Autor: Tiago Franco

  • Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida

    Santa Maria, a minha (e a vossa) ilha desconhecida


    Olho todos os dias para estas paisagens e penso na sorte que tive. Não nasci aqui, não tinha familiares por perto e vim cá parar nas asas do destino, quando o meu pai aceitou uma vaga de trabalho no aeroporto local, ali a meio da década de 80.

    Falo de Santa Maria, uma das mais pequenas e desconhecidas ilhas dos Açores.

    Bem sei que a vida é uma estrada que se vai definindo a cada nova bifurcação (embrulha Gustavo Santos), mas há claramente escolhas mais felizes do que outras.

    Ter vindo aqui parar, ainda por cima por decisão alheia, foi uma daquelas coincidências do destino que acabou por marcar a minha vida até aos dias de hoje.

    Tornou-se viral um vídeo de um casal na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) deste ano a dizer que dos Açores só conheciam as vacas. Não sabiam quantas ilhas formavam o arquipélago e até o Funchal incluíram na deprimente descrição de localidades a não perder.

    Saltando, por agora, um conceito que o meu avô paterno usava muito quando eu não sabia fazer qualquer coisa numa obra conjunta – “afinal o que foste fazer para a escola?” –, este desconhecimento das ilhas açorianas sempre foi para mim um mistério.

    Portugal tem um dos destinos de Natureza mais bonitos e imaculados do Mundo. Para muitos de nós, os Açores são uma espécie de Triângulo das Bermudas. Passamos lá por cima a caminho da República Dominicana, e das suas águas temperadas, onde nos espera uma semana trancados em resorts, sem saber que ali, em território português e graças ao microclima, temos águas mornas, Verões pouco agressivos e Invernos que não aleijam.

    Quem por norma sabe qualquer coisa do arquipélago fala dos Açores referindo-se à sua maior ilha, São Miguel. Já não é mau.

    A série Rabo de Peixe, transmitida pela Netflix, veio, espero eu, despertar alguma curiosidade pela região. Nunca percebi como é que o turismo por estas paragens se manteve tão modesto ao longo das décadas. Não sei se é a falta de promoção, desconhecimento da população ou simples desinteresse, mas é um mistério, para mim, a razão de tanta beleza natural receber tão pouca atenção.

    Não é que turismo de massas interesse a alguém, mas sempre pensei que se estas ilhas fossem espanholas, italianas ou francesas estariam em todos os roteiros do Planeta. 

    Perdi a conta ao número de vezes que expliquei a portugueses e estrangeiros onde fica Santa Maria. Uma das mais pequenas e, ainda assim, mais completa ilha dos Açores.

    O sítio onde a qualidade de vida é garantida para médicos e engenheiros, padeiros e mecânicos, professores e lavradores. Não é que os salários sejam diferentes do resto do país, entenda-se.

    A vida é que é mais barata. Não há portagens, EMEL ou filas para a ponte. O combustível é mais barato e rende mais quando a maior estrada tem apenas 20 quilómetros.

    Os impostos são mais baixos para compensar a insularidade. A habitação, em muitos casos, passa de geração em geração. Há emprego que chega a quase todos. Leva-se a vida com tranquilidade, vendo uma cara conhecida a cada dois passos.

    Curiosamente, andando por estas estradas nos meses de Verão, identifico mais estrangeiros, daqueles com botas e mochilas, do que propriamente portugueses. Mais depressa um reformado de uma aldeia alemã descobre Santa Maria do que um habitante de Amarante.

    A apenas duas horas de Lisboa está um paraíso onde, no mesmo dia, se pode fazer um trilho pedestre na montanha, tomar banho numa praia deserta, ver jamantas no seu habitat natural e beber uma cerveja de fabrico artesanal local. Nunca percebi, que me perdoem os adeptos do Algarve, como é que passam uma vida a ir para Albufeira sem tentarem, com bilhetes de avião ao preço das portagens, descobrirem o que este arquipélago tem para oferecer.

    A parte que me fascina mesmo em Santa Maria é a excelência das baías. Falamos de uma ilha muito pequena que terá, provavelmente, algumas das melhores praias do país. Em quase toda a parte se avista o mar. Esse luxo, pelo qual lutamos em outras partes do território, aqui é apenas um dado adquirido.

    Até nessa parte dos acasos da vida, acho que tive sorte. Das nove ilhas ter-me calhado na rifa a pequena e peculiar Santa Maria, foi bom. Tudo o que aqui acontece é exactamente o oposto da minha jornada enquanto emigrante e, também por isso, o equilíbrio se tornou perfeito. Há calma, companheirismo, tempo para tudo, braços amigos, gente que faz adeus do outro lado do passeio. 

    Da janela vê-se a montanha e o mar. Em 20 minutos chegamos a quase todo o lado. Come-se bem e barato. O mar e a terra dão quase tudo. As caras com quem corremos no jardim da escola são as mesmas que sorriem, hoje, quando passamos por elas.

    Depois de 17 anos a ver olhos nórdicos que apontavam ao chão, estar em Santa Maria, na pequena e familiar Santa Maria, é um bálsamo para a alma.

    Voos diários ligam o continente português ao arquipélago dos Açores, com encaminhamentos grátis para todas as ilhas. Grátis, meus amigos. Grátis.

    Este Arquipélago e esta ilha, se me é permitido puxar um pouco a brasa, oferecem paisagens e experiências que normalmente só vemos nos documentários da BBC. A minha vida mudou há 39 anos quando aqui pisei pela primeira vez num Verão de boas memórias, a tempo de ver o Carlos Lopes vencer aquela medalha de ouro em Los Angeles. Nem sempre fiquei por cá, é verdade, mas nunca deixei de voltar e de ir, aos poucos, ligando o meu percurso de vida a esta pequena ilha.

    Experimentem. Em princípio vão gostar. E voltar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aguentem o ‘as long as it takes’…

    Aguentem o ‘as long as it takes’…


    Cheguei ao banco na hora marcada. Os horários não são grande coisa, mas, se perco a vaga, tenho de esperar mais um mês. Faz-se tudo online. Hoje em dias, falar com alguém para resolver um problema é um luxo. Parece conversa de velho – eu sei –, e é.

    A rapariga que me atende não terá mais de dois ou três anos de trabalho e aparenta uma indiferença preocupante. Espero que, pelo menos, perceba alguma coisa disto.

    Começa o discurso com a introdução histórica ao tema. Há uma guerra, os custos de produção aumentaram na Europa, a inflação disparou e, em virtude disso, o Banco Central Europeu (BCE) aumentou as taxas de juro, para controlar a coisa e reduzir o consumo na Zona Euro.

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    Espero uma pausa no discurso ensaiado para a informar que não estamos na zona económica do euro. A Suécia tem moeda própria. 

    Ela corrige, e diz que, apesar disso, o Banco Central da Suécia aproveita a boleia e também aumenta as taxas de juro para reduzir a inflação que ainda ronda os 6%. Até chegarmos aos 2%, temos que continuar neste caminho, diz ela. Aqui tive a primeira alucinação com a Christine Lagarde e o mantra dos 2%.

    Como gosto de aprender a magia que rege a Economia, e já que o objectivo era reduzir o consumo, perguntei-lhe se não seria altura de abrandar esse aumento das taxas de juro no momento em que percebem que a luta não é consumir mas manter as habitações?

    Ela disse que sim, teria lógica, mas que os bancos não podiam fazer nada. A decisão era do BCE e os bancos centrais de cada país, quais pedintes numa igreja, tinham a missão de ir recolher o dízimo em forma de prestação a cada cidadão europeu que, um dia, tinha tido a audácia de comprar uma casa.

    Receitada que estava a cantilena, começou a fazer contas, dizendo que tinha uma oferta muito boa a rondar os 5%. Cerca do triplo da taxa de crédito contratada há anos, num regime fixo, que tinha como objectivo proteger-me dos mercados de que nunca confiei. Voltou a dar umas marteladas furiosas na máquina até me dizer que a minha prestação passaria para o dobro. 

    Avisou-me, enquanto observava o meu silêncio, que eu tinha um mês para pensar. Voltou a falar da guerra e dos improváveis que ninguém controla.

    Já não consigo ouvir mais uma pessoa que seja a dizer-me que “temos de aguentar”. “Temos”? Quem? A Lagarde, em princípio, não deve ter problemas destes. A Von der Leyen também não. Certamente que Putin não paga casas a prestações. E Biden muito menos.

    Portanto, quem está englobado no “temos de aguentar?”. Eu respondo: os trabalhadores que ousaram contrair um crédito à habitação. Muito bem. Sigamos então a conversa.

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    Pergunto-lhe quando é que prevê que a coisa volte ao normal ou, vá lá, a algo suportável. Ela diz que espera-se que a Economia deixe de nos esfolar em 2025. 

    “Mas já não há guerra em 2025?” – introduzo eu na conversa. “Não sei, como é que posso saber uma coisa dessas trabalhando num banco?” – responde ela ligeiramente irritada. 

    Ora aí é que está o busílis. Se me diz, primeiro, que estamos neste barco sem rumo por causa da guerra e que prevê chegar a terra firme em 2025, mas não sabe quando acaba a guerra, quer dizer que está a mentir. Ou mente quando diz que a guerra nos colocou aqui, ou mente quando diz que tudo termina em 2025. Agora é escolher.

    O clima ficou um pouco mais tenso e ela sugeriu uma nova reunião em outro dia. Devo aqui introduzir um conceito muito sueco de, em cada reunião, criar temas paralelos que geram novas reuniões. Faz-se uma vida disto – já presenciei. E há quem fique mesmo esgotado mentalmente com a azáfama.

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    Disse-lhe que não precisava de tempo nenhum para pensar e muito menos de nova reunião. Não ia pagar uma exorbitância em juros para suportar uma guerra ou a ganância dos bancos.

    Fosse qual fosse a teoria certa, nenhuma delas merecia o meu apoio e muito menos horas e horas de trabalho para pagar uma prestação completamente desajustada do nível de vida e dos salários médios naquela região. 

    Todos os meses vejo esta realidade em redor. Casas e mais casas a serem vendidas porque, de repente, as prestações ficaram superiores aos valores dos salários.

    Em simultâneo ouço, em Bruxelas, o “as long as it takes” no apoio financeiro à guerra e, em Frankfurt, a cada nova conferência da Lagarde, a certeza de que continuarão a aumentar as taxas de referência até a inflação chegar aos 2% (hoje ronda os 6%) em todos os países da Zona Euro.

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    O problema do empobrecimento, como se percebe, alastra-se do sul ao norte da Europa. Cedo ou tarde, está a chegar a todos e a minar a qualidade de vida do Continente.

    É estranho, pensaria eu, que todas as populações aceitassem isto de ânimo leve. Nós, que começamos batalhas por penáltis mal marcados, aceitamos patrocinar uma das várias guerras do globo, onde três potências decidem quem vai mandar nas próximas décadas, sem barafustar. Sem partir qualquer coisa. Sem nos revoltarmos para lá da angústia individual e da raiva acumulada dentro de nós.

    Levantei-me sem plano B e disse-lhe que iria engrossar a lista de pessoas que, ali no bairro, tentava vender a casa para acalmar o “consumo desenfreado”.

    A rapariga não tem culpa alguma, note-se.  Cumpre apenas as directivas que lhe dão. É como ir a um balcão de reclamações da Ryanair e achar que a pobre desgraçada que nos atende é aquele insuportável do O’Leary.

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    Uma pessoa, por vezes, perde a paciência, mas como o leitor compreenderá, estamos todos a fazer a nossa parte. Os bancos a tentar aumentar os lucros e nós, os trabalhadores, a tentar não empobrecer mais. Foi apenas isso que ali aconteceu.

    Ela disse que me ia assaltar de forma legal e eu, que fiquei um pouco chateado, não parti nada porque – lá está – são estas as regras do capitalismo, e não há muito que um peão isolado possa fazer.

    Já perto da porta, e ainda sem um plano B para tapar aquele novo buraco, sorri e despedi-me com um: “agora é ver se recuperamos a Crimeia para a casa não ser perdida em vão”.

    Ela sorriu e disse: “espero que sim, temos de ganhar!”. Quando a porta já batia, ainda ouvi um: “em 2025, falamos para comprar outra!”

    Por mais montanhas que uma pessoa tenha de atravessar, ainda é o humor que nos safa. E a ironia –sobretudo a ironia. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Mediterrâneo que acolha os migrantes

    O Mediterrâneo que acolha os migrantes


    Passava por Lisboa, em trânsito, a caminho dos Açores. O habitual atraso no voo para as ilhas permitiu-me um salto à baixa pombalina para matar saudades.

    Não sou um saudosista da Lisboa antiga e abandonada e gosto, gosto mesmo, da mudança que a cidade sofreu neste século. Tropeçava em turistas que tentavam arranhar umas palavras em português para pedir uma bica ou aquele horrível galão depois do almoço. Pareciam felizes a desbravar a encosta do castelo num dia de sol e céu azul.

    Uma guia, de bandeira no ar, dizia a um grupo de asiáticos que tinham tido sorte com o tempo… e, por aí, se percebeu que não era destas paragens. Lisboa não tem sorte com o tempo, o tempo é que tem sorte com Lisboa. Céu azul é a prata da casa e o sol esbanja sorrisos em cada mês do ano. Há falta de salário, de consultas, de trânsito fluído. Nunca de sol, céu azul e sorrisos.

    a fountain in front of a row of buildings

    Na ginja do Rossio há um ajuntamento que me agrada. Novos e velhos, ricos e pobres, portugueses e estrangeiros. Todos bebericam com ou sem elas, sempre em animada cavaqueira. Eu observo, como faço sempre que regresso à colina onde nasci, deliciado com o movimento da cidade e na metrópole cosmopolita em que esta se tornou.

    Entre as conversas estridentes, uma chamou-me à atenção. Duas raparigas da minha idade (gosto sempre de achar que são raparigas para não me sentir muito velho) discutiam, com ajuda da terceira ginja, o último naufrágio do mediterrâneo ocorrido na semana passada, junto à costa sul da Grécia, com uma embarcação que se assume ter partido da Líbia, com destino a Itália.

    Este tipo de notícias já nos passa uma pouco ao lado e preenche os rodapés dos jornais, entre renovações de jogadores de futebol ou mais um esquema qualquer do PS.

    Ainda assim, entre as várias tragédias que aconteceram no Mediterrâneo, um autêntico cemitério de migrantes, este foi um dos piores de sempre na chamada “rota central de migração“, a mais longa e perigosa linha marítima de fuga para a Europa, vinda do norte de África. Quase 80 mortos, vários corpos por recuperar e estima-se que, num barco de pesca, sem capacidade para tal, viajariam 750 pessoas.

    calm sea under clear blue sky during sunset

    Elas, claramente animadas pelo debate político e pela ideologia exacerbada, diziam, debaixo do seguro céu azul de Lisboa: “que raio vêm eles fazer para cá? Não sabem que a travessia é perigosa e os barcos estão todos partidos?”

    Ora, esse é um excelente ponto. O que fará o digníssimo habitante do continente mais a Sul, atirar-se para um barco velho sobrelotado, sem colete ou bote salva-vidas e arriscar uma travessia perigosíssima?

    Acrescento ainda, só para aumentar a estupefacção das duas amigas, agora a caminho da quarta ginja: o que fará o migrante atravessar metade do continente a pé, fugir ao controlo dos senhores da guerra e entregar todo o dinheiro que consegue juntar ao longo de anos a quadrilhas que se dedicam ao tráfico de pessoas para… no fim disto, correr o risco de morrer no dito barco?

    Não tenho feito muita praia no Sudão e, em Trípoli, também tenho evitado jantaradas com os amigos, mas arriscava, pelo que vou lendo, que a vida é tão má, tão difícil e tão sem esperança, que até a ideia de arriscar uma morte no Mediterrâneo para entrar na Europa pode ser tentadora. É capaz de ser isso.

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    “E mesmo que sobrevivam e que a Meloni não os mande para trás… o que vão eles fazer na Europa?”. Nova interrogação extremamente interessante. O que fará na Europa uma pessoa que a procura para conseguir uma vida melhor? Em princípio… tentar ter uma vida melhor.

    Eu entendo que para cada um de nós que nasce num continente com mais oportunidades, normalmente seguro, e com esperança de média vida longa, não faz grande sentido o sacrifício desumano de quem lá tenta chegar. É até difícil simpatizar com tamanho esforço porque não o compreendemos.

    O nosso campeonato é outro. Na nossa pirâmide das necessidades já não está o acesso a electricidade ou comunicações, lutas para controlar poços de água, saneamento básico ou três refeições por dia. A nossa batalha está na limpeza das ruas norueguesas, na corrupção finlandesa, na produtividade alemã ou nos salários dinamarqueses. É para aí que olhamos, já não conseguimos perceber a barriga vazia de um puto a fugir de uma guerra no Sudão ou um perseguido pelo regime do Assad em fuga da Síria.

    Criticamos o Costa, ficamos irritados com os preços do Pingo Doce, mas jantamos e chamamos nomes a quem queremos enquanto mandamos abaixo nova ginja.

    Uma delas, a mais calada, responde à pergunta da que fala mais alto: “o que vêm fazer para cá? Não é óbvio? Vêm atrás do subsídio, de não fazer nenhum e de viver à nossa custa”.

    A mais espalhafatosa empolga-se com aquele lançamento de alto teor racista e não perde tempo: “passado um ano, o Costa está a fazer-lhes mesquitas e merdas lá para o Alá e não sei quê! Bem faz a Meloni que os manda de volta. Razão tem o Ventura quando diz que estamos a ser invadidos!”

    Dois minutos antes tinha pensado em juntar-me à conversa para perceber a origem das ideias. Gosto de falar com estranhos e discutir ideias pelo simples prazer de aprendermos uns com os outros. Embora o discurso apontasse para aquelas ideias pré-concebidas do mundo cheio de muros, a confirmação surgiu com parangonas de ignorância. Virei a direcção. Não há diálogo possível com quem vê o mundo a duas cores, e fui buscar outra ginja. Desta vez com elas.

    Daquelas duas raparigas, extrapolei para os milhões de habitantes neste continente (as eleições na União Europeia assim o indicam) que concordam com elas. Há milhões de pessoas a fugir da guerra, da fome e da perseguição política, do médio oriente (Palestina, Síria) à África central. Milhares morrem anualmente nas malhas dos gangues do tráfico humano e fazem do mar predilecto dos europeus para férias, um autêntico cemitério, sem que organização alguma consiga sequer estimar o número de migrantes engolidos pelo Mediterrâneo.

    italy, cala gonone, air

    A calamidade é de tal forma grotesca que os governos europeus, líderes de populacões envelhecidas, antes de se preocuparem em salvar esta gente, chutam responsabilidades de um lado para o outro, deixando-os à sua sorte e fazendo o possível para que não entrem.

    Meloni culpa Macron, os gregos culpam os turcos, Malta culpa quem invadiu a Líbia. Os desgraçados continuam a morrer, em barcas velhas, pensando que têm o direito de tentar fugir à morte certa nos países de origem.

    No fundo, é isso: os migrantes acham-se no direito de fugir à morte, arriscando para isso morrer. E nós, por cá, nem a simpatia já temos para dar. O sofrimento alheio é-nos banal, debaixo do nosso céu azul não há espaço para refugiados que não venham do Donbass. O mediterrâneo que os acolha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As munições que o Governo dá aos liberais

    As munições que o Governo dá aos liberais


    Quando o sistema de impostos me desagrada evito falar sobre ele. A razão é simples: não dar munições aos liberais e à extrema-direita que vêem na “flat tax” a solução para todos os problemas.

    Sou um defensor acérrimo dos impostos progressivos por achar que é essa a única forma de assegurar serviços públicos de qualidade, pelo menos na saúde, na educação e no apoio ao desemprego.

    Ainda assim, agora vem o “mas”, volto ao tema dos impostos em Portugal por achar que a coisa começa a ultrapassar todos os limites da razoabilidade. E notem que me refiro a Portugal em especial porque no país onde passo metade do ano, a Suécia, ninguém se queixa do elevado valor dos impostos. Apesar da carnificina fiscal, não há que negar essa parte, aparentemente as pessoas identificam-se com a prática e percebem a importância de o fazerem. Deduzo eu pelo que recebem em troca.

    two Euro banknotes

    Esta é a parte importante desta troca comercial entre o contribuinte e o Estado. Nós depositamos um valor mensal e, em troca, o Estado proporciona-nos serviços.

    Se os nossos filhos estudarem sem pagar, se formos assistidos nos hospitais sem grandes custos, se tivermos uma pensão de reforma decente e, no caso de cairmos no desemprego, termos uma qualquer protecção, em princípio a população não se queixará muito. Imagino eu.

    Em Portugal, mesmo para um opositor da selva urbana defendida pelos liberais e do “cada um por si” exigido pela extrema-direita, começam a faltar argumentos para justificar a brutal carga fiscal. 

    Numa semana em que voltei a ouvir falar de Alexandra Reis e devoluções de indemnizações milionárias ou, de desvios do erário público para garantir obras aos amigos de PS e PSD, pergunto-me: até onde é que cada trabalhador tem que ser esfolado para pagar este circo todo?

    person standing near the stairs

    A inflação vai baixando com alguma consistência mas as taxas de juro continuam a aumentar.  Nos bens de consumo também não se nota grande abrandamento na escalada de preços e, segundo alguns economistas, mesmo quando a inflação regressar ao mítico 2%, não se espera que os preços regressem aos valores pré-guerra. O mesmo para os transportes onde uma deslocação na Europa custa hoje três ou quatros vezes mais, se compararmos com os preços praticados antes da pandemia.

    Num destes dias, entrei num café e pedi um iogurte. Um simples iogurte que, desde o dia anterior, tinha subido cerca de 30%. Quando perguntei a razão de tamanha exponencial à funcionária, ela encolheu os ombros e disse: “já sabe, a Ucrânia e tal…”. A Ucrânia está para a escalada de preços como o Aursnes para o onze do Benfica. É pau para toda a obra. 

    O dia até me estava a correr bem quando recebo a carta para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis). O IMI é capaz de estar no pódio dos impostos mais estúpidos. Ninguém percebe bem a razão de pagar, anualmente, um imposto por uma coisa que é sua e que, ainda por cima, já foi alvo de carga fiscal a valer na altura da compra.

    man in purple suit jacket using laptop computer

    Uma pessoa quando compra uma casa já paga alguns milhares de euros em IMT e Imposto do Selo. Ou seja, o Estado já nos leva uma fatia na compra. Depois leva outra, maior, na venda. Tudo bem, não queremos especulação e tal. Mas depois ainda nos pede uma mesada, anual, pela existência da casa.

    A dada altura uma pessoa paga taxas e taxinhas já sem saber de quê. Mas pior… o que é que recebe pelo que paga? SNS e escola pública destruídos, salários na função pública miseráveis, roubos e mais roubos do erário público descobertos a um ritmo semanal. Fica difícil, muito difícil, para um convicto apoiante do sistema público, defender o assalto fiscal português quando a moeda de troca é uma mão cheia de nada ou uns subsídios mata-fome.

    Também não sou um fã da conversa de emigrante do “lá fora é que é” mas, efectivamente, é possível pagar muitos impostos, ficar com dinheiro no bolso para viver, ter serviços públicos de qualidade e não pagar impostos idiotas que cobram duas e três vezes a mesma coisa. Há décadas que PS e PSD, enquanto dividem autarquias e tachos para os boys, partilham uma única ideia para aumentar receitas: mais impostos.

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    E por maior que seja o jackpot, vai sempre parar ao mesmo sítio. Estradas, clientelas, bancos, boys, empresas de amigos, PPPs ruinosas. Já para produção de mais valias, aposta em tecnologia e nos cérebros formados em Portugal, educação universal ou alívio fiscal, preferimos deixar para os países de primeiro mundo que nos vêm roubar os miudos à porta das universidades.

    Parece-me uma estratégia óptima para quem quer continuar a competir entre os mais pobres.

    Pessoalmente sinto-me cercado. Dependo de aviões para me deslocar todos os meses, pago impostos em dois países europeus a braços com a inflação desregulada e manietados por um estúpido apoio eterno a uma guerra entre impérios, disputada em território neutro. Já vamos em 3,5 anos disto.

    Primeiro a pandemia, a loucura das restrições e o aumento das dívidas soberanas. E agora esta crise militar com a fatura da covid-19 lá enfiada, tudo para ser pago pela antiga classe média europeia. É trabalhar até rebentar para pagar custos de vida que há muito deixaram de ser comportáveis. 

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    Nunca votaria em qualquer partido à direita do PS, incluindo o próprio, mas por esta altura do campeonato, dada a pobreza crescente em Portugal pergunto, qual seria o problema de reduzir os impostos e deixar cada trabalhador com mais dinheiro no bolso?

    Não diria isto se visse uma boa aplicação do dinheiro dos impostos mas convenhamos, enquanto a população empobrece e perde as casas, a classe política e as elites, vão dividindo o bolo e enriquecendo, entre negócios escuros com abutres que voam desde sempre na órbita do Estado. São muitos, são demasiados os exemplos de gestão danosa das nossas contribuições.

    Valerá a pena continuar este modelo onde as pessoas empobrecem, os serviços públicos vão desaparecendo, as contribuições vão aumentando e uma minoria, já não tão silenciosa, vai enriquecendo nas costas da corrupção? 

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    Se não querem construir uma escola universal, se não querem recuperar o SNS, se não querem falar com os professores, se não querem dividir a riqueza colectada por quem trabalha, então colectem menos. É simples. Se vamos continuar a salvar bancos, a pagar PPPs ruinosas, a roubar e a desviar descaradamente o erário público e a “dar salários a boys que se estão a cagar”, então deixem de virar as pessoas ao contrário até que dos bolsos caia a última moeda.

    É imoral e pornográfico. Dividam a riqueza, forneçam serviços públicos de qualidade, tenham vergonha na cara e deixem, os sucessivos governos, de conduzir Portugal a uma república das bananas de terceiro mundo. Se assim não for, baixem pelo menos os impostos e deixem cada um tentar a sua sorte.

    Pior do que está não fica.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O campeão voltou

    O campeão voltou


    Embora o PÁGINA UM não seja um desportivo, é dificil fugir ao tema do fim-de-semana na minha habitual crónica de segunda-feira. Desde logo por razões económicas e estruturantes para o país, uma vez que, como é sabido, dizem, em ano de título vermelho, o PIB dispara e o PSI20 atinge máximos históricos.

    Provavelmente, o caro leitor até já recebeu troco em demasia depois da bica matinal. Isso é o “efeito Benfica” a funcionar na vida de quase todos nós. A alienação perfeita que nos deixa, umas boas 48 horas sem pensar no Galamba, no Costa, no Ventura, no Montenegro e até no Cavaco, que, de quando em vez, lá sai do sarcófago para assustar o líder do PSD em funções.

    Votar à esquerda não é a minha única qualidade. Também sou adepto do Benfica e cozinho razoavelmente bem. Um achado, eu sei.

    A primeira análise técnico-táctica que gostava de fazer foi a qualidade da festa. Luz, cor, foguetes e fumarada. Um estrondo que se viu da lua. Parecia um sábado de feira em Beirute no meio de um raide israelita. “Nem os árabes faltaram”, dizia-me um amigo de Barcelos que nos apelida de várias coisas, resultantes do cruzamento das nossas tetravós com os invasores mouros.

    Um pouco racista, bem sei, mas em dia de festa raramente me chateio. E, de facto, é verdade que a sul somos mais mascarrados, morenos e bonitos. Não era por isso que me ia aborrecer com o meu amigo pálido, adepto de um clube mais regional, que pensava que cuscus era marca de creme para as estrias.

    Bom, mas chega de falar dos outros. Voltemos ao aspecto táctico da coisa. Como foi possível a festa ter começado quase em Junho quando, em Março, tínhamos 10 pontos de avanço? Sim, tínhamos. Eu falo do clube como se estivéssemos todos dentro de campo a cruzar para a bancada como o Gilberto. Padeço desse mal, reconheço.

    Dois factores contribuiram para se lançar o primeiro foguete, no Marquês, bem nas barbas do leão às portas de Junho: Roger Schmidt e cascatas de penaltis, entre Abril e Maio, para o nosso mais directo rival.

    Schmidt conseguiu repetir a dose do período pós-mundial (primeira derrota do ano em Braga) com uma agravante: uma semana de férias para os jogadores que não foram às selecções.

    Na altura fiquei a pensar a que propósito parava ele os trabalhos daquela maneira quando, a cada interrupção, a equipa parecia regressar em ritmo de pré-época. A direcção do Benfica também achou boa ideia renovar o contrato do treinador por esta altura. Estava o clube nos quartos da Liga dos Campeões, a 10 pontos dos segundo na Liga; enfim, já cheirava a festa. Menos a mim, que gosto de comemorar depois de ganho, e não percebi, de todo, a paragem ou sequer a renovação. Eu pertenço à geração do Euro 2004, do golo do Kelvin e de várias finais europeias perdidas; portanto, já tive a minha dose de festas que não chegaram a ser.

    Dito e feito, no regresso das selecções, o Benfica perdeu seis pontos com duas exibições miseráveis. A primeira no clássico contra o Porto, onde nem cheirámos sequer a bola. Temia-se o pior, mas, com algum tremor, lá fomos aguentando os quatro pontos restantes até o jogo com o Braga. Foi aí, no sprint de Rafa, que ficámos com a certeza que o campeonato já não fugiria, porque, a partir dessa vitória, o jogo em Alvalade deixava de ser importante.

    Durante este período, Roger Schmidt mostrou que escolhe um 11 base e tem um núcleo reduzido de jogadores. Quando o sistema táctico é contrariado pelos adversários, ou os jogadores entram em subrendimento, ele não tem a capacidade de alterar nada.

    Seja no banco ou na semana de trabalho. João Mário desapareceu depois do jogo com o Porto e não saiu do 11. Musa justificou lá entrar e nem por sombras. Neres passou tempo em demasia no banco para se jogar com um meio-campo de posse e sem capacidade de explodir no um para um. Valeu a inclusão de João Neves, a recuperação de Florentino (cuja saída ninguém percebeu) e Fredrik Aursnes, um autêntico pau para toda a obra, que, caso Vlachodimos continue trapalhão com os pés, não me admirarei de ver com as luvas calçadas no jogo da Supertaça.

    Na parte final da maratona faltou ao Benfica acabar com a discussão. Na Luz, contra o Porto, ou em Alvalade. É aí que se conquista o brilho das vitórias. Estarei certamente isolado nesta opinião, hoje, mas por minha vontade, daria um abraço a Roger Schmidt, agradecia-lhe o trabalho feito e oferecia-lhe uma boleia até à Portela. Depois batia à porta de Ruben Amorim e informava-o que estava na hora de voltar para casa.

    Não vejo no treinador alemão a pessoa certa para inovar ou sequer mudar o que está feito. Dificilmente ganharemos com a mesma receita e os erros deste ano foram óbvios e, ainda por cima, repetidos.

    Mas, enfim, concedo que o tempo é de festa e ninguém quer saber disso. O filho de Roger Schmidt disse, a um jornal qualquer, que o pai queria sair do Benfica com as quatro estrelas conquistadas. Se for assim, meu amigo, retiro tudo o que disse e ainda mordo a língua.

    Não há nenhum jogador que me pareça merecer destaque individual, porque quase todos, do 11 base, e os quatro ou cinco que habitualmente entravam, contribuíram decisivamente em partes diferentes da época. Ainda assim, quero deixar uma nota para o Rafa, que fala pouco e corre muito. É um facto que falha para lá da nossa paciência, mas é ele, há anos, e independentemente de quem vai entrando a cada Agosto, que empurra invariavelmente a equipa para a frente. Época após época.

    Li que Sérgio Conceição afirmou que o Porto tinha sido, e era, a melhor equipa da época. Julgo que ele se esqueceu de completar a frase com um: “e só deixámos o Benfica 30 jornadas em primeiro lugar para os confundir”.

    O treinador do Porto faz, há anos, omeletes sem ovos. Com um ou outro jogador de futebol, uns Zaidus para fazer número e Otávios, que saem do departamento de dança e coreografia para fazer uma perninha. E tem mérito, note-se. Mesmo com a primeira posição no ranking mundial de penaltis, não é qualquer treinador que ganha com os plantéis que são oferecidos a Conceição. Infelizmente, o mérito dele acaba aí e não consegue, por uma vez que seja, perder com educação.

    Já nós, os adeptos do Glorioso, voltámos a mostrar que é possível ganhar por nós e para nós. Festa, cânticos, muito vermelho, certamente vários excessos… e nem uma palavra para os clubes rivais, nem um só coro a chamar nomes a quem não está ali, nem uma só claque a gritar por clubes alheios à festa. Bem sei que Neres, lá para o meio da farra, borrou um pouco a pintura no Instagram, mas é a excepção que confirma a regra. E como foi chatear o Otávio, até acaba por ser serviço público.

    Em conclusão, com ou sem Schmidt, parece-me boa ideia que comecem já a fazer uma equipa que garanta o 39: a mim dá-me jeito e ao PIB português nem se fala.

    Mais um ou dois dias disto e lá para quinta-feira, falamos de coisas sérias.

    Parabéns aos restantes 5.999.999 campeões.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau

    Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau


    Sempre achei boa ideia atribuir nomes italianos a casos de corrupção. Dá logo um ar de máfia à coisa e, sem grande esforço, sabemos ao que vamos antes de ouvir uma palavra que seja.

    Tutti-frutti é, por isso, um excelente nome para a operacão da Polícia Judiciária que envolve alguns autarcas e deputados do PS e PSD. 

    O caso é particularmente interessante porque, de uma assentada, mostra a corrupção instalada no Bloco Central e a lentidão da justiça portuguesa nestes mega-processos.

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    Passam agora seis longos anos desde que se iniciaram as investigações aos arranjos entre PSD e PS nas juntas de freguesia de Lisboa. Medina e o seu número dois na Câmara de Lisboa, Duarte Cordeiro, terão alegadamente ajudado o PSD, através de Sérgio Azevedo (ex-deputado do PSD) a manter as juntas de freguesia onde estes tinham negócios (Estrela, Areeiro e Santo António, por exemplo).

    O esquema era simples e baseava-se numa luta eleitoral falseada: os dois maiores partidos escolhiam e acordavam antecipadamente que juntas queriam e, feita a divisão, cada um apresentava candidatos mais fracos nas freguesias em que o adversário devia ganhar.

    Lisboa era assim dividida de forma perfeitamente anti-democrática e os negócios de construção e exploração, das empresas na órbita do PSD, eram garantidos por mais uma legislatura. Sérgio Azevedo, alegadamente, era o motor da operação que se alargava a vários presidentes de junta de PS e PSD, na capital do país.

    O esquema terá começado em Lisboa, mas foi copiado noutras autarquias. Ou seja, combates eleitorais falseados e eleições combinadas, de forma a garantir empregos, salários e colocações para diversos boys e empresas do Bloco Central.

    Seis anos depois, não há qualquer acusação formal. Medina e Duarte Cordeiro são hoje, respectivamente, ministros das Finanças e do Ambiente, nas juntas de freguesia continuam as negociatas e, de vez em quando, o caso volta à tona, sem que o Ministério Público consiga fazer o mínimo exigido. 

    Este caso é, por isso, um exemplo clássico da corrupção política em Portugal.

    O crime é óbvio, as escutas existem, há documentos com pagamentos feitos por trabalhos repetidos (ou seja, avenças para não fazerem nada) e o Ministério Público, como em todos os mega-processos, em vez de fazer várias pequenas acusações, parece querer deduzir uma que apanhe tudo e todos ao mesmo tempo, como no caso Sócrates – que resultou naquilo que se sabe.

    As escutas que vieram a público são elucidativas. Mostram um total desprezo pelo erário público, pela democracia e por aquilo que deve ser a política. Provam aquilo que já todos sabemos há muito. Um cartão do PS ou PSD é, em Portugal, uma garantia de salário, trabalhando ou não. Mas pior do que isso, mostra, sem margem para discussão, que a política em Portugal não é um momento da vida em que nos dedicamos ao serviço público, mas sim um emprego para a vida.

    É por isso que temos deputados que durante décadas não largam a Assembleia da República, autarcas que passam a vida nas suas câmaras (ou saltam para outras quando as perdem) ou até juntas de freguesia que garantem emprego até à reforma. Ser político em Portugal é um emprego para a vida. Desde a escola até à morte, passam pela vida com um salário garantido numa missão que devia ser curta e rotativa, como complemento da nossa contribuição para a sociedade.

    PS e PSD dividem o país há muito e garantem empregos a quem os apoia. Não é novo, todos sabemos disso. Mas as escutas dão uma cara de realidade ao que antes seriam conversas de café. A luta pelo tacho é óbvia, a falta de respeito por quem trabalha e paga impostos para suportar tudo isto é notória.

    Medina, um dos visados numa investigacão que tenta provar desvios do erário público, é hoje o principal responsável pela gestão desse mesmo erário público…. Isto não se inventa.

    pair of red-and-yellow sneakers

    Mas como é que se pode dar credibilidade a uma investigacão destas? Como pode, um contribuinte comum ouvir aquelas escutas e aceitar que desde 2017 ainda não se tenha produzido nenhuma acusação? Assim de repente, sem querer entrar em grandes teorias da conspiração, parece que o caso tutti-frutti é uma reserva do PS para lançar quando os escândalos apertam. Se Montenegro gritar muito com o Galamba, o PS manda o tutti-frutti avançar e lá se vai a superioridade moral do PSD.

    De repente, volta-se a falar em Passos Coelho como o homem certo para endireitar o país, e Luís Montenegro começa a ver que chegará ao fim do deserto sozinho. O homem que vendia cursos que não existiam na Tecnoforma, que saiu das jotas para o Parlamento e nunca trabalhou um dia na vida, é o homem certo e honesto para limpar o país dos tachos para os boys. Portugal se não existisse há oito séculos teria que ser inventado numa aldeia ao lado da do Astérix.

    Tenho uma secreta mas muito pequena esperança que este caso abra alguns olhos, àqueles que discutem acesamente as diferenças entre PS e PSD. São um disco só com duas canções ligeiramente desafinadas, embora muito parecidas. E dificilmente mudam se os eleitores lhes continuarem a dar a possibilidade de se perpetuarem no poder autárquico e legislativo. Este caso, embora também meta o Ventura nos tempos da Câmara de Loures, será, novamente, campo fértil para o crescimento da extrema-direita no nosso país.

    selective focus photography of black bird standing on tree branch

    Por vezes, tenho vergonha do nosso país, e desejo, honestamente, que este tipo de notícias não tenha grande repercussão internacional. Não entendo mesmo como é que caímos neste buraco de subdesenvolvimento e terceiro-mundismo.

    Que futuro tem um país onde, todos os dias, os políticos nos provam os seus roubos, e nós, anónimos trabalhadores, nos limitamos a encolher os ombros?

    Há dias em que ser emigrante não parece assim tão mau. Hoje é um deles.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro

    A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro


    A vida de António Costa, por estes dias, é digna de um filme. De manhã ouve as exigências de Jens Stoltenberg, à tarde toma notas enquanto Galamba é apertado na comissão parlamentar de inquérito, e depois, à noite, enquanto o seu ainda ministro faz uma pausa para um xixi, já o alegre Costa está em Coimbra, a cantar a plenos pulmões o Clocks, dos Coldplay.

    Estou a imaginar, obviamente. Não sei se o Costa é forte no falsete nem o Chris Martin me mandou o alinhamento do concerto. E desenganem-se aqueles que agora esperam piadas fáceis com a loucura em volta dos Coldplay.

    Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, e António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Por mim, desde que as pessoas ouçam música, até pode ser uma melodia do Nel Monteiro. Como diria a minha avó, só não se metam na droga.

    No meio desta azáfama de António Costa, ainda deu para Marcelo – o agora atento Marcelo – passear por Belém, responder a umas perguntas de ocasião sobre o Galamba e interromper a marcha para endireitar os buracos da calçada portuguesa.

    Um país onde todos, mesmo todos, temos de dar uma mãozinha e, aqui e ali, tapar um buraco. Marcelo é um de nós – e desenrascou o amigo calceteiro.

    No meio do circo – sim, é isso que há uma semana vejo nos jornais –, fiquei a matutar nas palavras de Jens Stoltenberg.

    Estou a poucos dias de ir ao banco receber as “boas novas” da subida explosiva do meu empréstimo à habitação e, nestas alturas, lembro-me muito dessa malta que repete, a cada pequeno-almoço, “as long as it takes”.

    O amigo Jens, em princípio, não tem casa para pagar, e mesmo não querendo saber do Donbass, também não deve estar interessado em saber o quão pobre deixa a Europa no fim do seu mandato à frente da “aliança defensiva”. O seu patrão não é a Europa, de modo que tanto lhe faz se ficamos a virar mais ou menos caixotes para comer.

    Na conferência de imprensa em São Bento, ao lado de António Costa, Jen Stoltenberg agradeceu o apoio português, mas disse que era preciso mais. E não foi meigo a pedir: fez-me lembrar as listas de Natal do meu filho quando tinha 8 anos. Mais caças (com e sem cedilha), mais treino, mais investimento em defesa. Ou seja, mais dinheiro desviado do Orçamento de Estado para armamento. No fundo, esteve ele a fazer o que qualquer vendedor faria, anunciando os artigos presentes no catálogo do patrão.

    Portugal, nestas coisas, limita-se um pouco a fazer aquela figura do amigo simpático que oferece a casa, recebe bem, diz umas piadas e promete que, para a próxima, o vinho do jantar não é Porta da Ravessa. Temos pouquíssima relevância internacional e os nossos Governos servem, essencialmente, para gerir fundos comunitários e servir cafés a cada passagem dos senhores da guerra.

    Já não seria catastrófico se conseguissem, pelo menos, gerir os fundos comunitários sem os distribuírem pelos bolsos do costume, embora julgo ser também pedir demasiado.

    Portugal, boa praia, óptima gastronomia, períodos longos de céu azul… quem é que está para se chatear com estas coisas de roubos de milhões ao erário público? Temos tempo, depois da praia, se entretanto não se meter o Natal, que parece teimar em surgir, todos os anos, depois do Verão.

    Estranhei que ninguém, um jornalista que fosse, perguntasse a António Costa onde ia buscar mais dinheiro para cumprir a lista para o Pai Natal elaborada por Jens Stoltenberg. Bem sei que o Governo está a nadar em dinheiro com as colectas da inflação, mas tendo em conta que os salários da Função Pública continuam baixíssimos, os impostos elevados, as creches públicas praticamente inexistentes, o SNS ao abandono e a Educação universal ainda por concluir, pergunto-me: a qual prioridade se vai roubar mais dinheiro para enterrar no Donbass?

    Ninguém parece interessado em abrandar perante uma guerra que está a empobrecer o continente europeu. Percebo que os actores externos não o queiram fazer, porque beneficiam com o conflito, mas não entendo esta loucura colectiva dos povos europeus.

    Estamos a empobrecer todos os dias enquanto gritamos pela moral de uma guerra que não nos pertence, e onde aquilo que se discute, já todos percebemos, vai muito para lá da integridade territorial da Ucrânia.

    Depois de meses a ouvir que “Bahkmut está por horas”, a cidade acabou por cair nos últimos dias. Seguem-se outros tantos meses a planear e discutir a contra-ofensiva ucraniana, com pedidos diários de material. Mais um ano de guerra previsto por quem dela vive e a relata diariamente.

    Não há grande luz ao fundo deste túnel que não seja a de continuar a viver com a inflação e o aumento dos custos de produção. Agora, se Costa quiser agradar a Jens, vamos aumentar a percentagem do orçamento para a Defesa e retirar mais dinheiro às famílias.

    Repetem-se as notícias de famílias que já não conseguem pagar as suas casas ou que mal suportam o cabaz de alimentos. A miséria aumenta, enquanto nos entretemos com horas e mais horas de circo mediático em volta da comissão parlamentar sobre a TAP. Lembrem-se: aquilo servia para debater a TAP e a sua gestão; e já se desviou primeiro para as reuniões de preparação da ex-CEO com o PS, daí para as notas que incriminam o Galamba e estamos agora nas cenas de alegada pancadaria em mulheres no Ministério. Tudo num saltinho.

    Com pipocas numa mão e a mini na outra, vamos formando o nosso tribunal popular e dando razão à chefe de gabinete, ao adjunto, ao Galamba ao que depois virá. Tanto faz.

    a large jetliner sitting on top of an airport runway

    Nas pausas para publicidade, entre um cigarrinho do Galamba ou uma canção da Mimicat em Liverpool, o Jens aterra em Lisboa e ordena que o governo português nos deixe, ainda, mais pobres.

    Batem-lhe palmas, come bem e de borla, e vai-se embora sem que ninguém lhe pergunte, a ele ou a António Costa, como e porquê.

    Já nem precisamos das papas e muito menos dos bolos. Basta-nos o circo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Fome e revista à portuguesa

    Fome e revista à portuguesa


    Os jornais da noite descreveram o dia de ontem, na comissão parlamentar de inquérito da TAP, como um guião digno de Hollywood com desenlace rocambolesco. Reconheço a originalidade do que estamos a ver e ouvir em directo (algo que me parece bom para a democracia), mas, aqui entre nós, é mais teatro de revista do que propriamente uma grande produção.

    Perdi algum tempo a ver o triste espectáculo em que se tornou a política portuguesa, e fiquei com várias dúvidas. E apenas uma certeza. Pouca gente naquela comissão estará interessada na verdade. O PS tenta safar João Galamba e queimar o (ex-)adjunto, enquanto a oposição faz o contrário. É relativamente simples ver pelas perguntas, comentários e adjectivações de cada um dos deputados, nos momentos em que fazem as questões, o que por ali andam a fazer.

    João Galamba

    De todos, o mais esperto, Ventura, em permanente campanha eleitoral, assumiu o lugar do outro deputado do Chega e aproveitou as horas em direto para ser o destaque do dia. Foi ele, sem qualquer dúvida, o líder da oposição naquela comissão. A inutilidade do PSD neste particular é algo que não pára de me espantar.

    Frederico Pinheiro, ex-adjunto de Galamba, foi arrasador nas declarações que fez e deixou Galamba ainda em piores lençóis. Não se engasgou, não entrou em contradições e fez acusações graves, nomeadamente a parte em que mete as secretas ao barulho.

    Eugénia Correia Cabaço, jurista de profissão e chefe do gabinete do ministro, também não se engasgou ou se sentiu intimidada pelo ambiente da comissão e não tremeu perante os deputados. Diria que fez o contraditório do discurso de Frederico Pinheiro sem grandes dificuldades. Ou como diria Perry Mason (só para os mais antigos), estabeleceu a razoabilidade da dúvida entre quem a ouvia. Na Assembleia da República e, já agora, em casa.

    Fico obviamente curioso para ver como Galamba se vai defender hoje, mas não entendo, mesmo, como é que o homem continua sequer como ministro. António Costa, depois de ter encostado Marcelo à parede, vai ter alguma dificuldade em fazer novo truque de magia no fim desta comissão de inquérito.

    Frederico Pinheiro, ex-adjunto de João Galamba.

    Interessa-me pouco, para já, discutir as agressões, a legítima defesa e o alegado sequestro. Sem a câmara de videovigilância vamos andar, apenas, a navegar no mar da especulação. Nem sequer percebi, entre socos e agarrões de mochila, como é que o adjunto acabou manietado e sequestrado. É uma daquelas partes do guião em que o escritor tirou uma pausa para café e, quando voltou, passou ao capítulo das secretas na piscina dos filhos.

    Esta parte do filme, o envolvimento dos serviços secretos já me parece bem mais interessante e grave. Desde logo porque o depoimento de Frederico Pinheiro revela uma tentativa de intimidação, ao mesmo tempo que lhe exigiam que devolvesse o computador e as notas tiradas na reunião com a CEO da TAP.

    Eugénia Cabaço não negou o envolvimento das secretas, mas não revelou quem deu a ordem. É aqui que tudo fica mais apimentado. Não chega a guião de Hollywood, mas já cheira a mistério com actores de qualidade B.

    Tal como a ameaça de Galamba ao adjunto (de lhe dar dois socos), que é facilmente comprovável pelo registo das chamadas (qualquer engenheiro de telecomunicações pode explicar isto), o envolvimento do SIS não deve ser muito difícil de comprovar. Ou melhor dizendo, será difícil João Galamba esconder essa realidade se, de facto, tiver acontecido. E se for assim, se o PS andar a usar as secretas para arrumar a casa, o caso muda totalmente de figura. É a prova cabal e final de que este Governo de maioria assume o Estado como o seu quintal e Portugal como a sua coutada. Os verdadeiros donos disto tudo sem pejo nem pudor.

    a large jetliner sitting on top of an airport runway

    O que parece ser consensual e, honestamente, a única verdade até ao momento, mais ou menos confirmada, é que de facto Frederico Pinheiro tomou notas na reunião de preparação com a CEO da TAP. Notas essas que, como se percebe, seriam incriminatórias para João Galamba (noutra prova de que o PS domina os bastidores da política), e acabaram por precipitar todo o enredo que resultou neste final triste e degradante, na comissão de inquérito.

    Tem a palavra Galamba para mais um dia de circo na República e umas boas 5 horas de transmissão televisiva.

    Cá fora, onde a vida real acontece, o cabaz de produtos básicos ficou mais caro, um mês depois do Governo anunciar o IVA zero sobre alguns bens de consumo. É aqui, neste rodapé informativo, que assenta o verdadeiro drama de Hollywood.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A viagem da vida, os momentos irrepetíveis e as dúvidas inexistentes

    A viagem da vida, os momentos irrepetíveis e as dúvidas inexistentes


    De tempos a tempos, dou por mim em debates sobre encruzilhadas da vida que me agradam. Aqueles momentos que, tipicamente, nos recordamos anos mais tarde como decisões que se revelaram acertadas. Alguém de quem gosto muito, há dias perguntou-me o que achava de uma pausa na carreira, de um despedimento repentino, de uma paragem nas rotinas diárias, para ir ver o mundo. Ou, como lhe chamam nos países desenvolvidos, um gap year

    Em Portugal, isto gera discussão e provoca dificuldades. Nos países da Escandinávia, por onde passei metade da vida adulta, é um passo comum na vida. Uma etapa. Há quem o faça trabalhando, há quem o faça no início do percurso académico. Mas não há nada de estranho, em determinado momento da vida, em sair para a estrada e seguir à descoberta.

    black and silver camera on yellow and blue floral textile

    Quem me conhece, como era o caso do meu interlocutor, sabe que é uma pergunta retórica. Sou um péssimo conselheiro nestas ocasiões, porque para mim, depois das relações entre pessoas, não existe nada mais importante do que viajar.

    Soará talvez a algo fútil nos dias que correm e no meio das dificuldades que se conhecem, mas é o que verdadeiramente penso. Poucas coisas na vida são tão importantes como conhecer outros sítios e abrir os olhos para o mundo. Começa aí, a meu ver, o verdadeiro conhecimento da nossa realidade e do papel que temos neste planeta recheado.

    Uma das minhas partes preferidas neste debate é o medo de se perder o emprego perfeito. Era essa a grande dúvida de quem comigo falava. “O que vou fazer depois de perder o emprego perfeito?”. Ou seja, o medo de se perder algo que não existe. Existem pessoas perfeitas, que nos completam e cuja existência dá outro sentido à nossa vida. Existem momentos perfeitos que perduram na nossa memória e que emolduramos na galeria dos sorrisos. Não existem empregos perfeitos. Especialmente para a grande maioria que, como nós, trabalha para garantir o seu sustento ou da família.

    a couple of people that are walking in the dirt

    Existe um contrato, uma troca, um acordo. Força de trabalho por dinheiro, de preferência em quantidade suficiente para aguentar BCEs, Ucrânias e inflações. Não há juras de amor a uma empresa ou lealdade eterna a um empregador. Há profissionalismo e dedicação séria, enquanto o contrato durar. Depois, fecha-se a gaveta e entrega-se essa mesma dedicação e lealdade ao próximo sortudo que connosco fizer um contrato.

    Sim, sortudo. Sorte do empregador que encontra um trabalhador dedicado.

    Sempre que aparece esta conversa, já lhes perdi a conta, por norma com pessoal na casa dos 30 anos (imagino que seja a primera fase da vida em que pensamos “e agora?”), lembro-me de um rapaz que conheci há 15 anos, na Suécia.

    Voltei-o a vê-lo há poucos dias no IKEA, mas só me apercebi quem era uns dias depois. Tínhamos ambos 30 anos e eu ia no meu sexto ou sétimo ano de trabalho. Ele cumpria, naquele dia, o seu primeiro na Engenharia.

    man sitting on gang chair with feet on luggage looking at airplane

    Perguntava-me, em surdina, como é que alguém tinha o seu primeiro emprego aos 30 anos, e como é que o mercado absorvia uma pessoa assim. Tinha chegado há pouco tempo de Portugal, eu, e ainda vinha com a cabeça formatada para as sequências impostas da vida: escola, universidade, trabalhar aos 24, casar, ter filhos, criar uma boa barriga aos 30, ser promovido aos 35 e ficar na mesma função até à reforma.

    Ainda ecoavam na minha cabeça as palavras daquela senhora de uma empresa de telecomunicacões (julgo que se chamava CBE), que na entrevista me disse: “você já tem 23 anos, o que andou a fazer da vida?” 

    Para mim, aquele rapaz, a chegar ao “mercado” aos 30 anos, devia ter um problema qualquer. As palas que eu tinha nos olhos não davam para ver mais longe.

    Um dia, já com alguma confiança entre nós, ele partilhou a história de vida. Disse-me que tinha trabalhado em bombas de gasolina, com vacas, em supermercados, na apanha da fruta. Pelo meio, tnha dado duas voltas ao Mundo e quando percebeu que a sua paixão era Engenharia, foi estudar e trabalhar na área.

    brown wooden boat moving towards the mountain

    Ao contrário de nós, que escolhemos o resto da vida numa idade em que mal sabemos o que se passa para lá do nosso bairro, ele teve a sorte de nascer numa parte do Mundo onde há tempo para viver e para se escolher o caminho certo. Ninguém ali era velho aos 30 anos e senhora alguma dos Recursos Humanos pensou que ele era um calão.

    Ele fez a escolha certa, no tempo apropriado e com a maturidade que lhe permitiu ser um óptimo profissional, pois sabia que aquele era o caminho a seguir. No primeiro dia naquela empresa, o curriculum dele já era bem mais recheado e interessante do que o meu, que andava há sete anos a bater em teclados.

    Bem sei que as oportunidades em Portugal não são as mesmas, e o mercado de emprego, absolutamente miserável, não se emociona com descobertas do planeta. Ainda assim, hoje, aos 46 anos, que pena tenho de só ter percebido esta realidade tão tarde e num momento em que a descoberta do Mundo já só podia ser feita aos bocados, em fatias de semanas e sempre com responsabilidades que não se podem adiar ou pausar.

    low-angle photography of two men playing beside two women

    Nascemos para descobrir e viver outras culturas. Não para trabalhar de sol a sol e pagar contas. É por isso que lutas como a dos franceses pela idade da reforma são importantes. Ou a dos professores por salários dignos. Há uma imensidão para lá da nossa rotina diária que exige tempo e dinheiro para ser descoberta. Pelo menos por quem tem essa curiosidade.

    Uma das coisas que nunca percebi, perdoar-me-ão, é quem passa uma vida inteira a ir de férias para o mesmo sítio. Seja o Algarve ou outra zona qualquer. Nunca percebi e até fico angustiado quando ouço ou leio “vou para sítio X há 30 anos”. Com um Mundo tão grande, não têm curiosidade de ver mais nada?  

    O meu sonho é um gap year. Fico feliz quando alguém de quem gosto pensa nisso e quase que me sinto a viver o momento. Vai, vai e vai, é sempre o meu conselho. Se não tiveres um filho ou alguém que depende de ti, vai. Se tiveres um filho e o puderes levar, vai. Se fores casado e a tua mulher alinhar, vai. Se ela não alinhar, esforça-te para a convenceres. Enquanto as pernas mexerem e o espírito se mantiver curioso, vai. Nada, absolutamente nada de mau chega com uma nova viagem. 

    man taking photo of hot air balloons

    Um dia chegará o meu Gap Year; pelas minhas contas, pouco depois de completar 50 anos, numa altura em que os miúdos serão adultos e estarão fora de casa a completar o último passo do sistema de ensino. Ou então a trabalhar, como me explicou recentemente o meu filho, com planos para atingir o primeiro milhão aos 18 anos. Tipo Trump, mas sem o empréstimo do pai.

    De uma forma ou de outra, com uns bons 25 anos de atraso, esse dia chegará. Provavelmente com os joelhos mais massacrados e as costas menos desejosas de chão irregular. Mas chegará.

    Para ti e para vocês, que estão agora na idade do rapaz que trabalhava nas bombas e apanhava morangos, assim que pensarem nisso pela primeira vez, vão. Não esperem pela dúvida. Aquela história da água que não corre duas vezes debaixo da mesma ponte, era mesmo verdade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os invasores pela paz

    Os invasores pela paz


    Khader Adnan, um activista palestiniano, preso desde Fevereiro numa prisão israelita, morreu, nessa mesma prisão, no dia 2 de Maio, ao fim de 87 dias em greve de fome.

    Khader protestava pela forma como tinha sido detido e mantido em cativeiro, sem qualquer acusação formal. Ou como as forças de segurança israelitas costumam dizer, uma quarta-feira no escritório.

    A semana que se seguiu à morte do activista palestiniano foi de protesto popular nas ruas da Cisjordânia e, segundo Israel, de ataques vindos da faixa de Gaza (rockets).

    A escalada de violência não tardou e, como é habitual nestas situações, Israel arrasou tudo à sua passagem: matou líderes da resistência palestiniana, civis, mulheres e crianças.

    Entre as tricas do Galamba, a eterna contra-ofensiva ucraniana e a maldita inflação, não vi grande destaque sobre mais este crime perpetrado pelo mais antigo invasor ainda em actividade.

    É, aliás, sintomático dos tempos que correm: discutimos até à exaustão uma guerra que não é nossa e enchemo-nos de moral para defender o David do Golias russo, o invasor que a todo custo queremos impedir de ficar com o Donbass.

    Parece-me um bom princípio, e até dou de barato o verdadeiro despique entre impérios às custas do povo ucraniano, que não tem qualquer peso na decisão do seu próprio destino. Combatem uma guerra enquanto os patrocinadores assim o entenderem. No dia em que não forem úteis, ficarão sozinhos.

    man waving flag

    Mas o princípio é bom. Respeitar a integralidade territorial dos vizinhos é sempre uma boa forma de manter a paz no bairro.

    Nada disso se aplica aos palestinianos há pelo menos sete décadas. A nossa indiferença mantém-se olimpica e historicamente inalterada. Nem para notícia de rodapé estes desgraçados servem.

    Ter dois milhões de pessoas a viverem em 365 quilómetros quadrados (a dimensão da Faixa de Gaza), completamente enclausurados e vigiados pelos carcereiros, é uma situação de normalidade a que o Mundo se habituou. Já nem pensamos sequer no horror que é viver numa prisão a céu aberto. 

    De igual forma, mudamos de canal quando aparecem mães aos gritos com crianças mortas no colo em Rafah. Há quantos anos vemos essas imagens? Isto quando aparecem sequer no jornal da noite… Alguém se lembra de um painel de especialistas militares, comentadores e empregados de mesa da NATO a debaterem o tema em horário nobre, numa qualquer televisão portuguesa?

    people gathering on street during daytime

    Não. Claro que não. É absolutamente normal ouvirmos, ainda que brevemente, relatos de semanas como esta. Semanas em que voam rockets de Gaza para Jerusalém ou Telavive, tranquilamente anulados pelo Iron Dome (sistema de defesa israelita), e respostas da força aérea na Faixa de Gaza, aniquilando tudo à sua passagem. Homens, mulheres, crianças. Velhos, novos, civis ou combatentes. Vai tudo.

    Aqui não existe um David ou sequer um Golias. Existe um povo ocupado, vigiado 24 horas por dia, com regras para entrar e sair de casa e, pior do que isso, bombardeado regularmente num território sem escapatória possível. 

    Quem procura justificar os crimes de Israel, nos colonatos da Cisjordânia ou na faixa de Gaza, está no nível intelectual de quem mete veneno num aquário e se admira por os peixes não conseguirem escapar com vida.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Esta semana, com a cumplicidade do nosso silêncio e desinteresse, foi mais uma de reacções desproporcionadas nesta guerra desigual. Foi mais uma semana que a uma chapada se respondeu com um martelo. Mais uma semana com zero mortes de um lado e dezenas do outro. Mais uma semana com prisões, violência e encarceramentos sem qualquer acusação ou fundamento legal.

    Foi, essencialmente, mais uma semana em que o Estado de Israel disse ao Mundo que faz o que quiser na região e não dá contas a ninguém, que não ao seu aliado americano, com quem votam isoladamente nas Nações Unidas, a cada ano, a continuidade do embargo a Cuba. É uma parceria que garante continuidade do poder e que espeta, nos olhos do Mundo, quem manda e quem deve obedecer.

    Khader Adnan foi mais um que morreu pela causa palestiniana perante a cumplicidade, o desprezo e a aprovação da tão famosa comunidade internacional. Tal como os que se revoltaram com a sua morte e foram bombardeados. Tal como todos os que deram a sua vida, durante décadas, na luta contra um invasor declarado e assumido.

    black and gray bird on gray concrete wall during daytime

    Esta semana de silêncio também explica, pelo menos a mim, por que razão nunca embarquei em moralismos no Donbass ou nos caminhos para a paz. Impérios matam, roubam, violam e alargam território. Por isso são impérios.

    Ou se é totalmente anti-imperialista, venham eles da Sibéria, Alasca ou Hong-Kong, ou então aceitamos a lei do mais forte.

    Não me venham com guerras a “todo o custo” em Bahkmut, enquanto mudaram e mudam de canal a cada morte na Palestina. E isto há 70 anos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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