Categoria: Caderno dos Mundos

  • Pena suspensa: Palavras

    Pena suspensa: Palavras


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 13 de Agosto de 1988, sobre António, 45 anos, casado, pintor de automóveis, e a única pessoa ferida nesta história.


    Foto: Rui Araújo

    PALAVRAS

    — A moral deste caso é que os agentes da Autoridade… Mais grave do que agredirem os cidadãos no exercício excessivo da sua autoridade é virem aqui aos tribunais e mentirem. Dizerem coisas que não se passaram  ou ocorreram de forma diferente. — denuncia o homem.

    António, o réu

    António, 45 anos, casado, pintor de automóveis — um homem sereno e senhor de si que veio parar ao Tribunal de Polícia porque há dois anos teria injuriado e agredido um agente da PSP. Nota bastante curiosa à margem deste processo: António — acusado de agressão — é a única pessoa ferida nesta história.

    A testemunha do crime

    — Eu fui ao café mais o senhor António e umas pessoas amigas. Até que ele foi falar com a dona do estabelecimento para ela acabar com determinados problemas — telefonemas — lá para casa. Ela chateou-se. Deu-lhe com o tabuleiro dos copos. A seguir, deu-lhe com o rolo da massa. A gente acorreu para acudirmos. Entraram dois guardas de repente. O filho da dona do café saiu, entretanto, do balcão e atirou um soco ao senhor António. Aí, ele gritou logo para o guarda  que o rapaz  — o Manuel — acabara de lhe dar um soco. O guarda virou-se para o senhor António, que filho da p… era ele.

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    Aí, António sentiu estalar qualquer coisa dentro do coração. A brutalidade daquelas palavras sobre a sua mãe e o escarolado sorriso de desdém do polícia passavam das marcas. E o temporal, em vez de amainar, piorou. A partir daí…

    A palavra da defesa

    — O mais grave nisto tudo é que é fruto da sociedade em que estamos inseridos. A Polícia aproveita-se da farda que tem em cima do corpo e agride e insulta. Foi o caso do polícia que me chamou filho da p…

     Isso marcou-o?

    — Isso marcou-me muito porque eu com seis anos fiquei sem mãe. Não a conheci. Não soube o que é chamar mãe. E de forma alguma aceitaria vir alguém — quanto mais uma Autoridade — chamar-me filho da mãe.

    — Foi parar à esquadra. O que é que sucedeu?

    — Fui agredido a caminho da esquadra. O polícia em causa deu-me um soco no rim do lado esquerdo. À noite, senti-me mal. Socorri-me ao Hospital de São José. Estive na sala de observações. Saí no sábado. Voltei a entrar novamente.

    — O que tinha?

    — O relatório acusou traumatismo craniano. Só que depois tinha de me apresentar aqui em tribunal na segunda-feira às 10 horas. Uma senhora doutora perguntou-me o que tinha no corpo. Mostrei-lhe. Despi a camisa. Ela viu. E por ordem deste tribunal este julgamento passou a criminal. Afinal de contas o julgamento acabou por se dar aqui.

    A sentença

    E demorou algumas horas até o juiz dar por finda a audiência. Veredicto do tribunal: não houve injúrias nem agressão a agente da autoridade. António foi simplesmente absolvido.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 13 de Agosto de 1988.


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  • Pena suspensa: Lisboa 1988

    Pena suspensa: Lisboa 1988


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 5 de Novembro de 1988, sobre Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade.


    Foto: FRONTERAd, Madrid

    LISBOA 1988

    Esta história começou ontem.

    Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade, compareceu em tribunal e não chegou a ser julgada. Não possuía qualquer documento de identificação. Ficou mais uma noite detida. Esta manhã, voltou ao banco dos réus para julgamento.

    Tentou furtar num supermercado da capital duas embalagens de carne — alcatra e cachaço —, uma embalagem de lulas e sete iogurtes naturais.

     A rapariga deu um jeito no cabelo, sorriu com os lábios grossos e contou o seu calvário sem protestos ou imprecações.

    — Eu estou em casa dos meus pais. Tenho duas meninas. O pai está com a mais velha. Pois teve uma zanga com os meus pais. A minha mãe chateou-se comigo e meteu-me na rua.  Eu, como não tinha comer nem para a minha filha nem para mim, fui buscar para as duas. Tive um bocadinho de pouca sorte. Fui apanhada pelo chefe e puseram-me aqui no tribunal. Fiquei cá duas noites a dormir por causa do bilhete de identidade.

    — E agora? O que vai fazer?

    — Tentar ir para casa. Ir ter com a minha filha.

    A white stuffed animal sitting on top of a table

    — Como é que é a vida lá em casa?

    — Acho que é tudo bem só que eu não tenho emprego. Já tive um emprego de mulher-a-dias. Estive um ano a trabalhar. Fui cozinheira, também. Eu precisava era de arranjar um emprego. E esquecer esta asneira que eu nunca tinha feito isto. Foi só por a gente estar com fome…

    — E já tiveram fome muitas vezes?

    — Já. Mas aguenta-se. Há vezes em que mesmo com fome não me chateio. Só que desta vez estava enervada por a minha mãe me ter posto na rua. Eu gostava mesmo  era de arranjar um emprego. Mulher-a-dias, secretária, sei lá…

    — Para não andar mais em tribunais?

    — Para ter uma vida…

    Conclusão

    Veredicto do tribunal: houve crime de furto. Maria João condenada a 40 dias de prisão, substituídos por uma multa de 12 mil escudos. Pena suspensa por um ano.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 5 de Novembro de 1988.


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  • Pena suspensa: África ainda…

    Pena suspensa: África ainda…


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 26 de Novembro de 1988, sobre Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, ‘barman’ e réu.


    Foto: Rui Araújo

    — Foi à garrafeira. Pegou numa garrafa de vinho verde e noutra de uísque. Foi à padaria. Sacou meia dúzia de pães. Foi à caixa número cinco. Pagou o vinho verde e o pão… — explica a funcionária da segurança do supermercado.

    Antecedentes:

    — Furto de motociclo.

    — Ofensas à Autoridade.

    — Posse de estupefacientes.

    — Furto em supermercados com agressão a agente.

    — Assalto a um estabelecimento comercial com arrombamento e tentativa de fuga.

    Aníbal, 29 anos, solteiro, toxicómano, «barman» e agora réu por 1.438$00 (7,17 euros) — o preço de uma garrafa de uísque novo.

    alcoholism, sick, alcoholics

    O pai do rapaz conta o pesadelo da família.

    — Acho que as autoridades onde deviam actuar não actuam.

     Isso significa o quê?

    — É que eu tenho um filho que, infelizmente, está no mundo da droga. É um consumidor. E o que eu tenho deparado ao longo destes anos é que as autoridades actuam sobre os consumidores — que são autênticas crianças — e nunca vejo prenderem os indivíduos que são os passadores. E...

    — Como é que o seu filho mergulhou na droga?

    — Foi há alguns anos atrás. Nós viemos de África. Isto tem sido uma luta constante. Já não bastou o problema da descolonização. E continuamos numa situação difícil. Ainda não me sinto realizado. Temos sido marginalizados…

    — Isso aplica-se também ao seu filho?

    — Sim. E a gente tem lutado muito para o salvar mas ninguém ajuda. A droga está a dar cabo da juventude. E devia haver instituições para recuperar esses jovens. Na prisão, eles apodrecem. Os governos deviam fazer algo. Gastam-se milhões de contos não sei onde e coisas necessárias como a reinserção dos jovens não existem.

    Veredicto

    Aníbal vai condenado. Uma multa de 27 contos (134 euros) ou em alternativa 60 dias de prisão. Mais as custas do processo.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 26 de Novembro de 1988.


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  • Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador

    Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 20 de Agosto de 1988, sobre António, 34 anos, profissão desconhecida.


    Foto: Rui Araújo

    — Tem 34 anos e nunca trabalhou?

    Trabalhei uma vez já lá vão muitos anos. Muito mais … já não me lembro.

    — E como é que vive?

    — Vivo mal. Não tenho alimentação e vivo mal.

    — Como é que vai arranjando o suficiente para comer?

    — Ando no… lixo. Tenho de apanhar umas coisas no lixo. Nos supermercados.

    — E já alguma vez tentou arranjar emprego?

    Não. Não me interessa derivado ao ponto que já tenho…

    António, 34 anos, solteiro, profissão desconhecida — desde que veio ao mundo apenas trabalhou meia dúzia de dias na faina da pesca —, antecedentes criminais banais. Preso várias vezes por vadiagem, furto e agressão a tiro. Pelo menos estas. Desta vez, veio parar ao Tribunal de Polícia por estar a perturbar o trânsito. Quando o agente da PSP o interpelou, António, mal-encarado e porventura bem bebido, puxou de uma navalha e tentou sangrar o polícia como quem sangra um porco.

    handcuff, black silver, caught

    Ainda bastante «entorpecido» o rapaz conta a história.

    Apanharam-me com um saco de lixo duas vezes e levaram-me à esquadra.

    E desta vez qual á a história?

    Desta vez? Ameacei o polícia. Estava assim um bocadinho bebido…

    Quem é que estava bebido?

    Eu.

    E ameaçou-o com quê?

    Com uma navalha.

    Mas ameaçou o agente porquê?

    — Estava um bocadinho bebido. Deu-me na vida… Deu-me na vida e ameacei.

    E a seguir foi conduzido à esquadra?

    — Fui.

    O que é que aconteceu lá?

    Deram-me pancada. Por onde calhou. Mas não me bateram muito… E depois trouxeram-me para aqui.

    white painted wall

    E qual é a moral desta história?

    A moral desta história é derivado… Tenho mais coisas, mas não me rima contar.

    Que coisas?

    Coisas… Coisas que eu faço por aí na vida. Não me rima para falar desta maneira…

    E agora? O que vai fazer?

    Vou esperar até ver o que me vai acontecer.

    E vai acontecer o quê?

    Talvez ficar preso. Ou ir para a vida…

    Qual é o seu sonho?

    Ser lavrador!

    Porquê?

    Tem gente na vida. Tem gente na vida…

    Não chegou a haver julgamento. Durante o interrogatório surgiram algumas dúvidas quanto à integridade mental do réu. O juiz decidiu restituir António à liberdade. Os autos vão agora ser remetidos para os juízos correccionais de Lisboa. Julgamento daqui a uns meses. Depois de António ser visto por um psiquiatra.


    Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 20 de Agosto de 1988.


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  • Os ‘cowboys’ de Santo António

    Os ‘cowboys’ de Santo António


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada na revista Grande Reportagem, em Maio de 1985.

    Na Serra de Santo António, os proprietários organizam-se e armam-se para combater os ladrões de gado, porque, dizem, “as autoridades nada fazem”

    Uma milícia privada ou um ‘Far West’ português?


    Foto: Rui Araújo

    “A paz orvalhada que há pouco cobria a aldeia enxugava agora ao claro sol que rompia. Todas as chaminés fumegavam, todas as casas estavam abertas, todos os mistérios desabrochavam e perdiam insensivelmente a graça da virgindade”, Torga mal podia imaginar e, no entanto,…

    Foi quando a filha do Prudêncio casou! É verdade, os roubos começaram no dia do casamento, há uns cinco anos atrás…

    Aníbal morde o beiço e põe-se a meditar. Aí, os fregueses do Café do Agostinho param de jogar às cartas, pedem mais uma rodada e ficam a ouvir. Sentem-se obrigados a comparticipar — atentamente — na conversa. Aníbal sabe falar.

    A coisa repetiu-se há uns dois anos e o ano passado tentaram fazer mais três desvios. Só de uma vez queriam levar 14 bois de engorda… Em cinco anos roubaram-nos dezenas de cabeças de gado.

    Sem dar conta, temos um grupo de velhotes à volta da nossa mesa. A mirar e a inventariar. João Louro, jovem proprietário e guardador de vacas, continua a história.

    O homem comprou os animais em Santarém e volvidos poucos dias os ladrões tentaram levá-los. Como estava a chover muito, o carro deles afundou-se. Foi por isso que tiveram de soltá-los todos para fora. Um Mercedes é que veio puxar o carro da lama. Eles costumam tirar os animais dos cerrados [zonas vedadas por muros de pedra] e depois forçam-nos a entrar nas camionetas mesmo à porrada. Uma vaca chegou a vomitar o bucho. Ela já devia ir morta ou perto disso…

    Um velhote despega-se do grupo e diz que não se deve esconder nenhum bocado da história. As características da região impõem que o gado ande à solta, pelo menos, nove meses por ano e esteja, assim, mais à mercê dos ladrões. Mas há outros ladrões. Os caçadores não roubam, mas destroem muita coisa a pretexto de darem uns tiritos aos tordos: “cortam pinheiros a tiro, furam bidons de água para o gado, deitam muros de pedra abaixo e dão cabo da calma e da vida das gentes das serranias“.

    Serra de Santo António.

    Montes, muitos montes, trilhos, veredas e meia dúzia de casas dispersas. Uma paisagem de pedregulhos alvos e de erva bem verde. Ali vivem 1.000 almas e 3.000 cabeças de gado que produzem uns 15.000 litros de leite por dia, mais alguma carne. A edificação de quatro moradias afrancesadas e as manobras nocturnas dos 60 homens da milícia armada para combater os ladrões de gado — face ao aparente sonambulismo das autoridades — são os primeiros sinais palpáveis da vida que por ali corre.

    Aníbal Agostinho e João Louro acompanham-me à Junta de Freguesia. O presidente, Lourenço Rosa, manda-nos entrar. Enquanto trocamos as primeiras palavras aparece um latagão que se abeira do guichet e se queda a escutar. Lourenço Rosa faz o ponto da situação:

    As rondas vão prolongar-se, pelo menos, até ao final do Verão. Depois, logo se verá. A GNR não tem capacidade para fazer mais. Foi essa a razão que levou os proprietários a fazer a sua própria segurança, formando uma escala de serviço para guardar o gado. Vai ser preciso um desastre para que as autoridades comecem a preocupar-se com isto. Mas nessa altura, quando isso vier a suceder, não virão cá fazer nada. Já será tarde… Os ânimos estão exaltados. Já lá vão umas dezenas de cabeças de gado roubadas na área e isto é muito grave. Com as pessoas a terem que guardar os seus bens, estamos no Far West…

    A segurança é efectuada diariamente por dois grupos armados com dois homens cada um. As rondas começam depois do pôr do Sol. A escala de serviço (secreta, se faz favor!) obriga cada homem válido a patrulhar todos os 15 ou 19 dias, faça o tempo que fizer.

    Foto: Rui Araújo

    Esta noite estão de guarda o João Louro e Aníbal Agostinho numa zona, e dois homens da serra, noutra. Decido acompanhar os primeiros. A patrulha começa com uma ´bica´ na tasca do Agostinho. Depois, cada grupo segue o seu caminho. Levamos umas latas de atum e uma garrafa de bagaço. Os outros, um pedaço de carne assada. O regresso só está previsto para as 05:00 da manhã, hora em que começam a circular os “carros do comércio”.

    Faz frio. Do sítio elevado onde nos encontramos controlam estradas e atalhos. A carrinha está escondida atrás de um muro de pedra. Os dois homens encostam-se ao pára-choques e puxam das caçadeiras. Mil e um ruídos surdos invadem a serrania. É altura de meter conversa.

    Isto é um bocado chato…

    Pois é, mas se ninguém o faz há roubos. — conta João.

    Eu gostava mais de estar na cama ou ir até ao café, mas temos de salvaguardar os nossos interesses.

    Ouvimos passos que se aproximam. Os dois homens levantam as caçadeiras. O ruído cessa. Uma voz áspera grita que ali vai “gente de paz“. Sorrimos. O outro grupo decidiu visitar-nos. E ainda bem. A noite estava a tornar-se longa.

    Sentamo-nos ao lado de uma casota de pedra. Pergunto quais foram as últimas peripécias da “força armada” da serra. Os cowboys começam por nada dizer, mas quando Aníbal se decide a abrir a boca para contar a história do cunhado (que atirou um tiro para o ar quando um forasteiro saiu do carro para urinar de noite e acabou por fugir a sete pés) a língua solta-se a todos os outros.

    João Costa Gaspar, 68 anos, 34 vacas, é o veterano do corpo de intervenção da serra. O homem fala pelos cotovelos. Diz que antigamente tinham o gado à toa. Passavam dois ou três dias sem o ver, mas andavam descansados. Agora, quando lhes falta uma rez, pensam logo que foi roubada. E as aventuras?

    João Louro aproveita a deixa para contar. Uma vez, alguns rapazes de fora da serra foram de noite para uma gruta  e um dos homens da patrulha ouviu um deles dizer aos outros para mandarem a corda, “que esta já está“. Eles queriam dizer a pedra, mas o guarda entendeu que era uma vaca. “Veio cá acima chamar a gente enquanto o outro ficou lá em baixo de espingarda apontada. Só não foi parar dentro da gruta com um tiro porque houve controlo…”

    O velhote volta ao ataque. Uma outra noite, viu a luz de uma camioneta com taipais altos. Mandou-a parar. O condutor respondeu-lhe que não era ladrão de vacas. Transportava azeite. Ora, para o senhor Gaspar, “transportar azeite em Setembro é uma mentira“. Além disso, o veículo circulava numa estrada intransitável. “Se ele não tivesse com mau sofisma ia pela estrada directa. Em seguida, até mudou de residência. Era uma forma de declarar que deve mesmo ser ele, porque não se sente bem ao pé da gente.

    Arménio Santos Duque, 32 anos (e co-autor das listas de ronda) conclui que “é ingrato e grave” terem de fazer justiça. O ancião dá-lhe uma cotovelada sorrateira e adianta que se vir alguém a andar com vacas atira “como aos coelhos, tal e qual, igualzinho. Atiro, decidido, logo. Ou mato ou morro. Mesmo se, como agora, ando um bocado destreinado…

    Bebemos um trago, damos uma última volta pelas propriedades vizinhas e voltamos à aldeia. O dia não vai tardar em nascer. Na estrada aparecem os primeiros comerciantes. Os cowboys da serra têm de despachar-se. Mudar de roupa e de ofício. Amanhar a terra, ordenhar as vacas e trabalhar na fábrica.

    Uma fonte próxima do posto da GNR de Alcanena (do qual depende a Serra de Santo António) limita-se a confirmar que “há poucos efectivos” para a região e nada se pode fazer para impedir patrulhas privadas. Os roubos de gado assolam o país de Norte a Sul. A iniciativa dos homens da Serra de Santo António, ao tomarem nas suas mãos a defesa das suas manadas, pode ser eficaz. Mas também pode ser que um dia destes algum inocente acabe por apanhar com os ricochetes.


    Reportagem originalmente publicada na revista Grande Reportagem, na edição de 10 a 16 de Maio de 1985, Lisboa.


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  • A sombra do tempo

    A sombra do tempo


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, emitida na TVI em Junho de 2017, com um olhar sobre a vida dos homens detidos no Estabelecimento Prisional de Olhão.


    É tempo de partirmos. Os presos ficam com a noite que não pertence a ninguém, graças a Deus.
    (Foto: Rui Araújo)

    Estabelecimento Prisional de Olhão, uma manhã destas.

    A história deles começa aqui.

    07:45

    É o momento da alvorada redentora ou nem por isso porque o mundo carceral é sinónimo de castigo, constrangimento, exclusão ou, por outras palavras, isolamento.

    Os presos — e eles são 65 aqui — passam quase 15 horas por dia na cela. Daqui a um quarto de hora é o momento da abertura geral. A punição, que se quer exemplar, do culpado ou do inimigo social passa pela disciplina, o respeito dos horários. E há horas para tudo apesar de o tempo, aqui, significar sobretudo imobilidade e alheamento do real. E… aprendizagem do vazio porque a prisão é isso mesmo: vacuidade.

    Luís, 31 anos, primeiro testemunho. Primeiro retrato da prisão.

    — Eu fui condenado por tráfico de droga e posse de arma. Falta-me cerca de 4 anos para sair. A minha condenação é de 6 anos e 2 meses, mas não conto muito o tempo porque o tempo a mim custa-me a passar. Assim, se não contar, quando dou por conta já alguma coisa passou. Estive um ano a trabalhar em Espanha só que a coisa não correu bem lá. Era marítimo. Ia ao polvo… Quando voltei para Portugal vi os meus filhos a passar fome. Tinha o caminho da droga para vender. Não tinha mais nada. Pois… ou via-os a passarem fome ou vendia droga. Eu escolhi vender droga! E depois habituei-me ao sistema de vida que a droga me dava. Eu, um dia estava a ver os meus filhos passar fome. Passado um mês já tinha dinheiro que sobrasse para tudo: para carros, para casas, para boas vidas… Saídas todos os dias. Dinheiro não faltava… Habituei-me àquela vida e deixei-me levar ao sabor do crime… E, hoje em dia, estou a pagar pela escolha que fiz. Eu não estou aqui por culpa de ninguém. A culpa de eu estar aqui é minha…

    Mea culpa, ingénua. Ou mera ladainha de circunstância. E as mesmas justificações para as mesmas misérias de sempre. A material e a outra, a taparem a vergonha.

    Luís. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    08:00

    Alvorada.

    É a abertura geral da camarata e das 18 celas. A disciplinar está vazia hoje. Ergue-se um clamor surdo na Zona. O ‘conto’ dos 28 preventivos e dos 37 condenados é logo a seguir. É ainda o momento da higiene. Um duche a correr. O Despacho 2/2015 — o “Horário Prisional” — é peremptório: 10 minutos bem contados para limparem os corpos curtidos de sol e de salmoura, roídos por dentro. Não se sabe de quê…

    Flávio, 23 anos, mais uma contrição bem intencionada ou mais uma elegia sobre a falência da família.

    — O meu nome é Flávio. Tenho 23 anos. Apanhei 5 anos e 5 meses. Estou preso há 1 ano e 3 meses. Como é que eu vim parar aqui? Vim por tráfico. Por vários crimes. Na altura um gajo não pensava bem no que fazia…

    08:10

    Pequeno-almoço. Pequeno-almoço no refeitório que serve também de parlatório e de sala-de-aulas. É à vez já que o espaço é exíguo.

    — A minha história de vida… Cresci só com a minha mãe e os os meus irmãos. Conheci o meu pai com 15, 16 anos na altura. Apareceu uma vez. O que é que eu andava a fumar? O encontro não foi assim muito agradável… E mais? Ninguém gosta de estar aqui. Estamos presos. Sozinhos, não estamos. Conhecemos sempre um ou outro. Passamos aí o dia. Jogamos à bola, às cartas. O que houver a gente joga. — conta Flávio.

    Flávio. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Mas quem é esta gente? Homicidas, traficantes de droga, ladrões. Há de tudo. De todas as origens e idades. O mais novo tem 19 anos. O mais velho 68.

    —  O que é que custa mais aqui? Você quando entra você perde tudo o que tinha. Namoradas, amigos, não sei quê. O que vai estar cá é só a sua família. O que custa não é estar trancado. O que custa é esquecerem-se da gente… —  acrescenta o jovem preso.

    É preciso amarrar as pontas. Aqui, como lá fora, o pior é a indiferença. A do presente. A dos homens, à falta de da Deus.

    08:45

    Fecho.

    Os presos regressam às celas. Daqui a 10 minutos há ‘conto’ outra vez.

    — Ora vamos embora. Tá na hora… — diz um guarda.

    São sobretudo portugueses e cabo-verdianos. Os outros são espanhóis, romenos, marroquinos e guineenses. Mais os guardas: 28 homens e quatro mulheres. Ao fim e ao cabo outras tantas histórias de desiludidos que passam mais tempo na cadeia do que os próprios presos.

     Vladimir, 50 anos, foi contrabandista. É guarda há 22 anos. 

    — Venho de uma família pobre do Alto Alentejo, que a terra é Campo Maior. Sete irmãos. Comigo éramos oito. Depois, tive que deixar a escola para acompanhar a minha mãe na minha zona que o trabalho era pouco. E a minha mãe era contrabandista. Tive que acompanhar a minha mãe para ajudar a criar os meus irmãos.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    08:55

    Mais um ‘conto’. Não há tempo a perder. Dez minutos depois é a reabertura das celas. Os presos que não têm aulas nem trabalho vão para onde querem: pátio, ginásio ou bar.

    A imagem ambígua dos guardas — ausência de reconhecimento público e não só — é uma realidade desde sempre. A política de recursos humanos melhorou, mas o peso de décadas de centralismo hierárquico, de gestão quase autocrática, e um clima social marcado por uma conflictualidade latente não poupam a profissão.

    João Ribas. Beirão de gema. 21 anos de serviço. Um homem atormentado…

    — Sou guarda prisional há 21 anos. Neste momento sou guarda principal. Estou no Algarve. E após um curso vim para o Algarve por opção. A Portimão. Entretanto, fui deslocado para Olhão, sem querer. Sem nós querermos foi uma corporação inteira movida, mexendo com as vidas. Mexendo com tudo… Estragando certas vidas, como foi o meu caso…

    Uma noite, já lá vão quase dois anos, o guarda armadilhou a casa com botijas de gás e barricou-se. Chegou a dar dois tiros, mas acabou por render-se à PSP. Resistiu à tentação do abismo.

    — Ao mesmo tempo eu sou um dos gajos mais revoltados aqui dentro… — conclui.

    João Ribas. (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Vigiar, isolar e punir — a lógica da prisão é essa. E a sua perenidade parece estar garantida.

     — Olá, boa tarde. Olha, Bruno, hoje ficas tu com a rega das aromáticas e o senhor Gilberto faz a retirada das infestantes. — avisa uma monitora.

    A missão de reinserção, que passa pelos estudos, a formação profissional ou o exercício de uma actividade laboral, só vem depois. O resto é rap!

    Hugo, aliás Chimbóia, 33 anos. Crime: furtos qualificados.

    — Palavras do preso 00737, Chimbóia: Eu expresso no verso o incompleto imenso, extensivelmente intenso, porque penso. Estou preso porque mereço. Uma vida perdida chama-se a vida possível, não me convence, confesso. Há mais caminho para além deste. Eu sei que a cadeia choca milhares de gente. A cadeia não é boa nem para o teu oponente. É evidente que o complemento não será bem pior. Estás privado da liberdade. É um osso duro de roer. Ouve bem, convém que me possas entender… Nada vem à tua vida que não consigas suportar. Se errares, tem cuidado! Podes vir cá parar. É de evitar pois aqui já não podes lutar. A tua luta continua, mas é inválida aqui. Aqui, já não estás na rua. Vais lutar contra ti.

    Ninguém pode viver sem esperança. Mais não seja a esperança de fugir. O importante é não desistir, nunca.

    Bruno é um dos raros presos que frequenta a biblioteca do estabelecimento. É o seu refúgio para as poucas horas autónomas, devolutas. Tem 30 e poucos anos. É toxicodependente e traficante. Foi apanhado. Está, aqui, há 3 anos e 3 meses.

    — A leitura para mim é uma fuga. Posso encarnar qualquer personagem quando leio um livro. Sou um actor. Sinto-me um actor quando leio um livro. Leio um livro e, às vezes, uso essas ideias para escrever uma música ou para me sentir também bem disposto. É sempre uma lição de vida. Um livro é sempre uma lição de vida. É bons conselhos. Qualquer livro, no fim, tem um bom conselho…

    11:45

    Almoço.

    — Tira lá dois cafés aí, pá!

    O bar também serve de drogaria e de mercearia. Abre depois do almoço. Um preso serve os outros presos. Apesar de não haver concorrência, os preços praticados aqui são módicos: café a 20 cêntimos, água a 15… O dinheiro, o pouco que circula, não dá para mais.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    14:30 – 17:00

    Às 14:30, depois do fecho, do ‘conto’ e da reabertura há mais actividades.

    A aula da professora Paula Serina começa com um documentário televisivo sobre Olhão, aqui tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. O marroquino El-Mahdi e os espanhóis Bebito e Diego escutam. Três histórias. Três destinos a cumprir, mas já lá iremos.

    O nível escolar dos 65 reclusos é aquilo que é: um desastre. Feitas as contas, 90% dos reclusos (89,2% mais exactamente) atingiram no máximo o 3.º ciclo. O que vale é não haver na prisão espaço para máscaras deformadoras. Os homens, aqui, não se medem aos diplomas.

    José. 55 anos. A primeira vez que foi preso tinha 18.

    — Eu, desde 1978, passei por várias cadeias, seja em França e em Portugal, por vários crimes. Crimes diferentes. Foi furto, proxenetismo, tráfico de droga, moeda falsa, assaltos à mão armada e falsificação. Já passei por várias cadeias que não têm nada a ver com as nossas. São muito mais violentas. Mais complicadas. E a primeira cadeia que conheci foi a de Les Baumettes (Paris) onde estive preso mais de 14 anos. Já estive preso na cadeia de Bordéus, já estive preso na cadeia de Aix-en-Provence, já estive preso na cadeia de La Rochelle, já estive preso na Centrale de Saint-Martin-de-Ré, já estive preso na cadeia de Lorient-Ploemeur. Como é que eu hei-de dizer? Eu acho que aquilo que fiz na minha vida foi uma aventura. Foi um sonho porque já tive muito como hoje não tenho nada…  Tenho mais experiência de vida cá dentro que lá fora. Estou muito sozinho. É normal. Uma pessoa tem os dele. Gostava de os ver… Eu já perdi dentro da cadeia as pessoas mais queridas que eu tinha. Foi a minha mãe. Foi a minha avó. Perdi-as dentro de uma cadeia, sem ir a funerais, sem ir a nada, sem ir a coisa nenhuma. Uma pessoa vai endurecendo…

    Com a usura do tempo, os exames de consciência, por mais lúcidos ou inquietos que sejam de pouco valem. É como os remorsos. A decepção, aqui, é compreensível.

    — Hoje, o Fernando vai lá para o fundo meter o aro na porta da casa-de-banho com o outro rapaz. O Patrick vai ajudar o Anildo ali a betumar a casa-de-banho, que é o que falta.

    No pátio da zona perimética o guarda Bruno, que é arquitecto, organiza a rotina dos dias: a construção de duas salas de aulas e de uma camarata, quartos para as visitas íntimas. É a primeira iniciativa deste género no Algarve. Faz parte. Consta da própria Lei: três horas inolvidáveis (ou não) uma vez por mês.

    — Não é só chegar ali e fazer, construir. Isto tem uma particularidade porque eles… se nós tivermos um ferro no chão, nós olhamos para ele e é um ferro. Se nós o metermos ao alto é um gradão. É uma grade fria. As coisas falam. As paredes falam… Se nós passarmos a mão, por exemplo, nesta tábua isto fala. Tem a sua textura. A sua rigidez. Se calhar, para nós é mais uma porta em casa. Esta porta ao alto, fechada numa cela, quando fecha a porta às sete da noite, a sensação, o bater do coração, a cabeça… Tudo pensa diferente. E ela fecha e ouve-se a tranca. E é complicado!

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    O guarda é um poeta e, às vezes, apetece ser — já dizia outro poeta, Antonio Machado. O que é preciso é não perdermos o contacto com o chão e evitarmos os púlpitos. Sem isso não temos uma ideia aproximada da nossa estatura.

    Chefe Hélder. Trinta e dois anos de prisão. A história de um homem simples que as grades não desapossaram da humanidade.

    — Eu sou o Chefe Hélder Correia. Estou a cumprir uma pena até este momento de quase 32 anos de cadeia. Sou a pessoa mais antiga deste estabelecimento prisional. Tenho um percurso prisional que iniciou em 1984, precisamente no dia em que nasceu o meu primeiro filho. Esta é uma história engraçada. Apresentei-me ao serviço no Estabelecimento Prisional de Faro. Tinha como chefe o Chefe Gonçalves. Cheguei ao pé dele e digo: — Chefe, eu preciso de sair mais cedo porque a minha esposa foi para o Hospital de Faro ter um bebé. E eu queria ver o estado dela. E o chefe olhou para mim e diz-me assim: — Vá lá, mas não se habitue…

    Ainda há homens felizes. Afinal a prisão não mata tudo!

    Na quietude da camarata, Paulo, 46 anos, os olhos fitos no papel, lavra palavras de amor. Não precisou de coragem para ficar só. Foi caçado por tráfico de estupefacientes. É um homem atormentado. Escreve à mulher uma, duas, quatro cartas todos os dias.

    «Olá, meu Amor. Como te sentes hoje? Melhor? E bem disposta, Minha Maria? Hoje, foi um mau dia para nós, Meu Amor. Não nos encontrámos como devíamos. A nossa Felicidade há-de chegar um dia, Amor da minha vida. Mais uma coisa, Amor. Vê lá se me escreves porque estou cheio de saudades tuas, Minha vida. Oh, Minha flor. Agora, vou-te deixar por uns momentos Meu Amor. Volto já. Adoro-te com muito Amor.»

    A mulher está presa em Odemira. Amar cegamente pode ser um unguento para impedir a renúncia. Pode. Maria é o nome do salvamento ou da perdição, mas vamos por partes.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    Mudança de cenário. E regresso às aulas. Hoje é dia de substantivos. E de entrevistas.

    — Não julgo. Não comento. Eu estou aqui a ensinar-lhes a minha língua para que eles melhorem a comunicação quando vão a tribunal, porque enquanto cidadãos estrangeiros muitas vezes a comunicação com o advogado e o juiz acaba por dificultar. A língua é uma barreira. — explica a professora Paula Serina.

    Ria Formosa.

    O vídeo com música para descobrirem a terra onde vivem e não conhecem está a chegar ao fim.

    El Mahdi é marroquino. Era camionista. Foi condenado por tráfico de droga. É aluno de Português. Não tem visitas, mas o pior é outra coisa…

    — A história? A minha história é… É difícil: Eu não tenho história. É melhor não contar…

    — E a prisão é o quê para si?

    — Para mim é uma escolha da vida, mas correu tudo mal.

    — Tem um filho que não conhece…

    — Só das fotos. Tem dois anos. Nunca… nunca o vi. Só nas fotos. E oiço-o no telefone. Agora, já começa a falar.

    — Suleiman…

    — Chama-se Suleiman.

    — Qual é o seu sonho?

    — O sonho é estar com a minha família e brincar com o meu filho, sair, levar o meu filho para fora e andar na rua… Isso dói.

    — Shukran.

    — De nada.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    À tarde cada um deixa correr o tempo como quer. Como pode. O aconchego para os muçulmanos daqui passa pela Fé. Rezam cinco vezes ao dia. A dhohr — a primeira oração da tarde — é agora.

    Pedro, 27 anos, foi condenado a seis anos de cadeia. A mãe, o padrasto e o irmão também estão presos. A namorada, já esteve.  

    — Fui condenado a seis anos de prisão por tráfico de drogas. Estou detido há dois anos e sete meses. Tenho uma mãe presa, um irmão e um padrasto. O que mais me custa aqui dentro é estar longe das pessoas que eu mais gosto: os meus filhos e a minha família. Se tenho algum objectivo de vida? Tenho. Isso fez-me tornar uma pessoa totalmente diferente porque eu era, posso dizer, uma pessoa violenta, agressiva. Hoje em dia sou uma pessoa diferente. Como se diz, há males que vêm por bens. Espero conseguir ser uma pessoa diferente daquilo que eu era lá fora. Uma pessoa melhor. Ter as minhas coisas honestamente. Basicamente é isso.

    Só basicamente. O discurso bem intencionado e politicamente correcto — conivente com o sistema — deixa algumas dúvidas sobre a sua autenticidade. Nas entrelinhas está, quiçá, a perspectiva de uma precária…

    A saída anticipada é uma prioridade para estes homens apesar de a cadeia de Olhão ser um oásis no panorama carceral português.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    O trabalho — incluindo no exterior — está reservado a poucos. Na horta do Patacão, por exemplo, para ajudar o Banco Alimentar do Algarve. E na cidade de Olhão para edificar ou recuperar edifícios da Junta de Freguesia, como estes viveiros.

    — Todo este edifício foi restaurado por eles e se vos disser que ficou ao erário público em um quarto do valor inicialmente previsto é a pura da verdade. Estes homens foram excelentes. Foram de uma dedicação ímpar. E mais: eu sinto em cada um deles… Eles querem e sentiram que efectivamente participaram em algo de bom para todos. — palavras de Luciano de Jesus, presidente da Junta de Freguesia de Olhão.

    Regresso à prisão.

    A parceria é para continuar. A Junta de Freguesia de Olhão pretende criar, através de uma parceria com a cadeia e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) dois postos de trabalho para reclusos.  

    — Obviamente, não sejamos utópicos. Há situações de insucesso como em tudo na vida, mas a grande maioria tenta e quer não voltar á cadeia. — declara Carlos Moreira, director do Estabelecimento Prisional de Olhão.

    A boa vontade do director da cadeia de Olhão não chega para alterar a realidade. A reinserção em Portugal é ilusória, para não dizer virtual.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    17:40

    Jantar.

    A principal ligação entre o mundo social e o mundo penitenciário é a obsessão da segurança. A realidade carceral continua a ser acima de tudo sinónimo de punição e de isolamento. É por isso que democracia e prisão são antinómicos. Sempre foram.

    Hora da última confissão.

    — Olá, sou espanhol. Estou condenado por tráfico a 5 anos e 5 meses na cadeia de Olhão. Apanharam-me há 17 meses. E pedi transferência para Espanha. Para o meu país. E aquilo de que temos mais saudades aqui é da família. Agora, damos mais valor à liberdade. Mais do que antes. Muito mais… É uma experiência nova que tento esquecer. Mais adiante tentarei olvidar, tanto quanto puder. É verdade…

    É verdade. Tão verdade quanto a liberdade só existir para quem luta.

    (Foto: Captura a partir de imagem de Romeu Carvalho/TVI)

    19:00

    Hora do encerramento e do ‘conto’. E princípio de mais uma noite de prisão.

    É o momento de esquecer a desilusão ou a falência do passado, a amargura do presente e de começar a sonhar com outro destino para um dia mais tarde o cumprirem. Talvez. Levarem a cruz ao calvário sem fatalismos e sem desculpas.

    22:00

    Hora do Silêncio ou nem por isso. É tempo de partirmos. Eles ficam com a noite que não pertence a ninguém, graças a Deus.

    Uma noite destas. A nossa história acaba aqui.


    Reportagem originalmente emitida na TVI em 23 de Junho de 2017. Texto de Rui Araújo, imagem de Romeu Carvalho edição de imagem de Miguel Freitas.


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  • Sagres: a viagem

    Sagres: a viagem


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, emitida na TVI em Fevereiro de 2020, a bordo do Navio Escola Sagres. O navio partira para a sua mais longa e distante viagem para comemorar os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães ao serviço do Rei de Castela. Mas a missão, que previa inicialmente uma viagem de 371 dias e a passagem do veleiro por 22 portos e 19 países, teve de ser encurtada devido à pandemia de covid-19. Nesta reportagem, Rui Araújo acompanha o navio de Lisboa até às Canárias.


    O mar, derradeiro espaço de liberdade… (Foto: Rui Araújo)

    Atlântico Norte.

    O veleiro corre com o tempo.

    Temos vento pela alheta por estibordo.

    14… 15 nós de vento real. É uma brisa moderada. Força 4 na escala de Beaufort: mar sereno, de pequena vaga. 

    Mar de saudade…

    Rumo: 2-1-0. Velocidade: 6 nós… 6 nós e meio «steady» — constante. São 11 ou 12 mil metros por hora à vela. Papafigos, gáveas e velachos caçados…

    Na «casa de navegação» é o momento de o comandante escrever as ordens, que lavra diariamente em livro, depois assinado pelos oficiais de quarto.

    Aqui, não há espaço nem tempo para a poesia ou a para a divagação austera e purgadora.

    Há uma missão para cumprir e não é uma qualquer.

    — Eu saio com planeamento desde o minuto da largada até ao minuto da chegada coisa que o Fernão de Magalhães não tinha porque não fazia ideia daquilo que iria ocorrer. A viagem de Magalhães — completada por Elcano — durou três anos e eu tenho um ano. E vai ter que ser cumprido dessa forma! — diz-me Maurício Camilo, comandante do navio-escola. 

    O veleiro vai dar uma volta ao mundo por 22 portos de 19 países durante 372 dias, no quadro das comemorações do Quinto Centenário da circum-navegação do português Fernão de Magalhães e do espanhol Sebastião de Elcano (ao serviço de Castela).

    É a maior viagem em tempo e em distância desde a construção do navio, em 1937.

    23 de Junho de 1962: Chegada do veleiro a Lisboa.
    (Imagem: Cinemateca Portuguesa)

    23 de Junho de 1962

    «De aspecto menos majestoso do que a velha barca que o antecedeu, tem, no entanto, belas linhas, recorda os admiráveis tempos das Descobertas.

    A Sagres com bandeira nacional…»

    Noticiário oficial (Documento: Cinemateca Portuguesa):

    «O novo navio-escola Sagres adquirido ao Brasil chegou finalmente ao Tejo.»

    «As novas velas que a brisa do Tejo fará tufar vêm dar continuidade a uma velha tradição da nossa marinha e contribuirão para tornar mais marinheiros os futuros oficiais.»

    Um veleiro excepcional, ontem como hoje…
    (Foto: Marinha Portuguesa)

    Entre 1937 e 1948 o navio Albert Leo Schlageter — construído no estaleiro Blohm Und Voss, em Hamburgo — hasteou bandeira alemã.

    Era o terceiro de uma série de quatro navios.

    Adolfo Hitler chegou a visitá-lo antes do início da guerra.

    Em 1948 foi cedido pelos Estados Unidos à Marinha do Brasil por um preço perfeitamente simbólico: 5.000 dólares. E mudou de nome. Passou a ser chamado Guanabara

    (NOTA: O navio foi cedido por causa dos danos causados pelos submarinos alemães aos navios brasileiros durante a Segunda Guerra. Em 1961 foi adquirido por Portugal para substituir a antiga Sagres, outro navio alemão.
    A 10 de Outubro de 1961 foi arriada, pela última vez, a bandeira brasileira.
    A 30 de Janeiro de 1962 foi aumentado ao efectivo dos navios da Armada.
    )

    Portugal pagou 150 mil dólares pelo veleiro. É o terceiro veleiro português de instrução com o nome «Sagres».

    (NOTA: A página sobre a Sagres pode ser consultada no sítio da Marinha portuguesa).

    A actual Sagres. (Foto: Rui Araújo)

    É a quarta volta ao mundo do navio.

    Tirada 0 – 1. 

    Lisboa — Santa Cruz de Tenerife, que ainda está a 243 milhas.

    Amanhece.

    Na padaria é a azáfama do costume. E é o mesmo sopro cálido de fornalha que nos consome…

    O cabo Santos, que é homem para meter no chinelo ao mais chique dos padeiros, está de quarto e prepara mais uma fornada de pão: broa naval e, por vezes, carcaças ou croissants. Ou até bolos (de anos e não só)…

    Feitas as contas, são precisos 40 a 50 quilos de farinha para fazer 110 broas (ou pães de quilo).

    Os 3 padeiros cozem pão 4 vezes por dia.

    Meto conversa com o cabo Paulo Santos, padeiro.

    — Estar no mar é o período da noite em que não se vê nada. Parecemos uma pequena ilha. Andamos aí no meio, não há luz, não há nada. Literalmente, não há nada. Se viermos aqui, temos os camaradas que vão passando, dizemos um «olá» à noite, servem de companhia. Senão, não há barulho, não há nada, passa a ser tudo muito vazio…

    A ideia, aqui, é não matutar muito. É o lance de vida ou de sobrevivência possível…

    As cogitações no mar são, aliás, inúteis. O mar obriga-nos a encarar a multiplicidade dos mundos, das hierarquias e das lógicas. Sempre. É o que apregoam os filósofos…

    Um P-3C Orion CUP+ da Força Aérea Portuguesa, que efectua patrulhamento marítimo nesta área, sobrevoa-nos: 1, 2, 3 vezes.

    A aeronave da Base Aérea Nº 11 – Beja – pertence à Esquadra 601 – LOBOS.

    Tem participado também em missões internacionais de patrulhamento no Mediterrâneo.

    No «poço», encontramos os fuzileiros: seis praças e o primeiro-sargento Valério Afonso — o chefe da equipa de segurança. 

    A missão destes homens das Forças Especiais é a protecção da Sagres, se houver ataques de piratas, longe daqui.

    O cabo de manobra Pedro Miguel Lopes Rodrigo, 36 anos, a caminho dos 18 na Marinha, é sota-gajeiro e barbeiro, nada mal afreguesado. Tirou o curso em Lisboa no ano passado.

    O cliente, agora, é o marinheiro MS (Manobra e Serviços) António Vareta.

    O corte é um dégradé. É o que está na berra. Ninguém que se preze quer outra coisa…

    O pagamento, como está sabido, é à vontade do freguês. Só pode. Costuma ser uma «Mini» acompanhada de um sermãozinho de fazer chorar as pedras da calçada ou nem por isso.

    A cerveja corre não menos fluentemente que a palavra… diria Aquilino Ribeiro.

    Navegamos a motor: «Toda a força» a vante. 8 nós e meio. É uma boa velocidade.

    Temos vento de feição, mas fraco: 3 nós. Direcção: 2-4-7.

    O nosso rumo é o mesmo desde Cascais: 2-1-0.

    A chefe dos serviços de mecânica e LA (Limitação das Avarias) é a engenheira Rita Rodrigues de Oliveira.

    As ideias conservadoras dos perigos a bordo: a terra, o fogo e as mulheres — por mais salutares que fossem — já não se aplicam aqui. Não comento…

    Há quatro oficiais do sexo feminino a bordo.

    — Eu vim para a Marinha por causa do mar, por aquilo que ele representa, a curiosidade, a aventura… Um dos meus sonhos era conhecer o mundo. (Ri-se) E vou… Pelo menos, embarco agora, em grande parte, na sua totalidade, vou poder cumpri-lo agora, que é conhecer novas culturas, ter novas experiências, entrar em contacto com o desconhecido, o próprio mar, a aventura do próprio mar, conhecer… conhecer… passar por tempestades, pela bonança, sentir a adrenalina de… de resolver cada um dos problemas que vão surgindo no dia-a-dia. — conta a tenente Rita Rodrigues de Oliveira.

    O conforto a bordo é muito razoável… (Foto: Rui Araújo)

    Paiol de mantimentos.

    O que se gasta mais a bordo é batata, arroz e cebola.

    Aqui dentro, transportamos 8 a 10 toneladas de secos (farinha, arroz, massas, açúcar, leite…). 3 ou 4 toneladas de frescos (fruta, tomate, alface…). Mais 8 a 12 toneladas de carne e peixe.

    É o mundo do cabo Pedro Lima, que faz anos hoje.

    — Isto é o meu mundo. Aqui há de tudo menos gente.

    — E o mar? O pior, aqui, não é o mar?

    — Não. O mar a nós não nos faz grande diferença. Às vezes é um grande adjunto nosso o mar. Quando está mau tempo as pessoas comem menos e aí já nos facilitam mais a vida a nós…

    Temos mar sereno…

    «Enjoar que nem uma pescada» — como eles costumam dizer — ainda não é para hoje…

    O problema dos portugueses é o tempo. Nunca foi o mar…

    «Só há bons ventos para quem sabe onde quer chegar» – Séneca. (Foto: Rui Araújo)

    A distância estimada de 41 mil milhas (mais de uma volta ao mundo) para esta Missão 2020 foi dividida por um tempo médio de 6 nós…

    Feitas as contas, a Sagres só deve regressar a Lisboa a 10 de Janeiro de 2021.

    É a homenagem aos navegadores Fernão de Magalhães e João Sebastião de Elcano. E, do mesmo modo, a Portugal e a Espanha, que edificaram os primeiros impérios de dimensão mundial.

    — A expedição de Magalhães é uma das aventuras marítimas mais conhecidas e mais divulgadas do Mundo sobretudo porque dela resultou uma volta ao mundo numa viagem redonda: a primeira volta ao mundo, que partiu de um porto que foi Sanlúcar de Barrameda, e regressou ao mesmo porto três anos depois. Mas é preciso que se perceba que o objectivo de Fernão de Magalhães não era dar a volta ao mundo. As intenções dele e do rei que o apoiou, Carlos I, eram chegar às ilhas Molucas, onde se produzia o cravo. E fazê-lo, navegando para Ocidente, para fora da área onde andavam já há alguns anos os portugueses. Encontrar as ilhas do cravo, o cravinho, que ainda hoje é uma especiaria apreciada e que na altura tinha um custo elevadíssimo, supondo-se que a Europa podia consumir grandes quantidades dessa riqueza que era o cravo. E a viagem tem detalhes naturalmente fantásticos na sua execução. Detalhes humanos e sobretudo detalhes de natureza náutica de elevado gabarito. A viagem no Atlântico até ao Rio da Prata já era conhecida. Já se sabia como é que poderia ser feita, mas a partir daí tudo foi mais difícil de realizar porque não sabiam quais eram as condições de vento que iam ser encontradas, as condições climáticas… Encontrar a entrada do Estreito foi difícil. Navegar à vela dentro do Estreito foi difícilimo e depois a travessia do Pacífico, que são 3 meses sem abastecimentos, sem água, com grandes dificuldades até chegar às Filipinas. — explica o Comandante Jorge Semedo de Matos, historiador da Escola Naval. 

    O marinheiro Gonçalo Moura Antunes está de serviço na copa.

    Integrou a guarnição do navio há oito meses. Participa na quarta volta ao mundo da Sagres.

    O avô, que navegou no mesmo navio em 1978-79, fez a primeira.

    Há dois marinheiros e um cabo despenseiro de serviço aqui.

    Na Câmara de Oficiais, o cabo Adilson Pina Macedo, 37 anos, 18 de Armada, põe, decidido, mas sem brusquidão, a mesa rectangular. Calado. Arfa-lhe o peito quando pensa que só poderá abraçar o filho que vai nascer daqui a uma data de tempo. Demasiado…

    Porque amanhã é pai

    — Olá, meu filho. Espero encontrar-te em 2021, dia 10 de Janeiro, com grande saúde. O pai está morto para te dar um abraço, um beijo, sentir o teu cheiro pela primeira vez e sabes que a vida vai ter muitos obstáculos. Eu, a tua mãe, a tua família e os teus amigos, vamos estar aqui para te ajudar a ultrapassar esses obstáculos. Espero mais uma vez que venhas cheio de saúde e que sejas um grande homem como o teu pai é. Um grande abraço para ti e espero dar-te um grande beijo no primeiro dia que estiver contigo. Sei que é um ano muito longo e sei que não vou estar a acompanhar possivelmente o teu nascimento, mas espero que saias com bastante saúde. Grande abraço para o meu filho que ainda não sei o nome e para a minha família. Adeus. Até 2021. Muito obrigado. — palavras cheias e sinceras do cabo Adilson Pina Macedo.

    É desnecessário o homem desfazer-se em bem-hajas. O nascimento do filho é lá só para 12 a 19 de Junho, se Deus quiser.

    Cabo José Oliveira: 41 anos e 23 de Marinha. É alentejano. A família vive lá para os lados de Beja e de Ourique. É um dos cinco cozinheiros do navio. É o chefe de cozinha hoje.

    Às 6 da manhã, ligam os fogões.

    Às 9:00… 9:30 da noite, partem. É a hora que podem jantar.

    Preparam, aqui, 200 e muitas refeições por dia.

    Dezoito quilos de arroz. O tomate (que não é de lata!) é a olho… E o peixe frito,  não contámos, mas… feitas as contas, cada homem ou mulher da guarnição terá direito a uns 300 gramas de comida no prato.

    — Eu nunca fui cozinheiro. Nunca aprendi nada deste ramo derivado às minhas raízes familiares. Nunca foi necessário eu estar perto de um fogão porque por trás tinha sempre grandes mulheres que me proporcionaram sempre boas e grandes refeições. Comecei a tomar o gosto pela cozinha quando assim a Marinha me proporcionou este curso e esta aprendizagem já há algum tempo, em Vila Franca, onde era a nossa escola… — diz-me o cabo José Oliveira.

    — Qual é a sua especialidade?

    — Um prato? É todos! Mas a gente gosta… Agora, temos de referenciar o nosso bacalhau à Brás. Esse vai ser o prato que nós vamos levar em todos os portos, em todo o lado vamos levar essa cultura portuguesa. É isso.

    Refeitório de praças. 11:15. Horas de almoçar. Comem cedo por causa das rendições de quarto.

    E quem não está de quarto só se senta quando houver lugar. É que, aqui, à semelhança do que sucede nas câmaras de oficiais e de sargentos, há duas bordadas.

    Ementa: creme de cenoura, filetes de pescada com arroz de tomate e uma peça de fruta. 

    Sobremesa não há. É só à quinta-feira e ao domingo.

    Toda a gente come a mesma coisa.

    O mar

    É (com o deserto) um dos raros espaços do planeta onde ainda se contam as distâncias em dias…

    E o tempo no mar não tem só outra dimensão. Faz a diferença…

    Uns, fazem torneios de burro (quando o mar e o clima permitem). Equipas de dois. Duas malhas por jogador… Quem acertar no burro perde 10 pontos. E vence quem ganhar dois jogos… Sistema de eliminação: é à melhor de 3.

    «A Pátria honrae que a Pátria vos contempla.» Palavras de José da Silva Mendes Leal, político, escritor e jornalista, que datam de 1863, e continuam a ornar as rodas do leme: uma está junto à agulha de governo. E outra à ré da casa de navegação.

    A superioridade filosófica, quiçá moral, da gente do mar, se calhar, ainda existe…

    Do outro lado do leme, palavras perdidas ou gastas, em alemão e português que o tempo e os homens não apagaram.

    A epopeia marítima ibérica mudou o mundo. Terá permitido a criação das bases políticas, militares e económicas da primeira globalização.

    — Portugal e os Reinos da Espanha foram os protagonistas da expansão Quinhentista e rivais nesses tempos. Por vezes, transportam para o presente essa historiográfica e isso faz menos sentido. Esta viagem é uma ocasião única de unir esforços e compartilhar as investigações e os estudos para um melhor conhecimento do passado desse tempo. A comunidade científica — os historiadores, em geral, já compreenderam bem isso e estão a proceder dessa forma, mas não é esse o caso de todos os elementos envolvidos nos estudos associados a esta comemoração. Na viagem de Magalhães e Elcano estiveram as duas potências ibéricas de forma que a colaboração nestas comemorações pode beneficiar o conhecimento sobre os seres humanos no seu tempo e é esse o objectivo fundamental do estudo da História. A História com ‘H’ grande. — acrescenta o historiador Jorge Semedo de Matos.

    Este cubículo é a Central de Limitação de Avarias (LA na gíria da Marinha), que monitoriza as emergências: incêndios, alagamentos, o que houver… Quando há um problema esta central passa a ser o local de comando e de coordenação para a resolução das avarias. E faz ainda os avisos e os alarmes através do ETO (o equipamento de transmissão de ordens).

    Central LA está permanentemente em comunicação com a casa da máquina.

    O primeiro-sargento electricista Pedro Silva Curto tem uma história para contar.

    — O mar? Nos últimos 24 anos tem sido a minha vida. Desde que vim lá de Vilamar, a minha aldeia no concelho de Cantanhede, e que ingressei na Marinha. Têm sido basicamente comissões de embarque em vários navios da Armada e algumas comissões também em terra, mas sempre privado e distanciado de grande parte da minha família… — afirma o sargento Pedro Silva Curto.

     — E o mar?

    — O mar para mim é… O mar para mim agora é uma epopeia. É celebrar…. É um misto de emoções. É.… além de desenvolver aqui as tarefas e aplicar todos os conhecimentos que aprendi nas funções que desempenho diariamente, é ter oportunidade — porque para mim é um privilégio! — é um orgulho servir neste navio que é, sem dúvida, o navio mais bonito do mundo!

    No castelo, a vante, é o afã do costume. Condição: faina geral de mastros. Acabaram de encostar os braços do grande e do traquete — a maior vela do mastro da proa — e retranca a meio, a estibordo.

    Apesar da negrura é noite de lua cheia.

    Matam o tempo e a saudade — a espuma dos dias — que se sucedem e se assemelham com o que há: dois dedos de conversa ou uma cervejola.

    O mar é o nosso mundo. Mas não é o mesmo para todos. Ocupamos o seu centro de forma diferente, desigual

    Independentemente do rumo, da deriva e das solidões…

    A rota traçada na carta acaba rapidamente, aliás, em ficção.

    Carta do Atlântico Norte.
    (Fonte: National Oceanic and Atmospheric Administration)

    Enfermaria principal

    Apesar do cartaz provocador com o telefone 911 (o número de emergência nos Estados Unidos), o atendimento, aqui, é permanente: 24 – 7.

    Não há quartos nem horários: «Bordada zero».

    Consultas do dia: uma congestão nasal, quistos sebáceos na parede abdominal e uma infecção viral a nível da face.

    O primeiro-tenente Diogo Alpuim Costa é o médico do navio. A especialidade do «Doc» (é assim que o chamam) é a oncologia — o cancro. 

    Lá fora, investiga a relação entre cancro da mama e flora intestinal. 

    A bordo, trata do que é preciso com a ajuda do enfermeiro Ricardo Simões.

    —  Acima de tudo um médico naval tem de estar preocupado, assim como um enfermeiro, na consciencialização da guarnição para pequenos acidentes que podem ocorrer. Outra coisa muito importante é manter a motivação das pessoas porque uma viagem tão longe mesmo com o apoio — estamos na era da informação — é manter a parte da saúde mental controlada.

    — Como?

    — Com… acima de tudo ser uma pessoa… Eu e o enfermeiro sermos pessoas muito próximas de todos. Cada um tem a sua hierarquia, mas acima de tudo as pessoas sentirem que têm ali um pequeno refúgio para poderem falar dos pequenos problemas que possam ter a bordo ou que tenham trazido de casa e acho que esse aspecto também é muito importante que é manter a motivação e controlar fenómenos de ansiedade ou pequenas situações depressivas que possam vir a acontecer. — responde o afável e sorridente tenente Diogo Alpuim Costa.

    Santa Cruz de Tenerife (Foto: Rui Araújo)

    Santa Cruz de Tenerife é o primeiro porto de escala.

    O milagre chamado “A ILHA”… (Foto: Rui Araújo)

    As Canárias são o segundo arquipélago que avistamos.

    E as ilhas interpelam o nosso imaginário, não por estarem cercadas de água, mas por nos deixarem entender a terra… a terra, a terra e os homens e.… a morte, que dá sentido às nossas vidas.

    O arco-íris lá ao fundo é apenas uma coincidência…

    Regresso das Canárias. (Foto: Rui Araújo)

    NOTA: O navio-escola acabou por regressar antecipadamente a Lisboa. Não chegou a haver volta ao mundo por causa da covid-19.


    Reportagem originalmente emitida na TVI em Fevereiro de 2020.

    Pode consultar AQUI informação sobre Fernão de Magalhães.


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  • O meu avô espião

    O meu avô espião



    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma nota sobre o passado misterioso de António Araújo, avô paterno do jornalista Rui Araújo, que foi publicada no livro ‘O Império dos espiões‘.

    Novembro de 2008. 

    Eram umas dez da noite. Estava a atiçar o azinho na lareira quando o telefone começou a tocar.

    — ‘Tás bom? Comprei o teu livro e resolvi ligar-te. É por causa dele… — lançou-me a voz rouca do outro lado da linha.

    Era a minha prima. O primeiro volume de O Diário Secreto que Salazar não leu sobre espionagem em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial tinha sido publicado semanas antes.

    Ele o quê… — retorqui, a pensar que estava a referir-se ao seu pai, o meu tio, capitão de mar-e-guerra, que tinha trabalhado na DINFO .

    — Ele era misterioso…

    Pois era, mas o pior é o resto… — acrescentei.

    — Encontrei duas cartas escondidas no forro da cómoda dele, que mandei restaurar.

    — E?

    — Foram-lhe enviadas em 1946.

    Mas estás a falar de quem? — indaguei.

    — Do nosso avô.

    — Do António Araújo?

    Sim. Quem mais podia ser? — exclamou a minha prima em voz dolente.

    Fiquei a matutar naquelas palavras, que soavam a desaire.

    — Ele era…

    Eu não morria de amores pelo meu avô paterno. Não podia nem queria. Era apenas um estrangeiro para mim.

    — Podes arranjar-me cópias?

    Passados uns dias, a Rita entregou-me duas folhas amarelecidas. Duas cartas enigmáticas escritas em Inglês e Português.

    A primeira missiva era do adido de Imprensa. G.M.F. Stow homenageia, a pedido do embaixador, o meu avô pelos “valiosos serviços prestados” à Secção de Imprensa “durante toda a guerra” e aproveita a oportunidade para lhe testemunhar o seu “profundo reconhecimento pessoal pela sua leal cooperação e pela confiança indefectível na nossa causa [sic] de que deu provas durante os longos e amargos dias de luta” que juntos tiveram de enfrentar.

    O meu avô paterno era bancário. É possível que tenha cedido aos britânicos informação privilegiada sobre os clientes e as operações do banco. Era informador? Espião? É inútil especular. Tanto mais que a afável conclusão de G.M.F. Stow adiciona uma peça ao puzzle: “Creia V. Ex.ª que o seu apoio e amizade perdurarão na memória de quantos de entre nós tiveram o privilégio de trabalhar com V. Ex.ª”.

    O anuário do Foreign Office contém apenas duas referências a G. M. F. Stow, o Adido de Imprensa.

    A primeira carta endereçada ao meu avô é do Adido de Imprensa e oficial dos serviços secretos G.M.F. Stow.

    Em Abril de 1942, o Tenente Geoffrey Montagu Fenwick Stow é nomeado Assistente do Adido da Força Aérea (Assistant Air Attaché) na representação diplomática britânica, em Lisboa.

    Stow colaborou com o Serviço de Operações Especiais em Portugal.
    (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra.)

    O Adido de Imprensa é um homem dos serviços secretos: recolhe informações sobre a aviação, oriundas sobretudo de outros países que não Portugal.

    Stow também colabora em Lisboa com o Special Operations Executive (SOE — Serviço de Operações Especiais). 

    A carta para Stow pode ser enviada pelos canais das Operações Especiais. (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra)

    O SOE chega a propor, por exemplo, ao Ministério do Ar um contacto com Stow através do canal reservado das Operações Especiais de forma a impedir que o Adido da Força Aérea, seu responsável hierárquico directo, tenha conhecimento da sua colaboração.

    No final da guerra, Stow permanece em Lisboa. O almanaque diplomático britânico de 1946 indica que o militar assume um “appointment” do “M of I” [Ministério da Informação]. É com o estatuto de Adido de Imprensa que escreve ao meu avô.

    A segunda missiva (mais formal), assinada pelo embaixador Owen O’Malley, é praticamente idêntica à primeira.

    O meu avô preservou o segredo até à hora da morte, embora tenha estado do lado dos vencedores. É absurdo, para não dizer imoral, humanizar as guerras e os seus actores com ou sem mistificação, idolatria ou obra de sarcasmo.

    António Pinto de Araújo

    Ironicamente, passei 19 longos meses a vasculhar as existências de dezenas de desconhecidos nos arquivos nacionais e estrangeiros quando havia na minha própria família um homem secreto e uma história secreta.

    Rui Araújo


    in O IMPÉRIO DOS ESPIÕES, Oficina do livro – Lisboa.


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  • ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’: prefácio de Nigel West

    ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’: prefácio de Nigel West


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, o prefácio de Nigel West a um dos livros de Rui Araújo: ‘O Diário Secreto que Salazar não leu’. Trata-se de uma obra que chegou à 3ª edição e que se encontra esgotada. Nigel West (Rupert Allason) é um historiador e autor de dezenas de obras, sendo um dos maiores especialistas mundiais em Serviços Secretos e espionagem.


    PREFÁCIO

              Os historiadores e os aficionados das operações secretas em tempo de guerra sabem desde há muitos anos que Lisboa foi um dos grandes centros de espionagem da Segunda Grande Guerra. E as razões para esta dúbia reputação da cidade são bem claras. Ao contrário das capitais neutrais de Madrid ou Berna, Lisboa não está cercada por terra, e a sua localização geográfica fez dela uma encruzilhada dos caminhos internacionais. A viagem de Estocolmo para Londres, no auge da guerra, demorava semanas, já que o trajecto mais seguro era via Teerão ou Vladivostok. E embora Istambul pudesse ter rivalizado com Lisboa e tivesse chegado a ser um entreposto importante, a capital portuguesa foi a verdadeira ponte para as Américas a partir da Europa. Assim, entre refugiados e fugitivos, desde famílias reais dos Balcãs a prisioneiros de guerra evadidos, todos se acumulavam em Lisboa à espera de permissão para embarcarem para a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, a América do Sul ou as Caraíbas, e os privilegiados que podiam fazer o voo transatlântico a partir de Baltimore eram obrigados a amarar no Tejo e trocar de avião para a última parte da viagem até Bristol. Porém, a não ser que fossem considerados passageiros prioritários, o visto de passagem podia demorar dias ou semanas a ser concedido.

             Ao mesmo tempo que soldados faziam filas no Serviço Britânico de Repatriamento (British Repatriation Office) e príncipes desterrados contavam o seu tempo no Palace Hotel do Estoril, membros das forças do Eixo e dos Aliados cruzavam-se nos cafés e nos restaurantes. A embaixada alemã, enxameada de membros da Abwehr (a) que se moviam sob a capa diplomática da Kriegsorganisation Lissabon, e mantinham estreitas ligações com os seus congéneres italianos, franceses do governo de Vichy, japoneses e húngaros, sempre com o consentimento do aparelho de segurança da omnisciente PVDE, que tinha a sua sede no sinistro quartel-general da organização, na Rua António Maria Cardoso. Comandados por Albrecht von Auenrode (conhecido pelo pseudónimo de Ludovico von Karstorf), os agentes corriam os bares da beira-rio, ansiosos por alguma informação sobre comboios de navios – deixadas escapar por marinheiros imprevidentes – e sempre à procura de novos agentes para serem enviados para Londres. A KO de Von Auenrode controlava os espiões principalmente para os Abstelles de Bremen e Hamburgo, e tinha relações próximas com as organizações de Madrid, Rio de Janeiro e Buenos Aires, mesmo tendo sido fechada pela DOPS, a polícia secreta brasileira, em Junho de 1943, uma grande parte da rede da Abwher local (que trabalhava sob a capa dos serviços comerciais da AEG, comandada por Albrecht Engels). A KO recebia com frequência visitantes do Reich, incluindo o bem conhecido espião-mor Nikolaus Ritter, mais conhecido por «Doutor Rantzau», que vinha para fazer conferências ou para encontros periódicos com os agentes. Normalmente sediado em Hamburgo, Ritter tornou-se uma figura bem conhecida dos seus adversários, e, com a experiência que tinha de ter vivido vários anos nos Estados Unidos antes da guerra, era um inimigo formidável.

             A informação que os britânicos tinham das actividades de von Auenrode partia de muitos agentes duplos coordenados pelo MI5 e MI6, e era obtida através da vigilância directa, intercepção de correio endereçado a moradas fictícias referenciadas, e, acima de tudo, os relatórios ISOS (b), que revelavam com bastante pormenor as actividades da KO, a partir da decifração de mensagens de rádio codificadas, trocadas com Berlim e Madrid. Todos os sinais, interceptados por uma cadeia mundial de “Estações Y”, eram processados por uma grande equipa do MI6 sediada em St. Albans, no condado de Hertfordshire, onde os analistas da Secção V decifravam e traduziam os textos um a um, e, posteriormente, adicionavam fichas individuais a um vasto índice que cobria todas as operações ou nomes de pessoas mencionados nas mensagens, o que permitia o cruzamento de referências com telegramas mais antigos e o esclarecimento de quaisquer ambiguidades nas mensagens. Qualquer informação adicional que fosse necessária era buscada no terreno por agentes da Secção V especialmente documentados, que seguiam para as células do MI6 no continente. À medida que o volume de relatórios foi aumentando, a Secção V ganhou o estatuto de um serviço secreto dentro dos serviços secretos, escrutinando as mensagens mais secretas do inimigo com os seus peritos organizados por áreas geográficas. Assim, a subsecção ibérica da Secção V, designada por V (d), comandada por Kim Philby e mais tarde Tim Milne, era formada por seis agentes dedicados à monitorização das «operações dos serviços de informações das potências inimigas na Península Ibérica, no Marrocos Espanhol, em Tânger e nas Ilhas Baleares e Atlânticas». A subseccção V (d) tornou-se um vasto arquivo, no qual os elementos do campo inimigo, tanto os agentes como outros suspeitos, eram «fichados» para que as suas mensagens pudessem ir sendo postas em contexto, e, sempre que surgisse a ocasião, esses elementos pudessem ser detidos mal estivessem ao alcance, fosse numa inspecção a um navio em Trinidad, Gibraltar ou Cidade do Cabo, ou em qualquer fiscalização de documentos noutros territórios sob a jurisdição dos Aliados, e sob o seu controlo.

    Nigel West numa visita ao National Churchill Libray and Center, em Dezembro de 2018.
    (Foto: Captura de imagem a partir de vídeo da visita)

             O ISOS foi o responsável pela exposição do agente Ricardo, um intérprete que trabalhava ao mesmo tempo para as delegações diplomáticas britânica e americana, e que tinha garantido à KO ter acesso a informações rigorosas a respeito de comboios de navios planeados. Esse tipo de informação antecipada era considerada de grande prioridade, a ser transmitida aos submarinos que cruzavam as águas próximas dos Açores, preparados para afundar navios Aliados que transportavam material de guerra para os teatros de operações do Médio e Extremo Oriente. Embora houvesse suspeitas de que Ricardo por vezes inventava os seus relatórios, acabou por ser considerado uma fonte perigosa, e responsável por uma lenta hemorragia de segredos Aliados, até ao dia em que foi identificado e posto de parte. Ainda assim, a KO conseguiu penetrar os gabinetes Polaco, Checo e Holandês – o Deuxiéme Bureaux. No combate clandestino, os alemães nunca estiveram em desvantagem. Sabiam bem como aplicar pressão sobre as famílias que permaneceram nos seus territórios ocupados, e bem capazes eram de ser absolutamente cruéis em conseguir que as pessoas cooperassem. É certo que a coerção nunca foi um grande motivador, e não faltaram espiões relutantes que à primeira oportunidade se dispuseram a ir revelar aos serviços Aliados a sua situação. Mais tarde na guerra, à medida que os Estados Unidos se tornavam o destino preferido dos refugiados, o delegado do FBI na Secção V para assuntos legais, Ivan W. Newpher, aplicava-se no exame de candidatos a vistos, em busca de suspeitos de espionagem.

             O ISOS também foi fundamental na resolução do imbróglio das cifras de Robert Solberg, que foram copiadas pela KO e aproveitadas com grandes vantagens. Solberg, representante em Lisboa do Departamento de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services, OSS), tinha a reputação de ter comportamentos amadorísticos e indiscrições ocasionais, mas o desaparecimento, do seu escritório, dos seus códigos confidenciais , permitiu à Abwher a leitura de uma quantidade considerável do tráfego de comunicações para o quartel-general do OSS, em Washington, até a fuga ser descoberta e reparada. Felizmente, Solberg não tinha sido admitido no circuito do ISOS e esse foi, ao menos, um segredo que os seus erros não puseram em causa. Todavia, um dos seus esquemas irreflectidos, um plano de roubo de equipamento criptográfico aos alemães, podia ter tido repercussões duradouras se não tivesse sido interrompido a tempo.

              Na frente contra as actividades da Abwehr e o SD (c) havia profissionais de informações britânicos, americanos, holandeses, jugoslavos, polacos e checos, que geriam redes que se estendiam pela França ocupada e por todo o Mediterrâneo, até ao Norte de África controlado pelo governo colaboracionista de Vichy. A intensa rivalidade era o ambiente perfeito para todo o tipo de oportunistas, aventureiros, mistificadores e falsários expandirem os seus negócios, traficando em materiais falsos, denunciando concorrentes, e negociando deserções.

             A atmosfera de intriga começou com a queda da França, quando o Sicherheitsdienst (SD) se convenceu de que o Duque de Windsor, então abrigado em Portugal, podia ser persuadido a praticar actos de deslealdade para com o país que tinha encabeçado por tão pouco tempo, antes de abdicar, em Dezembro de 1936. Walter Schellenburg lançou uma operação com o nome de código Willi para impedir aquele que fora o Rei Eduardo VIII de tomar o seu novo cargo de governador das Bahamas, mas o plano falhou. Esse incidente, todavia, criou o cenário para que Lisboa passasse a ser o foco de numerosas intrigas e maquinações. A partir de então, enquanto a capital portuguesa se ia enchendo de desperdícios da guerra, os profissionais de informações de diversos países conspiravam para se prejudicarem mutuamente, semeando falsas informações, recrutando desertores, buscando fontes e mobilizando agentes duplos. Cada missão diplomática era um alvo, tanto quanto os viajantes com documentos válidos, os homens de negócios que procuravam lucrar com a guerra, e as famílias em fuga das perseguições. A cidade de Lisboa atraía pequenos vigaristas, milionários apátridas e outras pessoas deslocadas, todos unidos pela necessidade de tirarem proveito da sua perigosa situação. O resultado foi uma atmosfera fétida na qual o multimilionário dos petróleos Nubar Gulbenkian (1) tomou residência temporária, antes de partir para a França ocupada em missão secreta, acompanhado pelo seu criado pessoal, e mistificador, Paul Fidrmuc, um jugoslavo que tinha o nome de código Ostro e inventava informação para vender ao primeiro lado que a quisesse comprar. O pai do actor Peter Ustinov, conhecido por Klop, movia-se misteriosamente nas franjas do circuito diplomático, em busca de pares de profissão anti-nazis com vontade de venderem segredos do Reich, do mesmo modo que a Gestapo espalhava os seus agentes para cheirarem potenciais traidores à distância. Estes eram os elementos de um ambiente de guerra invulgar, rico em golpes e contra-golpes capazes de inspirar uma dúzia de romancistas. De facto, John Masterman, presidente do Comité XX do MI5 em tempo de guerra, viria precisamente a aproveitar essa inspiração para localizar em Lisboa o seu romance The Case of the Four Friends (O Caso dos Quatro Amigos)(2).

             O facto de John Masterman ter escolhido Lisboa para cenário do seu romance não surpreende, já que muitos dos agentes que ele próprio tinha ajudado a gerir ou tinham actuado em Lisboa, tais como Costar ou Soso, ou tinham passado pela cidade para receberem as suas instruções. Nesta última categoria incluíram-se Mullet, Celery, Biscuit, Snow, Dragonfly, Tate, Shadow, Lipstick, Peach, Zigzag Hatchet, cada um deles (ou delas, no caso de Gelatine) com a sua própria história extraordinária de espionagem e actos nebulosos. Meteor chegou a actuar como agente triplo, enquanto que Josef chegou a ser recrutado pelos japoneses. Todos, uns mais que outros, dependeram de mensagens secretas ou apoio financeiro de Lisboa para sustentarem as suas operações em Inglaterra, agindo sem hesitações como empenhados espiões nazis, mas cabendo, afinal, no jargão do MI5, na classe dos «agentes do inimigo sob controlo».

             O simples número de agências que actuavam em Lisboa vale como um indicador da importância da cidade para os serviços de informações britânicos. Para além dos Serviços Secretos de Informações (MI6), que trabalhavam a coberto do Serviço de Controlo de Passaportes, na Rua da Emenda, o MI9 e o SOE (Special Operations Executive) mantiveram representações permanentes em Lisboa. Donald Darling, do MI9, dirigia o serviço de fugas e evasões, prestando assistência a antigos prisioneiros dos alemães e pilotos caídos em território ocupado pelos nazis, para regressarem a casa. Muitos tinham atravessado os Pirenéus a pé, enquanto outros tinham servido penas de prisão na tristemente famosa prisão espanhola de Miranda del Ebro mas não tinham perdido a sua determinação de se voltarem a juntar às suas unidades – tal como Darling recordou nas suas memórias, Secret Sunday (3), publicadas em 1975. Alguns, é certo, traziam consigo informações valiosas a respeito de linhas de fuga, informação actualizada sobre a situação na Europa ocupada, ou pormenores cruciais das restrições de deslocação impostas pelo inimigo, e os seus controlos de segurança. O homem de Lisboa do SOE era Jack Beevor, que trabalhou na embaixada da Rua do Sacramento à Lapa e acabou por descrever as suas experiências na autobiografia SOE Reflections (Reflexões sobre o SOE) (4)publicada em 1981. A sua tarefa era assistir o pessoal do SOE nas suas missões clandestinas, e apressar a repatriação dos agentes a caminho de Londres.

    concrete bridge at night time

             Outro componente da importante presença da espionagem britânica em Lisboa foi o adido naval, que estava em permanente contacto com a NID, Divisão de Inteligência Naval do Almirantado (Admiralty’s Naval Intelligence Division). Era responsável pela autorização da Royal Navy, conhecida como «Navicerts», que permitia aos navios não-beligerantes o trânsito marítimo sem interferência dos navios de guerra Aliados. O adido naval constituía por si só uma valiosa fonte de informação, e permitia à NID identificar os falsos navios neutrais que carregassem material de interesse estratégico, incluindo os carregamentos do valiosíssimo volfrâmio espanhol, a caminho dos portos do Eixo.

             A secção de Lisboa do MI6 era uma das mais importantes em Lisboa, e foi comandada, sucessivamente, por  Austen Walsh, Richman Stopford, Cecil Gledhill, e, finalmente, Philip Johns, que mais tarde passou a escrito as suas memórias, em Within Two Cloaks (Duplo Disfarce) (5)Dos quatro, Gledhill era o único não originário da área profissional da recolha de informações, mas, como tinha vivido muitos anos no Brasil, a sua fluência na língua portuguesa compensava a sua faltava de experiência. Ainda assim, a enorme pressão do trabalho reflectiu-se na grande rotação das chefias de Lisboa, nos anos da guerra.

             A secção tinha enorme importância, e não somente por ser a última que restava em todo o continente, após o colapso da França, com um ambiente de neutralidade e de relativa normalidade. Em contraste, a secção de Madrid, que distava muitos quilómetros da fronteira mais próxima, sofria o cerco de um governo-anfitrião hostil, e era limitada por um embaixador igualmente pouco entusiasta, Lorde Sam Hoare, cheio de receios de que o seu estatuto diplomático sofresse com algum embaraço causado pelo MI6. Enquanto antigo agente do MI6, Hoare sabia bem que algum desencobrimento poderia deitar por terra os seus alvos políticos, e, enquanto antigo membro do governo, tinha poderes para fazer com que os seus preconceitos fossem respeitados. A pequena secção de Gibraltar estava igualmente isolada, apenas periodicamente ligada à Grã-Bretanha por rotas de mar e ar perigosas, mas controlada de perto e vigiada pelas secções do inimigo em Algeciras e Tânger, e cuja zona portuária e cidade acolhiam multidões de espiões. As operações da secção de Estocolmo estavam severamente restringidas, graças a uma forte presença alemã e uma polícia secreta sueca bastante suspeita, que no começo da guerra tinha implicado o MI6 numa tentativa falhada de sabotagem da exportação de minério de ferro para o Reich. Quanto a Berna, a secção existia numa clareira do Eixo, sem canais utilizáveis para o mundo exterior, à parte o rádio de ondas curtas, e sem poder contar, certamente, com nenhum apoio por parte da polícia local, a Bundespolizei. E, já que a secção de Istambul estava subordinada ao quartel-general regional, no Cairo, e estava demasiado distante para poder influenciar os acontecimentos na Europa Ocidental, dedicou-se aos assuntos do Médio-Oriente, deixando a Lisboa o fardo de ser a linha da frente no confronto do MI6 com os protagonistas das forças do Eixo.

             O pessoal do MI6 de Lisboa incluía Rita Winsor, evacuada em 1940 da secção de Genebra, que teve de ser abandonada à pressa, e Jack Ivens, um comerciante de frutas com abundantes conhecimentos nos modos de fazer negócios na Península Ibérica. Graham Maingot tinha trabalhado a coberto de actividades comerciais até a secção de Roma ser fechada, na altura em que começaram as hostilidades. E Gene Risso-Gill era originário de uma família de comerciantes anglo-portuguesa. Juntos, reportavam a um controlador regional baseado em Londres, Basil Fenwick, um antigo executivo da companhia petrolífera Shell, depois substituído por Dick Brooman-White, que veio a ser eleito para o parlamento, depois da guerra. Em complemento, a Secção V contava ainda com Charles de Salis e depois Ralph Jarvis, responsáveis por montar operações de contra-informação baseadas em informações obtidas em transmissões do inimigo interceptadas, com o nome de código ISOS. Este grupo permanente era completado, ocasionalmente, por elementos visitantes, ou «bombeiros», como Ian Wilson do MI5, e Frank Foley, o antigo comandante da secção do MI6 de Berlim (6) de antes da guerra, que chegou à Península para gerir a crise criada por Artist.

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             A supervisão de Artist era especialmente melindrosa, pois o agente era um oficial da Abwher, Johannes Jebsen, descendente de uma prestigiada família de armadores de Hamburgo. Artist tinha estabelecido contacto com o MI6 através de Dusko Popov, nome de código Tricycle (7)que tinha indiscretamente confessado o seu papel de agente duplo ao seu velho amigo, a quem conhecia desde os tempos em que estudavam na Universidade de Heidelberga, antes da guerra. Felizmente, Jebsen provou ser digno de confiança, mas o MI6 calculou que, caso desertasse, a Abwher inevitavelmente concluiria que Popov estava contaminado. Por outro lado, se fosse preso e interrogado pela Gestapo, poderia comprometer Popov, e talvez até outros, já que estava também ligado a outro desertor da Abwehr, o jornalista Hans Ruser. Uma outra razão para a extrema cautela era o receio, por parte do MI6, de que, caso desertasse, Jebsen poderia, inadvertidamente, desmascarar Alaric, provavelmente o mais importante agente infiltrado na Abwehr.

             Inicialmente contratado pela Abwehr de Madrid, Alaric era Juan Pujol (8), um anti-fascista espanhol cuja primeira oferta para ajudar os Aliados tinha sido recusada pela embaixada britânica. Sem desanimar, Pujol tinha ido oferecer-se aos alemães, que o enviaram a Lisboa na convicção, errada, de que ele possuía um visto para viajar para a Grã-Bretanha. Na realidade, Pujol tinha-se estabelecido em Cascais e passou a fabricar falsos relatórios vindos de Londres. Mais tarde, graças à insistência do adido naval americano, Edward Rousseau, o agente do MI6 Gene Risso-Gill acabou por estabelecer contacto com Pujol e tratou da sua passagem para Inglaterra, onde, rebaptizado Garbo pelo MI5, o espanhol montou uma rede Abwehr com o nome de código Arabel. Em 1944, a rede de espiões Arabel tinha-se alargado a 22 fontes secundárias, todas fornecedoras de relatórios de vários pontos do país, desempenhando um papel-chave na campanha de contra-informação Fortitude (9), de preparação para o Dia-D. Qualquer ameaça a Garbo punha em perigo as vidas de 150.000 soldados prontos para a ofensiva de desembarque na Normandia a 6 de Junho de 1944. O risco não podia ser mais elevado.

             De facto, Garbo era apenas um dos agentes duplos controlado pelos britânicos com fortes contactos em Lisboa, e, embora ninguém soubesse dos outros, eram vários, uns instalados permanentemente em Portugal outros em trânsito periódico por Lisboa, em missões. Assim a embaixada alemã tornou-se um ponto de encontro regular, onde os espiões do Eixo recebiam as suas instruções finais antes de partirem para Buenos Aires, Rio de Janeiro, Congo Belga, Lourenço Marques, Guiné portuguesa, na costa Oeste de África, ou América do Norte, ao passo que o MI6 preferia casas neutras onde pudesse tratar dos seus assuntos com os agentes que trabalhavam para os dois lados. Existiam também muitas «caixas de correio», que eram usadas pelos agentes para comunicarem usando moradas manifestamente inocentes, que apenas serviam para enviar o correio que continha escrita secreta, por micropontos, para os destinatários pretendidos. Por alturas do fim da guerra, o MI5 estava a usar 135 falsos endereços, que serviam a espiões tão diferentes como Springbook, da África do Sul e o misterioso Fundus, um espião alemão cuja verdadeira identidade nunca foi devidamente apurada.

             Para além de ser um grande porto europeu aberto à navegação transatlântica, Lisboa era também uma porta clandestina para Gibraltar, frequentemente o caminho mais directo para a Grã-Bretanha, especialmente para desertores e outros impossibilitados de conseguirem um visto de saída português por meios legais. Entre os que foram expedidos secretamente para a colónia britânica esteve o lendário agente duplo Juan Pujol, então com o nome de código do MI6 Bovril, ou o desertor Hans Ruser, que negociou a sua desinfiltração em Março de 1942, ou ainda Otto John, um dos conspiradores do 20 de Julho que sofreram os efeitos da reacção ao atentado contra Hitler.

    white concrete building near mountain

             Enquanto as agências aliadas estavam bem conscientes de que a PVDE tinha especial interesse nas suas actividades, sem sequer ter feito o esforço de ocultar um posto de observação semeado de câmaras fotográficas de frente para o Serviço de Controlo de Passaportes, os concorrentes do Eixo podiam agir com total impunidade. Artist acabou raptado e atirado para a mala de um carro para uma viagem de regresso forçado a Paris, quando a Gestapo suspeitou de que tinha sido burlada. Petra Vermehren, que se apresentava como jornalista, também desapareceu, depois de o próprio filho e a nora, que como ela trabalhavam para a Abwehr, terem desertado, em Istambul, em Dezembro de 1943.

             O facto de os serviços de informações britânicos terem um quadro de pessoal numeroso em Lisboa não implica que todas as suas operações tenham sido bem sucedidas. A tentativa, em 1942, de assaltar o escritório de um funcionário de alta patente da Abwehr, Kuno Weltzein, que operava sob a capa de actividades comerciais é disso um bom exemplo. A oportunidade de arrombamento revelou ser uma armadilha, e o MI6 viu-se abertamente implicado no fiasco, que deixou os ladrões desmascarados nas mãos da PVDE. Numa outra ocasião, o astucioso Weltzein arranjou maneira de algumas das suas fichas de agentes caírem nas mãos dos britânicos, que desperdiçaram semanas de inúteis observações de suspeitos que acabaram por revelar-se completamente inocentes. Weltzein foi apenas um dos membros da comunidade de comerciantes alemães aliciados pela Abwehr e pelo SD a transformarem os seus contactos de negócios em fontes úteis de informação. Outro desses elementos foi Hans Bendixen, uma figura bastante conhecida, bem estabelecida socialmente antes da guerra, e que passou a espiar a favor de Berlim. Através dos seus contactos locais, foi fácil à Abwehr subverter os banqueiros locais, incluindo o Banco Espírito Santo, para que proporcionassem canais de circulação que ajudassem os espiões alemães nas suas missões.

             Hano Grimm foi outro elemento sujeito ao controlo da Abwehr, reponsável pela recolha de informação relativa ao trânsito naval entre as tripulações dos navios britânicos, como parte de uma rede alargada. Cândido Raposo, um português com acesso à estação de rádio Marconi da Madeira estava envolvido na mesma actividade. O mesmo se passava com Gastão de Freitas, operador de rádio do Gil Eanes, que, comprometido por mensagens codificadas, foi preso e acabou por admitir ter tomado notas sobre as defesas marítimas de St. John, na Terra Nova.

             A dimensão da espionagem nazi desenvolvida em Lisboa não tinha comparação com a de qualquer outra capital neutral, e só talvez Madrid se lhe pudesse aproximar. Foram capturados em Londres numerosos espiões com contactos em Lisboa, entre eles Ernesto Simões, que viajou para Inglaterra para trabalhar na fábrica aeronáutica Percival, em Lutton, em Novembro de 1943. Sob vigilância contínua desde que desembarcou em Filton, Simões tinha sido denunciado por mensagens codificadas e foi preso antes de ter podido causar algum dano. Depois de um demorado interrogatório, confessou o seu verdadeiro papel ao serviço da Abwehr, e revelou a sua falsa morada em Lisboa, de onde tinha ordens para enviar mensagens em escrita de código. A Abwehr recrutou também um jornalista, Manoel dos Santos, que foi tirado do navio em que tinha embarcado, em Freetown, no qual procurava regressar a Portugal, vindo de Moçambique. Uma vez mais, mensagens codificadas tinham denunciado tratar-se de um importante espião nazi. A Serra Leoa, tal como Trinidad, era um entreposto da inteligência britânica, onde estes elementos podiam permanecer presos e até serem levados para Londres, para intenso interrogatório no Campo 020. (10)

    man in black suit jacket and blue hat standing in front of store

             Outro caso, mais sério, foi o de um diplomata português, Rogério de Menezes, que acabou condenado à morte. Tendo chegado a Londres em Julho de 1942 para trabalhar na representação diplomática portuguesa, Menezes começou a escrever cartas à irmã, que estava em Lisboa, acrescentando notas suplementares escritas com tinta invisível, dirigidas a um homem chamado Mendes. O seu correio tinha sido incluído na mala diplomática portuguesa, que foi aberta em segredo e examinada por pessoal do MI6, numa operação altamente secreta com o nome de código Triplex. A missão de Menezes tinha sido traída por uma mensagem codificada interceptada ainda antes do seu desembarque. Menezes passou a ser observado, dentro da legação portuguesa, por um agente, e, no exterior, por equipas de vigilância do MI5. De acordo com Jack Bingham, um agente do MI5 que se lhe tornou próximo, Menezes estava particularmente interessado em defesas anti-aéreas. Em Fevereiro de 1943, as provas incriminatórias foram apresentadas ao embaixador Monteiro, a quem foi lembrado que três outros portugueses, Gastão de freitas, Maria dos Santos e Ernesto Simões, tinham sido apanhados a espiar. Depois de Lisboa ter sido consultada, o embaixador retirou a imunidade a Menezes. Quando foi preso, Menezes reclamou que tinha espiado contra a sua vontade, porque tinha parentes na Alemanha que estavam sob ameaça. Na sua confissão, identificou Mendes como sendo um homem chamado Marcello, que trabalhava para um agente italiano chamado Umerte. Declarou ter sido apresentado a esses dois homens por um oficial da Força Aérea Portuguesa, o coronel Miranda, e mencionou também um criptógrafo chamado Ramos, ligado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros português. Independentemente destes factos, Menezes foi condenado à luz da Lei da Traição, em Abril de 1943. Foi sentenciado à pena de morte, entretanto comutada, após um pedido de clemência do embaixador português. Menezes ficou preso em Dartmoor e, de acordo com instruções do Juiz Supremo, não houve qualquer declaração oficial sobre o julgamento ou sobre a comutação da pena.

             Um outro espião, menos afortunado, foi Duncan Scott-Ford, que havia sido expulso da Royal Navy, baseada em Alexandria, antes da guerra, por quebra de lealdade, e foi interrogado na base de Salford, em Agosto de 1942, a respeito de um marinheiro identificado em mensagens codificadas com o nome de código Rutherford. Dois meses antes, Scott-Ford tinha declarado ter sido abordado, em Lisboa, por um alemão interessado em informações, mas insistiu que tinha recusado a oferta. Sob interrogatório, no campo 020 do MI5, Scott-Ford admitiu que tinha passado informação pormenorizada sobre comboios de navios aos alemães, e tinha tirado apontamentos sobre oNavio da Marinha Real Britânica Malaya, para poder passar a informação na primeira oportunidade. Sem ter pedido perdão, Scott-Ford foi a julgamento no Old Bailey em Outubro de 1942, e foi enforcado na prisão de Wandsworth em Novembro.

             Outro exemplo de espionagem alemã emanada de Portugal foi Joseph Laureyssens, um marinheiro belga que, em Abril de 1941, foi desmascarado como correspondente de uma «caixa de correio» de Lisboa. Sob interrogatório, admitiu ter posto outros marinheiros em contacto com uma mulher que habitualmente trocava os seus favores por informações navais dos Aliados. Permaneceu preso até ao fim da guerra, apenas porque as provas que o incriminavam se extraviaram acidentalmente. De outro modo, também ele teria sido executado.

             O lugar que Lisboa ocupava nas preocupações das chefias da inteligência britânica está à vista no diário que foi sendo ditado, ao fim de cada um dos dias da guerra, pelo director de Contra-espionagem do MI5, sem ter como objectivo a publicação. O seu conteúdo era conhecido apenas de alguns agentes do MI5 como auxiliar de treino, para documentar o progresso dos serviços de segurança no combate às operações secretas do Eixo. As notas eram tomadas pela secretária do Director, Margot Higgins, depois do expediente, e depois dactilografadas em pequenas páginas soltas, encadernadas com argolas. O diário, com o título The Guy Lidell Diaries, (11) serviu como diário da guerra de uma agência que mantinha ficheiros pessoais e temáticos a respeito de suspeitos de espionagem, elementos e organizações subversivos. Durante toda a Guerra Fria, o diário foi considerado tão sensível que recebeu um nome de código, Wallflower, e permaneceu guardado no cofre pessoal do Director Geral, para ser partilhado com poucos, entre os quais Peter Wright, que mais tarde se lhe referiria nas suas polémicas memórias, SpyCatcher (Caça-Espiões). (12)

             Até às revelações de Wright, a existência dos diários não passava por ser mais do que um rumor infundado. Parecia certo que Liddell tinha enterrado os esqueletos do MI5 todos na mesma cova, e que o documento era demasiado explosivo para que pudesse ser exumado.

    white book page on brown wooden table

             Se um dos motivos de se ter permitido maior liberdade no estudo das mensagens interceptadas em Bletchey Park foi acalmar a curiosidade pela história secreta da Grã-Bretanha, essa intenção saiu gorada, já que, no princípios da década de 1980, numerosos escritores, biógrafos e historiadores dedicaram a sua atenção a um campo de estudos até aí completamente negligenciado, especialmente devido à escassez  de documentação oficial posta à disposição do público. A chocante declaração do Primeiro-ministro Margaret Thatcher, em Novembro de 1979, de que o Professor Lorde Anthony Blunt tinha sido toda a sua vida uma «toupeira» dos soviéticos e tinha acordado um estatuto de imunidade em Abril de 1964, veio despertar um aumento da investigação numa área até então evitada, e mesmo desencorajada oficialmente. Blunt, como se sabe, tinha servido nos Serviços Secretos desde Junho de 1940 até Setembro de 1945, e confessou ter passado aos russos do NKVD todos os segredos que lhe tinham chegado ao gabinete. Esta notícia foi um rude golpe para todos os seus amigos, a família, colegas sobreviventes do exército, e a todo o meio das informações, que já tinha feito um grande esforço para salvar a sua reputação depois das deserções de Guy Burgess e Donald McLean em Maio de 1951.

             Embora Guy Liddell já não estivesse vivo para sofrer o choque da exposição pública de Blunt, tendo falecido em retiro, em 1958, viria a tornar-se o foco de uma intensa onda de especulação e crítica. Liddell entrou para o MI5 vindo do Metropolitan Police Special Branch (Operações Especiais da Polícia Metropolitana), em 1931, e em 1940 foi nomeado director da Divisão B, o ramo de contra-espionagem. Depois da guerra, foi promovido a Vice-Director Geral, posto que manteve até mudar-se, em 1956, para a direcção do departamento de segurança da Autoridade da Energia Atómica.

             Liddell conheceu pessoalmente Guy Burgess, que tinha trabalhado secretamente para o MI5 em 1940, dirigindo, entre outros agentes da sua coterie homossexual, Eric Kessler, o jornalista e diplomata suíço, com o nome de código Orange.  Naturalmente, o trabalho clandestino de Burgess para os Serviços Secretos tinha sido ocultado na altura do seu desaparecimento, altura em que foi descrito como sendo um diplomata de categoria menor. E o Livro Branco oficial sobre a sua deserção nem sequer tinha aflorado as suas ligações com a secção D do MI6 e com o MI5. A amizade de Liddell com Burgess era embaraço mais que suficiente, mas o facto é que Liddell tinha também tornado Burgess o seu secretário pessoal, e tinha-lhe confiado a condução dos inquéritos mais sensíveis, em sua representação. Por exemplo, quando Blunt se juntou à equipa de Liddell foi-lhe entregue a tarefa de fazer uma auditoria ao desempenho do embrionário e ineficaz Serviço de Vigia (Watcher Service), de Harry Hunter, o que lhe permitiu garantir, com absoluta certeza, aos seus contactos soviéticos, que a sua rezidentura em Londres não tinha nada a temer da vigilância do MI5, que já estava bastante ocupada com a vigilância da lista de suspeitos de traição. Os registos do MI5 mostram que Blunt tinha também levado a cabo um longo estudo de Triplex, (13) uma operação altamente secreta que envolvia acções de rotina de desvio e abertura de malas diplomáticas das embaixadas neutrais. Pior que tudo, Blunt tinha sido autorizado por Liddell a identificar, e relatar, sobre todo o corpo de agentes em funções nas embaixadas de Londres. Naturalmente, as conclusões de Blunt eram avidamente recebidas em Moscovo, quase tão depressa como eram recebidas em St. James Street.

             O desconforto dos muitos amigos e admiradores de Liddell transformou-se em raiva, quando as suas lealdades foram postas em causa. O primeiro a reinterpretar alguns dos maiores êxitos de Liddell como triunfos duvidosos for Richard Deacon, o autor de The Greatest Treason (A Maior Traição), publicado em 1989, (14) livro em se sugere que, apesar do caso do Arsenal de Woolwich ter resultado na prisão de Percy Glading e dois outros membros da sua rede, o peixe graúdo tinha sido largado. Havia alguma verdade nesta alegação, já que os ilegais soviéticos que tinham controlado as operações conseguiram escapar à vigilância do MI5 e fugiram, tanto à prisão como à própria identificação. Deacon sugeriu que isso foi consequência de uma traição ao mais alto nível dentro do MI5, mais do que puro azar, e denunciou sem hesitações Liddell como «o quinto homem».

             Como Anthony Blunt só entrou para o MI5 em Junho de 1940, mais de dois anos e meio depois da prisão de Glading, o candidato de Deacon para traidor passou a ser Liddell. Tal alegação incitou Dick White a protestar a inocência do seu mentor. Porém, o cheiro de traição já havia sido anunciado por David Mure, oito anos antes, em Master of Deception (Mestre de Enganos) (15), livro em que Mure desenha um cenário em que Liddell concebe fiasco atrás de fiasco nas operações secretas, portando-se como um verdadeiro génio da duplicidade, ajudando outras «toupeiras» a infiltrarem-se mais e mais na administração britânica. As acusações não-comprovadas de Mure tornaram-se mais graves porque, ao contrário de Deacon, pseudónimo literário de Donald McCormick, que fora antigo editor de política estrangeira do Sunday Times e oficial naval do tempo da guerra, e que nunca tinha trabalhado nas informações, David Mure pertencera a uma secção do Cairo durante a Segunda Grande Guerra e tivera envolvimento em operações de contra-espionagem por todo o Médio Oriente. Enquanto o livro de Deacon poderia ser classificado como especulação jornalística, Mure sabia do que estava a falar, tendo tido ligações a Cheese, o famoso agente duplo. A teoria de Mure foi reforçada pelo historiador de Cambridge John Costello que, na sua impressionante biografia de Blunt, Mask of Deception (Máscara de Enganos) (16) apontou Liddell como espião soviético, apenas porque nisso viu a única explicação para a prolongada traição de Blunt. Mais uma vez, a alegação causou consternação entre os antigos colegas de Liddell, especialmente quando Peter Wright revelou que várias «caças a toupeiras» foram desencadeadas nos anos 60 com base na convicção de que os Serviços Secretos estavam a sofrer infiltrações ao mais alto nível. Na reacção à declaração da Sra. Thatcher no Parlamento, em Novembro de 1979, que foi esboçada no MI5 e atribuía todos os incidentes de infiltração a Anthony Blunt, Wright revelou ao seu co-autor Chapman Pincher, no livro Their Trade is Treachery (O Ofício de Traidores) (17), que o Vice-Director Geral Graham Mitchell tinha sido dado como suspeito de ser um agente infiltrado, antes da sua reforma, em Setembro de 1963, e, ainda mais sensacionalmente, que o próprio Director Geral, Lorde Richard Hollis, tinha também sido investigado como possível espião. Wright aprofundou a questão em SpyCatcher, escrito em co-autoria com o produtor de televisão Paul Greengrass, livro em que defendeu que quem lesse os Diários não encontraria nada que permitisse suspeitar de que Liddell pudesse ter traído o seu país.

    low angle photo of assorted book on bookshelf

             Podemos hoje dizer, com base na documentação dos arquivos soviéticos que já foi trazida a público, e declarações de desertores do KGB como Oleg Gordievsky (18) e Vasili Mitrotkin (19), que não há nada que apoie alguma tese de que Guy Liddell tenha feito alguma coisa que não fosse servir a Coroa fielmente, e os seus Diários mostram uma humanidade e um empenho nos ideais democráticos capazes de repugnar à maior parte dos polícias secretos.

             Partindo-se, então, do princípio de que Liddell foi sempre fiel ao seu país, qual é o verdadeiro contexto em que os Diários deverão ser lidos? O importante tratado de Lorde Harry Hinsley (20) foi seguido por um extraordinário desenvolvimento, resultado do colapso do bloco soviético. O arquivo do KGB, entretanto aberto a um conjunto de historiadores ocidentais, continha uma vasta colecção de documentos secretos subtraídos por Anthony Blunt ao registo do MI5 durante a guerra. Entre os papéis, estava um primeiro rascunho da história interna do MI5 da autoria de Jack Curry, escrito em 1945 (21), cobrindo o período a partir de 1909. Quando este documento foi desclassificado, em Moscovo, o Director geral de então, o Dr. Stephen Lander, também ele um historiador formado em Cambridge, aprovou o acesso público da versão final do texto, entregue ao Arquivo Público de Kew. A história de Curry acabou por ser publicada, mas o texto tinha sido alvo de revisão, e dava uma visão muito parcial do desempenho do MI5, atenuando as dificuldades vividas por Liddell, escassamente referido. Igualmente editada foi a crónica do pós-guerra Camp 020, da autoria do Coronel Robin Stephens, conhecido por «Tin-Eye», dedicada ao centro de interrogatórios do MI5 em Ham Common. Stephens tinha sido o controverso comandante, e, como seria de esperar, os seus pontos de vista foram expressos de forma animada e bem vincados. Todavia, apesar de ter feito retratos vivos de alguns dos presos, Stephens não tinha a percepção do grande cenário da contra-informação, e a história da sua secção é uma descrição incompleta, que, por exemplo, omitiu qualquer referência a Liddell.

             Sendo assim, o que torna os Diários de Liddell tão importantes? Primeiro, há toda a informação que não se pode encontrar em nenhum outro lugar. Quando se refere ao «material especial», Liddell revela inadvertidamente quais os países cujas comunicações confidenciais eram objecto de intercepção rotineira e descodificação, entre eles a França, a República da Irlanda, a Pérsia, a Finlândia, a Suécia e a União Soviética. Hinsley trata com a máxima (e compreensível) discrição os alvos diplomáticos, e estava sem dúvida a cumprir o dever de não identificar os países alvo da monitorização regular (e bem sucedida). Pelo contrário, os comentários de Liddell fizeram prova de que as comunicações de certas embaixadas eram lidas com regularidade e circulavam entre as altas hierarquias das informações.

             Para além de descrever investigações conduzidas pelo MI5 que não são referidas em mais nenhuma fonte, Liddell também fornece informação em primeira-mão sobre as tensões que existiram entre o Governo, os ministérios e as outras Agências. O director de Liddell, Jasper Harker, trabalhava muito bem com o Sub-Secretário Permanente do Home Office (Ministério da Administração Interna), Lorde Alexander Maxwell, mas tomou como um factor de grave irritação a criação do Gabinete de Segurança de Defesa (Home Defense Security Executive), em Junho de 1940. O Gabinete de Segurança foi instalado por causa da impressão que Churchill tinha de que o caos dominava na direcção do MI5, pela altura em que despediu o Director Geral, Lorde Vernon Kell, também em Junho de 1940. O exacto papel constitucional do gabinete de Segurança nunca foi claramente determinado, e Liddell sentia óbvio desagrado pelas intromissões de Lorde William Charles Crocker, um advogado influente da City que tinha pouca noção do trabalho do MI5 e decidiu, desastrosamente, transferir um grupo de detectives da Scotland Yard para a Divisão B, o que causou grande irritação nas Operações Especiais. Crocker tinha sido imposto ao MI5 com o objectivo de animar a organização, mas as suas actividades, em conjunto com as interferências de outro forasteiro, Malcom Frost, da BBC, iriam causar um ambiente negativo duradouro, dentro dos Serviços Secretos.

             Liddell não fez nenhum esforço para esconder as rivalidades internas e as fricções que por vezes ameaçavam paralisar toda a organização. O dominante Arquivo (Registry), dirigido por Miss Paton-Smith, estava semeado de descontentamento, e a imposição de um Serviço de Comunicações Sem-Fios (Wireless Branch), para supervisionar as comunicações ilegais com o inimigo, revelou-se uma experiência inútil de curta duração e um obstáculo burocrático. A chegada de Reg Horrocks, um perito em gestão, e o seu secretário, Mr. Potter, para aconselharem melhoramentos, fez pouco para aliviar a tensão.

             Os Diários de Liddell têm enorme significado por duas razões. Primeiro, muito poucas pessoas estiveram em posição de terem um posto de observação tão privilegiado sobre a condução da guerra, com um ponto de vista que incluía o acesso à informação mais secreta. Churchill, é claro, viu bastantes relatórios de desencriptação Ultra e gostava de passar os olhos sobre as transcrições das mensagens Enigma interceptadas que o chefe do MI6, Stewart Menzies, seleccionava para a inspecção do Primeiro Ministro, todas as manhãs. Mas poucos foram os elementos do Gabinete de Guerra de Churchill que partilharam daquela fonte da sua enigmática capacidade de adivinhar as intenções do inimigo… Nenhuma das restantes memórias da guerra fazem referência à galinha dos ovos de ouro de Bletchley, incluindo mesmo a do Chefe da Casa Imperial, o general Lorde Alan Brooke (22). Portanto, de um ponto de vista global, os Diários de Liddell são importantes documentos históricos. A segunda razão, já mencionada, é a escassez de material disponível originado do interior dos Serviços Secretos. Se três dos agentes duplos do tempo da guerra escreveram as suas aventuras, a saber, Lilly Sergueiev (23) (nome de código Treasure), John Moe (24) (Mutt), Dusko Popov (25) (Tricycle) e Eddie Chapman (26) (Zigzag), nenhum dos seus oficiais de ligação quebrou o seu silêncio. Esta lacuna é tanto mais notável se tivermos em conta o número de membros dos Serviços Secretos que se tornaram autores. Max Knight (27), John Bingham (28), William Younger (29), Gerald Glover (30), Kenneth Younger (31), e Derek Tangye (32), todos acabaram por escrever livros, e, embora alguns tenham optado pelos romances de espionagem, nenhum deles fez relatos não-ficcionais dos casos em que se tivesse envolvido, ou sequer revelou a verdadeira natureza das suas funções. A única excepção foi Joan Miller, uma das secretárias de Max Knight, que foi usada para penetrar um grupo de suspeitos traidores, em 1940, e mais tarde fez um breve relato das suas experiências em One Girl’s War (Uma Rapariga e a Sua Guerra), um livro de memórias inócuo que acabou por ser publicado na Irlanda depois de uma interdição legal ter impedido a edição inglesa.

             Em suma, nunca houve nenhum relato fidedigno, a partir de dentro, de como se operou durante a guerra nos Serviços Secretos, nem tão-pouco alguma descrição factual do duelo de contra-espionagem travado pelo MI5 contra o Eixo e depois contra os soviéticos. Nesse caso, o que nos contam os Diários, tão secretos durante 60 anos? Para resumirmos melhor o impacto dos Diários, podemos dividir o seu conteúdo em Personalidades e Operações. Em termos das actividades do MI5, os Diários revelam-nos os papéis clandestinos desempenhados pelo pessoal do MI5, pelos seus agentes em Inglaterra, e trazem à luz as actividades de dezenas de indivíduos antes desconhecidos. Liddell era um profissional de contra-informações com uma vida social intensa, e confiava na sua família e nos seus contactos sociais. Empregou os dois irmãos, David e Cecil, e confiou repetidamente nos primos e outros contactos, incluindo o banqueiro Lorde Edward Reid, que aconselhava o MI5 em questões de espionagem financeira. E também em Tommy Lascelles, secretário particular do Rei George. Muito bem relacionado socialmente, Liddell usou os seus contactos para construir uma impressionante rede privada que atravessava divisões de classe e ia do Palácio de Buckingham aos bordéis do Soho. Se juntarmos a esta estrutura as relações com os advogados do Home Office, as rivalidades entre as agências de informações, as sensibilidades diplomáticas e as vidas dos agentes postas em risco em território inimigo, podemos começar a ter um vislumbre do fardo sob o qual Liddell vivia- Mas, ainda assim, encontrava tempo para escrever as suas rimas humorísticas sobre os colegas, e passar os serões a gastar conversa com os amigos no Travellers Club, em Pall Mall.

             Em termos das operações, os Diários dão-nos uma visão dos assuntos que preocupavam Liddell e os seus colegas. Havia uma cooperação estreita com o Canadá, os Estados Unidos, a África do Sul e a República da Irlanda, mas as relações com o gabinete de Coordenação de Segurança Britânica em Nova Iorque (British Security Coordination) estiveram sempre à beira da catástrofe, principalmente porque Liddell confiava muito mais no FBI do que em William Stephenson. Apesar de o director do BSC ter prometido a J. Edgar Hoover terminar as operações clandestinas britânicas em solo dos Estados Unidos, e ter prometido, em especial, não dedicar agentes a missões contra representações diplomáticas estrangeiras acreditadas em Washington, continuou a fazê-lo, com todo o apoio de Bill Donovan, o rival de Hoover. Quando soube da estratégia de alto-risco de Stephenson, Liddell previu a raiva de Hoover, crise que acabou mesmo por acontecer, quando o FBI descobriu aquela colaboração secreta.

             O império de Liddell estendia-se desde o Gabinete de Informações de Deli, na Índia, até ao Comando do Sudoeste Asiático, no Ceilão, passando pelo Gabinete de Informações de Segurança do Cairo e, do outro lado do Atlântico, aos Agentes de Defesa e Segurança que nomeou para as Bermudas, Trinidad, Jamaica e Honduras. Todos os dias vemos Liddell a confrontar-se com pequenas questões a respeito de encontros marcados, a execução de espiões condenados, queixas a respeito do mau uso de um carro oficial por Duff Cooper, a colocação de escutas na suite do Claridges do Secretário de Estado Norte-Americano, ou sobre o tratamento a dar a desertores do inimigo, tais como Hans Jager.

    landscape photography of high-rise building during nighttime

             Os Diários despejam uma verdadeira cornucópia de preciosidades secretas, desde as preocupações de Liddell a respeito do regresso a Inglaterra da filha do Lorde Redesdale, Unity Mitford, depois de esta se ter tentado suicidar por causa de uma paixão não correspondida por Hitler, até à suspeita de que um criptógrafo, Harold Fletcher, tivesse passado os segredos de Bletchey ao serviço de informações nazi dirigido pelo temível Kurt Janhke. Dever-se-ia negar a Randolph Churchill a permissão de fazer a sua lua-de-mel em Paris, em Outubro de 1939? Qual era a gravidade das infiltrações no Gabinete de Operações Especiais? Podiam confiar-se ao FBI as mensagens interceptadas à Abwher que revelavam a existência de uma rede de espionagem em Nova Iorque? Iria um júri condenar um fabricante de aviões corrupto?

             Os Diários estão cheios destas preciosidades, e entre elas estão alguns incidentes bastante curiosos. Em Setembro de 1939, Wolfgang zu Putlitz, o principal agente duplo do MI5 dentro da Embaixada alemã em Haia, que tinha desertado para Londres, foi apontado num cinema por um cidadão, tomado por um nazi e preso pela polícia. Um mês mais tarde, o instituto Government Code & Cypher School recusou a entrada na Grã-Bretanha de um grupo de nove criptógrafos polacos que reclamavam ter descoberto o código Enigma. Os polacos foram obrigados a permanecer em França e o Enigma continuou inviolável por mais um ano, até ser finalmente quebrado com a ajuda dos mesmos homens. Um general do Exército Britânico propôs que se destruísse a economia alemã inundando-a com moeda falsa. A princesa Stephanie von Hohenlöhe, uma amiga chegada de Hitler, e conselheira contratada pelo proprietário do Daily Mail, Lorde Rothermere, foi impedida de deixar a Grã-Bretanha para se ir juntar ao seu amante nazi que tinha ido para os Estados Unidos.

             Em Janeiro de 1940, o MI5 negociou directamente com Lorde Oswald Mosley e a União Fascista Britânica. Em Março, o Lorde Rothshild, um proeminente aristocrata judeu que em breve se juntaria ao MI5 como especialista em sabotagem, advogou o extermínio da raça alemã. Entre outros quadros interessantes, está o conselho que Churchill deu aos franceses em maio de 1940, sobre como travar os tanques inimigos: «Atirem sobre os condutores quando saírem dos carros para se irem aliviar». As observações de Liddell sobre Churchill são admiráveis. Em maio de 1940, num encontro controverso com o líder da oposição trabalhista Clement Atlee, Liddell revelou que o governo de Churchill tinha ignorado as recomendações de rigidez que o MI5 tinha feito a respeito da política de acolhimento de estrangeiros. Quatro meses mais tarde Churchill pôs em causa as relações do MI5 com os agentes duplos alemães exigindo que todos os espiões alemães fossem fuzilados.

             As entradas dos Diários de Liddell estão também cheias de grosseiras inconfidências, tais como a descrição de uma conversa, em Agosto de 1940, entre o ministro da produção aeronáutica, Lorde Beaverbrook e Lorde Rothschild, que se zangaram por causa da entrega a firmas de judeus para contratos de produção de aviões. No fim da conversa, exasperado pela intransigência do seu parceiro de governo, Beaverbrook acusou o judeu Rothschild de anti-semitismo.

             Em Setembro de 1940, no auge da preocupação com a possibilidade de uma invasão alemã, o presidente irlandês, Eamon de Valera, considerou abandonar a neutralidade da República para se juntar aos Aliados. Um jornalista foi enviado em missão de confiança a Dublin, para avaliar das suas intenções. Mais tarde, em Janeiro de 1941, o MI5 propôs a operação Blue Boot, um plano para convencer os alemães de que os soldados britânicos iam pintar as botas do pé esquerdo de azul para se identificarem melhor uns aos outros. Esperava-se que os alemães engolissem a história e que quaisquer tropas invasoras que se disfarçassem com fardas britânicas se denunciassem pelas botas azuis que trouxessem!

             Entre os episódios mais extravagantes conta-se o pânico que houve quando um oficial da Força Expedicionária Britânica, o Coronel Gribble, que tinha servido em França em 1940, publicou o seu The Diary of a Staff Officer (Diário de um Oficial de Carreira) (34). O livro, que fazia uma análise do colapso francês, revelou imprudentemente a intercepção secreta de comunicações da Luftwaffe pelos britânicos. O MI5 teve de aplicar-se para encontrar e destruir todas as cópias que foram distribuídas. Noutro incidente, no verão de 1941, um batalhão de soldados polacos, na Escócia, persuadiu um oficial do exército britânico, Alfgar Hesketh-Pritchard, a ajudá-los a assassinarem Rudolf Hess antes que ele pudesse completar a sua missão de negociar uma paz separada com os Aliados. Os polacos acreditavam que estavam prestes a ser traídos, por isso planearam matar o representante do Fuhrer. O atentado foi frustrado no último momento pelo MI5, justamente quando Hesketh-Pritchard conduzia os seus soldados para um comboio, a caminho da prisão secreta de Hess em Aldershot.

    binoculars, see, watch

             Porque os Diários variam entre o mais trivial e as descrições de momentos determinantes, a humanidade genuína do autor emerge claramente. Num momento está a transcrever um extracto de um relatório do Comité Conjunto de Informações sobre a evolução da frente russa, e no momento seguinte está a contar uma história divertida de uma conversa interceptada entre o embaixador turco em Londres e a sua amante inglesa.

             Em termos de novas informações trazidas pelos Diários, ficamos a saber de novos nomes de desertores, tais como Colombine Harlequin. E quem iria imaginar que a embaixada britânica em Ankara tinha não só sido penetrada por um famoso espião do SD, com o nome de código Cicero, como os alemães tinham também o motorista do embaixador na sua folha de pagamentos? Estas são as histórias que foram abafadas durante décadas. Para aqueles que buscam lições para o presente, vale a pena notar que em Setembro de 1944 os planos para a ocupação aliada do III Reich estavam bastante avançados, e que a Comissão de Controlo para a Alemanha já tinha escolhido os lugares e o pessoal para a sua tarefa, nove meses antes da rendição final dos nazis.

             Do ponto de vista da contra-informação, os Diários de Liddell representam o olhar mais completo sobre as operações dos Aliados desde a publicação de Double Cross System (O Sistema das Traições), por Masterman, em 1972. Embora aquela publicação tenha revelado a extensão das operações do MI5 com agentes duplos, e tenha sido em parte complementada pela publicação quase simultânea de Game of the Foxes (Jogo das Raposas) de Ladislas Farago (35), era difícil ver essas histórias no seu contexto, porque Masterman se restringiu ao trabalho da B1(a), a secção de contra-espionagem alemã, e excluiu as redes paralelas mantidas no continente pelo MI6. Masterman também foi obrigado, por insistência governamental, a omitir as referências ao programa Ultra. No caso de Farago, o autor não dependeu de fontes dos Aliados, mas de registos capturados à Abwher, os quais tinham sido compilados numa altura em que a manipulação por parte dos Aliados dos chamados canais de «meios especiais» estava no seu auge. A este respeito, o relato de Liddell abrange o impacto das actividades do rival MI6 nos países neutrais, o papel crucial da recolha de inteligência para verificar a reputação de certos agentes aos olhos do inimigo, e a importância dos interrogadores do Campo 020. O que é exclusivo do seu texto, graças ao seu ponto de vista privilegiado, é que Liddell liga todos estas diferentes áreas para construir uma perspectiva inteira dos vários ramos da contra-espionagem no seu combate contra o Eixo. Muitas dessas dimensões estão disponíveis noutros lugares separadamente, mas só os Diários as reúnem, de tal modo que os laços entre a revista a um mercador da Trinidad pelo Controlo de Contrabando, ou um caso de Censura Imperial em Bermuda, uma mensagem de código inimiga interceptada, ou uma indiscrição num bar de Lisboa podem todos ser tomados como linhas da mesma investigação.

             Inevitavelmente, como na maior parte das histórias de espionagem, há-de haver muitas pontas soltas, e os Diários de Guy Liddell são capazes de ter mais do que uma boa conta, já que o documento nunca foi pensado para publicação, ou sequer para ser lido por estranhos. Portanto, quem melhor do que o autor deste livro sobre o papel de Lisboa na Grande Guerra para resolver os mistérios que ainda sobram? Como um persistente e tenaz investigador, a sua reputação estende-se para lá das fronteiras de Portugal, e ao longo dos anos os nossos caminhos têm-se cruzado, quando perseguíamos controvérsias e enigmas de mútuo interesse. Agora, a nossa colaboração estende-se a uma das áreas mais fascinantes, e ao mesmo tempo lodosas de toda a Segunda Guerra Mundial.

    Nigel West

    Historiador


    (a)

    Abwehr era o nome corrente da organização de informações militares alemãs, de nome completo Amt Ausland/Abwehr im Oberkommando der Wehrmacht”. (Nota do Tradutor.)

    (b)

    Estes relatórios, conhecidos só pela sua sigla, devem o nome à secção de criptólogos  que trabalhou em Bletchley Park sob o comando de Oliver Strachey, conhecida como Serviços Ilícitos (ou de Inteligência) Oliver Strachey (Illicit (IntelligenceServices Strachey). (Nota do Tradutor.)

    (c)

    O SD, ou Sicherheitsdienst, nasceu do primeiro serviço de informações nazi, coordenado directamente por Himmler, que o converteu em serviço de informações das SS e designou para comandante Reinhard Heydrich. No policiamento secreto alemão, o SD era a agência de informações, sendo a Gestapo o braço policial e executivo. (Nota do Tradutor.)


    NOTAS

    1       Nubar Gulbenkian, Pantelaria (London: Hutchinson, 1965)

    2       J,C, Masterman, The Double Cross System of the War of 1939-45 (New Haven, CT: Yale University Press, 1974); The Case of the Four Friends (Oxford University Press, 1954)

    3       Donald Darling, Secret Sunday (London: William Kimber, 1975)

    4       Jack Beevor, SOE Reflections (London: Bodley Head, 1982)

    5       Philip Johns, Within Two Cloaks (London: William Kimber, 1979)

    6       Michael Smith, Foley (London: Hodder & Stoughton, 1999)

    7       Dusko Popov, SpyCounterSpy (London: Weidenfeld & Nicolson, 1975)

    8       Juan Pujol, GARBO: The Greatest Double Agent of World War II (London: Weidenfeld & Nicolson, 1985)

    9       Roger Hesketh, Operation FORTITUDE (London: St Ermin’s Press, 1998)

    10     Camp 020: MI5 and the Nazi Spies, Robin Stephens (London: Public Record Office, 2000)

    11     The Guy Liddell Diaries Vol. I, 1939 –42; Vol. II, 1942-45 (London: Routledge, 2005)

    12      Spycatcher, Peter Wright (New York: Viking 1986).

    13     TRIPLEX (London: Yale University Press, 2008)

    14     The Greatest Treason, Richard Deacon (London: Century Hutchinson, 1989)

    15     Master of Deception, David Mure (London: William Kimber, 1980)

    16     Mask of Deception, John Costello (London: Collins, 1989)

    17     Their Trade is Treachery, Chapman Pincher (London: Sidgwick & Jackson, 1981)

    18     Inside the KGB, Oleg Gordievsky and Christopher Andrew (London: Hodder & Stoughton, 1990)

    19     The Mitrokhin Archive, Vasili Mitrokhin and Christopher Andrew (New York: Basic Books, 1999)

    20     British Intelligence in World War II, Harry Hinsley (London: HMSO, 1979)

    21     The British Security Service 1908-45: The Official History, Jack Curry (Public Record Office, 1999)

    22     War Diaries 1939-45, Sir Alan Brooke (London: Weidenfeld & Nicolson, 2001)

    23     Secret Service Rendered, Lily Sergueiev (London: William Kimber, 1966)

    24     John Moe: Double Agent, Jan Moe (Edinburgh: Mainstream, 1986)

    25     SpyCounterspy by Dusko Popov (London: Weidenfeld & Nicolson, 1974)

    26     The Real Eddie Chapman Story, Eddie Chapman (London: Library 33, 1966)

    27     Crime Cargo, Max Knight (London: Phillip Allan, 1934)

    28     The Double Agent, John Bingham (London: Victor Gollancz, 1966)

    29     The Skin Trap, William Younger (London: Eyre & Spottiswood, 1957)

    30     115 Park Street, Gerald Glover (London: Privately, 1982)

    31     Changing Perspectives in British Foreign Policy, Kenneth Younger (Oxford University Press, 1984)

    32     The Way to Minack, Derek Tangye (London: Michael Joseph, 1978)

    33     One Girl’s War by Joan Miller (Eire: Brandon Books, 1986)

    34     A Staff Officer’s Diary, Philip Gribble (London: Hutchinson, 1940)

    35     The Game of the Foxes, Ladislas Farago (New York: McKay, 1972)


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  • Ruanda: uma viagem ao inferno dos campos da morte

    Ruanda: uma viagem ao inferno dos campos da morte


    Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo no Ruanda, ao serviço da RTP, publicada originalmente no DIÁRIO DE NOTÍCIAS em 28 de Maio de 1994.


    Mais uma emboscada…
    (Foto: Imagem RTP)

    «Está doido? Nós estamos todos a fugir deste inferno. Porque é que você quer entrar nele?» 

    Meditei na pergunta e depois disse ao homem para seguir em frente.

    Voltava a haver confrontos políticos e étnicos no Ruanda. Tudo indicava que a antiga Suíça de África se tinha tornado noutro «campo de morte», depois de o avião do Presidente Juvenal Habyarimana ser atingido, em 6 de Abril, por dois rockets e se ter despenhado, no jardim da sua residência, à vista dos familiares que o esperavam, a poucos metros da pista do Aeroporto Grégoire Kayibanda, em Kigali. A Guarda Presidencial negou a autoria do atentado.

    Nós acabávamos de chegar ao aeroporto de Kigali num voo especial C-130, a partir de Nairobi, com os boinas-vermelhas e verdes belgas. Era tarde. Estávamos todos cansados.

    Depois, da parte de trás do edifício, veio o barulho do fogo de metralhadora.

    Mais de 50 crianças negras chegaram em camiões, carrinhas e jipes. Todos eles eram órfãos abandonados. Muitos deles estavam feridos, incapacitados, perdidos noutra guerra esquecida que não compreendiam. E eu?

    Os militares não tinham aviões que chegassem para levar todos os miúdos negros e os civis europeus deixados em Kigali.

    Quando o C-130 descolou, uma figura notável fez a sua aparição no solo: um homem lendo um livro, encostado à parede. A luz vinha de um cubo para acender latas de ração de combate.

    «Porque é que não dormimos todos uma boa noite?», propôs-me o comandante. Eu não consegui.

    «Qual é exactamente a situação, comandante?», perguntei. Demos uma volta por ali. As tropas do FAR, o exército do Ruanda, estavam no interior do aeroporto e em Kigali. Os guerrilheiros da Frente Patriótica do Ruanda (FPR) não estavam longe. Podíamos ouvi-los falar. Estavam ali, na estrada. E também na cidade. Os guerrilheiros estavam a ganhar a guerra.

    O fogo continuou, interrompido apenas pelos gritos ocasionais das crianças feridas.

    No hall do aeroporto, nessa noite, a conversa não era sobre o que os dois lados e as tropas da ONU podiam ou deviam fazer mas se haveria uma operação para cobrir.

    «Receio que vá haver outra guerra no Burundi…», disse o meu amigo Alfonso Armada, do El País. Não tenho a certeza que ele estivesse errado. O Burundi é quase como o Ruanda. Os mesmos grupos étnicos, as mesmas tensões, as mesmas chacinas. «Mais uma semana, mais 300 chacinados no Burundi (…) Até agora mais de 100.000 pessoas perderam vida, principalmente em confrontos étnicos, desde que o exército assassinou o Presidente Melchior Ndadaye, em Outubro», escrevia o The Economist, uma semana antes de o novo presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, morrer em Kigali. Ele vinha no avião do Presidente do Ruanda. Ntaryamira tinha sido impotente para travar «os confrontos étnicos com origem nas antigas hostilidades entre os Hutus, um povo de agricultores que constitui 85% da população, e os Tutsis, inicialmente virados para a pastorícia, ao Norte, que dominaram os Hutus num sistema quase feudal.»

    O coronel belga falou à Imprensa sobre a operação da manhã seguinte para salvar alguns padres e freiras perdidos no país. Era uma missão arriscada. O outro problema era que apenas 12 jornalistas podiam ir. Nós éramos 23 e todos queríamos estar presentes.

    Gerou-se entre nós uma batalha psicológica. Alguns lançaram mão da sua experiência. Não resultou. Não conseguimos chegar a acordo entre nós. O coronel decidiu, finalmente:

    «Isto é uma operação belga. É para os media belgas. A Imprensa estrangeira não tem nada a dizer», acrescentou o coronel depois de eu lhe lembrar que a televisão precisava de mais pessoal.

    Jornalistas da imprensa escrita decidiram tirar de um chapéu o nome afortunado dos quatro que podiam ir. Um, dois, três… Alfonso Armada foi o número 3. Um jornalista belga disse: «Nada de estrangeiros!» Alfonso já não pôde ir. Simone Reumon (canal RTBF, Bélgica) disse-me que ia. Eu não ia, mas ela deixava-me utilizar as suas imagens. O Ruanda era uma história da Bélgica… só para a imprensa belga. Nunca esquecerei o o seu estranho sentido de justiça e a sua peculiar definição de jornalismo com bandeira.

    Passei a noite a vaguear pelo aeroporto depois de ajudar Alfonso a enviar um texto para Madrid. Estava triste. Trabalho para a televisão (RTP). Tinha uma história (os órfãos), mas não tinha satélite para a transmitir, nem telefone para a contar, ninguém no Quénia para me ajudar, nada de nada. Nem mesmo uma cerveja…

    O Aeroporto de Kigali está cercado. A cidade está a ferro e fogo. E eu estou… apeado.
    (Foto: Imagem RTP)

    O grupo deixou o aeroporto de Kigali às 06:00 da manhã. Eu, fiquei. Christian Maton, o meu cameraman belga, desejou-lhes «boa viagem».

    O resto da manhã passou sem que nada acontecesse. Os soldados estavam lá. Eu estava lá.

    É conhecida a capacidade dos militares para distorcer a realidade (e, por vezes, a nossa maleabilidade para a aceitar), mas no Ruanda não foi preciso. Há poucas excepções…

    Os aviões C-5 norte-americanos transportavam soldados estrangeiros (e alguns jornalistas, incluindo eu) e equipamento militar de Bruxelas para Nairobi. Era uma «missão de treino», disse-me um sargento da Força Aérea, natural da Califórnia. Em voz baixa retorqui com um «obrigado» mastigado. Começava a sentir-me apreensivo com os americanos a participarem nessa guerra. Os estrategistas de guerra belgas franceses destacados para o Gabinete de Imprensa, em Kigali, não manipularam todos os jornalistas todo o tempo. Não era necessário. Pregaram um susto de morte a dois jornalistas flamengos. Eles abandonaram Kigali na mesma noite no primeiro voo para Nairobi ou Bujumbura. Esta guerra não era interessante nem sexy para os europeus. De facto, não era a guerra deles. Eles não estavam aqui para lutar (mesmo se o uso de mísseis não foi posto de parte), mas para evacuar os civis europeus juntamente com algumas autoridades locais influentes — e os órfãos. Humanité oblige…

    «Negros contra negros… a selvajaria continua, eles não mudaram, é só isso…», disseram-me em privado, que o mesmo funcionário europeu dos «serviços de informações» classificaria os «negros bons para o lado da França e os maus rapazes para o da Bélgica». Ambos os países estão activos na região.

    Motivos de ordem política e económica são uma das explicações…

    As tropas da ONU ficariam no Ruanda para «manter uma presença das Nações Unidas». A ausência de qualquer tentativa da ONU para travar a guerra (para defender princípios e salvaguardar a sua credibilidade) era mais do que evidente. Kigali é muito menos importante que Sarajevo, Gorazde e outras.

    Devido ao tiroteio em grande escala, às chacinas e à atenção que a Imprensa lhes estava a dar (tentando pôr o Ruanda no mapa das notícias internacionais), o apoio entusiástico dos militares começava a diminuir.

    Antes do meio-dia, vi uma caravana de jipes e camiões. Era a última. Havia outras três pessoas para retirar da Baixa de Kigali. Eu não tinha nada a perder…

    «Se tiver carro, eu aceito-o na coluna!», disse o oficial. Pensei que ele estava a brincar. Kigali era então o pior lugar do Ruanda. Não éramos compatriotas, é verdade…

    Mas o boina-vermelha belga falava muito a sério. Todos os soldados estavam equipados com espingardas automáticas FNC e coletes à prova de bala. Alguns jipes e camiões eram blindados. E eu nem sequer tinha um carro…

    Devo ter parecido completamente estarrecido.

    «Vem? Tem medo da morte?», indagou.

    Eu respondi: «Tenho, mas dê-me cinco minutos… para descobrir um carro.»

    Vi uma velha carrinha abandonada no parque de estacionamento. Abri a porta.

    Uns minutos mais tarde, liguei a ignição — como um ladrão da cidade. A bateria estava descarregada. Alguns dos 10 jornalistas excluídos incitavam-me ao crime.

    Tentei outro carro — um jipe Mitsubishi novinho em folha. O sistema é o mesmo: dois fios mais um — e resultou. A estranha procissão pôs-se a caminho. Dei boleia a outros seis jornalistas.

    Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) sorriu. A caravana arrancou lentamente até a estrada chegar à fronteira entre os dois lados do conflito.

    A caminho da capital…
    (Foto: Imagem RTP)

    Os fotógrafos freelance tiraram fotografias dos corpos rígidos na estrada. Uma jovem ficou com a cabeça feita em bocados por uma catana. As pernas de um homem foram comidas pelos cães depois de ele ser abatido. É culpado de ter nascido no grupo étnico errado e de ter recusado o extremismo.

    Nos arredores de Kigali e em todo o país havia uma atmosfera de pânico e desespero. Dezenas de milhares de ruandeses e seis ou sete civis europeus foram assassinados. Dez boinas-azuis belgas da ONU morreram porque receberam ordens dos seus superiores para se renderem. Os seus inimigos arrancaram-lhe os olhos, cortaram-lhes os pénis, cortaram-lhes os tendões, abateram-nos — com 10 balas cada. Eles…

    As tropas leais ao Governo (sic) estavam a ser denunciadas como carniceiros ou assassinos. Não estou certo que fossem os únicos…

    «Não desperdiçámos este dia!», disse Vincent Dudant, freelance, agora um bom amigo.

    Alguém disse: «Não é o máximo?» Eu ia a guiar o jipe. Daí a pouco, sem aviso, parecia que estávamos no inferno. Encontrávamo-nos no meio de um combate. Era uma emboscada. As tropas belgas não são bem-vindas no Ruanda. Agachei-me atrás do volante. Ouvia-se os disparos das AK-47 muito próximos. A caravana parou. Ouvia o pau-pau-pau das metralhadoras, o zumbido das balas atrás das árvores. Preferia isso aos morteiros…

    Durante um momento longo e de estupefacção fiquei imóvel. Os boinas-vermelhas responderam. Eu disse a Christian para filmar: «Usa toda a fita  que queiras, mon petit

    Um guerrilheiro da FPR.
    (Foto: Imagem RTP)

    Ao que parece, o que estava a acontecer era que as tropas leais ao Hutus estavam a apresentar o cartão-de-visita a um comando europeu, à FPR ou aos civis que estavam na zona. Foram 15 minutos ruidosos…

    Deixámos o lugar com alguns buracos nos carros e uma história para contar. A capital do Ruanda estava dividida… Foi-nos dito por um guerrilheiro da FPR furioso. Eles levaram com fogo «amigo» dos boinas-vermelhas. Um jipe abandonou a coluna, mas nós encontrámos na capital o embaixador do Egipto.

    A caminho do sítio onde os dois civis belgas deviam estar, vimos mais corpos, um jovem ferido a pedir ajuda. Eu não disse palavra. Ia a conduzir… O seu único conforto antes de morrer: duas fotos. A preto-e-branco. Pensei no que Bill Kovach ou Bob Phelps fariam na minha situação.

    A segunda viagem a Kigali correu bem — depois de uma rápida paragem junto ao Hotel Méridien, ocupado pela Missão da Paz das Nações Unidas. Houve outra explosão de um morteiro frente ao edifício. Os outros civis não vieram connosco.

    O campo era verdejante e luxuriante. A África é tão bela. A chuva tinha parado há muito, mas ainda se sentia o cheiro da terra — as cores ocre magníficas. O que faltava eram as pessoas — pessoas a caminhar como se faz por toda a parte nesse continente —, pessoas a dançar, a rir ou simplesmente a trabalhar ou a dormir.

    À frente da coluna encontrámos o oficial que mandava. O seu carro tinha sido atingido por fogo emboscado a cerca de dois quilómetros. Havia outro problema. Tínhamos de regressar à base aérea da capital por outro caminho.

    800.000 mortos e 3.000.000 de refugiados em 100 dias…
    (Foto: Documento Diário de Notícias – ilustração do artigo)

    Uma vez no aeroporto, encontrei Alfonso. «Foi fascinante, mas muito triste», disse-me em português. Nessa manhã, ele encontrara alguns amigos italianos da ONU e foi com eles até Musha.

    Conclusão: ele conseguiu um furo jornalístico. Uma aldeia inteira — 1.180 homens, mulheres e crianças — foi dizimada porque era Tutsi.

    O episódio deu manchetes. Eu também fiz uma entrevista com o padre de Musha. Num camião.

    «Eram 06:30. Eles começaram a matar toda a gente com granadas de mão, armas automáticas e catanas, dentro e fora da igreja. No dia seguinte, fui à minha igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: — Padre, Padre, Padre. Que podia eu fazer?», explicou-me o padre Litric Danko antes de defender que a única coisa que eles precisam no Ruanda é de uma ditadura.

    Perguntei-lhe de onde vinha. «Serbia. Serbia.», replicou.

    Deixei Kigali umas horas mais tarde. Fiz duas histórias sobre o Ruanda. Eu não tinha muito e o Ruanda já não era uma prioridade. Pelo menos até ser história na CNN.

    O problema, agora, é a minha próxima missão em África. Aposto que vai ser algo sobre a região dos grandes lagos como o Burundi. B-U-R-…

    Esta crónica não é inocente. Como Olivier Todd disse, «não se podem reduzir os factos a palavras.»

    Um genocídio com pré-aviso…
    (Foto: Imagem RTP)

    COMPLEMENTO DE INFORMAÇÃO – 2024

    O Ruanda foi o pior teatro de operações onde estive até hoje. Foi muito pior do que Timor, Zaire, Bósnia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, etc.

    Em menos de 100 dias, a guerra no Ruanda provocou a morte de 800.000 pessoas e 3.000.000 de feridos e refugiados.

    Estive no Ruanda logo nos primeiros dias do genocídio. Éramos 23 repórteres. Era o único português. Não havia CNN, BBC, ABC, TF1, etc.

    Em Kigali, pedi uma arma para matar. Eu cá me entendo: com granadas defensivas atiradas para dentro de igrejas pejadas de mulheres, velhos e crianças e com bebés esventrados à catanada (sem falar das violações e dos roubos) optei por ser homem antes de ser pianista de lupanar (não digam pf aos meus pais que eu sou jornalista para eles não ficarem decepcionados, segundo a fórmula consagrada e assaz pouco original)…

    Não cheguei a matar, mas era mais do que tempo de abalar dali. Confesso que tive pesadelos durante 18 longos anos por causa daquele maldito inferno. Ninguém passa impunemente pelas guerras. Nem os soldados, nem os civis, nem sequer os jornaleiros. Um dia, os meus pesadelos desapareceram. Definitivamente.

    No Ruanda, arranjei aquele que é, passados 30 anos, um dos meus melhores amigos de sempre. O grande repórter (El PaísABC, fundador e actual director do FronteraD, etc.), poeta e escritor galego Alfonso Armada.

    Fui para o Ruanda porque o embaixador do Burundi na Bélgica era meu vizinho e amigo. Ele alertou-me para o genocídio que estava em preparação com (mais uma vez) a passividade cúmplice da ONU.

    Na ausência de notícias das agências internacionais (instituições obviamente mais credíveis do que os correspondentes da casa!), a RTP só me deixou avançar para Kigali na condição de eu não gastar dinheiro.

    Eu confiava na minha fonte. E sou poupado…

    Primeiro, arranjei em Bruxelas boleia para África: um voo militar dos EUA para Nairobi.

    Já tinha um pé no continente.

    Depois, na placa do aeroporto da capital do Quénia, tive a sorte de um C-130 militar belga me levar (juntamente com uns poucos jornalistas como o Alfonso Armada) para Kigali. Éramos só 23. 

    Em Kigali, pernoitámos no aeroporto cercado. Dormimos no chão. Devorámos as melhores rações de combate que… não são, decididamente, as portuguesas.

    Parte da história do Ruanda continua por contar.

    Para saber mais, proponho três documentos:

    – J’ai serré la main du diable – La faillite humaine au Rwanda.

    General Roméo Dallaire, 2004

    – La France, le Rwanda et le génocide des Tutsi  – Commission de Recherche sur les archives françaises relatives au Rwanda et au génocide des Tutsi.

    (Rapport remis au Président de la République le 26 mars 2021)

    Editor : Armand Colin (NOTA: Também está disponível na internet em pdf e é grátis.)

     – Rwanda 1994  et l’échec des Nations Unies – Toute la vérité.

    Amadou Deme, 2011

    Lisboa – Julho 2024


    Reportagem do jornalista Rui Araújo ao serviço da RTP, originalmente publicada no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Lisboa – 28 de Maio de 1994


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