. Agora, predomina a violência do Mundo via televisor. Vive-se em contacto permanente com a delinquência económica e o receio de se ficar sem o carro transforma-se na angústia de se perder a vida.

    UM NÓ NA GARGANTA

    Ate meados do século passado havia poucas prisões. O castigo era essencialmente físico — a morte ou, mais brandamente, a mutilação, o desmembramento, o desterro…

    Miserere! Miserere!

    O coro da cidade atulhada nas janelas metia dó. A tropa, indiferente à algazarra, abria o préstito . Os padres, os frades, seguiam atrás, salmodeando latim fúnebre num cantochão rouco. O crucifixo erguido ia sempre voltado para os réus que se arrastavam de capuz caído sobre os ombros e de corda atada à cintura, questão de hábito.

    Adeus, Márcia, eu vou morrer!

    «De um lado», descreve Oliveira Martins em 1894 no seu Portugal Contemporâneo, «ficavam os meirinhos e escrivães, de capas e batinas negras, calção, meia e sapato afivelado, para pôr sua fé no peito» como diz a Ordenação. De outro, os clérigos, em coro, num tom de rufar de trovões distantes, salmeavam: De profundis clamavi ad te… De profundis… Os carrascos, nos degraus das escadas, esperavam; e em quadrado as tropas, enfileiradas, de armas ao ombro, formavam um cordão unido, monstro dentado de baionetas, de cujas escamas de aço o Sol, indiferente à loucura humana, tirava faíscas. Dizia-se um nome, e o carrasco apoderava-se de um homem, seguido por um frade rezando-lhe ao ouvido…

    Este corpo que abraçaste

    Que já foi o teu prazer,

    Vai tornar-se em pó, em terra,

    Adeus, Márcia, eu vou morrer!

    Subiam as escadas; a meia altura, o carrasco tapava a cabeça ao desgraçado vestindo-lhe o capuz branco, pendente nas costas, atava-lhe os dois pés… Rápido! Breve! Passava-lhe o nó na garganta» e o condenado era em seguida queimado ou enterrado, conforme a decisão dos juízes.

    Até 1867 — data da abolição da pena de morte em Portugal — o castigo era essencialmente físico. Muitas vezes a sentença era a morte. Mas também a mutilação, os desmembramentos e, acessoriamente, o desterro, o confisco ou a multa.

    Como a prisão era quase sempre «por poucos dias» não se construíam estabelecimentos. Arrumavam-se os presos em qualquer sítio. Mas as penas corporais foram caindo em desuso, em grande parte por influência do Direito Canónico, e a pena principal passou a ser o encarceramento. Edificaram-se prisões e adaptaram-se castelos, palácios e conventos.

    Associa-se a noção de pena à regeneração na prisão que «tão eficazmente tem contribuído em outro países para a extirpação de vícios, para a emenda de costumes, para o aumento da moral pública e para o progresso da civilização.» (Decreto de 16/1/1843)

    Entre os  decretos e a realidade há um fosso enorme. As cadeias são o tumor «purulento» do Governo. «Os carcereiros espremiam o preso, vendendo-lhe caro as graças da prisão. Para aumentar o valor do serviço, agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras: um monturo de impudicícia torpe, obscena. Os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais. Davam-lhes  sovas de cacete (…) e por dia ¼ de pão e caldo, onde flutuava, raro, alguma erva. Sócios na cadeia, o assassino, o pedreiro-livre, sofriam a fome em comum. Viam-se de rastos, esfarrapados e nus, com a cinta apenas coberta por um farrapo sujo, com a pele áspera, escamosa, da imundície, da fome e da lepra, com a face esquálida, os cabelos pegados de suor e terra habitados de bichos; viam-se roendo ossos como cães, ou devorando as cascas podres das frutas. De noite dormiam em pilhas.» (1)

    Em 1936, o país só dispõe ainda de duas cadeias (inauguradas em 1885), duas pequenas colónias penais para «vadios» e umas quantas velhas prisões «sem o mínimo de condições.» (2)

    Partindo da ideia de «corrigibilidade» de todos os condenados efectua-se em 1979 uma nova Reforma que vai anteceder de três anos o actual Código Penal… e a crise da instituição prisional.

    (1)            In «Portugal Contemporâneo», Oliveira Martins, 1894.

    (2)            In «Aspectos Fundamentais do Sistema Penal e Prisional e da Organização Judiciária em Portugal«, Ministério da Justiça, 1965.


    Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM, 7 a 13 de Dezembro de 1984 – Lisboa

    N.D.: O PÁGINA UM agradece a amável generosidade do fotógrafo Luiz Carvalho, cujo contributo tornou possível a publicação desta reportagem.


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  • Pescueza: Esta terra é para velhos

    Pescueza: Esta terra é para velhos


    Nesta reportagem, Rui Araújo dá a conhecer os habitantes e as memórias de Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.

    A vila tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.


    Península Ibérica: o perigo é o despovoamento.
    (Foto: Rui Araújo)

    “VERSIÓN EN ESPAÑOL:

    “Pescueza, esta tierra es para viejos. Soledades en la frontera lusoespañola”

    A meio da manhã orvalhada, dou com dois velhos janotas sentados num banco do pátio do Centro de Dia de Pescueza. Meto conversa com o do panamá alvo. Dá ares de ser um homem bonachão. O outro parece ser de poucas falas.

    —  Seja bem aparecido, cavalheiro!

    Ángel Martín Sánchez, por alcunha Tío Ángel, é poeta. Sorri-me. Tem 96 anos cumpridos. Diz-me de ímpeto que sabe de cor e salteado dezenas de poemas do seu conterrâneo José María Gabriel y Galán (1870 – 1905).

    O poema dele de que eu mais gosto é “El Embargo”. Quer ouvir? — indaga, com boa disposição.

    O ancião mede-me de alto a baixo e, sem esperar pela resposta, põe-se a declamar o poema em castúo, um dialecto da Estremadura espanhola.

    — Señol jues, pasi usté más alanti… (Senhor juiz, passe mais adiante)

    Saboreio a recitação com deleite, que remédio. Dou comigo a pensar nos meus amigos poetas: o moçambicano Virgílio de Lemos (1929 – 2013) e o galego Alfonso Armada (Vigo, 1958).

    — Tenho uma memória fantástica. Sei uma data de poesias. Não tenho é aqui a carteira comigo. Dava-lhe os títulos todos…

    — É tudo de José María Gabriel y Galán?

    — É quase tudo dele. É pois…

    — Antonio Machado, Federico García Lorca, Rafael Alberti, Rosalía de Castro…

    — Não. Não…

    Encontro com Tío Ángel, o poeta (à esquerda na foto), e Tío Isidoro, o irmão ex-Guardia Civil.
    (Foto: Rui Araújo)

    Por descargo de consciência, opto por cumprir o papel de jornalista. E inicio a singular entrevista. O meu parceiro, Rui Pereira, profere um lacónico “Estou a gravar”, os olhos postos no viewfinder da SXS. Ele sabe, bem entendido, que não podemos perder tempo.

    — Nascido e criado em Pescueza. Éramos agricultores humildes. Lavradores. O amanho da terra. As árvores, a apanha das bolotas e essas coisas todas quando deixámos de ir à escola. Também gostávamos do gado. Tínhamos porcos para as matanças, para essas coisas, e ainda uma junta de vacas e isso.

    Em Pescueza, “todos encarreiravam para a lavoura e a pastorícia” (diria Aquilino Ribeiro depois de “El hombre que mató al diablo” na Novela Semanal, em Madrid. O romance “O homem que matou o diabo” só foi publicado em português alguns anos depois.).

    Uns anos depois, Aquilino Ribeiro publica em Portugal “O homem que matou o Diabo”
    (Foto: Captura de ecrã)

    Tío Ángel era um aldeão mais igual aos outros. O seu mundo era lavoura e o gado. E a leitura. A poesia, sobretudo. Ele devorava poesia.

    A sua casa não era das mais ricas do lugar. Era apenas uma família remediada e honrada que não aspirava a mais nada do que a ser isso mesmo…

    — Era feliz aqui?

    — Pois era. E continuo a ser feliz na minha casita… — diz a sorrir.

    Um velho feliz… — exclamo ou pergunto, pouco importa.

    — Sim…

    A reposta, decididamente, não me convence. Experimento de novo.

    —  Um velho feliz…

    Ele não se ofusca com a minha insistência.

    — A verdade é que a solidão me mata! Morreu-me a mulher há quatro anos. Estávamos casados há 65…

    Escuto, calado. Não tenho outra saída. O ancião segura uma bengala, que mais parece um cajado.

    Casados, eh! E fomos muito felizes! Foi a única rapariga de quem gostei. Éramos os dois daqui. E já está… — conclui.

    Palavras do jornalista Raul Brandão (1867 – 1930) a propósito de outro amor da mesma casta: “Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir… Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida.”

    Daniela Goméz Martín, a mulher de Tío Ángel, partiu primeiro. Faleceu em 2017.

     — O que é a morte para o senhor?

     — O que é a morte para mim? Eu não devia dizer isto, mas há aqui pessoas… Prefiro a morte. Sim. Porque aquilo não é viver. Viver assim não é viver. Terem de dar-te a comida, terem de lavar-te, terem de…

    Ángel é homem de carácter. Respondo-lhe com um silêncio amargo. A velhice deforma-nos. Pior: a dependência. Tal como a solidão imposta ou, por outras palavras, a morte social.

    Isidoro, o seu irmão mais novo, nem sequer pestaneja. Há separações dolorosas. E há a morte, que dá plenamente sentido à vida e não devia deixar ninguém indiferente.

    — Vidas assim, não lhes dou nenhum valor. Isso não é viver. Quando chegar a esse estado, não vou suicidar-me, mas…

    — E qual é a maior alegria, hoje, para si?

    Tento cumprir o papel de jornalista, mas é caso para dizer “Aqui-d’el rei”. A pergunta é incómoda. Ignoro qual será a reacção. Feitas as contas, o velho engoia-se como pode no banco, pensativo.

    — A maior alegria para mim seria uma companheira, pelo menos, durante a noite…

    Em quartos separados… — pergunto ou insinuo com um sorriso sardónico nos lábios.

    Isso já não faz falta… — profere.

    — Nunca se sabe… — retruco em tom de provocação.

    O idoso espraia o olhar pelo pátio vazio e desata a rir à gargalhada. De facto, é poeta mas não tem cara de pinga-amor.

    — Mas o que é que queres dizer com isso?

    Há sempre coisas dignas de serem saudadas, creio.

    — Ouve lá, vou dizer-te uma coisa…

    — Diga lá.

    Eu digo. Para o que é que eu quero uma mulher? É para companhia. É para falar. No que diz respeito ao sexo, nada.

    E o amor?

    Homem, o amor é o melhor que há se é um amor verdadeiro. É o melhor. Um amor bom. Fui muito feliz com a mulher. Muito feliz porque fizemos uma boa combinação. Eu é que mandava lá em casa. Ela fazia o que queria em matéria de gado. Havia momentos em que me zangava, mas… A solidão mata-me. Há quatro anos morreu-me a mulher. Estávamos casados há 65 anos. Casados! Pois é… — conta Ángel Martín Sánchez.

    Ele arqueia os ombros e mete-se a rir. Deixo-o dar largas à alegria.

    — Este português é danado para a brincadeira…

    Os poetas têm sempre razão. Topo a frase anónima pintada em letra amarela no banco roxo do meu querido artista. “O prazer é a flor que floresce, a recordação o perfume que perdura”. Seja… Mas, nada é eterno e como escreveu Raul Brandão “o que aqui conserva um carácter eterno são as árvores, os montes e o trabalho no campo e nas eiras, que à força de ser transmitido — sempre os mesmos gestos — adquiriu uma beleza extraordinária, entranhada até ao âmago nos vivos e nos mortos.”

    É assim. Tío Ángel, o poeta de Pescueza, partiu umas semanas depois de eu o entrevistar. Partiu porque as pessoas só morrem mesmo quando já ninguém se recorda delas.

    ESTA TERRA É PARA VELHOS

    Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.
    (Foto: Rui Araújo)

     Pescueza, Província de Cáceres, Estremadura.

    À primeira vista este povoado rústico do século XV parece igual a tantos outros da planura envelhecida e olvidada, mas não é: aqui, não há lares de idosos. Os velhos vivem nas casas onde ergueram telhado…

    Mais uma vila que parecia estar condenada a desaparecer como tantas outras dos dois lados da raia…

    Hoje, Pescueza já só tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.

    Louvado seja o programa “Quédate con nosotros” (Fica Connosco) que foi criado para impedir a morte (absurda da vila) e, do mesmo modo, dar uma vida melhor  porventura mais digna  e mais autónoma  aos seus velhos.

     “Quédate con Nosotros” é um projecto que, ao fim de 10 anos de trabalho, evidenciou simplesmente o interesse que tem aquilo a que chamamos agora a Espanha esvaziada as zonas despovoadas, o mundo rural… de… de se criar uma nova organização dos serviços de proximidade. — explica Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

    A ideia (inovadora!) é não mandar os velhos para os lares. Não os há, aliás, aqui. E não são precisos!

    Por aqui dizem com orgulho que o Festivalino é o festival mais pequeno do mundo. Foi criado em 2008. Desde então, passaram por Pescueza grandes artistas de Espanha como La Oreja de Van Gogh, Amaral, Manuel Carrasco ou Revolver.

    A prioridade era dar vida à povoação e, por outro lado, fomentar a  interacção com os idosos.

    Há três anos apareceram no Festivalino mais de 10 mil pessoas.

    A Associação dos Amigos de Pescueza começou, entretanto, em 2011 a implementar com o apoio da Junta da Extremadura, a União Democrática de Pensionistas (UDP) e o município, o modelo de uma terra sem lares. Nem mais!

    — A gente… A gente da nossa vila precisa de continuar a viver onde viveu toda a vida. Criarem à sua volta o lugar mais decente para continuar a desfrutar não só da casa, não só da localidade, da loja, dos vizinhos, dos amigos e da horta. — acrescenta Constancio Rodríguez Martín.

    Pescueza permitiu a muitos idosos permanecerem nas suas casas, o lugar onde sempre viveram.

    Facilita-lhes a vida. E de que maneira…

    Aqui, um corrimão nas paredes das casas.

    Ali, um passeio azul para os andarilhos com anti-derrapante.

    Tudo isto nos itinerários mais frequentados: igreja, consultório e centro de dia.

    Pescueza – mais uma povoação confrontada com o despovoamento…
    (Foto: Rui Araújo)

    Pescueza é  segundo o Banco de Espanha  um dos 158 municípios da região que podem desaparecer a longo prazo se não for invertida a dinâmica populacional.

    Há 3 mil e quatrocentas localidades espanholas confrontadas, hoje, com o mesmo problema.

     Dizem que o primeiro sintoma da morte de uma localidade é o encerramento da escola. Quando se fecha a escola começa a haver falta de quê? De crianças! Não há crianças. O sintoma seguinte é quando os comércios desaparecem. O lugar tem cada vez menos gente que recorre aos comércios, que, por sua vez, deixam de dar lucro. E depois, definitivamente, o derradeiro sintoma, o mais grave, aqui, na nossa região, é o encerramento dos cafés porque são o centro social e o ponto de encontro das pessoas. São uma necessidade nas povoações. Quando já não há pessoas deixa de haver serviços públicos como a escola, os centros de saúde, o banco e os Correios. Os sintomas da morte definitiva, quando deixa de haver serviços públicos ou município, serão esses. — afirma José Vicente Granado Granado, Director do SEPAD (Servicio Extremeño de Promoción de la Autonomía y Atención a la Dependencia).

    Centro de Dia de Pescueza.

    Meia manhã de mais um dia como os outros.

    Só aparece, aqui, quem quer ou quem precisa de algo.

    O local está aberto das 8:30 da manhã até às 9:00 ou 9:30 da noite. E adapta-se às necessidades de cada pessoa…

    Montaña Llanos Llanos prepara o almoço do pessoal e o petisco de hoje promete: “patatas marineras” (batatas com gambas, mexilhões, ameijoas e peixe) e “de segundo”, como se diz em Espanha, bifinhos de porco.

    — O maior desafio que temos, aqui, neste centro é que as pessoas permaneçam o maior tempo possível na sua casa. Para isso, prestamos-lhes uma série de serviços como, por exemplo, as refeições, os duches, podem vir cá tomar duche, o serviço de lavandaria, também os acompanhamos ao médico e às consultas, não só na vila como nas cidades que estão perto, e, para tal, dispomos de este projecto “Fica Connosco”, que consiste em que eles permaneçam, enquanto for possível, nas suas casas, porque aquilo que as pessoas de idade desejam é permanecer o maior tempo possível na suas próprias casas. Há muitas mulheres que perderam o companheiro e é ainda o sentimento de solidão. Nós, aqui, também as acompanhamos nesse processo de solidão que passa, por vezes, pelo luto, um pouco para… não ficarem, se calhar, sem ninguém, sem qualquer apoio… É gente que  não tem filhos e, para isso,  temos também uma psicóloga que vai ainda a casa das pessoas e as vai apoiando. — Sandra Díaz García, Directora do Centro de Dia.

    Todos os dias há actividades : aulas de ginástica (como a de esta manhã), ateliers de nutrição ou de fabrico de sabão, sem falar nas sessões de emoção, que é como quem diz da memória.

    A Associação Amigos de Pescueza presta agora auxílio a 30 e tal idosos.

    O sol está a pino.

    Daqui a bocado é a hora do almoço no Centro de Dia.

    No entrementes Herminia Sansón Martín meteu de arrancada para o olival à saída da vila. A sós com os seus botões, claro… Tem 82 anos. Vive em casa sozinha. Perdeu o marido há 21.

    Hoje é dia de cortar o “moito”, o pé-de-burro, os rebentos das oliveiras mais ramalhudas.

    Tem o pé leve mas labutou uma vida inteira de sol a sol — ela… mais o marido, que era operário na Seat, em Barcelona.

    Com o andar dos tempos Tía Herminia começou a dar mais valor a estes parcos instantes de paz. E às oliveiras. No ano passado produziu 79 litros de azeite. 

    Madre, yo tengo un novio aceitunero,

    que vareando tiene mucho salero.

    Cuando me ve, me dice:

    – Voy a morir por ti.

    Madre, yo tengo un novio aceitunero.

    ¡Aceitunero me gusta a mí!

    Dale a la vara,

    dale bien, que las verdes

    son las más caras

    y las negras “pa” mí.

    Tiri tiri tiriri.

    (NOTA: Amália Rodrigues chegou a cantar “Los aceituneros” em espanhol. A música pode ser escutada aqui).

    Pescueza é um povo que sempre viveu da lavra e da pastorícia.

    E Portugal ali tão perto…
    (Foto: Rui Araújo)

    No Centro aberto – que acaba por ser uma autêntica plataforma de serviços – há mais uma actividade: a preparação da azeitona, que tem muito que se lhe diga.

    O almoço só é servido à uma da tarde.

    Ficamos a observá-los como quem não quer a coisa.

    Tía Antonia, de olhos a luzir, tira da memória uma cantiga de amor com um azeitoneiro.

    A melopeia sentimental prossegue.

    ¡ Ay! Me estoy muriendo por ti.

    ¡ Ay ! Desde que te conocí.

    Estando en la aceitunera él me decía

    con palabritas dulces que me quería,

    se acabó la aceitunera y no lo he vuelto a ver.

    Madre, yo tengo novio aceitunero.

    ¡Ay, que se muere por mi querer!

    O segundo serviço é daqui a uma hora, às 14.

    A sala de jantar está silenciosa. A euforia do viver não é para aqui chamada…

    O Centro conta com 12 auxiliares, uma enfermeira, uma psicóloga, uma cozinheira, um administrativo, um monitor de desporto  e uma directora (que é terapeuta ocupacional) para cuidar dos seus anciãos.

     A atenção é essencial para os idosos porque para além dos cuidados de enfermagem eles precisam de cuidados humanos. Necessitam de ser bem tratados. Com carinho. Com humanidade…

     E a solidão dos anciãos?

    — A solidão dos anciãos é uma questão muito delicada que requer muito carinho da nossa parte, muita atenção, muito apoio, para que eles se sintam queridos e saibam que estamos sempre aí para os atender. Nós, aqui, tratamo-los como se fossem da nossa família. Cuidamos das suas necessidades tanto dentro como fora do centro e ainda nas suas casas. Tentamos assumir um papel mais de família e não só de mera assistência. — declara Raquel García Borrero, Enfermeira.

    Daqui a bocado é o momento da ocupação útil e, sabe-se lá, espiritual: “la siesta”. Os camponeses madrugam e há hábitos que nunca se perdem…

    Tío Isidoro.

    Está quase na casa dos 90. Foi militar da Guardia Civil. Meto conversa com o ancião.

    O senhor não tem cara de Guardia Civil…

    —  Não tenho cara? Mas corpo, sim. (RI-SE) Eu entrei para a Guardia Civil com dificuldade porque não tinha estatura suficiente… De maneira que tive problemas, mas só por ser pequeno. E, por fim, deram-me… Deram-me como apto. Já somos história porque em relação à alegria tenho muito menos porque… a idade não perdoa. Os anos não perdoam. É o que te… Não se escapa ao tempo… E é cada vez, pior. Cada vez, pior. Bem…

    —   O senhor pensa na morte?

    —   O quê? Sim, penso na morte, mas o que é que eu posso fazer? Ela chegará quando chegar. Não tenho pressa. (RI-SE) Eu procuro viver a vida aqui e mais nada. E é assim!

    O tempo é implacável. E de nada serve atamancar o passado.

    A vida tem de ser encarada como aquilo que é (no presente!), independentemente do temperamento e das quimeras de cada um.

    Muitas vezes o pior até nem é a regressão.

    É a gente acabar no ermo.

    Tío Pío – a solidariedade da raia é feita de gente assim…
    (Foto: Rui Araújo)

    Tío Pío.

    78 anos. Solteiro. Nascido e criado em Pescueza.

    Ajudou muitos portugueses há para aí 60 e muitos anos, quando era guardador de rebanhos.

     Quando tinha 15 anos… 15 anos, 14, 15… costumavam aparecer portugueses de noite por aí, pelo campo, levavam 20 ou 25 quilos de café às costas. A tremer de frio. Passavam frio. A água chegava-lhes até aqui acima. Molhavam-se bem molhados… Eu dormia com o gado no campo e os que passavam, “vem cá”, levantava-me, fazia uma fogueira, já tinha a lenha preparada para fazer uma boa fogueira, aqueciam-se…  recorda o velho pastor, Tío Pío Ramos Peréz. 

    Nos anos da fome, “los años del hambre” (como ainda se diz cá), os contrabandistas portugueses corriam estas terras malfadadas e governavam-se. Traziam café e levavam açúcar, fazenda e bolachas para as suas aldeias.

    Sem gente no interior, não somos nada…
    (Foto: Rui Araújo)

    Verdade verdadeira, da fraternidade de antigamente já só resta a memória dos velhos, que sabem o que custava a vida. Mas o pior para esta gente ainda é capaz de ser a solidão…

     A solidão é o pior que há. Metes-te em casa à noite, sozinho… Penso muito de noite… Pois, penso em tudo. Que pode acontecer-me qualquer coisa. Que pode acontecer qualquer coisa e coisas assim, mas isso depois passa…

    — E tem um sonho? Uma quimera?

    — Pois, não. É um dia de cada vez e mais nada. É um dia de cada vez e mais nada.

    Tío Pío é um homem só.

    A solidão imposta  ou a morte social  é sentida como um castigo.

     A solidão é um dos grandes flagelos do século XXI. É agradável se a pessoa a escolhe, é uma opção. Mas pode ser tremendamente dura quando é uma obrigação. E, hoje em dia, há cada vez mais idosos… Há povoações com pouca população e a solidão é, muitas vezes, uma obrigação. Creio que recebo mais deles do que lhes posso dar, mas o mais difícil, quiçá, seria ter consciência dessa solidão, quando a pessoa não a quer… É bonito. É gratificante, mas o mais difícil seria talvez isto: sabermos que essa pessoa não quer essa solidão e tem de lidar com ela dia após dia…

    — A parte humana é a prioridade?

    — Sim, claro. Sim, sim, sim… É o motor do projecto, sem dúvida. — conclui Noelia Galán, Psicóloga.

    Duas e meia.

    É trigo limpo.

    Tío Isidoro, que estava à espera de boleia para ir dormir uma soneca a casa, sai do Centro de Dia.

    Trini, a auxiliar, faz de motorista do carro eléctrico da Associação Amigos de Pescueza. E de amiga ou confidente do velhote…

    Centro de Dia. 

    Mais uma história que é ao mesmo tempo a da Península Ibérica.

     Eu tinha uma loja e o meu marido era sapateiro. Ele trabalhava no piso de cima e eu tinha a loja em baixo. Os portugueses apareciam com o café de mochila às costas e nós comprávamos-lhes três ou quatro quilos porque não podíamos comprar muito… Eu é que o vendia. Moía o café e depois vendia-o  às pessoas por cinco ou 10 pesetas. E açúcar também 10 pesetas ou cinco porque havia falta de açúcar. E os portugueses vinham de noite. É isso que quero dizer-lhe. Avisavam logo em que semana vinham e… vamos lá a ver… tínhamos a porta fechada e a luz apagada… para a Guardia Civil… se aparecesse… não se dar conta que estávamos ali.  Iam para cima e fechava-se a porta. Eu ficava em baixo, cheia de medo, e o meu marido consertava o calçado. E uma vez encomendaram-lhe camisolas interiores de Inverno. E um deles vestiu cinco camisolas, umas em cima das outras. Porque se as levassem vestidas não ficavam sem elas…

    — São os únicos portugueses que…

    — … lá para os lados da raia.

    — Mas são os únicos que a Senhora conheceu…

    — Sim. Sei como se chamam e tudo…

    — Como é que eles se chamavam?

    — Um chamava-se João… E outro José Domingos e outro Felizário ou Feliz…

    — Felizardo?

    — Felizário e João era o irmão dele. Era o irmão dele… Tía Constantina Rodríguez Llanos, 94 anos, Comerciante aposentada.

    Os contrabandistas não andavam em magotes, mas precisavam de ter sorte.

    Seja como for, numa hora de aperto espanhóis e portugueses — nos dois lados da fronteira — eram solidários.

     Espanha é um país com inúmeros povoados pequenos, são localidades e comunidades, que respondem à mesma idiossincrasia que Pescueza. Pensamos, por outro lado, que Portugal, é um país que partilha connosco um monte de similitudes culturais, sociais e económicas muito importantes, mas também é possível fazer com que este projecto arranque e tenha um enraizamento profundo em Portugal. A partir de “Quédate con Nosotros” da Associação Amigos de Pescueza, fazemos uma proposta franca, sincera e comprometida para que qualquer iniciativa que consiga atrair o… …o interesse das comunidades de Portugal na implementação de um projecto semelhante na sua… …o seu quotidiano, em desenvolver um novo cenário do que falamos há tanto tempo… — propõe Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

    Ignoramos quase tudo do viver e morrer destas pessoas, dos seus sentimentos e costumes (como diria o mestre Aquilino Ribeiro).

    Fim da viagem a Pescueza. Terra de velhos extraordinários…

    Amanhã, chove a potes.


    Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal e emitida na TVI em 16 de Fevereiro de 2022.

    O texto também foi publicado em Espanha no jornal FRONTERAd (Madrid).

    Fotos de Rui Araújo


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  • A ilha

    A ilha


    Nesta reportagem, Rui Araújo desvenda as mágoas, os tesouros e memórias da ilha mais pequena do arquipélago dos Açores.

    No Corvo há histórias de corsários e de baleias. E de milagres.


    O (meu) velho e o (meu) mar, parafraseando Ernest Hemingway. (Foto: Rui Araújo)

    É quase noite.

    Lá fora, o mar está chocalhado.

    Eles juntam-se, aqui, quando chegam das terras de cima ou do mar. Eles. Elas, não.

    Antes, há uma data de anos, o ponto de encontro dos pescadores e dos lavradores na ilha do Corvo era o Largo do Outeiro.

    Café Traineira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Agora, é o Café Traineira.

    Os náufragos da vida e os outros que deram à costa — a porta permanece sempre escancarada até às oito ou coisa que o valha — já não tomam resoluções. Matam o tempo. Mas há mais coisas que mudaram…

    Inácio Pimentel: “Agora, já está tudo relva“.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Antigamente, as pessoas trabalhavam muito mais. Agora, não. Agora, o senhor vai para cima todo o dia e vê um ou dois lá em cima. Não vê mais ninguém. Já não é como era. Trabalhavam… Agora, já está tudo relva… — conta-me Inácio Pimentel.

    — E porque é que já não trabalham as terras?

    — Já não trabalham porque não querem. Não têm falta. Querem o gado e mais nada. Já está tudo relva…

    — E a pesca? Mudou muito?

    — A pesca… Antigamente, eles apanhavam muito peixe porque havia muito. E havia muitas lanchas. Agora, só há duas ou três. Passa-se dias e dias que nem sequer vão ao mar. Pronto, já não é como era…

    A conversa e os pleitos, quando os há, são entrecortados por filmes de telemóvel. Histórias do mar. O que é que havia de ser?

    Lá ao fundo, o televisor sem conserto dependurado na parede debita ruído. Ninguém liga.

    De qualquer forma, o essencial (à semelhança da insularidade) raramente se resume a palavras.

    Às vezes, a felicidade (por mais efémera que ela seja) tem a forma da rotina dos dias numa ilha, longínqua ou nem por isso. Ou passa por histórias de baleias ou de lobos do mar. Hemingway, Melville, Conrad e London que o digam. Ou Vitorino Nemésio ou Raul Brandão…

    Corvo: uma ilha com gente rija, sobretudo os mais velhos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Mudança de cenário.

    O nosso destino é o cemitério.

    E deixamos sempre uma parte de nós no caminho, mas no Corvo ainda há quem teime em honrar o passado. E se reconheça em Deus e na amargura da ausência. Com ou sem mortificação…

    O cemitério à beira-mar.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    José Inácio de Fraga. A lápide não diz, mas era mais conhecido por José Augusto.

    José Inácio de Fraga, mais conhecido por José Augusto.
    (Foto: D.R.)

    O “trancador” faleceu a uma dezena de milhas do Corvo na manhã de 21 de Julho de 1955. Tinha 29 anos. Deixou 4 filhos mais um a caminho.

    A campa, o nome — a memória — e o rosto ajudam-nos a ser quem somos — diria Torga.

    Era baleeiro. É o único corvino que morreu na caça à baleia.

    O padre e os 51 fiéis abalam.

    Lá atrás, o manto sombrio do horizonte esconde as campas anónimas dos 17 romeiros — os peregrinos de Santa Cruz das Flores e da Fajã Grande, que morreram ao largo do Corvo aquando do naufrágio da lancha “Senhora das Vitórias”, mais conhecida por “Francesa”, a 13 de Agosto de 1942 .

    Sem a morte a vida não teria sentido.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É noite funda não tarda.

    Vila do Corvo.
    (Foto: Rui Araújo)

    Corvo.

    É a ilha mais pequena dos Açores.

    Terá sido descoberta por Diogo de Teive, escudeiro do Infante Dom Henrique, em 1452.

    O povoamento definitivo ocorreu quase um século depois, em 1548.

    O isolamento e a ausência de um porto seguro (sem contar com a dependência em relação à vizinha ilha das Flores) são uma explicação…

    O espesso mato e o arvoredo de outrora — pau branco, loureiro, tamujo, azevinho e cedro — aqui a norte, no Caldeirão! — por exemplo, desapareceram há séculos.

    Mesmo assim, o Corvo, denominado outrora a “ilha negra”, é reserva da Biosfera desde 2007. Um galardão excepcional da UNESCO.

    Mas… vamos por partes:

    Área: 17 quilómetros quadrados bem contados.

    Altitude máxima: 718 metros.

    População: 459 habitantes (mais 129 do que há seis anos), maioritariamente corvinos.

    Os outros são oriundos do arquipélago, do continente, da Madeira, de Cabo Verde, de Espanha, do Brasil e até dos confins da Ucrânia.

    Vivem todos, ali em baixo, na única povoação da ilha: Vila do Corvo.

    Principais actividades: empregos públicos, produção de gado — necessariamente com apoios comunitários que um dia destes acabam! —, no Corvo há 997 vacas, o que dá duas cabeças por habitante — algum turismo e a pesca…

    Taxa de desemprego: zero por cento.

    A ilha.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    É uma manhã invernosa, mas com horizontes.

    No porto, à beira da vila, é a azáfama do costume — ou quase. O guincho está avariado. A grua móvel faz o serviço: mete a embarcação de pesca local “IASALDE” na água.

    Comprimento de fora a fora: 24 pés (dá 8 metros!).

    Arqueação bruta: menos de 3 toneladas.

    Velocidade máxima: 7 ou 8 nós. O motor dá o que pode…

    A pesca à linha (com anzois nº 8), aqui, é a do goraz, pargo, cherne, garoupa e… peixe-porco nos dias azarentos.

    O isco usado normalmente é o “bonito”, mas como já não há desde Janeiro… vai chicharro «bago».

    Tripulação: dois homens.

    O mestre é Eugénio de Freitas. 50 anos. 36 de mar. É corvino de gema.

    O pescador dá pelo nome de João Andrade. Tem 52 anos. É natural de outra ilha: Fogo, Cabo Verde.

    O pescador João Andrade.
    (Foto: Rui Araújo)

    Rumo: 160 ou 165: Esguilhão do Incenso.

    Se lá não der, vamos para o Pico João de Moura e a Pedra Nova.

    E, passado um bocado, cedemos à tentação de mudar de ares… o sulco ora é azulado ora é prateado, as cores como o resto dependem do céu?

    Apanhamos 3 peixões.

    É o momento do exame de consciência em voz alta ou da confissão improvisada…

    Mestre Eugénio de Freitas.
    (Foto: Rui Araújo)

    — A pesca antigamente era mais fraca porque havia muito peixe mas não havia venda para ele. Agora, tem muita venda para peixe e é assim… Onde há muito ferro há pouco carvão. Isso é sempre assim…, diz Eugénio de Freitas.

    A pesca já não é o que era. Tem dias…

    Como se não bastasse, chegam a estar semanas a fio sem poder ir para o mar por causa do mau tempo.

    O vento ruim sopra sempre de nordeste.

    E a tarde está a cair…

    A voragem do tempo não poupa nada nem ninguém…

     Sonho com o meu marido e pouco mais. Já não tenho mesmo aquela vontade de querer. Eu posso limpar os olhos? — indaga Odete Vieira.

    A senhora Odete Vieira
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — A gente está bem e de uma hora para a outra desmorona-se tudo. Vai-se tudo embora. Ele adoeceu e depois de ele adoecer a minha vida perdeu o rumo…

    O marido morreu-lhe na manhã de 21 de Abril. Eram 5 e meia da manhã. Parece que foi hoje.

    O marido da senhora Odete Vieira.
    (Foto: D.R.)

    Odete Vieira. Nascida e criada no Corvo.

    — Antigamente, o Corvo era fraco em tudo. Tínhamos miséria. Não padecíamos da fome, mas… pão, leite nunca nos faltou. E queijo, que a gente fazia-os em casa. Mas de resto havia pouco. Hoje em dia, é que há a modernice das hamburgers e da batata doce. Dessas comidas assim…

    — O que é que mudou nestes anos todos?

    — O cacau! O dinheiro!

    Dona Odete é católica e praticante. Tem fé em Deus, Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora de Fátima. Mas… mas a sua especialidade são os altares do Espírito Santo e os presépios.

    Seguimos caminho.

    A memória preservada.
    (Foto: Rui Araújo)

    Logo a seguir à igreja, damos com dois velhotes.

    José Alferes Pedras, 75 anos. É corvino. Foi guarda florestal.

    A mulher, Maria José, tem 72. É florentina. Era lavradora.

    O casal tem 4 filhos e 5 netos.

    É o primeiro encontro inopinado.

    José Alferes Pedras, um homem sem papas na língua
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Essa casa era da filha do padre. O padre casou e fez essa casa para moradia para ela… — conta José Alferes Pedras.

    O cepticismo da idade está em harmonia com o falar.

    Metemos conversa.

    — A vida, aqui, agora é malandrice… que eu já estou reformada. E este também… — confessa Maria José Pedras.

    Os hábitos e as tradições mudam mais depressa do que as mentalidades.

    — Mas a senhora gosta de viver cá. Ou não?

    Ela acena que não.

     Se não gostasse, já se tinha ido embora! — acrescenta José Alferes Pedras.

     É uma coisa assim, mas não é da ilha que se gosta. É das pessoas! — diz a mulher.

    Há gente que não renuncia à humanidade.

    Mais palavras para quê?

    Os cimos verdejantes e desertos.
    (Foto: Rui Araújo)

    Outro encontro.

    O sujeito que vem por aí acima a passos arrastados tem cara de poucos amigos. Mesmo assim, metemos conversa.

    João Grevis. 62 anos. Foi lavrador, carteiro, deputado e presidente da câmara.

    — Ó senhor, o futuro do Corvo… Eu não vejo grande futuro para a ilha… Portanto, acho que a ilha está um pouco estagnada. O empreendimento é pouco. Os jovens já não têm muita garra para se dedicar a muitas coisas… Procuram um emprego. Um emprego… e os sectores produtivos estão praticamente abandonados. Portanto, a lavoura devia ser um pilar forte, aqui, na ilha… praticamente, a lavoura está a desaparecer. Estão as pessoas já de idade. Jovens que se dediquem à agricultura são muitos poucos… — garante João Grevis.

    Há, aqui, alguns jovens acomodados que se contentam de um emprego fictício. A servidão por mais mal remunerada que seja não os incomoda… mas quem somos nós para os julgar? É um lugar-comum, mas… ninguém faz o que quer!

    — Antigamente, já do meu tempo, tínhamos um navio aqui de 3 em 3 meses. Depois, passou a vir de mês a mês e antes de mim muito menos do que isso. E era assim. As pessoas estavam completamente isoladas, mas eram pessoas que se inter-ajudavam a si próprias, uma comunidade entregue a si própria, mas uma comunidade de grande garra e que… toda a gente sabia fazer qualquer coisa.

    A deferência do timbre é enganosa…

    João Grevis recusa o comodismo e a lisonja gratuita.

    Está reformado. Agora, entretém-se a sonhar com outro futuro para a ilha e a viver: cuida das hortaliças e pesca uns chernes e uns gorazes.

    O Corvo selvagem…
    (Foto: Rui Araújo)

    O mundo mudou. 

    E esta gente mudou…

    — O meu trisavô, o meu bisavô emigraram a bordo de uma baleeira. Trabalharam um ano a bordo. Depois, foram para os Estados Unidos. Naturalizaram-se americanos. Depois de terem a vida mais ou menos arranjada, regressaram. Compraram mais uns bocados de terra e fizeram a sua vida cá — conclui João Grevis.

    — E, como eles, houve muitos…

    — Sim. Sim. Como eles… quase todas as famílias do Corvo têm descendentes que foram baleeiros e tinham nacionalidade americana.

    A caça da baleia requeria força e coragem.
    (Foto. Captura a partir de imagem do Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão)

    A caça à baleia acabou em 1987 com a morte de 3 cachalotes ou em 1984, quando fechou a última fábrica dos Açores.

    Os corvinos pararam muito antes, logo no início do século 20.

    A falta de um varadouro decente complicava as manobras de varar e de arrear.

    A baleia dava de comer a muita gente em todo o arquipélago dos Açores.
    (Foto: D.R.)

    24 de Julho de 1896.

    Depois de uma passagem pela ilha das Flores, o Príncipe Alberto do Mónaco desembarca, pela segunda vez, no Corvo.

    O ancoradouro de Nossa Senhora do Rosário era isto aqui.

    Nossa Senhora do Rosário, hoje Vila do Corvo.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A povoação mencionada nas chapas é “Rosário”. Hoje, Vila do Corvo.

    O soberano permanece 3 dias na ilha e almoça no Caldeirão a 25 de Julho, um dia depois de chegar.

    O almoço da comitiva do Príncipe Alberto.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    É a segunda visita do soberano à ilha. A primeira ocorreu 7 anos antes, em 1879.

    Imagem do passeio de três dias.
    (Foto: Musée Océanographique de Monaco)

    A 24 de Novembro de 1981 é caçado o último cachalote nas águas do Corvo por baleeiros florentinos.

    A memória das quimeras e dos dias de servidão – a fúria do mar, as preces e as lágrimas de sal —… a memória… com o vento de Oeste parece resistir ainda mais ao tempo.

    O meu amigo Pedro Melo Lindo.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu queria era apanhar baleias para o patrão ter o seu lucro e a gente ter o nosso. Às vezes, dá-me saudades.  Dá-me saudades…

    Era caçador de baleias.

    — Se eu voltasse para trás, se eu fosse mais novo, que eu já não tenho idade para a pesca da baleia, se eu fosse mais novo eu hoje ainda ia. Gostei muito daquilo. Foi o melhor tempo que eu tive na minha vida. Foi a pesca da baleia.. Porque foi uma das coisas que me levantou a minha vida, está a perceber? Que ganhei dinheiro para me poder manter a mim e a minha mãe. O meu pai quando morreu eu tinha 7 anos. Perdi-o. Tive de começar a trabalhar muito novo. Está a ver?

    O mar — ao contrário da terra — une os homens.

    Pedro Melo Lindo, 77 anos, caçador de baleias aos 14.

    Um homem sério e humilde, que se respeita.

    Hoje, vive numa casa sombria com a mulher e um filho. Paredes meias com a melancolia de antanho e a paz do dever cumprido.

    Mata o tempo a cuidar de um porco e de 36 vacas (de carne), mas não são os raciocínios economicistas que o animam.

    O mar engrandeceu esta gente rudimentar…

    Acompanhamos o caçador de baleias aposentado lá acima, à Lomba da Rosada.

    Esta manhã, é preciso mudar a cerca dos bezerros — mudar de pasto.

    Passamos pela Lomba do Feno.

    E esperamos…

    Pedro Lindo espera.

    O filho e um amigo andam à cata dos bichos.

    Aparecem dois. O desfecho é normal. Amanhã, procuram mais…

    Cada bovino tem direito a nome: Galho PartidoTrigueiraMourataLavradaCalçada

    Eles lá sabem. É assim. E desde sempre.

    Damos de caras com o carteiro.

    — Tenho, aqui, uma carta para si…

    — Não deve ser boa coisa… Da minha namorada não deve ser… (RI-SE) Ela está divorciada há muito tempo. deixa ver…

    Orlando Rosa. 46 anos. É o carteiro do Corvo. O único.

    Faz a distribuição e o atendimento.

    Dona Hélia? (O carteiro abre a porta e deixa ficar a carta).

    — Como vêem, ninguém tem, aqui, número de porta e quando para cá vim há 20 anos tive de decorar todos os nomes das pessoas que cá viviam. Dos que cá viviam e dos que vinham para cá trabalhar. Tive de decorá-los todos!

    — Sónia? Tem uma porção de coisas aqui. Jornais…

    — Muito obrigada!

    — Como vêem, as casas, aqui, no Corvo não têm número. Quando cá cheguei, há 20 anos, levei mais de um mês a decorar o nome de toda a gente. Foi difícil na altura, mas agora já sei o nome de toda a gente. Já está resolvido!

    A solidez do sistema postal passa pelas pessoas e pelo código postal que começa em Lisboa e acaba aqui: 9980.

    Esta parte tem de cortar! (O carteiro ri-se) Deixa ver se tenho, aqui, cartinhas para ti, Teresinha.

    O carteiro do Corvo é do Pico. Orlando Rosa veio por um ano. Está cá há 20.

    — Sempre a trabalhar. Tenho, aqui, uma cartinha para si. Até logo!

    Encontros e desencontros instrutivos.

    A harmonia é aparente, mas há paz e sossego.

    Um sol baço ilumina o burgo.

    A última fronteira.
    (Foto: Rui Araújo)

    A escola do Corvo tem 42 alunos e 20 professores (todos de fora).

    Há turmas com um aluno. A maior tem 7.

    Aula de geografia.

    — Estava muito habituada a ter indisciplina na sala de aula e acabava por ser um bocadinho como um desafio. Aqui, não tenho esse desafio, mas tenho outros… outros desafios, que é o facto de estar a lidar com 1, 2. 3 alunos e trabalhar ao ritmo deles, mas também tendo a noção que… uma parte dos alunos não tem a ambição que, se calhar, noutros… noutros lugares, noutras escolas eles têm.

    Esta juventude perde-se. Com emprego garantido (independemente das vocações e dos resultados dos estudos), deixa de sonhar. Ou acomoda-se.

    As perspectivas destes jovens são magras, mas quem somos nós para os julgar?

    — O futuro da ilha do Corvo passa obviamente por três… três pilares: a pesca, a agricultura e a agro-pecuária e o turismo. E o turismo, queremos que seja um turismo selectivo e, como eu costumo dizer, o Corvo é para ser vivido e não visto. Portanto, precisamos de turismo que venha vivenciar aquilo que foi a nossa História e aquilo que é o nosso presente. E que, provavelmente, continuará a ser no futuro. E espero que os jovens sejam capazes de perpetuar isto… — palavras de José Manuel Silva, presidente do município.

    É possível que o futuro da ilha também passe pelo turismo cultural…

    Esta gente arranjou sempre soluções para sobreviver neste pedaço de terra cercada de mar.

    A destrinça entre natureza e História, aqui, é por isso mesmo impossível.

    — A caça à baleia era uma maneira de eles fazerem dinheiro para sustentar a família. E eles caçavam a baleia, aqui, entre a ilha do Corvo e das Flores… — refere Maria Luísa Pimentel.

    — Há histórias tristes. Morreu um rapaz aqui do Corvo. Morreu um rapaz que era daqui do Corvo. Ele era trancador. Trancava a baleia e o meu pai não estava no bote que ele estava. Estava noutro. Eles juntavam-se, os das Flores com os do Corvo, e depois punham a companha da maneira que era preciso. E… E ele trancou a baleia quando não devia ter trancado a baleia. Eles tinham que esperar a maneira melhor de trancar a baleia e ela  não fazer mal a eles. A baleia é um animal mamífero que não faz mal nenhum… Se vai ver uma baleia passar pode passar a mão por cima que ela não faz mal. Mas trancaram-na, já se sabe, feriram-na. Ela levantou o rabo e entrou o barco. O barco era de madeira e não era muito grande. E… E feriu o rapaz. Ferido morto. Morreu imediatamente.

    — A cabeça e a cara não se sabia que era uma pessoa.

    A ilha mais pequena dos Açores…
    (Foto: Rui Araújo)

    No lar da vila encontramos Fernando Pimentel. 85 anos. É o cunhado de José Augusto da Fraga, o jovem “trancador” corvino sepultado no cemitério à beira do mar que não o viu morrer.

    O velho homem assistiu ao drama…

    Fernando Pimentel – a outra face da coragem…
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    — Eu pensava que estava vivo. Ele estava todo rebentado. Ele tinha um golpe na cabeça. Eu quando fui ao pé dele… um golpe na cabeça. Depois a gente foi para as Flores. Depois, veio para o Corvo. Eu perdi a fala naquela altura. (Chora)

    — Lembra-se como se fosse hoje…

    — Lembro!

    Há mortes que são uma desgraça.

    Muitos açorianos emigraram para escapar à miséria. Alguns — e não foram poucos — foram parar aos Estados Unidos…

    Dona Guiomar e o marido, Raúl Trindade, chegaram a New Bedford (Massachusetts), no dia 8 de Julho de 1972.

    Ela arranjou trabalho numa fábrica (que, entretanto, fechou). Ele foi para cortador de peixe.

    — A gente estivemos na América quase 16 anos. Quase 16 anos… Eu estava a gostar muito. Muito. Eu adorava a América. God Bless America! É o que eu queria dizer, mas o meu marido deu-lhe aquela pancada como costuma dar à maioria deles, quis vir para o Corvo. Ah, senhor. Foi um balde de água fria para cima da minha cabeça. Que.. foi um balde de água fria para a minha cabeça…

    Escreve à filha e aos netos. Faz a mesma coisa que a sua avó fazia em 1983 quando vivia em New Bedford.

    34 anos depois, repete-se a cena da carta da “Grande Reportagem” de Miguel Sousa Tavares, emitida na RTP.

    (Foto: Arquivo RTP)

    À semelhança da avó, Guiomar Trindade deixou na América da prosperidade ou da felicidade (pouco importa agora) uma filha e três netos.

    As palavras de ontem são como as de sempre…

    Minha querida filha, netos… E netos. Muita saudinha a todos. Por cá, … vamos na forma do costume. Fomos ao Faial. Graças a Deus, mais ou menos correu tudo bem. Ah, Temos muitas saudades vossas principalmente nesta… nesta época da festa de acção de graças e o Natal…

    É a sina de muitos emigrantes.

    E esta prosa em letra redonda cheia é tudo menos oca…

    — Agora, com a idade, eu ando é com a minha muleta. Não é com o anel de diamantes nem é a pulseira de ouro. Ando com a muleta para a muleta me aguentar.  O senhor sabe…

    — E…

    — …

    — Mas continua a sonhar…

    — Bem, eu… Sonhos grandes, grandes não. Eu já não os tenho. Não. Mas, senhor, os problemas da vida são muitos…

    Igreja de Nossa Senhora dos Milagres:

    É a hora da missa.

    Esta imagem de Nossa Senhora do Rosário (que passou a ser, entretanto, denominada Nossa Senhora dos Milagres) terá dado à costa do Corvo no século 16.

    A devoção à santa padroeira da ilha é real.

    A igreja terá sido edificada em 1795.

    Curiosidade: os bancos de carvalho eram de uma sinagoga dos Estados Unidos da América. Foram comprados na década de 60 por um emigrante de New Bedford…

    É noite cerrada.

    Temos Lua cheia e firmamento (mais ou menos estrelado)…

    O céu confunde-se com o mar. E as estrelas, lá ao longe, parecem, agora, mais ilhas perdidas. Têm nomes de princesas ou de bichos fabulosos ou de coisas.

    No restaurante Metralha é noitada de bola e de comunhão.

    O pitéu é especial: alcatra de cabrito com batata doce regada de branco do Pico.

    A ideia é de Alirio Andrade, lavrador, ilhéu do Fogo.

    — Eu não vou à missa. Eu sou católico, mas não praticante. Para a igreja mexericar na vida dos outros, eu não vou. Eu não tenho pecado. Não matei. Não roubei. E não devo nada a ninguém…

    — E hoje…

    — Hoje, é comer e beber.

    — E sente-se mais corvino que cabo-verdiano ou…

    — Eu saí de Cabo Verde com 17 anos e já tenho 32 anos. É mais corvino ou mais cabo-verdiano? O senhor que é juiz… diga uma coisa: eu sou mais corvino ou cabo-verdiano?

    Não se belisca ninguém sem razão, que seja o que Deus quiser.

    Mudança de assunto: a parte dos sonhos com Cláudia Reis, filha do Metralha. 

    — Eu gostava de ser cabeleireira e estética, ou seja, fazer um salão a nível de tudo: ter massagistas, pedicure, manicure, aqui, no Corvo porque, aqui, temos uma que corta, mas é em casa. Mas não faz assim penteados radicais, não… para casamentos não há maquilhadoras, não há assim gente profissional, mas temos uma rapariga actualmente a fazer as unhas, mas é só manicure…

    Na mesa ao lado, entre a sobremesa e o café, mais um testemunho.

    Fábio Ferreira, encarregado dos resíduos, toma a palavra.

    — Façam-me um favor: separem o lixo. os restos de comida num saquinho à parte. Embalagens, garrafas de água, pacotes de leite, pacotes de massa, num saquinho à parte, não custa nada. Vocês estão a ajudar-me a mim, mas estão a ajudar o meio ambiente. É só isso que eu peço. Obrigado por tudo.

    — E, agora, uma pergunta: este jantar tem história?

    — Tem.

    — Qual é a história deste jantar, aqui, esta noite?

    — Isso... (Cala-se) Eu não vou responder a isso…

    — A história de uma grande amizade…

    — Eu não vos responder a isso, não consigo. ” (Chora)

    Inventariar as mágoas… às vezes, é preciso. Por mais atordoada que a consciência fique.

    Juntaram-se no Metralha para homenagear um amigo. Ruben tinha 29 anos. Faleceu no dia 14 de Outubro.

    Fim do convívio.

    As crianças salvam as aves marinhas.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    O primeiro passo para proteger as aves marinhas da poluição luminosa é dado na ilha mais pequena dos Açores a 3 de Outubro de 1991.

    Só 4 anos mais tarde, o resto do arquipélago segue o movimento.

    Partida das brigadas “SOS CAGARRO”.

    A poluição luminosa de noite é um perigo para as aves.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    Vão armados de lanternas, luvas, colete reflector, caixas de papelão e… boa disposição, claro.

    Vão correr, durante, pelo menos, duas horas, as canadas — as ruelas da vila e recolher aves marinhas encandeadas.

    No espaço de um mês, em 2016, foram resgatados e salvos na ilha 1.020 cagarros — é a designação local para a pardela de bico amarelo.

    Esta manhã a liberdade.
    (Foto: Captura a partir de imagem de João Franco/TVI)

    11 da manhã.

    A cena da libertação dos cagarros repete-se à beira da falésia, lá para as bandas dos moinhos.

    3 em cada 4 cagarros nidificam nos Açores. Estamos a falar de qualquer coisa como 200 mil casais.

    Vivem 40 ou 50 anos. Reproduzem-se a partir dos 7.

    Este tem 3 meses.

    Daqui a 5 ou 6 anos volta ao Corvo — a ilha que o viu nascer.

    — Eu quando abro a caixa sinto felicidade porque sei que ele vai voltar ao seu habitat natural e vai viver a sua vida.

    — É bom para o meu ser… que eu quero ser bióloga marinha e terrestre. Ajuda-me a fazer coisas. penso melhor na minha vida e ajudo eles. — jura a menina Clara Sofia Lindo. 

    A partir de agora é o mar, imenso como os sonhos das crianças.


    Reportagem originalmente transmitida na TVI

    Fotos de Rui Araújo


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  • Quatro dias, uma moto e uma mochila

    Quatro dias, uma moto e uma mochila


    Em 2018, Rui Araújo fez uma ‘peregrinação’ sem destino traçado nem etapas definidas, a partir de Lisboa, em cima da sua então nova mota, apenas pelo prazer da viagem e de encontros imprevistos. Estava para ser uma espécie de ‘viagens à minha terra’ versão motorizada, mas atravessou a fronteira, e não se satisfez apenas com Espanha, galgando o País Basco, até à francesa Baiona, nos Pirenéus Atlânticos. O importante é a viagem, não o destino – e um diário para que a memória se mantenha.


    LISBOA. 

    É uma viagem (essencialmente por estradas secundárias) sem acompanhantes. E, sobretudo, sem destino.

    VENDAS NOVAS.

    Decido abandonar a A6. Há estradas que parecem autênticos túmulos desolados a céu aberto. E faz um calor de rachar.

    MONTEMOR-O-NOVO.

    O importante não é o destino. Chegar é, aliás, irrelevante. O que importa é partir, viajar. É a peregrinação. Dou comigo a matutar, sem querer, que andar de moto é como navegar. E, se não é, parece…

    Penso na primitividade das minhas desventuras da pesca do tubarão, entre o arquipélago de Cabo Verde e a linha imaginária do Equador. Cheguei a narrá-las na revista LUZES (A Corunha).

    O meu mar…

    Essa reportagem acabava mais ou menos nestes moldes:

    Depois da faina da pesca do tubarão, a nossa conversa em torno da mesa do pesqueiro Intrujão é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

    — Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

    — São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

    Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

    — Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

    — Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

    Acabamos por atracar no Mindelo. O pescador ferido, Luís (Malulula), é transportado imediatamente para o único hospital da ilha de São Vicente. 

    Largamos amarras (há pescadores que preferem a expressão «largar cabos») segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me  melhor no mar. E não estou aqui a fazer nada…

    O pescador Luís Malulula aprendeu a ler e a escrever comigo. Três semanas de mar e uma tempestade foram suficientes para ele conseguir gatafunhar o nome e dois ou três verbos a acabar em «ar». Morreu no dia em que atracámos no Mindelo. Teve um desastre. Tinha 40 anos. E deixou uma família por sustentar e muitas histórias de mar para contar, pelo menos isso. Não é nada e é muito…

    Luís Malulula: depois da pesca do tubarão as aulas de português.

    PASTANEIRA.

    Apesar da grandiosidade da planície bravia, dou graças ao destino por ter nascido junto ao mar. Esta paisagem árida, poeirenta e monótona atordoa-me.

    ARRAIOLOS.

    Paro no Forjador... Café e cigarro. As especialidades do restaurante são as empadas de galinha e os bolos tradicionais.

    ESTRADA NACIONAL 4. 

    É, portanto, mais uma tarde canicular. E os dias largos ainda nem sequer chegaram.

    Vimieiro e, em seguida, Estremoz. Em Borba, hesito. Tenho gasolina para mais 100 quilómetros.

    Badajoz? Ou meto pela N255 em direcção a Monsaraz? Eu adoro aquela vilazinha medieval alegre e buliçosa alcandorada sobre um cabeço. Do esplendor de antanho restam as casas caiadas e uma calçada bruta de xisto. O castelo. O muro da cerca, que esconde com parcimónia a melancolia daquela terra poeirenta e abrasadora e uma luzidia albufeira verde-doirada que se estende até ao horizonte. No burgo ninguém me espera…

    MONSARAZ.

    Parece que foi ontem. Fiquei na Casa Pinto, uma pensão situada diante da sumptuosa igreja de Nossa Senhora da Lagoa, ao lado de um pelourinho de factura oitocentista. Deus e a Justiça dos homens no mesmo espaço. Era o local ideal para mim, o zeloso e fiel combatente da infâmia e dos actos de arrepia-cabelo que corroem a normalidade envergonhada (?) da sociedade bem-pensante ou tão simplesmente do fingidor de jornalista.

    Eu recordo-me. A porta baixa de linhas austeras da pensão estava entreaberta. Entrei. A casa, que tinha sido restaurada pelo novo dono, um tipo mais triste do que taciturno, preservara o decoro devido à tradição. O resto não é para aqui chamado. Morrer mal é a mesmissíma coisa que morrer…

    No fim de contas, opto por Elvas. Não dá para matar o Diabo, mas teimar em correr atrás de fantasmas é doentio…

    ELVAS.

    Entrada da cidade. Depois da operação da GNR (ao lado da rotunda do costume, claro!). Faço uma paragem imprevista. E esboço um gesto de repulsa assaz patético, mas sincero. O raio da viseira está repleta de insectos . Puta que os p…

    Limpo o capacete e arranco ou, por outras palavras, invisto contra a soalheira, tão rija que faz calar as cigarras (como diria Aquilino Ribeiro).

    CAIA.

    É na fronteira desolada (edifícios do Estado abandonados e comércios fechados) e cada vez mais simbólica (apesar da propagação dos populismos por essa Europa fora) que começa a E-90/A-5, uma via idêntica a qualquer autoestrada nacional. A única diferença é o preço: é gratuita.

    BADAJOZ.

    E a seguir? Podia enveredar já pelas estradas secundárias, mas não o faço apesar de serem as mais interessantes porquanto permitem descobrir um país quiçá desconhecido e «escutar o canto dos pássaros». 

    A natureza disciplinada acompanha os grandes eixos rodoviários, aqui como em Portugal. 

    As aldeias antigas e vazias, desertas de gente, por estas bandas, proliferam dos dois lados da raia.

    A 120, a velocidade legal (a CB 1100 só dá 190), chego rapidamente ao El Torero.

    LOBÓN.

    A via rápida passa perto da vila, situada a 35 quilómetros (praticamente a meio caminho entre Badajoz e Mérida). A escassa circulação rodoviária em Portugal  sobretudo de camiões e carrinhas  contrasta com o movimento daqui. E as velocidades praticadas.

    El Torero está fechado. O café é estupendo e o patrão uma pessoa afável. É, quem sabe, um filósofo. A mensagem pintada em letras garrafais no espelho diante do balcão é peremptória: «Por muito alta que seja uma montanha, há sempre um caminho até ao cimo. Tudo é muito difícil antes de se tornar fácil.» Do outro lado do pilar, meio escondido, acrescentou: «O segredo está na vontade.»

    Acabo por ir parar à esplanada do café/lar da vila. As veredas da vida estão muitas vezes onde menos as procuramos. Os velhotes sentados à minha volta conversam ou dormitam, tanto faz, aninhados nas recordações ou no esquecimento.

    TRUJILLO.

    No cimo de um prédio arcaico ou decrépito da Plaza del Campillo, a passarada encastelada bate asas e some-se. À hora do crepúsculo cada qual acoita-se onde pode. Empurro a porta do Hotel Victoria. Fico no quarto 109. O 110 é mais bonito, mas está ocupado.

    Deambulo, vagueio para matar o tempo e apaziguar a memória atordoada. Somos todos iguais, regemo-nos pela mesma cartilha. Discorremos como armaduras vazias e mutilamos o sentir, com trapaças ou futilidades, tornando-o inexprimível.

    Tienda de Isidro – Chorizos Caseros fica no outro passeio, paredes meias com o Hostal – Restaurante Julio.

    O lugar está mergulhado na obscuridade. Dou as boas tardes. Uma cliente bem-parecida observa algo numa prateleira. Um velhote, magrinho, ágil, que arruma latas, mete conversa comigo. É o pai de Isidro, o dono. Tem 90 primaveras ou outros tantos invernos. Faz parte dos encontros improváveis. Conta-me que foi operário da construção civil e que agora passa as tardes no estabelecimento. E que só arreda pé na hora do fecho.

    — E de manhã? — indago.

    — De manhã, estou no mercado.

    Isidro confirma com os olhos as palavras do pai.

    — Temos óptima patatera…

    — Estou mais interessado no queijo do que nos enchidos… — informo.

    — Tenho um curado de cabra, aqui, da Estremadura que é fenomenal…

    Duas velhotas descoradas, trajadas de negro, passam diante da porta. Parto.

    — Há alguma livraria em Trujillo? — pergunto por perguntar.

    A da esquerda acena que sim. A outra nem por isso.

    — Só temos uma. É na Calle Tiendas. É antes de chegar à Plaza Mayor. Fica no lado direito de quem sobe…

    Agradeço a resposta ou a doçura do tom. A doçura das espanholas é uma realidade.

    — E como é que é a vida aqui?

    — Há cada vez menos gente em Trujillo. Já não há trabalho. Os jovens partem para as grandes cidades e para o litoral, que são o futuro…

    — São? — pergunto como quem não quer a coisa.

    Elas não respondem. Limitam-se a sorrir. É um recado silencioso: lamúrias e queixumes não é com elas. Ou com os velhos…

    «A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez», escreveu Torga.

    Instalo-me num mesón que conheço perto da Plaza Mayor (a da estátua de Francisco Pizarro, conquistador do Perú). Peço migas. Já comi melhores, designadamente num restaurante perto dos bombeiros de Grândola. Cada região da península ibérica tem as suas. Desde sempre ou quase… já que a gastronomia resiste ao tempo e à distância.

    As ruelas esguias e acanhadas do lugarejo estão desertas, mas aquilo que  incomoda mais é o silêncio. É a mudez ensurdecedora dos manequins clonados tristes que nos macaqueiam nas montras e nos escaparates.

    O sol peneirado invade o quarto. Espreguiço-me, espreguiço-me, espreguiço-me. Como quando era puto. Depois do duche e do pequeno-almoço na cafetaria, subo ao castelo, compro um livro («Tecleo en vano» de Pilar Galán, Editorial de la Luna Libros, Mérida) e visito uma capela esplêndida porquanto os palácios aristocráticos continuam a ter dono…

    A meio da manhã, arranco de luto na alma. Isto é muito mais do que uma mera viagem improvisada: é uma peregrinação, amarga e solitária, feita de memórias desarrumadas, de saudade e de mais saudade. Penso muito no meu pai, que partiu há dias. Não me habituo. Jorge Araújo «partiu» porque as pessoas só morrem mesmo quando deixamos de pensar nelas.

    «A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…» Palavras do imenso Raul Brandão em 1908 e que permanecem actuais. Para mim, claro…

    TALAVERA DE LA REINA. 

    Estaciono à frente do restaurante El Monasterio (na Avenida Real Fábrica de Sedas, 3 – Ronda Sur). Subo seis degraus, ocupo a única mesa vaga da esplanada e encomendo leitão assado (cochinillo). O Tejo, alheio aos ruídos do mundo, corre tranquilo, ali à minha frente.

    Para fugir dos camiões e dos carros dos caixeiros-viajantes, abdico do caminho mais curto para Madrid. Dou preferência a uma estrada municipal que vai para Norte. É menos frequentada e, lá ao longe, dá para acompanhar a linha da Sierra de San Vicente (Cerro de San Vicente: 1.321 metros).

    NAVAMORCUENDE. 

    Após Cervera de los Montes, Marrupe e Los Jarales (um complexo de turismo rural para famílias numerosas com animais e para casais felizes) subo a encosta (770 metros) e entro (pela CM-5006) no município.

    O encanto do lugar é relativo. Devidamente decepcionado, chego à arreliadora conclusão de que a igreja é a única salvação de Navamorcuende. 

    Tomo um café morno. E parto como cheguei: com sossego e sem esperança. Madrid fica a 126 quilómetros (M-501). Serão mais duas horas a arder de solidão amorfa entre montes e vales…

    MADRID.

    É uma cidade incrível. E é ainda — ao contrário de Lisboa — uma capital europeia. Continuo a deslumbrar-me com as suas avenidas, praças, jardins (estou a pensar no parque del Buen Retiro) e nas esplanadas (como a do Cinco Jotas na Jorge Juan – C/ Puigcerdà, s/n). E com a movida. Os espanhóis podem ser danados, mas são acolhedores, alegres, menos formais e bem mais cojonudos do que nós.

    Despeço-me de Madrid. E, do mesmo modo, das minhas intenções gastronómicas: jantar no galego O’Grelo (C/ Menorca, 39). Desta vez, não fico no Petit Palace Savoy Alfonso XII (C/ Alfonso XII, 18, Retiro – Puerta de Alcalá), não compro livros na Pérgamo (esquina da C/ de Lagasca com a do General Oráa), não…

    Depois da peleja impossível para escapar ao tráfego madrileno sigo para Guadalajara (recordo que a autoestrada com portagem é a pior solução!) e chego lá em menos de uma hora.

    GUADALAJARA.

    Preciso de procurar o Norte. Tudela? Tudela soa-me a caça e pesca e a Bardenas Reales (um parque natural selvagem e semi-desértico).

    Decido ir em direcção a Tudela. Percorro a E-90/A-15/CL-101 (256 quilómetros de desolação monótona) ou a E-5 (337)? Hoje é a vez da primeira, que margina a aridez. Coincide com o meu estado de espírito. A E-90 será pois o meu miradouro para a outra Espanha. E a admirável terra sacrossanta de que(m) eu gosto é estimulante até nos seus mais ínfimos recantos. O desabafo é sincero, mas não me levem a sério. E não me peçam lucidez. O calor embrutece e embriaga…

    Paro num saloon de «moteros» no meio de nenhures. Feitas as saudações da praxe, entro e bebo uma água suja do imperialismo norte-americano, vulgo cola. Pago na caixa à saída – a troco da entrega de um papelinho manuscrito.

    «Na minha terra sou quem sou; na terra alheia sou quem vou», reza o ditado popular…

    TUDELA. NA-8703. 

    Os candeeiros da ponte sobre o barrento rio Ebro são iguais aos de Lisboa. E se não são, parecem. O centro da cidade é à esquerda. Como há coincidências (apesar de Fernando Pessoa não acreditar), desrespeito a sinalização. Todas as inépcias vão dar ao mesmo…

    CADREITA.

    Cinco da tarde. Está mais do que visto: é aqui que fico. A intuição raramente nos engana. Procuro a pensão. Desgraçadamente, La Casa de la Abuela (Calle Aralar, 2, Cadreita, Navarra) está fechada a sete chaves. Milagre crucial: descubro um contacto atrás do toldo esverdeado que tapa a porta. Ligo.

    — Podes ocupar o quarto 3, cariño… — diz-me dona Esperanza, solicíta.

    — Pois… mas como é que eu entro? ¬— indago.

    — É fácil…

    — E a mota?

    — Pode ficar na rua. Aqui ninguém mexe no que é dos outros…

    — Mas eu não estou habituado a esse regime…

    — Falamos às sete. Não te preocupes…

    — Ya veremos...

    Louvo Deus. Entro. Esperanza é uma optimista genuína que conseguiu preservar o que as gentes do interior têm de bom. Coloco a mochila, o capacete e as luvas no meu quarto. Está uma tarde bonita. Em desespero de causa, entro no primeiro bar que encontro.

    Triángulos (C/ Bardenas, 37) dá para aconchegar a alma e matar a sede. E o espaço é hospitaleiro.

    — Hola! — dispara o dono.

    — Buenas tardes…

    O Triángulos

    Sensação estranha: sou um perfeito forasteiro aqui, mas sinto-me como em casa. Há encontros felizes. Falamos de Pamplona (a capital da fiesta taurina de San Fermín, narrada, designadamente, por Hemingway em Fiesta) e de Arguedas, a povoação das imediações, conhecida sobretudo pelo deserto e as suas cuevas, autênticas cavernas escavadas na falésia, que chegaram a estar habitadas nos séculos XIX e XX.

    O convívio é cordial, mas ficar aqui parado ou quiçá pasmado não me interessa. Devoro duas excelentes omoletes com presunto e vou deitar-me. Mas só depois de arrumar a moto no pátio da cunhada de dona Esperanza, claro.

    CADREITA.

    Às 10 parto para Arguedas. Na rotunda ao fundo da rua, dou com Milagro (milagre, em português). Confesso que depois de Esperanza e de Milagro sinto um misto de curiosidade temperada de esperança apesar de crer que o pretenso destino é coisa que não existe.

    ARGUEDAS.

    Comarca de Ribera Navarra. 2.400 almas. Percorro a vila em segunda. Os vecinos idosos sentados num banco ao pé do cemitério fitam-me com olhos de espanto. Sorriem. Saúdo os velhotes com um gesto da mão.

    Arguedas, Navarra

    De um lado, a planície do rio Ebro, os soutos e os arrozais. Do outro, a Sierra del Yugo e a Bardena Blanca. Independentemente das tentações, há terras luminosas onde não me importava de viver. Se Arguedas tivesse mar ou chovesse mais esta seria uma delas. Há serenidade aqui. E pena, sabe-se lá…

    Calle la Peña – Arguedas

    A igreja paroquial de San Esteban (dos séculos XVI e XVII) está encerrada. Ignoro a liturgia. Desato com imprecações sonoras. Porque necessitamos do sagrado?

    CADREITA.

    Um duche. Um copo no bar. E dois dedos de conversa com dona Esperanza sobre o jornalismo de guerra e a solidariedade (ou a ausência de solidariedade) e a desistência moral. O resto é conversa de desbocado que não interessa…

    Arguedas – Las Bardenas Reales, território árido e semi-desértico.

    IRUN.

    Esta manhã, parto para França. Opto pela estrada nacional, que passa por Pamplona. Padeço tormentos com o frio e a chuva miudinha nos Pirinéus.

    Os redutos separatistas continuam a ser uma realidade mesmo em lugares recatados do País Basco. Mas não há tempo para questionar identidades.

    Pirinéus

    HENDAIA.

    Os engarrafamentos propiciados por ridículas limitações de velocidade sucedem-se e repetem-se para mal da minha paciência.

    Fronteira

    CIBOURE.

    Paro na primeira padaria que encontro. Papo um croissant (de manteiga, se faz favor!).

    BAIONA.

    É uma cidade bonita, preservada. Mas a prioridade é visitar o cemitério (obviamente privado) judeu. Muitos judeus de Baiona eram oriundos de Portugal. Nos editais da monarquia francesa eram denominados, aliás, a «Nação Portuguesa». Tinham o seu próprio bairro, Saint Esprit. Hoje, já ninguém dá pela sua presença…

    Compro chocolate belga e um ensaio do filósofo francês Michel Onfrain (Zéro de Conduite, Editions de l’Observatoire, França) sobre o bando de jornalistas sem olfacto a soldo de Maastricht e do político Emmanuel Macron, inventado pelos media e o mercado. A decomposição do jornalismo e da democracia está em marcha…

    PAMPLONA.

    Decido regressar a Lisboa pelo mesmo caminho. E hoje. São 1.016 quilómetros. Com este calor, a indolência deixa de ser defeito.

    LISBOA.

    Sol sem calor. A ponte sobre o Tejo é a minha fronteira. Circulo na faixa do meio porque no meio é que está a velocidade. 

    Penso que por muito que me esforce não vou escapar à saudade antecipada da minha próxima peregrinação: Santiago de Compostela para jantar com o meu amigo Xosé Manuel Pereiro (da revista LUZES) na Casa de Xantar (onde se fala, aliás, português!) O Dezaseis.

     Apertas, meu.


    Reportagem originalmente publicada no site Autoportal, já inactivo

    Fotos de Rui Araújo


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  • Dois portugueses nas prisões tailandesas

    Dois portugueses nas prisões tailandesas


    No passado mês de Março, dois portugueses foram detidos na Indonésia por tráfico de droga.

    Mas, em 1982, dois outros jovens lusos foram condenados a uma pesada pena de prisão na Tailândia, um dos piores lugares do mundo para se ficar detido.

    Nesta reportagem publicada em 1983 na Revista ABC, o jornalista Rui Araújo segue os passos de “Márcia” e “Luís” e relata como o destino dos dois jovens se revelou sombrio e sem esperança, entre os muros de duras prisões.


    Nesta edição assume particular relevo a reportagem realizada por Rui Araújo, em que se conta a história dramática de dois portugueses, presos desde Maio do ano passado em prisões tailandesas, por tráfico de heroína.

    Um trabalho em que, mais do que os nomes, pretendemos levantar a questão da falta de um acordo de repatriação entre Portugal e a Tailândia — e assinalar o destino a que estão votados dois elos de uma cadeia mais vasta.

    António Mega Ferreira – Director da revista ABC

    Fevereiro de 1983


    Márcia, portuguesa, 24 anos: mais 24 anos à vista numa prisão tailandesa

    Em 7 de Maio de 1982, dois jovens portugueses eram detidos no aeroporto internacional de Banguecoque. Na bagagem, um quilo de heroína. 

    ABC conta como vive, na prisão de Bangkhen, Márcia, nome suposto de uma portuguesa identificada pela nossa reportagem.

    Capa da Revista ABC de Fevereiro de 1983 com destaque da reportagem sobre os dois portugueses detidos nas prisões tailandesas. (Foto: D.R.)

    É curioso. Nunca pensara poder suar tanto. Do outro lado,  eles sabiam. Mas davam-lhe mais uns minutos. Estavam só à espera que ele escrevesse o nome na ficha de embarque. Mas é claro que sabiam. Um policiamento paranoico, absurdo. A liberdade estava a escassas centenas de metros. Depois da inspecção das bagagens. Mas aqui, no hall, começara o pesadelo. Porque eles sabiam. «A viagem até ao fim do inferno». A morte, talvez…

    Os dedos tremiam. Olhou em redor. E acabou por quebrar a regra: dirigiu-se a ela. Pediu-lhe uma caneta. Em português. Não valia a pena esconder. Eles sabiam. Gritou o nome dela. E transpirava cada vez mais. E no momento seguinte já não havia nada a fazer: um «speak english?» anasalado fê-lo sobressaltar. «Hey, you too, stay here, understand?» Nesse instante, os potentes altifalantes transmitiram a última chamada para o voo Banguecoque – Bruxelas. Dia: 7 de Maio de 1982.

    As malas —  dele e dela — foram abertas. Cada um transportava meio quilo de heroína pura dentro de dois livros. A ideia não era má. Excepto que ninguém vai a Banguecoque para comprar literatura. A Tailândia é mais o país de sonho para quem pretende assistir a um «banana show», a um «fucking show», a um «lookie-lookie», passar uns momentos com um travesti ou uma criança. É isso «enjoy Thailand», para a grande maioria. Com uma massagem especial porque «we offer our heart». Mas a Tailândia é também símbolo de droga dura…

    No gabinete da polícia, ao lado do retrato oficial da família real tailandesa, um poster visivelmente ultrapassado ainda preconiza 100 anos de prisão para os exportadores de estupefacientes. Hoje, o crime é punido com a pena de morte.

    Luís e Márcia, correios de droga, portugueses, pouco mais de 20 anos de idade, caíram na armadilha. E sem dinheiro não há sequer hipótese de suborno. Os poucos dólares de que ainda dispunham para os cigarros da free shop não chegam para comprar a polícia. Os dois jovens tornam-se um número de processo. Um extenso dossier é enviado à Drug Enforcement Agency (DEA), um outro à INTERPOL. A Polícia Judiciária portuguesa fica para outra altura. Os detidos, depois de longas horas de espera, acabam por ser enviados para o Centro de Detenção de Banguecoque. «Uma pocilga nojenta», diz um familiar de Márcia.

    Aeroporto Don Mueang. O antigo aeroporto internacional de Banguecoque serve hoje como aeroporto regional. (Foto: D.R.)

    Oito meses depois de ter sido detida no Aeroporto de Banguecoque, Márcia está reduzida a um simples número: 519-25. Um número que corresponde a 24 anos de idade, completados na prisão; 24 anos e uma história que explica (talvez não completamente) quais as razões que a levaram ao aeroporto internacional de Banguecoque naquele dia 7 de Maio do ano passado.

    Márcia nasceu algures em Lisboa de um terceiro casamento do pai, um homem de tradição aristocrática que se ligara à família de um banqueiro judeu, numa operação muito ao  gosto do tempo. «Foi para disfarçar a miséria franciscana», comenta um familiar.

    Tal como o pai fizera na sua juventude, também Márcia foge de casa. Foi há oito anos e a jovem decidiu então ir viver para casa de um irmão, no Estoril. Acabara de fazer 16 anos e deixava atrás de si algumas más recordações. «Menina mimada, introvertida, sobretudo até ao fim do 1.º ciclo da adolescência», diz um familiar à ABC, «ela começa a chumbar anos. É expulsa do Liceu Charles Lepierre e começa uma vida de café».

    Aos 18 anos, encontramo-la a viver em Paris com um namorado. Quando regressa a Portugal, em 1978, pouco depois da morte do pai, procura emprego. As dificuldades são grandes, mesmo para uma rapariga bonita e de boa família. Márcia envolve-se então progressivamente numa boémia lisboeta que desconhecia em parte.  Ataca as «ervas daninhas» (marijuana) e vai subindo. Faz uma pausa na cocaína e chega ao «cavalo» (heroína). Primeiro, «snifando», depois «shootando».

    Se é verdade que ela se drogava, não é menos certo que não precisava de forma alguma ir a Banguecoque para obter «cavalo». Tinha algum dinheiro e podia contar com o seu fornecedor habitual, com o qual traficava de há seis anos para cá. A razão da sua deslocação é apenas mais uma peripécia. Mais um nó. «Digamos que genial — mas superficial», se é correcta a forma como Márcia é definida por um dos seus irmãos.

    Márcia não teve consciência do risco que corria. «Quis recusar, mas…». Mas foi… Mas o que a levou a Banguecoque? Meia dúzia de dólares, nem mais. Porque é disso, de dólares, que se trata efectivamente…

    Dealers e 6 dólares

    Em 1983, os itinerários tradicionais utilizados pelas grandes redes de tráfico de droga, como a chinesa ou a turca, já não significam absolutamente nada. O esquema clássico Amesterdão-Copenhaga-Banguecoque, com um «stop» em Moscovo, tornou-se demasiado académico para o traficante. Para o «dealer». Para o aventureiro.

    E, no entanto, foi esse o percurso dos dois portugueses agora detidos.

    Márcia e Luís não pediram qualquer visto ao Consulado da Tailândia em Lisboa, garantiu-nos o próprio Cônsul honorário. Dr. Borges de Pinho. Não estavam sequer na «lista negra» que cada consulado tem na sua posse e que é uma relação dos indivíduos considerados «personæ non gratæ».

    De facto, os dois portugueses transitaram por Amesterdão. Em seguida, foram de comboio até Bruxelas, de onde apanharam um avião para Banguecoque.

    Vão ficar na capital tailandesa 10 dias, como simples turistas. Progressivamente, mergulham na vida da cidade. Vivem experiências sórdidas, nos bairros de lata, nos bairros de juncos. Neste «lupanar». Naquele salão de ópio. Nos templos. E acabam por ir dormir num hotel repleto de «babas», «junkies» e pequenos traficantes.

    Estiveram no Malaysia Hotel, reputado pelos anúncios «dramáticos» que inundam as paredes sujas e gastas. «Doente, triste, sozinha, sem um tostão, precisa de remédios e de uma injecção contra a cólera. São, pelo menos, x bahts, digamos 13 dólares. Helena. Estou no quarto 209.»; ou «vendo bilhete charter barato contra 10 cigarros de cavalo e 100 dólares.»

    Ou foi talvez no Patpong. É indiferente. Banguecoque, para quem dispõe de meios reduzidos, é o «flash» permanente. Mesmo para o tipo mais «cool» do mundo.

    Em cada esquina surgem propostas «aliciantes» para todos os gostos. Faz-se «deal» por toda a parte. Ora é uma dose de «cavalo» ou de «brown sugar» do melhor na loja de um ex-GI. Ora é o espectáculo mais «sexy» da cidade: imaginem para que serve uma garrafa de coca-cola, ou uma miúda de 11 anos disposta a tudo no único «waterbed» do bairro.

    people sitting on chair near store during night time
    Banguecoque. (Foto: D.R.)

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros.

    Márcia e Luís não são «junkies». Ou, pelo menos, não é nessa condição que vão para Banguecoque. A Tailândia representa para eles um punhado de dólares. Um quilo de heroína pura — ainda que comprada para outrem — corresponde a 10 quilos de produto comercializável em Lisboa. Vale, pelo menos, 45.000 contos. A «heroa» pura é misturada com sacarose e/ou estricnina. Rende o que rende e o que der a qualidade, mas no «mercado» português a proporção é de 10 para 1. Números redondos, quando foi presa em Banguecoque, Márcia «pesava» mais de 20.000 contos.

    Só que comprar a mercadoria na capital tailandesa, para além de ser mais caro, é perigoso. A polícia revista os quartos de hotel e chega mesmo a levar consigo a droga que quer lá encontrar. A multa varia em função da nacionalidade e do sexo. Até os motoristas de táxi chegam a levar directamente o cliente à esquadra mais próxima. E é inconveniente não esquecer os encontros de passagem: uma prostituta é sempre um denunciante potencial, a troco de uma comissão de 50 bahts (1 baht = 3 escudos) por grama confiscado, dizem os conhecedores.

    Por isso, Márcia e Luís partem para Chiang Mai. 24 horas após o regresso a Banguecoque é o choque da detenção. E a necessidade psicológica de se convencerem que a jogada ainda tinha uma hipotética solução. A menos grave. E, logo a seguir, o vazio completo. Salvo um cheiro tremendo a urina e duas tigelas diárias de arroz infecto. Com bichos, em forma de complemento, sofisticado. Um, dois, sete dias e nada…

    (Foto: D.R.)

    A ligação do triângulo

    A última colheita de papoila branca foi excelente no Triângulo de Ouro, uma zona com 220.000 quilómetros quadrados, que cobre o norte da Tailândia, o norte do Laos e o norte da Birmânia. E isto, apesar da «guerra do ópio» desencadeada pelos homens da Border Patrol Police tailandesa contra o «Rei do Triângulo» e chefe da Shan United Army, o exército de libertação dos Shan, Mister Shan Khun Sa (que controla 75% do tráfico) e os seus 4.000 homens. A produção de ópio teria atingido em 1982 as 600 toneladas (em vez das 200 de 1980), que representam mais de 90 milhões de dólares no mercado americano.

    Khun Sa, personagem digno dos melhores romances de aventuras, é um mistério. A sua idade ronda os 49 anos. O local do nascimento é uma incógnita. Ou quase. A tese da província de Yunnan, no Sul da China, que ele teria abandonado em 1949 depois da vitória comunista, é a mais plausível. O que é certo é que Khun Sa apareceu na zona do Triângulo de Ouro na década de 60. Era o chefe de um grupúsculo que reclamava a independência dos Estados Shan (no Nordeste da Birmânia) e lutava contra as forças birmanesas. Um rebelde político? Um visionário? Um defensor de uma causa?

    O único objectivo de Khun Sa era ser o «Padrinho» incontestado do Triângulo de Ouro. A região pertencia nesse momento a um general chinês, Wen Huan, cujas tropas, verdadeiros destroços das 4ª e 5.ª divisões do Kuomintang (exército nacionalista que se opôs a Mao), que se refugiaram no Norte da Tailândia, depois de serem derrotadas pelos comunistas chineses. Khun Sa desafia os «Senhores da Guerra»: ataca as caravanas de ópio protegidas pelo exército de Wen Huan.

    Violência, detenções, acordos secretos com generais corruptos acabam por fazer a fortuna de Khun Sa. Em 1977, ele é incontestavelmente o Rei do Ópio. Controla 10 refinarias de heroína na fronteira entre a Tailândia e a Birmânia. O  seu mercado é enorme: Estados Unidos, Canadá, Austrália e, bem entendido, a Europa. O seu poder aumenta. As suas provocações também. Dá entrevistas, faz libertar um dos seus homens na prisão de Banguecoque…

    drugs, addict, addiction
    (Foto: D.R.)

    Os americanos, que pretendem desorganizar as culturas, aconselham os tailandeses a porem a cabeça de Khun Sa a prémio: 25.000 dólares. O Rei responde «pondo a prémio a cabeça dos agentes americanos». Um deles é abatido. A DEA entra em pânico.

    Em Outubro de 1981, o primeiro-ministro tailandês, General Prem, avista-se com Ronald Reagan em Washington D.C.. Nesse mesmo dia, as agências noticiosas anunciam que as autoridades tailandesas tinham atacado uma caravana com 200 mulas carregadas de ópio escoltadas por 700 homens de Khun Sa.

    Os Estados Unidos, inquietos com as proporções da vaga mundial de droga, acentuam as pressões sobre os tailandeses. Tentam utilizar no Triângulo de Ouro a mesma estratégia que adoptaram na América Latina em relação à cocaína. Fornecem dinheiro, helicópteros, armas e apoio humano. E assim inicia-se mais uma fase da guerra contra a droga, que abrange todos os continentes. Tanto o pequeno dealer como o grande traficante são procurados. E nem sempre na rede vêm os «tubarões».

    Hoje, o Rei do Ópio está de novo em fuga. As autoridades não conseguiram, contudo, apanhar um único grama de heroína no seu acampamento, com piscina, hospital e perto de uma dezena de laboratórios — que foram destruídos. Nove outros ainda estariam em actividade no sul do país. Neles trabalham antigos oficiais do exército chinês, reconvertidos no ópio e na luta anticomunista.

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros. Sigamo-los.

    O inferno tailandês

    Ao fim de uma semana que durou séculos, Márcia e Luís foram enviados para o enorme complexo prisional de Banguecoque: Bangkhen. Aí, foram separados. Entretanto, as autoridades tailandesas contactaram a Embaixada de Portugal, em Banguecoque. O processo começa a correr. O diário «Bangkok Post» publica uma curta notícia sobre a prisão dos dois jovens. As famílias são avisadas do sucedido.

    Os dois traficantes portugueses são julgados no tribunal de Banguecoque  em 20 de Setembro de 1982. Nada ou quase nada foi dito no decorrer da audiência. Neste tipo de processos a sentença já vem muitas vezes escrita antes do julgamento. Márcia e Luís viram as suas penas reduzidas. A condenação à morte inicialmente proferida transforma-se — por razões jurídicas diversas — em 50 anos de prisão maior. Pouco tempo depois, nova e última redução de pena: 25 anos, a pena mínima na nova legislação tailandesa. No código anterior teriam apanhado apenas 10 anos…

    Mas, 15 dias após o julgamento, em princípios de Outubro, Márcia é chamada à Procuradoria da República. As autoridades desejam aumentar a pena. Esta acção é sistemática desde que iniciaram as negociações sobre os tratados de repatriação. Quatro anos de permanência nas cadeias tailandesas é o tempo mínimo para que um estrangeiro possa ser repatriado. Estrangeiro, sim, mas só se for francês ou americano. Os italianos e os nossos vizinhos espanhóis estão em negociações com vista à adesão à proposta que foi adoptada (a francesa). O Canadá também estaria a negociar a assinatura de um tratado semelhante. Portugal, por estranho que pareça, ainda não tomou qualquer iniciativa concreta.

    Inexplicavelmente — e ao contrário do que sucede com as outras representações diplomáticas de países europeus em Banguecoque — Portugal não tem sequer um serviço de acompanhamento dos cidadãos nacionais detidos nas cadeias tailandesas. Márcia só tem apoio médico, apesar da gravidade do seu estado físico e psicológico, porque o médico da Embaixada de França está na disposição de a assistir a título humanitário sem qualquer retribuição.

    O mesmo já não se pode dizer dos advogados. Para defender a prisioneira portuguesa, a família de Márcia teve de recorrer aos serviços da Embaixada da Grã-Bretanha, que indicaram o advogado responsável pela defesa da jovem portuguesa. Com a diferença de que, aqui, os serviços não foram gratuitos.

    As prisões da Tailândia, sabe-se, são terríveis. Os depoimentos da rapariga a um familiar que a visitou no Verão passado, confirmam-no.

    Na cela de Márcia encontram-se exactamente 25 mulheres. Duas delas são estrangeiras, as outras são tailandesas, acusadas de homicídio, roubo, crimes políticos, delito comum. Na prisão, vivem 36 estrangeiras. Os maiores contingentes são de americanas, francesas, italianas, espanholas e até uma austríaca.

    Em virtude das péssimas condições de vida e da corrupção existente, a heroína nunca falta na prisão. Muitas vezes é o próprio chefe da secção, o Building Chief, que traz a droga para vendê-la a bom preço às prisioneiras que ainda possuem algumas notas. As outras viram-se para o Romilar — um medicamento preventivo contra a tuberculose — em doses industriais: 20 comprimidos para uma curta evasão daquele espaço asfixiante, sob todos os pontos de vista. Tensão psicológica elevada. Forte disciplina. Distanciação cultural e  idiomática. Temperatura que chega a atingir, no Verão, os 45º, com uma taxa de humidade de 98%.

    No «negócio» participa toda a gente. Os guardas são naturalmente vendedores. De heroína, em primeiro lugar, já que uma onça de pó dá para 20 doses engarrafadas, coisa para durar 10 dias a quem tivesse dinheiro para tanto. Só que o dinheiro é coisa que não abunda, enquanto não chega o vale de correio enviado pela família. Sobrevive-se com empréstimos a juros que chegam a ser de 300%; e aos maus pagadores, esquecidos ou ignorados pela família, resta a hipótese dos trabalhos menores — a limpeza das retretes, por exemplo.

    A família de Márcia envia-lhe regularmente dinheiro e encomendas com géneros alimentícios. Segundo os regulamentos de disciplina da prisão de Banguecoque, nenhuma detida pode receber mais de duas remessas por mês.

    Nestas condições, corrupção é a vida. Não ter dinheiro significa basicamente confrontação com a realidade, descida ao inferno. Muitas vezes, ao fim da viagem está a morte, ou pior: a loucura.

    Uma carta escrita na prisão em francês, para que a censura compreenda. (Foto: D.R.)

    Excerto de uma carta de Márcia

    “Não é sempre que há uma pessoa condenada à morte e quando penso que era EU!!!!”

    “Vai fazer 6 meses que estou aqui. A minha saúde está boa, mas tenho febre todos os dias desde que estou aqui. Este clima põe-me inconfortável. É muito pesado o tempo todo! E os meus nervos, há dias em que gostaria de desaparecer e porque não deixar-me levar para o país onde reina a loucura. É possível que os malucos sejam mais felizes se não derem conta daquilo que os rodeia…”

    Reza a história que um «dealer» alemão ficou mudo. Agredia os colegas e comia os próprios excrementos. Os guardas, fartos das extravagâncias do ocidental, levaram-no de rastos para a enfermaria. Partiram-lhe os dentes com os casse-têtes. Injectaram-lhe uma boa dose de Valium e deixaram-no morrer. São casos idênticos que amaldiçoam os sonhos dos presos. Com ou sem «trip»…

    Diferenças de interpretação

    Márcia e Luís (este último está hoje numa prisão fora de Banguecoque) são acompanhados pelas respectivas famílias. Márcia, desde Lisboa. Luís, de Macau, para onde foi viver a sua mulher. Assim está menos longe dela. Mas ambos os presos são acompanhados também pelo Cônsul português em Banguecoque, um goês, que está há 18 anos na Tailândia. «Por razões humanitárias», disse à ABC o representante consular José de Sousa, não por uma questão de funções. Mas a sua margem de manobra é demasiado limitada. E como nos disse um familiar de Márcia, «há visita quando há». O Embaixador de Portugal em Banguecoque, Dr. Melo Gouveia, é de opinião diferente: «Márcia é visitada  periodicamente pelos funcionários. No último Natal, foram lá vê-la».

    As diferenças de interpretação entre o Embaixador e a família não são as únicas que existem relativamente a este caso. A nível do Estado português também haveria algumas divergências de pontos de vista, designadamente  no que respeita ao famoso acordo de repatriação. Se não, vejamos: no princípio de Novembro de 1982, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Paulo Marques, deslocou-se à Tailândia para negociações comerciais, aproveitando a oportunidade para informar as autoridades Tai do interesse que Portugal teria em assinar o acordo. «Paralelamente, o responsável da pasta dos Negócios Estrangeiros, Futscher Pereira, manifestou grande interesse pela questão dos portugueses detidos», confidenciou à ABC uma fonte diplomática. Foram, então, dadas instruções nesse sentido ao Embaixador, mas até ao momento não se tem notícia de qualquer «démarche» do representante português em Banguecoque. «Não é o momento oportuno», declarou-nos, sem explicar as razões desta afirmação. Uma falta de iniciativa que pode ser explicada por uma «extraordinária» confiança no perdão real. Mas até hoje o perdão só foi exercido três vezes…

    Márcia está numa «situação dramática», diz em Lisboa a família. A jovem portuguesa sofre de anemia crónica e de febres; o corpo inchou-lhe desmesuradamente; a inactividade é praticamente absoluta; a sobrevivência pode ser uma questão de tempo: «É provável que não morra, pelo menos, este ano…», disse a ABC o irmão que a visitou em Bangkok.

    No entanto, em conversa telefónica com o jornalista, o Embaixador Melo Gouveia manifestou opinião contrária: o estado de Márcia é «saudável» e a prisão de Banguecoque «aceitável». Mas, se os presos resistem «bem», como diz o embaixador português, como explicar a morte, em 1979, de um rapaz português na Penitenciária de Banguecoque, antes mesmo de ser julgado? Aos 28 anos, José Cid foi apanhado, encarcerado, provavelmente torturado. Sabe-se apenas que morreu, que foi enterrado num pequeno cemitério da capital tailandesa, porque não apareceu ninguém a reivindicar os seus restos mortais.

    Se o anonimato de José Cid permitiu que até hoje a sua morte tivesse sido ignorada, a situação de Márcia, portuguesa, de 24 anos de idade, e de Luís, 23 anos, é diferente: para já, porque há coisas pouco claras em todo este caso. E depois, porque, qualquer que seja a culpabilidade dos dois portugueses, é difícil admitir que, com esta idade, o horizonte de dois jovens esteja reduzido à expiação de uma pena de 25 anos, algures, numa cadeia sórdida, no país onde a heroína faz, de há muito tempo a estar parte, o papel do vilão. E nem sempre os vilões são chamados à cena. Lá, como cá.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Márcia, depois de ser libertada, foi viver para o Canadá. Luís terá falecido. Estará enterrado no Algarve. O advogado português que lhes encomendou o “serviço”, nunca foi incomodado…


    Reportagem originalmente publicada na Revista ABC, Número 3, em Fevereiro de 1983.


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  • Vida de cão

    Vida de cão


    As queixas de lisboetas relativas a problemas com cães, incluindo devido a dejectos na rua e também ao ruído, levaram o jornalista Rui Araújo a fazer uma reportagem sobre o tema, a qual foi publicada n’ O Jornal Ilustrado em 1989.

    Mas o que fica gravado na mente do leitor não são as queixas dos munícipes, mas o olhar de cães abandonados vistos pela lente de Inácio Ludgero, que generosamente disponibilizou as fotos originais para a republicação desta reportagem no PÁGINA UM.


    «O cão está a mijar-me na jante, mas se mando vir sou logo tratado de mafioso ou de facho… tá bem tá, isto é uma indecência, pá!»

    O rapaz até é capaz de ter razão. E não é o único revoltado. Há cada vez mais lisboetas a queixarem-se da chatice dos cães. Aos vizinhos e amigos. À PSP, à GNR e à Câmara. Cartas e mais cartas. Um rol de críticas e insultos.

    Um cão é algo estimulante. vivo, próximo.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    O problema canino é, hoje em dia, uma das principais causas de protesto epistolar ao município. As mesmas críticas, os mesmos apelos… e as mesmas respostas à reportagem traduzem uma revolta generalizada. Há mesmo gente em situação desesperada. Muitas das missivas enviadas ao Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da Câmara Municipal de Lisboa já não denunciam apenas o chichi, o cocó, as doenças, o ruído ou o medo: «… no 2 dt.º habita uma senhora chamada Odete e um filho de 11 ou 12 anos em que têm desde há 4 anos um casal de cães, e agora desde uns meses para cá mais 2 cães filhos do casal que já tinha, portanto desde há 4 anos que habita esta casa, nunca levou qualquer dos animais a rua, fazendo estes todas as necessidades em casa, o que ocasiona além do ladrar e uivar a toda a hora, um cheiro horrível, o que torna impossível viver ali nessa situação. A Polícia já veio aqui pela 3.ª vez a meu pedido, julgando eu que a senhora resolveria as coisas sem grande problema, mas em vão, pois ela nem sequer abre a porta a ninguém. Numa altura em que as doenças desconhecidas como a CIDA (sic) e outras aparecem e desenvolvem—se em ritmo acelerado como as combater? Com uma higiene assim não se pode esperar outra coisa. (1) Termino pedindo…»  Ou fazendo sugestões.

    Porque também há quem as faça. Algumas são até bem imaginativas. «Porque não rebocar também os animais e as pessoas acompanhantes; quando andam pela Avenida de Roma e Rua Frei Amador Arrais a fazer aquelas porcarias? Montes de fezes de cães — ou cadelas, claro está — em plenos passeios, que quase não nos deixam espaço para pôr os pés. As crianças, então, espezinham tudo, que é nojento! Como se pode tolerar tais cenas…?»

    É verdade. Apesar de 10% das queixas recebidas na Câmara — na opinião de Manuel Boavida, responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML — não terem qualquer fundamento.

    Os funcionários da CML apanhavam os animais com estas redes…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães devem estar a aumentar. À medida da cruzada anti canina. E ninguém sabe ao certo quantos rafeiros — do Alentejo ou não —, perdigueiros, caniches e demais bicharada canina existem por essa Lisboa fora. Um elemento do Instituto Nacional de Estatística (INE) confessa exasperado que contar os cães (era só o que faltava). A contagem do gado já dá um «trabalhão». Sondagens e estimativas, é coisa que não existe. A Câmara Municipal de Lisboa anuncia apenas 5 mil licenças em 1988. Os cães não licenciados e/ou não vacinados tanto podem ser 20 mil como 200 mil. É como as taxas da RTP… Mas pouco importa, agora. Não haverá assim tantos cachorros como isso. A única certeza é que o número de cães está directamente associado ao nível de vida. Daí que os países da Europa com mais cães sejam a França, a Grã—Bretanha e a Alemanha.

    O número de cães e gatos continua a aumentar.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Ai solidão!

    E as razões conscientes — ou não — para terem bicho? Os citadinos europeus têm cão por necessidade de companhia, snobismo, segurança ou aventura. É o que afirmam os psicólogos. É o que dizia McLuhan: as pessoas têm cão para relembrarem que também vivem… Pelo menos, nas cidades: num prédio de 15 andares é mesmo uma necessidade vital. Seja como for, por cá as razões serão as mesmas.

    «O desejo de adquirir um cão pode estar ligado ao consumismo: o cão torna—se então um objecto exibitório. A sua raça é importante», resume um psiquiatra do Hospital Militar de Lisboa. Mas há ainda outras motivações. «O cão funciona como algo que aumenta a segurança» e é conveniente não esquecer que para muita gente a presença do animal «anuIa a sensação de impotência social». É uma explicação. Não será porventura a única. Há também quem tenha cão por razões de tradição ou mais prosaicamente de eficácia. É o caso dos cães de guarda no campo. Joaquim Manuel Pedro, proprietário de meia dúzia de terras de cultivo dispersas lá para as bandas de Pernigem (Sintra) desde sempre teve cães de guarda. Cães de raça e agora rafeiros. Labuta fora. Os animais guardam casa e terreno. «A minha Paquita e o meu Pantufas são dos rafeiros mas para me guardar a casa serão até bem melhores do que muitos cães de raça», afirma sorridente, sem complexos, enquanto os animais saltitam à sua volta. Contentes. Com o repórter do outro lado do muro.

    Mas os cachorros podem significar mais do que simples elementos do modo de vida: uma imagem de marca. Carolina de Mónaco possui o Onyx, um pastor e a Tiffany, um Yorkshire, que as colunas sociais apadrinharam.  A pacatez lisboeta não vai, contudo, tão longe. Aníbal Cavaco Silva não tem, oficialmente, cão. Mário Soares idem. Torres Couto tem um cocker de um mês (ainda sem nome) que parece não ter. Só Carlos Carvalhas reconhece ter um animal.

    O cão é o companheiro dos tais laços profundos de dedicação. «E o cão pode ainda funcionar como o elemento anti—solidão, o filho, o companheiro tanto dos solitários como dos marginais, crianças e velhos, gente com genuína disponibilidade afectiva», acrescenta o psiquiatra. Um cão é algo estimulante, vivo, próximo. Os publicitários utilizam de resto extremamente bem essa imagem para nos convencer a comprar latas de comida, jornais ou tão simplesmente votar num general com cão emprestado para o efeito. Mas afinal onde termina a moda e começa a necessidade? O desenvolvimento dos cães na cidade poderia traduzir uma recusa da forma de sociedade — a da urbe. Mas se a tal existência harmoniosa é para muitos citadinos um mito não é menos certo que a cidade não está nada preparada para a presença de tantos animais domésticos: cães, gatos, pássaros, etc. E ninguém faz praticamente nada…

    A ineficácia das leis

    O Governo está, aparentemente, pouco preocupado com o fenómeno da proliferação dos cães nas cidades. E mais concretamente em Lisboa. A Lei Base do Ambiente (11/87 de 7 de Abril) é um extenso documento de 52 artigos. Ignora pura e simplesmente a questão da poluição canina. A legislação complementar (Artigo 51) necessária à regulamentação (eventualmente dos resíduos sólidos) será «obrigatoriamente» publicada no prazo de «um ano» a partir da data de entrada em vigor do diploma: 1987. Já lá vão mais de 2 anos e nada…

    Os avisos nos passeios de pouco ou nada servem.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Resta o Decreto—Lei 317/85 (2 de Agosto) (2), ou, por outras palavras, um insólito documento sobre Raiva, Abandono, Crueldade e Sevícias. Em teoria, as câmaras municipais «sempre que razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de quaisquer cães ou outros animais de companhia». É o artigo 10.º. É o mais problemático. Até hoje — e já lá vão mais de 3 anos — nenhuma ordem da Câmara foi cumprida… E ainda não há qualquer penalização por não acatamento da decisão da Câmara. Os homens da Câmara não podem entrar em casa dos donos ou detentores dos animais. Os recursos — possíveis — nem sequer chegam a ser elaborados. «Uma solução talvez possa ser o crime de desobediência», adianta Manuel Boavida sem grande convicção. É que o problema — esquecido até 1988 — não é de fácil resolução. Desde o princípio do ano a Câmara já instaurou uns 80 processos. A Polícia Municipal também terá alguns… Sem resultados concretos. Pelo menos até agora…

    O número de cães em Lisboa não será, apesar de tudo, preocupante. A gravidade da situação resulta sobretudo da inexistência de condições. A capital dispõe de 1.600 quilómetros de passeios cuja largura média ronda os 2,25 metros. O orçamento da Câmara Municipal para a limpeza urbana — resíduos sólidos— tem vindo progressivamente a aumentar no último triénio: 2.179.845 contos em 1985, 2.689.254 contos em 1986 e 3.932.723 contos em 1987 — últimos dados disponíveis (3). Estes valores reflectem as imputações de Despesas com Pessoal, Despesas Correntes e Despesas de Capital. Limpeza, limpeza… o dinheiro nem é assim tanto como isso.

    «A questão dos animais esteve adormecida durante largos anos e as verbas que nos são agora destinadas estão de acordo com aquilo que se fazia: muito pouco», comenta Manuel Boavida para quem o problema não é político mas técnico. E está decidido a pedir mais meios. Para limpar mais e melhor. E sensibilizar a população — à semelhança do que foi feito com os caixotes do lixo cor de laranja. Uma operação com algum sucesso.

    Pernas de carteiro, um petisco

    É um cálculo curioso. E impossível. Ninguém sabe quantas toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositadas diariamente na via pública. Mas qualquer pessoa dirá quais os inconvenientes da negligência. Os mais infelizes poderão mesmo apresentar a factura da clínica ou do hospital onde foram tratados por terem sido mordidos ou vergonhosamente escorregado no cócó de cão. As companhias e o Instituto de Seguros ignoram a dimensão do drama. Até porque em Portugal «o fenómeno da responsabilidade civil ainda é um mito», como costuma dizer Vasco Pardal, um especialista de seguros. A esperança — também neste domínio — é 1992. Até agora não foi formulado um único pedido de indemnização. «Mas estamos a encarar a hipótese de ir mais longe através da criação de um seguro de vida para cães.» A sua instauração depende da prontidão com que o Instituto de Seguros de Portugal despache o pedido.

    As raras estatísticas existentes referem apenas as inesperadas aventuras dos carteiros dos CTT. Trinta e cinco carteiros acidentados por causa dos cães em 1988 — contra 45 no ano anterior. Consequências: 19 carteiros incapacitados ou 394 jornadas de trabalho perdidas. Os homens do giro apeado são injustamente as principais vítimas dos cães: 26. Os carteiros motorizados são muito menos maltratados: 5. A maioria dos acidentes teve lugar na via pública, Os cães preferem — visivelmente—os membros inferiores (25 agressões) e pouca apetência parecem ter pelo tronco…

    Os CTT criaram mesmo instruções para evitar problemas aos carteiros provinciais. «Os CTT podem determinar a suspensão da distribuição postal domiciliária em locais situados dentro de recintos vedados e protegidos por cães à solta que possam ameaçar a segurança dos carteiros». Esta medida tem sido pouco aplicada. Toda a gente sabe que os homens que não gostam dos cães parecem feitos de uma matéria seca e duvidosa…

    Um canil privado nos arredores de Lisboa…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Direito à vida

    E animais maltratados há muitos. Embora António Nunes, encarregado do canil municipal afirme que os animais sejam mais vítimas do desleixo do que dos maus tratos o facto é que as poucas posturas e leis são letra morta para muitos donos.

    Os portugueses seriam mesmo — na opinião de um veterinário da Linha — um dos povos que «pior» trata os cães. «Muitos nem sequer sabem educar e tratar dos filhos, quanto mais dos pobres dos animais…», conclui. Cães abandonados em autoestradas, atropelados e voluntariamente estropiados perto da Docapesca (Pedrouços), enforcados na linha de Sintra, envenenados ou abatidos a tiro.. uma triste banalidade.

    «Há os amigos dos animais e o amigo do animal», conta Francisco António da Silva, presidente da Sociedade Protectora dos Animais. O amigo do animal «quando lhe aparece um rafeiro pela frente prega-lhe um valente pontapé, dá-lhe uma chicotada, tira-lhe uma perna!».

    Alguns dos exageros da Sociedade Protectora dos Animais são confirmados nomeadamente pelas cartas recebidas na Câmara. «A inquilina do 1.º andar direito tem 5 corpulentos cães, sem quaisquer condições sanitárias tanto de higiene como de vacinação que não existe, provocando cheiro nauseabundo muito difícil de suportar dado que fazem todas as necessidades dentro da habitação. Alguns dos cães encontram-se bastante doentes» e a dona nada faz.

    A Sociedade tenta ajudar como pode. Mas os 3.000 sócios, os parcos meios também não dão para muito: um canil de 20 lugares na Barão de Sabrosa, alguma assistência jurídica e um centro de saúde onde uma consulta — de psiquiatria, ainda não as há em Portugal (4)— custa 300 escudos, uma extracção de dentes 140 escudos, uma amputação de dedos entre 70 e 170 escudos, um parto entre 300 escudos e 420 escudos. Para sócios. Os outros pagam um pouco mais caro. Mas será sempre mais barato do que nos raros canis privados existentes e logicamente sempre cheios — de Lisboa e arredores.

    São apanhados durante a noite, vão para os canis municipais, onde, se ninguém os reclamar dentro do prazo estipulado, morrerão por choque eléctrico ou com duas injecções.
    (Fotos: Inácio Ludgero)

    O Canil Municipal (Hipódromo do Campo Grande) apesar de decadente — a sua transferência já está prevista há mais de 10 anos — (5 ) também oferece alguns serviços clínicos como a vacinação anti-rábica ou a esterilização das cadelas. (6 ) Ou ainda a morte. Por injecção ou electrocução. Teoricamente, três dias depois de serem apanhados sem identificação. Ou 8 dias depois, para aqueles que trazem uma coleira. 28 cães para abater aguardam num pátio de cimento dividido em terreiros cúbicos com um metro. Há de tudo. Cães de raça e rafeiros. Animais velhos saudáveis e doentes. Animais novos. E Eduardo Figueiredo, tratador/apanhador.

    — O senhor trabalha aqui no canil…

    — Os prazos aplicados pela gente não são bem esses. O costume é só abatê-los 5 dobros (sic) depois da data prevista. Eu estou nos bichos há 20 anos. Sou até a favor que os bichos andem em liberdade…

    — Mas…

    — Eles têm o direito a viver como qualquer pessoa.

    — Mas quem os mata é o senhor?

    — Pois sou! Mas não gosto disto! Não gosto mesmo nada disto…

    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães são apanhados sempre durante a noite. E são apanhados cada vez mais. Exactamente 1.273 em 1987 e no ano seguinte 1.379. Uma pequena percentagem é restituída aos donos: 197 em 1987 contra 253 em 1988. Os outros são abatidos. (7 ) Sempre às seis da madrugada. Através de choque eléctrico ou de duas injecções: uma para anestesiar e outra para provocar uma paragem cardíaca. Se não houver atraso ou ninguém os recuperar. . Momentos antes.

    Dona Maria Manuela: «As pessoas são ingratas, um animal nunca nos abandona.»
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Melhores que as pessoas

    Maria Manuela, 59 anos, reformada, benfeitora da União Zoófila já recuperou muitos porque «matar os nossos melhores amigos é o crime mais horrível que se possa imaginar». Também não se conforma com o facto de os animais do canil apenas receberem uma refeição por dia.

    Apareceu mais uma vez no canil da CML para «salvar» um pastor alemão «velhinho e abandonado». Em casa tem um cão. Confessa que na sua rua apoia mais cinco ou seis animais «desprotegidos». Aproveita para lançar uma mensagem aos «homens de boa vontade»: «os portugueses precisam de alguma ajuda educacional para tratar bem dos animais. Gostam deles quando são pequenos. Depois, abandonam-nos. São atrasadíssimos… Devem tratar bem os cães!» Ouso perguntar se também ajuda pessoas.

    — Ajudar pessoas? Ora essa! As pessoas são ingratas. Um animal nunca nos abandona… São verdadeiros. Profundos. Amigos. Até têm uma alma se bem que diferente da nossa— segundo a teoria de S. Francisco de Assis.

    Só morrem quando nos esquecemos deles…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    «Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas». Cântico do Irmão Sol. S. Francisco de Assis. A lápide é peremptória. E no Cemitério dos Cães do Jardim Zoológico raras são as campas sem lápides a louvar a docilidade — a amizade — dos cães ou o Senhor. Lorde, Lady, Cracky, Paju, Pantufinhas, Palhaço, Faruk, Kimba, Boby «grande amigo jamais te esqueceremos», Lorde «amigo dócil e fiel, como tu não há, a nossa saudosa homenagem», Carocha «minha querida, a saudade não tem fim nos nossos corações, a casa está vazia, tudo nos fala de ti», Pushak (Born Saigon, Vietnam 10-1969. Died Lisbon, Portugal 1-1983».

    Há algumas campas em que o número do anonimato é quebrado por um cravo ou um malmequer de plástico. E se os cães tivessem alma? Mesmo sem ser no sentido teológico…

    Há quem se reserve o direito de acreditar que os cães têm alma e lhes reserve uma última morada condigna. (Foto: Inácio Ludgero)

    Acertar o passo

    Entretanto os cães lá se vão propagando apesar da acção do Munícipio. E da legislação inadaptada — Código Penal (o animal é uma “coisa”), Código Civil (propriedade) e Decreto—Lei 3 17/85. A esterilização não tem sucesso. A sujidade aumenta. Ao contrário do que sucede por essa Europa fora.

    Exemplos: campanhas de contracepção na Holanda e Noruega. Taxas específicas na Áustria, Bélgica e Suíça. Multas por poluição nos EUA (100 contos de multa por deixar o cão fazer cocó nos passeios de Nova Iorque) e, na Suíça… (Os «azulejos» para cães instalados nos passeios das Avenidas Novas em Lisboa tiveram um êxito relativo). A Islândia optou por uma solução deveras radical: baniu completamente os cães da capital. «A deportação maciça provocou ulteriormente a morte de muitos animais porque os exilados devastavam o gado». Outras políticas dissuasoras: a URSS adoptou uma severa taxa especialmente para cães — porventura por razões de penúria. Derradeira solução: em muitos países asiáticos como a China, Tailândia, Filipinas, Vietname (para não citar o caso de Macau) os cães são abatidos por uma questão puramente gastronómica.

    Toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositados diariamente na via pública, apesar dos avisos, que se não dirigem, claro, aos caninos… (Foto: Inácio Ludgero)

    Cócó de cão, rasteira traiçoeira…

    Soluções? Até agora em nome do interesse geral (ou talvez mais prosaicamente dos votos) ninguém teve vontade e coragem para contrariar os proprietários. Agir. O responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML afirma que não tem de se «limitar a apanhar cães». É preciso fazer mais. Dispor de uma legislação coerente. Sensibilizar rapidamente a população e técnicos — através de uma operação conjunta da Associação dos Municípios, Direcção-Geral da Pecuária e da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais. Apelar para a responsabilidade das pessoas. Para que não sejam uma vez mais os animais a pagar o preço da nossa inconsciência cultural. Como dizia um «chien» francês: «Lâchez-nous les pattes!» (Deixem-nos em paz…).

    O JORNAL ILUSTRADO n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989
    (Foto: Inácio Ludgero)

    CUIDADOS

    Os animais são nossos companheiros, devemos tratá-los bem e respeitá-l0s. Não abandone o seu cão ou gato, eles são seres vivos que sofrem. Mesmo quando for de férias, se não os puder levar consigo, peça a um amigo que cuide deles ou instale-o num hotel para animais. e deveres

    E DEVERES

    Registe os seus cães e tire a licença na Câmara Municipal da sua residência. Coloque a chapa metálica na coleira. Caso o seu cão se perder e os serviços da câmara municipal o apanharem, o proprietário será rapidamente contactado. Desparasite e vacine os seus animais. Dê—lhes condições de higiene e de habitação. Mais vale ter um animal bem tratado de que vários mal estimados.

    No canil municipal de Lisboa há vacinas à disposição de todos os cães. Foto: Inácio Ludgero

    ILEGALIDADES

    «Amarrar aos cães (…) objectos que os mortifiquem e façam correr (…), e bem assim lançar fogo a animais, untando—os com petróleo ou verter sobre eles substâncias corrosivas, água quente, etc…». DL 5864.

    «Para evitar o bárbaro processo de envenenamento empregado frequentemente na extinção dos cães vadios, e para incutir no sentimento público o respeito pela vida de todos os seres: manda o Governo (…) recomendar às autoridades competentes que, quando seja necessário a extinção de cães vadios, se usem meios rápidos e suaves, em recintos apropriados e ocultos» . DL 3512.

    «É proibido ao pessoal empregado na apanha de animais de raça canina usar para com eles de maus tratos, e a sua apreensão será feita, sempre que seja possível pelos membros menos sensíveis, de forma a proporcionar-lhes o menor sofrimento» . CPM.

    «Considera-se como maus tratos aos animais (…) obrigar cães a acompanhar veículos em marcha». SPA.

    «O abandono de cães e de gatos por parte dos seus proprietários ou detentores, para além das sanções previstas neste diploma, constitui contra-ordenação contra a saúde pública e animal e de desprezo censurável pelos animais e como tal punível com coima de 1.000$ [escudos] a 200.000$ [escudos] a aplicar pela Direcção—Geral da Pecuária». DL 317/85.

    O abandono… (Foto: Inácio Ludgero)

    NOTAS:

    (1) Os cães podem transmitir ao homem doenças parasitárias — as mais frequentes — como a equinococose (quisto hidático) ou a ascanidiose (lombrigas) e doenças infecciosas como o tétano (mordedura ou arranhão) ou a raiva (irradicada em Portugal).

    (2) Rectificado no «Diário da República», 1.ª Série, n.º 251, de 31/10/85, 3.º sup.

    (3) Orçamento global da CML: 12.561.952 contos em 1985, 15.393.593 contos em 1986, 18.915.846 contos em 1987.

    (4) Os cães e gatos já dispõem, contudo, de cabeleireiro e manicure em Lisboa. Psiquiatra para cães, só nos EUA. Professor de yoga para gatos, só no Japão. Restaurantes macrobióticos ou vegetarianos para cães, só nos EUA.

    (5) Há 3 anos foi lançado o processo visando a empreitada de recuperação. Já se pensava nessa altura na construção de um novo canil adaptado às realidades caninas. A opção foi feita: Monsanto, onde foram efectuadas as terraplanagens. A Comissão de apreciação das propostas está neste momento a apreciar o projecto que prevê um canil — hotel para cães e gatos, incinerador, pavilhão de quarentenas, laboratório e centro médico—veterinário. Ao todo, uns 80 lugares contra os 50 do actual canil. Tudo depende agora da burocracia. De qualquer modo os prazos adiantados pela Câmara para a sua concretização parecem altamente utópicos.

    (6) As cadelas não esterilizadas sofrem um agravamento (20%) da taxa camarária.

    (7) Foram ainda apanhados mortos 1 101 cães em 1987 e 1287 em 1988.


    Reportagem originalmente publicada n’ O Jornal Ilustrado n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo com fotografias de Inácio Ludgero, a quem o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Inácio Ludgero teve a a amabilidade de me facultar os originais das fotos de ilustração. O meu bem-haja a um grande Senhor da Fotografia com quem tive o prazer de trabalhar.


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  • Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses

    Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses


    O Governo português autorizou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – ou Sociedade Genealógica do Utah – a microfilmar os assentos paroquiais dos portugueses. Mas esta autorização foi legal? Quais são as suas implicações para os portugueses?

    Uma reportagem do jornalista Rui Araújo publicada na Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


    O carteiro, habituado às deambulações oficiais, entra no n.º 23 da Avenida António Serpa, em Lisboa, e deposita na caixa da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias uma carta dirigida à Sociedade Genealógica do Utah.

    «A Sociedade Genealógica do Utah está autorizada a microfilmar os assentos paroquiais dos arquivos distritais, referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900».

    Este poderia bem ser o texto do ofício enviado em 19 de Julho de 1979 pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, à seita religiosa norte-americana, em resposta a um pedido nesse sentido.

    Mas, afinal, em que ficamos? Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ou Sociedade Genealógica do Utah? Seita religiosa ou instituto de estudos genealógicos?

    Entrada do ‘Granite Mountain Records Vault’, localizado nas montanhas que rodeiam Salt Lake Valley (Estados Unidos) (2010). (Foto: D.R.)

    De facto, o pedido dirigido à Secretaria de Estado da Cultura fora feito pela Sociedade Genealógica do Utah. Mas a Sociedade é apenas um instituto criado pela Igreja, a forma institucional assumida pelos mórmons.

    Hoje, passados três anos, os mórmons já microfilmaram os registos dos distritos de Aveiro, Évora, Faro, Leiria, Portalegre, Setúbal e Viseu. Estão a negociar os últimos detalhes relativos a Lisboa.

    E, dentro de alguns meses, todos os portugueses com mais de 82 anos, bem como os seus antepassados, (pelo menos estes) terão a sua ficha na fita magnética de um computador instalado em Granite Mountain, Salt Lake City, Estados Unidos.

    E porquê? A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias — ou a Sociedade Genealógica do Utah — dizem utilizar os microfilmes para «funções de tipo cultural», embora não tenha havido qualquer referência prévia ao facto de que os dados obtidos constituem parte importante de um ficheiro computorizado.

    «Funções de tipo cultural»: para que, como nos disse o responsável americano da Igreja em Portugal, Harold G. Hillam, cada pessoa possa reconstituir a história da sua vida. «Os Profetas antigos da Bíblia guardavam suas histórias e nós devemos considerar os registos do Passado como Sagrados», adiantou Hillam, num português ainda tímido.

    Vantagens dos cidadãos portugueses? As que resultam do facto de, dentro de alguns anos, os portugueses terem «a possibilidade de obter a sua genealogia, porque vivem num país onde a liberdade religiosa é uma realidade.» — acrescenta Hillam.

    Harold G. Hillam. (Foto: Imagem capturada de um vídeo de um sermão proferido em Abril de 2005)

    Porém, as operações de microfilmagem custam muitos milhões de dólares. O dinheiro vem das caixas americana e alemã da Igreja Mórmon. São, aliás, técnicos da RFA que estão a dirigir os trabalhos em território português. Os filmes impressionados são imediatamente enviados para a sede da seita, em Salt Lake Ciry, onde serão revelados. O original vai para o cofre da montanha e a cópia (excepto em alguns casos) para o arquivo de origem.

    «Na minha opinião, é a história do pobre e do rico», disse à ABC a Conservadora dos Arquivos do Distrito de Viseu, Dra. Maria Fernanda Mota, uma das raras pessoas que em Portugal têm conhecimento do assunto.

    Mas se esta história «é positiva, em alguma medida, para os arquivos nacionais — dado o estado de penúria em que se vive — não é menos verdade que há elementos subjectivos para além dos que estão no contrato, e o interesse do Arquivo não seria certamente idêntico ao da Sociedade Genealógica do Utah».

    Elementos subjectivos? E quais? A Conservadora não o disse, mas é possível analisar alguns, mais adiante. Em todo o caso, a «ofensiva» mórmon já atingiu praticamente o conjunto da Europa Ocidental e, seguramente, a Polónia. O que coloca algumas perguntas: afinal, quem são os mórmons? Ou, por outras palavras: Quais os seus objectivos?

    Uma funcionária a converter microfilme para formato digital no ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto: D.R.)

    Era uma vez uma vez um adolescente visionário…

    A história dos mórmons é, ao mesmo tempo, uma Epopeia lírica e uma aventura de «cowboys». O desafio lançado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias começa numa manhã primaveril de 1820, quando um jovem camponês, Joseph Smith, tem uma rara visão: Joseph isolara-se uma vez mais num bosque perto de Palmyra para, «sob o olhar vigilante de Deus», meditar sobre as disputas entre as várias formações religiosas e a sua adesão a esta ou aquela doutrina.

    Dois anjos apareceram diante dos seus olhos. Foi-lhe «dito» que não se unisse a nenhuma igreja, porque todas estavam «erradas». Os credos eram «abomináveis» e os mestres «corruptos». Anunciaram-lhe que seria chamado para «reconstituir a Igreja Cristã Primitiva na sua integralidade», uma vez que esta tinha perdido a Verdade.

    Um dos anjos volta a surgir exactamente três anos depois. Desta vez revela-lhe algo deveras surpreendente. «Disse que havia um livro despotiado, escrito sobre placas de ouro, acerca dos antigos habitantes deste continente, assim como sobre a origem da sua precedência», escreveria ulteriormente Smith.

    Depois de uma terceira visão, em 1827, Smith recebeu as duas pedras mágicas que lhe davam o conhecimento necessário para poder traduzir o Livro de Ouro.

    «A tradução foi concluída em 1829. O anjo veio então recuperar as pedras mágicas e as placas de ouro. E é por essa razão que nunca ninguém as conseguiu ver, excepto um fazendeiro e dois colegas amigos de Smith, futuros membros da ainda inexistente Igreja Mórmon.

    A partir daqui, a história das primeiras décadas da Igreja Mórmon é a história de uma quase interminável migração.

    Como a Igreja Mórmon precisava de uma base geográfico-política para ser reconhecida, o Profeta decretou a edificação de «um Estado teocrático dirigido pelos dignatários da Igreja assistidos pelo clero, formando um governo descendente de Deus» e com um poder real.

    Profetas e fiéis partiram do Estado de Nova Iorque com destino ao Ohio. Chegam a Kirtland em 1831. Mas a simpática povoação será, no fim de contas, apenas uma etapa. Apesar da criação de uma Estaca. O destino reservara-lhes outros êxodos.

    Foram para o Missouri. Mas lá, o nortista era um homem suspeito. E suspeito era o mórmon. Que aparecia com teorias revolucionárias. Com idealismos. Em suma, era um anti-esclavagista…

    No Inverno de 1833/34 é dada a ordem de partida. Conseguem chegar a Independance, mais tarde denominada Nova Jerusalém. Mas voltam a ser expulsos. Vão para Oeste e criam a cidade de Far West. E, desta vez, são as revoltas internas que põemem causa a paz da comunidade. Agitação. Desordem. E nova partida para longe.

    Em nome do ideal fundam Nauvoo. E eis que Terra Prometida lhes dá por fim acesso ao Estado teocrático sonhado. Com o poder executivo, legislativo e judiciário. Com uma universidade e um templo. Comum exército comandado pelo guia supremo da Igreja, Joseph Smith, que, por  falta de inimigos, vai dedicar o seu tempo à organização espiritual. Aquela que ainda hoje está em vigor.

    À cabeça da Igreja está o «Presidente, Profeta, Vidente e Revelador». Ele é assistido por dois conselheiros. As visões são aceites pelo «Conselho dos Doze Apóstolos», responsável da obra missionária mundial. Em seguida, há os sete presidentes do «Conselho dos Setenta», criado em Fevereiro de 1835.

    O credo mórmon decretado por Smith não foi modificado. Tal como Moisés, o Profeta Smith constituiu a sua «Tábua da Lei».

    (Foto: D.R.)

    E Deus criou a poligamia

    Joseph Smith era, sem dúvida alguma, um visionário. Com algumas particularidades: por exemplo, de Deus «recebeu» a obrigação de introduzir, na casta Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nada mais nada menos que a poligamia. E ainda hoje há quem diga que aquela revelação era dos diabos…

    Emma Hele é talvez a «culpada» da visão do Profeta. Emma, uma mulher bonita e inteligente, era a esposa de Smith. O marido apontava-lhe um único defeito: a sua falta de apetite. Sexual, está claro. Emma não conseguir jugular a grande sensualidade do marido.

    O mórmon que se respeita diz que a poligamia (denominada oficialmente «casamento plural») foi criada para garantir a existência da colónia e contentar as mulheres, que são em número superior ao dos homens.

    As más línguas sustentam que, como Smith não tinha bastante ousadia para ultrapassar, tanto as tentações como o terror do adultério, decidiu um dia fazer um apelo a Deus para o livrar de todos os escrúpulos possíveis.

    E quem espera, sempre alcança… No dia 12 de Julho de 1843 teve uma visão sobre a «Eternidade do Convénio Matrimonial e do Casamento Plural».

    A argumentação da Igreja relativamente a esta questão é um excelente pedaço de antologia místico-macho-sexual. Senão, vejamos: «Durante anos, depois de ter conhecimento de tal doutrina através da revelação Divina, Joseph sentiu-se impossibilitado de pô-la em prática ou ensiná-la a outros. (…) Muitas mulheres teriam de viver e morrer solteiras, privadas da oportunidade de desenvolvimento proporcionado pelo casamento. (…) Os melhores membros da Igreja e as melhores pessoas do Mundo surgiram através do casamento plural».

    Smith aconselhou, portanto, os seus discípulos a seguirem as leis do Senhor. E eles obedeceram. Por Brigham Young, o sucessor de Smith, homem de acção e de muitas mulheres que, curiosamente, contribuíram de forma significativa para a sua fortuna.

    Estátua de Joseph Smith e Hyrum (Illinois, Estados Unidos). (Foto: D.R.)

    Joseph Smith e o seu irmão Hyrum faleceram em 1844 na cidade de Nauvoo no decorrer de uma manifestação antipoligamista. Os mórmons partiram para perto do Lago Salgado, no ano de 1847. Durante 22 anos, vão criar as bases de um estado independente: o «Deseret» (abelha), que será integrado na União em 1850, depois da construção da via férrea do Pacífico, sob o nome de Território do Utah.

    A poligamia viria a ser retirada das obrigações religiosas por imposição da lei federal e por decisão do Profeta Young em 1890. Mas 65 anos depois, alguns dissidentes excomungados restabeleciam a poligamia no México e nos EUA. Com algum sucesso, aliás.

    Seis homens telecomandados pelo Papa dissidente Ervil Le Baron, chefe de um grupo polígamo, mataram no dia 10 de Maio de 1977 o seu rival do Utah, Alfred Vernon, fazendo sete viúvas e trinta crianças orfãs. Na cidade de Colorado, no Estado do Arizona, a Polícia teria descoberto recentemente mais de 5 mil homens polígamos.

    Mas se é verdade que a poligamia desapareceu quase por completo da comunidade ortodoxa mórmon, que se desenvolveu rapidamente e tem hoje cerca de 6 milhões de membros espalhados pelos cinco continentes (com uma taxa de crescimento de 150 % desde 1963), não é menos certo que ser mórmon em 1982 é ser ainda, em larga medida, machista.

    A esposa virtuosa deve ter, pelo menos, 5 filhos. Deve ficar em casa e efectuar todas as tarefas caseiras. A feminista Sonia Johnson foi excomungada em Dezembro de 1979, ao pôr em causa determinadas regras impostas às suas congéneres, como a necessidade de serem boas mães. Boas vizinhas. Boas donas-de-casa. E virgens antes do casamento.

    Uma fonte de poder

    Honestos, metódicos e rigorosos por natureza os mórmons têm boas situações e representam uma força política importante, sobretudo nos Estados Unidos. Eisenhower teve um ministro mórmon. Kennedy, idem. Nixon, três.

    «Ainda não há de momento nenhum ministro mórmon em Portugal…», confidenciou-nos o Presidente Hillam. Sorrindo. E tem de quê. A adesão dos portugueses à Igreja mórmon está em progressão. Em Novembro de 1975, data da sua instalação no nosso país eram uns seis. Hoje, são mais de 6 mil. E dois milhares de pessoas aderem cada ano à Igreja. São, na sua maioria, médicos, advogados, e algumas pessoas de origem mais modesta.

    O Irmão Xavier, 22 anos, natural do Porto, solta um «Puxa Vida» e retira a folha da máquina de escrever. É mórmon há três anos. Antes, era empregado de escritório e estudava à noite. Andava a tirar um curso de «Artes do Fogo« na Escola Soares dos Reis. Deixou a terra, a família, o emprego e a religião católica, «por amor à mesma religião, mas por melhores princípios».

    «Contactaram-me na rua. Depois, assisti a sete palestras e aderi à Igreja. Embora os meus pais não compreendessem a minha atitude, devo dizer que o mesmo não aconteceu com os meus dois irmãos que também já cá estão», contou-nos o Irmão Xavier, antes de inserir outra folha na máquina. «E se os meus vizinhos não são mórmons é porque é difícil deixar de fumar e de beber…», concluiu.

    Se o mormonismo sobreviveu depois de tantas peripécias e acabou por se desenvolver de forma tão notória em muitos países, não foi devido unicamente à sua arte de comunicar a palavra de Deus. Há também o «sucesso da colonização do Utah (onde 75 % da população é mórmon), o trabalho, a riqueza e uma vida familiar digna», como afirma uma especialista francesa.

    O Templo de Kirtland (Ohio, Estados Unidos) foi o primeiro templo construído pelos mórmon (Foto: D.R.)

    A taxa de divórcios no Estado do Utah é a mais baixa dos EUA; a delinquência juvenil a mais reduzida. A taxa de frequência escolar e universitária é das mais elevadas do país. A Universidade Brigham Young, em Provo, no Utah, com 15 mil estudantes, é a maior universidade norte-americana pertencente a uma igreja.

    Mas a Igreja Mórmon representa também um poder financeiro indiscutível. É muito rica. Os seus rendimentos anuais ultrapassam os mil milhões de dólares, só com os 10 % dos ordenados anuais dos membros. A Igreja possui ainda 160.000 hectares de terrenos, uma grande parte dos prédios de Salt Lake City, 383 milhões de dólares nas companhias de seguros, um jornal, várias revistas, 11 estações de rádio, 2 canais de TV, uma sociedade de produção de açúcar, acções num grupo de grandes armazéns, etc, etc.

    Em Portugal, o orçamento dos mórmons deve atingir centenas de milhares de contos. E como a Igreja não paga impostos e pouco gasta com o seu pessoal e instalações, como e onde é investido o dinheiro? Com que finalidade? Perguntas às quais não obtivemos qualquer resposta. Constantemente nos vimos confrontados com uma forma de segredo, que não é mais, afinal, do que a defesa «instintiva de toas as instituições contra o olhar do próximo». A seita parece ignorar o direito à Informação… concreta. Porque, quanto aos dados histórico-metafísicos, aí sim, ela é pródiga em detalhes.

    Bem-estar, sobrevivência e salvação

    18:10. Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Um dos 33 centros da Igreja em terra portuguesa. Três garotos brincam no átrio do palacete do número 93. Um cântico invade a obscuridade.

    Alguns dos 2.000 mórmons residentes em Lisboa assistem neste 13 de Novembro, um domingo, a mais uma reunião da seita. Depois do Hino e da Oração há o programa do Bem-Estar. Criado há alguns anos atrás para garantir a sobrevivência dos adeptos, «sobretudo em relação ao Governo». Na realidade, em relação à guerra.

    «O programa é tão bom que o governo americano estaria neste momento em negociações com a Igreja Mórmon com vista à adopção do Plano de Bem-Estar», diz-nos o Irmão Amorim, um jovem brasileiro mórmon.

    «Plano de Bem-Estar significa independência. Felicidade. Em primeiro lugar, a família é responsável pelo seu auto-sustento. Em segundo, é a Igreja».

    Mas o Plano de Bem-Estar, nesse domingo, é também a evocação dos Estados Emocionais, a Tranquilidade, o Armazenamento (de víveres), a Sobrevivência em qualquer situação, os homens do deserto, e… uns cantares e danças.

    Movimento messiânico (puro), o mormonismo anuncia para amanhã («ou depois de amanhã») o regresso de Cristo e prepara os seus membros para afrontar o Juízo Final. Em dados concretos, os mórmons como, sobretudo, muitos norte-americanos, vivem condicionados pelo medo, pelos novos medos. Como a ameaça atómica, por exemplo. Ou como a guerra, toda e qualquer espécie de guerra.

    Perante as ameaças de um mundo exterior, hostil e militarizado, como é possível alcançar a Salvação?

    «Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado». São Marcos. 16:16. O Presidente Hillam fecha o livro sagrado e desenvolve a ideia: «As pessoas têm de ser baptizadas pela Autoridade, mesmo os mortos, porque o que é essencial é a família».

    Hillam, meio businessman, meio padre (elegante) de província, insiste. Faz perguntas. «Se Deus é justo, o que vai acontecer às pessoas que não foram baptizadas ?» Silêncio. O monólogo continua. «Deus disse que sem baptismo não há Salvação. Por isso, nós devemos ter as informações sobre as pessoas».

    Perante o nosso pedido para gravar as suas declarações, Hillam desculpa-se com a má qualidade do seu português. E ataca de novo. Jesus volta à baila. «No tempo de Jesus, foi ensinado que nós temos uma responsabilidade para com os nossos antepassados. Cremos profundamente que eles são importantes e que não devem ser esquecidos».

    Esquecidos pela Igreja Mórmon? Hillam limita-se a dizer que não serão obrigatoriamente baptizados pelos mórmons. Então por quem? A reposta evasiva não faz sentido. «Por outras igrejas…»

    Surge então a questão das pessoas que não têm o seu nome nos arquivos existentes. Hillam replica como dever para todos os que «estão» nos arquivos. E sublinha uma frase do «Nosso Pai Celeste»: «Faz o que podes fazer». E os católicos? E os muçulmanos? E os ateus? Estarão interessados em ser baptizados, mesmo postumamente, pelos mórmons?

    Em plano século XX, os meios tecnológicos disponíveis facilitam o trabalho dos mórmons. Já ninguém se lembra de copiar pacientemente, linha após linha, os milhares de livros de registo civil existentes nos arquivos portugueses, desde que a obrigatoriedade do registo foi decretada em 1532.

    Por isso, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou, directamente a Sociedade Genealógica do Utah, recorrem ao microfilme e, inevitavelmente, à computarização dos dados. Os objectivos parecem ser transparentes: são de natureza religiosa. Mas, nesse caso, porquê utilizar o nome de uma sociedade subsidiária da Igreja que constitui a sua razão de ser? Ou, inversamente, se a Sociedade Genealógica do Utah é um instituto cultural, como articular a sua actividade com os objectivos confessionais proclamados pelos mórmons?

    David Mourão Ferreira (1985). (Foto: D.R./António Duarte/Museu do Fado)

    A operação de microfilmagem dos arquivos e registos portugueses foi autorizada em 1979, pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira. Mourão Ferreira fazia parte do Governo de Mota Pinto, mas quando o seu despacho relativo à pretensão da Sociedade Genealógica do Utah foi lavrado, em Julho de 1979, o escritor limitava-se a assegurar a gestão dos negócios correntes, já que o IV Governo perdera a confiança da Assembleia da República.

    Três anos depois, contactado por ABC, David Mourão Ferreira diz não se recordar desse despacho, nem das circunstâncias em que foi lavrado. Provavelmente, o secretário de Estado terá aposto a sua assinatura sobre uma informação de serviço que lhe foi preparada por um funcionário da Direcção-Geral do Património, hoje Instituto Português do Património Cultural.

    Aparentemente, a dúvida que se levanta é saber porque razão foi o Património chamado a informar sobre a pretensão dos mórmons. Mas é certo que o requerimento se referia apenas à microfilmagem dos registos «referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900». Tratar-se-ia, portanto, de uma investigação de natureza histórica, que só em muito pequena parte atingiria cidadãos portugueses ainda vivos.

    Gráfico de linhagem: só para fins culturais?
    (Foto: Documento em português dos mórmons)

    Algumas interrogações

    Acontece, porém, que nos registos paroquiais se assentam acontecimentos importante da vida do cidadão, para lá do nascimento. Concretamente: no registo é averbado o casamento, o que significa, desde logo, que os mórmons têm neste momento facilidades duplas duplas na identificação de todos os portugueses com mais de 80 anos — pelo menos. E, como de todos os actos públicos sujeitos a registo podem ser extraídas certidões, a pedido de qualquer interessado, logo se vê como qualquer investigação sobre cidadãos portugueses vivos pode ser feita a partir dos dados básicos recolhidos pela Sociedade Genealógica do Utah.

    Vejamos mais de perto o processo. Desde que são microfilmados os registos qual é o percurso seguido pelos microfilmes? Tomemos o exemplo do Arquivo Distrital de Viseu. As relações entre a Sociedade Genealógica do Utah e o Arquivo de Viseu estão regulamentadas num contrato-tipo «para a autorização da microfilmagem de documentos com interesse genealógico». O contrato é um extenso documento de 13 artigos, nos quais se estipulam minuciosamente condições, destino e contrapartidas à operação contratada.

    Um corredor no interior do ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto. D.R.)

    Aí se lê, no artigo 3.º, que a Sociedade Genealógica do Utah se obriga «a revelar por conta própria os microfilmes, nas suas instalações de Salt Lake City, Utah, ou em outro local sob a sua direcção, e compromete-se a guardar, preservar e conservar os negativos nos seus depósitos de Granite Mountain». Por outro lado, o artigo seguinte refere que a Sociedade fornecerá um duplicado da matriz de microfilme ao Arquivo Distrital que é parte contratante.

    Qualquer nova cópia só poderá ser fornecida pela Sociedade a outras pessoas ou instituições, mediante autorização da Direcção do Arquivo Distrital. Mas numa notícia datada de 27/08/80, redigida em inglês e distribuída aos órgãos de informação nos Estados Unidos, diz-se que na Biblioteca Genealógica de Salta Lake City existem microfilmes de arquivos de 37 países, «equivalentes a 4.927.000 volumes impressos de 300 páginas cada um, estando 157.000 volumes genealógicos disponíveis para investigação privada, quer de membros quer de não membros da Igreja». A investigação é feita com recurso a um centro informático onde se recolhem, devidamente tratadas, todas as informações recolhidas em microfilme. Em que medida é que uma interpretação extensiva destes dados não permitirá pôr em causa a reserva estabelecida no artigo 6.º do contrato tipo?

    No Arquivo de Viseu, as operações de microfilmagem estão hoje praticamente concluídas. Os últimos 12 livros foram fotografados ainda muito recentemente, mas o Arquivo já recebeu parte dos duplicados previstos no artigo 5.º do contrato. Que vai o Arquivo fazer com esse material? A Conservadora do Arquivo, Drª. Maria Fernanda Mota, diz que de momento, «não existe nenhum leitor de microfilmes» em Viseu. Os rolos de película estão armazenados nas instalações do Arquivo, em condições que estão longe de ser as melhores para a preservação de material desse tipo. «A casa já tem alguns séculos», confessou a Conservadora.

    E a Constituição Portuguesa não proíbe?

    As operações de microfilmagem foram efectuadas em Viseu por uma equipa de três pessoas, entre as quais um cidadão brasileiro. Dos microfilmes arquivados em Salt Lake City serão ulteriormente feitas cópias de trabalho para utilização da Sociedade — ou da Igreja — em Portugal.

    As fichas reproduzidas nestas páginas são fornecidas a quem as solicitar. Se, por exemplo, uma pessoa deseja conhecer informações «genealógicas« sobre outra, basta-lhe pedir. A resposta, dada pelos computadores, é lavrada nas fichas, editadas pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

    Como se vê, para lá das informações relativas à identificação do cidadão, constam espaços para dados sobre cônjuges, ascendentes e descendentes. Ora, se o acesso a esses dados é livre, a partir das instalações de Salt Lake City, e se deles é extraída cópia para utilização em Portugal, não é difícil nem exagerado afirmar que há pessoas que sabem ou que podem vir a saber tudo sobre a árvore genealógica, a ascendência, descendência e a vida civil de qualquer leitor de ABC.

    (Foto: Documento da seita)

    A preocupação com o destino dos dados recolhidos não é gratuita. Em França, por exemplo, ainda recentemente se levantou a questão de saber se as operações de microfilmagem deveriam continuar a ser autorizadas. Embora a decisão das autoridades francesas não tenha sido tomada, sabe-se que Henri Caillavat, presidente da Comissão Informática e Liberdade, está disposto a recomendar às autoridades que os arquivos franceses continuem disponíveis para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, pelo menos, durante mais cinco anos.

    Caillavat manifestou-se «satisfeito» com as informações que lhe foram dadas, após uma visita realizada em 14 de Setembro às instalações e ao centro da informática dos mórmons, em Salt Lake City.

    Reportagem na revista ABC. (Foto: D.R.)

    Um último aspecto: se ninguém até hoje conseguiu distinguir entre o que são objectivos culturais e objectivos religiosos, talvez seja conveniente, para os mais esquecidos ou menos atentos, uma leitura do Art.º 35 da Constituição da República Portuguesa: «A Informática não pode ser usada para tratamento de dados referentes a convicções políticas, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se trate de processamento de dados não identificáveis para fins estatísticos». Em que ficamos?

    Para um constitucionalista, que solicitou não ser identificado, «o problema fundamental — uma vez que os dados não são directamente referentes à fé religiosa — é o da legitimidade do fim.»

    Falta saber, portanto, se o fim é legítimo em face dos princípios: se não há violação da dignidade da pessoa (artigo 1.º da Constituição); nem dos princípios relativos à liberdade religiosa. «Baptizar as pessoas independentemente da sua vontade pode ser considerado um acto irrelevante como uma ofensa à liberdade religiosa», acrescentou o constitucionalista.

    De qualquer modo, cada cidadão português poderá perguntar à Igreja Mórmon e/ou à Sociedade Genealógica do Utah qual a finalidade destas operações. Mas, desde já, resta uma declaração e vontade: Rui Araújo, cidadão português, não está interessado em ter, agora ou no futuro, os dados pessoais num computador (de uma seita) — ainda que para fins de investigação cultural. Mais: desde já se declara que o jornalista não quer ser baptizado, ainda que postumamente, pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.


    Reportagem originalmente publicada n Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


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