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  • ‘Todos os romances são um bocado autobiográficos’

    ‘Todos os romances são um bocado autobiográficos’

    Pode dizer-se que o Jornalismo e a Literatura lhe está no sangue e no ar que respira: filho da premiada escritora e jornalista Helena Marques, e do jornalista Rui Camacho, e irmão de Paulo Camacho (antigo pivot da SIC), e de Pedro Camacho, que foi director da Lusa e da Visão. Fazendo assim jus ao provérbio “filho de peixe sabe nadar”, Francisco Camacho também teve uma auspiciosa carreira como jornalista, passando por cargos de chefia n’O Independente, Grande Reportagem, Sábado e jornal I, do qual foi cofundador. Mas em 2010 trocou os jornais pelos livros e tornou-se editor no grupo LeYa o que não surpreende, já que a sua paixão sempre foram as letras. Como confessa, só enveredou pelo jornalismo porque era foi a única forma que encontrou de ser pago para contar histórias. E é isso que continua agora fazer, através dos romances. Vai agora noseu terceiro romance, depois de um interregno de 10 anos. A pretexto de O monte do silêncio, escrito num estilo de thriller psicológico, o PÁGINA UM fala com Francisco Camacho numa entrevista onde inevitavelmente, se aborda o seu passado jornalístico e a sua visão sobre o estado actual da comunicação social portuguesa.


    O monte do silêncio é o teu terceiro romance e chega com uma década de distância desde o último; um intervalo ainda maior do que os sete anos que separam a publicação dos teus dois primeiros livros. Foi por falta de tempo ou de inspiração?

    Sim; eu larguei o jornalismo em 2010, e quando tive o convite para ser editor na LeYa, já tinha publicado o Niassa em 2007. E em 2010 já estava com vontade de escrever outro livro. E na altura pensei: agora que vou trabalhar no mundo dos livros, vou-me sentir mais estimulado para escrever o próximo.

    E não foi assim?

    Aconteceu-me o contrário. A verdade é que eu também não sou aquele autor que tem uma necessidade absolutamente compulsiva de escrever livros. Gosto de viver, sobretudo, e se possível, nos intervalos, escrevo.

    Mas já chegaste a dizer que sempre quiseste ser escritor e que só foste para jornalismo porque era uma profissão em que eras pago para escrever.

    Sim, mas é impossível, na verdade, porque há muito pouca gente que vive da escrita em Portugal; se é que há alguém que vive. Mas, nessa altura em que comecei a trabalhar como editor, estava tão rodeado de livros e de vozes de autores, que se tornou muito mais difícil escrever o segundo livro, A Última Canção da Noite. Acabei por escrevê-lo em 2013, ou seja, três anos depois de começar na edição. E, depois, este hiato gigantesco de 10 anos também se deve um bocado a isso; porque, às tantas, estás tão dentro das vozes dos autores que editas, que tens mais dificuldade em encontrar a tua própria voz. Por outro lado, há uma coisa muito mais prosaica: estás o dia todo agarrado ao computador a ler manuscritos, e a última coisa que te apetece quando chegas a casa, que é o tempo que tens para escrever os teus próprios livros, é sentares-te ao computador a escrever mais ainda. Portanto, isto demorou algum tempo, mas fui fazendo esse trabalho vagaroso de escrever o terceiro romance.

    Para o Niassa, utilizaste muita da tua bagagem e experiência jornalísticas. Depois, o segundo livro já foi menos inspirado em histórias verídicas. Este, que conta uma história mais “mundana” sobre um jovem atormentado, é o mais ficcionado dos três?

    Eu fiz três exercícios diferentes, mas todos muito conscientes. O primeiro é nitidamente um livro muito inspirado em reportagens que eu tinha feito em África, nomeadamente uma em particular, e é escrito na primeira pessoa. Com o segundo, quis fazer um romance na terceira pessoa; submeter-me a esse teste. E de todos, talvez seja o mais ficcionado, no sentido em que é menos assente na minha experiência de vida. Este, é um pouco um livro que acumula uma série de vivências que eu fui tendo desde muito novo, mas que evidentemente, muitas dessas experiências são ficcionadas. Mas acho que é o que tem mais de mim; não tem nada de jornalismo… Quer dizer, tem sempre, porque na verdade, há algumas passagens que eu só saberia escrever pela experiência que tive em termos jornalísticos. Nomeadamente, uma parte sobre um bairro muito pobre em Lisboa, Marvila, vem de uma reportagem que eu fiz para a Grande Reportagem. E essa veracidade que eu acho que consigo transmitir, vem do facto de eu ter estado lá. Portanto, o jornalismo está sempre presente; acho que vai estando cada vez menos, mas está sempre. Eu sou de um tempo em que… Esta frase até me custa dizer, porque acho que o jornalismo se transformou muito. Mas nos anos 1990, se eras jornalista e tinhas apetência para ser repórter, ias mesmo aos sítios; não havia essa coisa de fazer jornalismo de secretária. Havia os que eram repórteres, e os que não eram. Aqueles que iam atrás da notícia, e que no limite, não precisavam de sair da redação. Mas havia também o estímulo das chefias para perceber quem eram os repórteres e os tipos que eram bons para ir para o terreno e trazer histórias. E eu apanhei ainda muito isso. Acho que foi sempre aquilo em que fui melhor. Tive cargos de chefia ainda muito novo, e nessa altura passei a sair menos da redacção. Mas até então, fiz imensas reportagens e estive em sítios incríveis. Nem era preciso ir muito longe de Lisboa. Esse exemplo do bairro de Marvila fez-me conhecer uma realidade que eu achava que era impossível existir.

    Este é o livro que tem mais de ti, mas não no sentido de ser autobiográfico?

    Eu acho que todos os romances são um bocado autobiográficos; uns mais descaradamente que outros. Agora, há este estilo da autoficção, que está muito em voga. Mas há no livro coisas que eu trouxe ao de cima que têm um bocadinho a ver com a minha experiência, sim, como ex-adolescente, ex-muitas coisas; têm muito a ver com o meu passado. Há uma coisa engraçada sobre este livro, que é explorar muito os contrastes da sociedade portuguesa. Acho que isso é uma coisa muito relevante neste livro. Explora muito os contrastes entre as pessoas com muito poder económico, e as pessoas que não têm poder económico nenhum; as que têm a sorte de ter uma família boa, e as pessoas que têm a sorte ou o azar de terem nascido numa família disfuncional. E muitas vezes isso não tem nada a ver com o facto de teres nascido na classe alta ou na classe menos alta.

    Uma das coisas que me ocorreu foi a clivagem que por vezes existe entre as aparências e o que realmente se passa na esfera privada, porque esta família é abastada, mas guarda muitos “podres” e segredos… Isso foi algo em que pensaste?

    Isso é daquelas coisas em que tenho mais a resposta pronta. Eu tive a sorte de ter tido uns pais espectaculares, portanto, esse aspecto da “família disfuncional” talvez seja o menos autobiográfico. Eu sou filho de um casal de namorados até ao fim da vida, e foram uns pais fabulosos. Desse ponto de vista, o livro não tem nada a ver comigo. Mas cresci rodeado de muita gente que não teve a vida mais equilibrada, porque nasceu em famílias muito disfuncionais, e isso sempre me interessou muito: encontras estas pessoas em todas as classes sociais. E, às vezes, até acho que nas classes ditas mais privilegiadas, isto ainda tem um impacto maior, porque as coisas parecem fazer menos sentido. Se és filho de alguém que está desempregado, ou que se sente explorado no trabalho, ao fim de 20 ou 30 anos de profissão, tens uma capacidade maior de compreender eventuais comportamentos menos aceitáveis. Mas, de facto, pessoas que não tratam bem os filhos encontram-se em todas as classes sociais. Neste caso, do livro, ele não é filho; é uma mistura estranha entre sobrinho e enteado. Mas sempre me fascinou o facto de não haver nenhuma correspondência entre pessoas ou famílias financeiramente prósperas, e a felicidade e o equilíbrio. Portanto, esse falso arquétipo cai por terra. Da mesma maneira, conheço pessoas filhas de gente muito pobre que foram criadas num equilíbrio fantástico. E isto é uma coisa que está muito à vista em Portugal, só quem não quer é que não vê. Nós somos um país de contrastes sociais gigantescos. Tem uma coisa boa; se tu fores para a América do Sul, o México ou o Brasil, as classes sociais não se tocam, e aqui tocam-se. Em Portugal, estes mundos diferentes tocam-se com alguma facilidade e regularidade, e o mesmo não acontece na América Latina, onde as pessoas vivem em condomínios com metralhadoras à porta. E eu acho isso muito interessante em Portugal.

    E esses contrastes e “podres” de famílias mais prósperas, foi algo que o teu trabalho como jornalista te permitiu conhecer de forma mais profunda? Porque um jornalista pode ter acesso a segredos ou dados que não estão, por vezes, tão ao alcance da população em geral…

    Não; eu acho que há aqui uma parte que tem a ver com os contrastes que vi na minha adolescência. Porque eu mudei de casa muitas vezes, e ainda que nunca tenha saído do distrito de Lisboa, lidei com realidades muito diferentes entre os meus 12, 13 e os meus 18, 19 anos. É engraçado, porque eu vivi na Linha – onde hoje vivo –, mas depois fui viver para uma aldeia ao pé de Sintra, e depois fui para um sítio menos simpático de Lisboa. São apenas quatro ou cinco anos, mas são anos muito importantes na tua vida, e para mim foi muito impactante. De repente, eu estava confrontado com realidades completamente diferentes. E o narrador diz isso, aliás, é a parte em que eu mais me identifico com ele, quando diz que andou sempre com um pé em cada realidade, e que está grato porque cresceu muito por causa disso. E eu também acho que cresci muito com isso; hoje, tenho uma grande facilidade em estar confortável em qualquer ambiente. Esses quatro, cinco anos da minha adolescência forçaram-me a viver em realidades muito diferentes, e acho que essas realidades estão muito espelhadas no livro. Quando falas do jornalismo, na questão dos segredos e dos podres, acho que não. Esses “podres” que estão reflectidos no romance, de uma classe privilegiada que parece sistematicamente impune e que não é “trazida à pedra” pelos seus erros, pecados e perversões… Aí, basta ler os jornais; sou eu como um cidadão, que observa a realidade portuguesa. E eu acho que isso é uma das coisas que mais tem destruído uma certa crença neste país. Nós somos da geração do Sócrates, que nunca mais é condenado. E este pequeno, grande exemplo é muito importante para uma certa moral colectiva que fica abalada. E é isto que está reflectido no romance, saber que há pessoas que andam por aí e continuam a ter uma vida absolutamente normal e que, no limite, para as gerações mais recentes, em que depois se começa a esbater a questão do Sócrates… E é como se o crime compensasse. Porque não sermos golpistas ou vivermos de esquemas menos claros? Se isso não nos traz grandes adversidades…

    Também há um tema que já estava presente nos romances anteriores, que é o dos desaparecimentos e um clima de mistério. Este livro é, aliás, uma espécie de thriller psicológico, com a morte de uma personagem no centro do enredo. Tens uma predileção por este estilo literário?

    Pois, isto é um bocado um fetiche meu, a coisa dos desaparecimentos; acho apaixonante. Desde miúdo que leio livros e vejo séries e filmes sobre desaparecimentos, e acho uma coisa incrível: como é que alguém de repente se “desmaterializa” e aquela presença desaparece… E sim, é algo que está nos três livros. Costuma-se dizer que os autores têm as suas marcas. Tenho a certeza que nos próximos dois ou três vai haver alguém desaparecido nos meus livros, não consigo escapar isso; é mesmo uma paixão que eu tenho. E o tema da pedofilia está também presente no livro porque eu como jornalista fiz também várias coisas sobre pedofilia, e foi uma coisa que me impressionou sempre muito. Quando se fala, por exemplo, da mãe do Rui Pedro ou os pais da Maddie, eu costumo dizer que não deve haver tortura maior, mais do que morrer um filho é desaparecer um filho; porque nunca fazes o luto, nunca tens um corpo do qual te possas despedir. E essa expectativa do reaparecimento, que eu acho que nunca desaparece, deve ser a pior tortura que o ser humano pode experimentar. E isso também está no livro.

    Foste jornalista durante muitos anos e até assumiste vários cargos de chefia, mas como disseste, a tua ambição sempre passou sobretudo pela produção literária, que requer maior sensibilidade e uma vertente mais artística. Assim sendo, e se nunca te interessaste realmente por notícias, alguma vez te sentiste como um “peixe fora d’água” no jornalismo?

    Sim, sim, completamente. É uma excelente pergunta, de facto; senti-me muitas vezes “peixe fora d’água”. Nomeadamente porque em alguns colegas meus sentia um grande entusiasmo pelas notícias, pela agenda, e pelo dia-a-dia, que eu não conseguia sentir. Porque aquilo que sempre mais me entusiasmou no jornalismo foi a possibilidade, dizendo de uma maneira simplista, de “ver, ouvir e escrever”.  

    As reportagens?

    Sim, as reportagens. Eu acho que, pessoas como eu – e eu sei porque a minha mulher é igual, e também é escritora e era jornalista – fomos parar jornalismo, porque era a profissão que pagava para contarmos histórias. Ainda bem que há pessoas que vibram com notícias e que estão interessadas em perseguir aquela notícia ou história; e no fundo, acho que é isso que tem mantido o jornalismo vivo. Mas actualmente, acho que já pouco se lê reportagens. Há alguns meios de comunicação que ainda apostam nisso, e gosto, por exemplo, do Observador. Penso que fazem isso bem; é um jornal que eu gosto muito do ponto de vista do tratamento da informação, mas não gosto tanto do ponto de vista da Opinião. Acho que aí, é até lamentável. O trabalho que os jornalistas fazem no Observador é muito bom, mas na Opinião acho mau mesmo.

    É muito ideológico?

    Eu não tenho nada contra o ideológico, até prefiro um jornal que se assuma de uma maneira ou de outra do que um jornal que não o faça. Aliás, é uma tradição em Inglaterra, Espanha, França ou Itália os jornais assumirem-se como de direita ou de esquerda, e acho muito bem que o façam. Mas a meu ver, a melhor direita portuguesa não quer escrever no Observador. Não estou a dizer que sou de esquerda ou direita, mas sim que a direita que eu acho que faz falta, e que de alguma forma deixou de ter representatividade no Parlamento, não se revê na Opinião do Observador. Portanto, isto não é apenas o ponto de vista de alguém que é de esquerda, que até sou. Seja como for, o Observador faz jornalismo muito bom, e tem feito por manter a reportagem viva, e também na questão dos podcasts… Aí, tem sido um grande bastião do jornalismo, sem dúvida. Mas tudo isto desapareceu um bocadinho, porque a reportagem é uma coisa que requer dinheiro e investimento. O Público, com certeza que também o faz. Mas também me entristece ver, por exemplo, casos como o Diário de Notícias; como é que eles hoje vão fazer reportagens? As coisas mudaram drasticamente em 10 ou 15 anos.

    E como é que vês essa mudança no jornalismo, desde que saíste?

    Vejo com alguma tristeza, mas não sou só eu. Eu estive lá e fiz parte desse mundo, mas sinto que as pessoas que nunca foram jornalistas e sempre leram jornais, sentem algum desencanto com isso.

    Pois, o jornalismo está realmente em crise, numa situação muito frágil…

    Está completamente em crise. Deixou de ser um negócio altamente atraente, como nos anos 90. Eu tive a sorte de fazer parte de projectos muito interessantes, mas enfim, a vida é o que é.

    Francisco Camacho com a mulher, Dulce Garcia, também escritora e antiga jornalista.

    Sim, e alguns desses projectos, como o Jornal I, do qual foste também cofundador, têm vindo a decair bastante nos últimos anos. É particularmente triste para ti, como alguém que ajudou a lançar o jornal?

    Sim, causa-me alguma tristeza. O jornalismo requer investimento, e quando não há esse investimento, é impossível fazer jornalismo bem. As redacções estão depauperadas, não há nenhum investimento em qualidade. E eu percebo que não haja; não estou a dizer que se devia fazer as coisas de outra maneira, eu não sei qual é o segredo. É um facto, e só estou a constatá-lo. O jornalismo era um negócio muito atraente para alguns investidores, e deixou de o ser. Portanto, dá-me a ideia que hoje, as pessoas que têm jornais, ou têm um projecto político, ou têm projectos que eu não consigo classificar quais são; mas têm sempre uma agenda qualquer. E antigamente não, era como teres uma padaria ou uma fábrica de cortiça; se dá dinheiro, dá dinheiro, e dava, sendo um jornalismo livre na mesma, sem necessidade de grandes interferências da administração. Claro que os próprios directores dos jornais tinham um poder que já não têm hoje; podiam bater o pé às administrações, porque os resultados eram bons.  

    Nós no PÁGINA UM somos muito críticos do jornalismo actual, e é por esse motivo que existimos… Qual dirias ser o principal problema que o jornalismo enfrenta?

    Eu acho que a origem dos problemas é falta de dinheiro. Porque assim não conseguem contratar bons profissionais, ou pelo menos, os melhores profissionais. Acho que há muita carolice nos jovens jornalistas, ainda bem que existe; portanto, muita gente que está no jornalismo está por convicção.

    Mas a falta de dinheiro também se deve à queda na procura de jornais…

    Eu quando, por vezes, sei de jornalistas que estão agora nos 20 e tal ou 30 anos e que recebem o mesmo que uma empregada doméstica, a única coisa que eu posso achar é que eles estão lá por convicção e porque adoram o que fazem. Mas, mais tarde ou mais cedo, quando essas pessoas tiverem filhos e outras responsabilidades, é inevitável que deixem o jornalismo. E quem é que vai sobrar para fazer jornalismo? Isso preocupa-me.

    E neste momento, não vês uma saída para esta questão? Uma luz ao fundo do túnel?

    Não, não vejo uma saída; porque também me custa um bocadinho estar com um discurso que é utópico, de dizer que devia ser assim ou assado. No fim do dia, tem de haver público que financie, e isso significa haver investidores e publicidade a pagar os jornais. Quando isso acontecer, é evidente que um órgão de comunicação estará mais próspero, fluente e mais poderoso, nesse sentido. Mas quando se tem as notícias de graça, e inúmeras fontes a que recorrer sem ter de se pagar um centavo, acho complicado dar a volta. Claro que tenho as minhas utopias, como toda a gente. Posso dizer “não, eu acredito que as pessoas estão dispostas a pagar por jornalismo de altíssima qualidade”, mas não sei se é exactamente assim.

    Ainda continuas com um olhar atento e jornalístico em relação à actualidade? Ou passados estes anos todos, já despiste um pouco essa pele?

    Eu acho que no meu livro se percebe que ainda sou um jornalista. Quando digo coisas como a epidemia de droga que houve nos anos 80 e 90 está esquecida, e que as pessoas têm dificuldade em recordar isso. A quantidade de famílias que ficaram altamente marcadas por essa questão, e que já não se ouve falar disso, parece que isso desapareceu. É como se daqui a 20 anos se deixasse de falar da covid, e esse assunto desaparecesse.

    Parece que hoje “corre-se” de uns assuntos para os outros, e perde-se, por vezes, a continuidade de alguns temas importantes.

    Exactamente. Quando no livro falo, por exemplo, dos imigrantes, não falo na Costa Vicentina, mas qualquer pessoa minimamente atenta percebe que estou a falar na Costa Vicentina. Isso também é jornalismo, de alguma forma; está em mim. Não me vejo a escrever um livro completamente desligado da realidade, e isso tem a ver com o meu lado jornalístico.

    E, ainda para mais, cresceste numa família de jornalistas [risos].

    [risos] Sim, venho de uma família de jornalistas: o meu irmão, o meu pai, a minha mãe…

    Falavam muito de notícias em casa?

    Zero. Aliás, houve uma altura em que o meu irmão Pedro era director da Visão, eu era editor executivo da Sábado, e o meu irmão Paulo era pivô da SIC, e nós nunca falávamos de jornalismo em casa. A minha mãe já estava reformada… Mas não, nunca falávamos. Quando vejo uma entrevista do Ricardo Costa a dizer que não fala com o irmão sobre política, acredito que seja mesmo assim, porque eu percebo isso. Tem de haver uns certos limites.  

    Mas eu imaginaria um ambiente um bocado frenético, numa família de jornalistas [risos].

    Quer dizer, nós falávamos de actualidade, tínhamos discussões em casa. Por exemplo, a minha mãe sempre foi muito simpatizante de Israel e da causa judaica. E lembro-me dela ser confrontada por nós sobre o que Israel estava a fazer aos palestinianos, e enfim, nem tínhamos chegado ao extremo de hoje. E havia ali uma certa tensão.

    Tinham visões diferentes?

    Tínhamos, sim. Portanto, falávamos da actualidade, mas não falávamos do funcionamento dos sítios onde trabalhávamos. Quando o meu irmão Pedro era director na Visão, e eu estava na Sábado, era impensável eu estar a trocar cromos com ele sobre qual seria a história de capa, ou algo do género; ainda por cima numa altura em que as news magazines vendiam imenso… Isso não, nunca aconteceu.

    Ser editor, apesar de tudo, é um trabalho mais tranquilo do que ser jornalista?

    Não, é diferente. Eu como editor, trabalho 24 horas por dia. Ou seja, tenho sempre a cabeça nos livros que eu quero fazer. 24 horas será exagero, porque também tenho de dormir, e não sonho com isto [risos]. Mas é um trabalho mentalmente mais absorvente.  Não tenho é aquela coisa que eu acho que me fartei, que é estar agarrado à agenda não sei quantas horas por dia. E isso é uma coisa que eu não quero voltar a fazer; só se tiver de ser. Na verdade, eu tive uma experiência de um jornal diário, que foi o I, mas eu sempre trabalhei mais em imprensa semanal, ou até mesmo mensal, na Grande Reportagem.

    Não tens saudades de ter de estar sempre em cima dos acontecimentos?  

    Não; tu como jornalista tens de estar sempre em cima dos acontecimentos que te atraem, e dos outros todos. Tens de estar em cima de tudo, e isso é uma coisa que, enfim, não me apetece muito.

    Daqui para a frente, podemos contar com livros teus com maior regularidade, ou é impossível de prever? [risos]

    Eu quero. Tenho tido um feedback fabuloso deste livro, que não tem muito a ver com o impacto no mercado, mas tem a ver com aquilo que as pessoas me dizem. Mas também tenho a capacidade de perceber que há 10 anos, quando lancei A última canção da noite, não havia redes sociais. Portanto, a comunicação é completamente diferente. Agora recebes tudo “em carne viva”, e pessoas que não conheces de lado nenhum mandam-te mensagens, “whatsapps”, e coisas através do Instagram e do Facebook a dizer que adoraram o livro. Eu tento também filtrar isso, mas é evidente que tem impacto. O meu principal objectivo neste livro parece cumprido. Isto pode parecer um objectivo um bocadinho modesto, mas na verdade, o que eu quis foi que as pessoas se agarrassem ao livro e não o largassem. Quis envolver o leitor. E tenho ouvido muitas opiniões, umas pessoas gostam menos e outras gostam mais, mas todas me dizem mais ou menos o mesmo: “comecei a ler aquilo num dia, e dormi menos para ler o teu livro”…  

    Esse é o melhor feedback, para ti?

    É, porque tem a ver com os meus objectivos. Não tive a pretensão de escrever um livro em que as pessoas começassem a pensar, por exemplo, no seu papel no mundo. Eu quis foi que as pessoas se mantivessem fortemente ligadas ao livro enquanto o estivessem a ler.  E isso para mim é muito bom. Até porque eu acho que nós em Portugal temos aqui um problema complicado com o mainstream, com o “meio”; e acho que isso acontece também com a Música, com o Cinema. As coisas são muito radicalizadas e concentradas em dois lados – há uma literatura intelectualizada, um bocado de nicho, e depois há um lado, nessas várias manifestações artísticas, que é carimbada como sendo comercial, ou “light”, o que queiramos chamar. E há problema com o mainstream, com aquilo que os ingleses e os americanos chamam quality fiction, em que um texto tem de ser irrepreensível do ponto de vista formal, mas sem grandes pretensões literárias. Depois, no fim, até pode ser considerado literariamente uma coisa bem feita, mas não existe essa pretensão a priori. E à minha modesta escala, quero contribuir para que isso deixe de ser assim, e que as pessoas se sintam entusiasmadas a ler um livro porque estão agarradas à história e não a um discurso. Eu não pretendi discursar para as massas, mas sim escrever uma boa história, e acho que terei conseguido o meu objectivo.

    Sentias que havia uma falta deste género de livros?

    Não posso dizer que tenha feito isto de uma forma consciente para colmatar uma falta. O que eu acho é que isso falta em Portugal. Tenho pena que o Francisco José Viegas não escreva mais, ou o Miguel Sousa Tavares. O João Pinto Coelho escreve bastante e gosto imenso dele, o João Tordo também escreve muito bem.

    Temos muitos escritores de qualidade…

    Temos qualidade, mas estas pessoas que estão aqui neste “meio” que refiro não me parecem muito bem-ditas. Há muito nicho, acho que a literatura em Portugal está muito metida em pequenos enclaves. Ou seja, tens pessoas que escrevem belissimamente e que cada livro revoluciona quase a linguagem, mas eu acho que antes de chegarmos a isso temos de fazer outras coisas. Uma vez, um editor espanhol disse uma coisa interessante, que não sei se é certa ou errada, mas que me fez pensar. Ele disse que em Espanha, tinham escritores que cada vez que escreviam um livro, vendiam imenso, porque estavam a contar histórias às pessoas; e que parecia que nós, escritores portugueses, estávamos no exercício permanente de nos desligarmos das pessoas, e de fazer qualquer coisa que não chega ao cidadão comum. E para mim, uma das grandes funções da literatura – nem queria usar esta palavra porque às vezes parece uma coisa pretensiosa –, é chegar às pessoas. Independentemente de ser um professor universitário ou uma cabeleireira, não interessa, porque todas as pessoas estão abertas a ler uma boa história.  E acho que há muita gente em Portugal a escrever para uma elite que ainda por cima é uma que não é exactamente palpável, nem se percebe bem quem é essa elite.

    Colocam-se numa espécie de pedestal?

    Sim, e é tudo difícil… “Epá, gostei imenso do livro do não sei quantos, mas aquilo custou-me imenso a ler”. Acho bem que essas pessoas continuem a existir, porque, no limite, vão abrindo um certo caminho, mas é como se nós quiséssemos ir directamente da primária para o mestrado sem passar pelo secundário. E eu estou bem no secundário.

    Não tens pressa de chegar ao mestrado? [risos]

    Não tenho pressa nem quero chegar lá. Acho que é importante contarmos boas histórias, e um bom romance é uma narrativa, é contar uma história, e não um discurso. São coisas diferentes, e há lugar para tudo, eu sei. Uma vez, no Público, há uns anos, classificaram-me como um “narrador”. E eu fiquei todo contente, porque é mesmo isso que eu sou, gosto de contar histórias. Agora, não confundamos; quando dizem que o meu livro é um policial… Quem o ler, vai perceber que é muito mais do que um policial. Hoje, diz-se um “thriller”, mas acho que é muito mais do que isso. A questão da intriga sinuosa é apenas o motor para que as pessoas avancem no livro. Há ali um assassinato no início, mas se formos a ver, é o que menos importa para a história [risos]. É um estratagema para que as pessoas se mantenham agarradas à história. É engraçado, porque não era um livro do qual eu estava absolutamente seguro que resultasse, mas é engraçado ver a reação das pessoas que, de facto, se sentem muito compensadas, e não dão o seu tempo como perdido. E isso é muito bom.

  • ‘O jornalismo não pode ser permeável às modas linguísticas, ideológicas ou morais’

    ‘O jornalismo não pode ser permeável às modas linguísticas, ideológicas ou morais’

    Jornalista veterano, Mário Carneiro anda no ramo há mais de 30 anos, já passou pelos três principais canais de televisão portugueses, e é, desde Março de 2020, director de Informação do portal Sapo. Juntamente com o também jornalista António Luís Marinho, publicou ainda os livros 1974:o ano que começou em Abril, 1975: o ano que terminou em Novembro, e Portugal à lei da bala. A febre do “wokismo” levou-o agora a despir a pele de “jornalista sério”, para encarnar uma postura mais humorística e provocadora: com Uma noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos faz uma paródia do clima de censura actual, que tudo quer “corrigir”, e reescreveu dez conhecidas histórias infantis, de forma a não ferir quaisquer susceptibilidades…


    Não é o primeiro livro que escreve, mas este Noite descansada: dez contos tradicionais politicamente correctos destoa bastante dos anteriores. Que motivo o levou a escrevê-lo?

    Isto tem uma motivação muito antiga: há cerca de 30 anos, quando se começou a ouvir falar do politicamente correcto, tive a ideia de fazer uma coisa enorme, que era um dicionário de português para português politicamente correcto. Era um bocado a onda deste livro, só que em dicionário, e comecei. Só que 30 anos depois, ainda estava para em “Abóbora”, quer dizer, ainda não tinha passado da letra A. E é um trabalho muito chato, que nunca mais acaba, e é desgarrado, não tem a continuidade de uma narrativa. E, sinceramente, o que me motivava, por um lado, era achar que tinha de ser feito e, por outro lado, tinha medo que alguém fizesse aquilo antes de mim, e eu iria ficar doido por causa de todo o trabalho que tive e que ia para o lixo. Até que decidi que não era aquilo, de facto. E agora, mais recentemente, quando vi aquela censura – que não tem outro nome – aos contos de Roald Dahl, achei que era um bocado demais. Ao princípio, eu ria-me com isto. E depois, muitas pessoas com quem me dou, começaram-me a chamar a atenção que, se calhar, não era motivo para rir tanto assim. Mesmo assim, eu continuava-me a rir, porque tenho uma atitude de riso perante a vida e perante o bizarro. Mas comecei a achar que isto se calhar não é tão inocente e não é tão ‘simplesmente parvo’ como parece, se calhar merece uma outra abordagem. E achei que a abordagem interessante era mesmo esta. Então, pensei, ok, vou jogar o jogo deles: vou pegar nos contos tradicionais, e vou fazer uma versão dos contos – não como eles fariam –, mas muito para lá do que eles fariam, e expor todo o ridículo deste tipo de argumentação e de comportamento e de censura.

    Portanto, já “detectou” os primeiros sinais do politicamente correcto há 30 anos.

    Sim, há 30 anos era em pequenas coisas. Eram pequenas coisas, se calhar mais ou menos inocentes e, talvez até, bem-intencionadas. Só que depois isto começou a alastrar e agora está em todo o lado. E a atitude, ou de ignorarmos, ou de rirmos, pode ser perigosa, porque de repente isto pode estar de tal forma instalado que é difícil de desconstruir. Portanto, dei o meu contributo para começar a ‘desconstrução’.

    Parece ser consensual que este fenómeno começou nos Estados Unidos. Também tem essa percepção?

    Sim, também tenho essa ideia. Isto é engraçado porque se nós olharmos para o que isto é – e estou a ser o mais honesto que consigo ser em relação a transmitir aquilo que eu penso mesmo –, eu acho que isto é uma mistura de 30% de patetice, 30% de paternalismo e 30% de puritanismo. E depois sobram 10% de boas intenções, e metade delas são parvas. Portanto, eu acho que isto tem muito pouco que se aproveite, mas nestes 3 P’s que eu vejo aqui, quer o puritanismo, quer o paternalismo, são conceitos muito presentes na cultura norte-americana. Este cuidado ultra paternalista e ultra puritano tem muito a ver com eles. E é um modelo que, eu sei, e todos sabemos, que até nos Estados Unidos é contestado por muita gente. E o que diríamos cá? É que o ultra paternalismo e puritanismo não têm raízes na nossa civilização, muito pelo contrário. Ou já tiveram, se calhar, mas não têm neste momento.

    Mas mesmo assim está a pegar por cá…

    Está a pegar por uma razão simples: porque é um discurso fácil. É um discurso “da moda”, e é um discurso que não obriga nem a ter background nem a fazer nada, é só ‘desmontar’. Ninguém tem de apresentar uma alternativa, tem só de desconstruir o que já está feito. Isto é extremamente fácil, e permite a desresponsabilização também.  E é preocupante porque nós, em termos civilizacionais, temos todo o direito à indignação e é bom que nos indignemos, nos revoltemos e que lutemos pelos direitos dos outros e pela igualdade… Seja pelo que for, temos todo o direito, e se calhar até o dever, de nos indignarmos. Mas acontece que estamos a viver uma época em que as pessoas vão atrás de quem é o indignado e não de qual é a indignação. Basta pensar que há uns anos estávamos todos, a meu ver, legitimamente indignados, porque os talibãs destruíram as estátuas dos Buda com dinamite. Agora, não conseguimos ter o mesmo tipo de indignação quando vemos estátuas nossas, da nossa civilização, da nossa cultura ocidental, a serem pichadas, derrubadas e escondidas. Porquê? Porque a indignação é a mesma, mas o indignado é outro. Portanto, isto de escolher lados e causas conforme quem é um indignado e não conforme qual é a indignação, é altamente preocupante. E estas selectividade também é própria do politicamente correcto.

    Talvez a razão dessa indignação selectiva seja porque não se trata de uma questão de valores?

    Não, não!, trata-se de abrir as redes sociais e olhar e ver: “quem é que hoje está no pelourinho? O que é que lhe estão a atirar? Vou contribuir também com a minha batata ou com o meu pedregulho e atirar”. Não exige nada, desresponsabiliza, começa e acaba hoje, for preciso… Não há melhor.

    Para além da reedição dos contos de Roald Dahl, houve mais algum episódio ou notícia que o tenha chocado particularmente?

    Sim, há coisas que me chocam. Quer dizer, só nos podem chocar… A história da professora de Artes nos Estados Unidos, que foi demitida da escola porque mostrou aos alunos um PowerPoint ou uma fotografia que tinha a estátua de David, e como os pais não tinham sido avisados, no início do ano, de que ela ia mostrar material “pornográfico”… É assustador: “pornográfico”! E ela foi demitida. Quando nós começarmos a consentir isto… Obviamente que eu – como qualquer pessoa normal – acho que as crianças de qualquer idade, sobretudo em idade escolar e em meio escolar, não podem ser submetidas a ver pornografia. Como é óbvio. Só que, caramba, se a estátua do David é pornografia, onde é que nós vamos parar?

    Tenho a percepção de que muitos jornalistas parecem “alinhar” com e promover, de certa forma, o politicamente correcto: em peças, reportagens, e artigos de opinião. Nesse aspecto, o Mário sente-se muito diferente da generalidade dos jornalistas?

    Espero que não. Sinto-me diferente, mas espero que não seja diferente da maioria. Defendo com a vida que as pessoas possam escrever o que quiserem em artigos de opinião, porque são espaços de opinião, assinados. Portanto, se um jornalista com carteira profissional quiser fazer um artigo de opinião a defender rigorosamente o contrário daquilo que eu estou a defender, acho lindamente. Nas notícias, já não acho graça nenhuma que esteja presente qualquer tipo de contaminação por qualquer tipo de corrente ou de “moda ideológica” que esteja em vigor. Há aqui uma questão, que é: há muita gente que quer ficar bem na fotografia, e faz o que for preciso para ficar bem na fotografia. Eu não quero ficar bem na fotografia – eu nem faço questão de ficar na fotografia. Agora, não vou permitir é que transformem a História numa caricatura do que é a História. A História tem um papel lixado: é sempre um réu. Nunca nos julga. E nós, no passado, cometemos erros grotescos, idiotas, cruéis, hediondos. E enormes virtudes também! As mesmas mãos que fizeram a bomba atómica, fizeram as catedrais góticas. As mesmas mãos que compuseram as sinfonias de Beethoven, fizeram câmaras de tortura. Portanto, nós, para trás, temos do melhor e do pior. Agora, nós não podemos ter o desplante de achar que podemos julgar a História. Aliás, alterar a História: esse é que é o ponto-chave. Olhar para trás e ter um juízo crítico, e pensar “isto foi um disparate tão grande que aquilo que nós mais queremos é que não se repita”, é-nos exigível. Olhar para trás e ‘dourar a pílula’ ou alterar as coisas… Nascer com um sentimento de culpa! Esta coisa, que acaba por ser quase judaico-cristã, que é: nós, enquanto comunidade, estamos todos a pedir desculpa por coisas que os nossos antepassados fizeram. E que estão ultrapassadas! O mais importante é que nós, no futuro, não façamos igual ao que fizemos anteriormente, e integrarmos os erros e as pessoas que foram vítimas desses erros no passado. Agora, esta autoflagelação constante… Ainda agora nasci e já tenho culpa? Não faz sentido nenhum. E sinto, sim, que algum jornalismo – e aí, eu sou um optimista, espero mesmo estar certo –, e não a maior parte do jornalismo, segue essa corrente. É uma corrente facilitista. Portanto, não é de espantar.

    Mas nota-se bem?

    Sim, nota-se, aqui e ali. Não posso dizer que é este órgão de comunicação, ou este jornal ou aquela rádio, não. Se isto continuar assim, daqui a uns anos, talvez até se note. Mas não, por enquanto, o que noto é mais a nível individual: esta ou aquela pessoa, ou este tipo de artigos. Aí sim, nota-se.

    Portanto, diria que se calhar uma parte boa dos seus colegas na comunicação social mainstream não ia achar muita piada a este livro?

    [pausa] Duas coisas. Primeiro: acho que alguns nem iam perceber. Não iam perceber. Explico-me, para não parecer que é uma sobranceria intelectual. Não iam perceber porque iam ficar na dúvida sobre o que eu estava, afinal, a fazer: se era um exercício de sarcasmo ou se era um exercício de exposição de uma causa. E em segundo lugar – já no outro dia disse a alguém, e sublinho –, este livro tem uma coisa óptima. É um excelente presente para dar uma pessoa de quem gostamos, e é também um excelente presente para darmos a uma pessoa de quem não gostamos [risos]. Portanto, acho que isto diz tudo. Mesmo dentro da classe profissional, tão depressa ofereceria este livro a um jornalista que eu admiro e de quem goste, como a um jornalista que não gosto tanto ou cujo trabalho não respeito tanto.

    Este livro é uma reescrita de contos em jeito de paródia, mas já temos visto remakes de histórias e filmes da Disney, por exemplo, em nome da diversidade e da inclusão. Em relação às crianças, vê com alguma preocupação que estejam a viver em ambientes cada vez mais “assépticos” onde é já proibido chamar qualquer ‘nome’, em jeito de brincadeira, a um colega?

    Não; ofender, acho sempre péssimo. Uma brincadeira só uma brincadeira quando as duas pessoas estão a brincar. Não defendo que as pessoas possam ser ofendidas, nem que possam ser ostracizadas por serem diferentes. Mas também não defendo uma “cultura” do melindre permanente: tudo pode melindrar as pessoas, tudo pode fazer mal e tem de se ter cuidado com tudo… Isso não. Educar é preparar as crianças para um mundo que vai ter dias de sol e dias de chuva. Portanto, não é só oferecer, ‘em termos comportamentais’, t-shirt e protector solar. É, também, oferecer botas e guarda-chuvas, porque há dias que não vão ser bons. Os miúdos vão ter dias bons e dias maus. E educar é prepará-los para os dias bons, prepará-los ainda melhor para os dias maus, e nunca esquecer que tanto nos dias bons como nos dias maus, uma coisa que têm de fazer é estar atentos para dar a mão a alguém que esteja ao lado e ajudar. É tão simples quanto isto. Tudo o resto, esta forma de estar na vida em que se tem de ter um cuidado excessivo para não melindrar, e em que já estamos nós a medir a capacidade de os outros ficarem melindrados… Isto é o paternalismo levado ao extremo. E uso um exemplo, que é: os cegos, em geral, não gostam de ser tratados por “invisuais”. Quem criou a expressão “invisual” foram as pessoas que veem, e começaram a tratar os cegos por assim. Sem lhes perguntar a opinião – e eles não gostam. É um ultra paternalismo. As pessoas têm uma doença que se chama cegueira, portanto, são cegas. Eles próprios não querem, ou não apreciam, ser tratados por “invisuais”. E este cuidado extremo, esta paranoia com o melindre, não prepara as crianças. E isso preocupa-me. As crianças terem só uma versão da História, isso já tem a ver com a educação que os pais lhes dão. Agora, não estão a preparar melhores adultos, de todo. Estão a preparar adultos indefesos, porque nem toda a gente está a fazer isso. Se toda a gente estivesse a fazê-lo – eu acharia na mesma que era patético, mas pronto –, as sociedades vindouras seriam assim. Mas não é o caso. Esses miúdos ultraprotegidos vão estar lado a lado, nos campos de futebol a jogar à bola, nas salas de aulas e nas filas para o emprego, com miúdos que foram educados com os princípios – e aqui vou ter de usar a expressão – “normais”. E vão estar em desvantagem.

    Pois, porque já não nasceram e cresceram nesse ambiente e não ganharam “anticorpos”.

    É engraçado; há uns anos, lembro-me de ter lido um artigo, que faz todo o sentido, e que dizia que as crianças estavam a perder imensas imunidades por terem deixado de ter animais dentro de casa, como cães e gatos. Antes, os miúdos andavam com os cães e com os gatos, metiam-lhes a mão e depois metiam na boca… E os miúdos apanhavam umas viroses, e ganhavam uma série de imunidades. Quando os cães e os gatos começaram a estar mais afastados, os miúdos começaram a perder imunidade, porque não estavam expostos a essas “agressões”. Portanto, eu não sou adepto de que os miúdos devam ser postos dentro de pocilgas e de currais, para andarem ali a rebolar na ‘caca’ dos animais e saem de lá todos fortes. Mas se calhar os cães e os gatos que nós tirámos de dentro de casa há uns anos, fazem falta. E aqui é a mesma coisa: esta ultra cultura de melindre que não se pode dizer nada ao menino, isto não prepara ninguém!  Retira-lhes defesas naturais e anticorpos. Vamos ver o que acontece daqui a uns anos… Hoje, já nos queixamos que esta gente toda tem é muitos direitos e poucas obrigações. No outro dia, alguém dizia, com uma certa graça, que aquilo que estas gerações dizem que é uma exigência, para as anteriores era uma ambição. Andam-se a perder aqui passos pelo meio, e se calhar não é boa ideia.

    Parece que é tudo cada vez mais fácil?

    Sim, e é mentira, porque não é nada fácil. Se há coisa que nós aprendemos à medida que vamos vivendo, é que a vida não é fácil. Mas se calhar também faz parte da magia dela.

    Disse que este politicamente correcto é uma mistura de puritanismo, com paternalismo e patetice. Portanto, não vê que haja, também, más intenções por parte de algumas pessoas?

    Pois, eu sei que existe um bocadinho, digamos, a tese de que isto é um movimento, e que tem qualquer coisa por detrás. Eu acho que isto não é orgânico, e acho que a estupidez, felizmente, não é orgânica. Portanto, há núcleos de estupidez e, actualmente, com as redes sociais, as pessoas começam a encontrar mais pontos de contacto e razões para se identificarem. E, se calhar, começam-se a sentir mais normais por serem estúpidas. O que eu acho é que existe muita estupidez, que está espalhada, e com a facilidade que temos hoje com as comunicações, esta estupidez se calhar liga-se com mais facilidade, e dá a ideia de que é um movimento. Não me parece que seja um movimento, mas se calhar posso estar enganado e a ser ingénuo. Talvez haja três ou quatro pessoas mais organizadas que querem fazer alguma coisa disto, mas não me parece que seja.

    Uma das consequências deste fenómeno, é que aqueles que se opõem, acabam por se alinhar mais com movimentos de direita como uma forma de tentar combatê-lo.

    Sim, é mais ou menos fácil isso acontecer, mas também é um bocado tonto. Vamos lá ver: o puritanismo, levado ao extremo, é um conceito muito mais caro à direita do que à esquerda. É quase uma questão de rigidez moral. A esquerda é que tinha, ou costuma ter, quase o exclusivo das grandes liberdades morais, dos livres-arbítrios morais… Eu sei que de vez em quando parece colar, mas depois acaba por ser contra-natura. Lá está, eu acho que isto é estupidez, e a estupidez é transversal. Há estupidez à esquerda e à direita, génios à esquerda e à direita… Isto é um comboio de estúpidos [risos]. Não, também estou a exagerar…  Mas é uma coligação de estupidezes.

    E na sua visão, combate-se com o humor? E o jornalismo, também pode ter um papel?

    O jornalismo, se for sério, tem sempre um papel. E o jornalismo tem de ser sério. Tem sempre um papel, que é pôr um travão a coisas que não façam sentido. Portanto, o jornalismo tem o seu papel – não pode ser permeável às modas. Não pode! Nem às modas linguísticas, nem às modas ideológicas ou morais. O jornalismo é um espelho da sociedade e do tempo em que vivemos. Se calhar, com o tempo, esta permeabilidade torna-se uma inevitabilidade. Agora, enquanto é só uma moda, o jornalismo não pode andar atrás de modas.

    Quanto ao humor, eu diria que é uma boa ferramenta. Usando a linguagem dos contos – que é de contos que estamos a falar –, isto é um bocadinho a história do traje novo do rei, do miúdo que diz “o rei vai nu”. Este exercício de apontar o ridículo de o rei ir nu, e toda a gente estar a gabar a roupa nova do rei, é um exercício que tem um bocadinho de humor, um bocadinho de sarcasmo, mas também tem um bocadinho de tristeza por ter de estar a fazer isso. Mas acho que tem de ser feito. Eu não ficava bem com a minha consciência se visse isto a acontecer e não fizesse nada, se me mantivesse só a comentar com amigos, a dizer “que estupidez, já viste”, e por aí fora. Eu acho que o humor não vence guerras, mas resiste.

    Pois, há quem ache que o melhor a fazer é mesmo ridicularizar e usar o humor como “arma”.

    Sim, é resistência. Isto não é uma guerra, e ainda bem que não é. Mas também se fosse uma guerra – lá está –, o humor não vence guerras, o humor ajuda na assistência. A Segunda Guerra Mundial tem excelentes anedotas, e muitas delas – até li um livro há uns anos –, contadas por judeus que estavam a passar o pior que se pode imaginar e que perceberam que, se calhar com o humor, não ganhavam a guerra, mas resistiam.

    Até agora, já teve algumas reacções ou feedback ‘engraçados’ ao livro?

    Até agora, as pessoas têm sido todas muito simpáticas e têm gostado muito, eu acho [risos]. Muito honestamente, não é por ter sido eu a escrever, mas acho que o livro está muito divertido. Eu diverti-me imenso a escrevê-lo. Acho que o livro está divertido e que as pessoas se divertem a ler. E ainda não tive – eventualmente terei, e estou pronto para isso, para debater alguma coisa que alguém não goste, ou que alguém, justificadamente, queira contrapor… Mas não, até agora, as reacções têm sido mesmo muito positivas.

  • ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    ‘Em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver’

    É já um fenómeno da literatura brasileira, embora ainda com uma carreira literária curta. O primeiro romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado, arrecadou o Prémio Leya 2018 (e depois o Prémio Oceanos e também o Jabuti), foi aclamado pelo público e pela crítica, já vendeu mais de 750 mil exemplares, foi traduzido em 24 línguas e será adaptado ao pequeno écrã. Formado em Geografia e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, este baiano transporta para a sua arte os universos com os quais se cruzou desde a infância – primeiro através das suas raízes familiares, e até dos seus antepassados, e depois pelo trabalho que exerceu para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O colonialismo, que diz ainda existir no Brasil, as desigualdades e as injustiças sociais são temas omnipresentes na sua escrita. O seu segundo romance, Salvar o Fogo, dá novo corpo à realidade dos que não podem falar por si. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, o autor critica as grandes tecnológicas, pelo seu papel na crescente polarização da sociedade, que vê como uma ameaça à democracia, e reforça a importância de se saber conviver com a diferença.


    Na sua escrita, há uma tónica muito forte de intensidade, de vivacidade nas palavras e num modo emotivo de contar a história. Essa intensidade vem das suas experiências de vida mais marcantes?

    Sim, acho que tem uma relação com isso que você disse, eu até falava mais cedo. Esse mundo da leitura… Tem uma história de Moisés em Salvar o Fogo, quando ele fala da descoberta da leitura, acho que nesse ponto a minha vida se aproxima da história da personagem. Porque de facto, a minha rotina e o meu quotidiano, transformaram-se. Quando eu descobri a leitura, eu tenho a impressão de que a minha vida ficou maior, que ela não se restringe apenas a este espaço que nós chamamos de real. Há todo um mundo imaginário onde eu habito também, e onde as minhas personagens habitam, e que me dão histórias e narrativas que tornam a minha vida maior do que ela é. Então, eu tenho uma sensação de que eu habito estes dois planos – o que nós convencionamos chamar de real –, mas eu também habito a minha imaginação, este plano imaginário. E daí, imaginar que as histórias dessas personagens foram sentidas de uma maneira literal por mim neste plano e transmutar tudo isso em narrativas; transmutar tudo isso para a literatura. O meu interesse pela literatura, e acho que a maior parte do interesse dos autores, no fundo é a gente estar se debruçando sobre a nossa condição humana. Daí a importância de compreendermos as histórias, os sentimentos, e tudo aquilo que faz parte de uma narrativa literária.

    Além da imaginação, também o seu percurso profissional e académico permitiu que tivesse um contacto muito próximo com a realidade do Brasil profundo, onde há extrema pobreza e comunidades carenciadas. Que bagagem é que o seu trabalho lhe deu para escrever as histórias? Seria capaz de retratar estas personagens sem essas vivências?

    Olha, acho que talvez eu conseguisse escrever, mas não estas histórias e estas narrativas que eu tenho escrito. Vou dar o exemplo de Torto Arado, que é uma história que surgiu para mim muito cedo, na adolescência. Eu era muito influenciado por uma literatura brasileira que tinha sido escrita na primeira metade do século XX, que era uma literatura plural e que dava conta da nossa diversidade étnica e cultural; e depois, o Brasil perdeu-se um pouco neste caminho. Então, eu gostava muito dessa literatura e já foi algo que despertou a escrita de Torto Arado. Mas eu era muito novo, tinha 16 anos, não tinha metade das experiências da vida que eu tive, e que conquistei depois… E aí quando eu fui trabalhar como servidor público no campo brasileiro, há mais de 17 anos, aquela história que já existia em mim cresceu e eu pude contá-la com a densidade e a profundidade com que foi narrada. Então, eu sinto todas essas experiências profissionais que eu tive – e não só profissionais, mas do ponto de vista académico. Eu terminei o curso fazendo graduação em Geografia, fiz mestrado em Geografia e depois um doutoramento no campo da Antropologia e Estudos Étnicos. Toda essa formação me deu um repertório de vida e social que termina reverberando naquilo que eu escrevo. Não existe, nem é dissociável o Itamar que foi pesquisador e cientista e o Itamar escritor; o Itamar servidor público e o Itamar escritor. Eu sou apenas uma pessoa, e tudo aquilo que eu experimentei e vivi termina reverberando naquilo que eu narro e escrevo também.

    A pobreza, as desigualdades, o colonialismo e o racismo são temas que não só estão presentes na sua obra, como também os tem abordado publicamente. Considera que um artista deve usar a sua visibilidade para se tornar também, de certa forma, um activista?

    Eu gostaria de não ser lido e não ser visto como um activista. Mas eu acho que todos nós criadores que trabalhamos com arte – não só na literatura, mas num contexto geral – estamos reflectindo sobre o nosso tempo, não é? A arte termina sendo um testemunho que temos a compartilhar com o outro da nossa vida, do meio onde vivemos, daquilo que é relevante para nós, daquilo que precisamos pensar e reflectir no nosso tempo. Então, eu acho que é inevitável que coisas que fazem parte do nosso mundo hoje, ou que fazem parte das nossas preocupações hoje, surjam naquilo que nós escrevemos. E claro, depois que me tornei autor e conquistei leitores, eventualmente eu precisei me manifestar como pessoa pública, como cidadão, sobre temas relevantes para o Brasil. Não gostaria de fazer isso com frequência, e tento não fazer com frequência, mas, por exemplo nas últimas eleições presidenciais, eu percebia que o país estava em risco. Então, não havia possibilidade de permanecermos neutros, até porque a neutralidade é uma conduta e uma opção política, não é? E eu disse: não, eu preciso me manifestar.

    Torto Arado, romance inédito vencedor do Prémio Leya 2018, arrecadou depois, no Brasil os prémios Oceanos e Jabuti.

    Sentiu como se fosse quase uma obrigação?

    Eu me engajei mesmo naquele momento, porque achava que nossa democracia e a sociedade brasileira estavam em risco se optassem pela continuidade do governo anterior. Mas eu procuro não participar tão activamente de tudo. Claro que como cidadão eu quero partilhar muitas coisas, mas é porque eu acho que a Literatura já revela e já diz muito sobre mim. Já diz muito do que eu penso sobre o mundo. Então, eu gostaria, de facto, que a literatura bastasse. Que eu nem precisasse falar sobre as histórias, sobre os livros, que elas por si bastassem. Mas como eu sei que não é possível, às vezes eu tento me manifestar e, enfim, ocupar o espaço que os leitores me destinaram para que eu possa de facto fazer valer essa consciência também.

    Os seus livros também mostram o poder e a influência da Igreja Católica, nomeadamente como detentora de propriedades e, em certa medida, do domínio que exerce sobre as populações carenciadas. O Brasil é um país muito religioso, onde o Cristianismo tem um peso considerável. A forma como fala da Igreja em Salvar o Fogo pode ser lida como uma crítica directa a esta instituição? Acha que o cristianismo devia ser menos importante para o povo brasileiro?

    Eu acho que a História do Cristianismo no continente americano é uma história de grande violência. E neste caso, por acaso, é a Igreja Católica, mas poderia ser uma Igreja Evangélica, e a violência ainda assim seria a mesma. Então, na História da América e de quando o continente foi ocupado pelos europeus – estou pensando nos espanhóis, nos portugueses, nos ingleses, nos franceses –, as sociedades que lá estavam no continente americano foram subalternizadas. Estes europeus que chegaram à América, a primeira coisa que colocaram não foi um tijolo para construir a parede de uma casa. A primeira coisa que se colocou foi uma cruz cristã nestes territórios. E esta cruz foi símbolo de muitos apagamentos de saberes, crenças e filosofias que existiam antes. Então, a história da Igreja Católica em Salvar o Fogo é a história de uma personagem, que é esta instituição, e que nos atravessa ao longo da História. Nos atravessa de maneira definitiva. Durante muito tempo, o empreendimento colonial escravista só teve êxito porque tinha o apoio decisivo da Igreja. Se pensarmos no Brasil, em particular, a Igreja era e ainda é uma grande detentora de fracções de terra. Até hoje, a Igreja em alguns lugares tem conflito com pequenos produtores. A Igreja foi a maior detentora de escravizados no Brasil, se considerarmos a instituição. As fazendas que ela detinha… O maior proprietário, digamos assim, de pessoas escravizadas, era a Igreja Católica.

    E é importante para si salientar isso?

    Sim, é uma história que não pode ser esquecida, que deve ser lembrada. Que, por fim, fala muito do nosso mundo e da nossa vida hoje. Hoje no Brasil, a Igreja Católica cada vez perde mais espaço institucional na sociedade, mas, em contrapartida, não quer dizer que a nossa vida seja diferente. A Igreja Evangélica assume tudo isso, e ela tem uma grande bancada na Câmara dos Deputados; ela participa de tudo na nossa vida pública. E interferiram sobremaneira nas últimas eleições, fazendo campanha para o presidente que foi derrotado no pleito. Ou seja, o Estado deveria ser laico, mas praticamente não é laico ainda, porque tem uma grande participação dos religiosos na Igreja no nosso quotidiano. As mulheres são as maiores vítimas de tudo isso, porque quando a gente fala de interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, no Brasil não se pode nem falar isso. Isso não é um direito. Acho que em Portugal, claro, não deve ser uma coisa pacificada, mas ainda assim, a mulher que precisa não vai morrer na fila da Saúde Pública, porque é reconhecido como um direito. Ela tem o direito sobre o seu próprio corpo. Afinal, o Estado português é um estado laico.

    No Brasil, a religião continua ainda muito entranhada na política?

    No Brasil, embora o Estado laico seja propagado, na prática ele não é. Porque a nossa vida ainda tem grande interferência da religião e do Cristianismo. Sem contar que o Brasil, como é um país plural, temos outras práticas religiosas, práticas indígenas, práticas afro-brasileiras, e essas práticas religiosas sofrem imensa violência dos cristãos no Brasil. Eu vivo numa cidade que tem um grande número de templos, que são os terreiros de Candomblé, templos afro-brasileiros. E é muito comum invadirem esses templos, quebrarem as coisas que estão lá. Eu vivi durante um tempo no final de uma avenida chamada Mãe Stella de Oxóssi, porque homenageava essa sacerdotisa e a yalorixá de Candomblé, importante para a cidade. E na entrada da avenida tinha uma estátua dessa mulher, como tem uma estátua aqui do Marquês de Pombal. Colocaram essa estátua de um grande escultor baiano que até já morreu, o Tatti Moreno, foi uma das últimas coisas que ele realizou… E incendiaram essa estátua um ano depois, e foi incendiada por cristãos evangélicos. Ou seja, a liberdade religiosa deveria ser garantida a todos, não apenas aos cristãos. Mas essas pessoas que praticam outras religiosidades, como a Luzia em Salvar o Fogo, que tem essa relação com o fogo e com o sobrenatural, é tida como feiticeira, como bruxa. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi foi queimada como se ela fosse uma bruxa, não é? Enfim, mostra um pouco dessa violência religiosa que ainda está muito presente no Brasil.

    Numa entrevista, afirmou que o Brasil, apesar de se ter tornado independente há 200 anos, ainda funciona numa lógica muito colonialista, e que agora os brasileiros são colonizadores de si mesmos. De que forma é que isso se manifesta, concretamente?

    Sim, eu acho que no período das grandes navegações – não estou falando só do Brasil e de Portugal, estou envolvendo os europeus e estou pensando no continente americano e no continente africano –, se inaugurou uma maneira de viver que ainda é determinante para os nossos dias. Que é este modo de habitar o mundo que é colonial, e que é baseado na exploração e na destruição das pessoas e dos meios. Quando eu falo em colonialismo, nesse habitat colonial, eu não estou apontando o dedo para ninguém. É apenas o reconhecimento de uma maneira de viver o mundo que está impregnada – não só no Brasil, mas na Colômbia e creio que em Portugal também, se a gente pensar no contexto da União Europeia. Portugal não é um país decisivo para a União Europeia, e fica muitas vezes a reboque daqueles que podem exercer a sua vontade. Estou pensando em países como a Alemanha, a França. Ou seja, esta relação entre opressores e oprimidos é uma coisa que se reproduz em muitas partes do mundo. Estou pensando na Palestina, em tantos lugares, não é? E o Brasil já poderia ter trilhado outro caminho; afinal, a independência do país foi declarada há 200 anos. Em 200 anos dá para acontecer muita coisa. Mas o Brasil, mesmo depois da Independência, optou por manter a escravidão em território brasileiro. Foi o último país do Mundo a abolir a escravidão. É um país onde essa estrutura do habitat colonial está impregnada em todos os contextos, porque é um país que tem uma classe que tem sobrenome, e que tem uma ascendência, muitas vezes europeia, que está dominando e domina as populações que não fazem parte deste grupo; que são subalternizadas.

    Segundo romance de Itamar Vieira Junior foi lançado em final de Abril em Portugal.

    Ainda há um caminho a percorrer…

    Exactamente. O Brasil continua a colonizar a si mesmo. Mas esta é uma constatação apenas, porque esta é a história do capitalismo. O capitalismo vive essa relação de explorador e explorados, de opressores e oprimidos. E inclusive, essa construção do que é ser branco, do que é ser negro, do que é ser indígena, não é algo natural nosso. Em algum momento da história, principalmente quando o capitalismo cresce assente nas grandes navegações, o ser negro e ser branco é uma construção social. E isto ainda está impregnado no nosso quotidiano, na nossa vida. São rankings de vida e valor construídas naquele tempo, que precisam ser descontruídas. Então, ainda vamos falar sobre isso durante muito tempo, não é? [risos]

    As mulheres assumem uma preponderância nos seus romances, são personagens de grande força, o feminino está muito exaltado. No seu crescimento, as mulheres da sua família tiveram um papel primordial? Foram, também, elas que o influenciaram e contribuíram para que desenvolvesse a sua sensibilidade artística?

    Com certeza. Eu acho que, embora talvez as feministas até contestem, há atributos que as mulheres carregam na sua maneira de ser, no seu corpo, na maneira como se relacionam com o mundo, com a História… E eu cresci numa casa atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, mas com estas personagens que me intrigavam muito quando eu era criança. Porque eu observava elas serem vítimas de violência, às vezes vítimas de violência doméstica. Elas eram vítimas da sociedade que as tinham como pessoas inferiores com saberes inferiores, mas elas nunca se conformaram com isso e elas sempre contestaram. E o que é curioso é que não eram mulheres escolarizadas, letradas. Porque se fosse uma mulher que frequentasse a universidade, poderia ter contacto com escritos da Simone de Beauvoir e de tantas outras feministas, e construíam um repertório intelectual para combater tudo aquilo. Mas elas eram mulheres simples, pouco escolarizadas, e que ainda assim contestavam tudo aquilo. Isso se impregnou de tal maneira no meu imaginário, que sempre que eu escrevo, elas chegam inevitáveis com a força que essas mulheres – mãe, tias, avós, primas – tinham na minha família, não é? Então, para mim essa leitura de mundo, que às vezes caminha neste sentido que também é um sentido decolonial, vamos dizer assim, de desconstruir esse modo de viver a vida que foi construído no passado. Porque se a gente pensar no projecto colonial escravista, ele foi imaginado, projectado e executado por homens. Ou seja, é um projecto patriarcal.

    E trazer as mulheres para uma história que é desconstruir tudo isso, é devolver uma narrativa que lhes foi roubada, usurpada em algum momento. De que elas eram bruxas, feiticeiras, que eram personagens inferiores. Em Torto Arado, tem um personagem, o Zeca Chapéu Grande, que é um curador, uma espécie de feiticeiro, mas aquilo nunca é questionado. Claro que há racismo, mas nunca é questionado pelas pessoas do seu grupo. No caso da Luzia, ela é tida – eu não sei se sim, os leitores vão descobrir ao longo da leitura – como uma personagem que guarda poderes sobrenaturais. Mas ela, por ser mulher, é estigmatizada como bruxa, como feiticeira, como alguém que deve ser destruída, exterminada. Ou seja, estas duas histórias já dizem muito do lugar que a mulher ocupa na sociedade. E daí, essas mulheres incríveis que fizeram parte do meu imaginário e da minha educação, invadiram essas histórias com força também.

    Actualmente, a polarização da sociedade parece ser crescente, e o Itamar já criticou esta onda de cancelamentos a que assistimos. Como artista, naturalmente, valoriza a liberdade de expressão. Acha que a arte e a literatura podem ter um papel importante para combater esta intolerância?

    Eu não sei se a literatura tem feito isso com frequência, mas eu acho que é um excelente instrumento para que a gente desconstrua, para que devolvamos a ideia de sermos humanos – de que nós podemos acertar, mas também podemos errar. Parece que em nosso tempo a gente perdeu um pouco o sentido da nossa humanidade. Se a gente for olhar as redes sociais, é um massacre, é um discurso de ódio. Estou pensando principalmente no Twitter, eu nem tenho Twitter por causa disso. Eu brinco que o Twitter é o… Não sei se você já leu o 1984 de George Orwell, mas o Twitter é aqueles dois minutos de ódio. Quando tocava o sino naquela cidade, e as pessoas iam para a frente de uma tela – e é uma obra publicada em 1948, ainda não existia nada nisso, nem telemóveis nem Twitter –, e lá vociferam tudo o que sentem de ódio e exercitam o ódio para se manterem vivas. E as redes sociais virou essa teletela do 1984. Eu não sei como está traduzida no português de Portugal, mas no português do Brasil chamamos teletela. E, de facto, criaram-se ali ambientes onde as pessoas só aceitam conversar com quem concorda com elas, ambientes polarizados. E isso tem posto a democracia em risco. Porque se você olhar, o Partido Republicano nos Estados Unidos, que até há 20 ou 30 anos era um partido de centro-direita, tem caminhado para a extrema-direita. No Brasil, existia um partido de centro-direita, que era o PSDB, que governou com Fernando Henrique Cardoso, e durante muitos anos governou estados no Brasil. E ele deixou de existir praticamente, quase não existe mais; e quem ganha espaço é a extrema-direita.

    Os próprios algoritmos das redes sociais foram feitos de modo a fomentar a discórdia e a polarização…

    Exactamente. E pensamos que as Big Tech, as tecnológicas, são inocentes, não é? Que só estão ali para reunir as pessoas, mas não, elas têm trazido uma crise para a democracia no Mundo. E a gente perdeu o sentido de que nós somos humanos, de que nós erramos, de que as pessoas pensam de forma diferente, mas ainda assim isso não quer dizer que nós não possamos coexistir, não possamos conviver. E esse altericídio das redes sociais – porque é um altericídio, a morte da alteridade –, a Literatura pode nos devolver essa alteridade. Porque quando lemos uma história, nós aprendemos a gostar das personagens, mesmo que elas errem, mesmo que elas falhem. E reconhecemos nelas a Humanidade que também é nossa, porque nós somos isso. Nós falhamos, nós erramos, não é? Nós tentamos acertar, nós sonhamos. Ou seja, penso que em contraponto às tecnológicas, a Literatura pode nos devolver a possibilidade de coexistir, de conviver, de exercitar a alteridade também. Com muito menos polarização, porque não é algo saudável.

  • ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder de comunicar com a Natureza’

    ‘A Arte de driblar destinos’: o título do romance de estreia de Celso Costa, com o qual venceu o Prémio LeYa aos 73 anos – e que recebe em mãos este sábado na Feira do Livro de Lisboa – ilustra na perfeição a vida do matemático, professor e estreante autor brasileiro. Nascido no Paraná, de uma família com escassos recursos financeiros e com morada numa propriedade remota chamada Ribeirão do Engano, o romancista teve um percurso inusitado: para além de fintar a pobreza, a sua paixão pelos números levou-o a estudar Engenharia e Medicina, desistindo de ambas antes de, finalmente, encontrar a sua vocação no prestigiado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde se focou na Geometria Diferencial. A partir daí, não houve mais recuos. Com o seu doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, solucionando assim um problema matemático com mais de dois séculos. Por esse motivo, a “Superfície Costa” foi baptizada em sua homenagem. Agora, chegada a altura de abandonar o papel de professor universitário, Celso Costa brincou novamente com o destino e abraçou as Letras. Algo que, afinal de contas, não era assim tão improvável: como confessou ao PÁGINA UM, apesar de seguir a sua amante Matemática, a Literatura sempre esteve ali, num lugar especial, no seu coração.


    A Arte de driblar destinos é um romance de autoficção, muito inspirado na sua própria vida e nas suas experiências pessoais. Como surgiu esta vontade de escrever e de contar a sua história?

    Essa vontade de fazer uma narrativa acontece num momento da minha vida em que estou na iminência de me aposentar da Universidade. Eu sou professor universitário, e ainda continuo a dar aulas, mas actualmente estou aposentado. E mais ou menos uns seis anos antes de me aposentar, como sou um leitor compulsivo… eu leio muito desde sempre, assim mais intensivamente desde os 14 anos. Mas quando eu comecei a ter mais acesso a literatura, comecei a ler muito. Então, com 18 anos eu conheci Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, o nosso Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas, Clarice Lispector, Machado de Assis. Já nessa idade, eu tinha uma certa amplitude de leituras. Lia os sonhos que os outros tiveram. E aí, segui uma carreira de matemático, e na iminência da minha aposentadoria, não sei se foi muito bem calculado, porque geralmente a gente não calcula muito o que acontece. Acho que as oportunidades e os desejos de repente eclodem, e você vai atrás daquele desejo.

    E foi o que fez?

    Sim, aí surgiu um desejo de escrever uma narrativa ficcional que se passaria num ambiente mágico chamado Aleph, pegando no O Aleph do Jorge Luís Borges, e que pudesse fazer um panorama da história da Matemática, mas focado através das lendas. Por exemplo, qual é a veracidade da lenda da maçã que caiu na cabeça do Newton? Será que lhe caiu mesmo essa maçã na cabeça? Arquimedes, quando descobriu a lei de flutuação dos corpos em líquido, ele saiu nu pela rua de Siracusa porque ele descobriu essa lei quando estava imerso numa banheira, lá nuns banhos gregos. Os gregos tinham muito a questão dos banhos, aqueles grandes banhos colectivos. Quer dizer, colectivos só para a alta classe do poder. Então, Arquimedes estava lá, e de repente teve aquela epifania, e descobriu uma lei física que diz que o volume de água deslocado é igual ao peso do corpo que está em flutuação. É uma lei simples no fundo, mas só é simples depois de se saber. Eu escrevi, então, sobre esse ambiente mágico colocando as lendas. Esse livro teve uma boa aceitação do público que orbita em torno da Matemática, e que é muito, porque são os professores da escola básica, os alunos universitários, os professores; é um público grande.

    Refere-se ao primeiro livro que publicou, A Vida misteriosa dos matemáticos, em 2018.

    Sim, foi o primeiro livro que eu escrevi, e teve uma repercussão muito boa que me animou. E falei: então porque não ficcionar as minhas memórias? Também têm o seu valor dramático. O seu valor pícaro, como disse o Manuel Alegre, do júri da LeYa. Então, resolvi escrever as memórias ficcionadas. E essas memórias, tal como A vida misteriosa dos matemáticos, demoraram-me cerca de quatro anos a escrever. Até chegar o momento em que eu coloquei o manuscrito no correio e mandei para a LeYa, que também foi um momento importante. E esse primeiro impulso que eu tive com o meu primeiro livro, levou-me a fazer essa ficção, que evidentemente vai ter uma continuidade, porque ainda há mais um livro pela frente. E outros tantos projectos que eu tenho sobre ficção, tenho muitos projectos iniciados. Então, eu vejo o Prémio Leya com um significado que o próprio nome diz: um prémio. E esse prémio certamente vai impulsionar-me, trouxe ventos de incentivo para que eu continue a escrever.

    Caminhou sempre nos campos das ciências exactas. Estudou Engenharia, Medicina e Matemática, áreas que são geralmente vistas como antagónicas à Literatura e às Artes. Como alguém que se movimenta tanto nos números como nas letras, como é que percepciona as diferenças entre estes dois domínios?

    Ambas são linguagens. Então, nós temos a linguagem da Matemática e temos a linguagem da narrativa. E quando eu falo em linguagem, falo numa coisa um pouco mais ampla, porque a linguagem matemática tem regras muito fixas. É como jogar xadrez. Quer dizer, você tem que seguir as regras para chegar a um resultado. Então, a Matemática tem as suas regras lógicas, já desde Aristóteles, mas evidentemente que foram aperfeiçoadas com o passar do tempo pela Humanidade. Então, desse ponto de vista, os preceitos para se fazer Matemática é você aprender truques para usar essas regras. Por exemplo, a gente tem livros de xadrez, que explicam as inúmeras aberturas possíveis. Porquê? Porque o jogo do xadrez é infinito, assim como o jogo da Matemática também. Na verdade, é mais infinito ainda, porque o jogo da Matemática está num degrau acima do xadrez, evidentemente. Então, se você de repente tem essa capacidade, que é uma coisa também um pouco inexplicável, evidentemente que todos podem caminhar na Matemática. Alexandre Alekhine, que foi talvez o maior jogador russo de xadrez, foi preso durante a época dos czares russos e colocado numa prisão, e jogava xadrez com ele mesmo. Mas o xadrez era um xadrez imaginário no tecto da prisão. Eu vejo que a Literatura também tem as suas regras; a narrativa tem as suas regras, que vão-se moldando ao tempo, vão-se desdobrando e reinventando. E é preciso também aprender essas técnicas, e eu dediquei-me muito a aprendê-las. A técnica do gancho; de atirar alguma coisa na narrativa e não contar tudo exactamente, para depois recuperá-la mais à frente. O pai dos contos russos, um dos maiores contistas que a Humanidade teve, que é Tchekov, dizia que se num conto, você coloca uma espingarda, essa espingarda tem de atirar nalgum capítulo. Ou se apresentar um doente de tuberculose no capítulo 50, ele tem que dar uma tossidinha no capítulo 5. Então, existem regras. Por exemplo, em A Arte de driblar destinos, o primeiro capítulo é uma tourada. E do ponto de vista da sequência cronológica, não é a primeira memória do narrador, porque a história vai desde que o narrador tem três anos, até aos 19. Mas o episódio da tourada acontece quando ele tem cinco anos. Não estou dando spoiler, porque o primeiro capítulo não é considerado spoiler [risos].

    Então, começar o livro com o episódio da tourada foi uma questão técnica?

    Sim, comecei pela tourada porque a narrativa pede isso. Uma narrativa é um compromisso que você faz com o leitor, e que é: “vamos viver o mesmo sonho”. E você não pode perder o leitor por um escorregão com a verossimilhança, não. Mas se esse contrato com o leitor é um contrato que se estabelece e é cumprido, então o leitor e o narrador vão até ao fim da situação. Então, pelo menos este é o meu ponto de vista, é preciso iniciar a narrativa lá no alto da chamada às emoções. Eu creio que essa tourada, esse pequeno espetáculo que se instala nessa pequena cidadezinha de mil habitantes… Uma cidade que não tem televisão, no tempo de 1960. Aliás, também não tinha geladeira, porque as geladeiras eram para os mais abastados que podiam ter. Mas tinha electricidade, que já era um grande avanço, e as vitrolas. Então, nessa pequena cidade, os grandes movimentos, as turbulências que aconteciam, era quando vinha uma tourada, um circo, ou um rodeo. Eu comecei com a tourada no sentido de ser um momento festivo, em que as emoções estão lá no alto.

    Se sempre teve uma paixão tão forte pelas letras, por que esperou tantos anos para começar a escrever

    Porque, de alguma maneira, a Matemática é uma amante muito exigente. E é muito divertido também, sempre foi muito divertido. Eu sempre trabalhei desde pequeno, desde os meus onze anos, que a minha família tem as suas precariedades. Vem de uma fazenda que se chama Ribeirão do Engano, e a cidade de onde a minha família toda veio chama-se Cinzas. Então, pais analfabetos, e eu sempre trabalhando em tudo quanto era ofício desde muito jovem. E depois numa cidade um pouco maior, já trabalhava numa oficina mecânica. E eu entregava as chaves para os mecânicos trabalharem lá nos carros, e ficava num pequeno escritoriozinho que tinha uma bancada. Aí chegava um mecânico, e falava “me dá uma chave de boca três quartos”. Eu apontava, e quando ele devolvia eu dava baixa. Mas enquanto isso, eu fazia divisões mentais no papel. Mas você pensa que eram umas divisões quaisquer? Não, eu dividia um polinómio por outro polinómio. Eu brincava com divisões de polinómio. Então, apesar de eu estar sempre trabalhando, a Matemática era essa amante exigente. Eu ficava mais ou menos quatro, cinco horas por dia ininterruptamente. E aí, comecei a impressionar os professores. E logo no final da minha escola secundária, antes de ir para a capital e ingressar na universidade, eu apaixonei-me por uma garota da minha classe, mas ela não me dava muita bola… E aí, eu escrevi um caderno inteiro de versos para ela. Dei-lhe e, felizmente, o caderno desapareceu. Aliás, ainda temos um grupo de WhatsApp da nossa turma, que eram 17 pessoas, e ela felizmente perdeu o caderno. Nunca mais vou ver esse caderno [risos].

    Portanto, não resultou? [risos]

    Não, não resultou nada, não me quis. Eu fui embora para Curitiba e as nossas vidas separaram-se durante muito tempo. E aí, temos esse grupo de Whatsapp das 17 pessoas que se formaram lá naquela cidadezinha do interior, e que depois cada um foi para o seu canto para fazer a universidade.

    (Foto: Luís Breda)

    Ainda a propósito da exigência da Matemática, numa entrevista recente chegou a dizer que alguns matemáticos proeminentes tinham terminado os seus casamentos com a obsessão de resolver certos problemas. Na sua tese de doutoramento, o Celso fez uma descoberta que resolveu um problema matemático com mais de 200 anos. No seu caso, houve algum momento em que a matemática lhe tenha roubado espaço para a vida pessoal?

    Não, acho que não. Nesse caso da vida pessoal, não foi afectada pela minha dedicação à Matemática, mas geralmente afecta um pouco. Fica muito obsessivo. E na verdade, quando eu fui para o Rio de Janeiro para frequentar um mestrado e um doutoramento na área da Matemática, num centro chamado IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que é certamente o mais importante centro de matemática da América Latina. Mas nessa época eu morava em Santa Teresa, que é um lugar que lembra muito Lisboa, porque é cheio de ladeiras. E os meus colegas na república que nós tínhamos lá, onde morávamos todos, tinham um conjunto de rock chamado O Bando da Santa, tinha um grupo de teatro infantil também, e mais eu e um amigo, que éramos matemáticos. A gente vivia todos ali na mesma comunidade. Então, foi nesse ambiente que eu continuei os meus estudos. E na minha tese de doutoramento eu resolvi esse problema antigo, e a Superfície Costa, que o mundo da Matemática denominou assim, passou a ser a terceira superfície no elenco das superfícies com as qualidades que ela tem, que é uma superfície mínima e mergulhada no espaço. Tem uma característica, um registo de propriedades que a fazem muito especial. Antes dela, existiu o catenóide, descoberto pelo Euler, um matemático suíço, em 1740, e o helicóide, que 150 anos depois, serviu para modelar a molécula do ADN. A molécula do ADN consiste em duplos helicoides que são unidos por pontes de proteínas. E a Superfície Costa surgiu como uma terceira superfície nessa galeria.

    E que impacte é que teve essa descoberta na sua vida profissional?

    Teve uma repercussão internacional muito grande e colocou-me na Academia Brasileira de Ciências do Brasil. O presidente da República na época, logo depois, condecorou-me com a medalha de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. Essas honrarias, o reconhecimento…

    (Foto: Luís Breda)

    E agora, é novamente distinguido, mas desta vez pela arte literária…

    É, aí eu um dia estou deitado porque ainda não me tinha levantado, porque lá é quatro horas a menos que em Portugal, e eu durmo tarde; às sete e meia da manhã, e o Manuel Alegre – eu vejo aquele número imenso com 55, internacional –, me ligando dizendo que eu tinha ganhado o Prémio LeYa. Fui apanhado de surpresa, de maneira realmente muito genuína, porque eu nem conseguia dizer-lhe nada. Eu só disse três palavras: poxa, poxa, poxa! [risos] E ele disse para eu me preparar, porque ia ter os jornalistas a ligarem-me. Mas ainda deu tempo de eu avisar a minha esposa, os meus filhos e os amigos mais próximos que eu tinha ganhado o prémio. Que coisa fantástica [risos]. Inacreditável, como é que pode, não é? Os meus amigos diziam, “o que é isso, mas você é um matemático e ganhou o Prémio LeYa, que história é essa”?

    Tendo em conta o seu percurso, seria um cenário improvável.

    É, muito improvável. Acho que talvez seja o único caso da História [risos]. Bom, do Prémio LeYa certamente. Nós temos psicólogos que escrevem literatura de alto nível, e médicos também. Eu tenho uma filha médica, começou na Medicina há uns três anos. E eu quase fui médico, não é? [risos]. Quando a gente estava numa mesa um dia, uma pessoa perguntou se eu gostaria de ter tido outro destino. E eu disse que talvez gostaria de ser médico. Porque acho que um médico tem uma experiência com a realidade que é muito contundente. A vida dele, o ambiente onde ele observa, de momentos muito delicados da existência humana. Então, tem muito médico que faz boa literatura, porque ele tem uma massa de observação muito importante.

    Mas quando estudou Medicina, acabou por desistir do curso. Mesmo assim, olhando para trás, pensa que gostaria de ter enveredado por esse caminho?

    Eu gostaria de ter sido médico porque agora quando eu peguei na literatura, eu pensei, poxa, se eu tivesse a observação de um médico [risos]… Acho que poderia beneficiar disso. Mas na época em que eu estudei medicina, na verdade eu queria ser professor do cursinho. Aqui em Portugal não tem essa questão do cursinho, porque se entra na universidade através de uma prova.

    (Foto: Luís Breda)

    Sim, em Portugal a média dos exames soma à média do ensino secundário. No Brasil têm que ter aulas de preparação para o exame que concede o acesso ao ensino superior, o vestibular, certo?

    Sim, no Brasil zerou o jogo, só a prova é que conta, e essa prova é para as universidades federais e é igual no país inteiro. Então, são milhões de estudantes fazendo aquela mesma prova, e tem uma que é de redacção, de Física, Química, essas coisas. Dependendo da sua classificação, você pode pedir uma primeira carreira ou uma segunda carreira. É evidente que, por exemplo, na área da Medicina, a pessoa pede Medicina ou depois pede Odontologia ou Veterinária, que são profissões em que a concorrência não é tão alta. Então, você pode optar por uma segunda carreira que não é aquela que você vislumbrava. Na época em que eu estava em Curitiba, que é a capital do Estado [do Paraná], e que eu estudava Engenharia, estava um pouco desgostoso porque eu gostava mesmo era da Matemática. Mas enquanto estava a estudar Engenharia, eu estava a morar numa casa de estudantes universitários e estava sem dinheiro também. Eu só consegui ir para Curitiba porque ganhei um prémio com dinheiro dos professores lá do meu colégio. Eles enviaram-me para lá, e comecei Engenharia. Entrei naquela casa com 400 estudantes universitários, em que você tinha alimentação, roupa lavada, cama, tudo o que você necessitava. No primeiro ano você tinha que trabalhar para poder pagar a casa: trabalhar no restaurante, na lavandaria, na fazenda, enfim. E depois no segundo ano já não precisava mais de trabalhar porque já era morador efectivo, se tivesse cumprido uma boa tarefa, não é? Mas pagava-se uma coisa mínima, eram 50 euros por mês para ter tudo isso. Aí, um dia eu estava no meu quarto, e algum estudante que estava atendendo na portaria a chamar-me, porque tinha um telefonema do interior do Paraná.

    Sim, e até pensou que o telefonema trazia uma má notícia…

    Eu já fiquei em sobressalto, porque podia ser notícias ruins da família. E cheguei lá, era o director do meu colégio falando: “Celso, o prefeito da cidade passou na câmara de vereadores uma lei em que vão pagar a casa de estudantes universitários até ao final do seu curso”. Não precisava de pagar mais a casa de estudantes. Mas estava sem dinheiro, não tinha dinheiro. E aí, resolvi ir lá pedir ao dono do cursinho para me deixar fazer um super-intensivo de dois meses, porque eu iria fazer o vestibular de Medicina, com a tentativa de ficar nos dois primeiros lugares e ganhar a posição de professor. Era assim que os professores entravam no cursinho. Aí, entrei na Medicina e me transformei em professor de Física do cursinho, e no primeiro ano, dissecação de cadáveres… Cadáver em cima da mesa, todo estraçalhado porque já tinha servido os estudantes dos outros anos. O livro ali para identificarmos os músculos, e aquilo começou a me desgostar, aquela coisa de você decorar os 206 ossos do corpo humano… O próprio professor lá, que era uma sumidade; era um fenómeno, porque ele era um ortopedista famosíssimo, cirurgião. Tinha o seu carro, mas ele não conduzia; tinha um motorista, porque aquelas ruas de paralelepípedo na direcção, podia afectar a sensibilidade das mãos dele. Folclore, não é? E aí, com o esqueleto lá na frente, ia identificando os 206 ossos do corpo humano. E eu decidi desistir dos dois. Achava que iria para São Paulo fazer Física na USP.

    Foi depois disso que surgiu a oportunidade de estudar Matemática?

    É, nesse momento eu tive que sofrer uma arguição da minha mãe, ela chamou-me lá para o interior. Perguntou porque é que eu estava a desistir, disse que eu estava a rasgar dois bilhetes de lotaria. Foi um drama na família. Mas aí, um professor me convidou para eu ir para o Rio de Janeiro, para fazer um curso curto de dois meses. Eu fui e tive um desempenho que impressionou os directores do curso, e pediram-me para eu voltar no próximo ano, que eu não precisava de Faculdade nenhuma e poderia entrar directamente no mestrado. Pulei a Faculdade, fui para o mestrado e para o doutoramento, fiquei sete anos lá, fiz a tal descoberta, entrei como profissional da universidade. Agora, pensando em me aposentar, sempre com a leitura actualizada, enveredei pela Literatura, pela escrita, pela narrativa.

    Uma das principais mensagens de A Arte de driblar destinos é a importância da educação e do conhecimento para conseguir ir-se mais longe. No Brasil, as pessoas que nascem em meios mais desfavorecidos têm essa oportunidade de vingar, ou as possibilidades são muito desiguais?

    As oportunidades são muito desiguais, porque a gente tem um sistema público e um sistema privado. É interessante, porque na época em que eu fiz os meus primeiros aprendizados, o sistema público era muito bom. Teve uma certa deterioração, actualmente o sistema público brasileiro está muito fraco. O sistema privado está muito forte, acontece inclusive uma inversão, porque o sistema público antes da universidade é fraco e o sistema privado é forte. Aí, quando vai concorrer na universidade que é pública, entram os estudantes do privado porque eles são mais fortes. Então, quer dizer, o sistema público é fraco no começo e depois é forte porque a universidade brasileira é bastante forte na pesquisa, no ensino, nessas coisas todas. Mas a questão, primeiro, é a do acesso à escola, não é? O acesso é muito desigual.

    Nem toda a gente consegue ter as mesmas oportunidades…

    Exactamente. Mas antigamente a situação era pior, porque actualmente a gente tem um programa que ajuda as pessoas em condições de pobreza extrema. Chama-se Bolsa Família, que dá 120 euros por mês para as famílias mais pobres, e dá mais 30 euros para cada criança, até três crianças com menos de cinco anos. Então, há um programa que é um combate à pobreza. Em 1960, nenhum desses programas existia. Era uma coisa muito difícil você ter as classes desfavorecidas na universidade.

    E prosseguiu os estudos muito por causa da importância que a sua família dava à Educação?

    Exacto, quer dizer, é também outra obsessão da família. O meu pai admirava muito as pessoas letradas, e os advogados. Porque tem essa cidadezinha pequena, mas tinha outra maior do lado, onde era a Comarca. Então, a Comarca era onde tinha o juiz, o delegado. Porque nesses lugarzinhos pequenos não tinha nem delegado; o delegado era um sujeito que recebia uma incumbência de cuidar da ordem. Mas ele admirava muito aquele júri, sabe, aquele jurizinho que uns advogados se batem, um acusando e outro defendendo o réu de um assassinato. Toda aquela cena, tem todo aquele drama que é contado ali. Ele gostava muito desse teatro. Então, queria muito que eu fosse advogado. Filho advogado seria bom [risos].

    [risos] Mas não quis ir por aí…

    Não, por falta de vocação também. Na época em que eu estive diante da universidade, as três carreiras mais importantes eram Engenharia, Medicina e Direito. Então, quem gostava de números iria para Engenharia, quem gostasse de saúde iria para Medicina, e quem gostava das letras e do social, iria para Direito. Eram as três carreiras nobres.

    Já que o título do seu romance fala em destinos, pergunto-lhe se, ao longo da sua vida, com todas as vitórias improváveis, reveses e reviravoltas que vivenciou, alguma vez sentiu que tudo acontecia de uma forma quase predestinada? Como se o destino tivesse um peso na forma como tudo se foi desenrolando? Bem sei que, por norma, os homens da Ciência não acreditam nestas coisas [risos]…

    Eu acho que existe uma transcendência que nós não sabemos explicar, mas que podemos apenas perceber e sentir, não é? Então, do lugar de onde eu vim, essas coisas eram muito fortes. Existiam pessoas de “poder”.  Num certo sentido, eu acho que a nossa vocação para a tecnologia vai empobrecendo o nosso poder, que não tem explicação, mas que é simplesmente um poder, de comunicar com a Natureza. A gente sabe que os indígenas, por exemplo, quando morre um companheiro, sabem que ele morreu naquele momento. Então, nesse lugar onde eu vivi, existia pessoas que tinham também essa capacidade de sentir as coisas dessa maneira. Por exemplo, geralmente os animais, quando se machucavam por algum problema, a ferida infectava e criava bicho; os bichos habitavam lá e começavam a comer aquela carne em putrefacção… E tinha pessoas que eram os benzedores. E eles chegavam lá e benziam os animais, e aquelas bicheiras todas caíam no chão sem nenhum remédio. E outro personagem – que eu não usei porque senão o livro teriam sido 500 páginas –, era uma pessoa que conversava com as cobras.

    Conversava com as cobras?

    É, ele pegava a cobra, botava no embornal e levava para casa. O meu avô tinha uma certa extensão de terra onde tinha uns boizinhos e eles começaram a morrer, porque a cobra picava no focinho. Se a cobra picar na perna, o animal não morre porque tem muito sangue para diluir o veneno; mas se pica no focinho, é uma zona muito irrigada, então espalha-se muito rapidamente e o animal morre, especialmente se for um animal jovem. E estavam morrendo. Aí, ele chamou o compadre dele, o nome dele era Dentinho Queijo, não sei porquê. O Dentinho Queijo chegou lá e o meu avô explicou-lhe o que estava a acontecer, e depois foram andando pelo terreno e chegaram onde morava a cobra. Ele ficou ali um bocado a fazer as rezas dele e depois saiu uma imensa cascavel lá de dentro. Ele começa a fazer as rezas, a cascavel se enrodilhou. E ele disse ao meu avô: “Seu Pedro, podemos ir tomar café agora”. Aí, ele foi lá na casa, que ficava perto, foi conversar, colocar os assuntos em dia… Era assim que se vivia, porque havia um rádio a pilhas mas não tinha muitas comunicações do exterior. Aí, eles fizeram todos aquela sociabilidade, voltaram lá para o lugar onde estava a cobra, botou no embornal e foi embora.

    Era uma espécie de encantador de cobras [risos].

    Era. Assim como também havia um sujeito que ficava em cima da água, esse cara também existia.

    [risos]  Passou por algumas experiências quase sobrenaturais…

    É. São experiências muito marcantes na infância e em parte da juventude. Existe um imaginário que eu – e isto já é uma teoria –, acho que esse avanço em direcção à tecnologia vai nos afastando dessa outra comunicação com a Natureza que a gente vai perdendo. Então, o Dentinho Queijo, no ADN dele, tinha a cobra. Porque nós somos animais, somos as árvores, somos os outros animais… Sei lá, eu por exemplo gosto muito de entrar de baixo de cavernas e buracos; talvez eu tenha um ADN também de lagarto, coisas desse tipo [risos]. É uma conexão com a Natureza, que é muito importante.

  • ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    ‘Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível’

    A trágica história da jovem judia Anne Frank percorreu o Mundo e comoveu gerações. Contudo, o famoso Diário da jovem judia termina quando ela e a sua família – o pai, Otto, a mãe, Edith, e a irmã, Margot – e mais quatro clandestinos num “Anexo Secreto” são capturados no final de 1944. Por isso, nada ela escreveu sobre as suas experiências nos campos de concentração. Depois do Diário é a obra que, fruto da investigação de quatro historiadores da Casa de Anne Frank, em Amesterdão, revela os passos que se seguiram. Um dos seus autores, o holandês Bas Von Benda-Beckmann, esteve em Lisboa e conversou com o PÁGINA UM sobre estes oito seres humanos que caíram nas garras do Terceiro Reich.


    O Diário de Anne Frank vendeu mais de 30 milhões de cópias. Ainda havia algo mais para dizer?

    Boa pergunta. Eu escrevi o livro em conjunto com colegas da Casa de Anne Frank, e uma das nossas missões é contar a história de vida de Anne Frank tão integralmente quanto possível. E este livro foi, obviamente, uma parte muito importante dessa tarefa. O seu diário é muito famoso, e milhões de pessoas em todo o Mundo o leram, mas a história dela não termina aí, certo? E uma parte muito importante começa no momento em que o diário termina. É um período da sua história onde há muitas lacunas, porque já não temos o diário. Até à captura, conseguimos ver pelos nossos olhos o que lhe aconteceu, e a partir daí já não. Houve alguns jornalistas que exploraram este tema e que procuraram testemunhas oculares, e as entrevistaram, o que é significativo, mas mesmo assim não conta a história de forma tão completa como precisaríamos. Portanto, o que fizemos foi tentar reunir todas as fontes disponíveis, como relatos de testemunhas oculares, mas também pedaços de informação que a administração alemã mantém, bem como outros diários e cartas dessa época. Juntámos tudo isso e tentámos reconstruir de modo tão preciso quanto possível aquilo que realmente aconteceu. E perceber também o que é que aconteceu aos outros ocupantes do Anexo Secreto, quais eram as condições nos campos de concentração, e para onde foram levados. Porque assim também vemos a verdadeira importância da sua história, que não é só o diário, mas também o que aconteceu posteriormente, e onde, como e quando é que eles foram mortos.

    Bas Von Benda-Beckmann

    Nessa tarefa de reconstrução, quais foram os maiores desafios? No livro abordam os problemas que advêm das testemunhas oculares, que muitas vezes providenciam relatos contraditórios, para além do grau elevado de subjectividade.

    Sim, é complexo. Aquilo que tentámos fazer foi, entre nós, verificar as fontes. Se temos testemunhas oculares que estiveram juntas na mesma altura, as suas histórias complementam-se ou contradizem-se? E quando alguma coisa é contraditória, qual será a versão mais provável? Portanto, tentámos ser absolutamente transparentes. Há coisas sobre as quais temos a certeza, e aí dizemos “isto foi o que aconteceu”, e outras vezes expomos as diferentes versões do que poderá ter acontecido, de acordo com uma testemunha, e o que poderá ter acontecido, de acordo com outra. E salientamos os pontos em que os seus testemunhos se contradizem.

    Houve algum aspecto surpreendente no vosso trabalho de pesquisa? Descobriram algo que não estivessem à espera?

    Há um par de coisas muito importantes e inéditas que vieram à luz com esta pesquisa. Durante muito tempo pensámos que Anne e Margot Frank morreram no final de Março de 1945; e através de uma reconstrução cuidadosa do que lhes aconteceu, pelo que relataram as testemunhas que as viram pela última vez, e que falaram sobre as doenças e as mortes de que elas padeceram, conseguimos saber que, na verdade, faleceram mais cedo, no início de Fevereiro. E isto pode parecer um pequeno detalhe, mas eu penso que o simples facto de ser tão difícil reconstruir a vida de alguém nesta situação e descobrir coisas básicas como quando foi o momento da sua morte, torna importante tentar fazer precisamente isso. Houve uma tentativa deliberada de apagar a história destes seres humanos e dos factos sobre o que lhes aconteceu. Portanto, desfazer isso e tentar juntar os pontos é algo que considero muito importante, não apenas por eles mas por todas as vítimas do Holocausto.

    Também destacam que alguns sobreviventes mostraram um certo desconforto e ressentimento por a história de Anne Frank se ter tornado tão conhecida, receber tanta atenção, quando é apenas uma entre milhões de vítimas do Holocausto. Como interpreta isso?

    Em primeiro lugar, eu consigo compreender esse sentimento, porque é verdade que a história desta família é muito importante, e toda a gente a quer ouvir, mas há também muitas outras histórias que foram esquecidas. E esse ressentimento também existe porque essas testemunhas oculares são entrevistadas e os entrevistadores perguntam-lhes muito sobre Anne Frank e a sua família, quando elas próprias também viveram algo muito dramático e horrível. Mas interessante é observar que estas vítimas não mostram apenas ressentimento, mas também ambiguidade, porque reconhecem a importância de Anne Frank como um símbolo na transmissão destas histórias e como alguém que é importante para espalhar a palavra sobre o que lhes aconteceu.

    Quais os motivos, na sua opinião, para a história de Anne Frank, em particular, se ter tornado tão conhecida?

    De muitas formas, ainda é um mistério. Penso que ajudou ela escrever realmente bem; portanto, o diário, se o lermos agora, mostra-nos mesmo o crescimento de uma jovem, que escreve sobre as suas emoções de uma forma muito vívida, e acho que isso ressoa em muitas pessoas. A certa altura simplesmente se tornou algo grande, fez-se uma peça de teatro e um filme, e tudo isso contribuiu para tornar a sua história famosa. Mas a pergunta é legítima: porque é que acontece a uma história e não a outra? É sempre muito difícil de dizer, e eu penso que talvez, se falarmos dos anos 1940 e 1950, quando a história de Anne Frank começou a tornar-se conhecida, provavelmente ajudou o facto de o diário não ser sobre o Holocausto. O diário é sobre uma rapariga num esconderijo e sobre a perseguição aos judeus, mas termina no momento em que o nosso livro se inicia. Não só na Holanda, mas noutros países também, não havia muito espaço para contar histórias horríveis sobre as vítimas e sobre o Holocausto em si, logo a seguir ao fim da guerra. O Diário é sobre esperança, e transmite muita positividade, enquanto que, se lermos o que sucedeu depois da sua captura, não existe qualquer espaço para positividade. Depois da sua captura, a história de Anne Frank é absolutamente terrível.

    Aborda também as hierarquias que se estabeleciam dentro dos campos, e dos kapos, que eram prisioneiros, alguns deles judeus, que exerciam a função de guardas. Porque é que o regime nazi criou esta dinâmica, em que uns prisioneiros obtinham privilégios e podiam mandar nos outros?

    Essa era uma parte da perversão no sistema dos campos, em que se dava a alguns prisioneiros poder sobre os outros, estimulando também que se tratassem mal entre si. A maioria dos kapos em Auschwitz não eram prisioneiros judeus, eram polacos ou presos políticos ou criminosos de guerra. Mas no campo de Westerbork, por exemplo, que foi o primeiro em que os Frank estiveram, aí já eram judeus, porque a maioria dos prisioneiros eram judeus. Mas isto era parte de um sistema mais abrangente de hierarquias, em que eram concedidos “privilégios” a algumas pessoas, o que acabava por ajudá-los a sobreviver aos campos. E os restantes, que não tinham estes privilégios, tinham uma experiência muito mais dura e menores chances de sobreviver. Portanto, era uma parte da realidade da vida nos campos, e penso que também assumiu um papel muito importante nas vidas dos ocupantes do Anexo, porque no caso de Peter van Pels – o rapaz que tinha mais ou menos a idade de Anne –, quando ele foi enviado para Auschwitz, através de alguns contactos conseguiu um trabalho muito bom como carteiro. Portanto, ele não era um líder nem um kapo nem nada do género, mas também estava numa posição privilegiada, porque podia abrir encomendas e tinha de desempacotar a comida e levá-la para o staff da cozinha, e assim conseguia muito facilmente guardar algum alimento para si. E, além disso, estava em posição de ajudar Otto Frank, que ficou doente em Auschwitz e teve de ir para o hospital, onde não havia cuidados médicos, por isso ele foi apenas deixado lá. Otto ficou muito dependente de Peter, que tinha uma posição que lhe permitia andar pelo campo e visitá-lo e dar-lhe comida extra. E isto foi muito importante para a sobrevivência de Otto. Por isso, sim, a posição em que se era colocado e o trabalho que se conseguia tinham um papel preponderante nas hipóteses de se sobreviver.

    Também destaca aqueles que eram os primeiros a chegar aos campos, que se tornavam uma espécie de veteranos e podiam deter alguma vantagem sobre os que vinham depois.

    Sim, isso é verdade, sobretudo para o campo de Westerbork. Os kapos de lá eram quase exclusivamente refugiados judeus da Alemanha, enviados para este campo durante o final da década de 1930, portanto, antes da invasão da Polónia. Era um campo de refugiados antes de os alemães o tornarem num campo de trânsito para as deportações. Por isso, alguns destes judeus já lá estavam no campo e, quando se tornou num campo de trânsito, eram os prisioneiros mais antigos. E eles conseguiram esses trabalhos mais cobiçados, e como eram alemães, falavam a língua, por isso era mais fácil para os guardas da SS [abreviatura de Schutzstaffel, autoridades do regime nazi] – que eram muitos poucos nos campos –, e para os chefes, trabalhar com eles. Portanto, era muito claro que estes prisioneiros mais velhos se tornaram nesta espécie de classe mais alta, responsável por guardar os restantes prisioneiros.

    Portanto, todos esses factores aumentavam consideravelmente as hipóteses de sobrevivência.

    Exactamente. E vemos, de uma forma muito clara, no caso de Peter van Pels [um dos ocupantes do Anexo Secreto] que esses privilégios podiam perder-se muito abruptamente. Quando Auschwitz estava prestes a ser libertado, e todas as pessoas do campo foram evacuadas e postas em marchas de morte para os outros campos – Otto estava no hospital e, por isso, ficou para trás –, Peter foi levado para Mauthausen, e aí perdeu todos os privilégios. Passou a estar num novo campo, as regras eram diferentes, e voltou outra vez à estaca zero. E nós também utilizámos a entrevista de outro rapaz judeu da Holanda com o mesmo percurso e que teve o mesmo tipo de posição em Auschwitz, e ele explica o choque que foi perder a posição que tinha, e caminhar na marcha da morte, ser maltratado e agredido. Mal sobreviveu. Esse rapaz sobreviveu, mas Peter não aguentou. O mais trágico é ele ter sobrevivido até à libertação do campo, mas, poucos dias depois, faleceu.

    Campo de concentração de Bergen-Belsen, onde Anne Frank morreu em Fevereiro de 1945.

    Outra parte que chocou muitas pessoas foi a existência de guardas femininas nos campos, capazes de cometer actos de grande crueldade. Qual era o papel destas mulheres?

    Na maioria dos campos, os homens e as mulheres eram separados uns dos outros. Em muitos dos campos, as zonas onde as mulheres ficavam eram fiscalizadas por mulheres. Não eram guardadas apenas por mulheres, mas as mulheres desempenhavam um papel importante nessas áreas.

    Para o regime nazi era relevante serem mulheres a vigiar outras mulheres?

    Sim, mas não era algo exclusivo dos nazis; era algo bastante comum de se fazer, optar-se por ter guardas femininas a supervisionar prisioneiras. Essas guardas-mulheres foram criadas e treinadas entre os nacionais-socialistas nesta linha de tratamento duro e de radicalização, numa forma muito semelhante aos homens. Acho que esta perplexidade sobre o papel dessas mulheres talvez diga mais sobre o que nós pensamos que elas deveriam ser. Se pusermos pessoas – sejam homens ou mulheres – neste tipo de treino e de pensamento, que vêem os prisioneiros como não sendo humanos como nós, é algo que pode acontecer. De facto, creio que, depois da guerra, as guardas-mulheres em particular foram tratadas como se fossem loucas, enquanto que, relativamente aos homens, se esperava mais que eles fossem violentos sem que isso fosse visto como fruto de alguma perturbação mental. Nos processos em tribunal depois da guerra, vemos que estas mulheres foram frequentemente tratadas como sendo loucas.

    A proporção de guardas masculinos e femininos era semelhante?

    Não, não, havia muitos mais guardas masculinos do que femininos.

    Também é interessante que, como é referido várias vezes no livro, Otto Frank, e outros sobreviventes, não se tenham estendido muito nos seus depoimentos e não falaram sobre as suas experiências com detalhe…

    Sim, seria de pensar que Otto Frank providenciaria um depoimento mais extenso. E eu acho que isso de pedir-se às pessoas que nos contem as suas histórias de vida em grande detalhe é algo que nós, como sociedade, só começámos a fazer já depois de ele ter morrido. Portanto, nós vemos projectos como o USC Shoah Foundation, ou o History Project nos Estados Unidos, em que pedem às pessoas para testemunhar durante horas e horas sobre o que lhes aconteceu, mas isso só começou por volta dos anos de 1990. Então, nós vemos com frequência que estes testemunhos mais iniciais não são tão detalhados como os testemunhos posteriores. Creio também que Otto acreditava em contar o que lhe aconteceu, a ele e aos judeus em geral, utilizando o diário da filha. O Diário foi algo ao qual ele dedicou a sua vida. Ele estava disposto a falar um bocado sobre a sua experiência, mas o mais importante sempre foi o diário de Anne, a história dela. De resto, talvez se devesse também a razões psicológicas, e definitivamente terá que ver com o trauma por causa de tudo o que passaram.

    Isso obstaculizou de alguma forma a investigação do Holocausto?

    Um obstáculo… Sim, por vezes queríamos falar mais sobre o que aconteceu. Felizmente, temos outras testemunhas que tiveram vidas longas e foram entrevistadas já após a morte de Otto, e que complementam a história contando as suas experiências. Alguns amigos de Otto deram testemunhos muito detalhados sobre como sobreviveram juntos a Auschwitz, e como tentaram não desistir. Portanto, sim, tivemos que olhar para outros depoimentos.

    Já se passaram quase 80 anos desde o fim da Guerra, e este livro ainda traz novos dados sobre esta já tão conhecida história. Ainda há margem para novas desenvolvimentos no futuro?

    É sempre difícil de dizer. Já percorremos um longo caminho, sobretudo quanto ao período nos campos. Surpreender-me-ia se descobríssemos algo completamente novo para acrescentar a esta história, até porque este livro não é apenas o resultado da nossa pesquisa para a Casa de Anne Frank, mas também reúne tudo o que fizemos e pesquisámos durante as últimas décadas. Portanto, seria surpreendente encontrar algo novo, mas nunca temos certeza na investigação histórica. É sempre possível que novas informações se revelem. Por outro lado, nas biografias destas pessoas, que terminam nos campos de concentração, penso que há mais terreno para desbravar relativamente às suas vidas na Alemanha antes de terem sido obrigadas a fugir para a Holanda, e ao período que antecede. Nunca se sabe. Da família Frank, claro, já sabemos bastante. Mas dos outros ocupantes do Anexo e dos ajudantes, acho que ainda haverá mais coisas para contar, sim.

  • ‘Na literatura, a infância é a chave’

    ‘Na literatura, a infância é a chave’

    O escritor guatemalteco Eduardo Halfon esteve em Portugal para participar no FOLIO 2022 – Festival Literário Internacional de Óbidos, e aproveitámos esta visita para falar com o autor, que em 2019 venceu o Prémio Internacional do Livro Latino e em 2007 foi considerado um dos 39 melhores escritores latino-americanos pelo Hay Festival de Bogotá. O romancista acaba de lançar Un Hijo Cualquiera em Espanha, mas o seu mais recente livro a chegar a Portugal é Luto, editado em Fevereiro passado pela Dom Quixote. É o sétimo volume de um projecto literário em que o narrador se chama, também ele, Eduardo Halfon, e partilha da mesma biografia que o autor – desde o nascimento e país de origem, ao passado da família. E as suas raízes familiares são, precisamente, um dos temas mais característicos da sua obra. Neste Luto, Halfon traz-nos a história do sequestro do seu avô em plena Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), misturando acontecimentos verídicos com ficção e confundido o leitor sobre o que é apenas arte e o que foi mesmo real… um mistério que Halfon explicou ao PÁGINA UM, numa conversa que aborda também a forma como a escrita tomou de assalto a sua vida, o conflito bélico que dividiu e assolou o seu país no século passado e os problemas que ainda se mantêm.


    O seu projecto literário, do qual Canción faz parte, é composto por vários romances, mas este é o segundo a ser editado em português, depois de Luto

    Sim, é o segundo volume a ser editado em Portugal, mas não em Espanha. Em Espanha, são já seis livros… ou serão sete? Deixe-me contar [risos]. O projecto começou com o livro El boxeador polaco , publicado em 2008, e foi aí que “nasceu” este narrador, a sua história, a sua voz. É um livro muito pequeno, e que, por acaso, termina em Portugal. No último capítulo, a história desenrola-se na Póvoa de Varzim.

    Porquê em Portugal?

    Aconteceu. Fui convidado para o festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e escrevi sobre a minha passagem por lá. Acabou por resultar muito bem como final para esse livro. Portanto, publiquei esse livro em 2008 e, três anos mais tarde, uma dessas histórias tornou-se um capítulo de La Pirueta. Dois anos mais tarde, mais uma das histórias entrou num capítulo de Monasterio. Então, Monasterio é o terceiro, Signor Hoffman é o quarto, Luto é o quinto, Canción é o sexto, e acabei de publicar um novo livro, Un Hijo Cualquiera, que é o sétimo. Adoro como soa o título deste último em inglês: Any Given Son. Acho lindo [risos]. Mas, portanto, em português publicámos apenas dois volumes deste projecto. Um projecto que eu não tinha planeado de todo fazer.

    Quando escreveu El Boxeador Polaco ainda não sabia que iria dar-lhe continuidade?

    Não, não fazia a mais pequena ideia de que iria fazê-lo. Publiquei El Boxeador Polaco, e pronto, pensava que a história terminava ali. Mas, depois, foi evoluindo, as personagens reapareceram… e a história começou a crescer diante dos meus olhos. Agora, não sei para onde está a ir, nem sei quando vai e como vai acabar. Os livros não seguem nenhuma ordem particular. Uma editora pode começar por publicar Luto, e depois os outros. Ou, mesmo um leitor, pode lê-los na ordem que quiser. São apenas sete livros todos contados pela mesma voz. Com o mesmo narrador, os mesmos medos, os mesmos temas, a mesma família, os mesmos desejos… Dou-lhe um exemplo. Canción começa no Japão, e conhecemos Aiko, uma personagem que já tinha aparecido no antepenúltimo livro. Foi uma participação curta, de uma página, e eu não sabia quem ela era, simplesmente apareceu-me. E, agora, já sei quem ela é! Mas foram precisos três ou quatro livros… isto acontece recorrentemente. Por isso, não existe nenhum plano pré-concebido. É um projecto que tem vindo a crescer de forma autónoma, com a minha ajuda.

    O narrador é participante e seu homónimo. Além disso, tem também em comum consigo, a idade, a nacionalidade, a história familiar… Por vezes, parece que são exactamente a mesma pessoa. O que é que distingue, afinal, Eduardo, o narrador, de Eduardo, o autor?

    Pois, não somos a mesma pessoa. Nós partilhamos o mesmo nome, a mesma “biografia”… mas é só isso. Ele tem uma personalidade muito diferente da minha, um temperamento diferente. Ele fuma, e muito. Eu não. Ele viaja, eu já não viajo. Portanto, nós partilhamos o “superficial”, digamos assim. La fachada, diríamos em castelhano. Mas ele é muito diferente, é toda uma personagem. Eu sei como é que ele fala, conheço a voz dele, que não é como a minha. Ele diz as coisas com muito mais à-vontade do que eu, é muito mais diplomático. Por isso, sim, trata-se de uma personagem. O que torna tudo mais confuso é o facto de ele ter o meu nome. Mas ele é, de facto, uma personagem ficcional.

    No final de Canción, há uma passagem que diz que “todo o autor de ficção é um impostor”. Uma vez que, nas suas obras, a linha que separa o verídico da ficção se torna tão nebulosa, como engana o seu leitor? Levando-o a acreditar que o que está a ler aconteceu mesmo, quando não aconteceu, ou o oposto?

    Sim, eu sei que engano o leitor, e faço-o de propósito. É como um mágico que faz um truque, e lhe conta como o faz, mas, ainda assim, consegue impressioná-la com o seu truque. Então, eu digo ao leitor que o livro é um romance; é a categoria em que está. Mas, na página 5, ele já se esqueceu disso. E lê-o como se fosse uma autobiografia, como se fosse absolutamente real. E não é, é uma ficção. É verdadeiro, mas não é verdade. São coisas diferentes. Porque é que eu faço isto? Porque eu quero que me leiam assim. Quero enganar o leitor, e que ele leia como se fosse real, porque assim a reação emocional será maior. Ficará mais envolvido com a história. É quase como ler como uma criança, que não se questiona sobre se aquilo é real ou imaginário. Simplesmente é. E isso acontece com os meus livros: o leitor sabe que se trata de ficção, mas esquece-se, e é “engolido” para a história. E creio que é por isso que o faço; é a única resposta que eu tenho para o porquê de escrever desta forma, e de cruzar ficção com realidade. E eu já vi acontecer, vezes e vezes sem conta, pessoas que leram os meus livros como se não fossem ficção.

    Falou na reacção emocional de quem o lê. Qual é que tem sido o feedback dos seus leitores?

    Depende do livro em questão, porque o sentimento que eu pretendo suscitar nas pessoas difere muito em cada uma das minhas obras. Luto comove muito os meus leitores, especialmente o final, e era isso que eu queria. Queria retratar quase uma death march de crianças, em direcção ao lago… Então, a reacção que tenho dos leitores pode ser muito diferente. Canción é uma viagem à América Latina e ao seu passado, mas também a estes lugares estranhos da minha identidade e à aceitação daquilo que significa ser o neto de um homem libanês. E o livro começa no Japão, mas é por uma razão muito específica: quando fui convidado para esta conferência de escritores libaneses no Japão, que realmente aconteceu, eu pensava que era um engano ou uma piada, porque eu não sou libanês. Mas eles disseram-me “és sim, tens um avô libanês, tens essa herança”. E, na altura, eu não levei isso muito a sério, mas algo aconteceu no Japão que mudou o meu foco. Foi quando comecei a investigar a história do meu avô paterno.

    Então, Canción começa com essa conferência no Japão, porque foi esse acontecimento que o levou a descobrir o sequestro do seu avô paterno em plena guerra civil da Guatemala, que é o mote para este livro. Antes disso, não tinha tido curiosidade em explorar esse lado da família…

    Exactamente. Eu descobri a história do sequestro depois de ir ao Japão. Antes disso, estava mais interessado em explorar a história do meu avô materno, que era polaco. Então, El boxeador polaco era mais sobre ele; sobre Auschwitz e tudo o mais… Portanto, alguns livros são mais sobre a sua história de vida, a viagem à Polónia e a Israel. E, de repente, o Japão aconteceu e a minha atenção desviou-se.

    A sua família tem histórias que dão para muitos livros?

    Sim, mas eu acho que todas as famílias têm. Todas as famílias têm histórias, a diferença está só no facto de eu as escrever. Porque todas as histórias que eu conto, antes de as passar para o papel, são apenas memórias familiares, coisas que oiço. Dizem-me, “sim, sim, o teu avô passou por X ou Y…”. O “truque” está apenas em transformar essas histórias em literatura. Mas eu acredito que todas as famílias as têm.

    Mas sempre teve interesse no passado da sua família?

    Não, nunca. Até começar a escrever. Escrever fez-me ganhar interesse na história da minha família e na História do meu país… porque eu também não estava interessado na Guatemala. Também não tinha interesse no judaísmo, de igual modo, e passei a ter. Estou interessado em tudo isso, como escritor. Eu tenho uma relação muito distante com a minha família, vivo longe e não somos muito próximos. Sinto uma grande distância em relação ao meu país, e em relação ao judaísmo… excepto quando escrevo. Portanto, interesso-me em tudo isto, do ponto de vista literário. São histórias.

    E quando é que começou a escrever?

    Bom, eu só me tornei um leitor aos 27 anos. Antes disso, não gostava de livros, e nunca lia. Estudei engenharia industrial na faculdade, e só descobri a literatura mais tarde, por acidente. Então, só comecei a escrever por volta dos 30, e publiquei o meu primeiro livro com 32 anos. Precisei de alguns anos para perceber o que estava a acontecer, porque foi muito inesperado, uma mudança abrupta na minha vida. Eu não gostava de livros, não os compreendia, e de repente, algo aconteceu. Houve um clique, e mergulhei nesse mundo. Tornei-me um leitor e não queria fazer mais nada senão ler, durante dois ou três anos. Só queria ler, lia compulsivamente, era um vício. Lia um livro por dia, não queria sair de casa nem trabalhar. E acho que começar a escrever foi uma consequência, uma reação ao excesso de leitura. Li demasiado, e depois pus-me a escrever.

    E foi quando percebeu que queria ser escritor que rumou a Paris? Por achar que era o lugar ideal para escrever…

    Bem, sim, não fui para lá viver, mas fiz uma viagem a Paris. Quando percebi que queria experimentar isto da escrita, fui para Paris durante alguns meses, com esta ideia romântica e estúpida de que seria perfeito para escrever, mas foi horrível! Foi horrível, fiquei muito doente assim que lá cheguei, estava sozinho, num hotel barato… Foram uns meses terríveis. Ia para os cafés ler, mas a sentir-me indisposto. Mas, algo aconteceu depois! Quando regressei a casa, no dia em que cheguei, recebi uma chamada de um professor de uma universidade a oferecer-me trabalho como seu assistente. Então, agora, quando olho para trás, vejo aquela altura como um ponto de viragem. Antes de Paris, eu era um engenheiro, um filho obediente. Depois de Paris, comecei a trabalhar na universidade e a escrever. E, pouco tempo depois, publiquei o meu primeiro livro. Por isso, Paris resultou de uma forma muito estranha. Não da forma que eu estava à espera, mas de outra.

    A partir daí, largou a ideia de que Paris era a cidade idílica para a arte de escrever… [risos]

    Eu queria escrever, e não sabia como. Queria escrever em castelhano, mas tinha perdido a prática, porque passei a minha adolescência nos Estados Unidos. Portanto, eu estava muito longe de ser um escritor quando fui para Paris. Foram necessários alguns anos para aprender a arte da escrita.

    Em castelhano?

    Sim, eu apenas escrevo em castelhano, só escrevo em inglês se mo pedirem. Embora eu ainda pense em inglês. O inglês passou a ser a minha língua mais “forte”.

    Mas nunca escreveu um livro em inglês?

    Não. Escrevi algumas histórias, ensaios, mas nunca um livro.

    Porquê?

    Porque a minha infância foi em castelhano. Quando me perguntam porque é que não escrevo em inglês, essa é a minha resposta. Não creio que seja porque castelhano é a minha língua materna, acho que não é esse o motivo…

    Não?

    Não. Foi porque a minha infância foi em castelhano e, para mim, na literatura, a infância é a chave. É fundamental, e é onde vou constantemente.

    Já viveu na Guatemala, nos Estados Unidos, em França, agora está na Alemanha, em Berlim… Onde é que se sente em casa?

    Em lado nenhum… Aqui, numa livraria [risos]. Desde criança, nunca senti nenhuma ligação a lugar nenhum. Deixámos a Guatemala quando eu tinha 10 anos e fomos para os Estados Unidos, mas mesmo antes disso, não me sentia guatemalteco. Eu era um miúdo judeu num país completamente católico. Então, 99,999% dos meus conterrâneos eram católicos. Apenas 100 famílias eram judaicas. Por isso, todos os meus amigos eram católicos. E era muito estranho, porque todos eles estavam a fazer a primeira comunhão, celebravam o Natal, a semana Santa… As datas do calendário escolar correspondiam a comemorações católicas. E era do género: “onde é que eu fico nisto?” Nunca me sentia parte do país, era como um mero observador distante. Então, sempre me senti deslocado. Sempre. Em Espanha, no Nebraska, Iowa, Paris, Berlim… Um sentimento constante de nómada, sem raízes. “Desarraigado”.

    Não tem sentimento de pertença a nenhuma terra nem a uma religião?

    Não, não. E mesmo a literatura não é uma “casa” para mim. Eu não venho deste meio. Estou aqui agora e é o meu trabalho, mas no es mi patria. E era algo fácil para mim, até o meu filho nascer. Depois, as coisas complicaram-se. O meu filho tem seis anos e já viveu em cinco países, fala quatro línguas, tem três passaportes, e nunca teve uma residência permanente. Nós alugamos sempre ano a ano. Portanto, eu estou a ensinar-lhe este estilo de vida nómada, a dar-lhe esta herança é muito difícil.

    É sobre isso que fala no livro que publicou agora em Espanha, Un hijo cualquiera?

    Falo um bocado, mas não de forma muito directa. Tenho falado mais sobre isto em entrevistas, porque lancei o livro e têm-me perguntado como é que está a ser este nomadismo como pai, que agora sou, e é um bocado assustador, porque não sei se é isto que quero para o meu filho. Quero que ele tenha um lar, que vá para a escola e tenha amigos dos quais não se tenha de despedir após um ano. E até agora não tenho conseguido proporcionar-lhe isso, temos estado sempre a mudar-nos.

    As referências às memórias de infância marcam a sua obra. Tem muitas recordações marcantes dessa altura?

    Sim, tudo, lembro-me de tudo. Se ler estes meus sete ou oito romances, vê que eu estou sempre a voltar à minha infância. Estou sempre à procura de coisas que me aconteceram em criança, quase como fundamentos para explicar o presente. Por exemplo, em Canción, há uma cena na casa dos meus avós. E no restaurante, há uma parte em que entra uma sequestradora. Então, há sempre estes flashbacks à minha infância. Por isso, penso que regresso sempre a essa altura, para encontrar pequenas histórias ou “explicações”.

    Como criança a viver num país durante uma guerra civil, houve momentos traumáticos?

    Não, não, de todo. Foi uma altura maravilhosa, feliz. Estava sempre com os meus primos. Nós vivemos na Guatemala durante o período mais violento da guerra civil, os anos 70, mas a guerra travava-se sobretudo nas montanhas – e não na cidade – até ao final da década. Então, um ano antes de sairmos do país – em 1979 ou 1980 – a guerra chegou à cidade, e eu lembro-me disso. Lembro-me de haver sequestros, bombardeamentos, tiros de caçadeira durante a noite e, de repente, o meu pai andava com um guarda-costas. Portanto, eu lembro-me destes primeiros episódios de violência, mas, antes disso, tudo era idílico. Vivi uma infância idílica. Mas tudo começa na nossa infância, a nossa relação com os nossos familiares, com os amigos…

    Pode ser terapêutico para um escritor, escrever sobre a infância?

    Não, para mim não sinto que seja. Quando escrevo sobre alguma coisa, não sinto que a tenha “descortinado”, ou que a consiga compreender melhor. Na verdade, compreendo-a ainda menos. Não sou uma pessoa melhor quando acabo de escrever um livro, nada disso. Porém, sinto que para os leitores é terapêutico. Ainda há pouco, uma pessoa me disse que o meu livro Luto a ajudou a ultrapassar a fase de luto em que se encontrava. E dizem-me isso com frequência. Creio que nos acontece a todos enquanto leitores: já li livros que me ajudaram a atravessar e a perceber determinadas situações. Mas como escritor, isso não acontece. Pelo menos a mim, não me acontece, não é um processo terapêutico. É apenas trabalho. Um trabalho que envolve a linguagem, sobretudo.

    Mostra-nos o poder da arte e dos livros…

    Sim, sem dúvida. A arte tem o poder de suscitar reacções emocionais muito profundas. Quando vemos um filme, ou vamos a um museu, ou ouvimos uma música. Acho que algo acontece quando somos confrontados com arte. Não é só com a literatura, todas as artes, e creio que especialmente com a música, que parece que vai directamente ao “sítio certo”. A arte pode comover-nos, arrastar-nos, espoletar uma mudança em nós. E tudo isso acontece na condição de leitor, não como escritor.

    Houve livros que o mudaram?

    Sim, sim. E sob várias dimensões. Houve livros que me impactaram como homem, e outros que me impactaram como leitor, particularmente naquela fase em que lia compulsivamente. Há livros que li nessa altura, e que, até hoje, continuo a regressar, porque foram tão importantes na minha descoberta da literatura. Roberto Bolaño, Hemingway, Tchekhov, Raymond Carver… Mas, como escritor, foram outros livros. Quando eu comecei a escrever, a forma como eu lia mudou. Porque eu já não estava a ler como leitor, mas como escritor. Pensava: “como é que eles fazem isto?”. Então, comecei a ler de outra forma. Mas sim, há livros que eu ainda “levo” comigo.

    Já recebeu vários prémios, incluindo, em 2018, o mais importante galardão literário no seu país, o Prémio Nacional de Literatura da Guatemala.

    Sim, é o mais importante na Guatemala, o que não significa grande coisa, porque a Guatemala não é, de todo, um país de leitores, nem de escritores, nem de cultura.

    A minha questão era nesse sentido, porque deve ser bom sentir-se reconhecido no seu país, mas, por outro lado, há prémios internacionais de maior prestígio para um escritor…

    Foi um prémio complicado para mim de receber, e explico-lhe porquê. Na Guatemala, é considerado a maior honra para um escritor, e atribuem-no anualmente. Mas eu não o queria receber vindo daquele Governo. Não quereria recebê-lo vindo de nenhum governo guatemalteco, porque são todos uma merda. São só políticos corruptos, perigosos e violentos. Mas não queria, particularmente, naquela altura. Por isso, vi-me numa situação muito desconfortável, porque não queria parecer ingrato para com as pessoas da minha terra. Então, arranjei uma solução, que foi receber o prémio, mas doar o dinheiro. E, na altura, considerava que um dos maiores problemas do país era a forma como o governo tratava as mulheres em geral, mas sobretudo as mais jovens. Por isso, entreguei o montante a uma organização que ajuda jovens mulheres. Foi algo simbólico, porque não era uma quantia avultada, mas foi a minha forma de dizer que recebo a honra, mas não consigo aceitar o dinheiro, e prefiro oferecê-lo a uma instituição à qual o Governo não dará nada. E o auditório inteiro estava em lágrimas, porque uns dois ou três meses antes, o Governo tinha queimado um orfanato de raparigas. Morreram 43 órfãs. E foi um grande escândalo na altura. Trancaram as raparigas no orfanato e atearam-lhe fogo. Então, era uma ferida que ainda estava muito aberta, quando eu recebi o prémio e acusei o Governo de não cuidar das suas niñas. “Por isso, o dinheiro vai para elas”, disse eu, e toda a gente começou a chorar. Foi um discurso breve, mas muito importante para mim.

    (Foto: Ferrante Ferranti)

    Muitas vezes os artistas tornam-se, intencionalmente ou não, activistas políticos, de alguma forma. Como artista, sente que tem algum poder para fazer a diferença no seu país?

    Não, não. Eu não acredito que possamos mudar alguma coisa, mas podemos “apontar” para os problemas. Por alguma razão, puseram um microfone à minha frente, como escritor, e posso dizer coisas. Posso dizer “passa-se isto ou aquilo” ou “isto não está bem”, e provavelmente não irá mudar nada, mas pelo menos eu posso chamar a atenção para as situações. Posto isto, há que dizer que em países como a Guatemala, o México… é algo muito perigoso de se fazer. Há jornalistas a serem mortos por falarem. No meu caso, é um bocado diferente, porque eu falo através da ficção. E ninguém lê na Guatemala! Contudo, arranjo sarilhos e recebo ameaças quando dou entrevistas. Não pelos meus livros, porque eles não os leêm, mas quando sou entrevistado, sim, aí já sofro alguma intimidação. É muito real.

    Do governo guatemalteco?

    Não directamente, mas de pessoas que simpatizam com o Governo. É um grupo pequeno, mas poderoso, da população. Muito virado à direita, e que não quer que se fale do genocídio que aconteceu e de todas as mortes que tiveram lugar durante a guerra civil.

    Uma criança a viver uma guerra civil no seu país, ainda não é capaz de escolher um “lado”…

    Pois não. Aquilo que faz é escolher o lado dos pais, porque é a história que lhe estão a contar. E os meus pais eram pessoas de classe alta, mais à direita, e, por isso, era esse lado da guerra a que eu tinha acesso em casa. Então, por exemplo, quando eu estava a crescer, a palavra “guerrilheiro” era sinónimo de ladrão, ou meliante. Para os meus pais e para essa parte da população, a guerra era assim: os guerrilheiros eram os inimigos. E, aos poucos, à medida que fui crescendo, especialmente nos meus 20 anos, e quando voltei à Guatemala e casei com a filha de dois guerrilheiros – tanto a minha sogra como o meu genro são antigos combatentes –, comecei a ver que a história que me tinham contado não era verdade, era tendenciosa e enviesada, e tive que me reeducar. E creio que isso acontece com muitas crianças, porque só lhes é contada uma parte da história, que geralmente vem da família. Nós herdamos as nossas visões políticas. Então, para mim, foi um longo processo de perceber a história da Guatemala, que é extremamente complexa. Quem é a vítima: o sequestrador ou o sequestrado? É muito complexo…

    A maior parte dos assuntos é mais complexa do que parece…

    Sim, e uma criança não tem a capacidade de perceber isso, só muito mais tarde.

    A sua opinião polarizou-se para o outro extremo, ou ficou mais no meio?

    Esta história, por exemplo, do rapto do meu avô, eu queria mesmo contá-la de um ponto de vista muito objectivo. Queria ser capaz de escrevê-la com imparcialidade e tratar os dois lados por igual. Mas, quem ler o livro, percebe de que lado é que eu estou. Não tenho de o dizer, mas é perceptível, está implícito. O peso da História quase que força o leitor a olhar para ela de um certo prisma. Na altura, o poder estava tomado por ditaduras militares muito, muito violentas, que tinham uma política de genocídio. Não há outra forma de ver a coisa. Enterrava-se corpos o tempo todo. Não há outro modo de o “pintar”, não há como branquear. Aconteceu. Portanto, mesmo que se tente analisar objectivamente, a justiça tem que prevalecer.

    O lado bom é sempre o lado mais justo?

    Não sei se lhe chamaria o lado bom, mas creio que, eventualmente, a Justiça leva a melhor. Podem ser necessárias décadas, até gerações… Porque há pessoas que não querem que se faça Justiça, ou se esforçam muito para a impedir. Mas ela faz-se. Fez-se aqui, depois da ditadura em Portugal. E é assim em todo o lado.

  • ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    Miqui Otero garante que é sempre “muito pessimista” e que parte do pressuposto que os seus livros “não vão valer nada”. Mas o escritor, jornalista e professor universitário viu o seu mais recente romance, “Simón”, receber, em Espanha, o prémio Ojo Critico em 2020. É também o primeiro livro do autor catalão, de 42 anos, a ser editado em português, pela Dom Quixote. O PÁGINA UM aproveitou a ocasião da vinda do escritor à Feira do Livro de Lisboa para uma descontraída conversa em que se falou de “Simón” e de todo o tipo de heróis: desde os mais clássicos e literários, aos mais reais e comuns.


    Os romances contam histórias e realidades objectivamente mas, como tudo o que é arte, também há um grau de subjectividade na sua interpretação ou na forma como cada leitor percepciona o que lê. Para si, como autor, de que é que realmente trata “Simón”?

    Creio que uma das coisas que faz um romance, pelo menos um romance desta tradição realista, é analisar um momento histórico e uma sociedade, através dos olhos e do coração de um personagem. É uma boa maneira de abordar, por exemplo, os problemas num lugar e num tempo. Combinam-se as duas coisas. É sobre como a personagem vive determinados momentos históricos. Portanto, trata de problemáticas objectivas, mas que cada pessoa vive de forma subjectiva. E é isso que combina “Simón”, tenta ser um romance que parece que arranca como sendo a história de um menino que se está a formar e atinge a idade adulta, mas o que pretendi com este romance é fazer uma análise do que se passou neste período de quase quatro décadas.

    O intervalo temporal em que se desenrola a história da personagem principal, Simón, coincide com as quatro décadas em que cresceu e viveu em Barcelona. Pode dizer-se que a vida de Simón foi buscar muito daquilo que viu e viveu?

    Sim. Eu acho que quando estamos a passar pelas coisas na nossa cidade e no nosso país, pensamos sempre que são menos importantes do que as coisas pelas quais passaram aqueles que viveram antes de nós. Os romances que se passam em Barcelona, de escritores de outras gerações, falavam da guerra civil, do pós-guerra, da transição da ditadura para a democracia… e, quando eu tinha 22 anos e morava aqui em Lisboa e já escrevia, pensava sempre: que período mais aborrecido! Não há maneira de ter material para conseguir escrever um romance aqui!

    Agora, os tempos que vivemos não são aborrecidos…

    Não, agora é menos aborrecido, podia ser um bocado mais aborrecido! Mas, o que é necessário, é o tempo. Enquanto eu vivia os Jogos Olímpicos de Verão em Barcelona, não via aquilo como algo que pudesse dar um romance. Mas quando o tempo passa e se olha para trás, percebe-se que foi um momento muito importante para a cidade e para o país. Era um país que estava a tentar não ser associado com a ditadura franquista, que queria apresentar-se como um país moderno e recebia fundos europeus, como um adolescente que queria viver as coisas pela primeira vez… e tudo isso, de repente, me pareceu interessante. Foi uma altura de mudanças muito repentinas na cidade, algumas boas e outras más, porque deixaram de fora muita gente. Muitos vizinhos foram expulsos. Então, depois comecei a pensar que aquela altura não era assim tão pouco literária, tinha interesse. E a única coisa que se tinha passado era o tempo, para que eu fosse capaz de olhar e entender aquele momento. E o romance vai desde a inauguração do Jogos Olímpicos de 1992 até aos atentados nas Ramblas, em 2017. Pareciam-me dois bons momentos para começar e terminar o romance, porque foram muito diferentes. Os Jogos Olímpicos foram uma altura de fé no progresso, no futuro, na modernidade… eu lembro-me de quando tinha 11 anos, e as pessoas estavam todas muito excitadas, como se estivessem embriagados, havia uma embriaguez colectiva [risos]. Viam tudo como se fosse bom, pensavam que iam ser enormes, o centro do mundo. Com tudo o que isso tem também obviamente de mau. E o romance termina com os atentados porque foi uma altura drasticamente diferente, Simón já tinha mais de 30 anos e já tinha passado por uma série de decepções, e o sentimento que se vivia na sociedade era exactamente o oposto daquele do vivido durante os Jogos. Era uma sociedade muito mais individualista, Barcelona estava muito dividida pelo movimento independentista e vivia episódios traumáticos, como os do atentado, e com uma crise económica global. Então, respondendo à pergunta, pode ver-se como um livro de História que fala de experiências de vida, ou como um romance que fala de um personagem que de algum modo define esse tempo e o acompanha e o segue, bem como à forma como vai vivendo e como sente as coisas ao longo dos anos.

    Simón começa por ser “o nosso herói”, e depois passa a ser “o nosso anti-herói”. Afinal, o que é que ele é?

    Não sei. Acho que há certos conceitos que se têm de redefinir de alguma maneira, creio que um bom romance não é feito de heróis. Na Antiguidade Clássica, se virmos as odisseias gregas, são pessoas que cometem erros, que estão a servir um ideal, mas que, querendo regressar a casa, vão vivendo a sua vida [risos]. Eu fartava-me de rir, porque Ulisses queria voltar a casa, mas chega a uma ilha e está com uma mulher, que não é a sua, durante oito anos… depois, vai para outra ilha e apaixona-se por outra mulher. Num capítulo, vai para uma ilha em festa e fica nessa ilha em celebração durante um ano inteiro, num castelo. Então, ele nem sequer corresponde à ideia de herói que temos hoje em dia. Não acredito numa heroicidade imaculada. Os romances mais actuais não podem jogar com esse tipo de heroísmo, porque é mentira. Seria propaganda, não seria literatura. Então, para mim, Simón é um anti-herói porque se engana constantemente, porque duvida, às vezes faz coisas boas para interesse próprio e, outras vezes, não tem intenção de fazer mal, mas faz indirectamente. E, para mim, isso é mais interessante. No livro, Simón está obcecado pelos romances dos séculos XVIII e XIX onde, aí sim, se apresentavam os heróis espadachins, ou outros que tais. Eu chamo-lhe ironicamente herói, e por isso coloco a expressão em itálico, porque ele é um rapaz que vai cometer erros ao longo da vida e vai-se enganar ainda mais porque, ao ler tanto, no mundo real irá deparar-se com uma realidade que não é como nos livros. Então, ele é um herói até ao momento em que passa a ser um anti-herói. E acho que os anti-heróis são muito mais interessantes do que os heróis, do mesmo modo que as derrotas sempre serão muito mais interessantes do que as victórias.

    Vamos poder ver Simón no grande ecrã?

    Isso nunca se sabe. Estão a trabalhar nisso, mas já com o meu romance anterior, compraram os direitos de autor para uma série e depois não se concretizou. Não sei o que vai acontecer, porque envolve várias etapas que não dependem de mim. Com Simón, está em processo, mas não sei como acabará. Se me perguntar se existe um projecto para que isso aconteça, sim, há um projecto para uma série.

    Simón conferiu-lhe uma maior projecção, tendo sido editado em várias línguas. Sente alguma pressão para que o próximo livro exceda o sucesso deste?

    Não [risos]. Eu sou sempre muito pessimista, parto sempre do pressuposto de que os meus livros não vão valer nada. Dizem que preparar-nos para o mal é a melhor maneira de enfrentar o pior. Então, não sinto nenhuma pressão, até porque não sou um atleta. Os atletas, quando saltam de uma altura, nas seguintes Olimpíadas têm que ir mais longe, mas com um escritor não é assim. Não é sobre tentar escrever mais romances de sucesso, é sobre tentar escrever o que tenho para dizer no momento. O romance que estou a escrever agora será mais breve, mais pequeno e terá outro estilo. Simón conta uma história que segue um longo período de tempo, é amplo e fala sobre muitos temas. Agora quero fazer algo diferente, um pouco o contrário. Sem a pretensão de ser mais nada, nem mais do que este foi.

    E está com menos tempo para escrever? Em Maio passado, anunciou que após seis anos como colunista para o jornal El Periodico, iria fazer uma pausa de alguns meses. Qual foi o motivo?

    Houve situações diferentes. Com os meus romances anteriores, tinha os meus leitores, mas com Simón houve uma mudança muito grande, um salto de leitores enorme. Então, isso também fez com que o trabalho de promoção em Espanha durasse vários meses e isso rouba tempo, mas também espaço mental para me concentrar no que quero escrever. Depois, tenho dois filhos, uma menina com dois anos e um menino que acaba de fazer cinco. Durante todo este último ano tive duas criaturas em casa, e uma ainda estava a aprender a andar e a ir contra as coisas, com aquela atitude de bebés de um ano que parecem os teus amigos embriagados [risos]. Levantam-se e caem de repente, tentam explicar-nos algo incompreensível, estão a chorar e depois riem-se… são como os nossos amigos embriagados, os bebés. E o de quatro, estava numa fase de perguntar-me tudo, perguntar-me metafísica. “Papá, o que é um buraco negro?“; e perguntas sobre meteoritos e dinossauros [risos]. Bom, tudo isto é exigente, e acaba por levar muito tempo também. Tenho também muitas colaborações em rádios, dava aulas, tinha muitos compromissos acumulados, e dei-me conta de que não estava a conseguir escrever. Então, de repente, numa manhã escrevi um e-mail, parei com tudo e pus-me a escrever. E agora já tenho avançado com o meu novo livro. Depois do mês de Outubro, em que estarei na Alemanha, já termino o romance.

    Também é professor universitário na Universidade Autónoma da Catalunha…

    Sim, isso foi outra coisa que também parei na Primavera. Por volta de Outubro ou Novembro, voltarei a dar aulas. As aulas que dou são de escrita criativa e jornalismo literário, e também faço um workshop de escrita de romances pequenos, de 60 páginas. Depois, tenho um projecto com um escritor mexicano, Juan Pablo Villalobos, em que ensino escrita criativa num bairro problemático de Barcelona que se chama El Raval e tem 70 ou 80% de imigração, do Bangladesh, Paquistão, latino-americanos também. Um dia, eu e o Juan Pablo começámos a falar de como gostaríamos que esses jovens nos explicassem como é a sua vivência na cidade e organizámos uma espécie de curso em que a cada ano é publicado um livro. Então, isso também me tem ocupado bastante tempo, porque é como ensinar a escrever a jovens de 14, 15 anos, que têm vidas difíceis em muitos casos.

    Foi o jornalismo que o levou a ser escritor ou já era escritor antes de ser jornalista? Como é que se definiria, qual é realmente a sua paixão?

    É a literatura, os romances. Estudei jornalismo porque era o que muita gente estudava, e a única coisa que eu sabia fazer na vida era escrever, então pensei: como é que posso ganhar a vida com a única coisa que sei fazer? E, por isso, tornei-me jornalista e trabalhei como jornalista durante uns anos. Assim que pude, deixei as redações, estava farto de estar sentado em redações todos os dias. Por volta dos 28 anos abandonei o jornalismo e já não voltei mais às redações. Depois, ainda continuei a fazer algumas entrevistas e reportagens, e agora já faz tempo que não exerço jornalismo. No entanto, é algo que continua a interessar-me bastante. É uma profissão excitante, necessária e útil para a sociedade, mas a minha paixão é escrever ficção. E desde que eu era criança, com seis anos, voltava da escola para casa para almoçar das 13 às 15h, e tinha uma espécie de loucura, de que a cada meio-dia tinha que escrever um conto. E quando não o terminava, ficava doido! Escrevia compulsivamente como o Stephen King, e ficava torturadíssimo quando não conseguia escrever. Escrevi inúmeros contos entre os seis e os 10 anos. Foi uma vocação desde muito cedo. Sempre gostei de escrever.

    A certa altura, no romance, chega-se ao dia do referendo sobre a independência da Catalunha e há uma passagem que refere que uma personagem via todo esse processo “como uma sã rebeldia“, e outra como um “golpe de estado“. Como catalão, qual é a sua visão sobre o movimento independentista catalão?

    Não vejo de nenhuma dessas formas. Eu digo que o pai de Simón pensava de uma maneira e o tio de outra para mostrar como os dois extremos pensavam nessa altura. Considero que foi um período de encantamento, como que um truque de magia. Nas primeiras páginas do livro, sobre a inauguração dos Jogos Olímpicos, falo de quando foi acesa a chama olímpica com uma flecha e toda a gente achava que a flecha caía no lugar onde se acendia a chama olímpica. Foi um truque. As pessoas estavam dispostas a acreditar em qualquer coisa. E, na época do processo independentista da Catalunha, havia muita gente que acreditou em qualquer coisa. Mais uma vez, havia uma fé nesse projecto, que era uma fé acrítica. As pessoas não criticavam nada, havia um nacionalismo cego. Metade da população acreditou nesse ideal, efectivamente, de uma maneira cega. Metade, porque a população estava dividida, era 50-50. Confiou-se cegamente em como uma Catalunha independente era melhor, confiou-se em políticas baseadas em promessas, mas que não estava realmente preparadas. E, quando tudo deu o berro, alguns fugiram. Portanto, há toda essa questão, por um lado. Agora, se é legítima a aspiração de uma Catalunha independente? Creio que sim. Se merece um diálogo maior por parte do estado espanhol? Claro que sim. Mas, isso faz com que eu valide tudo o que foi dito pelo partido separatista da Catalunha? E a forma como a maior parte da população interpretou? Não, e parece-me triste.

    Porquê triste?

    Parece-me triste porque depois o que fizeram foi esbarrar-se com a realidade. Uma realidade em que não tinham pensado porque foram enganados. Então, não me parece que seja uma história entre bons e maus. Parece-me, por um lado, que houve uma atitude quase infantil e irresponsável de nos levar para algo que se sabe que não vai ser bom. E por outro lado, no caso do estado espanhol, houve uma reação tardia, e em alguns momentos violenta. Foi prejudicial, porque era um tema que se podia ter dialogado. Portanto, não me sinto num lado nem noutro. E estas reflexões eram coisas em que eu pensava enquanto se passava tudo isto na Catalunha. Tornou-se numa sociedade bastante dividida. Agora, já está muito mais calmo… Mas a mim, o que me custava mais de todo aquele processo é que, naquele tempo, definiam-te unicamente em função disso. Apresentavas-te num lugar e era: és independentista ou não és? És independentista ou unionista? E isso parecia-me muito…

    Simplista?

    Simplista, sim, e triste também. No livro, até há uma frase que tem a ver com isso: não somos só uma coisa, somos aquilo que trabalhamos. Nós não somos a nossa opinião sobre um tema. Uma pessoa tem tantas faces como o fogo. E, na altura, se alguém não se alinhasse com nenhum dos lados, era mal interpretado, porque isso era visto como um sinal de cobardia, como se não se quisesse posicionar. Mas não é verdade porque, pelo contrário, estaria a posicionar-se sim, e num lugar pouco cómodo, porque estava diante do vazio.

    E acha que é assim com todos os temas, no geral? Ou é algo mais notório no caso de Espanha, com a questão da independência da Catalunha?

    Não, eu acho que acontece com muitas outras questões também. Primeiro, acho que é um sinal dos tempos, e não é apenas uma questão espanhola. Por exemplo, se pensarmos em como funcionam os algoritmos das redes sociais, que polarizam as opiniões e tentam acicatar conflitos já existentes, porque é isso que move o mundo. É esse o estado de coisas em Espanha e em todos os países. Em Espanha, é evidente que há desde sempre uma tensão entre conservadores e reformistas e, muito claramente, há desde logo duas Espanhas diferentes que nascem do conflito da guerra civil. Há progressistas e, por outro lado, pessoas que não dizem que são franquistas, mas na verdade têm padrões mentais que vêm daí. São como duas equipas.

    Que escritores tem como referências? Tendo já vivido em Portugal, algum deles é português?

    São tantos, e menciono tantos neste romance, que nem sei por onde começar. Há escritores que foram fulcrais na minha formação, que li quando era adolescente e que são importantíssimos para mim e estão todos em Simón. Alexandre Dumas, Balzac, Stendhal… Há um que é uma referência pessoal e ao qual volto muitas vezes quando quero entender algo, que é Charles Dickens. Mas, obviamente, há muitas mais, e leituras mais actuais, como romances dos últimos vinte anos, por exemplo. O meu preferido será provavelmente “A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao”, de Junot Díaz, um tipo dominicano. Ou, antes, recomendava o poeta chileno Alejandro Zambra, que escreveu muitos romances nos últimos anos. Depois, nos meus vinte e poucos fui muito influenciado por escritores americanos. Também tive uma fase de literatura latino-americana. Muitos escritores de Barcelona também me influenciaram, e com os quais hoje me comparam, o que me deixa muito feliz porque são mestres para mim. E, desses, destacaria Francisco Ledesma, Eduardo Mendoza… Por fim, quanto aos portugueses, bem, obviamente li muito Saramago. Li o “Viagem a Portugal” porque estava a viajar por Portugal, e que começa a olhar o Douro, numa aldeia perto da aldeia da família da minha mulher, que é um povoado do lado de lá da fronteira espanhola. Também já li Valter Hugo Mãe, mas faltam-me ainda ler outros autores contemporâneos. Enfim, são mesmo muitos os autores que poderia citar como referências.

  • ‘Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, mas não queremos estar expostos a isso na vida real’

    ‘Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, mas não queremos estar expostos a isso na vida real’

    Em Gelo sob os seus pés, a sueca Camilla Grebe, propõe aos leitores uma viagem pelos mistérios do crime psicológico, distribuída por três personagens que estão destinadas à colisão. Vencedora do Glass Key Award, para Melhor Policial Nórdico e também por Melhor Policial Sueco do Ano, o romance tornou-se um best seller em diversos países europeus. Actualmente a viver em Cascais, o PÁGINA UM conversou com esta escandinava de 54 anos sobre o seu percurso literário, o género policial e a sua vinda para Portugal.


    Como é que uma economista acaba a escrever romances policiais?

    Sempre tive um interesse em arte e na criatividade, e por isso fui para uma escola de Arte a seguir ao curso de Economia, para tentar pintura, mas cedo percebi que não ia conseguir viver disso. Fui depois trabalhar para uma editora, onde conheci muitos autores e após ter lido alguns manuscritos, entendi que preferia estar do lado criativo em vez de ficar na parte de gestão.

    Mas começou por escrever romances a quatro mãos, com a sua irmã. Como foi essa partilha?

    Foi tudo um pouco orgânico. Eu escrevi um primeiro capítulo, e ela o seguinte; e depois eu outra vez. A dada altura encontrávamo-nos e discutíamos a continuação da história. E, para nossa surpresa, o nosso primeiro livro [Någon sorts frid, em 2009] foi publicado [risos]. Devido a esse sucesso, tivemos que ser mais estruturadas e nos livros seguintes precisámos de concordar no enredo e personagens logo de início.

    Camilla Grebe. Foto: ©Anna Ahlström

    Quais as maiores diferenças face à escrita individual?

    Há aspectos positivos e negativos. Quando escreves com alguém, tens um amigo com quem podes falar sobre ideias, resolver problemas e apoiam-se mutuamente. E também se aplicas se precisas de fazer algum marketing ou ir em viagens promocionais. Por outro lado, pode haver complicações quando as ideias não coincidem, tanto no enredo como também no processo da escrita, no tempo que se dedica ao desenvolvimento da história. Eu descobri que sozinha, o meu tempo era mais produtivo e o processo de escrita mais rápido. De alguma forma, é mais eficiente, e sou eu que tomo todas as decisões.

    O seu percurso literário centra-se em policiais. O que mais a fascina neste género?

    Comecei a ler este tipo de livros muito cedo, ainda com sete ou oito anos, e logo nas primeiras páginas fiquei apaixonada. Mas para mim, este é um género onde podemos fazer o que quisermos. Há um contrato com os leitores: é suposto haver um mistério e, em certa altura, temos de os surpreender. Isto é obvio, mas, de resto, podemos fazer da história o que for; pode ser uma história de amor, podemos falar de problemas sociais, política, ou imprimir uma linguagem poética. Na minha opinião há poucas limitações.

    Qual foi a inspiração do romance que lançou agora em Portugal, Gelo sob os seus pés?

    Para mim, é muito difícil falar sobre este livro, teria de abordar o twist, o que seria decepcionante, mas eu gosto muito de crimes psicológicos. Posso dizer que este romance foi escrito para surpreender o leitor, esse foi o meu objectivo.

    Em todo o caso, em relação às personagens, como foi o processo de desenvolvimento que escolheu?

    De uma forma geral, eu sabia já, desde o princípio, quem seriam, mas houve também um crescimento orgânico ao longo do manuscrito. Eu gosto que as minhas personagens sejam de carne e osso, que sejam imperfeitas, tenham falhas e problemas. O caso de Hanna é um pouco assim: ela tem demência, que é uma doença horrível, mas interessante no contexto livro, porque se ela não pode confiar nela mesma, em quem poderá confiar? Essa dramatização pareceu-me muito interessante.

    O romance aborda temas como o arrependimento, a saúde mental, a inevitabilidade da morte. São temas de circunstância ou foram escolhidos com um propósito?

    São temas que fazem parte da condição humana. As questões eternas de vida, morte, amor, e por isso são importantes para mim, também porque são muito existenciais e acho isso muito interessante.

    Publicado originalmente em 2017, O gelo sob os seus pés foi editado em português em Abril passado.

    As protagonistas femininas passam por mudanças e transformações ao longo do romance. Considera que estas mudanças reflectem a evolução feminista na sociedade?

    Talvez a Hanna, sim. Ela é a personagem mais velha, e a geração dela era muito diferente. E embora ela tenha educação, na verdade ela pertence a um tempo em que o lugar da mulher era diferente. Por isso, apesar da sua doença, ela quer sair da relação abusiva onde se encontra.

    Este romance mostra-se bastante visual, havendo muitos pormenores mencionados como as roupas, as rugas, os cheiros. Sei que vai ser adaptado para o cinema. Já estava a pensar nesta possibilidade quando o escreveu?

    Não foi intencional, mas quando li o manuscrito apercebi-me que sim, que podia resultar, embora não fosse o meu objectivo.

    A Suécia é um dos países mais seguros do Mundo. Como se explica que este género seja tão popular no seu país?

    Eu penso que é pelo contraste. Na Suécia há muito de natureza, mais as casas vermelhas e todas estas características fazem-nos querer ler livros que reflectem os nossos medos, mas de uma forma segura. Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, pela morte e pelo medo, mas não queremos estar expostos a isso na vida real. Portanto, os livros e filmes permitem-nos reter um pouco disso.

    Entretanto, vive em Portugal? O que a fez vir para cá?

    Combinei com o meu marido que, quando os nossos filhos saíssem de casa, íamos mudar para o sul da Europa. O clima sueco é muito frio e, além disso, também muito escuro. Depois de algumas discussões, decidimos visitar Cascais. No princípio era por um ano, e depois íamos para Espanha, onde eu já tinha estado anteriormente, mas senti que os portugueses são mais parecidos com os escandinavos. Os espanhóis são muito latinos e os portugueses parecem-me mais reservados, tal como os suecos. E mesmo em temos de população, nós também somos 10 milhões. Um ano e meio após a chegada a Portugal, decidi que não ia para mais sítio nenhum. Isto é a minha casa e até vou para uma universidade aprender português.

    Será possível que a sua inspiração para escrever policiais mude pelo facto de viver em Portugal?

    Não está nos meus planos [risos]. Eu preciso do ambiente escandinavo para escrever os meus romances, do escuro, do frio, e é também isso que os meus leitores, espalhados pelo Mundo, esperam de mim. Talvez as minhas personagens possam fazer férias em Portugal [risos].

  • ‘Ser alfacinha é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz’

    ‘Ser alfacinha é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz’

    Em Lisboa: indo e vindo, a escritora Filomena Marona Beja junta, num estilo muito peculiar, a sua memória da capital portuguesa com a História e as estórias que, no conjunto, revelam verdadeiros tesouros de curiosidades. O pretexto da conversa com o PÁGINA UM era para ser uma breve conversa sobre o seu mais recente livro, editado pela Parsifal, mas acabou por resvalar para uma longa e agradável viagem de memórias e sentimentos por uma cidade que só pode ser aprendida e apreendida devagar, a pé, sempre a pé.


    O seu nome, enquanto autora, tanto aparece numa versão curta – Filomena Beja – ou numa versão mais longa – Filomena Marona Beja. Com qual delas prefere assinar?

    Na escrita, é sempre Filomena Marona Beja. Há uma coisa engraçada: eu sou escritora, fui documentalista de arquitectura escolar e escrevi muitas obras, e, no âmbito profissional, era sempre conhecida como Filomena Beja. Uma vez, a Biblioteca Nacional perguntou-me se ambos os nomes eram da mesma pessoa e eu disse que sim; então, estou na Biblioteca com os dois nomes.

    Pelo que escreve, percebe-se que é pessoa atenta, com uma invulgar capacidade de absorver em pormenor o que a rodeia. Este livro tem, aliás, uma riqueza excepcional de sensações, que nos “aguça” os sentidos…

    Eu acho que é o quanto gosto de Lisboa que está neste livro, e o facto de conhecer muito bem Lisboa.

    Identifica-se então como uma lisboeta, uma alfacinha.

    Mais alfacinha do que lisboeta. Sou lisboeta, porque nasci em Lisboa, e sou alfacinha, porque vivo essa cultura e porque a sinto.

    E o que é ser alfacinha?

    [risos] Olhe, é saber andar a pé em Lisboa, é saber olhar para as coisas, é gostar da luz, é saber ir de um lado para o outro e é sentir-me lá bem. Ser alfacinha é, sobretudo, isto. É a comida, é o próprio falar. Eu sei que nós, os lisboetas, não damos por isso, mas temos uma pronúncia. Além de falarmos depressa, temos uma pronúncia própria. Abrimos um bocado os últimos “o”, e essas coisas assim, e usamos termos que são de Lisboa, porque Lisboa foi sempre um encontro de tudo e mais alguma coisa. Tanto do que veio de fora, que nos chegou nas caravelas que iam entrando no Tejo e nos mercadores que iam cá deixando as coisas; como no que depois, a determinada altura, quando eu era pequena, no fim da Segunda Guerra Mundial, as pessoas deixaram de ter, no campo, os mesmos meios de rendimento que tinham tido até aí, e começaram a vir trabalhar para as fábricas… foi um vir de longe para cá e essa mistura, o continuar a querer falar à maneira de Lisboa e a querer as coisas à maneira de Lisboa, isso é ser alfacinha, acho eu.

    Mesmo correndo o risco de se tornar francesa… [risos]

    Foram os franceses que me educaram, sim. Aprendi a escrever ao mesmo tempo nas duas línguas, mas isso foi outra história. Foi do lado do meu pai, que era tradutor na Companhia dos Caminhos de Ferro. Ele ajudou, durante a guerra, a resistência francesa, e chegavam-lhe refugiados, gente que vinha escondida nos comboios, que ele ia buscar a Santa Apolónia, e conseguia depois passar para Inglaterra. E, no fim, teve a roseta da Liberdade de França e convidaram-no a ir para à escola francesa. Na altura, ainda fiz a primeira e a segunda classe na École Française de Lisbonne, que ficava na Travessa do Forno do Tijolo. Entretanto, estava a ser construído o Liceu Francês, que ficou com o nome de Charles Lepierre, que era professor de química no Instituto Superior Técnico. E, quando eu fui para a terceira classe, inaugurámos o Liceu. Há sessenta anos. Aprendi com os franceses uma coisa muito importante: o que é a liberdade e que se é livre desde que se seja responsável. E nessa altura isso não se aprendia no ensino português. Foi essa a história [risos]. Também me ensinaram que quando falasse português, era português, e quando falasse francês, era francês. Portanto, eu não podia misturar as duas línguas nem as duas culturas.

    De 1944 para 2022, Lisboa transformou-se. Já não é a mesma.

    A essência está lá. Claro que não é a mesma Lisboa, e uma das razões é as “invasões” que tem sofrido [risos]. Primeiro, de pessoas estranhas à cidade que vieram para cá viver e agora é a invasão dos turistas. Desce-se a Rua Augusta e não se vê nenhuma das lojas antigas, só se vê casas de comida. Ah!

    A maioria nem sequer apresenta comida portuguesa.

    Sim! Nem sequer é comida portuguesa, são coisas esquisitíssimas. Já vi turistas a comerem sardinhas com um café com leite ao lado. Eu acho que não são turistas, são viajantes que vêm cá para ver e não para descobrir. Vêm para verificar que está e às vezes vêem mal. Vão ao Carmo, vêem umas ruínas mas não percebem porque é que aquilo está assim… Está lá a Guarda Nacional Republicana, eles olham para aquilo e não sabem muito bem o que é que aquele fulano está para ali a fazer de um lado para o outro… No chão está escrito o nome do Salgueiro Maia e eles sabem lá quem é que foi o Salgueiro Maia e o que é que aconteceu ali. E pronto, é isto. Isto não é viajar, não é conhecer. E é mau, é uma invasão e é estragar a nossa cidade.

    Ao regressarem a casa levam consigo umas fotografias, mas não provaram a gastronomia portuguesa, não conheceram Lisboa…

    Não sabem o que viram! Dizem que os turistas deixam cá dinheiro, mas às vezes nem deixam. Comeram aqui e ali, mas geralmente as coisas até vêm pagas. E depois, o que é isto do alojamento local, não é? As pessoas a serem empurradas para fora das casas para as casas serem transformadas em alojamento local. Também não é bom.

    Escreveu até sobre os jacarandás, que são um marco de Lisboa, ao qual ninguém que viva na cidade fica indiferente…

    Quando vejo os jacarandás, fico muito contente, porque continuam a florir todos no mesmo dia. É assim, porque vieram todos do mesmo sítio, foram plantados na mesma altura, deram a mesma flor, e isso acontece, está tudo a florir ao mesmo tempo. São um sinal de vida, da Natureza, da sintonia.

    Este livro acaba por ser um convite para se viajar por Lisboa. Aliás, é uma autêntica viagem pela cidade…

    [risos] Olha, que bom! É uma viagem por Lisboa, não deixando de ser uma viagem pela memória de Lisboa.

    O que sente por Lisboa?

    Sinto muito orgulho. Aliás, basta ver a cidade que ainda é. Tem resistido ao que lhe tem acontecido, justamente com estas “investidas” de gente que não sabe o que é Lisboa, como o alojamento local, o ter desaparecido as lojas para aparecerem os comedouros…

    people walking on street near building during daytime

    Como é que se poderia resolver essa situação?

    Era voltar atrás, o que seria complicado. Seria outro “terramoto”, quem sabe. As evoluções são mesmo assim… há sítios que resistem melhor, e há sítios que resistem pior. Depende.

    Junta às memórias de Lisboa as suas próprias memórias. Era impossível dizer o que aqui está dito se não as tivesse vivido, certo? Sentiu-se obrigada a deixar um registo daquilo que sentiu, viveu e aprendeu?

    Foi um bocado isso, o gosto de escrever às vezes dá isso. Foi para deixar escrito, mas talvez até mais para mim mesma; é uma recordação, está apontado aquilo que eu vivi, aquilo que eu senti e aquilo que eu gosto. Até podia ter escrito mais coisas que não estão no livro e que eu assisti, e que podia ter dito.

    Usa alguma ironia quando se refere aos membros do clero, como por exemplo ao Cardeal Cerejeira – o amigo de Salazar [risos]. Qual é a sua relação com a religião?

    Nunca tive relação nenhuma [risos]. Fui sempre livre de escolher o que queria, e achei que a religião era algo que não fazia sentido. Em pequena, lembro-me de uma tia minha me tentar ensinar uma oração, e eu achava que aquilo não queria dizer nada. Nunca me obrigaram a ir à Igreja, e aí tive sorte porque os franceses não obrigavam ninguém a fazê-lo. Mas, pela lei portuguesa, era preciso que se ensinasse religião. Em França, não se dá aulas à quinta-feira à tarde, e é uma coisa que vem do tempo da Revolução Francesa, era uma maneira de terem um dia livre durante a semana, e não só o domingo. Mas cá, o dia livre era a quarta-feira porque era o tempo da Mocidade Portuguesa. Havia um grande anfiteatro no liceu francês, e à quarta-feira à tarde eles levavam lá um padre que vinha da igreja de São Luís dos Franceses, e ele enchia o quadro de uma conversa qualquer em latim. A porta ficava aberta, quem queria entrar assistia, e quem não queria, não ia; ninguém tinha nada a ver com isso. Fui lá uma vez ou duas para os ver a escrever em latim, e depois fui-me embora porque achei aquilo uma chatice de todo o tamanho. De resto, entrei nas igrejas que quis ver por razões de arquitectura e de arte. Eu e o meu marido não nos casámos pela Igreja, não baptizámos os filhos. Não sou anticlerical sequer: quem quer, quer; quem não quer, não quer, pronto. Não acredito na religião [risos].

    O seu texto nasce de uma tensão entre a sua experiência particular e a História em geral. Qual é o sentido desse movimento? Ou seja, interessou-se primeiro pelos lugares, passando depois à investigação, ou leu primeiro sobre alguns lugares e monumentos, cruzando-se depois com estes?

    Quando me encontro num lugar ou diante de um monumento, tenho logo curiosidade de saber como é que foram as coisas. Porque me interesso pela Arquitectura, porque me interesso pela Ciência, porque eu não sou uma literata, não sou da Faculdade de Letras. Sou da Faculdade de Ciências [risos]. E isso é uma coisa que me dá uma grande bagagem e uma forma diferente de olhar para as coisas.

    Neste caso, porquê a opção pela crónica?

    Foi a forma que encontrei para contar a História com verdade. Não foi inventar a verdade, como faço quando escrevo romances.

    Em vez de lhe perguntar sobre qual é o público-alvo, gostava de saber qual é o perfil das pessoas que poderão sentir-se atraídas por esta obra…

    Não escrevi o livro para atrair ninguém, nunca penso nisso. Eu sei que sou um bocado bicuda a escrever. Aquilo que fica contado é com um português certo e rigoroso, mas sou um bocado “bicuda”. Pelo que tenho percebido desde que o livro foi publicado, o que me chegou foi que qualquer pessoa que lê, percebe o que ali está e fica a gostar. De Lisboa, não do que está escrito [risos].

    Os seus valores assentam nos três pilares: liberdade, igualdade, fraternidade?

    Sim, sim, sobretudo a liberdade. É importante saber usá-la. Quando se é livre, é-se responsável pela liberdade que se tem.

    Romance de estreia de Filomena Marona Beja em 1998, quando contava já 54 anos. Na última década intensificou a sua vida literária com mais de uma dezena de títulos.

    Destaca aqui, mais uma vez, a palavra liberdade. Acha que vivemos tempos em que podemos gritar vitória, que somos livres, ou vivemos um fracasso da liberdade?

    Sinto alguns sinais de fracasso, mas, mesmo na Europa, somos dos povos que melhor percebe o que é a liberdade. Porque quisemos, porque fomos submetidos durante muito tempo, tanto pelo Marquês de Pombal como pelos que vieram a seguir, e que deu mau resultado… E finalmente houve qualquer coisa que deu algum resultado, e foi bom, foi o que de melhor aconteceu.

    Sebastião de Carvalho e Melo é um dos responsáveis pela cidade ser como é. Vê-o como tirano e opressor ou como um herói libertador?

    É capaz de ter sido as duas coisas. Nesta altura ele era Sebastião José, ministro da guerra, não era ainda Conde de Oeiras, muito menos Marquês de Pombal ou primeiro-ministro. E teve que deitar a mão ao que aconteceu, e deitou bem, ou, no mínimo, o melhor que pôde. Ele tinha sido embaixador em Viena de Áustria e tinha trazido de lá muitas ideias. Por cá, já tinha as coisas mais ou menos preparadas. O plano de recuperação de Lisboa surge num instante, em poucos meses, e foi de certeza porque já estava preparado e pensado, por ele e pelos militares que trabalharam para ele e conseguiram reconstruir Lisboa. Ele, com a visão do que tinha visto lá fora, saiu o que saiu e saiu muito bem. Era um bocado ditador, pois era, mas já se sabe que há coisas que só à força é que se fazem [risos]. Como é que teria sido se não fosse à força? Tinha sido o que cada um quisesse, e não podia ser.

    Numa viagem livre, as páginas do seu livro tanto nos levam aos históricos cafés de Lisboa como às paragens do metropolitano. E de repente, estamos no meio de uma lição que nos ensina os significados do girassol, da gaivota, ou da caravela simbolicamente escolhidas.

    Foi a Maria Keil [risos]. Era uma senhora amorosa, pequenina, pintava… lembro-me muito bem dela, as últimas imagens que tenho dela foi na Expo 98. Ela era sempre muito bem recebida, davam-lhe o lugar nas filas, mas ela nunca queria passar à frente de ninguém. Com uma mochilinha às costas, viu tudo.

    Para esta obra, investigou, por exemplo, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional?

    De propósito para isto, não. Fiz muitas investigações, por várias razões profissionais e não só, e “apanhei” muita coisa, tomei nota, e sei muita coisa por isso. Tinha muito boa memória. Agora já não tenho a memória que tinha, e como estou com esta “bicharada”, fugiu-se-me muito. Mas muitas coisas ficaram, e voltam, e uma delas é como é que era Lisboa, onde ficavam os sítios. Sabia tudo isso, e era algo que me dizia muito. Por exemplo, as pessoas agora vão ao Hospital de São José entregar papéis e a sigla que lhes aparece é “O.S.”, e não sabem o que significa. É omnium sanctorum: era o nome do “Hospital de Todos os Santos”. Pronto, sei, aprendi.

    A expressão “Lisboa é Portugal, o resto é paisagem” é justa?

    Não, não, isso é conversa. O resto não é paisagem de maneira nenhuma. Há cidades que se impõem, como Coimbra, Beja, Évora. São cidades muito interessantes. Os Açores…

    Mas como é que passamos a paixão pelo conhecimento às novas gerações?

    Ou as pessoas vêem e são capazes de perceber o interesse que as coisas têm, ou então não há nada a fazer. Antes disto acontecer, eu fiz termas num sítio mesmo à beira do Rio Douro, no concelho de Resende, chamado Caldas de Aregos. Quando ali chegou o cônsul de Portugal vindo de Paris, porque ia tomar conta de uma casa que a mulher tinha herdado, não chamou à zona de Aregos, chamou-lhe Tormes. Tudo isto é Portugal.

    Vou ler o que escreveu no seu livro, na página 69: “Rua António José Serrano, sobe-se, rua do Arco, rua Martim Vaz, anda-se por ali. Ouve-se a sirene de uma ambulância, de outra, outras”. Como é que estabeleceu o equilíbrio entre a história de Lisboa e a sua história pessoal? Por exemplo, os acontecimentos no Hospital de São José e a relação com o terramoto…

    Pelas várias razões por que lá fui, e por que hoje ainda vou, seja por causa dos meus que trabalham lá, ou pela minha médica. E lembro-me de o Hospital de São José ter muito má fama e das pessoas serem muito mal atendidas, antes do 25 de Abril, claro, e depois, das coisas terem corrido bem e ter havido uma evolução extraordinária, e de ser um sítio de excelência para as urgências. Portanto conheço, sei o que era aquilo antes de ser o hospital, sei o que foi estarem lá os franceses. E, como eu disse, fui documentalista de arquitectura, e olho muito para os prédios e para os edifícios, é uma coisa que me diz muito. E é com muita pena que vejo que os portugueses sabem quem é que escreveu Os Lusíadas [Luís de Camões], mas ninguém sabe dizer quem foi o arquitecto da Torre de Belém [Francisco de Arruda]. Não é preciso saber ler para olhar para um edifício e para o admirar, e tudo é isso, é História. Gosto.

    Assim sendo, e como excelente conhecedora de Lisboa, onde é que se pode tomar um bom café e a que horas?

    [risos] A qualquer hora, e há bons sítios para se tomar café. Antes havia a Pastelaria Suíça, que deixou de existir, mas o Café Nicola por exemplo, tem bom café.

    white and black bus on road near building during daytime

    No livro apresenta-nos um leque de ofertas, desde o Vá-Vá, em Alvalade, ou a Brasileira, que ainda existem, mas será que aos poucos também não se vão descaracterizando?

    Sim, claro. A Brasileira agora é o que se vê; e, no entanto, as coisas lá dentro ainda correm razoavelmente. Mas depois também há, às vezes, uma certa renovação. Muitas vezes parei na Brasileira e gostava de lá ir. Há um bom café, por exemplo, na Pastelaria Sacolinha [na Rua dos Douradores, na Baixa], um sítio onde se vendiam bordados da Ilha do Faial. Logo ao lado esquerdo há uma barbearia muito conhecida e antiga, e ao lado havia uma casa de bordados, que agora se tornou um café onde se bebe um óptimo café.

    Ficou por dizer neste livro algo que gostaria de acrescentar?

    Não sei, há tanta coisa que faltaria dizer. Muita coisa, muita. Sobre outros bairros, outros sítios. Toda a beira-Tejo, o que se vê no Castelo, no caminhar na Mouraria, o fazer a Avenida Infante D. Henrique. Saindo do Terreiro do Paço e passando por Santa Apolónia, e por aí fora. Tudo em Lisboa é muito apetecível de se dizer que queria estar lá. A Feira do Livro, por exemplo, não cheguei a descrever o que é. Eu lembro-me da Feira do Livro ser doze barraquinhas à roda do Rossio, e hoje já vai onde vai.

    Cresceu na zona do Poço do Bispo e ali, mesmo ao lado, temos o Parque das Nações, que sofreu uma evolução brutal. Mas ainda temos ali Xabregas…

    São os cais, é o facto de haver cais. De chegarem navios, do acostar, é o movimento ainda do rio.

    Sim, mas, pelo que me apercebo pela leitura deste seu livro, não acha propriamente uma paisagem bonita aqueles contentores.

    Desde 2015, Filomena Marona Beja publicou seis obras de ficção na Parsifal, entre romances, contos e crónicas.

    Não era, não era uma coisa bonita. Como é que foi possível juntar-se aquilo tudo ali ao molho? Foram tirados e ainda bem. Depois foi arranjado, arquitectonicamente foi bem arranjado, aquela solução que o arquitecto Manuel Salgado arranjou de pôr os bancos às riscas, aquilo sim, ficou bem. Aquelas tágides [risos]!

    E sobre as ciclovias? Para si descaracterizam a cidade ou são simplesmente uma mais-valia?

    As ciclovias? Porque não?! E agora está tudo muito chateado, porque dizem que vão cortar o trânsito aos fins de semana na Avenida da Liberdade. Que cortem, e depois? Subir e descer aquilo a pé, não é bom? Pois, experimentem e vão ver se não gostam [risos]. As ciclovias são de certa maneira um resguardo. São úteis, desde que sejam cumpridas regras. Há espaço para tudo desde que haja bom-senso, respeito e inteligência prática.

    É complicado passear por toda a cidade de bicicleta.

    Pois é. Mas eu não acho que as ciclovias sejam más, porque no fundo é um bocado pôr o automóvel na ordem, é um bocado isso [risos].

    No fim de cada capítulo deste seu livro, regista, na maior parte das vezes, Lisboa e Sintra como sendo o local onde os escreveu, e revela-se que, normalmente, demorou em cada um cerca de dois meses.

    Às vezes, escrevo coisas e guardo. E, depois, daí por uns tempos, dou com os papéis e retomo a ideia, e dou-lhe a forma final. Antes de me aposentar, eu ia todos os dias a Lisboa, e depois de me aposentar passei a ir apenas várias vezes por semana. Por isso, claro que todos os capítulos têm um “pé” em Lisboa. E depois a escrita é aqui, em Sintra.

    Tem já uma vasta obra, cerca de uma dezena e meia de romances e livros de contos e crónicas. Já tem outro em mente, presumo…

    Sim. Em princípio, há já uma coisa preparada para o ano que vem, com novelas. Uma novela é diferente de um conto, e aprendi as diferenças com o Camilo Castelo Branco. Chamá-lo-ei As novelas ao vento, são umas tantas. Gosto muito de escrever contos, mas os editores gostam pouco de os publicar. Quando quero dar um presente a alguém, escrevo um conto e ofereço-o, no final do ano. Ponho o Natal de parte, sou muito crítica em relação ao Natal. Sei que Cristo existiu, e sei o que ele passou para defender aquilo em que acreditava. Não o vejo como um “homem-deus”, mas como uma figura histórica. Acho impensável que se festeje o seu nascimento apenas com consumismo. Portanto, para mim não há Natal, mas há outra coisa que se lhe sobrepõe: tudo o que nós temos de festas ligadas ao catolicismo aproximam-se das festas pagãs antigas, e neste caso é o Solstício de Inverno. E eu festejo o Solstício de Inverno oferecendo contos a toda a gente, pronto [risos]. Mas retomando a pergunta, tenho sim, uma série de novelas preparadas.

    Ainda que goste muito de Lisboa, acaba por viver em Sintra.

    Eu e o meu marido casámos em 1967. Na altura ele veio para aqui dar aulas para a secção do Liceu Passos Manuel. As casas em Sintra eram muito mais em conta; em Lisboa eram muito mais caras. Acabámos por comprar uma moradia e aqui vivemos há sessenta anos.

    Imaginemos que depois de morrer, o paraíso, para si, era ficar sentada num cadeirão a observar Lisboa. Que recanto da cidade escolheria?

    O Castelo é um sítio bom, mas há outros. Um sítio onde eu até tenho estado, e gosto de saborear, é em frente à igreja de São Cristóvão. Vem-se de baixo, sobe-se as Escadinhas de São Cristóvão até meio, à entrada para a clínica dos Empregados do Comércio, e há aquele larguinho…  Ali, está-se muito bem.

  • Santo António de Lisboa: ‘Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas’

    Santo António de Lisboa: ‘Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas’

    Aos 63 anos, e com vasta experiência cinematográfica e televisiva, o italiano Nicola Vegro dá-nos uma visão diferente do santo que une Portugal e a Itália, Lisboa e Pádua: Santo António ou, para o mundo, Fernando de Bulhões. No romance António secreto: a força de um santo, e lançado agora em Portugal pela Paulinas Editora, conhecemos sobretudo o lado humano de alguém que não se coibiu até de lançar desbragadas críticas aos vícios da Igreja, como fez num seu escrito em Coimbra, em Junho de 1219: “Quantos são hoje os bispos que pregam a pobreza e, entretanto, são avarentos! Quantos são hoje os bispos que pregam a castidade e, entretanto, vivem na luxúria! Quantos são hoje os bispos que pregam o jejum e a abstinência e, entretanto, são glutões e gulosos. (…) Como anel de porco em focinho de porco, assim são os padres frouxos e bem ataviados; são como prostitutas que se entregam por dinheiro (…).” O PÁGINA UM esteve em conversa com Nicola Vegro durante a sua passagem por Lisboa.


    Tem-se a ideia de que sobre Santo António já praticamente tudo foi dito. Dois grandes escritores portugueses – Aquilino Ribeiro, com Humildade gloriosa, e Agustina Bessa-Luís, com Santo António – ficcionaram a sua vida. Porque decidiu escrever agora sobre ele?

    Existem muitos pontos em comum entre a situação social do tempo em que viveu Santo António e os dias de hoje. No seu tempo, a Igreja vivia um período de instabilidade, o Mundo estava no meio de guerras.

    Como hoje…

    Diria que se vivesse agora, António repetiria, por exemplo, a Embaixada de Paz que organizou quando Pádua estava em guerra, e iria ao encontro de Putin e Zelensky para lhes pedir que suspendessem o conflito de imediato. Escutava as duas partes. E fomentava o diálogo. António era uma figura de primeira linha, destemido, corajoso, contra corrente. Jamais seria passivo numa situação como esta que estamos a atravessar. Então, por isso mesmo, parece-me muito oportuno seguir as pisadas deste homem que a Igreja acabou por canonizar. Enfatizo no romance o homem culto, oportuno; o ser humano que atacava ferozmente a sociedade hipócrita e corrupta do seu tempo, mas que oferecia as soluções para a mudança. Apontava o caminho.

    Nicola Vegro, autor de António secreto: a força de um santo.

    No entanto, não é exatamente essa a imagem que o povo guarda dele… O casamenteiro e o milagreiro…

    Todos conhecem o nome de Santo António, conhecem a figura, mas não conhecem o seu pensamento nem a sua personalidade. Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas, e que invadem a nossa imaginação, com as suas atitudes patéticas com um ar melancólico, com aquele toque anémico e evanescente que emana de todo o seu ser, como se fossem eunucos… Ele enfrentou todo o tipo de batalhas, principalmente pedindo apoios sociais, combatendo contra a pobreza e as desigualdades. Mas, também tocava em feridas profundas da Igreja, tais como a corrupção, a luxúria, as incongruências…

    Era então uma espécie de activista?

    De certo modo, sim. António obrigou a que se mudassem algumas leis, assegurou a criação de uma efectiva segurança social, deu a cara pela libertação de reclusos – muitas vezes injustamente condenados. Neste romance, António surge como um crítico, um pensador, um homem proactivo que deve ser redescoberto nos dias de hoje. Por exemplo, o custo do pão ou o custo da gasolina… são situações lamentáveis que não passariam despercebidas ao santo. Estou certo de que ele estaria ao lado do povo, a reclamar por preços mais justos apontando o dedo aos tiranos que fingem nada poder fazer quanto à descida dos preços.

    Quis então desconstruir a imagem do santinho milagreiro…

    Este livro é uma proposta e uma oportunidade para conhecer o pensamento de António. A força dele está na sua obra em vida, nas suas ideias. O seu legado não está propriamente na aparência simpática de um homem vestido de franciscano que sorri como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, nunca esteve!

    O que mais destaca então na figura de Santo António?

    Destaco o seu exemplo, a rectidão e o comportamento. A sua grande humildade… Foi capaz, em simultâneo, de apontar erros e soluções. Vejamos: como orador podia limitar-se a falar bem – tinha todos os dons para isso – e apontar todos os erros da sociedade. Mas ele fez muito mais do que isso. E não se limitou a atacar os pecadores ou os hereges, apontou sim para dentro da sua própria Igreja, para os bispos, para os padres, para os frades…

    Onde e em que é que se baseou para escrever este romance?

    Li os seus sermões e as cartas. Aliás, os discursos e as ideias no meu romance são o reflexo desses sermões. Apesar de ser uma obra de ficção, o livro não se trata de uma pura invenção da minha cabeça; pelo contrário, fui o mais fiel possível à sua palavra, ao seu carácter, à sua personalidade. A melhor forma de entender Santo António é lendo os seus textos originais e, depois, fazer uma espécie de destilação, tal como se faz com os licores, para no final recolher o mais precioso. Considero esta obra uma destilação das palavras de Santo António.

    Nicola Vegro (ao centro), no passado sábado, durante o lançamento do seu romance, no Museu de Lisboa – Santo António.

    Veio a Portugal para o lançamento do livro. Sentiu que a capital portuguesa tem o espírito de Santo António de Lisboa, que é também Santo António de Pádua?

    Santo António encarna o espírito português. A minha visita a Portugal ajudou-me a entender a garra deste povo que foi capaz de se aventurar pelo mar, por exemplo. Pensei nisso esta manhã ao visitar Belém. Este espírito de aventura também estava no coração de Santo António. Aliás, é necessário olhar o horizonte e desejar ir mais além. É uma característica bem portuguesa!

    Ainda que este seja o seu primeiro romance, mas tem já larga experiência em cinema e televisão. Essa experiência teve influência no momento de o escrever?

    Este livro foi pensado como preparação para um filme. A minha esperança e o meu empenho é o de chegar à produção cinematográfica. Acredito que seja um mote para uma união entre vários países como Portugal, Itália, França, Espanha… e até Marrocos. Seria um investimento com retorno garantido. Divulga História, Cultura… é universal.