Autor: Tiago Franco

  • Ronaldo e a bol(h)a

    Ronaldo e a bol(h)a


    Sempre que se abre a boca para falar de Ronaldo é preciso compreender que vamos ofender alguém. Há o grupo de indefectíveis, onde se inclui o meu filho, que me obriga a ver jogos do campeonato saudita; e os outros, que vão lendo a realidade como ela é.

    O ponto de partida para mim, quando penso em Cristiano Ronaldo, é no extraordinário atleta, melhor futebolista português de sempre e, provavelmente, a pessoa que mais deu a conhecer o nosso país pelo Globo. Reconheço, sem grandes problemas, que pessoas que não faziam a mínima ideia onde ficava Portugal, foram ao mapa ver por causa de Ronaldo. Portanto, até ao nível dos conhecimentos de Geografia, até de cada adepto escondido na Micronésia, o nosso madeirense colaborou.

    Ainda assim, depois de década e meia de glória, começa a ser penoso ver esta transformação de ídolo planetário para o “Gajo de Alfama” (dos tempos em que o Ricardo Araújo Pereira tinha piada). As recentes declarações de Ronaldo, puxando para si o mérito de abrir o caminho das Arábias para mais jogadores de renome, qual Vasco da Gama dos petrodólares, soam um pouco mal.

    Fizeram-me lembrar aqueles tempos de terror em que Jorge Jesus, envergando o Manto Sagrado, nos envergonhava a cada conferência de imprensa com as suas bazófias a perder de vista. Certo dia, numa palestra na Faculdade de Motricidade Humana, Jesus, o Poeta da Reboleira, disse que queimara muita pestana para inventar uma Ciência. Assim mesmo, inventar uma Ciência.

    Eu aprecio homens da Ciência, convenhamos. Até porque sem as suas descobertas dificilmente eu teria as bases que trazem o pão cá para casa. Mas, como diria o nosso Costa, vamlá a ver, decidir se os laterais fazem o corredor e os extremos vão por dentro ou, em alternativa, jogamos com um meio-campo a três e dois extremos puros, não é a mesma coisa que descobrir a cura para o cancro. Ou sequer, vá lá, desenvolver uma Via Verde que poupa umas horas de fila na segunda ponte do Feijó. Aliás, neste caso, foram portugueses que inventaram aquilo. Homens da verdadeira Ciência.

    Bem sei que países pouco desenvolvidos fazem do futebol um desígnio nacional. São programas de debate diários em todos os canais informativos sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que vai acontecer à vida dos artistas da bola. Quando há jogo debate-se o penalti e quando não há fala-se da transferência e dos rumores. Diariamente. São 12 meses por ano com paragem no Natal para podemos ver as fotos dos jogadores a comer bacalhau.

    Também eu sofro com a bola, especialmente quando ela desliza na Catedral, e não me quero por isso excluir da parolice nacional em torno da caixa de Pandora de Ronaldo. Dir-me-ão que a um milionário todo o disparate é permitido. Se Elon Musk, tido por muitos como um génio, pode dizer asneiras em barda, por que não poderá Ronaldo, um milionário com baixa escolaridade, fazer o mesmo? De facto, pode, mas não deixa de ser deprimente.

    Ronaldo deixou de jogar futebol, um jogo de equipa, há uns bons anos, provavelmente antes sequer de chegar à Juventus, e começou então a praticar uma modalidade individual chamada “quebrar recordes”.

    Pelo caminho, ia reclamando com quem não o ajudava a chegar lá e culpando os restantes 10 em cada insucesso. Continua no seu direito, mas, visto daqui, foi quando comecei a olhar mais para o lado. Saber envelhecer no mundo das estrelas planetárias não deve ser fácil, acredito que não; ainda assim, sempre imaginei Cristiano Ronaldo a sair de cena pela porta grande e sem se arrastar nos relvados, como faz agora.

    Cristiano Ronaldo decidiu desafiar o tempo e continuar pela única porta que se abriu: a da ditadura saudita, e da que teimosamente, na seleção nacional, não se fechou.

    Note-se que não faço parte do coro de puritanos que acha que um futebolista não deve validar uma ditadura. Era o que mais faltava. Anda o famoso “Ocidente” a fazer da Arábia Saudita um parceiro privilegiado há décadas, a fechar os olhos aos crimes perpetrados no seu território em nome dos barris de petróleo e esperava-se que um atleta, a quem se oferece uma fortuna incalculável, fosse recusar uma mudança para o deserto? Sabe lá o Ronaldo a História da Arábia Saudita…

    O Macron, presidente francês, sabe certamente e, mesmo assim, disse alto e bom som, num encontro de líderes a propósito das sanções à Rússia, que tinham que pedir aos sauditas que aumentassem a produção. Portanto, deixemo-nos de moralismos bacocos.

    Nós validamos, há muito, todas as ditaduras que são boas para o negócio. E tal como as elites políticas, Ronaldo foi fazer pela vida e entrar num circo a troco de dinheiro. Repito: está no seu direito. Mas tentar convencer toda a gente, um ano depois, que o campeonato saudita é muito bom, ou que abriu o caminho para outras estrelas, é apenas triste. Aquilo que abriu caminho foram as fortunas que os xeques sauditas, que exploram e lucram com os recursos do país, resolveram distribuir um pouco por todo o lado.

    Jogadores em fim de carreira ou ainda com muitos anos nas pernas foram aliciados, numa tentativa de trazer o país para a alta roda futebolística. Um pouco como o que chineses tentaram fazer há cerca de 10 anos, com a construção de uma Superliga, que levava alguns dos bons talentos da Europa, mas modelo ao qual se colocou, entretanto, um travão nos gastos por ser insustentável.   

    Depois do Mundial do Qatar, outra ditadura amiga – os sauditas – tentam, através do futebol, dar uma nova imagem do país. Ronaldo alinhou, e agora são vários os nomes famosos que se juntarão a ilustres desconhecidos.

    Entre eles, Ruben Neves, internacional português, foi claro e objectivo nas suas declarações: saiu da Premier League, onde era um ídolo no Wolverhampton, porque o dinheiro ganho na Arábia Saudita permitiria dar à família uma vida diferente e, provavelmente, garantir o conforto da geração seguinte. Tudo bem, tudo certo. Nada de conversas sobre o “projecto” ou a “Liga Saudita vai ultrapassar a Turquia e a Holanda”, como nos informou Ronaldo, o homem que abre caminhos.

    Para finalizar a palestra, o nosso descobridor, ainda disse que a Liga Italiana também estava morta quando ele foi para lá e que não voltaria para a Europa onde o futebol se tornara muito fraco. Nem Zlatan Ibrahimovic, dono e senhor da maior arrogância que se conhece neste mercado, produz disparates destes. A Liga “morta” colocou três clubes nas meias-finais da Liga dos Campeões no ano em que Ronaldo saiu de lá. E o futebol fraco europeu brindou, pelas camisolas do Celta de Vigo, um empate de 5-0 ao Al-Nassr, um pouco depois destas declarações.

    Não sei se o estimado leitor já viu algum jogo do campeonato saudita, espero que não, mas é mais ou menos como aquelas futeboladas que fazemos aos domingos com o pessoal amigo onde aparece sempre um, que em novo, chegou a jogar nos juniores do Belenenses…

    Ronaldo não volta para a Europa, porque não há quem pague o que ele quer, e nenhuma das equipas de topo, onde ele acha que ainda teria lugar, o quer por perto.

    A continuar por este caminho, sem aceitar o tempo que a todos consome, ainda nos vai fazer esquecer aquele rapaz sem medo que fazia todo o corredor em Old Trafford, e nos encantava, nos tempos de Alex Ferguson.

    É uma pena. Para nós, os adeptos, claro.

    Na verdade, nada que o afecte, lá na bolha onde vive.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O imigrante que não se quer integrar

    O imigrante que não se quer integrar


    De todas as discussões possíveis em torno da morte de Nahel Merzouk, o jovem francês de ascendência argelina baleado nos subúrbios de Paris, há uma que não parece oferecer grandes dúvidas: foi cometido um crime pela polícia.

    As imagens deixam pouca margem para discussão e não esteve, em momento algum, em risco a integridade física do atirador, que se limitou a assassinar um miúdo a sangue-frio. 

    Podia o polícia ter disparado para os pneus e imobilizado o carro, mas escolheu, naquele momento e a poucos metros de distância, balear uma pessoa desarmada que em momento algum colocou em perigo a vida do agressor.

    Esta parte da conversa é importante porque não existe “mas” nesta situação. Não existem atenuantes ou justificações que suportem a acção policial. Nem mesmo os distúrbios e a revolta da população que se seguiram a este assassinato podem, a posteriori, servir para validar as balas no peito de Nahel.

    É certo como o destino que, a cada abuso das forças (supostamente) de segurança, se acabe a discutir questões raciais ou de integração de imigrantes. É um tema que me revolta só por si e tende a ficar escatológico, à medida que os dias sob o crime vão avançando.

    João Miguel Tavares disse, a propósito deste caso, que a integração de um imigrante depende do país de acolhimento, mas também da vontade que este tem de fazer parte dessa cultura.

    Miguel Sousa Tavares, de uma forma muito mais radical, disse que os argelinos em França não se querem integrar, de todo, e que estão lá para destruir a França por dentro (Nahel era de ascendência argelina e marroquina e vários jovens de ascendência árabe juntaram-se aos protestos).

    Vamos, antes de mais, meter um ponto de ordem à mesa: para o que aqui se discute, é absolutamente irrelevante saber se Nahel estava bem integrado, se cantava a marselhesa ou se vibrava mais com Mbappé ou Mahrez.

    A única coisa que importa, para este caso, é que um jovem de 17 anos, desarmado, foi assassinado pela polícia sem ter feito nada que o justificasse. Ponto final.

    Dito isto, como é óbvio, a cada dia de tumultos perguntava-me quando é que viria o tema da “integração”.  É sempre engraçado ouvir a opinião de pessoas que viveram toda a vida no seu país de origem a falar sobre a comunidade A ou B que não se quer integrar no sítio X ou Y.

    Reparem que, para início de conversa, discute-se a integração de Nahel como se ele não tivesse nascido em França. Este é sempre o ponto de partida para os ataques raciais e xenófobos. Podemos ir na terceira ou quarta geração de nascidos no país de acolhimento e ainda nos referimos a eles como imigrantes. Talvez fosse bom, para o tema da integração, deixarmos de lhes chamar isso, vá lá, ao fim de duas gerações.

    O que eu perguntaria a João Miguel Tavares e a Miguel Sousa Tavares, se pudesse, é se eles pensam que algum imigrante escolhe viver o inferno que é estar à margem da sociedade que o acolheu ou onde nasceu.

    Pensarão, quiçá, que alguém prefere viver em guetos, ter mais dificuldade no acesso aos empregos e às melhores escolas? Haverá algum filho de marroquinos, senegaleses, argelinos ou tunisinos, em Franca, que prefira uma vida de segregação ao mundo de oportunidades de que outros dispõem? Perdoar-me-ão, mas, de uma maneira geral, não é assim que a coisa funciona. 

    Não importa se há “ódio visceral” (como sugeriu Sousa Tavares) entre franceses e argelinos, por causa da guerra da independência, ou se os árabes seguem outras práticas religiosas. Alguém acredita que um destes miúdos dos subúrbios, onde se amontoam as diferentes comunidades, escolheria entregar pizzas e estar longe da escola se tivesse outras oportunidades e melhores perspectivas de vida?

    Sentados no sofá de nossa casa, no bairro onde sempre vivemos, julgamos compreender como funciona a vida de um deslocado. Sim, Nahel era um deslocado no país de nascimento. Tal como muitos outros com ascendência africana que, por norma, não são levados em grande conta até que marquem um “golito” ou defendam qualquer coisa num campeonato do mundo de futebol.

    Há muitos anos, nos meus primeiros tempos de estadia na Suécia, tive uma chefe de projecto excepcional. Trabalhava no sistema de airbag da nova geração de “Volvos”, muito antes da corrida ao lítio, e esta pessoa, sempre muito simpática, cordial e incentivadora, foi estabelecendo comigo uma relação profissional que me agradava.

    Foi a primeira vez que ouvi sequer um elogio ao desempenho profissional. Nos meus anos de Autoeuropa, aqui pelo burgo, não sabia que as pessoas também podiam ser elogiadas no trabalho.

    Não tinha grandes pontos de contacto naquele país e, como perceberão, era bom ir fazendo amizades no trabalho. Até porque não tinha outras por aquelas paragens. Nesta fase da minha vida fazia tudo para me integrar nos hábitos, cultura e tradições do país de acolhimento. 

    Com o passar dos meses foi dizendo, essa minha colega, que gostava que eu, e a minha companheira, fôssemos jantar lá a casa com a família dela. Imaginei que se estivesse a criar uma relação para lá das paredes do escritório. Uma vez mais repito, não conhecia ninguém e os tempos passados para lá do horário de trabalho não eram de grande actividade social. Era de longe a parte mais difícil na clássica “integração”.

    Lembro-me sempre de um velhote simpático, que me alugava uma casa e me perguntava de quando em vez: “E então, já fizeste amigos suecos? Deduzo que seja difícil. O meu grupo de conhecidos é o mesmo desde a creche. Não entra ninguém novo e quando sai algum, é por que morreu”. Nesta fase eu ainda me ria e pensava que era ele, aquele velhote, o pessimista de serviço.

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    Combinámos a data do jantar e eu fui à loja do Estado (Systembolaget), único sítio onde se vende um tinto digno desse nome, comprar qualquer coisa para não aparecer com as mãos nos bolsos. Na véspera do dia – é bom de ver que os suecos combinam tudo com semanas de antecedência e espontaneidade é coisa que só se vê nos filmes – a minha anfitriã manda-me uma mensagem dizendo que ela e o marido achavam que afinal não era boa ideia jantar. E assim ficou.

    Seguimos a relação profissional sem grandes conversas sobre o tema e sabendo que os elogios ou gosto na minha companhia se resumiam ao que, aparentemente, fazia ou deixava de fazer no sistema de airbag.

    O produto lá chegou ao mercado, a Volvo continuou a ser um dos fabricantes mais seguros do mundo e eu segui para outro projecto, cruzando-me aqui e ali com aquela personagem e não trocando mais do que um “olá, tudo bem?” de ocasião. 

    Situações destas repetiram-se – umas mais chatas, outras mais subtis – até que percebi, ao fim de cinco anos a tentar, que aquela parte da sociedade seria mais difícil para não me sentir só. Foi quando comecei a procurar outros portugueses na cidade, latinos de diferentes países da América do Sul e estrangeiros de outros países europeus, com quem fui estabelecendo relações de amizade ao longo dos anos e com quem consegui formar uma rede social nos 12 anos seguintes.

    Nunca vivi num subúrbio mal frequentado de Gotemburgo, nunca andei a queimar nada ou a exigir que cobrissem a pele. Nunca roubei (ok, tirando aquela colecção do Seinfeld), nunca maltratei ninguém, nunca tive qualquer comportamento daqueles clássicos que atribuem, os “opinadores” de sofá, aos que “não se querem integrar”. E, mesmo assim, quando olho para trás, vejo chilenos, portugueses, espanhóis, colombianos, argentinos, ingleses, mexicanos. Não vejo um único sueco. Nada. Zero.

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    A minha dúvida é, se tivesse nascido num subúrbio e crescido com a cultura de “nós e eles”, teria tentado sequer durante cinco anos fazer parte da sociedade de acolhimento? Provavelmente não. O mais certo era chegar aos 13 ou 14 anos e compreender que já estava à margem da realidade dominante e, inevitavelmente, escolher o caminho onde a discriminação não existe: entre os “meus”.

    Tem culpa o Nahel da guerra da independência da Argélia e dos ódios criados, quase 60 anos antes do seu nascimento? Ou da organização dos subúrbios de Paris onde os imigrantes são despejados em guetos? Ou do passado colonial de Franca? Ou do racismo constante dos europeus em relação aos africanos que exploraram durante séculos? Não, não tem culpa de nada disso.

    Nahel Merzouk, tal como muitos outros imigrantes que nem o privilégio de serem chamados franceses têm, limitou-se a nascer num daqueles sítios onde a probabilidade de sucesso reduz drasticamente. Está nos livros. As contas estão feitas.

    No caso dele, nem chegou a um trabalho mal pago ou uma vida precária. Foi logo baleado na rua por um assassino que nunca, jamais, deveria ter acesso a uma arma de fogo.

    O facto de os advogados do polícia já terem angariado mais de um milhão de euros, prova, entre outras coisas, como a sociedade está doente e as prioridades, comprovadamente, trocadas.

    Para onde caminhamos, nesta Europa com saudades dos muros?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aumentem os salários! Ontem já era tarde

    Aumentem os salários! Ontem já era tarde


    Cheguei à cantina e pedi o iogurte do costume. Não tem nada de especial: um fio de mel, três ou quatro nozes e já está. Na altura de pagar, reparei que o preço tinha subido de 3,5 para 4,5 euros. Já achava o preço de ontem desagradável, hoje nem vos digo.

    Perguntei à senhora que me servia o porquê da repentina subida de preços e ela disse: “Sabe como é… a Ucrânia!”.

    amber glass bowl with fruits besides white spoon and fork

    Enquanto ia contando o número de colheres que aquele iogurte me proporcionava, pensava nas costas largas da Ucrânia que não mandavam para ali leite, nozes ou mel.

    A propósito desta temática, num programa de debate na RTP com quatro conceituados economistas, Francisco Louçã defendeu que as cadeias de distribuição aproveitavam este momento para aumentar a sua margem de lucro.

    É um facto que os custos de produção são hoje mais baixos do que eram antes do início da guerra, mas, no entanto, não se nota uma redução no preço dos produtos finais. Segundo Louçã, depois de 20 anos em que as regras da concorrência não permitiram aumentos disparatados, chegou agora o momento das empresas aproveitarem a conjuntura actual para dispararem as suas margens. Isto contraria a previsão do Banco Central Europeu que nos assegurou, no ano passado, que a inflação seria temporária.

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    Identificado que está o problema, chegamos à terapia. De momento, discute-se se devemos continuar a aumentar as taxas de juro para controlar a inflação ou, se por outro lado, devemos repensar e compensar essas subidas na despesa das famílias com o aumento dos salários reais.

    Sandra Maximiano, professora do ISEG, também presente neste debate, defendeu algo que já escrevi em outros textos aqui no PÁGINA UM: a aplicação cega da receita de Christine Lagarde – aumentar as taxas de juro em toda a Zona Euro – não tem o mesmo impacto em diferentes países.

    Em Portugal, onde a população é mais pobre e as famílias mais carenciadas – é bom não esquecermos que 75% das pessoas levam para casa menos de 900 euros líquidos –, não há a mesma capacidade de aguentar o aumento da despesa mensal como em outros países mais ricos da União Europeia. Voltamos sempre à discussão de medidas que visam reduzir o consumo em famílias que já pouco ou nada consomem. Aliás, é um tema recorrente falarmos em famílias portuguesas, como se entre elas, as carenciadas fossem uma minoria.

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    Tenho sempre alguma dificuldade em dizer isto, mas parece-me que continuamos a considerar que Portugal é um país onde a classe média, à escala europeia, tem algum peso. Não tem. Se olharmos e compararmos com os países mais desenvolvidos da Europa, grande parte da população portuguesa nessa escala seria pobre.

    Percebendo então que a inflação não é temporária, que os preços dificilmente voltarão aos valores pré-guerra e que as taxas de juro não regressarão ao mítico 1%, e perdoem-me por esta parte, mas seria obrigado a concordar com Luís Montenegro. Disse o líder do maior partido da oposição que era altura de arriscar e desafiar a Economia: “Temos de subir os salários em Portugal”.

    Dir-me-ão que depois de 20 anos a defender o aumento de salários indexado à produtividade, chegou a vez do PSD, através do seu líder condenado à travessia do deserto, dizer o contrário. É preciso aumentar por decreto. Estaremos perante uma tentativa eleitoralista de Montenegro, concordo, ainda assim correcta.

    clear glass jar with coins

    Não há outro caminho. De facto, Portugal não pode continuar a ser o país dos baixos salários para onde as multinacionais se dirigem na procura de mão-de-obra qualificada a baixo custo.

    É preciso que o Estado, depois de arrecadar impostos extraordinários e as empresas verem as suas margens de lucro subirem, tenham a capacidade e honestidade moral de dividir essas receitas com os trabalhadores, tanto na Função Pública como no setor privado. Esta é uma oportunidade histórica de tornarmos Portugal um país menos desigual.

    Quando até o líder do PSD nos diz que é tempo de arriscar e subir os salários, percebemos que o Apocalipse está próximo.

    Aumentem, então. Ontem já era tarde.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António

    A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António


    O Bloco de Esquerda (BE) deixou de me motivar no período que se seguiu ao Miguel Portas, Daniel Oliveira e Ana Drago. Entrou numa fase de lideranças errantes, e Catarina Martins sempre foi, na minha opinião, um erro de casting. A um político não basta passar a mensagem certa, tem de saber passá-la sem irritar o ouvinte.

    Catarina Martins falhava, habitualmente, nas duas vertentes. Ainda assim não deixei de acompanhar a vida do partido. Posso não ser eleitor do BE, mas sou eleitor de esquerda e, portanto, tudo o que acontece entre o cada vez mais centrista PS e a extrema-esquerda do MRPP me interessa. Extremismos à parte, espero ter essa parte ficado implícita.

    Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES (2014-2015), fiquei a conhecer Mariana Mortágua. Tinha tudo, achei eu nessa altura, para ser uma política de sucesso. Estudava os temas, falava de forma calma e ponderada, usava argumentos lógicos e facilmente perceptíveis pelos eleitores, sem entrar em populismos baratos. Esta parte é importante num político que quer algo mais do que um esporádico bom resultado eleitoral.

    O pouco que fui vendo da vida do BE, desde essa comissão de inquérito foi, essencialmente, para perceber para onde caminhava Mariana Mortágua. Nunca percebi, que me perdoem os seus acólitos, como foi possível manter tantos anos Catarina Martins na liderança, quando se tinha Mariana Mortágua ali ao lado.

    O discurso de uma e de outra é a diferença entre mudar o canal ou ficar a ouvir até ao fim. Depois de algumas eleições catastróficas, e, julgo, quase 10 anos de liderança, Catarina cedeu o lugar a Mariana. Em boa hora.

    Este fim-de-semana, numa sardinhada do BE, Mariana Mortágua deixou duas ideias simples, mas fortes, dada a urgência de ambas. A primeira relacionada com as taxas de juro e com a inoperância do Governo português perante os aumentos do Banco Central Europeu (BCE).

    Com salários que rondam os 800 ou 900 euros, algumas famílias viram a prestação da casa subir de 400 para 700 euros. Não é preciso ser um matemático de eleição para perceber que não se vive assim. Na melhor das hipóteses, sobrevive-se.

    Como pode um país cada vez mais pobre, como Portugal, suportar políticas de aumento da despesa familiar para controlar a inflação? Como é que se pode aplicar a gregos, portugueses e romenos a mesma estratégia que seguem alemães, belgas e holandeses? E por que razão é apenas Mariana Mortágua que repete isto, sugerindo que os bancos, com lucros recorde, absorvam os aumentos em vez de sacrificarem as famílias. Tudo isto é tão óbvio que nem deveria dar argumentos para uma conversa.

    A outra mensagem, relacionada com a Educação, foi a de exigir que as creches fossem incluídas no sistema público de ensino e tal, como as escolas, fossem gratuitas em cada bairro e cidade. Algo que afirmo há pelo menos 14 anos, desde que percebi, na minha vivência de emigrante, que os impostos podem ser usados numa Educação verdadeiramente universal. Da creche até ao Ensino Superior, as mesmas oportunidades para o filho do padeiro e do médico. Tudo gratuito. É isso, e apenas isso, que faz um sistema de ensino universal.

    Uma vez mais, porquê apenas Mariana Mortágua, entre duas sardinhas e um copo de vinho tinto, fala sobre isso? Poucas coisas são tão importantes para um país pobre e envelhecido do que o estímulo à natalidade. As creches gratuitas são parte importante do plano.

    Gosto quando a esquerda fala sobre temas clássicos da esquerda sem se perder em discussões de unicórnios ou casas de banho, por onde o Bloco resolveu andar nos últimos anos. Estes são temas actuais, importantes e prioritários. Ditos de forma perceptível e sem grandes dramas ou demagogias. Mariana não parece encarnar um personagem, limita-se a dizer o que pensa. Ou, pelo menos, é essa a sensação que passa.

    No mesmo fim-de-semana, nas Caldas da Rainha onde há anos se recolheu, António José Seguro deu um ar da sua graça e parece, anos depois da rasteira que lhe passaram, estar disposto a regressar às lides políticas. Sobre Seguro, voltarei noutro texto porque há algo mais para dizer, mas, para já, fico com a impressão de que a esquerda portuguesa se começa a mexer numa direcção curiosa, para o período de oposição que se adivinha.

    Depois de tutti-fruttis, Catarinas, Costas, Galambas, Temidos e Cabritas, o futuro parece apontar para algo mais suportável, para quem não vota em Montenegro, Ventura ou o novo Cotrim (ainda não lhe decorei o nome).

    Já só falta o João Ferreira. Mais década menos década, está ai a rebentar.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Aleluia e a chiclete

    O Aleluia e a chiclete


    Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português. 

    Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.

    Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes. 

    Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.

    Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.

    Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.

    Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.

    É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.

    Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.

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    Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando. 

    Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente. 

    Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.

    A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.

    Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os meus 6339 dias

    Os meus 6339 dias


    Passam hoje 6.339 dias desde o momento em que aterrei na Suécia para dar início a uma vida de emigrante. Ou, por outras palavras, passam hoje 6.339 dias desde o dia em que perguntei quando voltaria. Como quase todos, saí de Portugal com a teoria dos dois anos bem presente.

    O que é a teoria dos dois anos, pergunta o leitor? É uma mentira que contamos à família no momento da despedida. “Vamos apenas por dois anos para ter a experiência… e depois voltamos”. É uma mentira tão boa que até nós, os que embarcamos para um país diferente, acreditamos nela.

    Os dias foram passando e, como é fácil de perceber, ao fim de 730, dois anos portanto, não regressei. E por cada 365 que passavam, mais difícil era esse regresso.

    luggage, suitcases, baggage

    Uma das coisas que sempre achei estranho foi a ligação a Portugal, que teimava em desaparecer. É normal que, ao fim de algum tempo, o emigrante se vá desligando da realidade que deixou para trás e se vá inteirando daquela que, entretanto, conheceu. Não foi o meu caso.

    Quer dizer, embrulhei-me na realidade sueca e na forma como a sociedade funciona, mas não deixei de ouvir notícias de Portugal por um dia que fosse. Percorri o país de norte a sul, fiz questão que conhecer toda a Escandinávia, subi montanhas e experimentei mares diferentes. Votei sempre nas eleições locais e procurei entender a base social em que assenta este país. Mas os acontecimentos que me incomodavam, as notícias mais marcantes, as fontes de preocupação vinham sempre da realidade portuguesa.

    Ia para o trabalho com a TSF ligada, limpava a cozinha com o jornal da noite no ar e pedalava com um podcast qualquer de debate. A cada regresso, em conversas com familiares e amigos, notei, por vezes, que sabia mais do que por ali se passava do que eles que nunca tinham saído do mesmo bairro. Essa necessidade de saber a realidade lusa fez-me perceber que não conseguiria desligar-me de Portugal. 

    train passing in between buildings

    Ao contrário do que se possa pensar, manter este laço com o país de origem não torna a emigração mais fácil. Faz-nos pensar, repetidas vezes, afinal o que fazemos aqui.

    No caso da Escandinávia é mais ou menos fácil perceber a dificuldade de aceitar o regresso. Basta consultar qualquer tabela de desenvolvimento social para compreender que esta zona do globo está naquilo a que convencionámos chamar o mundo civilizado.

    A base social assente em impostos progressivos permite que o país seja dotado de um sistema público de saúde e uma educação verdadeiramente universal. Gratuita desde o primeiro dia na creche até ao último dia da universidade. Classes profissionais separadas por pequenos degraus onde, por exemplo, o fosso entre um gestor de empresa e um canalizador não permite que algum deles viva na pobreza. Uma Economia assente num sector produtivo tão grande que nunca há gente suficiente para preencher as vagas.

    baked breads

    Atravessei duas crises mundiais por aqui, com milhares de despedimentos. Lembro-me de ao fim de seis meses já estar tudo em ritmo de “business as usual” enquanto mais a sul demoraram anos a reerguer.

    É, de facto, difícil largar uma realidade onde a sociedade civil funciona, as regras são cumpridas e as oportunidades são mais do que muitas. Ninguém enriquece a trabalhar por aqui, mas também ninguém volta a olhar para o saldo. É uma realidade que ouço de vez em quando na boca de outros emigrantes.

    O problema é a outra parte. Os afectos, as relações, a proximidade, o contacto. Aquele calor humano, a espontaneidade, o improviso, a alegria não planeada. Todos os ingredientes que nos fazem latinos. O sol, o céu azul, o mar com ondas, a gastronomia. Enfim, não ter que pensar no que se diz quando se misturam três línguas diariamente.

    white ceramic mug with brown liquid on white ceramic saucer

    Num destes dias, disse-me o meu filho, nascido aqui, que depois de acabar a escola queria sair da Suécia. Perguntei porquê, afinal, esta é a realidade que ele conhece e de onde nunca pareceu interessado em sair. Disse-me que quando a vida académica o separasse dos amigos que o acompanham desde a creche, qual seria o sentido de passar a vida num sítio gelado?

    Realmente… Para ele isto é um sítio gelado onde tem os amigos. Não é um país de primeiro mundo que por acaso também é gelado.

    Ele não tem termo de comparação e, ainda assim, todos estes anos com meses passados em Portugal, já o fizeram perceber que a vida pode ser mais simples noutras latitudes. Pelo menos aos olhos de uma criança que depende das relações humanas e, ainda não, de um emprego.

    people sun bathing on beach

    Durante estes anos, perdi a conta às pessoas que ajudei a vir para aqui, a arranjar um primeiro emprego, o primeiro alojamento. A todos disse, quando me perguntaram, que a emigração não era um el dorado. Ao contrário do que o Passos Coelho disse, não chega ter uma Europa sem fronteiras e com livre circulação.

    Ninguém, absolutamente ninguém, deveria ter necessidade de sair do sítio de onde nasceu à procura de melhores condições de trabalho. É uma violência da qual nunca recuperamos e é uma fatia da vida que, por muitas coisas boas que nos traga, leva invariavelmente uma boa parte da alma.

    O tempo que perdemos com a família e amigos. Os momentos em que aparecemos no vídeo numa mesa recheada de caras conhecidas. As semanas de solidão que atravessamos nos invernos que parecem não ter fim. 

    person looking out through window

    Hoje, ainda coloco questões. Voltaria a fazer tudo de novo? Sim. Não sou um emigrante mal-agradecido ao país de acolhimento. Todo o reconhecimento profissional que obtive, devo-o à Suécia. A vida que é proporcionada à minha família, devo-o à Suécia. As oportunidades que os meus filhos têm hoje e o conhecimento que têm do mundo, devo-o à Suécia.

    Provavelmente, poderia ter sido mais fácil. Certamente ter-me-ia dado jeito alguma ajuda no início do processo.

    Mas sim, voltaria a fazer este caminho, passando pelo mesmo sofrimento, sabendo que poderia dessa forma ajudar a minha família.

    De há uns anos a esta parte, venho dizendo aos que me estão mais próximos que está na hora de voltar. Normalmente, ouço um “deixa-te estar lá que estás bem, aqui não há nada”.

    Discordo. Aí está praticamente tudo o que importa. Aos 46 anos, e 6.339 dias depois, o ciclo fechou.

    Vou para casa. Agora.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • António Costa e o momento Luísa Brandão

    António Costa e o momento Luísa Brandão


    António Costa voltou a mostrar nas comemorações do 10 de Junho como é que se consegue atravessar a turbulência dos casos da TAP, escândalos de ministros desde os tempos do Cabrita, uma pandemia, uma guerra, pobreza crescente, inflação descontrolada, taxas de juro altíssimas e famílias desesperadas e, ainda assim, manter o cargo de primeiro-ministro durante sete anos.

    Este foi o homem que chegou à liderança do PS depois de António José Seguro atravessar sozinho o deserto e, em eleições nacionais, o que formou Governo sem ser o mais votado (felizmente, acrescento eu aqui).

    Portanto, meus amigos: António Costa é hábil, político de corpo e alma (para o bem e para o mal) e pensa as jogadas uma semana antes dos oponentes.

    Naquelas tristes comemorações do Dia de Portugal destacam-se sempre três coisas: discursos aborrecidos com recados que não servem para nada, a quantidade de latas velhas que a cada ano vai desaparecendo do desfile (positivo) e o barómetro de popularidade aos políticos em funções.

    Marcelo, o habitual rei do “não chove nem molha” recolheu o apoio popular, Galamba foi o alvo-mor dos apupos e não há quem perceba como é que este homem ainda é ministro.  Costa andou no limbo, teve que suar pelo voto e… safou-se.

    Fez questão de andar a pé com a mulher no meio dos professores descontentes e enfrentou-os. Certamente ia preparado para isso, mas a paciência com que falava e era interrompido (ou insultado) sem perder a calma, mostra que nada lhe acontece por acaso.

    Deixou os jornalistas apanharem o teor das conversas com alguns professores que o apertaram e tinha as medidas do descongelamento das carreiras na ponta da língua. Costa é um rapaz que se prepara.

    Um grupo mais restrito de professores fez-lhe o favor de o insultar com cartazes de muito mau gosto e índole racista. Meus amigos: numa luta onde a razão está toda do lado dos professores, dar tiros de pólvora seca com uns cartazes que até ao Chega envergonhariam (ou talvez não), é fazer do Governo um alvo de simpatia popular. Com este tipo de pensamento tão limitado e uma visão tão reduzida da realidade, espero que nenhum daqueles professores dê aulas de história. Seria uma verdadeira catástrofe.

    A Fenprof afastou-se deste grupo de professores e traçou a linha da decência. E fez bem. Na luta pelos direitos laborais, ou em qualquer luta, não se usam argumentos racistas. Se o fizermos a causa está perdida antes sequer de começar. 

    Até que chegou o momento Luísa Brandão. Uma professora que fez 120 km para se meter na fila das selfies.

    Chegada a sua vez, disse que não queria fotografias mas sim ser ouvida. Falou das suas preocupações e de tudo o que ia para lá dos salários, nomeadamente a vertente pedagógica e a falta de condições em que os professores trabalham.

    Costa ouviu, debateu, argumentou e sacou o golpe de génio: prometeu, em frente a um batalhão de jornalistas, que lhe ligaria para discutir aqueles temas e ainda lhe pediu o número de telefone, escrito num papel para que em redor ninguém ficasse com ele. É o tocar no chão e meter-se ao nível dos problemas de cada um de nós. É o ganhar a simpatia entre quem o insulta. Saiu entre sorrisos e boa disposição.

    No dia seguinte poucos falavam do “momento Galamba” do discurso do presidente da República (quando disse que era preciso cortar alguns galhos estragados) e muitos contavam a história de Luísa, a professora da Póvoa de Lanhoso, que saíra de casa com a convicção de que chegaria à fala com o primeiro-ministro. 

    Em princípio, ninguém se lembrará de confirmar, daqui a umas semanas, se Costa efectivamente lhe ligou mas, naquele dia, o ódio ao Governo caiu em Galamba, a indiferença em Marcelo e Costa, uma vez mais, passou pelos pingos e saiu em ombros.

    Anselmo Crespo dizia na CNN que por muito mau que seja o Governo, as pessoas olham em redor e pensam nas alternativas. Ventura e Montenegro. Montenegro e Ventura. É pouco, muito pouco. Costa mete-os no bolso com duas ou três Luísas.

    A direita ainda se arrisca a perder as eleições mais fáceis da história.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Milhazes é todo um outro campeonato…

    O Milhazes é todo um outro campeonato…


    Nunca percebi o fascínio que temos por conversas vazias de conteúdo em horário nobre. Se for na tasca da minha freguesia no intervalo do Benfica, entre minis, eu não só percebo como até aprecio. Mas, na televisão, todos os dias à hora da sopa, ter de levar com especialistas em banalidades, é coisa que me aborrece.

    Repito esta parte, porque é importante: acho óptima uma boa conversa de café; só que gosto de as ter… no café. Não sei se me faço entender.

    Assim, transformar conversa de café em homília diária é coisa que me faz pensar nos critérios de quem liga a televisão.

    Durante a pandemia recebemos doses reforçadas do Froes, que nos vinha mostrar o catálogo de vacinas que os patrocinadores mandavam.

    Ou então era o Carona, que a meio do processo deixou de ser médico e passou a romancear o sofrimento.

    Eram heróis que choviam em horário nobre. Quem não se lembra dos votos ganhos pelo deputado e médico do PSD, Ricardo Batista Leite, aquando das mortes que não aconteceram no hospital de Cascais. E quando não eram estes artistas, ainda vinha o Antunes que, no meio de umas pausas das medições de montanhas, nos recomendava quantos dias é que devíamos ainda usar máscara ou ficar fechados em casa.

    Lembro-me de ouvir economistas na SIC Notícias a discutirem medidas de Saúde Pública decididas pelo Anders Tegnell na Suécia. O Tegnell, que andava por África quando o Ébola rebentou, era contestado por Marias (e aqui o nome não é ficção) que gritavam por confinamentos.

    E “nós” ouvíamos aquilo, sem contestar, e ainda chamávamos assassino a quem andava pela rua. Se há coisa que a covid-19 me ensinou foi que a estupidez humana é mesmo infinita. Bem sei que hoje já não se encontra uma alma a favor dos confinamentos, mas, na altura, iam todos na conversa de café da Maria. 

    A cada nova miséria, entre os entendidos que, de facto, percebem da poda, aparece sempre uma rock star

    E neste ano e meio de guerra, o galardão tem de ser entregue ao Milhazes. Por vezes até fico com pena do Rogeiro, ao lado de tal personagem. Entendo que nesta temática (a guerra), quase todos os analistas falem na condição de adeptos e que puxem a coisa para a sua cor. Acaba por ser inevitável. Poucos dão opinião de forma isenta e, entre estes, também se contam pelos dedos aqueles que nos fornecem alguma informação útil e relevante.

    Sabemos que o Rogeiro há 30 anos que estuda a matéria e, obviamente, é um entendido do assunto. Justifica as suas posições, mais ou menos apaixonadas, com dados. Dá para o ouvir e, pelo menos, ficar a pensar.

    Mas o Milhazes é todo um outro campeonato.

    Entendo que, no início disto tudo, o homem tenha aparecido pelos estúdios de televisão para traduzir umas coisas de russo e tal. Um espécie de Mourinho que foi fazer uma perninha a Barcelona como tradutor de um inglês, e, quando deu por ela, já estava com o pé na bola. Só que o Mourinho tem talento. Ou teve, pelo menos.

    O Milhazes não. A quantidade de disparates é de tal maneira grande, e a “informação” tão inútil, que não se percebe a quantidade de horas que lhe são dispensadas.

    Como da componente militar, aparentemente, nada percebe, Milhazes dedica-se a fazer de alcoviteira de Zelensky. Fala mal de russos em Portugal, sejam eles professores universitários ou membros de associações de acolhimento.

    Todas as semanas nos aparece ele com grandes revelações de propaganda russa, vídeos fabricados e coisas do género, com a alegria de quem descobriu a pólvora. Como se numa guerra algum dos lados falasse verdade, como se numa guerra a propaganda não fosse, sempre, e em qualquer circunstância, uma das armas. 

    Mostra-nos todos os nazis do lado russo, e transforma aqueles que, de suástica no braço, combatem do outro lado, em defensores da liberdade. Em determinados momentos, José Milhazes parece um crítico da imprensa cor-de-rosa, daqueles programas da manhã, em versão russofóbica. Nem o Avante escapa a este justiceiro. No ano passado, criticou os artistas que lá iam, dizendo que estavam a ser cúmplices com um partido que apoiava a invasão da Ucrânia. Este ano, pelo que percebo, voltou a repetir o discurso. Milhazes é, por esta altura, a melhor publicidade que a Festa do Avante pode ter.

    Este discurso bafiento contra quem pede conversas de paz ser putinista ou apoia a invasão, está ao nível do “assassinos” ou “negacionistas” de há pouco tempo para quem era contra a inutilidade dos confinamentos. Hoje somos todos, eu sei.

    E Milhazes repete esta conversa, a toda a hora, entre os disparates que vai dizendo e a ausência de análise que nos vai presenteando. Ainda assim, tal como o Froes nos vendia vacinas, esta rock star da guerra vai vendendo uns livros e percorrendo o país a espalhar a sua sapiência. A história das rock stars repete-se quase sempre, ainda que o motivo do estrelato seja diferente.

    Aqui há uns dias, no meio da cegueira ideológica, Milhazes afirmou que a Rússia era uma ditadura de extrema-esquerda. O disparate passou e aparentemente ninguém deu por ele, vindo da boca de um estalinista arrependido.

    Aliás, é caso de estudo um homem que passa quase quatro décadas numa ditadura, metade do tempo nas mãos de Putin, e só nos estúdios da SIC é que descobriu aquele ódio todo a quem lhe deu de comer e, pelo vistos, continua a dar.

    Quando chegou a casa e começou a receber gratificações do André Ventura, lá percebeu o disparate, e no programa seguinte fez a correcção e pediu desculpa. Mas não conseguiu terminar a frase sem repetir um daqueles bordões mais clássicos deste ano. Olhou para o Rodrigo Guedes de Carvalho e, com aquela cara de quem tinha terminado um tinto menos veludado, disse: “por ser uma ditadura de extrema-direita, ainda é mais esquisito que o PCP a apoie”.

    Estranho, estranho, estranho mesmo é ver como o Milhazes se consegue aguentar no ar tanto tempo com uma encenação tão mal montada. Não via um espectáculo tão pobre e duradouro desde que saí a meio do Cats, numa noite de má memória no Coliseu dos Recreios. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Umas férias no sofá

    Umas férias no sofá


    Vi uma notícia na SIC que me deixou curioso: a ocupação hoteleira no Algarve, por esta altura do Verão, não é a esperada pelo sector, havendo menos portugueses e espanhóis, além de contenção de despesas. Se bem me recordo, anunciava-se que este seria o melhor Verão de sempre. 

    É um facto que depois da idiotice dos confinamentos as pessoas saíram, as que podiam, para períodos de férias um pouco por todo o lado, mas parece agora haver alguma contenção nos gastos. A inflação com a Ucrânia atrelada parecem ser as principais causas, mas permitam-me, se possível, discordar.

    brown wicker armchair on focus photography

    Uma das desvantagens dos anos de emigração era a “necessidade” constante de usar grande parte do período de férias para regressar a Portugal, ver família, amigos e todas essas actividades incluídas no cabaz que vem com a mala de cartão.

    Para quem, como eu, tem o sonho de dar a volta ao Mundo, esta “necessidade” fazia com que fosse muitas vezes turista no meu próprio país. Quando deixei de ter horário fixo de trabalho, e me converti numa espécie de freelancer (ou nómada digital como parece agora estar na moda dizer), acabaram os 30 dias de férias por ano, e passei a trabalhar enquanto viajava, permitindo não só conhecer os sítios que sonhava como, e até muito mais vezes, estar com família e amigos.

    Durante os anos em que circulava entre o Algarve, Alentejo, Douro e Ilhas, bem antes da Lagarde e da guerra que andamos a patrocinar, sempre achei os preços muito desfasados da realidade portuguesa. Não sou rapaz do Excel, mas, no fim de Agosto, a cada regresso à Suécia, percebia que a despesa de ir a “casa” era equivalente a umas semanas na Tailândia para ver a praia do DiCaprio e a comer galinha em casca de ananás.

    photography of seashore during daytime

    Sempre considerei a possibilidade de sair de casa como uma espécie de um avaliador da qualidade de vida. Para quem gosta, claro. Não pretendo com isto dizer que uma pessoa não possa ficar entre paredes e ainda assim ser feliz. Digo apenas que, para mim, não poder ir a um restaurante, viajar, conhecer outros destinos ou ver culturas que só conhecia da televisão, me retiraria felicidade. 

    Ao longo dos anos fui vendo cada vez mais gente a passar férias em casa, não por opção, e a deixar sequer de frequentar restaurantes. Muito antes desta inflação, que nos come os salários um pouco por toda a Europa, já os hotéis no Algarve e os restaurantes em Lisboa, agora gourmet ou cheios de fusões, se iam afastando das carteiras dos portugueses.

    Sempre achei um erro o país que se dimensiona para receber quem vem de fora. E antes que apareçam aqui apoiantes do Ventura a bater palmas, explico melhor que não tenho nada contra visitantes de outras paragens. Até incentivo. Mas se as nossas cidades, praias e restaurantes deixam de ter locais, porque estes não conseguem pagar uma simples refeição, passamos a ser um destino de plástico, daqueles feitos para agradar o visitante. Perdemos a alma, a História, as raízes. Passamos a ser um Dubai da Europa e não o país com oito séculos de História e a mais antiga fronteira do mundo.

    dish on white ceramic plate

    Voltamos sempre à discussão dos baixos salários dos portugueses como desculpa e origem de tudo.

    E é verdade. É de facto essa a raiz do problema que nos leva a nem dentro do país conseguirmos tirar uns dias de férias. Mas não termina aí e por isso permito-me discordar da guerra e inflação como justificação global.

    Se no preço da habitação já é mais ou menos consensual que a especulação tomou conta do assunto (Lisboa é das cidades mais caras da Europa no rácio custo casa/ salário), no caso da restauração ou até dos hotéis, a situação é relativamente diferente. 

    Fiz a experiência de procurar um hotel de quatro estrelas em Lisboa, Roma e Paris para cinco noites na semana que agora começa. Pelo mesmo preço, cerca de 300 euros por noite, encontrei um hotel ao lado do elevador de Santa Justa, na Baixa Pombalina, outro junto ao Louvre (Paris) e um a poucos passos da Fontana de Trevi (Roma). Percebem certamente para onde vou a seguir. Como é que Lisboa, Roma e Paris cobram o mesmo, sabendo-se que, no caso português, os salários no sector do turismo são pouco mais do que miseráveis?

    well-arrange room

    Ou seja, cidades com custo de vida bastante superior e salários bem mais elevados, têm um custo idêntico para turismo e lazer. E isto já era assim antes da inflação que agora vivemos. Portugal ficou na moda há menos de uma década e começou a vender-se a quem dava mais.

    Os sítios onde comíamos um bitoque por 7 euros são agora “tasKas” ou “SerVejaRia” e o mesmo bife passou a 20 euros com “imersão de experiências tradicionais”.

    As praias onde bebíamos uma imperial ou abríamos umas sardinhas, agora servem balões de Gin com pepino a 12 euros e robalos a 30 euros. Um almoço de família, mesmo para quem trabalha na Suécia, passou a ser uma experiência a pedir mais idas à cozinha de casa. Deduzo que para quem está na média salarial portuguesa se tenha tornado algo a evitar.

    Tive várias vezes esta discussão com quem defendia que nos devíamos virar para o turismo como principal fonte de receita do país. Sempre achei um erro exportar médicos e engenheiros e importar empregados de mesa. O país fica à espera dos belgas, ingleses, alemães e dinamarqueses deixando os locais a ver a acção pela televisão ou da janela de casa.

    white and blue concrete building

    Entretanto os salários nivelam-se por baixo e quem aposta na formação, especialmente nas áreas técnicas, vai-se embora. De repente, o país deixa de estar na moda ou, por exemplo, Turquia e Egipto recuperam dos atentados e da insegurança, e vendem o peixe, o sol e o mar, ainda mais baratos… e lá se vai a estratégia das “imersões de temperos”, dos campos de golfe em áreas de seca constante ou das residenciais que se querem passar por suites em Manhattan.  

    Uma coisa é criar condições para sermos visitados, o que acho bem e me parece inteligente, dada a oferta tão grande que um país tão pequeno como Portugal tem. Outra, bem diferente, é tornarmos o território inacessível para quem cá está o ano inteiro, tornando a classe média e os trabalhadores em geral um grupo à parte, mesmo que sejam maioritários, na utilização das infraestruturas do seu próprio país.   

    Com os salários de 900 euros que chegam à maior parte dos trabalhadores estamos, parece-me, a chegar ao ponto em que ir a um restaurante ou usufruir de umas semanas de férias algures, se tornou um luxo.

    A qualidade de vida de um povo mede-se, em grande parte, para além das condições de trabalho, por aquilo que conseguimos fazer nos períodos de lazer. Aqui há uns anos, desesperado com os invernos suecos, perguntava a um colega, nativo, quantos anos ele se tinha demorado a habituar ao frio e à escuridão. Ele disse: “nunca me habituei e por isso, pelo menos duas vezes em cada inverno, vou para um sítio qualquer com sol. Tailândia, ilhas espanholas, Dubai, Caraíbas…tudo menos seis meses de nuvens”.

    person holding a plate of salad

    Nem sequer lhe perguntei como é que ele pagava isso porque, obviamente, num sítio onde os salários mais baixos estão perto dos 3.000 euros, não há discussão sobre ir ou ficar num período de lazer. E isso, apesar do frio e da escuridão, é qualidade de vida.

    Nós, com sol para dar e vender, uma imensidão de mar e praia, restaurantes excepcionais e esplanadas a perder de vista, vamos, aos poucos, ficando condenados a dividir o tempo entre o local de trabalho e o sofá da sala, em frente à televisão. É como viver à porta do paraíso, mas não conhecer o porteiro.

    Os empresários do Algarve estão desiludidos com a taxa de ocupação? Tenho duas sugestões: baixem os preços das diárias ou aumentem os salários dos funcionários. Qualquer uma delas ajuda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Pão e circo

    Pão e circo


    Alegadamente (temos sempre que começar a frase por aqui), assessores do PSD receberam 200.000 euros do Parlamento durante o “reinado” de Rui Rio. Este é o rastilho para mais um caso que promete uns dias com uns directos deprimentes até que vá para a gaveta do esquecimento, nomeadamente na altura das conclusões.

    Uma das coisas que nunca percebi nas buscas relâmpago da Polícia Judiciária (PJ) é a facilidade com que as televisões estão, a tempo e horas, no local da acção. A PJ parece ter uma linha vermelha para avisar os meios de comunicação de cada vez que montam o circo.

    Devo dizer que a palavra não é escolhida ao acaso. Tudo isto me parece de facto um circo. Casos e mais casos iniciados em directo no Jornal da Noite e, 10 anos depois, ainda se aguardam conclusões. A justiça segue uma agenda partidária que é mais ou menos óbvia e cansa de tão básica que é. Fazem de nós, os eleitores, uma espécie de gado que não percebe o que se passa e que abre a boca de espanto a cada novo escândalo.

    fire, calls, hot

    Com o PS aflito, envolto nos escândalos da TAP e da recuperação de computadores pelo SIS, recuperou-se o caso Tutti Frutti, em lume brando há sete anos. Alguns diretos, escutas de dirigentes do PSD a comprovar um profundo desprezo pelo erário público e muitos debates sobre a corrupção nas juntas de freguesia, com umas caneladas em Medina. O PS respirou. 

    Voltou Pedro Nuno Santos, que deu uma lição na Comissão Parlamentar de Inquérito e explicou, em poucas palavras, por que será o sucessor de António Costa. Seguiu-se mais contestação dos professores, novas dificuldades com as taxas de juro, alunos sem professores nas provas finais, falta de médicos nas urgências e discussões em torno da redução de impostos para ajudar as famílias durante a crise inflacionária. 

    Voltam as dificuldades do PS e sai a Policia Judiciária em nova rusga, agora em sedes distritais do PSD e até na casa de Rui Rio. Reparem que, nem o caso Marquês, que já pertence à pré-história, chegou ao fim e ninguém consegue manter actualizado o número de investigações abertas. O Ministério Público queixa-se da falta de pessoal (imagino que não seja uma carreira atractiva) mas não deixa de meter a mão em tudo, pelo menos no início, sem concluir qualquer coisa que se veja. 

    Andaram anos a aparecer no Estádio da Luz, de 15 em 15 dias, sempre com directos da CMTV, sem conseguirem chegar a bom porto. Prenderam Sócrates de forma “hollywoodesca” nas mangas do aeroporto, sem que, ao fim de anos, tivessem sequer acusação formada. Parecem mais uma comissão de festas de aldeia do que uma brigada de investigação ao crime. Largam os foguetes, tiram as primeiras imperiais, mas a meio do concerto já estão em casa, deixando a limpeza do recinto para quem vier depois.

    A imagem de Rui Rio na varanda, enquanto lhe faziam buscas em casa, a responder a perguntas de café que os jornalistas faziam cá em baixo, é um momento ligeiramente deprimente da nossa democracia. Não meto as mãos no fogo por político algum do centrão, mas parece-me algo inócuo ir a casa de um antigo líder para encontrar registos de transferências de dinheiro. Não seria mais fácil ir à Assembleia da República, uma vez que foi dali que veio o dinheiro?

    Repare-se que, em momento algum duvido da corrupção e desvio de dinheiro nos bastidores da política portuguesa. Ainda assim, sem nunca ter votado em qualquer partido de direita, se tivesse que apostar as minhas fichas, não colocaria Rui Rio nesse papel. O homem não será certamente o político mais carismático mas parece ser uma pessoa séria.  

    Hoje e amanhã vamos discutir o tema e ver “senadores” como Miguel Relvas a analisar a situação. Também faz parte do circo. É aliás outro tesourinho deprimente que nós, eleitores e espectadores, vamos tolerando.

    Os políticos que hoje estão envolvidos em escândalos serão aqueles que daqui a uns anos, com novos penteados e os dentes arranjados, farão as delícias do comentário televisivo. Paulo Portas passou uma pasta mais branca nos dentes e deixou os submarinos bem lá atrás, para nos falar de moralidade nos jornais da TVI. Já Miguel Relvas, o licenciado (alegadamente) das quatro cadeiras, apagou a Tecnoforma do Curriculum Vitae, penteou o cabelo para trás e é um homem novo, que nos conta como o dinheiro público deve ser bem gerido. 

    Lá para domingo já deveremos ter uns quantos incêndios de proporções catastróficas e os directos, em princípio, passarão para as autoestradas em chamas e os debates incidirão sobre os Kamov e os contractos de aluguer de Canadair espanhóis. O PSD que vá arranjando qualquer coisa na TAP porque, certo como o destino, a cada novo aperto na governação, lá virá qualquer coisa laranja para as “breaking news“. Com as Europeias já no horizonte, é normal que o “governo desgastado” não queira correr riscos.

    Há que ir alimentando a indignação diária e mantendo o nível de espectacularidade das notícias. Só queremos ter mais “alertas” e “breaking news” e, como tal, estamos no caminho certo. Ninguém quer eliminar a corrupção na política, acabar com o desvio descarado de fundos públicos ou sequer erradicar esta ideia de que ser político é uma profissão para a vida. Muito menos terminar o compadrio entre políticos e empresas de amigos.

    Há que mexer muito para dar a sensação de movimento e, essencialmente, ficar no mesmo sítio. O pão e o circo, que nos vão amarrando ao terceiro mundo.

    Se possível, e se não for pedir muito, os partidos de esquerda que aproveitem este atirar de lama ao centro, para mostrarem aos eleitores que são e podem fazer diferente. Já era um serviço que faziam à democracia.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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