Autor: Vítor Ilharco

  • Fechar tribunais!

    Fechar tribunais!


    A Tomada de Posse dos novos elementos do Conselho Superior da Magistratura teve um momento inesperado.

    O novo Vice-Presidente, Conselheiro Luís Azevedo Mendes, garantiu que iria interditar todos os Tribunais que não reunissem as condições para funcionar.

    Pensei, de imediato, em mudar de profissão.

    Luís Azevedo Mendes, vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Montaria uma empresa de taipais, contrataria uns milhares de funcionários e, dentro de poucos meses, estaria rico.

    É só imaginar o número de janelas e portas de tribunais que haveria a tapar ao longo do País!

    Não sei, mesmo, se algum continuaria aberto, se levadas a sério as intenções do novo Vice-Presidente.

    Com a continuação do discurso percebi que o senhor Conselheiro se referia, somente, à falta de condições físicas, equipamentos e meios de trabalho dos tribunais, deixando de lado o que se refere à competência de magistrados, funcionários e outros profissionais que os enchem diariamente.

    Reduzindo desse modo, substancialmente, o número de potenciais encerramentos.

    Ainda assim, talvez se justificasse o investimento necessário à abertura da tal empresa.

    Até porque esta exigência, do Senhor Conselheiro, poderia fazer escola e levar a que responsáveis de outras áreas, igualmente carenciadas, lhe seguissem o exemplo.

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    Imaginemos o encarregado da Saúde a percorrer hospitais e postos médicos do país. Quantos consideraria ele que reuniriam as condições necessárias, em espaços físicos e equipamentos, para continuarem abertos?

    E o da Educação, que ideia faria das falhas nas escolas e liceus deste país?

    O responsável da Segurança Social, fará ele a mais pequena ideia do que se passa nos lares de idosos, explorados (e nunca uma palavra foi tão bem aplicada) por gente a quem só o lucro interessa?

    Saberá ele das condições, à margem da Lei, em que vivem os nossos “mais velhos”, muitos deles depois de dezenas de anos de trabalho intenso?

    Se em todas as áreas fossem seguidas as pretensões que o Senhor Conselheiro tem em relação a alguns tribunais, as cidades portuguesas passariam a ter dezenas de edifícios encerrados, a sete chaves, por falta de condições.

    Não querendo sair da área da Justiça, poderíamos pedir, ao Senhor Conselheiro, que fizesse idênticos reparos e exigências, às falhas físicas e equipamentos noutras casas ligadas ao sector, embora não frequentadas pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Desde logo, as esquadras policiais e postos da GNR.

    Saberá como trabalham estes homens?

    Como são os espaços físicos que ocupam, os equipamentos e viaturas que utilizam.

    Algum vez, mesmo na campanha eleitoral (que, parece, foi o momento em que detectou os problemas nos tribunais), entrou nos espaços destinados a agentes e militares que ali têm que pernoitar.

    E as prisões?

    Visitou alguma?

    Sabe como vivem os cidadãos em reclusão?

    Acreditará que, na prisão da capital (o Estabelecimento Prisional de Lisboa), situado numa zona nobre da cidade, ao cimo do Parque Eduardo VII e ao lado de um dos Tribunais mais concorridos do País, há reclusos que vivem em celas sem vidros, com os fios eléctricos descarnados, com a água a escorrer pelas paredes, com um buraco ao fundo da cama, no lugar onde antes havia uma sanita, e que o recluso tem que tapar, de noite, com uma garrafa de água, para as ratazanas não entrarem, por ali, no seu espaço?

    Mesmo os que pensam que os reclusos devem ser tratados como cidadãos de segunda não deixarão de reconhecer que as prisões em Portugal estão ao nível da época medieval.

    Compreendo que o Senhor Conselheiro queira tribunais mais eficazes mas, para tal, deveria ter ido mais longe e exigir aquilo que realmente seria importante. Que, para além da melhoria de equipamentos e instalações se exigisse uma selecção mais rigorosa para magistrados e funcionários judiciais.

    Para que tal pudesse acontecer, como é lógico, haveria que melhorar, em primeiro lugar, o nível de quem nos dirige.

    A começar pelo Governo, claro.

    Tarefa difícil atendendo às alternativas.

    Ainda se pudéssemos fazer como os responsáveis das equipas de futebol, quando sentem a necessidade de as melhorar, e ir buscar alguns Ministros e Secretários de Estado, já não digo a países como a Inglaterra ou à Alemanha, mas mesmo à Serra Leoa ou ao Burkina Faso…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A política do ódio

    A política do ódio


    Não há nada que melhor prove a nossa falta de cultura política do que o tempo gasto em debates, notícias, críticas e análises com a intenção de se tentar perceber, e derrubar, a política de ódio levada a cabo pelos partidos de extrema-direita.

    Falso problema e anormal dispêndio de energias.

    Estes partidos surgem com a ideia única de arregimentar, para o seu seio, os derrotados da vida, seja por menor capacidade intelectual, por falta de estudos ou, simplesmente, por quererem viver à margem da sociedade.

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    Todos conhecemos gente assim.

    Cidadãos que abandonaram a escola por preguiça, ou por terem compreendido que não conseguiriam os resultados mínimos para terminar um curso, que recusam trabalhar, porque se consideram demasiado competentes para salários tão baixos, que não aceitam sugestões e, menos ainda, conselhos, porque se consideram especialistas em todas as matérias.

    Gente que, apesar de tudo, não tem qualquer escrúpulo em criticar quem estuda e faz.

    Mais, que não tem qualquer pejo em arrasar, sempre em tom depreciativo, qualquer estudo, qualquer lei, qualquer obra.

    Essa cáfila de camelos é um maná para a extrema-direita.

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    Miguel Unamuno ensinava que “o que os fascistas odeiam, acima de tudo, é a inteligência”.

    Ao escutarmos as intervenções dos deputados desses partidos, na Assembleia da República, percebemos que não hesitam em se rebaixarem ao nível dos medíocres que enxameiam o país, fazendo apelo aos seus mais baixos instintos, com o único intuito de conseguirem o seu voto.

    Falam de justiça (com j pequeno) e sabemos que são defensores da justiça popular, com julgamentos na rua, com condenações por “ouvir dizer”, sem a mínima preocupação com os regras de um qualquer Estado de Direito.

    O líder parlamentar de um desses partidos garantiu, em Plenário da Assembleia da República, que os presos “deviam apodrecer nas cadeias”.

    O presidente do mesmo partido, não se preocupou em garantir, num debate eleitoral, que a alguns [que roubassem] não faria mal se lhes cortassem as mãos.

    E disse isso uns meses depois de garantir: “Sinto que Deus me concedeu esta missão”.

    Não faço ideia de como se sentirão quando vêem o Papa, na altura da Quaresma, de joelhos, a lavar os pés a doze reclusos.

    Não a doze padres, não a doze deputados, mas a doze presos!

    O historiador, e conhecido palestrante brasileiro, Leandro Kamal diz que discurso de ódio em nome de Deus é a suprema elaboração do mal”.

    E é, sem dúvida!

    Mas… resulta. Pelo menos na fase de reunir seguidores.

    André Ventura, presidente do Partido Chega

    Custa ver, num país que lutou contra uma ditadura de 48 anos, uma franja importante de cidadãos a apoiar este tipo de populismo.

    Dói perceber que um discurso, que tem como base o ódio, no seu grau mais elevado e primário, consegue arregimentar centenas de milhares de pessoas.

    Entre elas, vizinhos, colegas de trabalho, ex-companheiros de escola.

    Como entender que se siga quem tem como ideologia a destruição do Estado de Direito, como discurso político o palavreado de qualquer bêbedo numa taberna mal frequentada, como pensamento político as certezas de um taxista analfabeto?

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    O que leva tanta gente a elogiar alguém que, em todas, rigorosamente todas, as intervenções, ao longo dos anos, se limita a gritar impropérios, destilar ódio, apontar erros e falhas, sempre num tom de pretensa superioridade intelectual e moral?

    Eles querem ser, mais do que o top da raça ariana, candidatos a canonização.

    Sentem-se puros, isentos de erro e pecado, gente superior e exemplar.

    O que lhes permite criticar, sem limites, com ar professoral e ditatorial, quem ousar contestar qualquer uma das suas afirmações.

    Ao fim e ao cabo, gastam mal a sua inteligência (porque alguns a têm) na crítica a erros enormes, gravíssimos, dos adversários políticos que eles vêem como inimigos.

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    A maioria do povo não aceita isso de bom grado.

    E perde-se uma boa oportunidade de mudar para melhor.

    A política do ódio já foi experimentada em inúmeros países, sempre com mau resultado para quem a segue.

    William Shakespeare ensinou o porquê desse desfecho comum numa simples frase: “A raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram”.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O que a TAP nos revelou

    O que a TAP nos revelou


    Estive mais de oito horas sentado, frente ao televisor, para ouvir os depoimentos das ex-administradoras da TAP na Comissão de Inquérito da Assembleia da República.

    Como a maioria dos portugueses, fiquei atónito com o desplante, a descontração, o sentido de impunidade, com que estas responderam às questões dos deputados.

    Christine Ourmières-Widener.

    Pela ex-CEO, Christine Jeanne Ourmières-Widener, uma francesa que ainda não compreendeu Portugal, ficámos a saber que o ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, lhe pedira para adiar um voo, proveniente de Moçambique, que tinha como passageiro o Presidente da República, já que este, alegadamente, precisava de ficar mais dois dias em Maputo.

    Em troca de mensagens, a ex-CEO da TAP terá dito que não achava correcta essa medida e isso a incomodava.

    Ao que o ex-Secretário de Estado respondeu:

    “Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti, mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo.”

    A alteração não foi feita e Christine Jeanne Ourmières-Widener, mostrou-se satisfeita na Comissão de Inquérito:

    airplane on sky during golden hour

    “Não fiquei surpreendida deste pedido não ter origem na Presidência da República, mas talvez de alguém no processo que achou que era uma boa ideia. Este voo não foi alterado e o Presidente encontrou outra solução. Não fiquei surpreendida, o Presidente nunca nos pediria para alterarmos um voo. Neste caso teria impacto em mais de 200 passageiros.”

    A maior desilusão, no fim de tudo isto, vem de percebermos a facilidade com que qualquer asno pode chegar a Secretário de Estado.

    Basta mostrar toda a subserviência com os fortes, bajulando-os a toda a hora, para subir alguns patamares até conseguir chegar a um ponto em que será ele um dos bajulados.

    Neste caso não resultou porque a vaidade em querer mostrar o seu poder foi ainda maior do que a sua imensa burrice ao dar aquelas instruções por escrito.

    Vai ter que regressar à Juventude Socialista e ali estagiar mais uns anos, colando cartazes nos períodos eleitorais e carregando as pastas dos chefes.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    Mas o maior escândalo divulgado nessas audiências veio da Deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, que deu conta de uma indemnização a um ex-CEO da TAP, um gestor brasileiro que todos criticam por negócios desastrosos e “estranhos” (digamos assim), com empresas do Brasil, e que terão prejudicado a transportadora portuguesa em milhares de milhões de euros.

    Segundo a Senhora deputada, esse gestor terá recebido uma indemnização de mais de um milhão de euros, já depois de ter saído da empresa, e que, para tal pagamento, fora utilizada a conta bancária de uma firma criada dias antes, com esse propósito.

    Todos os membros da Comissão ouviram.

    Presumo que muitos elementos da Procuradoria-Geral da República também tenham escutado.

    Não tornei a ouvir falar desse tema.

    Estará a ser investigado?

    person holding airplane control panel

    Como é que uma empresa, que recebe milhares de milhões de euros de todos os contribuintes, pode distribuir prendas, de milhões de euros, a administradores e quadros superiores, usando subterfúgios para tentar esconder ilegalidades, sem que nenhuma autoridade investigue, puna os ilegalmente beneficiados e recupere essas verbas?

    O que se espera?

    Quem beneficia com esta inércia?

    Não se poderá falar de desconhecimento porque a informação foi dada por uma Senhora Deputada, numa Comissão de Inquérito da Assembleia da República, com transmissão, em directo, em vários canais de televisão.

    Com toda a certeza, alguém da Procuradoria-Geral da República terá ouvido.

    Vão permitir que os responsáveis (???) por uma empresa subsidiada em milhares de milhões de euros, com o apoio dos impostos de todos os portugueses, continuem a distribuir fortunas entre si?

    Este escândalo da TAP só veio tornar mais claro o dia-a-dia de empresas geridas pelo Estado.

    Gerir o dinheiro dos outros é tão fácil…

    E tão lucrativo…

    E, em Portugal, isento de riscos!

    Air Canada airline

    Pelo menos que isto sirva de lição a candidatos a ladrões.

    Querem assaltar empresas lucrativas, sem qualquer risco e com êxito garantido?

    Nada mais fácil, basta conseguir um lugar nos conselhos de administração.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Omnisciência à portuguesa

    Omnisciência à portuguesa


    Portugal deve ser o único país do mundo com a Presidência entregue a um Ser omnisciente.

    Diariamente, cerca de dez milhões de portugueses escutam, ávidos de novidades e conhecimento, os discursos, as opiniões, os conselhos ou, simplesmente, os apartes do Chefe de Estado.

    São horas de lições dadas sobre todos os assuntos, a todas as horas, em todos os dias do ano.

    Não será uma Enciclopédia, com todos os temas bem arrumados e classificados, mas é, indiscutivelmente, um “google com pernas”.

    Marcelo fala de tudo, e de todos, com uma convicção superlativa.

    As frases saem, em catadupa, sobre ouvintes estarrecidos com tal sapiência.

    Gestos, calculados ao milímetro, acompanham as frases numa coreografia que faz aumentar a confiança no orador.

    Um rosto expressivo, onde ao olhar duro da reprimenda se segue um sorriso de desprezo dirigido aos que ousam pensar diferente, permite o aumento da credibilidade à enorme falange de portugueses formados na “universidade da vida”.

    Seus indefectíveis votantes.

    E são milhões, como o Facebook prova.

    Marcelo é um mestre-escola do início do Século XX.

    Impõe a sua autoridade, fala para ensinar e não para dialogar e é homem de certezas absolutas.

    Tudo com ar paternal.

    Os raros momentos em que não nos entra pela casa adentro, em conluio com os canais de televisão, permitem-nos analisar todas as suas palavras com mais serenidade.

    Discuti as conclusões a que cheguei, com alguns amigos, e para meu espanto vi que a maioria concordava comigo.

    Marcelo discute futebol e ficamos a perceber que talvez entenda de Justiça.

    Fala de defesa nacional e compreendemos que saberá de pesca.

    Opina acerca de finanças e todos concordam que pode ser expert em gestão hospitalar.

    Analisa a situação internacional e sentimos que é, quiçá, especialista em educação.

    Aborda a guerra na Ucrânia e ficamos com a certeza absoluta de que é um profundo conhecedor de melões.

    Comenta a qualidade dos vinhos, qual enólogo, e fica a convicção do seu saber sobre obras públicas.

    Marcelo debate música clássica, com qualquer maestro consagrado, nos quinze minutos de intervalo de um jogo de futebol.

    Faz crítica literária ao almoço, entre o prato de peixe e o de carne. Sempre com adjectivos ultra qualificativos.

    Concede uma entrevista-monólogo nos vinte minutos que tem livres entre a recepção a um atleta português, terceiro classificado numa prova de badminton no Burkina Faso, e um jantar comemorativo dos vinte anos de existência da Sociedade Filarmónica de Boliqueime. 

    Analisa um orçamento de estado enquanto sobe as escadas de um avião que o levará para uma das dezenas de viagens que faz, anualmente, ao estrangeiro.

    E, nesses países, o frenesim continua.

    Reuniões com políticos e compatriotas, discursos em dezenas de cerimónias, inaugurações, distribuição de medalhas e bailaricos.

    Nos discursos em línguas estrangeiras consegue esquecer a lição que todos os políticos deviam aprender antes de se aventurarem a falar noutra língua que não a portuguesa:

    Poliglota é um indivíduo que sabe falar várias línguas, poliglota inteligente é o que sabe estar calado em vários idiomas.

    Marcelo fala, consciente da sua omnisciência, um pouco de tudo.

    Conclusões:

    Marcelo não é, ainda, um político confiável.

    Talvez nunca venha a ser.

    Marcelo não é, ainda, Caetano.

    Com a sorte que tem, talvez nunca chegue a ser.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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  • Investir na Ignorância

    Investir na Ignorância


    Contava-me um professor, há muitos anos, que no primeiro Conselho de Ministros do Japão, depois de terminar a última Guerra Mundial, a preparação do Orçamento de Estado foi extremamente complicada dado o estado em que tinha ficado o país.

    Todos os Ministros pediam aumento substancial das verbas que seriam atribuídas aos seus Ministérios sabendo, embora, da falta de recursos.

    O Ministro da Saúde lembrava a quantidade de feridos de guerra e as vítimas das radiações, causadas pelas bombas atómicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, e que aumentavam, exponencialmente, o número de doentes internados.

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    O Ministro das Obras Públicas falava da necessidade de recuperar as cidades, estradas e pontes arrasadas pelas bombas.

    O Ministro da Solidariedade recordava as inúmeras famílias que tinham ficado sem casa, sem emprego, sem possibilidade de trabalho e que precisavam de apoio imediato.

    O Ministro da Indústria salientava a necessidade premente de ajuda para as fábricas que estavam paradas por falta de energia, de maquinaria e de pessoal.

    O Ministro da Defesa explicava o estado em que tinham ficado os três ramos das Forças Armadas, depois de uma guerra em que tinham sido derrotados.

    E todos exigiam, para os seus ministérios, quantias que, por vezes, ultrapassavam o valor total de que o país dispunha.

    Houve um grande alvoroço quando o Ministro da Educação apresentou a sua proposta.

    Pedia uma verba superior ao do último ano de paz no país.

    A revolta foi enorme e os Ministros começaram a analisar toda a proposta, ponto por ponto, concluindo que, para todos estes, eram pedidas verbas que consideravam exageradas e que ao orçamento da Educação devia ser atribuída uma verba muitíssimo inferior à apresentada pelo Ministro.

    two roads between trees

    Quando foi a vez deste falar, disse:

    –  Se consideram erradas as contas de quem quer investir na Educação, façam contas ao custo de investir na Ignorância.

    O silêncio que se seguiu acalmou os ânimos e a Pasta da Educação foi das que menos cortes sofreu.

    Algo semelhante aconteceu na Alemanha.

    Talvez seja essa uma das explicações para que, poucas décadas depois do fim da guerra, as duas maiores potências na Europa e na Ásia, fossem, de novo, a Alemanha e o Japão.

    Os dois países que tinham ficado arrasados.

    Pode parecer estranho que, em pleno século XXI, ainda seja necessário recordar, aos governantes, que a Educação, a par da Saúde e da Justiça, tem de ser a grande prioridade.

    Voltando a falar do Japão, há quem garanta que o apertado protocolo de Estado obriga a que todos os cidadãos se curvem perante o Imperador, com excepção dos professores.

    Muitos acham tal como uma excentricidade que provoca sorrisos ou, mesmo, gargalhadas.

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    Outros põem em causa esta narrativa, que até podia ter um fundo de verdade por uma razão simples:

    Os japoneses apostam na Educação.

    Já em Portugal, os professores estão na base da pirâmide social ganhando mal, sendo desrespeitados por alunos e pais e sem qualquer apoio do Estado, sequer na sua segurança.

    Os portugueses apostam na Ignorância.

    Aqui, o Ensino degrada-se de dia para dia.

    Péssimo comportamento dos alunos, falta de professores, desajustados programas escolares, facilitismo e desleixo são as marcas das nossas escolas.

    A preocupação dos últimos governos, no que à Educação diz respeito, é zero.

    Alunos que passam de ano sem terem nota positiva a uma única disciplina, são imensos.

    Depois acontecem vergonhas como na Ordem dos Advogados onde, nos últimos três anos, chumbaram 83% dos licenciados em Direito e que pretendiam ser advogados.

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    Não terão dificuldades em conseguir emprego porque entrarão nas juventudes partidárias e, em breve, serão Deputados, Secretários de Estado e Ministros.

    Antigamente os pais, que se apercebiam do facilitismo, e da falta de disciplina nas escolas, diziam esperançados:

    – A tropa vai endireitá-los!

    Mas, antigamente, as Forças Armadas eram levadas a sério…

    Para desagrado dos ignorantes, de ontem e de hoje, que tudo têm feito para, de igual modo, as destruir, hoje nem na tropa há disciplina.

    A Ignorância venceu.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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  • Já fomos um país de marinheiros

    Já fomos um país de marinheiros


    Nos meus tempos de escola primária, no século passado, aprendíamos que este País, “à beira-mar plantado”, era um “país de marinheiros”.

    A poesia, escrita e cantada, a literatura, a pintura, a escultura, glorificavam o mar que os portugueses tinham vencido em inúmeras provas de coragem.

    “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”, exclamava Pessoa.

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    Os portugueses faziam questão de mostrar, aos restantes povos do Mundo, que eram os únicos que conheciam o mar e, ainda que o temessem, o enfrentavam.

    Cedo aprendíamos que só os portugueses entendiam que o género do mar era o masculino.

    Em Portugal era, e é, O mar.

    Não fazemos como os franceses que só o visitam nas praias vigiadas e nunca avançando para zonas onde a água suba acima dos joelhos.

    Para os franceses é “La” mer. “A” mar.

    Meninas!

    Batíamos, em coragem, os próprios vikings, entrando em “cascas de nozes” para descobrir “novos mundos” através de “mares nunca dantes navegados”.

    E não havia monstros que nos fizessem desistir,

    Porque “ao leme” ia alguém maior.

    Alguém que queria o mar que tinha sido, até então, dessas criaturas medonhas.

    As nossas lições de História eram hinos à coragem e à superioridade dos portugueses.

    Escutava-as com atenção (infantil, talvez, mas orgulhosa) e fui crescendo com enorme respeito por todos quantos enfrentavam mares e oceanos.

    De pescadores a marinheiros. De desportistas a fuzileiros.

    E muito do meu patriotismo se deve a esses heróis.

    O que se ensinará, hoje, nas nossas escolas primárias a esse respeito?

    E no que acreditarão os nossos filhos e netos?

    grayscale photo of ocean waves

    Os que vivem no litoral pobre, muitos deles familiares de pescadores, continuarão a respeitar esses profissionais e a despedirem-se deles, todas as madrugadas, com um beijo, ou um abraço, que sentem poder ser o último.

    Depois há os “novos” portugueses, criados em escolas sem disciplina, sem respeito pelos melhores, sem cultura, sem exemplos.

    Os que se sonham heróis porque só pensam em medalhas e não sabem dos riscos de, por vezes, só nos restar “sangue, suor e lágrimas”.

    Os que vão para a Marinha pensando nas fardas brancas, que prendem os olhares em cerimónias, ou nos camuflados especiais, de fuzileiros, que dão um ar de valentia e masculinidade.

    Muitos conseguem ostentar dezenas de medalhas conquistadas em missões importantes mas nem sempre perigosas.

    São os heróis actuais incapazes de embarcar num navio com alguns problemas embora o seu comandante garanta que não há perigo.

    gray and black ship on sea under white clouds during daytime

    O que podem fazer estes marinheiros da Armada Portuguesa, a Marinha de Guerra, por outras palavras, se houver a necessidade de entrarem em combate?

    Não obedecem a ordens, porque temem uma avaria que os deixe parados no oceano?

    Não obedecem a ordens, seja lá porque motivo for?

    Em que país do Mundo um militar desobedece, discute ou, simplesmente, questiona uma ordem de um superior?

    E este episódio foi um caso isolado, de treze erros de casting na selecção da tripulação de um navio de guerra, ou é o exemplo do que pode acontecer em qualquer navio de guerra, em qualquer esquadrilha de aviação, em qualquer companhia no exército?

    A indisciplina habitual nas escolas, nas últimas décadas, com alunos a desobedecer, gritar e, mesmo, agredir professores, de modo impune, não terá formado adultos frustrados, sem noção das regras básicas e cobardes?

    a flag on a beach with a bridge in the background

    Já éramos conhecidos como o país com pior educação, saúde e condições de trabalho da Europa democrática.

    As nossas Forças Armadas, apesar de tudo, conseguiam disfarçar os seus problemas porque se enviavam, para as missões no estrangeiro, os seus melhores.

    O que se passou no NRP (Navio da República Portuguesa) Mondego faz-nos pensar no pior.

    Vejamos como reage o Comando.

    Pessoalmente, gostava de continuar a viver num país de marinheiros.

    Heróis do Mar!

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O apodrecimento da democracia

    O apodrecimento da democracia


    Quando analiso a situação política portuguesa, começo a idealizar cenários para o futuro e caio em profunda depressão.

    Os comentadores políticos insistem em que o actual Governo está ferido de morte, devido às inúmeras trapalhadas em que se meteu, e que, numas prováveis futuras eleições antecipadas, é possível a criação de uma nova “geringonça” mas, desta vez, de direita.

    A acontecer, garantem, o líder do PSD seria o novo Primeiro-Ministro com a necessidade de uma coligação que incluiria o partido Chega.

    Ora, sabemos as exigências dos responsáveis (?) deste partido.

    Aceitam participar na condição de lhes serem entregues várias “Pastas”, com a da Justiça à cabeça.

    Este simples facto deveria deixar qualquer português com insónias.

    Aceitar que a Justiça fique nas mãos de um ministro militante de um partido que defende a “castração química”, a “prisão perpétua” e a “pena de morte” é impensável num país europeu e que se quer democrático.

    É sabido que todos os populistas se julgam isentos de pecado, e candidatos a uma santificação ou, no mínimo, a uma canonização.

    Garantem ser pessoas que não falham. Que não podem cometer um delito.

    E o mesmo com os seus familiares e amigos.

    Explicar-lhes, por exemplo, que uma distração ao volante de um automóvel pode resultar num acidente grave, ou até num atropelamento mortal a ser considerado homicídio por negligência, é considerado insultuoso.

    person hands with black liquids

    Jamais lhes poderá acontecer porque são, sempre, respeitadores de todas as regras e nenhum imprevisto os pode levar a erros desses.

    E porque pensam estar no patamar superior da raça humana sentem-se no direito de condenar quem prevarica a viver o resto da sua vida numa cela, longe de tudo e de todos.

    Ou, mesmo, à morte.

    Para mais, tentam mostrar a sua “superioridade moral”, exibindo-se nas igrejas onde tentam cumprir todas as regras a que a religião obriga os crentes.

    Vão à missa, todos os domingos, recebem todos os sacramentos e citam, constantemente, o Papa.

    O mesmo Papa que, na Quaresma, lava os pés a doze presos.

    Não a doze deputados, não a doze ministros, não a doze padres, não a doze bispos.

    A presos.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    E faz isso numa demonstração na esperança da reabilitação, e não, obviamente, para branquear qualquer crime que aqueles doze tenham cometido.

    O líder do partido a que me refiro disse, num debate durante a campanha eleitoral, que “não se perdia nada” se cortassem as mãos aos ladrões.

    O líder parlamentar do mesmo partido, disse, em pleno hemiciclo da Assembleia da República, quando do debate sobre uma proposta de perdão de penas e amnistia para pequenos delitos, que, para ele, “os presos deviam apodrecer nas cadeias”.

    Todos eles, presume-se.

    Sabemos que 7,6% desses são homicidas e que 7,8% estão detidos por serem detectados a conduzir veículos sem terem a respectiva carta de condução.

    Como acontece em todo o Mundo, alguns haverá que estão presos sendo inocentes.

    Para estes “políticos” portugueses são todos bandidos.

    barbed wire

    No nosso país há quem desvalorize estas frases porque consideram que os seus autores são uns imbecis.

    Eu sei que são, mas temo que, ainda assim, cheguem ao Poder.

    De qualquer modo custa ouvir alguém vomitar frases, carregadas de ódio, do tipo das acima mencionadas, em plena Casa da Democracia.

    Como nem no tempo da Assembleia Nacional, sequer durante o mais negro período do fascismo, se ouviu algum daqueles pulhas a dizer algo igual, é caso para perguntar se o que está a apodrecer, no nosso País, não é a Democracia.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!

    ‘Máfia do sangue’: a toda a parte chegam os vampiros!


    Sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver.

    Acreditava eu que, sendo um “bem” imprescindível, estaria protegido pelo Estado, de modo a que ninguém pudesse beneficiar com as fragilidades de cidadãos.

    Negociar em sangue é próprio de vampiros, como bem cantava Zeca Afonso.

    Por isso fui, e muitos da minha família são, dadores de sangue.

    Não conheço maior prova de cidadania do que partilhar, anonimamente, sangue para ser utilizado por quem dele necessita sem nos preocuparmos em saber quem serão os beneficiados.

    Nem esperar contrapartidas.

    Dar sangue a alguém doente, sem sabermos quem, desconhecendo a cor da pele, a conta bancária, a ideologia política, a crença religiosa, a idade, o género, do receptor, é solidariedade pura.

    E são milhares os portugueses que o fazem.

    Por isso, repito a primeira frase da crónica, “sempre que as televisões, as rádios ou os jornais falam de sangue, fico com o meu a ferver”.

    Sei que a nossa imprensa só faz manchetes quando algo de mal acontece.

    Se falam de sangue, algo aconteceu de muito mau.

    black cross on red textile

    Há uns anos foi noticiado que milhares de colheitas de plasma, recolhidas de dadores, seguia para o lixo dada a incapacidade de armazenamento.

    Isso porque – acredite quem quiser – “as câmaras de frio, para conservar o plasma, estavam a ser usadas como armazém para guardar, por exemplo, papéis”.

    Em dois meses, informava o jornal Público, cerca de 40 mil unidades tinham sido inutilizadas, nos três centros regionais do sangue (Lisboa, Porto e Coimbra).

    Num dos mapas de produção, constava, na coluna dos “componentes inutilizados”, relativa ao plasma, a razão para o não aproveitamento: “incapacidade de armazenamento”.

    Cada bolsa tinha entre 180 a 250 mililitros de plasma.

    Curiosamente, o responsável do Instituto Português do Sangue não se mostrava preocupado.

    person injecting syringe

    Segundo ele, “estão já neste momento armazenadas em Lisboa 22.300 unidades de plasma”

    E acrescentou que “há, actualmente, uma reserva, à disposição dos hospitais, de mais 900 unidades que cumprem com a segurança da quarentena”.

    Questionado sobre a quantidade de plasma que ainda é desperdiçado, limitou-se a responder: “Para que todas as colheitas sejam aproveitadas, ministério e IPS estão a desenvolver os procedimentos necessários para a aquisição de viaturas equipadas, ou equipamentos para as já existentes, que permitam o transporte de plasma congelado entre regiões, com todas as garantias de qualidade e segurança”.

    Depois, para que os jornalistas se recordassem que estavam em Portugal, alertou, quando questionado sobre a data prevista para a aquisição de tais viaturas: “Está em curso a avaliação dos sistemas de refrigeração que sejam mais adequados, não estando ainda aberto o procedimento. Não temos ainda uma previsão da data para aquisição das mesmas.”

    Os números, na altura, indicavam que Portugal produzia, com as suas dádivas de sangue, 450 mil bolsas de plasma por ano, sendo que os hospitais apenas precisavam de 90 mil.

    Que não eram aproveitadas.

    Sabia-se que, se fossem exportadas, poderiam render seis milhões de euros.

    Mas… não eram porque, repete-se, as câmaras de frio onde poderiam ser armazenadas estavam a ser utilizadas para guardar papéis.

    Para não adoecer, e com medo de ir parar a um hospital dirigido por gente com esta inteligência, optei por deixar de ler qualquer notícia onde a palavra sangue aparecesse.

    Quebrei essa norma, hoje.

    Queria saber como é que é possível haver uma “máfia do sangue”.

    Como é que alguém se prontifica a pagar meio milhão de euros para não ser julgado por negociatas com sangue?

    A última notícia que eu tentei ler dizia que esse produto, que eu pensava ser, em grande parte, oferecido por dadores, e que se deitava para o lixo por falta de equipamentos para o guardar, já que o que havia estava destinado a outros fins, afinal era fonte de riqueza e, mais, era a base de processos crime por corrupção e branqueamento de capitais.

    man in black framed eyeglasses

    Crimes esses que, obviamente, prescreveram.

    Os implicados estão, agora, acusados de falsificação de documento e recebimento indevido de vantagem.

    Até que estes crimes também prescrevam.

    É gente de sangue frio e que sabe esperar.

    E, claro, rica!

    Ainda os verei a encher as tulhas, beber vinho novo e dançar a ronda no pinhal do rei.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anões em bicos de pés

    Anões em bicos de pés


    António Paulouro, uma referência no Jornalismo português, fundador do “Jornal do Fundão”, contava que, após a invasão de Goa, Damão e Dio pelas tropas indianas, Salazar reagiu dando instruções para que, em todas as cidades, a população se organizasse em “manifestações espontâneas”.

    As Juntas de Freguesia alugaram autocarros, compraram lanches e garrafões de vinho, pintaram cartazes e levaram o povinho como se fosse para uma excursão.

    A cidade da Covilhã não foi excepção.

    Milhares de pessoas, vindas de todo o concelho, encheram o Largo da Câmara Municipal para poderem ouvir os patrióticos discursos dos políticos do partido único.

    No meio dessa gente destacava-se um velho agricultor, com um cartaz enorme na ponta de um pau, que ele levantava vaidosamente para alegria do autarca da terra.

    O cartaz tinha escrito: “Casegas exige acção imediata”.

    Foi um “maná” para os muitos oposicionistas duma terra conhecida pela aversão à ditadura.

    Entre gargalhadas comentavam:

    – “Quando Neru souber desta exigência de Casegas (uma terrinha com poucas centenas de habitantes) recua imediatamente com pedidos de desculpas a Portugal”.

    Lembrei-me desta cena ao assistir ao debate, na Assembleia da República, no dia em que passava um ano sobre a invasão da Ucrânia.

    Os deputados que intervieram não se limitaram a condenar, a análises políticas, a críticas ou elogios.

    Pelo contrário, fizeram veementes exigências em tom ameaçador e determinante.

    Seria ridículo se não fosse triste pela percepção de que não têm a mais pequena noção do que valem as suas palavras.

    Os optimistas pensarão que contam pouco.

    Os realistas sabem que não contam para nada.

    O Presidente dos Estados Unidos visitou a Ucrânia e, depois, reuniu com personalidades de diversos países.

    Em primeiro lugar com o Grupo de Bucareste, que teve como anfitrião o presidente da Polónia, Andrzej Duda, e juntou, na mesma mesa, Joe Biden e os representantes dos restantes oito países que integram o grupo: Roménia, Bulgária, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia e Eslováquia.

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    Já tinha reunido, antes disso, na Alemanha, com o grupo das sete principais nações industrializadas, e em Madrid num encontro de países membros da NATO.

    Não consta que tenha mostrado interesse em saber a opinião de países europeus sem dimensão internacional.

    E isso é o que nós somos, por muito que custe a alguns.

    Há quem considere que o Governo Português poderia ter uma palavra sobre o conflito e algumas ideias para tentar pôr cobro a esta tragédia.

    Corre o risco, se o tentar, de ser comparado com o pobre agricultor de Casegas.

    O Governo Português pode colaborar na mediação para pôr cobro a esta guerra?

    Mas o Governo Português nem sequer consegue uma solução para terminar com a greve dos professores.

    Portugal pode ajudar a Ucrânia, no que respeita à saúde, no pós-guerra?

    Mas se nem sequer conseguem cumprir a promessa de haver um médico de família para todos os portugueses.

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    Portugal pode ajudar no plano militar?  

    E quem nos levará a sério quando souberem que as nossas Forças Armadas têm mais oficiais do que “praças” e mais generais do que os Estados Unidos?

    Podemos colaborar na reconstrução das infraestruturas destruídas pela guerra?

    E quem aceitará, quando se souber que as obras num Hospital Militar, em Portugal, custaram 3,2 milhões de euros quando o orçamento inicial era de 750 mil, tudo com o conhecimento, e luz verde, do actual ministro dos Negócios Estrangeiros?

    Nas reuniões, a sério, onde os políticos credíveis se juntarem para tentar analisar, com seriedade e competência, o fim do conflito, as condições para que se estabeleça um plano de paz efectiva e os planos de recuperação dos países destruídos por esta catástrofe, não interessa que apareçam, atrás daqueles, anões aos saltinhos e a gritarem, de modo esganiçado, “eu tenho a solução, eu tenho a solução!”, num português mais ou menos escorreito.

    O mais certo é serem olhados com desdém e postos fora da sala por um qualquer porteiro mal-encarado.

    Estes vaidosos não têm consciência do seu verdadeiro valor.

    E isso é o cúmulo da infelicidade.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Ministro Bizarro

    O Ministro Bizarro


    Em 1995 foi estabelecido o Programa para a Saúde nas Prisões (Health in Prisons Programme, HIPP) da Organização Mundial de Saúde (OMS), com o intuito de “promover cuidados de saúde e políticas de promoção da saúde, junto da população reclusa, com base nas recomendações internacionais, nomeadamente nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, conhecidas como Regras Nelson Mandela”.

    O Relatório deste Organismo, há dias tornado público, com base em números facultados pelos Estados e relativos a 2020, é arrasador no que respeita a Portugal.

    Ali se menciona que, no nosso país, apenas existem 33 médicos para um total de 49 estabelecimentos prisionais. Um rácio de 2,9 médicos para cada 1.000 reclusos, enquanto na população em geral esse rácio atinge os 5,3.

    Relativamente aos psiquiatras, os dados da OMS sinalizaram 19 especialistas nas prisões portuguesas, o que se traduz num rácio de 1,7 por cada 1.000 presos, bem superior aos 0,1 registados para a população em geral, número demonstrativo do tipo de cidadãos que estão detidos.

    Quanto ao número de dentistas, este não vai além dos 12 no sistema prisional, sendo o rácio de 1,1 igual entre a população em geral e a prisional, mas não indicam o número de horas de consultas e tratamentos por estes profissionais.

    O que o Relatório não diz, provavelmente por falta de dados, é que os mais de 12.000 reclusos, espalhados pelas 49 prisões, só podem contar com menos de trinta psicólogos.

    Esquece o número de doentes mentais e inimputáveis nas nossas cadeias (algo que nos deveria envergonhar já que, obviamente, o lugar destes cidadãos deveria ser o hospital) que é da ordem das muitas centenas. Garantem que ultrapassa os 10% da população em reclusão.

    Omite os números da tuberculose e doenças infectocontagiosas, que são muitíssimo superiores aos da população em liberdade.

    Também não refere a existência de males praticamente irradicados na sociedade, como a sarna e outros.

    Não refere que muitas das doenças têm base, ou são agravadas, pela falta de higiene nos espaços prisionais e pela péssima alimentação dada aos reclusos (o Estado não distribui produtos de limpeza ou desinfectantes e paga, às empresas fornecedoras, 0,80 € por cada refeição). 

    Muitos destes problemas devem-se ao facto das clínicas nas cadeias não dependerem do Serviço Nacional de Saúde e serem exploradas (e nunca o termo foi tão correcto) por empresas que concorrem a concursos que têm, como único intuito, saber qual faz o preço mais baixo.

    Só assim se compreende que, há não muitos anos, a empresa vencedora pertencesse a um recluso na cadeia de Coimbra que, a partir daí, a geria.

    Também não aborda a constante falta de medicação para muitas doenças graves. Ao contrário do que acontece com os ansiolíticos e a metadona.

    Isto porque, há alguns anos, foi alterada a regra da aquisição dos medicamentos, que deixou de ser feita pelo Hospital Prisional de Caxias, que funcionava como “central de compras” e os distribuía por todos os Estabelecimentos Prisionais, com óbvias vantagens nos preços dos mesmos, para passarem a ser adquiridos por cada uma das prisões.

    Apesar de tudo, ao tomarmos conhecimento do conteúdo do estudo, acreditámos na possibilidade dos nossos governantes se sentirem mal ao constatarem os números ali indicados e que nos colocam, também nesse campo, na cauda da Europa.

    Foi com expectativa que aguardámos a reacção do Ministro da Saúde.

    Questionado pelos jornalistas, este disse que “o Governo está a trabalhar para melhorar o sistema”.

    Mais:

    Que “o sistema de saúde nas prisões portuguesas funciona manifestamente bem. É verdade que não tem todos os médicos que deveria ter, mas tem uma dotação profissional muito adequada”.

    Revelou, ainda, que foi “esta quarta-feira assinado um despacho pelo Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça e o Ministério do Ensino Superior para que crie um grupo de trabalho para muito rapidamente produzir um relatório sobre medidas operacionais para melhorar a saúde nas prisões”.

    O habitual.

    Um Grupo de Trabalho que vai escrever um relatório com conclusões que todos conhecem há anos.

    Desnecessário, até para o Ministro que o encomenda, já que este considera que “o sistema de saúde nas prisões portuguesas funciona manifestamente bem”.

    Enfim, medidas tomadas, com a única intenção de empurrar os problemas com a barriga, por um Ministro bizarro. Tão Bizarro que até escreve, repetidamente, o seu apelido com uma gralha.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.