Em Gelo sob os seus pés, a sueca Camilla Grebe, propõe aos leitores uma viagem pelos mistérios do crime psicológico, distribuída por três personagens que estão destinadas à colisão. Vencedora do Glass Key Award, para Melhor Policial Nórdico e também por Melhor Policial Sueco do Ano, o romance tornou-se um best seller em diversos países europeus. Actualmente a viver em Cascais, o PÁGINA UM conversou com esta escandinava de 54 anos sobre o seu percurso literário, o género policial e a sua vinda para Portugal.
Como é que uma economista acaba a escrever romances policiais?
Sempre tive um interesse em arte e na criatividade, e por isso fui para uma escola de Arte a seguir ao curso de Economia, para tentar pintura, mas cedo percebi que não ia conseguir viver disso. Fui depois trabalhar para uma editora, onde conheci muitos autores e após ter lido alguns manuscritos, entendi que preferia estar do lado criativo em vez de ficar na parte de gestão.
Mas começou por escrever romances a quatro mãos, com a sua irmã. Como foi essa partilha?
Foi tudo um pouco orgânico. Eu escrevi um primeiro capítulo, e ela o seguinte; e depois eu outra vez. A dada altura encontrávamo-nos e discutíamos a continuação da história. E, para nossa surpresa, o nosso primeiro livro [Någon sorts frid, em 2009] foi publicado [risos]. Devido a esse sucesso, tivemos que ser mais estruturadas e nos livros seguintes precisámos de concordar no enredo e personagens logo de início.
Quais as maiores diferenças face à escrita individual?
Há aspectos positivos e negativos. Quando escreves com alguém, tens um amigo com quem podes falar sobre ideias, resolver problemas e apoiam-se mutuamente. E também se aplicas se precisas de fazer algum marketing ou ir em viagens promocionais. Por outro lado, pode haver complicações quando as ideias não coincidem, tanto no enredo como também no processo da escrita, no tempo que se dedica ao desenvolvimento da história. Eu descobri que sozinha, o meu tempo era mais produtivo e o processo de escrita mais rápido. De alguma forma, é mais eficiente, e sou eu que tomo todas as decisões.
O seu percurso literário centra-se em policiais. O que mais a fascina neste género?
Comecei a ler este tipo de livros muito cedo, ainda com sete ou oito anos, e logo nas primeiras páginas fiquei apaixonada. Mas para mim, este é um género onde podemos fazer o que quisermos. Há um contrato com os leitores: é suposto haver um mistério e, em certa altura, temos de os surpreender. Isto é obvio, mas, de resto, podemos fazer da história o que for; pode ser uma história de amor, podemos falar de problemas sociais, política, ou imprimir uma linguagem poética. Na minha opinião há poucas limitações.
Qual foi a inspiração do romance que lançou agora em Portugal, Gelo sob os seus pés?
Para mim, é muito difícil falar sobre este livro, teria de abordar o twist, o que seria decepcionante, mas eu gosto muito de crimes psicológicos. Posso dizer que este romance foi escrito para surpreender o leitor, esse foi o meu objectivo.
Em todo o caso, em relação às personagens, como foi o processo de desenvolvimento que escolheu?
De uma forma geral, eu sabia já, desde o princípio, quem seriam, mas houve também um crescimento orgânico ao longo do manuscrito. Eu gosto que as minhas personagens sejam de carne e osso, que sejam imperfeitas, tenham falhas e problemas. O caso de Hanna é um pouco assim: ela tem demência, que é uma doença horrível, mas interessante no contexto livro, porque se ela não pode confiar nela mesma, em quem poderá confiar? Essa dramatização pareceu-me muito interessante.
O romance aborda temas como o arrependimento, a saúde mental, a inevitabilidade da morte. São temas de circunstância ou foram escolhidos com um propósito?
São temas que fazem parte da condição humana. As questões eternas de vida, morte, amor, e por isso são importantes para mim, também porque são muito existenciais e acho isso muito interessante.
Publicado originalmente em 2017, O gelo sob os seus pés foi editado em português em Abril passado.
As protagonistas femininas passam por mudanças e transformações ao longo do romance. Considera que estas mudanças reflectem a evolução feminista na sociedade?
Talvez a Hanna, sim. Ela é a personagem mais velha, e a geração dela era muito diferente. E embora ela tenha educação, na verdade ela pertence a um tempo em que o lugar da mulher era diferente. Por isso, apesar da sua doença, ela quer sair da relação abusiva onde se encontra.
Este romance mostra-se bastante visual, havendo muitos pormenores mencionados como as roupas, as rugas, os cheiros. Sei que vai ser adaptado para o cinema. Já estava a pensar nesta possibilidade quando o escreveu?
Não foi intencional, mas quando li o manuscrito apercebi-me que sim, que podia resultar, embora não fosse o meu objectivo.
A Suécia é um dos países mais seguros do Mundo. Como se explica que este género seja tão popular no seu país?
Eu penso que é pelo contraste. Na Suécia há muito de natureza, mais as casas vermelhas e todas estas características fazem-nos querer ler livros que reflectem os nossos medos, mas de uma forma segura. Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, pela morte e pelo medo, mas não queremos estar expostos a isso na vida real. Portanto, os livros e filmes permitem-nos reter um pouco disso.
Entretanto, vive em Portugal? O que a fez vir para cá?
Combinei com o meu marido que, quando os nossos filhos saíssem de casa, íamos mudar para o sul da Europa. O clima sueco é muito frio e, além disso, também muito escuro. Depois de algumas discussões, decidimos visitar Cascais. No princípio era por um ano, e depois íamos para Espanha, onde eu já tinha estado anteriormente, mas senti que os portugueses são mais parecidos com os escandinavos. Os espanhóis são muito latinos e os portugueses parecem-me mais reservados, tal como os suecos. E mesmo em temos de população, nós também somos 10 milhões. Um ano e meio após a chegada a Portugal, decidi que não ia para mais sítio nenhum. Isto é a minha casa e até vou para uma universidade aprender português.
Será possível que a sua inspiração para escrever policiais mude pelo facto de viver em Portugal?
Não está nos meus planos [risos]. Eu preciso do ambiente escandinavo para escrever os meus romances, do escuro, do frio, e é também isso que os meus leitores, espalhados pelo Mundo, esperam de mim. Talvez as minhas personagens possam fazer férias em Portugal [risos].
Em Lisboa: indo e vindo, a escritora Filomena Marona Beja junta, num estilo muito peculiar, a sua memória da capital portuguesa com a História e as estórias que, no conjunto, revelam verdadeiros tesouros de curiosidades. O pretexto da conversa com o PÁGINA UM era para ser uma breve conversa sobre o seu mais recente livro, editado pela Parsifal, mas acabou por resvalar para uma longa e agradável viagem de memórias e sentimentos por uma cidade que só pode ser aprendida e apreendida devagar, a pé, sempre a pé.
O seu nome, enquanto autora, tanto aparece numa versão curta – Filomena Beja – ou numa versão mais longa – Filomena Marona Beja. Com qual delas prefere assinar?
Na escrita, é sempre Filomena Marona Beja. Há uma coisa engraçada: eu sou escritora, fui documentalista de arquitectura escolar e escrevi muitas obras, e, no âmbito profissional, era sempre conhecida como Filomena Beja. Uma vez, a Biblioteca Nacional perguntou-me se ambos os nomes eram da mesma pessoa e eu disse que sim; então, estou na Biblioteca com os dois nomes.
Pelo que escreve, percebe-se que é pessoa atenta, com uma invulgar capacidade de absorver em pormenor o que a rodeia. Este livro tem, aliás, uma riqueza excepcional de sensações, que nos “aguça” os sentidos…
Eu acho que é o quanto gosto de Lisboa que está neste livro, e o facto de conhecer muito bem Lisboa.
Identifica-se então como uma lisboeta, uma alfacinha.
Mais alfacinha do que lisboeta. Sou lisboeta, porque nasci em Lisboa, e sou alfacinha, porque vivo essa cultura e porque a sinto.
E o que é ser alfacinha?
[risos] Olhe, é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz, é saber ir de um lado para o outro e é sentir-me lá bem. Ser alfacinha é, sobretudo, isto. É a comida, é o próprio falar. Eu sei que nós, os lisboetas, não damos por isso, mas temos uma pronúncia. Além de falarmos depressa, temos uma pronúncia própria. Abrimos um bocado os últimos “o”, e essas coisas assim, e usamos termos que são de Lisboa, porque Lisboa foi sempre um encontro de tudo e mais alguma coisa. Tanto do que veio de fora, que nos chegou nas caravelas que iam entrando no Tejo e nos mercadores que iam cá deixando as coisas; como no que depois, a determinada altura, quando eu era pequena, no fim da Segunda Guerra Mundial, as pessoas deixaram de ter, no campo, os mesmos meios de rendimento que tinham tido até aí, e começaram a vir trabalhar para as fábricas… foi um vir de longe para cá e essa mistura, o continuar a querer falar à maneira de Lisboa e a querer as coisas à maneira de Lisboa, isso é ser alfacinha, acho eu.
Mesmo correndo o risco de se tornar francesa… [risos]
Foram os franceses que me educaram, sim. Aprendi a escrever ao mesmo tempo nas duas línguas, mas isso foi outra história. Foi do lado do meu pai, que era tradutor na Companhia dos Caminhos de Ferro. Ele ajudou, durante a guerra, a resistência francesa, e chegavam-lhe refugiados, gente que vinha escondida nos comboios, que ele ia buscar a Santa Apolónia, e conseguia depois passar para Inglaterra. E, no fim, teve a roseta da Liberdade de França e convidaram-no a ir para à escola francesa. Na altura, ainda fiz a primeira e a segunda classe na École Française de Lisbonne, que ficava na Travessa do Forno do Tijolo. Entretanto, estava a ser construído o Liceu Francês, que ficou com o nome de Charles Lepierre, que era professor de química no Instituto Superior Técnico. E, quando eu fui para a terceira classe, inaugurámos o Liceu. Há sessenta anos. Aprendi com os franceses uma coisa muito importante: o que é a liberdade e que se é livre desde que se seja responsável. E nessa altura isso não se aprendia no ensino português. Foi essa a história [risos]. Também me ensinaram que quando falasse português, era português, e quando falasse francês, era francês. Portanto, eu não podia misturar as duas línguas nem as duas culturas.
De 1944 para 2022, Lisboa transformou-se. Já não é a mesma.
A essência está lá. Claro que não é a mesma Lisboa, e uma das razões é as “invasões” que tem sofrido [risos]. Primeiro, de pessoas estranhas à cidade que vieram para cá viver e agora é a invasão dos turistas. Desce-se a Rua Augusta e não se vê nenhuma das lojas antigas, só se vê casas de comida. Ah!
A maioria nem sequer apresenta comida portuguesa.
Sim! Nem sequer é comida portuguesa, são coisas esquisitíssimas. Já vi turistas a comerem sardinhas com um café com leite ao lado. Eu acho que não são turistas, são viajantes que vêm cá para ver e não para descobrir. Vêm para verificar que está e às vezes vêem mal. Vão ao Carmo, vêem umas ruínas mas não percebem porque é que aquilo está assim… Está lá a Guarda Nacional Republicana, eles olham para aquilo e não sabem muito bem o que é que aquele fulano está para ali a fazer de um lado para o outro… No chão está escrito o nome do Salgueiro Maia e eles sabem lá quem é que foi o Salgueiro Maia e o que é que aconteceu ali. E pronto, é isto. Isto não é viajar, não é conhecer. E é mau, é uma invasão e é estragar a nossa cidade.
Ao regressarem a casa levam consigo umas fotografias, mas não provaram a gastronomia portuguesa, não conheceram Lisboa…
Não sabem o que viram! Dizem que os turistas deixam cá dinheiro, mas às vezes nem deixam. Comeram aqui e ali, mas geralmente as coisas até vêm pagas. E depois, o que é isto do alojamento local, não é? As pessoas a serem empurradas para fora das casas para as casas serem transformadas em alojamento local. Também não é bom.
Escreveu até sobre os jacarandás, que são um marco de Lisboa, ao qual ninguém que viva na cidade fica indiferente…
Quando vejo os jacarandás, fico muito contente, porque continuam a florir todos no mesmo dia. É assim, porque vieram todos do mesmo sítio, foram plantados na mesma altura, deram a mesma flor, e isso acontece, está tudo a florir ao mesmo tempo. São um sinal de vida, da Natureza, da sintonia.
Este livro acaba por ser um convite para se viajar por Lisboa. Aliás, é uma autêntica viagem pela cidade…
[risos] Olha, que bom! É uma viagem por Lisboa, não deixando de ser uma viagem pela memória de Lisboa.
O que sente por Lisboa?
Sinto muito orgulho. Aliás, basta ver a cidade que ainda é. Tem resistido ao que lhe tem acontecido, justamente com estas “investidas” de gente que não sabe o que é Lisboa, como o alojamento local, o ter desaparecido as lojas para aparecerem os comedouros…
Como é que se poderia resolver essa situação?
Era voltar atrás, o que seria complicado. Seria outro “terramoto”, quem sabe. As evoluções são mesmo assim… há sítios que resistem melhor, e há sítios que resistem pior. Depende.
Junta às memórias de Lisboa as suas próprias memórias. Era impossível dizer o que aqui está dito se não as tivesse vivido, certo? Sentiu-se obrigada a deixar um registo daquilo que sentiu, viveu e aprendeu?
Foi um bocado isso, o gosto de escrever às vezes dá isso. Foi para deixar escrito, mas talvez até mais para mim mesma; é uma recordação, está apontado aquilo que eu vivi, aquilo que eu senti e aquilo que eu gosto. Até podia ter escrito mais coisas que não estão no livro e que eu assisti, e que podia ter dito.
Usa alguma ironia quando se refere aos membros do clero, como por exemplo ao Cardeal Cerejeira – o amigo de Salazar [risos]. Qual é a sua relação com a religião?
Nunca tive relação nenhuma [risos]. Fui sempre livre de escolher o que queria, e achei que a religião era algo que não fazia sentido. Em pequena, lembro-me de uma tia minha me tentar ensinar uma oração, e eu achava que aquilo não queria dizer nada. Nunca me obrigaram a ir à Igreja, e aí tive sorte porque os franceses não obrigavam ninguém a fazê-lo. Mas, pela lei portuguesa, era preciso que se ensinasse religião. Em França, não se dá aulas à quinta-feira à tarde, e é uma coisa que vem do tempo da Revolução Francesa, era uma maneira de terem um dia livre durante a semana, e não só o domingo. Mas cá, o dia livre era a quarta-feira porque era o tempo da Mocidade Portuguesa. Havia um grande anfiteatro no liceu francês, e à quarta-feira à tarde eles levavam lá um padre que vinha da igreja de São Luís dos Franceses, e ele enchia o quadro de uma conversa qualquer em latim. A porta ficava aberta, quem queria entrar assistia, e quem não queria, não ia; ninguém tinha nada a ver com isso. Fui lá uma vez ou duas para os ver a escrever em latim, e depois fui-me embora porque achei aquilo uma chatice de todo o tamanho. De resto, entrei nas igrejas que quis ver por razões de arquitectura e de arte. Eu e o meu marido não nos casámos pela Igreja, não baptizámos os filhos. Não sou anticlerical sequer: quem quer, quer; quem não quer, não quer, pronto. Não acredito na religião [risos].
O seu texto nasce de uma tensão entre a sua experiência particular e a História em geral. Qual é o sentido desse movimento? Ou seja, interessou-se primeiro pelos lugares, passando depois à investigação, ou leu primeiro sobre alguns lugares e monumentos, cruzando-se depois com estes?
Quando me encontro num lugar ou diante de um monumento, tenho logo curiosidade de saber como é que foram as coisas. Porque me interesso pela Arquitectura, porque me interesso pela Ciência, porque eu não sou uma literata, não sou da Faculdade de Letras. Sou da Faculdade de Ciências [risos]. E isso é uma coisa que me dá uma grande bagagem e uma forma diferente de olhar para as coisas.
Neste caso, porquê a opção pela crónica?
Foi a forma que encontrei para contar a História com verdade. Não foi inventar a verdade, como faço quando escrevo romances.
Em vez de lhe perguntar sobre qual é o público-alvo, gostava de saber qual é o perfil das pessoas que poderão sentir-se atraídas por esta obra…
Não escrevi o livro para atrair ninguém, nunca penso nisso. Eu sei que sou um bocado bicuda a escrever. Aquilo que fica contado é com um português certo e rigoroso, mas sou um bocado “bicuda”. Pelo que tenho percebido desde que o livro foi publicado, o que me chegou foi que qualquer pessoa que lê, percebe o que ali está e fica a gostar. De Lisboa, não do que está escrito [risos].
Os seus valores assentam nos três pilares: liberdade, igualdade, fraternidade?
Sim, sim, sobretudo a liberdade. É importante saber usá-la. Quando se é livre, é-se responsável pela liberdade que se tem.
Romance de estreia de Filomena Marona Beja em 1998, quando contava já 54 anos. Na última década intensificou a sua vida literária com mais de uma dezena de títulos.
Destaca aqui, mais uma vez, a palavra liberdade. Acha que vivemos tempos em que podemos gritar vitória, que somos livres, ou vivemos um fracasso da liberdade?
Sinto alguns sinais de fracasso, mas, mesmo na Europa, somos dos povos que melhor percebe o que é a liberdade. Porque quisemos, porque fomos submetidos durante muito tempo, tanto pelo Marquês de Pombal como pelos que vieram a seguir, e que deu mau resultado… E finalmente houve qualquer coisa que deu algum resultado, e foi bom, foi o que de melhor aconteceu.
Sebastião de Carvalho e Melo é um dos responsáveis pela cidade ser como é. Vê-o como tirano e opressor ou como um herói libertador?
É capaz de ter sido as duas coisas. Nesta altura ele era Sebastião José, ministro da guerra, não era ainda Conde de Oeiras, muito menos Marquês de Pombal ou primeiro-ministro. E teve que deitar a mão ao que aconteceu, e deitou bem, ou, no mínimo, o melhor que pôde. Ele tinha sido embaixador em Viena de Áustria e tinha trazido de lá muitas ideias. Por cá, já tinha as coisas mais ou menos preparadas. O plano de recuperação de Lisboa surge num instante, em poucos meses, e foi de certeza porque já estava preparado e pensado, por ele e pelos militares que trabalharam para ele e conseguiram reconstruir Lisboa. Ele, com a visão do que tinha visto lá fora, saiu o que saiu e saiu muito bem. Era um bocado ditador, pois era, mas já se sabe que há coisas que só à força é que se fazem [risos]. Como é que teria sido se não fosse à força? Tinha sido o que cada um quisesse, e não podia ser.
Numa viagem livre, as páginas do seu livro tanto nos levam aos históricos cafés de Lisboa como às paragens do metropolitano. E de repente, estamos no meio de uma lição que nos ensina os significados do girassol, da gaivota, ou da caravela simbolicamente escolhidas.
Foi a Maria Keil [risos]. Era uma senhora amorosa, pequenina, pintava… lembro-me muito bem dela, as últimas imagens que tenho dela foi na Expo 98. Ela era sempre muito bem recebida, davam-lhe o lugar nas filas, mas ela nunca queria passar à frente de ninguém. Com uma mochilinha às costas, viu tudo.
Para esta obra, investigou, por exemplo, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional?
De propósito para isto, não. Fiz muitas investigações, por várias razões profissionais e não só, e “apanhei” muita coisa, tomei nota, e sei muita coisa por isso. Tinha muito boa memória. Agora já não tenho a memória que tinha, e como estou com esta “bicharada”, fugiu-se-me muito. Mas muitas coisas ficaram, e voltam, e uma delas é como é que era Lisboa, onde ficavam os sítios. Sabia tudo isso, e era algo que me dizia muito. Por exemplo, as pessoas agora vão ao Hospital de São José entregar papéis e a sigla que lhes aparece é “O.S.”, e não sabem o que significa. É omnium sanctorum: era o nome do “Hospital de Todos os Santos”. Pronto, sei, aprendi.
A expressão “Lisboa é Portugal, o resto é paisagem” é justa?
Não, não, isso é conversa. O resto não é paisagem de maneira nenhuma. Há cidades que se impõem, como Coimbra, Beja, Évora. São cidades muito interessantes. Os Açores…
Mas como é que passamos a paixão pelo conhecimento às novas gerações?
Ou as pessoas vêem e são capazes de perceber o interesse que as coisas têm, ou então não há nada a fazer. Antes disto acontecer, eu fiz termas num sítio mesmo à beira do Rio Douro, no concelho de Resende, chamado Caldas de Aregos. Quando ali chegou o cônsul de Portugal vindo de Paris, porque ia tomar conta de uma casa que a mulher tinha herdado, não chamou à zona de Aregos, chamou-lhe Tormes. Tudo isto é Portugal.
Vou ler o que escreveu no seu livro, na página 69: “Rua António José Serrano, sobe-se, rua do Arco, rua Martim Vaz, anda-se por ali. Ouve-se a sirene de uma ambulância, de outra, outras”. Como é que estabeleceu o equilíbrio entre a história de Lisboa e a sua história pessoal? Por exemplo, os acontecimentos no Hospital de São José e a relação com o terramoto…
Pelas várias razões por que lá fui, e por que hoje ainda vou, seja por causa dos meus que trabalham lá, ou pela minha médica. E lembro-me de o Hospital de São José ter muito má fama e das pessoas serem muito mal atendidas, antes do 25 de Abril, claro, e depois, das coisas terem corrido bem e ter havido uma evolução extraordinária, e de ser um sítio de excelência para as urgências. Portanto conheço, sei o que era aquilo antes de ser o hospital, sei o que foi estarem lá os franceses. E, como eu disse, fui documentalista de arquitectura, e olho muito para os prédios e para os edifícios, é uma coisa que me diz muito. E é com muita pena que vejo que os portugueses sabem quem é que escreveu Os Lusíadas [Luís de Camões], mas ninguém sabe dizer quem foi o arquitecto da Torre de Belém [Francisco de Arruda]. Não é preciso saber ler para olhar para um edifício e para o admirar, e tudo é isso, é História. Gosto.
Assim sendo, e como excelente conhecedora de Lisboa, onde é que se pode tomar um bom café e a que horas?
[risos] A qualquer hora, e há bons sítios para se tomar café. Antes havia a Pastelaria Suíça, que deixou de existir, mas o Café Nicola por exemplo, tem bom café.
No livro apresenta-nos um leque de ofertas, desde o Vá-Vá, em Alvalade, ou a Brasileira, que ainda existem, mas será que aos poucos também não se vão descaracterizando?
Sim, claro. A Brasileira agora é o que se vê; e, no entanto, as coisas lá dentro ainda correm razoavelmente. Mas depois também há, às vezes, uma certa renovação. Muitas vezes parei na Brasileira e gostava de lá ir. Há um bom café, por exemplo, na Pastelaria Sacolinha [na Rua dos Douradores, na Baixa], um sítio onde se vendiam bordados da Ilha do Faial. Logo ao lado esquerdo há uma barbearia muito conhecida e antiga, e ao lado havia uma casa de bordados, que agora se tornou um café onde se bebe um óptimo café.
Ficou por dizer neste livro algo que gostaria de acrescentar?
Não sei, há tanta coisa que faltaria dizer. Muita coisa, muita. Sobre outros bairros, outros sítios. Toda a beira-Tejo, o que se vê no Castelo, no caminhar na Mouraria, o fazer a Avenida Infante D. Henrique. Saindo do Terreiro do Paço e passando por Santa Apolónia, e por aí fora. Tudo em Lisboa é muito apetecível de se dizer que queria estar lá. A Feira do Livro, por exemplo, não cheguei a descrever o que é. Eu lembro-me da Feira do Livro ser doze barraquinhas à roda do Rossio, e hoje já vai onde vai.
Cresceu na zona do Poço do Bispo e ali, mesmo ao lado, temos o Parque das Nações, que sofreu uma evolução brutal. Mas ainda temos ali Xabregas…
São os cais, é o facto de haver cais. De chegarem navios, do acostar, é o movimento ainda do rio.
Sim, mas, pelo que me apercebo pela leitura deste seu livro, não acha propriamente uma paisagem bonita aqueles contentores.
Desde 2015, Filomena Marona Beja publicou seis obras de ficção na Parsifal, entre romances, contos e crónicas.
Não era, não era uma coisa bonita. Como é que foi possível juntar-se aquilo tudo ali ao molho? Foram tirados e ainda bem. Depois foi arranjado, arquitectonicamente foi bem arranjado, aquela solução que o arquitecto Manuel Salgado arranjou de pôr os bancos às riscas, aquilo sim, ficou bem. Aquelas tágides [risos]!
E sobre as ciclovias? Para si descaracterizam a cidade ou são simplesmente uma mais-valia?
As ciclovias? Porque não?! E agora está tudo muito chateado, porque dizem que vão cortar o trânsito aos fins de semana na Avenida da Liberdade. Que cortem, e depois? Subir e descer aquilo a pé, não é bom? Pois, experimentem e vão ver se não gostam [risos]. As ciclovias são de certa maneira um resguardo. São úteis, desde que sejam cumpridas regras. Há espaço para tudo desde que haja bom-senso, respeito e inteligência prática.
É complicado passear por toda a cidade de bicicleta.
Pois é. Mas eu não acho que as ciclovias sejam más, porque no fundo é um bocado pôr o automóvel na ordem, é um bocado isso [risos].
No fim de cada capítulo deste seu livro, regista, na maior parte das vezes, Lisboa e Sintra como sendo o local onde os escreveu, e revela-se que, normalmente, demorou em cada um cerca de dois meses.
Às vezes, escrevo coisas e guardo. E, depois, daí por uns tempos, dou com os papéis e retomo a ideia, e dou-lhe a forma final. Antes de me aposentar, eu ia todos os dias a Lisboa, e depois de me aposentar passei a ir apenas várias vezes por semana. Por isso, claro que todos os capítulos têm um “pé” em Lisboa. E depois a escrita é aqui, em Sintra.
Tem já uma vasta obra, cerca de uma dezena e meia de romances e livros de contos e crónicas. Já tem outro em mente, presumo…
Sim. Em princípio, há já uma coisa preparada para o ano que vem, com novelas. Uma novela é diferente de um conto, e aprendi as diferenças com o Camilo Castelo Branco. Chamá-lo-ei As novelas ao vento, são umas tantas. Gosto muito de escrever contos, mas os editores gostam pouco de os publicar. Quando quero dar um presente a alguém, escrevo um conto e ofereço-o, no final do ano. Ponho o Natal de parte, sou muito crítica em relação ao Natal. Sei que Cristo existiu, e sei o que ele passou para defender aquilo em que acreditava. Não o vejo como um “homem-deus”, mas como uma figura histórica. Acho impensável que se festeje o seu nascimento apenas com consumismo. Portanto, para mim não há Natal, mas há outra coisa que se lhe sobrepõe: tudo o que nós temos de festas ligadas ao catolicismo aproximam-se das festas pagãs antigas, e neste caso é o Solstício de Inverno. E eu festejo o Solstício de Inverno oferecendo contos a toda a gente, pronto [risos]. Mas retomando a pergunta, tenho sim, uma série de novelas preparadas.
Ainda que goste muito de Lisboa, acaba por viver em Sintra.
Eu e o meu marido casámos em 1967. Na altura ele veio para aqui dar aulas para a secção do Liceu Passos Manuel. As casas em Sintra eram muito mais em conta; em Lisboa eram muito mais caras. Acabámos por comprar uma moradia e aqui vivemos há sessenta anos.
Imaginemos que depois de morrer, o paraíso, para si, era ficar sentada num cadeirão a observar Lisboa. Que recanto da cidade escolheria?
O Castelo é um sítio bom, mas há outros. Um sítio onde eu até tenho estado, e gosto de saborear, é em frente à igreja de São Cristóvão. Vem-se de baixo, sobe-se as Escadinhas de São Cristóvão até meio, à entrada para a clínica dos Empregados do Comércio, e há aquele larguinho… Ali, está-se muito bem.
Aos 63 anos, e com vasta experiência cinematográfica e televisiva, o italiano Nicola Vegro dá-nos uma visão diferente do santo que une Portugal e a Itália, Lisboa e Pádua: Santo António ou, para o mundo, Fernando de Bulhões. No romance António secreto: a força de um santo, e lançado agora em Portugal pela Paulinas Editora, conhecemos sobretudo o lado humano de alguém que não se coibiu até de lançar desbragadas críticas aos vícios da Igreja, como fez num seu escrito em Coimbra, em Junho de 1219: “Quantos são hoje os bispos que pregam a pobreza e, entretanto, são avarentos! Quantos são hoje os bispos que pregam a castidade e, entretanto, vivem na luxúria! Quantos são hoje os bispos que pregam o jejum e a abstinência e, entretanto, são glutões e gulosos. (…) Como anel de porco em focinho de porco, assim são os padres frouxos e bem ataviados; são como prostitutas que se entregam por dinheiro (…).” O PÁGINA UM esteve em conversa com Nicola Vegro durante a sua passagem por Lisboa.
Tem-se a ideia de que sobre Santo António já praticamente tudo foi dito. Dois grandes escritores portugueses – Aquilino Ribeiro, com Humildade gloriosa, e Agustina Bessa-Luís, com Santo António – ficcionaram a sua vida. Porque decidiu escrever agora sobre ele?
Existem muitos pontos em comum entre a situação social do tempo em que viveu Santo António e os dias de hoje. No seu tempo, a Igreja vivia um período de instabilidade, o Mundo estava no meio de guerras.
Como hoje…
Diria que se vivesse agora, António repetiria, por exemplo, a Embaixada de Paz que organizou quando Pádua estava em guerra, e iria ao encontro de Putin e Zelensky para lhes pedir que suspendessem o conflito de imediato. Escutava as duas partes. E fomentava o diálogo. António era uma figura de primeira linha, destemido, corajoso, contra corrente. Jamais seria passivo numa situação como esta que estamos a atravessar. Então, por isso mesmo, parece-me muito oportuno seguir as pisadas deste homem que a Igreja acabou por canonizar. Enfatizo no romance o homem culto, oportuno; o ser humano que atacava ferozmente a sociedade hipócrita e corrupta do seu tempo, mas que oferecia as soluções para a mudança. Apontava o caminho.
Nicola Vegro, autor de António secreto: a força de um santo.
No entanto, não é exatamente essa a imagem que o povo guarda dele… O casamenteiro e o milagreiro…
Todos conhecem o nome de Santo António, conhecem a figura, mas não conhecem o seu pensamento nem a sua personalidade. Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas, e que invadem a nossa imaginação, com as suas atitudes patéticas com um ar melancólico, com aquele toque anémico e evanescente que emana de todo o seu ser, como se fossem eunucos… Ele enfrentou todo o tipo de batalhas, principalmente pedindo apoios sociais, combatendo contra a pobreza e as desigualdades. Mas, também tocava em feridas profundas da Igreja, tais como a corrupção, a luxúria, as incongruências…
Era então uma espécie de activista?
De certo modo, sim. António obrigou a que se mudassem algumas leis, assegurou a criação de uma efectiva segurança social, deu a cara pela libertação de reclusos – muitas vezes injustamente condenados. Neste romance, António surge como um crítico, um pensador, um homem proactivo que deve ser redescoberto nos dias de hoje. Por exemplo, o custo do pão ou o custo da gasolina… são situações lamentáveis que não passariam despercebidas ao santo. Estou certo de que ele estaria ao lado do povo, a reclamar por preços mais justos apontando o dedo aos tiranos que fingem nada poder fazer quanto à descida dos preços.
Quis então desconstruir a imagem do santinho milagreiro…
Este livro é uma proposta e uma oportunidade para conhecer o pensamento de António. A força dele está na sua obra em vida, nas suas ideias. O seu legado não está propriamente na aparência simpática de um homem vestido de franciscano que sorri como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, nunca esteve!
O que mais destaca então na figura de Santo António?
Destaco o seu exemplo, a rectidão e o comportamento. A sua grande humildade… Foi capaz, em simultâneo, de apontar erros e soluções. Vejamos: como orador podia limitar-se a falar bem – tinha todos os dons para isso – e apontar todos os erros da sociedade. Mas ele fez muito mais do que isso. E não se limitou a atacar os pecadores ou os hereges, apontou sim para dentro da sua própria Igreja, para os bispos, para os padres, para os frades…
Onde e em que é que se baseou para escrever este romance?
Li os seus sermões e as cartas. Aliás, os discursos e as ideias no meu romance são o reflexo desses sermões. Apesar de ser uma obra de ficção, o livro não se trata de uma pura invenção da minha cabeça; pelo contrário, fui o mais fiel possível à sua palavra, ao seu carácter, à sua personalidade. A melhor forma de entender Santo António é lendo os seus textos originais e, depois, fazer uma espécie de destilação, tal como se faz com os licores, para no final recolher o mais precioso. Considero esta obra uma destilação das palavras de Santo António.
Nicola Vegro (ao centro), no passado sábado, durante o lançamento do seu romance, no Museu de Lisboa – Santo António.
Veio a Portugal para o lançamento do livro. Sentiu que a capital portuguesa tem o espírito de Santo António de Lisboa, que é também Santo António de Pádua?
Santo António encarna o espírito português. A minha visita a Portugal ajudou-me a entender a garra deste povo que foi capaz de se aventurar pelo mar, por exemplo. Pensei nisso esta manhã ao visitar Belém. Este espírito de aventura também estava no coração de Santo António. Aliás, é necessário olhar o horizonte e desejar ir mais além. É uma característica bem portuguesa!
Ainda que este seja o seu primeiro romance, mas tem já larga experiência em cinema e televisão. Essa experiência teve influência no momento de o escrever?
Este livro foi pensado como preparação para um filme. A minha esperança e o meu empenho é o de chegar à produção cinematográfica. Acredito que seja um mote para uma união entre vários países como Portugal, Itália, França, Espanha… e até Marrocos. Seria um investimento com retorno garantido. Divulga História, Cultura… é universal.
Aproveitando o lançamento em Portugal do romance Onde as pêras caem, pela Dom Quixote, o PÁGINA UM conversou com a premiada argumentista e realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili. A realidade da Geórgia, após o desmembramento da União Soviética, marca a literatura deste país onde, tal como na Ucrânia, continuam a confluir conflitos de difícil resolução e elevada imprevisibilidade.
Onde as pêras caem conta a história de órfãos e crianças com necessidades especiais que vivem numa residência em Tbilisi. Sei que cresceu perto de uma dessas instituições. Inspirou-se naquelas crianças para criar personagens como a protagonista Lela?
Sim. Enquanto eu escrevia, imaginava visualmente algumas personagens, tinha-as em frente aos meus olhos, e depois mudei ou inventei alguns nomes. A Lela, por exemplo, é uma espécie de “híbrido”, inspirada em várias crianças que conheci e, talvez, também em algumas partes de mim, como o meu lado rebelde ou anárquico. É uma mistura… Mas não consigo fazer uma divisão entre o que foi baseado na realidade e o que imaginei, porque na escrita há sempre uma conjugação das duas coisas.
Lela então é um pouco de si…
O romance foi escrito sobretudo na perspectiva de Lela, por isso, apesar de [eu] estar presente como autora, acho que não há espaço para mim, apenas para estas crianças. Eu queria, acima de tudo, manter-me fiel à personagem de Lela.
Sabendo da sua experiência de argumentista e realizadora de cinema, quando eu estava a ler este seu romance consegui facilmente imaginar esta história a desenrolar-se num ecrã. Gostaria de ver este romance a ser adaptado a filme?
Eu nunca tornaria este romance num filme. Se alguém quisesse fazê-lo, eu não recusaria, mas não sinto necessidade de vê-lo num ecrã. O trabalho e o esforço que investi no livro, e a forma como me expressei nele, não foi com esse objectivo em mente. Por isso, não preciso de o ver no cinema.
Este romance aborda a maldade humana, retratando os abusos de crianças vulneráveis às mãos daqueles que as deveriam proteger. Como escritora, é fácil para si distanciar-se e compreender as personagens mais cruéis? Ou, como todos nós, também as julga?
Eu tento apenas descrever as situações, e abster-me do papel de julgar. No entanto, mesmo que não queira julgar, há um lado na História que o torna difícil. Eu queria mostrar este “mundo” sem tomar um partido, e sem a dicotomia do que é bom e do que é mau. Tentei apenas dar espaço a estas crianças e deixá-las serem como são. Acho que a única parte em que fui incapaz de não julgar é a da violência sexual e do assédio contra a Lela, porque é um crime hediondo contra uma jovem. Quando se trata de abusos em relação a crianças pequenas, só o podemos ver como algo mau, não existe meio-termo. E, nesse caso, é muito difícil compreender ou ter compaixão por quem faz algo assim.
Este foi o seu romance de estreia, e tem algumas similitudes com o seu filme In bloom (2013): ambos retratam a juventude de raparigas no início dos anos 90, na Geórgia, após o desmembramento da União Soviética. Este tema é, obviamente, muito próximo, certo? Cresceu nesse ambiente…
Algumas pessoas na Geórgia queixam-se de os artistas locais, escritores ou realizadores georgianos, como eu, abordarem frequentemente os anos 90 nas suas obras, e cingirem-se muito a este período temporal. O meu próximo livro também vai ser sobre uma família nos anos 90, e é um bocado por razões autobiográficas. Eu nasci em 1978, e foi na parte final do século XX que comecei a desenvolver-me como mulher e a decidir a minha vida. Portanto, essa foi um período extremamente importante a nível pessoal, e eu tenho muita coisa para contar sobre esta época. Além disso, “transportar-me” para essa época ajuda bastante a colocar-me na pele de uma criança e a contar a sua história, porque me lembro bem da minha infância e da minha perspectiva do mundo nessa altura.
Sei que está a escrever um novo romance, mas sobre a sua outra paixão – haverá também um novo filme de Nana Ekvtimishvili no horizonte?
Neste momento, para além do livro, estou a trabalhar em vários guiões, alguns em alemão e outros em georgiano. Quando os meus dois filhos estiverem mais crescidos, terei então mais disponibilidade para me dedicar inteiramente ao trabalho, e para terminar os meus projectos. No caso dos filmes, é preciso mais tempo e também financiamento.
Vive agora em Berlim, mas o seu país tem vivido nos últimos anos em sucessivos conflitos entre a “herança soviética” e o Bloco Ocidental. Enquanto as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abcásia parecem querer recuperar o Bloco Soviético, o resto da Geórgia assume a intenção de se juntar à União Europeia e à NATO. Como é que se posiciona no meio deste braço-de-ferro?
Para mim, não há qualquer dúvida de que a Geórgia pertence à Europa e ao mundo civilizado, moderno, liberal e democrático. E não é assim apenas porque eu quero que seja, mas porque, de facto, a História, o estilo de vida e a cultura dos georgianos são muito parecidos com os dos europeus dos outros países. Até mesmo a literatura é muito impregnada por valores liberais. A Rússia tenta incutir ao povo georgiano a ideia de que há pessoas, no meu país, que não se querem aproximar do bloco ocidental e que preferem fazer parte da Federação Russa. Na Geórgia, nós temos, por exemplo, canais de televisão que fazem propaganda pró-Putin, e apenas repetem o que ele diz. Mas, na verdade, o estado da Geórgia moderno identifica-se muito com a Europa.
Nana Ekvtimishvili e Maria Afonso Peixoto, jornalista do PÁGINA UM, na passada quinta-feira na Livraria Bucholz, em Lisboa.
Tenciona regressar um dia à Geórgia, para aí viver?
Sim. Na verdade, a minha ideia nunca foi deixar a Geórgia de forma definitiva. Eu mudei-me para a Alemanha para estudar, e conheci lá o meu marido, que é alemão, e com quem tenho filhos. Mesmo depois de terminar os meus estudos, ainda voltei à Geórgia com o meu companheiro e vivemos lá durante dez anos. Tenciono lá voltar, gostava de dar aos meus filhos a oportunidade de estudarem numa escola georgiana. A não ser que o país perca a independência e seja ocupado pelos russos. Nesse caso, que, infelizmente, considero ser uma possibilidade, não fará sentido regressar. Teremos que esperar e ver o que acontece agora com a Ucrânia.
Mudando de tema, e para terminar a conversa num tom mais leve. Falemos sobre descontração [risos]. O cinema e a leitura são formas que as pessoas têm de se distraírem, mas para si também são um trabalho. Consegue relaxar a ler e a assistir a um filme, sem estar a fazê-lo como escritora e realizadora?
Eu sou uma leitora voraz e uma cinéfila. Adoro literatura e cinema. Não quero ser o tipo de pessoa, de cineasta, que se senta a ver um filme, e depois o vê a pensar em como o teria feito enquanto realizadora; ou de uma romancista que pega num livro de outro e se questiona sobre como é que o teria escrito. Aí, quando vejo um filme ou leio um livro, é a minha vez de relaxar e apenas assistir, ou de ler, é o meu momento de lazer, e gosto de aproveitar para desfrutar.
Aos 43 anos, já tem uma carreira consolidada. O seu filme In bloom foi escolhido para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição de 2023 dos Óscares, e entretanto Onde as pêras caem foi nomeado para o International Booker Prize no ano passado. Profissionalmente, há alguma coisa que ambicione muito conquistar?
Eu não me movo por “conquistas”, apenas por executar e concluir os trabalhos que empreendo. Não tenho grandes desejos ou ambições. A vida é demasiado curta, e tenho receio de definir metas demasiado altas. Sempre fui assim. Nunca fui uma pessoa muito ambiciosa. Há, contudo, uma parte de mim que é obstinada quando começa um projecto, e que não descansa enquanto não o termina. Quando tenho uma ideia para um trabalho, agarro-a e empenho-me. Sou muito dedicada naquilo que faço; seja um livro ou um filme. Assim continuarei: a seguir o que sinto e à minha voz. Veremos aonde me leva.
Nos livros, o título não diz tudo, ou nem sequer diz nada. O título desta entrevista também não diz, na verdade, nada de muito relevante sobre esta longa conversa com o José Carlos Barros, primeiro que tudo arquitecto paisagista, mas agora o escritor que hoje recebe o Prémio Leya 2021, um dos mais prestigiados da Literatura portuguesa. O galardão serviu apenas como pretexto para se falar, em tom muito informal, sobre o mundo rural, Évora, Arquitectura Paisagista, o ordenamento do território, autarquias, deputados e, já agora, também sobre a Literatura e os sentimentos dos escritores. Afinal, sobre “coisas” que unem pessoas. As fotografias, esta manhã tirada pela lente de André Carvalho, não poderiam ter sido em lugar mais apropriado: o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, desenhado por dois arquitectos paisagistas de eleição: Ribeiro Telles e Viana Barreto.
Partilhamos a mesma alma mater – a Universidade de Évora, e em particular o Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico, fundado por Ribeiro Telles. Mas eu sou engenheiro biofísico, e tu és arquitecto paisagista. Quando comecei a publicar romances, perguntavam-me o que tinha sucedido para um engenheiro escrever ficção. Ora, conhecendo eu a nossa formação e a tua obra, aquilo que antes te pergunto é: os teus romances seriam diferentes se não fosses arquitecto paisagista?
[pausa] Eu não sei muito bem o que é causa e consequência. Penso que está tudo um bocado misturado. Eu nasci no mundo rural, fui para um curso em que os aspectos do território são essenciais, e continuo agora a viver no mundo rural. Portanto, se não fosse arquiteto paisagista, não sei se não seria à mesma uma pessoa ligada à ruralidade e ao território. Na verdade, olhando para o que escrevo, parece-me evidente haver uma ligação muito grande entre a arquitectura paisagista e a ruralidade.
O pretexto desta conversa é o teu romance As pessoas invisíveis, mas queria abordar o teu percurso de vida. Se pudesses escolher o guião da entrevista, por onde começavas? Pelo arquitecto paisagista que foi assessor do governo socialista, pelo técnico que foi director do Parque Natural da Ria Formosa? Pelo autarca de Vila Real de Santo António? Pelo deputado da bancada do PSD? Pelo escritor, não apenas romancista, mas sobretudo poeta? Ou seja, como te defines de uma forma curta?
Pois, é uma questão complicada. Eu acho que na minha vida escolhi sempre muito pouco. E, às vezes, temos uma presunção que escolhemos muito. Por vezes, há uma força qualquer, à qual alguns chamam destino, e a que outros chamarão matemática. Acredito muito no poder dos acasos, e deixei-me sempre ir muito por eles. Sempre que um acaso me proporcionava uma qualquer situação, uma mudança ou um determinado caminho, aquilo que eu fiz foi apenas deixar-me levar por esses caminhos, pelos caminhos que ia encontrando. Foi por isso que fui parar a Évora, por causa do romance Aparição do Virgílio Ferreira. Eu estava num curso de Ciências, e de repente descubro que se fosse para Évora, havia duas coisas especialmente fantásticas: ia para aquela cidade branca daquele romance, que me tinha fascinado tanto, e podia ser aluno do Ribeiro Telles. Penso que eu fui o único do meu curso que pôs em primeiro lugar a Universidade de Évora. Não propriamente por uma grande escolha, mas porque em determinada altura me lembrei de um livro e de uma pessoa. E o resto foi acontecendo.
Já me estragaste aqui uma pergunta, porque tinha preparado uma para saber como foste para Évora estudar Arquitectura Paisagista [risos]. Até porque nasceste bem longe, na região de Covas do Barroso, em Boticas. Viveste na vila ou em alguma aldeia?
Nasci em Boticas, mas logo no quinto e sexto ano de escolaridade, pedi transferência para a turma B. A outra era a dos meninos da vila, e a turma B era a dos rapazes e raparigas das aldeias. Acho que foi esse o primeiro acaso que me aconteceu.
Havia essa segregação?
Era uma segregação que teria sobretudo razões horárias, de logísticas. As pessoas das aldeias vinham de camioneta para a vila. Não sei se por uma segregação urbana/rural, mas de facto as raparigas e os rapazes das aldeias estavam na turma B. E eu apercebi-me cedo que essa malta parecia mais interessante, porque o seu mundo era mais carregado de coisas: tinha bruxas, animais fantasmagóricos, acontecimentos absolutamente incríveis. E, olhando agora a esta distância, percebo que havia uma ligação relativamente próxima com o sobrenatural. Próxima e quase natural, passo a expressão. O sobrenatural estava muito próximo de deixar de ser sobre.
Ou seja, não terias sido o escritor que és, ou pelo menos com a naturalidade de falar do sobrenatural, se não tivesses passado para a turma B?
Sim, acho que essa foi, de facto, a primeira descoberta importante. Depois, foi o Padre Fontes [António Lourenço Fontes]. Tinha por volta dos quinze anos e fui parar a casa dele. Visitei-o quando ele publicou os seus livros sobre etnografia barrosã. Percebi que alguém estava a valorizar aquilo, ao contrário das outras pessoas que associavam as aldeias ao atraso, e o mundo rural a coisas menores, digamos assim. Portanto, fui para Vilar de Perdizes, e passei alguns fins-de-semana em casa dele. Fui ao Congresso de Arquitectura Popular, onde apareceu, por exemplo, o Nadir Afonso. O destino sempre me reservou umas ligações ao mundo rural, mesmo quando eu parecia sair um bocadinho disso.
Entras num curso e numa universidade, no Alentejo, num meio completamente distinto. Na Arquitectura Paisagista, o teu coração pendeu sempre mais para a parte das paisagens, da Natureza, e menos para os jardins ou espaços verdes urbanos?
Confesso que me fascinam todas as disciplinas da arquitectura paisagista, incluindo o pequeno jardim e pequena intervenção urbana. Aliás, uma crítica que às vezes até se fazia ao meu curso era ser pouco especializado. A ideia de o arquitecto paisagista poder trabalhar com outros técnicos e outras áreas continua a ser das coisas que mais me fascina, e que mais gostaria de fazer. Não faz sentido nenhum estar a separar as disciplinas como por vezes separamos. Ao falar-se de jardins não se deixa de ser falar de Economia. E tudo isso me fascina por igual. É verdade que o meu estágio foi de ordenamento do território, mas fui sendo empurrado mais para aí, para essa ideia de compreensão da paisagem e das ligações do homem ao território. Quando vou de viagem, olho para a maneira como o território foi transformado.
Vives há muitos anos no Algarve. Qual foi o motivo de seguires para o extremo sul depois de uma infância e adolescência no extremo norte? Também foi um livro? [risos]
Foi o fabuloso poder dos acasos: o acaso de me enamorar por uma algarvia, e acabar por me casar.
E ela venceu na escolha do sítio para viverem? [risos]
Eu estou muito ligado ao sítio onde vivo, mas acho que poderia viver em qualquer lugar. Se for uma zona urbana, prefiro que tenha árvores por perto, e espaços onde se possa sentir essa ligação ao que chamamos de Natureza. Por exemplo, umas das coisas que me liga às árvores é quase filosófica: é a ideia de ver o tempo a passar. Eu preciso essencialmente disso. A minha ligação ao território, à Natureza, às árvores e ao campo tem a ver com essa ideia de perceber o movimento do Mundo. Quando saio da porta da minha casa, o que tenho à minha frente são figueiras e alfarrobeiras mais do que centenárias, e algumas já as conheci com o aspecto que hoje têm. As árvores mostram-nos que há coisas que permanecem, e outras que estão sempre a mudar. Essa ideia de permanência e mudança que encontramos na Natureza é bastante importante para mim.
Há pouco falávamos do Ribeiro Telles, que advogava que a paisagem é uma construção humana. Sendo uma construção humana e havendo uma paisagem tão diversificada entre o norte e o sul de Portugal, o que é que molda o quê? É a paisagem que molda o homem ou o homem que molda a paisagem? Ou ambos interagem?
Cada vez mais me parece evidente que a paisagem é o resultado dessa interação. Por um lado, o modo como nos adaptamos às condicionantes, isto se estivermos a falar de comunidades cultas como as comunidades rurais e das aldeias, que conhecem o território. O problema é as comunidades cultas terem deixado de olhar para o território. Cultas no sentido em que percebem os fenómenos naturais e procuram adaptar-se às condicionantes que o território lhes apresenta, e assim transformam o território de maneira a aproveitar os seus recursos. Portanto, a paisagem é, de facto, uma construção humana. O estado do ambiente pode ver-se sempre pelo modo como tratamos a paisagem. Aliás, quando saio de casa e começo a andar na rua, percebo logo que não existe Ministério da Agricultura. A agricultura não está separada do ambiente e do território, e aquilo que vejo, governo após governo, é o Ministério da Agricultura apenas preocupado a distribuir os fundos comunitários. É um bocadinho arrepiante.
Estiveste alguns anos na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e a dirigir o Parque Natural da Ria Formosa. Sentiste essa situação, essa falta de visão? Advém daí a perpetuação dos conflitos quando está em causa a conservação da Natureza e a paisagem?
A paisagem é o reflexo daquilo que nós somos. Por isso dizia há pouco que o estado do Ambiente e da Economia se vê por aí. Para mim isto é evidente há muito tempo, só agora começa a ser consensual que falar de Ambiente é falar de Economia. Não separemos as coisas. Temos um problema de partida: o ordenamento do território é uma disciplina a que ninguém liga ao nível das decisões. Vamos ter não sei quantos milhões da “bazuca” sem que o país esteja preparado para perceber quais os caminhos para chegar aos objetivos genericamente desenhados. Não há apoio para actualizar planos directores municipais (PDM) ou planos regionais de ordenamento do território (PROT). Fez-se, relativamente há pouco tempo, um Programa Nacional da Política de Ordenamento de Território que é sobretudo um plano centralista, muito virado para resolver os problemas de reforço da mobilidade nas duas grandes Áreas Metropolitanas. Mas ninguém ficou muito preocupado com isso. Suscitou muito pouco envolvimento político, mesmo na Assembleia da República, onde eu participei nesse processo. Até parecia um bocadinho estranho que alguém estivesse a perder muito tempo com algo sobre o qual ninguém iria falar.
Referiste a questão de actualização dos planos, mas, se nós formos a ver, os planos anteriores, dos anos 80 e 90, não serviam para muito…
Uma das características do processo de ordenamento do território deveria ser a flexibilidade. Um plano faz-se, e poderia ser alterado depois de uns três ou quatro anos. Esse dinamismo, que devia estar associado aos próprios territórios, nunca foi compreendido. Por exemplo, nos anos 90 fez-se um PDM; passado quatro ou cinco anos houve alterações drásticas das situações e das necessidades e o PDM continuou igual por mais 10 ou 15 anos, já sem capacidade de dar resposta aos desafios que se colocavam. O mesmo com outros planos. Ou seja, nós, de facto, ainda não temos verdadeiramente ordenamento do território.
O facto dos PDM serem tão estanques não se deve também a uma desconfiança relativamente àquilo que os políticos, os autarcas e os decisores podem fazer em benefício de A, B ou C?
Primeiro aspecto: os autarcas e os políticos, de modo geral, fazem aquilo que o povo quer. Eles querem ganhar eleições. A experiência que eu tenho, nomeadamente nos processos de consulta pública em que participei, é de ver que a única preocupação das pessoas era, geralmente, saber se o seu terreno ficava no verde ou no vermelho, se podiam construir ou não. Pouco mais vi, de preocupação, fosse em que plano fosse. Por isso, digo que, em certo sentido, é como se o processo de ordenamento do território ainda não tivesse verdadeiramente começado. Temos dificuldade em passar dessa fase inicial, de entender os planos como coisas que nos dizem se se pode construir ou se não se pode construir. Estes planos, de facto, não dão resposta nenhuma às pessoas, são rígidos e, se calhar, permitem que se olhe para eles conforme os interesses. O meu ponto é este: nós, enquanto sociedade, ainda não valorizamos o processo de ordenamento do território.
No teu romance As pessoas invisíveis, que aliás tem desfecho inesperado, acabas por abordar um curioso e trágico-cómico aproveitamento de informação privilegiada por via de uma decisão política. Inspiraste-te em alguma situação verídica? [risos]
Não. O final do romance é também metafórico. Embora isso não fosse muito evidente, eu gostaria de que a ideia de poder e de ambição fosse atravessando o livro, em várias situações. Portanto, há episódios que eu desejaria que funcionassem como metáforas de poder e de ambição, de coisas que nos desligam do que é essencial.
Mas regressemos ao teu percurso de vida, e à tua experiência autárquica [vereador e vice-presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, entre 2005 e 2013]…
Foi, mais uma vez, o poder dos acasos. Eu era técnico na Direção Regional do Ambiente e na CCDR do Algarve, e fui desafiado para as eleições autárquicas [em 2003]. Como era por um partido que nunca tinha ganhado as eleições [PSD], eu até achei que podia ir à vontade…
Podias candidatar-te à vontade, porque não ias ganhar… [risos]
A verdade é que vencemos durante dois mandatos. E foi uma experiência que muito prezo. Vi pessoas a trabalhar muito nas autarquias, e com uma preocupação de interesse público. Para mim foi muito satisfatório, mas também desgastante, porque é extremamente difícil ser autarca a tempo inteiro, estar muito próximo das pessoas.
Depois tiveste mais dois mandatos como presidente da Assembleia Municipal, certo?
Sim, sem funções executivas. Em Portugal, as Assembleias Municipais não são verdadeiramente valorizadas.
Como é que viveste o caso “bicudo” da anterior presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, a social-democrata Conceição Cabrita [detida e acusada por suspeita de corrupção]?
Com normalidade, mas, por um lado, com tristeza, porque me ligava e liga uma relação de amizade. Por outro, também com uma vontade muito grande que a Justiça funcione, e que haja um julgamento e se perceba tudo. De facto, isto descredibiliza não só a política, mas o país todo. Não houve ainda um julgamento, não sabemos que culpas existem. Incomoda-me muito esta ideia de que sejam sistematicamente levantadas suspeitas. De resto, espero que as suspeitas sejam infundadas e, se não forem, pois então, que a Justiça funcione.
Depois, temos o José Carlos Barros deputado…
Fui parar à Assembleia da República por mero acaso.
Mais um acaso… [risos]
Exatamente. Absoluto. Ainda por cima, eu nem era militante do partido.
Ainda não és?
Continuo a não ser. Por nenhuma razão especial. Se calhar não fui ainda seduzido de maneira empolgante. Acho que fui parar à Assembleia da República na sequência daqueles desentendimentos que existem muitas vezes no interior dos partidos. Essa minha experiência como deputado tem aspectos mais positivos e menos positivos. O mais positivo é percebermos como a democracia é uma coisa fundamental, haver diferentes visões do Mundo e que se possam pôr em cima da mesa e discuti-las. Portanto, desse ponto de vista, foi uma experiência extremamente interessante. Agora, nem eu consegui mudar grandes coisas, nem ninguém deve ter ficado muito preocupado com isso. Foram quatro anos em que andei à procura de alguns temas, que não tive a capacidade de demonstrar como eram importantes.
Eu estive a consultar a lista das tuas intervenções, e verifiquei que versaram entre o urbanismo e planeamento, e os assuntos culturais. Mas eu não queria perguntar muito sobre esses aspectos. Prefiro saber com quem trocavas impressões sobre Literatura na Assembleia da República…
Com muito pouca gente.
Queres dizer nomes?
Posso dizer um nome, que nem era da minha bancada: a Isabel Moreira [deputada do Partido Socialista], e inclusive estive ligado, por razões pouco relevantes, à edição de um dos seus livros. É um dos poucos exemplos que te posso dar. Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia.
E em plenário ou pelos corredores da Assembleia da República, viste deputados com um romance nas mãos?
Não quero ser injusto, porque eu próprio andava com poucos romances na mão. Não serão todos os deputados que levam a actividade da Assembleia da República a sério, mas no essencial é um trabalho relativamente intenso, nomeadamente nas comissões. Há alguns casos muito absorventes; anda-se muitas vezes em corridas, e sobra pouco tempo para outras questões. De qualquer modo, não me parece que a Literatura seja uma das grandes prioridades na Assembleia da República, tal como noutros sítios da sociedade.
Mas teríamos melhores deputados se todos eles lessem pelo menos um romance todos os meses?
Eu acho que a Arte, de um modo geral, e portanto também a Literatura, alarga o nosso entendimento do mundo. As pessoas têm uma visão mais alargada das “coisas” se não estiverem fechadas para as “coisas da Arte”. Por isso, sim, sou dos que acreditam que ler, em particular ficção e poesia, ou ir a exposições, dá às pessoas um entendimento mais alargado do mundo, embora não as faça melhores pessoas [risos].
Tu és simultaneamente poeta e romancista. Eu nunca arrisquei escrever poesia, porque é muito fácil escrever um mau poema [risos]. Mas sei que são ritmos diferentes no acto de escrita. Já disseste que, quando escreves poesia, podes sempre voltar a um poema de tempos a tempos, que não é um processo tão intenso. Posso deduzir que aproveitaste alguns daqueles plenários mais chatos para ir versejando?
A poesia é, de facto, diferente da prosa, porque o romance exige uma disciplina que a poesia não exigirá. Isso é muito evidente; os métodos são diferentes. Mas há também uma outra característica diferenciadora: a poesia vive muito de um relâmpago, da fulguração, da interrogação, do espanto. E esse questionamento, feito de coisas tão intensas, e às vezes breves, pode apanhar-nos em qualquer lado. Portanto, mesmo quando estava mais entediado em plenários, que tinham temas que me interessavam muito pouco, nunca estaria a preocupar-me com a prosa, que exige de facto um outro tempo e um outro momento. Mas admito que, de vez em quando, fui apanhado por essa fulguração e por esse relâmpago que a poesia, às vezes, nos traz.
Tens já uma obra literária muito vasta, com romances e sobretudo poesia. Tens aliás, mais livros de poesia do que romances, e até já tinhas ganhado por duas vezes o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama. Em todo o caso, o Prémio Leya é um dos mais prestigiados. Vamos ter um José Carlos Barros ainda mais empenhado na escrita?
Primeiro, eu gostaria que este prémio ajudasse a que se olhasse melhor para o que eu escrevi, sobretudo na poesia. Muito daquilo que escrevi é absolutamente desconhecido.
Lamentaste mesmo, há uns meses, que o anúncio do Prémio Leya tivesse “apagado” livros de poesia que tinhas recentemente lançado…
Não sei se “apagou”, mas gostaria que pudesse agora contribuir para lhes dar mais visibilidade. Obviamente, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Leya 2021 [em Dezembro passado], ninguém mais me perguntou sobre o meu livro de poemas Penélope escreve a Ulisses ou sobre os meus Poemas do DN Jovem [1984-1989]. No caso da minha poesia, ainda é muito secreta. [risos] Mas o Prémio Leya não vai mudar muito o meu ritmo, desde logo porque eu próprio tenho dificuldade em explicar porque escrevo. Há talvez alguma vaidade, que não será dos sentimentos mais nobres, que nos leva a escrever.
Eu costumava dizer que, em Literatura, escrever é uma espécie de droga dura, dá prazer e sofrimento, e é viciante até pararmos. Falo por mim, que escrevi quatro romances em seis anos, e mais de uma dezena de livros em pouco mais de uma década. E estou há sete anos sem escrever ficção ou não-ficção…
É capaz de haver qualquer coisa parecida com uma adição, sim; porque para mim não é muito divertido escrever. Admito que para algumas pessoas possa ser, mas para mim não é. É uma coisa que me custa, cada parágrafo sai-me com muita dificuldade. Para conseguir uma página que considere boa, demora-me muito tempo.
Quando eu escrevia três páginas numa noitada, sentia-me completamente feliz…
Por isso digo que não é por vencer o prémio que me vou dedicar de imediato à escrita; acho que não tem influência. Há coisas muito mais divertidas para fazer do que escrever. Vou escrever só quando essa inevitabilidade me obcecar. Caso contrário, não vou outra vez meter-me em frente a um muro com uma folha de papel ou um ecrã em branco.
Certo escritor, não me recordo o nome, terá dito: “não gosto de escrever; gosto de ter escrito”… [risos]
Pois, eu percebo isso muito bem, porque o grande prazer vem depois de muito trabalho. Quando percebemos que, depois de muitas dúvidas, há ali qualquer coisa que parece ter chegado a um bom resultado, não é? Aliás, eu olho, por exemplo, para a vaidade que tinham e têm as pessoas do lugar onde eu nasci quando ganhavam o prémio da vaca barrosã. De facto, ganhar esse prémio implica um esforço e uma dedicação; é uma recompensa.
Acontece-te por vezes revisitar um livro e pensar: “isto nem parece que fui eu que escrevi”? Sentir, como leitor, que aquilo está mesmo muito bom…
Sim. Sim, por vezes, sim. Mas eu gosto pouco de reler o que escrevo, porque estou sempre a temer… Para mim, a escrita tem também muito de matemática ou de música, e eu tenho sempre medo de descobrir coisas que podia ter feito melhor, e que não fui capaz, porque o ritmo não está certo. Porque o que está bem feito, é a minha obrigação. Na verdade, não vale a pena fascinar-me muito com o que encontro de melhor. Se perdi tanto tempo, e se fui cuidadoso, é normal que as coisas funcionem. O meu problema é que, quando me releio, estou sempre a encontrar coisas que não estão muito bem.
O Mário Carvalho dizia que os nossos livros nos fazem momices; e deduzo que se referia ao facto de nos apontarem nos seus defeitos os nossos erros… Enfim, mas consideras que é um luxo ser escritor em Portugal, e que quase se tem de pagar para escrever?
Algumas pessoas perguntaram-me o que é que senti quando recebi o prémio. E eu respondi que me agrada receber o dinheiro, ser pago. E não é porque eu goste muito de dinheiro, mas acho uma desgraça não haver esse reconhecimento, de que o acto de escrever deve ser um trabalho pago. Alguns colegas meus, que sabem que escrevo, dizem que a escrita é o meu hobby, como se fosse algo que faço quando não tenho nada para fazer, em vez de ir beber uns copos. Eu não fico ofendido, mas sinto isso quase como uma provocação. Ninguém pede a uma pessoa para executar determinadas tarefas pensando que as vai fazer gratuitamente. Devemos pagar esse serviço que está a ser feito. No caso da escrita, penso que isso é reconhecido muito poucas vezes.
Tem que se mudar esse paradigma?
Sim, claro que sim, porque não se valoriza esse trabalho. Eu sinto isso, diariamente. E há outro drama: pode-se estar anos a escrever, e a fazer até coisas bem interessantes, mas por determinadas circunstâncias não se chegar a ter um editor. É aquilo que acontece com algumas pessoas. Não sei se foi o Picasso que disse – penso que sim, quando lhe perguntaram se ele acreditava na inspiração – acreditar nela, imenso, mas que esperava que quando essa inspiração viesse o encontrasse a trabalhar.
Agora, vamos regressar ao teu recente romance. Qual a mensagem que pretendeste transmitir com as pessoas ditas invisíveis? O que é que te fez ter, como linha central, pessoas sem rosto, mas ambiciosas?
Isto pode ter várias leituras. Eu acho que os bons leitores alargam o próprio entendimento de um livro, não é? Porque se um livro tiver alguma complexidade, há-de ter camadas que o próprio autor, por vezes, nem identifica muito bem. E é através do processo de leitura e de crítica que um livro vai ganhando o seu verdadeiro entendimento. As pessoas invisíveis foi um título que me apareceu, que se me impôs, quando percebi que algumas das personagens surgiam como se não contassem. Aliás, esta ideia das pessoas invisíveis veio-me quando comecei a intuir que aquilo que designamos por interesse público, que gera quase sempre uma factura paga por pessoas que não contam para nada, que são invisíveis. A industrialização da floresta, por pinheiro-bravo, durante o Estado Novo, foi um processo intenso, e que muitas desgraças deu, feito contra o interesse do mundo rural. O mesmo com as barragens de elevado valor hidroeléctrico. Eu admito que haja um interesse público em fazer essas barragens, mas há um conjunto de pessoas no mundo rural que vão pagar essa factura. O mesmo foi com o volfrâmio, e agora com o lítio. Eu não discuto o interesse público em explorar o lítio, o que seria de nós sem as baterias dos telemóveis, não é? Há-de haver um interesse obviamente público, mas o que eu sei é que as pessoas de Covas do Barroso, que eu conheço, ainda antes de ser emitida qualquer licença de exploração, já tinham explosivos à porta de casa, máquinas a abrir buracos por todo o lado, problemas com a água e encostas que estão completamente mexidas de uma ponta à outra. E isto à custa do único valor que aquelas pessoas têm, que é o seu território e a sua paisagem. E, portanto, estão a pagar o interesse público do lítio porque contam pouco. Nesse sentido, o nome do livro foi-se me impondo de uma maneira um bocadinho metafórica, a pensar que é assim que geralmente acontece com o mundo rural. Pessoas que não elegem deputados, ou que elegem muito poucos, não importam muito para a sociedade.
Falámos já sobre a importância do mundo rural e de fenómenos quase paranormais. A tua escrita denota aquilo que se denomina realismo mágico, que está muito associado ao mundo rural. Ora, o mundo rural está em perda. Achas que o realismo mágico desaparecerá na Literatura com a extinção do mundo rural?
Eu acho que sim, porque o mundo rural é um mundo difícil. Eu escrevi sempre sobre o mundo rural, mas eu gostaria que nunca fosse de um modo muito apologético, no sentido de achar que os seus valores são melhores do que os urbanos. Aliás, muitas vezes, tento desarmar esse romantismo à volta do mundo rural. Na verdade, é um mundo muito difícil, muito dependente de factores como o clima e a meteorologia, onde não havia médicos e o Estado nunca esteve presente para ajudar em nada. Portanto, eu diria que era quase normal que as pessoas daquele mundo tivessem que procurar outras ajudas, que vêm tanto da ideia de Deus como do sobrenatural nas suas diferentes formas. E agora, num mundo em que não estamos tão dependentes da Natureza, em que o pensamento se desligou da mão, como diria a Sophia [de Mello Breyner Andresen] num dos seus poemas, acho que, de facto, esta magia vai, naturalmente, desaparecer.
O romance está estruturado em três partes: a corrida ao volfrâmio, no início do Estado Novo; o massacre de Batepá, em 1953 em São Tomé e Príncipe, que eu, aliás, desconhecia; e no período da morte do Sá Carneiro. Que te fez escolher estes três momentos numa narrativa em elipse?
No caso do massacre de Batepá, eu fiquei muito surpreendido com a dimensão daquilo que aconteceu durante uma viagem, e sobretudo por não saber nada até então, o que é uma coisa que me incomoda imenso. Eu quero escrever sobre o meu tempo, mas não consigo fazê-lo sem olhar um bocadinho para trás, para perceber como é que chegámos até aqui. E o que espoletou foi, de facto, essa ideia do massacre. E para perceber como é que se chega a 1953, fui à procura da política colonial e ao que esteve associado. Eu escrevo por ignorâncias, sobre o que não sei, e tenho de ir à procura. Neste processo, descobri que estava afinal a escrever sobre o Estado Novo. Sobre o Portugal do Estado Novo, um país que tinha colónias, mas que, simultaneamente, era um país rural, supersticioso e pobre. Aí, percebi que tinha que escrever sobre essa ruralidade e, ao mesmo tempo, sobre um país que tinha um Império. Ora, eu queria entrar no 25 de Abril exactamente pelo preconceito que tinha, de que ia ser muito difícil um Portugal democrático, por causa de todo aquele passado e dos primeiros anos a seguir à Revolução. Sabendo que corria alguns riscos, a minha ambição era constituir um olhar possível do que é o Portugal do Estado Novo. Não era esse o propósito inicial quando comecei a escrever, mas foi impondo-se.
Então, como fizeste a construção do romance?
Eu andei com este romance dez anos. Comecei a escrevê-lo por causa do massacre de Batepá. Entretanto parei, depois regressei e aquilo já não estava bem. O meu principal método de escrita, para o bem e para o mal, é não ter método nenhum, mas isto é muito propositado. Eu sei mais ou menos sobre o que é que quero escrever, mas quero que seja o próprio processo que me vai dizendo que personagens devem desaparecer ou que devem entrar.
Coloquei-te esta questão exactamente por entender que podias ter começado o romance pelo meio, e depois recuar e, por fim, avançar…
A vida é feita de imperfeições e de acasos, e a cronologia é uma das coisas que conta pouco para a nossa vida. Eu gostaria que a minha escrita não tivesse esse método muito cronológico, pré-definido. O primeiro capítulo foi das últimas coisas que eu escrevi. Enfim, tudo isto levou a este livro; poderia ser outro qualquer. Mas, se eu tivesse tido disponibilidade, de tempo e também mental, para me poder dedicar à escrita, este livro seria provavelmente mais perfeito, e também desinteressante.
[risos] O próprio Machado Assis também dizia que um livro está sempre a ser reconstruído, e é verdade. Provavelmente, se o voltares a ler daqui a uns anos, talvez tenhas vontade de o alterar. Aliás, o final até abre portas para uma continuação, não é?
Sim, embora me apeteça contar outras histórias. Mas, por exemplo, a determinada altura da escrita, eu percebo que há uma questão mal resolvida, que tem a ver com o fim da escravatura. Pensava que a escravatura fora abolida no século XIX, e ponto final. E, afinal, percebi que, através dos sistemas de contrato, e de outros subterfúgios, o fim da escravatura foi apenas um fim legal, e não um fim real. Em 1947, no conhecido relatório de Henrique Galvão [inspector-geral da Administração Colonial, também escritor e mais tarde opositor de Salazar], denuncia-se uma realidade mais grave do que a criada pela escravatura pura. Pode ser complicado imaginar o que será pior do que a escravatura pura, mas, de facto, um escravo, sendo um objecto para o proprietário, esse não gostaria que o objecto se partisse, e até tinha bons hospitais e condições para o escravo durar mais tempo. Portanto, foi o próprio processo de escrita que me foi levando a estas situações, começando por um ponto e puxando pelo novelo. E por aí fora…
Distinguida com vários prémios literários internacionais – Prémio de Literatura Heimito von Doderer, Prémio 3sat e Prémio de Literatura Kranichstein –, a alemã Anne Weber (n. 1964) retrata, em tom épico, a vida de Anne Beaumanoir (1923-2022), uma heroína francesa da II Guerra Mundial, uma dos Justos entre as Nações, que se tornou médica e se envolveu no movimento de luta pela independência da Argélia. O PÁGINA UM esteve à conversa com esta autora bilingue, em Lisboa, a pretexto da edição em Portugal de Annette, epopeia de uma heroína, romance publicado pela Dom Quixote, e que venceu o Prémio de Livro Alemão 2020, o maior galardão das letras da Alemanha.
A Anne escreve fluentemente em duas línguas – francês e alemão –, mas quando pensa, as palavras surgem em que idioma?
Os sonhos são essencialmente imagens, mas o pensamento e as ideias, nem sempre. Quando penso estou consciente e, por isso, acabo por pensar através das palavras… É uma pergunta curiosa que me acaba de fazer, nunca tinha pensado nisso. Quando estou em França, penso em francês; mas se estiver na Alemanha durante algum tempo, começo a pensar em alemão.
Qual é o critério para decidir em que língua vai escrever um livro?
A razão pela qual escrevo numa língua ou noutra não está relacionada com o tema, com a história ou com o assunto em questão. Aliás, quando comecei a escrever era adolescente, e como vivia na Alemanha, escrevia em alemão. Entretanto, quando fui para França continuei a escrever em alemão. Somente depois de alguns anos é que comecei a escrever em francês. As palavras surgiam na mente em francês. Publiquei um primeiro livro em França, escrito em francês e alguns familiares e amigos perguntavam-me: “mas sobre o que é este livro?” – eles não percebiam francês! Então eu própria preparei uma tradução, e editei em alemão – para que eles pudessem ler o livro.
Anne Weber
Mas regressou também ao seu alemão como escrita original?
Sim. Entretanto, uma editora alemã começou a querer publicar os meus textos, e acabei por retomar o alemão como primeira língua. Aliás, já escrevi sobre a história de uma francesa, e escrevi primeiro em alemão. Contudo, fez-me muito bem a distância que houve entre mim e a minha língua materna no princípio, depois de ter ido para França. A literatura exige manter uma certa distância. Essa distância foi mesmo muito útil.
O livro que veio apresentar em Lisboa, aborda a desobediência de Annette [Anne Beaumanoir] como uma virtude. Devemos, por isso, educar as nossas crianças a serem desobedientes?
No caso dela foi, de facto, uma virtude. Não quer dizer que essa atitude seja em todos os casos. Nas escolas em França, e em todo o Mundo, é importante ensinar a pensar e a educar de forma que todos aprendam a pensar pela sua cabeça, e a seguir a desobediência quando e sempre que for necessário. Quando um Estado ou algum grupo te pede algo, percebes se estás ou não diante de uma decisão injusta com a qual não podes colaborar. A Annette foi desobediente, porque não acreditava no regime que a rodeava. Ela queria um mundo diferente. Lutou e desobedeceu, porque acreditava numa alternativa mais justa, mais humana.
Annette, epopeia de uma heroína, publicado originalmente em 2020, foi editado em Abril deste ano em Portugal pela Dom Quixote.
Foi a literatura, entre outras coisas, que aproximou Annette à Resistência francesa. Acredita que a literatura guarda um poder curativo para a Humanidade?
De facto, o romance de André Malraux levou-a a iniciar a sua atividade de resistência. Aquilo que mais a atraiu foi o retrato romântico de um herói que sacrificou a sua vida por uma causa maior. A literatura pode ter tantos propósitos! Acredito que não se reduz a um propósito único. O romance, por exemplo, abre um mundo inteiro ao leitor; mergulhamos nele e ficamos completamente absorvidos…
Escreveu uma epopeia, daí o próprio título. Que razão a levou a escrever a narrativa, em prosa, mas num ritmo poético, tão diferente do que é comum?
Quando comecei a pensar em escrever este livro, perguntei-me várias vezes até que ponto eu seria capaz de contar a história de alguém que realmente existe, que não é uma personagem fictícia, mas uma pessoa que me confidenciou a sua história. Foi uma ideia que inicialmente até me repeliu por breves instantes. Talvez tivesse passado pela minha cabeça algo mais próximo de um romance histórico, tradicional. Nesse ambiente nós inventamos cenários, detalhes, criamos uma atmosfera de suspense e até criamos diálogos.
Seria mais fácil…
Se assim fosse, teria posto na boca da Annette palavras que ela nem sequer diria na época. Então, teria mudado muita coisa, talvez até o nome. Seria outra história. Porém a batalha continuou dentro de mim. Eu não estava na condição de biógrafa, não pretendia isso. Foi então que me lembrei dessa forma literária muito antiga que é a epopeia. Finalmente podia contar ou cantar os feitos corajosos de uma mulher num ritmo muito próprio – as epopeias narram os feitos corajosos de heróis homens… até agora! Esta epopeia conta os feitos heroicos de uma mulher!
As epopeias exageram – faz parte da sua natureza. Exagerou muito ao escrever o livro?
Eu pensei muito sobre o ritmo que devia dar à história para que o leitor se envolvesse nela. Na verdade, não há exagero, como se dá por vezes quando se cria uma lenda. Pode haver, sim, uma simpatia da minha parte que me tenha levado a compor a história de um certo ponto de vista. Mas não há, neste livro, exagero para transformar a Annette numa lenda, ou para glorificar a sua vida. Li alguns textos épicos ao longo da minha vida: A Ilíada, a Odisseia… Não os reli, mas dei uma passagem rápida enquanto estava a escrever o texto.
Com que cenas da vida de Annette mais se identifica?
Não ouso identificar-me com a vida de Annette. Aliás, nem sei como seria a minha reacção se vivesse o que ela viveu. Mas há uma passagem que me toca muito: o resgate das duas crianças – na verdade, são adolescentes judeus – durante a ocupação de Paris, contrariando as regras do movimento de resistência de não se agir por iniciativa própria. Parece-me um episódio extraordinário e cheio de coragem, sobretudo para uma jovem, sozinha. Ainda por cima, tratava-se de gente desconhecida, de pessoas com quem nunca tinha falado. Quando penso em mim, aos 19, 20 anos… preocupada comigo mesmo, com as minhas questões pessoais, com as minhas pequenas histórias.
Vida da francesa Anne Beaumanoir, nascida em 1923 e falecida em 4 de Março deste ano,, é retratada no romance de Anne Weber.
Annette é fruto de um contexto de guerra. Também nós deveríamos mudar diante da actual guerra entre a Rússia e a Ucrânia?
Da noite para o dia tudo mudou, a nossa vida também mudou. Aliás, já estive na Ucrânia e falei com uma amiga que conheci lá imediatamente antes da invasão ter começado. Ela não queria acreditar. Tudo mudou completamente. Para nós, que não estamos lá, é difícil imaginar o que é estar no meio de uma guerra. Espero que não tenhamos que passar pelo mesmo, espero que não chegue até nós. O cenário de guerra faz-nos tomar decisões que só quando passamos pela experiência é que sabemos e descobrimos um lado nosso, escondido até então. Numa guerra, tudo é decidido no momento. Foi isso que aconteceu com Annette. Aconteceria com cada um de nós ao viver na primeira pessoa esse acontecimento. Ao ler este livro, não há como não perguntar a ti mesmo: “o que faria eu no lugar dela?”.
Quem é que fala com o leitor ao longo destas páginas: a Anne Weber ou Annette?
R: A Annette escreveu as suas próprias memórias. Foram publicadas em francês, e agora também já foram publicadas em alemão. Aí é ela que fala com o leitor. Neste livro, é claramente o meu ponto de vista, sou eu quem interpela o leitor; a história é dela, os pensamentos são dela. Infelizmente sou eu quem fala… não é ela directamente.
Como se conheceram?
Conheci Annette Beaumanoir por acaso, há alguns anos atrás, quando fui convidada para um festival de documentários no sul de França. Ela estava na plateia e acabámos a conversar. Até então, eu nunca tinha conhecido ninguém que tivesse feito parte da Resistência. Queria saber mais – sobre ela, sobre sua vida. Algum tempo depois, creio que passaram poucas semanas, fui visitá-la e criámos amizade. Li a sua autobiografia e, entretanto, tive a ideia de lhe dedicar um livro, e contar a sua vida de uma maneira diferente.
O que lhe disse Annette quando leu o seu livro?
Assim que terminei o manuscrito, em francês, mostrei-lhe e ela disse-me que estava óptimo. Mas houve algo que me incomodou. Depois de me ter dito que estava muito bom, disse-me que não era ela que estava ali retratada no livro. Entendi, entretanto, o que ela queria dizer – ela não se via como uma heroína. Sentiu que eu tinha exagerado! É claro que quando escrevemos sobre alguém há sempre a influência do nosso próprio ponto de vista, e depois há ainda a nossa forma de contar. Imaginemos que alguém te pedia para escrever a história do teu pai ou da tua mãe… Seria sempre um ponto de vista diferente dos próprios. No entanto, sinto que ela disse aquilo porque estava a ser humilde. Porque viveu aqueles episódios com simplicidade e autenticidade.