Autor: Vítor Ilharco

  • Um país de masoquistas 

    Um país de masoquistas 


    Somos um país de gente que adora sofrer. Que exibe o seu sofrimento como se de um acto de heroísmo se tratasse.

    Fazemos alarde das nossas dificuldades procurando, sempre, deixar evidente que os nossos problemas, todos causados por motivos a que somos alheios, são superiores aos de quem quer que nos escute.

    O português é masoquista e gosta de o ser.

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    Nas salas de espera dos hospitais, as conversas sobre as doenças de cada um levariam a ataques cardíacos qualquer estrangeiro que ali passasse.

    Nenhum português tem doenças normais.

    Todos passaram por intervenções cirúrgicas complicadas, todos sofrem de doenças consideradas incuráveis, todos enfrentam a morte a cada momento.

    E todos se queixam do péssimo atendimento, do desleixo de médicos, enfermeiros e auxiliares, dos preços dos medicamentos, das listas de espera.

    Porém, ninguém se dispõe a ir além dos lamentos para tentar alterar o que condena com veemência.

    Nos cafés, as conversas limitam-se ao aumento do custo de vida, do desemprego, da impossibilidade de pagar todas as contas necessárias à vida de uma família normal.

    A revolta termina quando, cabisbaixos, regressam a casa.

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    Se confrontados com a possibilidade de lutarem pela mudança as respostas são, sempre, as mesmas:

    “São todos iguais, isto não tem solução!”

    – “Temos de ter fé. Melhores dias virão!”

    A aceitação deste “fado” é algo que nunca consegui compreender e que me repugna enquanto cidadão.

    Entramos num supermercado e tomamos consciência de que os preços aumentam, diariamente, de forma escandalosa.

    Todos os problemas a nível mundial servem para “justificar” esses roubos.

    A pandemia da covid-19 fez parar o mundo. Os preços subiram 15 a 20 por cento.

    A Rússia invadiu a Ucrânia, o que causou problemas com a falta de energia. Os preços aumentaram 20 a 25 %.

    O povo deixa de poder comer carne e peixe todos os dias, reduz o número de viagens, deixa de poder comprar todos os medicamentos e não goza férias.

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    Inexplicavelmente, as grandes superfícies aumentam os seus lucros em centenas de milhões de euros, tal como as companhias petrolíferas e, claro, o Estado no que concerne a impostos.

    O Povo, sereno, vangloria-se das suas desgraças.

    As autoridades ajudam colocando-se ao lado dos mais fortes, na tentativa da recolha de migalhas que caiam da mesa dos ricos.

    O polícia prende (e bem) o José, ou a Maria, que rouba uma lata de atum de um supermercado, mas perdoa, com um sorriso nos lábios (“veja lá se para a outra vez tem mais cuidado!”), o rico que conduz acima da velocidade permitida, na estrada.

    O Juiz condena (e bem), com uma ordem de despejo, a família que não paga a renda, mas amnistia o “empresário” que deixou de pagar uns milhões de imposto.

    Os ricos, todos sabem, nunca passarão pelas cadeias.

    Os magistrados regem-se por Códigos escritos de um modo que seja inexistente essa possibilidade.

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    Um banqueiro, que é responsável por um roubo de um valor superior à soma de todos os levados a cabo em Portugal, desde que existem prisões, nunca entrará numa delas, enquanto recluso.

    Provavelmente nem sequer chegará a ser julgado.

    É mais do que certo que os processos se irão arrastar até prescreverem.

    Não, muitas das vezes, por culpa dos juízes que, masoquistas também eles, se esforçam para cumprirem o seu dever contra tudo e contra todos.

    Só que, por um lado há dezenas de bandidos a roubarem latas de atum e leite nos supermercados, e, como há que acabar com esse flagelo, gastam-se centenas de horas com esses casos.

    Depois, a falta de dinheiro para a compra de papel para os mandados de busca tem impedido essas diligências como reconheceu, recentemente, o Presidente da Associação Sindical dos Juízes.

    Queixou-se, até, que em Lisboa, na nossa capital, os magistrados têm de levar, de casa, o seu papel higiénico, porque a verba dos tribunais não permite esse gasto.

    Eu, no lugar deles, resolvia dois casos ao mesmo tempo, limpando-me aos processos parados.

    Às tantas já houve outros com despachos semelhantes e ninguém se atreveu a contestar.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Prender inimputáveis 

    Prender inimputáveis 


    Em primeiro lugar, há que tentar compreender quem, à face da Lei, deve ser considerado inimputável.

    Para haver um crime, a acção que lhe corresponde tem de ser culposa.

    Isto é, deve haver um juízo de censura que se dirige ao autor do crime.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Logo, atendendo aos seus conhecimentos e às circunstâncias concretas do crime, este pode ser censurável ou não.

    Ora, o inimputável é aquele que é incapaz de culpa. Ele pratica condutas que não são admitidas pelo Direito – são ilícitas – mas sem culpa.

    O regime da inimputabilidade está previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal.

    No artigo 19.º estabelece-se a inimputabilidade em razão da idade: “os menores de 16 anos são inimputáveis” e inclui, para estes, um regime em risco (assistencial) e um outro com medidas tutelares educativas, sem caráter sancionatório, mas antes corretivo.

    O artigo 20.º, por sua vez, consagra a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.

    shade photo of woman

    Essa anomalia tem de impedir o agente de distinguir aquilo que é permitido do que não é permitido (o lícito do ilícito). Ou, conseguindo distinguir, ser-lhe impossível controlar-se e agir de acordo com o que é permitido.

    Em termos de consequências da classificação como imputável ou como inimputável, há que ver a diferença entre penas e medidas de segurança. No Direito Penal, não pode haver uma pena sem que haja culpa; ora, ao inimputável, por ser incapaz de culpa, não pode ser atribuída uma pena.

    Portanto, o ordenamento jurídico-penal, deve limitar-se a aplicar-lhe medidas de segurança.

    Estas não têm como objetivo a punição do autor do delito mas, atendendo à sua especial perigosidade, a proteção da sociedade.

    Assim, o inimputável não pratica crimes, mas tão só ilícitos e devem ser-lhe aplicadas medidas de segurança, e não penas, dado que essas são dirigidas a quem é passível de atuar com culpa (imputável).

    No entanto, qual é a realidade em Portugal?

    O número de camas, nos hospitais psiquiátricos, tem vindo a diminuir, mas o número de doentes mentais não.

    Pelo contrário.

    Portugal tem uma das mais elevadas prevalências de doenças mentais da Europa.

    A par desta constatação surge uma outra que demonstra que há um défice de cuidados acentuado e que perto de 65% das pessoas com perturbações mentais moderadas e 33,6% com perturbações graves não recebem cuidados de saúde mental adequados.

    Resultado provocado por estas duas situações: quem acompanha e trata destes doentes são as suas famílias, ou profissionais em infraestruturas que não estão vocacionadas para o seu tratamento.

    Quando os doentes mentais se tornam perigosos, com agressões a familiares ou amigos, ao ponto de estes terem de ser observados em hospitais, há a obrigação da intervenção das autoridades.

    Os problemas agravam-se, então, sobremaneira.

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    Os relatórios das agressões têm de ser enviados aos Tribunais o que leva, em muitas ocasiões, a que os Juízes decretem o internamente compulsivo desses doentes em hospitais psiquiátricos.

    Dada a falta de vagas nestes, contudo, a opção tem sido, muitas vezes, o “internamento” em prisões.

    Daí que, nas nossas cadeias, haja presos que nunca foram condenados por qualquer delito.

    Os números da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, de 2021, indicavam 183 inimputáveis, com medidas de segurança aplicadas, internados em clínicas psiquiátricas prisionais e 195 em clínicas e hospitais psiquiátricos não prisionais.

    Estar preso por ser doente é algo que ultrapassa tudo o que é admissível e nos deveria envergonhar, a todos, enquanto cidadãos.

    À “APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso” foram relatados vários casos de familiares revoltados com o modo como os seus são tratados pelo Estado.

    Um pai foi agredido pelo filho que lhe fez um golpe, no pescoço, com um “x-ato”.

    Identificado no hospital viu o seu caso levado a Tribunal.

    O Juiz decretou que o jovem fosse internado no “Pavilhão Forense” do Hospital Júlio de Matos. Não havendo vagas foi conduzido ao Estabelecimento Prisional de Lisboa onde ficou mais de três anos.

    O pai diz-se arrependido de ter denunciado o filho.

    E não se pense que estes casos são raros.

    São dezenas de cidadãos nestas circunstâncias em diversas cadeias portuguesas.

    O Estado, incapacitado de os tratar condignamente em hospitais apropriados, opta por escondê-los atrás dos muros das cadeias com gravíssimo prejuízo para eles (que são, diariamente, alvo de todo o tipo de abusos) e dos restantes reclusos, guardas prisionais e funcionários, que podem ser alvo de ataques violentos de quem não se consegue controlar.

    Problemas que, repito, deveriam envergonhar todos aqueles que aceitam estas situações degradantes como se tal não fosse a demonstração mais evidente de vivermos num Estado falhado que despreza aqueles pelos quais devíamos zelar com mais cuidado e de modo prioritário.

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    E já nem quero perguntar se não estaremos perante uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade.

    Temos, agora, como Director-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, um investigador e psicólogo forense, o Prof. Doutor Rui Abrunhosa Gonçalves, com vários trabalhos publicados sobre este tema e conhecido crítico da situação que relatamos.

    Tenhamos, então, esperança numa mais que premente alteração ao actual sistema.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As promoções em Portugal 

    As promoções em Portugal 


    Chegar ao topo das carreiras é o objectivo da maioria dos portugueses.

    Pretensão que seria legítima, e de elogiar, se acreditássemos que tal exigiria empenho, talento e muito trabalho.

    Só que, também neste campo, o nosso país é diferente.

    Em Portugal as promoções raramente se fazem por mérito e, no que toca a funcionários do Estado, nunca esse critério é o essencial sendo substituído pela “antiguidade”.

    person standing near the stairs

    As promoções são, na imensa maioria das vezes, automáticas e baseadas nesse único preceito.

    Um funcionário com 10 anos de carreira, por mais calão, incompetente e acéfalo que seja, atingirá primeiro um lugar de chefia do que um outro com oito anos “de casa” e que seja responsável, qualificado e inteligente.

    Vejamos, por exemplo, as nossas Forças Armadas.

    Uma tropa fandanga com 27.741 efectivos.

    Destes, 49% (13.593) são “Praças” sendo que os restantes 51% (14.148) são Sargentos ou Oficiais.

    Os últimos dados, conhecidos, do Ministério da Defesa revelam que estão em efetividade de funções 106 generais, assim distribuídos: cinco almirantes/ generais (quatro estrelas), 20 vice-almirantes/ tenente-generais (três estrelas), 47 contra-almirantes/ major-generais (duas estrelas) e 34 comodoros/ brigadeiro-generais (uma estrela).

    crowd walking at sunset

    Mais, que aos 106 generais em efetividade de funções, acrescem 114 na reserva, dos quais 40 estão na efetividade de serviço. Ou seja, exercem funções.

    Outros países, obviamente menos preocupados com a defesa dos seus territórios, contentam-se com números inferiores. Muito inferiores, alguns deles.

    Vejamos: a Espanha tem 28 generais, a França tem 55, o Brasil tem 100 e a Alemanha, 189.

    O que me deixou boquiaberto foi o número de generais nos Estados Unidos da América: 31!

    Como é que umas Forças Armadas, com 1.390.000 militares, pode ser eficiente com, somente, 31 generais?

    A média é de um general para cada 44.838 militares.

    O mais certo é que nenhum desses generais se venha a cruzar, ao longo da sua carreira, com a maioria dos militares que comanda!

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    Já as Forças Militares Portuguesas, com os seus 27.741 efectivos, funcionam como uma família.

    Um general comanda 261 militares. Deve saber o nome de todos.

    Se seguíssemos o péssimo exemplo dos Estados Unidos nem um general poderíamos ter.

    Os nossos 27.000 militares seriam comandados, na melhor das hipóteses, por um major.

    Tentei perceber a lógica da opção dos Estados Unidos.

    A primeira ideia foi a falta de verba para pagar a generais.

    Sei que são caros porque os portugueses custam, ao Estado, mais de 14 milhões de euros anualmente.

    Fui ver o Orçamento que os americanos têm para as suas Forças Armadas: 706 mil milhões de dólares para o ano de 2022.

    Sinceramente, nem sei o que isso significa.

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    Mas acredito que não seja por falta de dinheiro que não aumentam o número de generais.

    Ser militar nos Estados Unidos deve ser deprimente!

    Mas não se pense que é só nesta área que tal acontece.

    Se estivermos atentos veremos que, por exemplo, qualquer quartel de bombeiros tem mais comandantes, segundos comandantes, chefes e sub-chefes do que bombeiros.

    Nas empresas não é diferente.

    A TAP tem 11 administradores – e não 79 como espalharam pelas redes sociais – e 94 aviões.

    A média não está má, pensaríamos, até sabermos que a Lufthansa tem 6 administradores e 763 aviões.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    Como toda a gente sabe, os germânicos, com a mania de quererem ser superiores, são capazes de trabalhar oito horas por dia sem uma distração, ou uma pausa para o café, e nem sequer compreendem o que é passar pelas brasas depois de um “almoço de negócios” com um uísque velho, para brindar, no final. 

    Continuam a trabalhar como se estivessem no século XIX.

    Mesmo as nossas micro e pequenas empresas, como diz o “partido das classes trabalhadoras”, são exemplares no modo como tratam os seus funcionários.

    Uma empresa “unipessoal” tem a dirigi-la um “sócio-gerente”.

    Se tiver um funcionário, ele será o “director de vendas”.

    Se tiver dois, o segundo será o “director de compras”.

    Um terceiro ocupará o cargo de “director de recursos humanos”.

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    Não poder ter um título para poder exibir no cartão de visita é, em Portugal, só por si, motivo para não aceitar um qualquer cargo.

    Eu mesmo estou a pensar, seriamente. em exigir, dada a qualidade das minhas crónicas, o cargo de Director-Adjunto do Página Um (dado o respeito que tenho pelo actual Director não pretendo o seu lugar… ainda).

    Se estão à espera que passem dez anos para chegar a sub-chefe de redacção, estão muito enganados…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A saúde nas prisões 

    A saúde nas prisões 


    Quando se criticam os maus cuidados de saúde nas cadeias portuguesas, a resposta mais usual é a de que, de um modo geral, não é grande a diferença entre os cuidados prestados aos utentes reclusos e aos cidadãos em liberdade.

    Ainda que tal fosse verdadeiro – mas não é – o problema é que, estando o cidadão em reclusão ao cuidado do Estado, e sem possibilidade de recorrer a cuidados diferentes daqueles que o Sistema Prisional lhe confere, este terá de lhe garantir um tratamento eficaz e digno.

    O que, habitualmente, não acontece.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    O facto dos reclusos não poderem beneficiar, na íntegra, do Serviço Nacional da Saúde, o que, há que reconhecer, é de difícil aceitação, ajuda a perceber a origem de muitos problemas.

    Um enfermeiro especialista, que já prestou serviço em vários Estabelecimentos Prisionais, considerou que o recurso a “outsourcing para necessidades permanentes” é um “flagelo”.

    Deu como exemplo uma proposta de trabalho, que recebeu por parte de uma empresa de trabalho temporário, a “CV Healthcare Solutions”, denunciando que “as empresas pagam menos de 5 euros à hora aos enfermeiros”, o que “desmotiva e desqualifica o serviço”, contribuindo para a “situação dramática existente nos estabelecimentos prisionais ao nível dos cuidados de saúde”.

    Nada de estranhar se tivermos em conta a falta de cuidado na análise às propostas das empresas concorrentes à “exploração” das enfermarias das quarenta e nove cadeias portuguesas.

    black and gray stethoscope

    Como prova o facto de a que ganhou o concurso, não há muitos anos, ser propriedade de um recluso, no Estabelecimento Prisional de Coimbra, que a geria a partir da cadeia.    

    Em Julho de 2017, o então director-geral dos Serviços Prisionais, Dr. Celso Manata, dizia à Rádio Renascença que as prisões tinham “menos de metade dos enfermeiros de que precisavam”.

    E acrescentava: “A nível operatório temos unidades completamente fechadas. Os médicos que estão aqui, e os enfermeiros, têm sido heróis, porque praticamente têm feito omeletes sem ovos”.

    Nada disse, como é habitual, sobre o resultado que tais falhas tiveram no que concerne aos reclusos doentes.

    Talvez esperando que o cidadão normal pense que ficou tudo bem graças a heroicidade dos profissionais de saúde.

    child in blue hoodie sitting on floor

    Não querendo pôr em causa a qualidade técnica e o empenho pessoal dos mesmos (que, bem ao contrário, faço questão de realçar) a verdade é que não podemos esperar “ad aeternum” que essa entrega seja suficiente para resolver, por si, problemas de extrema gravidade.

    Até para defesa dos próprios médicos e enfermeiros que aceitam correr riscos por falta de alternativa. 

    Contrariamente ao que seria de supor os próprios responsáveis pelo Sistema Prisional são críticos desta solução.

    O Dr. Celso Manata confessou, publicamente, que “do ponto de vista económico, as empresas médicas, nas cadeias, são uma má resposta porque como o médico está sempre a rodar, não conhece a pessoa, pede os exames todos e prescreve toda a medicação que lhe é pedida”.

    Outra medida nunca devidamente explicada foi a decisão de substituição da Central de Compras de Medicamentos (que tinha sede no Hospital Prisional de Caxias) pela possibilidade de os diversos Estabelecimentos Prisionais comprarem muita da medicação destinada aos seus reclusos.

    photo of abandoned house

    Não só os medicamentos ficaram mais caros – por ser diferente adquiri-los através de uma central de compras ou por quarenta e nove Estabelecimentos, alguns deles com umas dezenas de reclusos – como a ruptura de stocks se tornou, em muitos deles, mais frequente. Para não dizer constante.

    À APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso chegam diversas queixas, de muitos reclusos, contra a falta de alguns medicamentos e, mais estranho, contra o facto de terem de ser os seus familiares a comprar alguma da medicação que necessitam.

    Incluindo a receitada pelos médicos dos Estabelecimentos Prisionais.

    Algo que pensávamos proibido mas que é, de qualquer modo, incompreensível e condenável a todos os títulos.

    Seria importante saber se os Ministérios da Justiça e da Saúde têm conhecimento desta situação e se concordam com a mesma.

    A entrega de medicamentos fora de prazo, ou sem data de validade visível, ou com rótulos e documentação em língua estrangeira, tudo ilegalidades de extrema gravidade, é comum em todos as prisões e foi profusamente documentada por um Delegado da “APAR”, farmacêutico, que dessas situações deu conta a todas às entidades sem resultado algum.

    A dispensa de medicamentos, feita por enfermeiros e guardas, sem luvas, retirando-os do “blister” e entregando-os na mão do preso, é a rotina diária que tem, como consequência, a alteração da composição qualitativa e quantitativa provocada pelo contacto directo com a luz, humidade, calor e conspurcação das mãos.

    Resultado de tudo isto – e de muito mais com que poderia encher dezenas de páginas – são os trágicos números de mortes nas cadeias portuguesas: 50 por 10.000 reclusos.

    O dobro da média europeia, segundo as “Estatísticas Penais Anuais do Conselho da Europa” que comparam a situação prisional nos 47 países membros e podem ser consultadas em relatórios anuais.

    Nos últimos cinco anos morreram, nas nossas cadeias, 303 reclusos.

    Inexplicavelmente, só seis dessas mortes foram investigadas pela Polícia Judiciária, embora a Lei obrigue a que sejam todas.

    Nada de grave.

    Falamos de presos que, todos sabemos, são cidadãos de segunda e não dão votos.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os presos são para esconder! 

    Os presos são para esconder! 


    As prisões portuguesas são um mundo vazio onde a vida fica suspensa, até que o recluso possa regressar à Liberdade.  

    Um tempo sem sentido, onde apenas se pensa em punir e se esquece, quase totalmente, a necessidade de dar meios e ferramentas a cada um dos condenados, que acabam por sair ainda mais marginalizados do que estavam antes de entrarem na Prisão.  

    Fomentar a inércia, por todos os meios possíveis, é a prática diária. 

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Distribuem-se ansiolíticos à saciedade, de modo a ter os reclusos adormecidos e nada reivindicativos, facilitam a preguiça, permitindo playstations, consolas de jogos, leitores de CDs e rádios, para os conseguir ter nas celas, já que dar-lhes trabalho, permitir que estudem ou façam exercício físico, obriga a que funcionários e guardas também trabalhem… 

    A palavra reabilitação, que devia ser (e é, no espírito da Lei) o foco principal de todo o Sistema Prisional, é colocada em último lugar das preocupações de muitos responsáveis (?) e praticamente desprezada pela imensa maioria da classe política nacional.  

    Dizer-se que o objectivo que se pretende alcançar durante o cumprimento de penas, é “reintegrar” os cidadãos em reclusão é quase uma blasfémia. 

    white metal gate

    Os números mostram que entram e saem, por ano, cerca de 5.000 cidadãos necessitados de inserção social, e não de “reinserção”, dado que, na sua grande maioria, nunca estiveram realmente inseridos, pois viveram quase toda a vida à margem de uma sociedade que os ignora, fora das regras sociais estabelecidas, fora do mercado de trabalho ou sem capacidades (escolaridade, formação profissional ou mesmo formação cívica) para poderem sobreviver em Liberdade sem praticar crimes.  

    Não há ninguém que não conheça essa realidade, por muito que se faça (e faz) para a esconder.  

    A exclusão social é a prova mais evidente de décadas de má governação no nosso país.  

    E, pior, não se consegue vislumbrar uma qualquer medida que leve à inversão destas políticas vergonhosas.  

    Obviamente que o crime tem de ser combatido e o crime grave não pode merecer qualquer contemplação. 

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas o tempo de punição só ganhará algum sentido se for aproveitado na tentativa de construção de um novo projecto de vida, que não obrigue à prática de crime para sobreviver.  

    A verdade é que não existem condições de apoio a este tipo de cidadãos, mais vulneráveis e a necessitar de um apoio solidário e efectivo.  

    E para além de nada acontecer, durante a prisão, o encarceramento leva a que aconteçam tragédias inaceitáveis numa sociedade que se diz Democrática e Livre.  

    Um Mundo onde a exclusão física e psicológica – que leva a que a maioria dos reclusos se sinta rejeitado e fora da Comunidade – será uma bola de neve que só terminará quando TODOS nos sentirmos co-responsáveis pelos outros e, em especial, pelos que têm maiores dificuldades em sobreviver sem apoio da comunidade e do Estado, enquanto primeiro responsável por esta coesão social.  

    O Poder Político tem afirmado, quando quer usar o assunto para se promover e ganhar votos, que conhece a realidade.  

    Mas a verdade é que os presos, e as prisões, são temas que todos – a começar no Presidente da República, Governo, Deputados, Comunicação Social e até os Cidadãos comuns – evitam tratar.  

    Quanto menos forem falados melhor, porque ninguém gosta de tocar numa ferida que está a sangrar há muito tempo.  

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    Podemos todos falar dos maus-tratos que alguns infligem a animais – e de imediato se juntam centenas de pessoas para se manifestarem – mas quando os assuntos são sobre presos, e as condições inadmissíveis em que vivem, ninguém lhes quer tocar!  

    E, no entanto, há muitas medidas extremamente simples, que poderiam melhorar, substancialmente, o nosso Sistema Prisional.  

    Um exemplo: Num país onde o crime de condução sem carta leva mais cidadãos à cadeia (7,8%) do que o crime de homicídio, nas suas diversas formas (7,6%), fica claro que não existe intenção, ou motivação, para ir ao fundo das questões e corrigir o que deve ser corrigido.  

    Obrigar esses faltosos (a direita chama-lhes “bandidos”), ajudá-los até, se tal fosse necessário, a tirar a carta de condução, em vez de os meter na prisão, de onde sairão de igual modo indocumentados, seria um bom exemplo e retiraria das prisões milhares de cidadãos.  

    Ter políticas efectivas de Reabilitação, Reinserção e de construção solidária de vidas destruturadas que, de uma forma ou doutra, levam ao aumento de práticas violadoras das leis da República, seria outro caminho para o sucesso.  

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    Por isso a nossa insistência num combate sem tréguas à exclusão social.  

    É fácil dizer que a prisão é a Faculdade do crime.  

    Esquecem, contudo, que ninguém começa a estudar pela Universidade. 

    Quais são, então, as escolas pré-primárias, as primárias e os liceus do crime?  

    Estão à vista de todos: os bairros de lata, o desemprego, a fome, o absentismo escolar e a falta de oportunidades.  

    Analisar o Sistema Prisional sem ter em conta estas realidades é como tentar estudar trigonometria sem saber a tabuada.  

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A pandemia nas prisões

    A pandemia nas prisões


    Quem nunca esteve na prisão não sabe como é o Estado, Leon Tolstói

    A covid-19 fez, em Março de 2020, soar os alarmes no Ministério da Justiça.

    Ninguém sabia nada sobre a doença e a única preocupação era evitar que ela se propagasse.

    As cadeias tiveram, desde logo, o tratamento habitual quando se desconhece aquilo que se combate: o máximo de restrições.

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    A ignorância leva a seguir “a voz do povo” e, todos sabem, “vale mais prevenir do que remediar”.

    Aproveitando o Estado de Emergência, entretanto decretado, foi determinado que as visitas dos familiares fossem reduzidas ao máximo. De duas visitas semanais, de uma hora cada, passaram a uma única visita, por semana, e de meia hora.

    Deixaram de poder entrar três visitantes por recluso para passar a um único.

    Colocaram barreiras de acrílico entre reclusos e visitantes.

    Mas não distribuíram máscaras, nenhuma cadeia tinha uma gota de gel, não havia desinfectantes para as celas ou sanitários. Nem as famílias os podiam entregar sendo obrigatória a compra dos mesmos nas cantinas das cadeias (onde os preços são os de lojas gourmet).

    Veio a campanha de vacinação “que foi um êxito” com mais de 90% dos reclusos vacinados.

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    Entretanto as crianças, presas com as mães, em Tires, não recebiam qualquer vacina. Sequer as do Plano Nacional de Vacinação.

    Talvez porque não estava na moda…

    O estado de emergência não foi renovado depois de 30 de Abril de 2021, pelo que, a partir de 1 de Maio desse mesmo ano, passou a vigorar a situação de calamidade, com muito menos restrições, que praticamente terminaram, por decisão do Governo, três meses depois, a partir de 1 de Agosto.

    Mas, é sabido, as cadeias são um mundo à parte.

    Rara é a Lei que ali é cumprida.

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    Nem mesmo a Lei de Execução de Penas, que devia reger a vida dos reclusos, é respeitada.

    Todos os dias, em todas e cada uma das prisões de Portugal, os reclusos são vítimas do atropelo às Leis por parte de quem a devia cumprir escrupulosamente. Até para, pelo exemplo, ajudar na reabilitação.

    Dificilmente se poderá encontrar uma maior perversidade do que esta do Ministério da Justiça não cumprir a Lei em relação a cidadãos privados da liberdade por também a não terem cumprido.

    Mas é o que acontece. Para vergonha de todos.

    Num momento em que a vida voltou ao normal – com estádios de futebol, espaços destinados a concertos, transportes públicos, repletos de gente sem máscara –, o que se passa no interior das cadeias?

    Em nenhuma prisão portuguesa se cumpre a lei das visitas, continuando as restrições quer no que respeita ao seu número (deviam ser duas semanais, com pelo menos uma delas ao fim de semana devido aos familiares que trabalham ou estudam); tempo de duração, que devia ser uma hora e não meia hora ou quarenta e cinco minutos, com permissão de entrada de três visitantes por recluso, e não um ou dois, com as crianças de um ano de idade a contarem como adultos.

    Para mais, cúmulo da ilegalidade, as visitas íntimas estão proibidas se os visitantes, ou os reclusos, não estiverem vacinados, mesmo que apresentando testes negativos.

    Isto sabendo-se que as vacinas não são obrigatórias.     

    Todas estas medidas podem ajudar na gestão das prisões.

    Quanto mais restrições, menos trabalho para guardas e funcionários.

    Se isso justifica o incumprimento da Lei é questão diferente. Mas com que poucos se preocupam.

    Únicas conclusões possíveis:

    A Tutela considera um êxito o facto de não ter morrido um único recluso, por covid-19, o que é, sem dúvida, um sucesso a registar.

    Ninguém comenta o facto do número de mortes, por diversas outras causas, e o de suicídios nas cadeias portuguesas – muito pelo agravamento das já péssimas condições de vida e pela quebra dos laços familiares – tenham aumentado, neste período, para o dobro do habitual.

    brown and white short coated dog in cage

    O modo como a covid-19 é encarada nas cadeias portugueses permite não só perceber o total desprezo do Poder Político em relação aos reclusos, e seus familiares, como também provar que as prisões são, no nosso país, feudos geridos à vontade dos directores e chefes de guarda sem qualquer supervisão do Ministério da Justiça ou, sequer, da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.

    E razão têm os que dizem que os muros das cadeias servem, principalmente, não para evitar que haja fugas, mas para que não se veja o que se passa lá dentro.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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