Autor: Tiago Franco

  • Mas afinal que mal vos fez o Avante?

    Mas afinal que mal vos fez o Avante?


    Três anos depois, ainda estamos, por aqui e por ali, a discutir a mesma coisa: o ódio ao Avante. 

    Para um povo que gosta de festa em geral, venha ela de onde vier, esta comichão com a rentrée do Partido Comunista Português é algo que me fascina.

    Primeiro, foi a pandemia e o perigo de contágio na Quinta da Atalaia. Depois, foi a guerra e a fábula do apoio à Rússia. 

    Notem que eu até compreendo os gritos do Milhazes sobre o tema: ele, que durante algumas décadas andou esquecido a viver (e comer) à custa do regime que agora critica, precisa desta sua versão de Milhazes para continuar em antena. Parecendo que não, é mais confortável estar na antena da SIC do que numa cabana na Sibéria a traduzir as memórias do Estaline.

    Agora vocês, leitores inteligentes e sem amarras, podem olhar para o Avante de uma forma mais prática e menos apaixonada.

    Digam-me: que tipo de português não aprecia um bom festival gastronómico? Tasquinhas com diferentes sabores a preços económicos. Iguarias dos 18 distritos portugueses. A possibilidade de almoçar espetada em pau de louro (na zona da Madeira). Jantar uma carne de porco à alentejana (na zona de Beja). Um moscatel para abrir o apetite na casa de Setúbal. Uma queimada bem forte, lá para a madrugada, na Galiza, ali perto das tascas internacionais.

    Portanto, se não gostam de música, livros, política, teatro ou actividades desportivas… podem ir lá só pelo comer.

    Se gostam de música, normalmente o cartaz é interessante e distribui-se por mais do que um palco. Há uma orquestra com obras clássicas, há música popular, há rap, há metal, há rock, há músicas do mundo; enfim, o teu estilo passa ou passou por lá, certamente. 

    Depois de se ter “pedido”, no ano passado, que os artistas boicotassem a Festa do Avante, este ano o nosso Zé Milhazes foi mais comedido e pediu-lhes só que anunciassem, antes de cada actuação, se apoiavam a invasão da Ucrânia ou não. Reza a lenda que o bom do Zé exigiu aos Red Hot Chilli Peppers que declarassem o seu desagrado com o consumo de álcool pelos jovens, antes de actuarem no Super Bock, Super Rock.

    Eu aprecio muito esta fábula do “se vais ao Avante, apoias a invasão da Ucrânia”. Desde logo porque tenho uma vida onde a pressão é uma constante e necessito de momentos de descontracção. A frase: “o PCP apoia a Rússia de Putin”, tem sido a minha favorita desde que aqueloutra do “são só 15 dias para achatar a curva” saiu de circulação. 

    Andava o sr. Putin a vender gás por toda a União Europeia e aos beijos com os principais líderes, e já o PCP escrevia contra as suas acções. Tal como no tempo de Iéltsin. Mas Milhazes, que andava nessa altura a fazer pela vida e que classificou em Junho, o regime de Putin como extrema-esquerda, não deve ter reparado de que lado ficou o PCP.

    Continuando…

    Vamos então assumir que também não ligam a música, e que a comida não vos puxa. Podem ir ver teatro ou até navegar perdidamente pela feira do livro. É certo que encontrarão por lá as obras do Manuel Tiago, mas, que diabo!, algum livro vos captará a atenção. 

    Se a literatura também não for a vossa praia, então é porque, em princípio, gostam de jogar à bola. Pois bem, formam uma equipa e entram nos torneios. No fim, bebem umas cervejinhas e, se ignorarem as camisolas do Che, até parece que estão na praia com os amigos.

    Portanto e em resumo: há uma infinidade de razões para irem a uma festa, para lá da componente política, por esta reunir vários tipos de eventos num só local.

    Dito isto, mas se vocês forem do tipo que não gosta de comer…

    Ou se forem do tipo de terem pezinhos de chumbo para a dança…

    Ou se forem do tipo de não querer jogar uma futebolada…

    Ou se forem do tipo de desdenharem um copo…

    Ou se forem do tipo de adormecer num teatro…

    Ou se forem do tipo de nem estarem virados para bancas de livros…

    Ou se forem do tipo de nem apreciarem um concerto…

    Ou, enfim, se forem do tipo de nem sequer quererem estar na converseta entre amigos…

    Então… vocês são só chatos, perdoem-me a revelação. 

    Mas, nesse caso, ainda há uma solução: fiquem em casa… a ver o Milhazes.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um dia, numa realidade paralela

    Um dia, numa realidade paralela


    Já por aqui contei que grande parte da minha  vida em território português acontece na Margem Sul (do Tejo). Fui ali criado e boa parte da minha família continua por lá, a viver. É ponto de paragem obrigatória e, mesmo sem querer, dou por mim a analisar a transformação dos subúrbios a sul de Lisboa nas últimas duas décadas.

    É particularmente mais trabalhoso nesta altura, com o regresso dos emigrantes e a enchente de gente naqueles espaços que já são, por definição, sobrelotados. Foi para isso que se construiu o subúrbio. Para encher de gente da classe trabalhadora, que não consegue viver nos grandes centros, mas que para lá se desloca diariamente para trabalhar. Ou era este o objectivo. Hoje, toda a classe média foi empurrada para os subúrbios, porque já ninguém consegue pagar uma renda ou comprar uma casa no centro de Lisboa.

    A mudança é, daquilo que me lembro, ainda assim evidente. Por exemplo, nas praias. Quando eu era miúdo, a praia da Fonte da Telha era uma zona de péssimos acessos, casas ilegais e barracas que faziam as vezes dos restaurantes. Um pouco como a Costa da Caparica, mas sem os parques de campismo e aqueles horrorosos prédios de 10 andares. Eram as praias dos pobres, da classe trabalhadora, daqueles que nem ao Algarve conseguiam chegar. Era onde eu passava o meu tempo nas férias da escola e, julgo, onde aprendi a nadar, entre um ou outro susto em dias de ondas mais destemidas .

    Hoje, a mesma Fonte da Telha, continua a ser uma praia com péssimos acessos e um caos indescritível para estacionar, as casas ilegais por lá continuam, mas as barracas, que serviam os petiscos, levaram umas madeiras melhores e mais polidas, e passaram a incluir nos menus palavras como sunset, lounge e espumante.  Nada contra o melhoramento de espaços e a “fusão de sabores”. Mas já sangria de espumante questiono-me sempre porquê…

    Ouvir uma bossa nova enquanto se come um bom peixe grelhado, uma nasigorada (uau), um tom yum (como?) ou um arroz com coisas do mar e aromas, parece-me sempre boa ideia. Mesmo que acompanhado por sangrias cheias de gasosa, gelo e mirtilos. Mas, no fim, quando a conta chega e a festa fica em 60, 70 ou 80 euros por pessoa, eu começo a olhar em redor. Não para fugir, note-se, mas para perceber se entre uma framboesa e um acorde do Tom Jobim, fui teletransportado da Fonte da Telha ou de São João da Caparica para Nice, Miami ou Veneza.

    high rise buildings near green trees under blue sky during daytime

    O carro continua estacionado num monte de entulho, de onde não sei se sairá, os buracos para aqui chegar ainda não foram tapados, o simpático funcionário, que foi partir gelo para encher aquele jarro, recebe o mesmo salário mínimo há três anos. Que sentido faz cobrar ao cliente um valor como se estivesse noutras paragens? Por onde se distribui esse lucro? É na envolvente que os meus olhos encravam sempre.

    Pior ainda foi perceber que começa a ser normal e corriqueiro, em contas astronomicamente altas, acrescentar uma sugestão de gorjeta na casa dos 10, 15 ou 20%. Ou seja, a introduzir o modelo liberal americano onde os contratos de trabalho na restauração incluem a expectativa da gorjeta definida como “recomendável”. Portanto, não bastam os preços completamente desfasados da realidade portuguesa, em especial da classe trabalhadora que vive nos subúrbios, e ainda começamos a contribuir para a normalização da precariedade do pessoal que trabalha na restauração.

    Uma amiga disse-me que tínhamos que ir cedo, as filas eram enormes para arranjar mesa. E assim é. Há que reservar, há que aparecer cedo, há que correr para conseguir beber sangria a 35 euros o jarro. Ou as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE) andam a falhar e a média salarial subiu muito, ou então aquela minoria que ganha bem descobriu apenas recentemente as “praias dos pobres”. Era pelo menos isto que eu pensava arriscando um raciocínio simples de contabilista.

    Saí dali a cantarolar a Garota de Ipanema e a arrotar o excesso de 7up da sangria e fui ter com o meu irmão, que me pedira ajuda para procurar casa. Enquanto conduzia, ouvia a notícia das bombas de fragmentação cedidas pelos Estados Unidos à Ucrânia e gostei particularmente da justificação dada. Na guerra contra a Rússia, a Ucrânia já esgotou a capacidade de produção de munições de todos os países da NATO, de modo que agora tem de se recorrer a uma bomba que mata mais civis do que militares.

    Está bem visto. Não sei se se lembram, mas antes de nos pedirem para pagar e empobrecer a favor desta guerra, garantiram-nos que os russos só tinham balas para mais um mês. Continuar a meter dinheiro na Ucrânia, agora que a contra-ofensiva parece estar a falhar, é como tirar a água do mar com uma colher de chá. Já não há paciência, nem orçamento, para moralismos bacocos. A realidade é o que é, e não vale a pena camuflar. Ou se sentam a dividir terreno ou a coisa só se resolve com a NATO a meter as botas no terreno.  

    Desligo o rádio, porque já avisto a baía do Seixal lá ao fundo, onde o meu irmão me aguarda. Estamos na parte velha e mais decrépita que há anos está a ser recuperada, e, por isso, se passou a designar por “Seixal Histórico”, em frente à baía. Nos meus tempos de escola, aquela baía tinha um nome, ligeiramente desagradável para escrever num jornal, hoje designa-se por “maravilhosa” e com “as melhores vistas de Lisboa”. Isto convertido em euros ao metro quadrado é um pequeno mimo.

    Falámos com um promotor, homem simpático e ágil no argumento, que nos disse: “Este T0 agora custa 80.000 euros. Assim, todo partido. Depois de renovado fica em 180.000 euros”. Eu sorri e perguntei-lhe se, no fim da obra, estaria a olhar para o Sena ou ainda se veria o Tejo. Fomos embora com destino a algo mais modesto, sem água por perto, para alugar. Era tão modesto, mas tão modesto, que era um anexo a uma casa. Quase sem janelas e num estado pouco mais do que lastimável, numa das piores zonas da Margem Sul. O senhorio achava que 850 euros mensais era o valor apropriado para aquela barraca. Isto, no tal país, onde 70% das pessoas não ganham sequer isso por mês.

    Aqui já me deitei a pensar um pouco mais, sem no entanto aborrecer o meu irmão com as indignações. Alguém me convencerá que os mercados se ajustam? Ou que a habitação não pode ter limites nos preços? Ou que este escândalo de especulação acontece pela falta de oferta? Não, são argumentos que não colhem.

    Como é que se pode falar em falta de oferta quando o Estado não consegue sequer contar os imóveis devolutos e desocupados que possuí? Como é que assistimos, de braços cruzados, nós e o Governo, ao aumento das taxas de juro que transportam os créditos à habitação para valores superiores aos salários e, mesmo no arrendamento, à normalização de preços completamente desfasados da realidade?

    Nada pode ser feito? Claro que pode.

    A começar pelo Governo, que deve fornecer mais habitação a baixo custo, construindo ou reabilitando o que já existe e é seu. E no aluguer feito por privados, pode obviamente impor-se um tecto nas rendas abusivas. Deixam os senhorios de alugar? Pois, que deixem. Ao preços de hoje também não servem a ninguém.   

    Aquilo que não pode ser é o contribuinte anónimo ficar preso entre a espada e a parede. Ou tem de suportar juros definidos por um BCE, que não elegeu, até perder a sua casa, ou tem de deixar 80% do salário para alugar uma barraca num subúrbio. Não me digam que a culpa é de quem trabalha e paga impostos. E não me digam que é a maioria que sofre com isto, que tem de se adaptar ou mudar. Mudar para onde?

    a person holding a wine glass

    Estas pessoas, que se vão deslocando para a Margem Sul por já não conseguirem viver em Lisboa, são as que, como se percebe, além de contribuírem para mais trânsito no acesso a Lisboa (um problema com décadas), correm o risco de, a este ritmo de empobrecimento, daqui a uns anos, já nem na Margem Sul conseguirem viver. Pelo andar da carruagem, ainda vamos conseguir repovoar o Alentejo.

    No fim do dia fico com a impressão que estou a viver numa realidade paralela. Ainda estou ali, no mesmo subúrbio, sem perceber bem como é que tudo aquilo cola. Algumas zonas melhoradas, é verdade;  outras particularmente feias, muitas cheias de erros arquitectónicos e calamidades de betão. Nem a recolha de lixo, problema básico das sociedades desenvolvidas, está resolvido ou sequer os acessos têm condições. Há engarrafamentos por todo o lado e estradas esburacadas a perder de vista. Há barracas de chapa, de madeira, de tijolos que vão sobrando. Mas pedem, a quem ali vive, por vezes em condições que dão vergonha só de olhar, que aceitem custos dignos de uma qualquer capital europeia.

    Na casa, nos impostos, nos combustíveis, na electricidade, na restauração, até no simples acesso a uma praia onde se paga para entrar. Propriedade pública controlada e gerida por privados onde pobres não passam.

    A Margem Sul, um pouco como o resto do país, vive de cosmética para disfarçar os problemas reais. Vende lounges, sunsets e coisas gourmet, para quem lá fica umas horas, mas esquece-se de tirar o lixo amontoado da frente dos prédios, de tapar as crateras do alcatrão ou de acabar com o inferno do acesso à ponte. Faz-me lembrar uma pessoa que conheci em tempos, pouco fã de banho e que disfarçava a terra das unhas com verniz.

    Ainda assim, como um homem sofre a ver a desorganização do país onde nasceu, mas gosta mais dele do que de batata frita, também eu me vou esticar e esperar por dias melhores.

    Desejo umas óptimas férias aos leitores do PÁGINA UM e se vos tocar uma dessas sangrias de espumante, coragem.

    Até breve!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O (alegado) gamanço de Armando e a justiça poética sobre Drahi

    O (alegado) gamanço de Armando e a justiça poética sobre Drahi


    Quanto mais leio sobre Armando Pereira, o co-fundador da Altice, mais aprecio este magnífico enredo. Começo pelo fim, pelo extraordinário Bugatti Centodieci. Um carro de luxo, raríssimo, avaliado em oito milhões de euros e com apenas 10 exemplares produzidos. Três deles pertencentes a portugueses. Um pertence ao Cristiano Ronaldo, um rapaz que ganha anualmente o suficiente para comprar a produção inteira; e os outros dois estão à guarda de Armando Pereira e do seu braço direito, Hernâni Vaz Antunes. Estão não – estavam. Agora foram fazer a rodagem para a garagem da Polícia Judiciária.

    Qual é a probabilidade de num dos países mais pobres da Europa se encontrarem 30% dos proprietários de um dos carros mais exclusivos do Mundo? Pequena, obviamente. A não ser que esse país seja Portugal, claro.

    Se o país for Portugal, nesse caso chamaremos de “herói nacional” a alguém que compra uma empresa pública, reduz salários dos trabalhadores e aumenta a própria fortuna. Armando Pereira e o sócio fundador da Altice francesa, o franco-israelita Patrick Drahi, ficaram conhecidos por comprar empresas e de imediato reduzirem custos. Numa conferência de imprensa em 2015, disse Drahi: “Eu não gosto de pagar salários. Pago o mínimo que puder“.

    Drahi é, portanto, um empresário que tem, pelo menos, a virtude de assumir ao que vem: maximizar o lucro explorando os trabalhadores. Ou, como lhe chamariam os liberais, um visionário. Já Armando Pereira era conhecido como cost killer (mata-custos) e entrou na antiga PT a ceifar tudo o que conseguiu.

    Em 2015, António Pires de Lima, então ministro da Economia, apelidou Armando Pereira de “herói de Vieira do Minho e até nacional” durante o discurso de inauguração de um call center da Altice naquela vila nortenha. Um herói naqueles sítios onde pagaria pouco mais do que o salário mínimo nacional a cada um dos desgraçados que ali passaria, horas, a responder às queixas dos clientes.

    Armando Pereira garantia então, também em 2015, que não iria mexer nos salários, mas que renegociaria os contratos com os fornecedores. Sabe-se hoje que parte do esquema que resultou no desvio de mais de 250 milhões da Altice passava exactamente pelos fornecedores que, alegadamente, alinhavam em pagar luvas ao empresário e à rede de comparsas, ou então saltavam fora do negócio. Sabe-se hoje que também aos funcionários foram cortadas regalias deixando-os apenas com o salário-base.

    Armando Pereira, co-fundador da Altice.

    Eis mais uma história de um self-made man lusitano, que foi trilhando o caminho do sucesso à custa da exploração alheia e do crime financeiro. Segundo suspeita o Ministério Público, o plano de desvio de dinheiro tinha duas áreas de actuação: a primeira seria comprar imóveis da antiga Portugal Telecom (PT) em Lisboa, nas zonas nobres, e revender com lucros fabulosos, deixando a especulação fazer a maior parte do trabalho; a segunda, seria a chantagem sobre fornecedores para continuarem a fazer parte do negócio.

    Um esquema simples, dir-se-ia, tendo uma rede de pessoas certas nos locais certos, como era o caso.

    Há uma parte comum em todas as novelas dos self-made man à qual Armando Pereira também não foge. A circulação de dinheiro sem deixar rasto pelas famosas offshores. Era aqui que entrava o empresário e amigo de Braga, Hernâni Vaz Antunes, que criava empresas fictícias na Zona Franca da Madeira e no Dubai, que depois faziam as transferências do dinheiro desviado.

    O crime financeiro existe porque os governos permitem – é bom que nos vamos lembrando disto. As Zonas Francas, as offshores, o que lhes quiserem chamar, não aparecem por auto-determinacão de meia-dúzia de malucos como o Reino do Pineal (também é uma história boa para outro dia). Aparecem de forma legal e autorizada por praticamente todos os países do planeta.

    A Suíça, por exemplo, faz vida a guardar dinheiro sujo desde que existe, e ninguém se parece preocupar com isso. Os Panama Papers mostraram esquemas gigantescos com lavagens de dinheiro nas Caraíbas e, no essencial, nada mudou. Vivemos num mundo onde os mais ricos criam leis que os protegem. É factual.

    Patrick Drahi, co-fundador e presidente do Grupo Altice.

    O duo Armando e Hernâni formaram assim uma dupla de respeito na arte de roubar. O primeiro criava as condições e o segundo executava, Um exemplo disso foi a empresa de mobiliário criada por Hernâni Antunes, em Braga, que viria a ser a fornecedora escolhida para a remodelação das lojas MEO. O dinheiro depois, como já adivinhou o caro leitor, ia dar aquela voltinha pelo Dubai até ser transformado num Bugatti, num heliporto ou num campo de ténis de uma moradia qualquer em Vieira do Minho. Certo, certo, é que jamais apareceu no recibo de vencimento dos trabalhadores da MEO.

    Desconfia-se que os amigos de Braga tenham ficado com uma comissão do que a Altice pagou a Cristiano Ronaldo pelos contratos de publicidade e que outros 20 milhões de euros tenham sido desviados do pagamento de direitos televisivos ao Futebol Clube do Porto, e a verba posteriormente dividida por homens da confiança de Hernâni Vaz Antunes e de Pinto da Costa.

    Por esta altura do enredo imagino o que andará pela cabeça de Patrick Drahi. O CEO do Grupo Altice, que detesta pagar salários, mas que é roubado dentro de portas por altos quadros. Justiça poética meus amigos, daquela que nos faz sorrir.

    Pergunto-me o que moverá alguém, que já é milionário, a optar por crimes desta magnitude correndo o risco de perder tudo? Alguém que se desloca de avião privado ou de helicóptero, que abre a garagem e vê 50 carros, que tem casas em Nova Iorque, Paris e Ilhas Caimão e… não consegue segurar a ganância? Sente que precisa de mais e que tem de meter todos em risco? Sim, todos. Trabalhadores incluídos.

    As aquisições da Altice são, por norma, feitas a crédito, e portanto, escândalos destes podem criar incumprimento e instabilidade na banca. Como todos sabemos, a cada derrocada empresarial são os trabalhadores que ficam sem sustento. Os Armandos Pereiras têm as fortunas escondidas algures, num sítio onde o Fisco não chega, e por isso, entre fugas, advogados de elite e recursos em tribunal, vão sempre seguir a sua vida.

    É aliás curioso que o Estado português, sempre aflito por receitas, ande atrás de simples emigrantes para lhes taxar o salário, quando já pagam impostos no país de acolhimento, mas veja sinais evidentes de extrema riqueza em pessoas com fortunas escondidas e nada faça. Hernâni Antunes é, na verdade, um fantasma para o Fisco lusitano, uma vez que há muitos anos é residente oficial no Dubai e Armando Pereira, com boa parte da fortuna gerida por uma offshore no mesmo sítio (pela mão do pai do genro), nem permite que se saiba a totalidade do seu património.

    Ninguém se muda de armas e bagagens para uma offshore se não tiver algo para esconder. Essa é uma lição que todos já aprendemos e é exactamente para isso que esses instrumentos financeiros existem. Legais e consentidos pelo poder, relembremos.

    Finalmente, e antes que se chegue a qualquer lado na investigação (se é que alguma vez chegaremos), pergunto: o que ganhou o país com a venda da PT pública para uma entidade privada? Nada. Absolutamente nada. Reduzimos a massa salarial dos trabalhadores, colocámos em risco os seus postos de trabalho, aumentámos a fortuna de vários milionários e ainda corremos o risco de ter nova corrida aos fundos de desemprego. Já nem falo no detalhe de o Estado Português deixar de controlar uma área vital como as telecomunicações…

    Este escândalo, mais um, serve também para acabar com um dos dogmas liberais a propósito da gestão pública (em teoria despesista e má) e a gestão privada (em teoria mais rigorosa e eficaz). Não é o ser público ou privado que decide se a gestão de uma empresa é boa. Espero que pelo menos essa parte do assunto fique hoje fechada. No fim, tudo se resume a competência e honestidade, e aqui, como em tantos outros casos portugueses, estamos perante mais um self-made man que veio de baixo e “subiu a pulso”: só que foi a roubar, estão a ver?

    Foi, de novo, a roubar. Colocando em risco os trabalhadores e usando bens (imóveis) que tinham sido adquiridos ao património público português. Foi uma coisa à oligarca russo nos tempos de Yeltsin. Armando Pereira não é um herói nacional. Nem de Vieira do Minho. Nem sequer da sua aldeia natal onde levou o Tony Carreira para alegrar uma festa, oferecida por ele, aos habitantes. Armando Pereira é apenas mais um milionário que roubou, e muito, para ali chegar. E que piorou a vida de quem para ele trabalhou para que o seu lucro fosse maior. Num país decente não voltaria a sair da prisão; em Portugal, provavelmente, vai “repor a honra” nos tribunais.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ronaldo e a bol(h)a

    Ronaldo e a bol(h)a


    Sempre que se abre a boca para falar de Ronaldo é preciso compreender que vamos ofender alguém. Há o grupo de indefectíveis, onde se inclui o meu filho, que me obriga a ver jogos do campeonato saudita; e os outros, que vão lendo a realidade como ela é.

    O ponto de partida para mim, quando penso em Cristiano Ronaldo, é no extraordinário atleta, melhor futebolista português de sempre e, provavelmente, a pessoa que mais deu a conhecer o nosso país pelo Globo. Reconheço, sem grandes problemas, que pessoas que não faziam a mínima ideia onde ficava Portugal, foram ao mapa ver por causa de Ronaldo. Portanto, até ao nível dos conhecimentos de Geografia, até de cada adepto escondido na Micronésia, o nosso madeirense colaborou.

    Ainda assim, depois de década e meia de glória, começa a ser penoso ver esta transformação de ídolo planetário para o “Gajo de Alfama” (dos tempos em que o Ricardo Araújo Pereira tinha piada). As recentes declarações de Ronaldo, puxando para si o mérito de abrir o caminho das Arábias para mais jogadores de renome, qual Vasco da Gama dos petrodólares, soam um pouco mal.

    Fizeram-me lembrar aqueles tempos de terror em que Jorge Jesus, envergando o Manto Sagrado, nos envergonhava a cada conferência de imprensa com as suas bazófias a perder de vista. Certo dia, numa palestra na Faculdade de Motricidade Humana, Jesus, o Poeta da Reboleira, disse que queimara muita pestana para inventar uma Ciência. Assim mesmo, inventar uma Ciência.

    Eu aprecio homens da Ciência, convenhamos. Até porque sem as suas descobertas dificilmente eu teria as bases que trazem o pão cá para casa. Mas, como diria o nosso Costa, vamlá a ver, decidir se os laterais fazem o corredor e os extremos vão por dentro ou, em alternativa, jogamos com um meio-campo a três e dois extremos puros, não é a mesma coisa que descobrir a cura para o cancro. Ou sequer, vá lá, desenvolver uma Via Verde que poupa umas horas de fila na segunda ponte do Feijó. Aliás, neste caso, foram portugueses que inventaram aquilo. Homens da verdadeira Ciência.

    Bem sei que países pouco desenvolvidos fazem do futebol um desígnio nacional. São programas de debate diários em todos os canais informativos sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que vai acontecer à vida dos artistas da bola. Quando há jogo debate-se o penalti e quando não há fala-se da transferência e dos rumores. Diariamente. São 12 meses por ano com paragem no Natal para podemos ver as fotos dos jogadores a comer bacalhau.

    Também eu sofro com a bola, especialmente quando ela desliza na Catedral, e não me quero por isso excluir da parolice nacional em torno da caixa de Pandora de Ronaldo. Dir-me-ão que a um milionário todo o disparate é permitido. Se Elon Musk, tido por muitos como um génio, pode dizer asneiras em barda, por que não poderá Ronaldo, um milionário com baixa escolaridade, fazer o mesmo? De facto, pode, mas não deixa de ser deprimente.

    Ronaldo deixou de jogar futebol, um jogo de equipa, há uns bons anos, provavelmente antes sequer de chegar à Juventus, e começou então a praticar uma modalidade individual chamada “quebrar recordes”.

    Pelo caminho, ia reclamando com quem não o ajudava a chegar lá e culpando os restantes 10 em cada insucesso. Continua no seu direito, mas, visto daqui, foi quando comecei a olhar mais para o lado. Saber envelhecer no mundo das estrelas planetárias não deve ser fácil, acredito que não; ainda assim, sempre imaginei Cristiano Ronaldo a sair de cena pela porta grande e sem se arrastar nos relvados, como faz agora.

    Cristiano Ronaldo decidiu desafiar o tempo e continuar pela única porta que se abriu: a da ditadura saudita, e da que teimosamente, na seleção nacional, não se fechou.

    Note-se que não faço parte do coro de puritanos que acha que um futebolista não deve validar uma ditadura. Era o que mais faltava. Anda o famoso “Ocidente” a fazer da Arábia Saudita um parceiro privilegiado há décadas, a fechar os olhos aos crimes perpetrados no seu território em nome dos barris de petróleo e esperava-se que um atleta, a quem se oferece uma fortuna incalculável, fosse recusar uma mudança para o deserto? Sabe lá o Ronaldo a História da Arábia Saudita…

    O Macron, presidente francês, sabe certamente e, mesmo assim, disse alto e bom som, num encontro de líderes a propósito das sanções à Rússia, que tinham que pedir aos sauditas que aumentassem a produção. Portanto, deixemo-nos de moralismos bacocos.

    Nós validamos, há muito, todas as ditaduras que são boas para o negócio. E tal como as elites políticas, Ronaldo foi fazer pela vida e entrar num circo a troco de dinheiro. Repito: está no seu direito. Mas tentar convencer toda a gente, um ano depois, que o campeonato saudita é muito bom, ou que abriu o caminho para outras estrelas, é apenas triste. Aquilo que abriu caminho foram as fortunas que os xeques sauditas, que exploram e lucram com os recursos do país, resolveram distribuir um pouco por todo o lado.

    Jogadores em fim de carreira ou ainda com muitos anos nas pernas foram aliciados, numa tentativa de trazer o país para a alta roda futebolística. Um pouco como o que chineses tentaram fazer há cerca de 10 anos, com a construção de uma Superliga, que levava alguns dos bons talentos da Europa, mas modelo ao qual se colocou, entretanto, um travão nos gastos por ser insustentável.   

    Depois do Mundial do Qatar, outra ditadura amiga – os sauditas – tentam, através do futebol, dar uma nova imagem do país. Ronaldo alinhou, e agora são vários os nomes famosos que se juntarão a ilustres desconhecidos.

    Entre eles, Ruben Neves, internacional português, foi claro e objectivo nas suas declarações: saiu da Premier League, onde era um ídolo no Wolverhampton, porque o dinheiro ganho na Arábia Saudita permitiria dar à família uma vida diferente e, provavelmente, garantir o conforto da geração seguinte. Tudo bem, tudo certo. Nada de conversas sobre o “projecto” ou a “Liga Saudita vai ultrapassar a Turquia e a Holanda”, como nos informou Ronaldo, o homem que abre caminhos.

    Para finalizar a palestra, o nosso descobridor, ainda disse que a Liga Italiana também estava morta quando ele foi para lá e que não voltaria para a Europa onde o futebol se tornara muito fraco. Nem Zlatan Ibrahimovic, dono e senhor da maior arrogância que se conhece neste mercado, produz disparates destes. A Liga “morta” colocou três clubes nas meias-finais da Liga dos Campeões no ano em que Ronaldo saiu de lá. E o futebol fraco europeu brindou, pelas camisolas do Celta de Vigo, um empate de 5-0 ao Al-Nassr, um pouco depois destas declarações.

    Não sei se o estimado leitor já viu algum jogo do campeonato saudita, espero que não, mas é mais ou menos como aquelas futeboladas que fazemos aos domingos com o pessoal amigo onde aparece sempre um, que em novo, chegou a jogar nos juniores do Belenenses…

    Ronaldo não volta para a Europa, porque não há quem pague o que ele quer, e nenhuma das equipas de topo, onde ele acha que ainda teria lugar, o quer por perto.

    A continuar por este caminho, sem aceitar o tempo que a todos consome, ainda nos vai fazer esquecer aquele rapaz sem medo que fazia todo o corredor em Old Trafford, e nos encantava, nos tempos de Alex Ferguson.

    É uma pena. Para nós, os adeptos, claro.

    Na verdade, nada que o afecte, lá na bolha onde vive.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O imigrante que não se quer integrar

    O imigrante que não se quer integrar


    De todas as discussões possíveis em torno da morte de Nahel Merzouk, o jovem francês de ascendência argelina baleado nos subúrbios de Paris, há uma que não parece oferecer grandes dúvidas: foi cometido um crime pela polícia.

    As imagens deixam pouca margem para discussão e não esteve, em momento algum, em risco a integridade física do atirador, que se limitou a assassinar um miúdo a sangue-frio. 

    Podia o polícia ter disparado para os pneus e imobilizado o carro, mas escolheu, naquele momento e a poucos metros de distância, balear uma pessoa desarmada que em momento algum colocou em perigo a vida do agressor.

    Esta parte da conversa é importante porque não existe “mas” nesta situação. Não existem atenuantes ou justificações que suportem a acção policial. Nem mesmo os distúrbios e a revolta da população que se seguiram a este assassinato podem, a posteriori, servir para validar as balas no peito de Nahel.

    É certo como o destino que, a cada abuso das forças (supostamente) de segurança, se acabe a discutir questões raciais ou de integração de imigrantes. É um tema que me revolta só por si e tende a ficar escatológico, à medida que os dias sob o crime vão avançando.

    João Miguel Tavares disse, a propósito deste caso, que a integração de um imigrante depende do país de acolhimento, mas também da vontade que este tem de fazer parte dessa cultura.

    Miguel Sousa Tavares, de uma forma muito mais radical, disse que os argelinos em França não se querem integrar, de todo, e que estão lá para destruir a França por dentro (Nahel era de ascendência argelina e marroquina e vários jovens de ascendência árabe juntaram-se aos protestos).

    Vamos, antes de mais, meter um ponto de ordem à mesa: para o que aqui se discute, é absolutamente irrelevante saber se Nahel estava bem integrado, se cantava a marselhesa ou se vibrava mais com Mbappé ou Mahrez.

    A única coisa que importa, para este caso, é que um jovem de 17 anos, desarmado, foi assassinado pela polícia sem ter feito nada que o justificasse. Ponto final.

    Dito isto, como é óbvio, a cada dia de tumultos perguntava-me quando é que viria o tema da “integração”.  É sempre engraçado ouvir a opinião de pessoas que viveram toda a vida no seu país de origem a falar sobre a comunidade A ou B que não se quer integrar no sítio X ou Y.

    Reparem que, para início de conversa, discute-se a integração de Nahel como se ele não tivesse nascido em França. Este é sempre o ponto de partida para os ataques raciais e xenófobos. Podemos ir na terceira ou quarta geração de nascidos no país de acolhimento e ainda nos referimos a eles como imigrantes. Talvez fosse bom, para o tema da integração, deixarmos de lhes chamar isso, vá lá, ao fim de duas gerações.

    O que eu perguntaria a João Miguel Tavares e a Miguel Sousa Tavares, se pudesse, é se eles pensam que algum imigrante escolhe viver o inferno que é estar à margem da sociedade que o acolheu ou onde nasceu.

    Pensarão, quiçá, que alguém prefere viver em guetos, ter mais dificuldade no acesso aos empregos e às melhores escolas? Haverá algum filho de marroquinos, senegaleses, argelinos ou tunisinos, em Franca, que prefira uma vida de segregação ao mundo de oportunidades de que outros dispõem? Perdoar-me-ão, mas, de uma maneira geral, não é assim que a coisa funciona. 

    Não importa se há “ódio visceral” (como sugeriu Sousa Tavares) entre franceses e argelinos, por causa da guerra da independência, ou se os árabes seguem outras práticas religiosas. Alguém acredita que um destes miúdos dos subúrbios, onde se amontoam as diferentes comunidades, escolheria entregar pizzas e estar longe da escola se tivesse outras oportunidades e melhores perspectivas de vida?

    Sentados no sofá de nossa casa, no bairro onde sempre vivemos, julgamos compreender como funciona a vida de um deslocado. Sim, Nahel era um deslocado no país de nascimento. Tal como muitos outros com ascendência africana que, por norma, não são levados em grande conta até que marquem um “golito” ou defendam qualquer coisa num campeonato do mundo de futebol.

    Há muitos anos, nos meus primeiros tempos de estadia na Suécia, tive uma chefe de projecto excepcional. Trabalhava no sistema de airbag da nova geração de “Volvos”, muito antes da corrida ao lítio, e esta pessoa, sempre muito simpática, cordial e incentivadora, foi estabelecendo comigo uma relação profissional que me agradava.

    Foi a primeira vez que ouvi sequer um elogio ao desempenho profissional. Nos meus anos de Autoeuropa, aqui pelo burgo, não sabia que as pessoas também podiam ser elogiadas no trabalho.

    Não tinha grandes pontos de contacto naquele país e, como perceberão, era bom ir fazendo amizades no trabalho. Até porque não tinha outras por aquelas paragens. Nesta fase da minha vida fazia tudo para me integrar nos hábitos, cultura e tradições do país de acolhimento. 

    Com o passar dos meses foi dizendo, essa minha colega, que gostava que eu, e a minha companheira, fôssemos jantar lá a casa com a família dela. Imaginei que se estivesse a criar uma relação para lá das paredes do escritório. Uma vez mais repito, não conhecia ninguém e os tempos passados para lá do horário de trabalho não eram de grande actividade social. Era de longe a parte mais difícil na clássica “integração”.

    Lembro-me sempre de um velhote simpático, que me alugava uma casa e me perguntava de quando em vez: “E então, já fizeste amigos suecos? Deduzo que seja difícil. O meu grupo de conhecidos é o mesmo desde a creche. Não entra ninguém novo e quando sai algum, é por que morreu”. Nesta fase eu ainda me ria e pensava que era ele, aquele velhote, o pessimista de serviço.

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    Combinámos a data do jantar e eu fui à loja do Estado (Systembolaget), único sítio onde se vende um tinto digno desse nome, comprar qualquer coisa para não aparecer com as mãos nos bolsos. Na véspera do dia – é bom de ver que os suecos combinam tudo com semanas de antecedência e espontaneidade é coisa que só se vê nos filmes – a minha anfitriã manda-me uma mensagem dizendo que ela e o marido achavam que afinal não era boa ideia jantar. E assim ficou.

    Seguimos a relação profissional sem grandes conversas sobre o tema e sabendo que os elogios ou gosto na minha companhia se resumiam ao que, aparentemente, fazia ou deixava de fazer no sistema de airbag.

    O produto lá chegou ao mercado, a Volvo continuou a ser um dos fabricantes mais seguros do mundo e eu segui para outro projecto, cruzando-me aqui e ali com aquela personagem e não trocando mais do que um “olá, tudo bem?” de ocasião. 

    Situações destas repetiram-se – umas mais chatas, outras mais subtis – até que percebi, ao fim de cinco anos a tentar, que aquela parte da sociedade seria mais difícil para não me sentir só. Foi quando comecei a procurar outros portugueses na cidade, latinos de diferentes países da América do Sul e estrangeiros de outros países europeus, com quem fui estabelecendo relações de amizade ao longo dos anos e com quem consegui formar uma rede social nos 12 anos seguintes.

    Nunca vivi num subúrbio mal frequentado de Gotemburgo, nunca andei a queimar nada ou a exigir que cobrissem a pele. Nunca roubei (ok, tirando aquela colecção do Seinfeld), nunca maltratei ninguém, nunca tive qualquer comportamento daqueles clássicos que atribuem, os “opinadores” de sofá, aos que “não se querem integrar”. E, mesmo assim, quando olho para trás, vejo chilenos, portugueses, espanhóis, colombianos, argentinos, ingleses, mexicanos. Não vejo um único sueco. Nada. Zero.

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    A minha dúvida é, se tivesse nascido num subúrbio e crescido com a cultura de “nós e eles”, teria tentado sequer durante cinco anos fazer parte da sociedade de acolhimento? Provavelmente não. O mais certo era chegar aos 13 ou 14 anos e compreender que já estava à margem da realidade dominante e, inevitavelmente, escolher o caminho onde a discriminação não existe: entre os “meus”.

    Tem culpa o Nahel da guerra da independência da Argélia e dos ódios criados, quase 60 anos antes do seu nascimento? Ou da organização dos subúrbios de Paris onde os imigrantes são despejados em guetos? Ou do passado colonial de Franca? Ou do racismo constante dos europeus em relação aos africanos que exploraram durante séculos? Não, não tem culpa de nada disso.

    Nahel Merzouk, tal como muitos outros imigrantes que nem o privilégio de serem chamados franceses têm, limitou-se a nascer num daqueles sítios onde a probabilidade de sucesso reduz drasticamente. Está nos livros. As contas estão feitas.

    No caso dele, nem chegou a um trabalho mal pago ou uma vida precária. Foi logo baleado na rua por um assassino que nunca, jamais, deveria ter acesso a uma arma de fogo.

    O facto de os advogados do polícia já terem angariado mais de um milhão de euros, prova, entre outras coisas, como a sociedade está doente e as prioridades, comprovadamente, trocadas.

    Para onde caminhamos, nesta Europa com saudades dos muros?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aumentem os salários! Ontem já era tarde

    Aumentem os salários! Ontem já era tarde


    Cheguei à cantina e pedi o iogurte do costume. Não tem nada de especial: um fio de mel, três ou quatro nozes e já está. Na altura de pagar, reparei que o preço tinha subido de 3,5 para 4,5 euros. Já achava o preço de ontem desagradável, hoje nem vos digo.

    Perguntei à senhora que me servia o porquê da repentina subida de preços e ela disse: “Sabe como é… a Ucrânia!”.

    amber glass bowl with fruits besides white spoon and fork

    Enquanto ia contando o número de colheres que aquele iogurte me proporcionava, pensava nas costas largas da Ucrânia que não mandavam para ali leite, nozes ou mel.

    A propósito desta temática, num programa de debate na RTP com quatro conceituados economistas, Francisco Louçã defendeu que as cadeias de distribuição aproveitavam este momento para aumentar a sua margem de lucro.

    É um facto que os custos de produção são hoje mais baixos do que eram antes do início da guerra, mas, no entanto, não se nota uma redução no preço dos produtos finais. Segundo Louçã, depois de 20 anos em que as regras da concorrência não permitiram aumentos disparatados, chegou agora o momento das empresas aproveitarem a conjuntura actual para dispararem as suas margens. Isto contraria a previsão do Banco Central Europeu que nos assegurou, no ano passado, que a inflação seria temporária.

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    Identificado que está o problema, chegamos à terapia. De momento, discute-se se devemos continuar a aumentar as taxas de juro para controlar a inflação ou, se por outro lado, devemos repensar e compensar essas subidas na despesa das famílias com o aumento dos salários reais.

    Sandra Maximiano, professora do ISEG, também presente neste debate, defendeu algo que já escrevi em outros textos aqui no PÁGINA UM: a aplicação cega da receita de Christine Lagarde – aumentar as taxas de juro em toda a Zona Euro – não tem o mesmo impacto em diferentes países.

    Em Portugal, onde a população é mais pobre e as famílias mais carenciadas – é bom não esquecermos que 75% das pessoas levam para casa menos de 900 euros líquidos –, não há a mesma capacidade de aguentar o aumento da despesa mensal como em outros países mais ricos da União Europeia. Voltamos sempre à discussão de medidas que visam reduzir o consumo em famílias que já pouco ou nada consomem. Aliás, é um tema recorrente falarmos em famílias portuguesas, como se entre elas, as carenciadas fossem uma minoria.

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    Tenho sempre alguma dificuldade em dizer isto, mas parece-me que continuamos a considerar que Portugal é um país onde a classe média, à escala europeia, tem algum peso. Não tem. Se olharmos e compararmos com os países mais desenvolvidos da Europa, grande parte da população portuguesa nessa escala seria pobre.

    Percebendo então que a inflação não é temporária, que os preços dificilmente voltarão aos valores pré-guerra e que as taxas de juro não regressarão ao mítico 1%, e perdoem-me por esta parte, mas seria obrigado a concordar com Luís Montenegro. Disse o líder do maior partido da oposição que era altura de arriscar e desafiar a Economia: “Temos de subir os salários em Portugal”.

    Dir-me-ão que depois de 20 anos a defender o aumento de salários indexado à produtividade, chegou a vez do PSD, através do seu líder condenado à travessia do deserto, dizer o contrário. É preciso aumentar por decreto. Estaremos perante uma tentativa eleitoralista de Montenegro, concordo, ainda assim correcta.

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    Não há outro caminho. De facto, Portugal não pode continuar a ser o país dos baixos salários para onde as multinacionais se dirigem na procura de mão-de-obra qualificada a baixo custo.

    É preciso que o Estado, depois de arrecadar impostos extraordinários e as empresas verem as suas margens de lucro subirem, tenham a capacidade e honestidade moral de dividir essas receitas com os trabalhadores, tanto na Função Pública como no setor privado. Esta é uma oportunidade histórica de tornarmos Portugal um país menos desigual.

    Quando até o líder do PSD nos diz que é tempo de arriscar e subir os salários, percebemos que o Apocalipse está próximo.

    Aumentem, então. Ontem já era tarde.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António

    A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António


    O Bloco de Esquerda (BE) deixou de me motivar no período que se seguiu ao Miguel Portas, Daniel Oliveira e Ana Drago. Entrou numa fase de lideranças errantes, e Catarina Martins sempre foi, na minha opinião, um erro de casting. A um político não basta passar a mensagem certa, tem de saber passá-la sem irritar o ouvinte.

    Catarina Martins falhava, habitualmente, nas duas vertentes. Ainda assim não deixei de acompanhar a vida do partido. Posso não ser eleitor do BE, mas sou eleitor de esquerda e, portanto, tudo o que acontece entre o cada vez mais centrista PS e a extrema-esquerda do MRPP me interessa. Extremismos à parte, espero ter essa parte ficado implícita.

    Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES (2014-2015), fiquei a conhecer Mariana Mortágua. Tinha tudo, achei eu nessa altura, para ser uma política de sucesso. Estudava os temas, falava de forma calma e ponderada, usava argumentos lógicos e facilmente perceptíveis pelos eleitores, sem entrar em populismos baratos. Esta parte é importante num político que quer algo mais do que um esporádico bom resultado eleitoral.

    O pouco que fui vendo da vida do BE, desde essa comissão de inquérito foi, essencialmente, para perceber para onde caminhava Mariana Mortágua. Nunca percebi, que me perdoem os seus acólitos, como foi possível manter tantos anos Catarina Martins na liderança, quando se tinha Mariana Mortágua ali ao lado.

    O discurso de uma e de outra é a diferença entre mudar o canal ou ficar a ouvir até ao fim. Depois de algumas eleições catastróficas, e, julgo, quase 10 anos de liderança, Catarina cedeu o lugar a Mariana. Em boa hora.

    Este fim-de-semana, numa sardinhada do BE, Mariana Mortágua deixou duas ideias simples, mas fortes, dada a urgência de ambas. A primeira relacionada com as taxas de juro e com a inoperância do Governo português perante os aumentos do Banco Central Europeu (BCE).

    Com salários que rondam os 800 ou 900 euros, algumas famílias viram a prestação da casa subir de 400 para 700 euros. Não é preciso ser um matemático de eleição para perceber que não se vive assim. Na melhor das hipóteses, sobrevive-se.

    Como pode um país cada vez mais pobre, como Portugal, suportar políticas de aumento da despesa familiar para controlar a inflação? Como é que se pode aplicar a gregos, portugueses e romenos a mesma estratégia que seguem alemães, belgas e holandeses? E por que razão é apenas Mariana Mortágua que repete isto, sugerindo que os bancos, com lucros recorde, absorvam os aumentos em vez de sacrificarem as famílias. Tudo isto é tão óbvio que nem deveria dar argumentos para uma conversa.

    A outra mensagem, relacionada com a Educação, foi a de exigir que as creches fossem incluídas no sistema público de ensino e tal, como as escolas, fossem gratuitas em cada bairro e cidade. Algo que afirmo há pelo menos 14 anos, desde que percebi, na minha vivência de emigrante, que os impostos podem ser usados numa Educação verdadeiramente universal. Da creche até ao Ensino Superior, as mesmas oportunidades para o filho do padeiro e do médico. Tudo gratuito. É isso, e apenas isso, que faz um sistema de ensino universal.

    Uma vez mais, porquê apenas Mariana Mortágua, entre duas sardinhas e um copo de vinho tinto, fala sobre isso? Poucas coisas são tão importantes para um país pobre e envelhecido do que o estímulo à natalidade. As creches gratuitas são parte importante do plano.

    Gosto quando a esquerda fala sobre temas clássicos da esquerda sem se perder em discussões de unicórnios ou casas de banho, por onde o Bloco resolveu andar nos últimos anos. Estes são temas actuais, importantes e prioritários. Ditos de forma perceptível e sem grandes dramas ou demagogias. Mariana não parece encarnar um personagem, limita-se a dizer o que pensa. Ou, pelo menos, é essa a sensação que passa.

    No mesmo fim-de-semana, nas Caldas da Rainha onde há anos se recolheu, António José Seguro deu um ar da sua graça e parece, anos depois da rasteira que lhe passaram, estar disposto a regressar às lides políticas. Sobre Seguro, voltarei noutro texto porque há algo mais para dizer, mas, para já, fico com a impressão de que a esquerda portuguesa se começa a mexer numa direcção curiosa, para o período de oposição que se adivinha.

    Depois de tutti-fruttis, Catarinas, Costas, Galambas, Temidos e Cabritas, o futuro parece apontar para algo mais suportável, para quem não vota em Montenegro, Ventura ou o novo Cotrim (ainda não lhe decorei o nome).

    Já só falta o João Ferreira. Mais década menos década, está ai a rebentar.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Aleluia e a chiclete

    O Aleluia e a chiclete


    Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português. 

    Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.

    Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes. 

    Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.

    Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.

    Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.

    Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.

    É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.

    Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.

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    Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando. 

    Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente. 

    Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.

    A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.

    Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os meus 6339 dias

    Os meus 6339 dias


    Passam hoje 6.339 dias desde o momento em que aterrei na Suécia para dar início a uma vida de emigrante. Ou, por outras palavras, passam hoje 6.339 dias desde o dia em que perguntei quando voltaria. Como quase todos, saí de Portugal com a teoria dos dois anos bem presente.

    O que é a teoria dos dois anos, pergunta o leitor? É uma mentira que contamos à família no momento da despedida. “Vamos apenas por dois anos para ter a experiência… e depois voltamos”. É uma mentira tão boa que até nós, os que embarcamos para um país diferente, acreditamos nela.

    Os dias foram passando e, como é fácil de perceber, ao fim de 730, dois anos portanto, não regressei. E por cada 365 que passavam, mais difícil era esse regresso.

    luggage, suitcases, baggage

    Uma das coisas que sempre achei estranho foi a ligação a Portugal, que teimava em desaparecer. É normal que, ao fim de algum tempo, o emigrante se vá desligando da realidade que deixou para trás e se vá inteirando daquela que, entretanto, conheceu. Não foi o meu caso.

    Quer dizer, embrulhei-me na realidade sueca e na forma como a sociedade funciona, mas não deixei de ouvir notícias de Portugal por um dia que fosse. Percorri o país de norte a sul, fiz questão que conhecer toda a Escandinávia, subi montanhas e experimentei mares diferentes. Votei sempre nas eleições locais e procurei entender a base social em que assenta este país. Mas os acontecimentos que me incomodavam, as notícias mais marcantes, as fontes de preocupação vinham sempre da realidade portuguesa.

    Ia para o trabalho com a TSF ligada, limpava a cozinha com o jornal da noite no ar e pedalava com um podcast qualquer de debate. A cada regresso, em conversas com familiares e amigos, notei, por vezes, que sabia mais do que por ali se passava do que eles que nunca tinham saído do mesmo bairro. Essa necessidade de saber a realidade lusa fez-me perceber que não conseguiria desligar-me de Portugal. 

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    Ao contrário do que se possa pensar, manter este laço com o país de origem não torna a emigração mais fácil. Faz-nos pensar, repetidas vezes, afinal o que fazemos aqui.

    No caso da Escandinávia é mais ou menos fácil perceber a dificuldade de aceitar o regresso. Basta consultar qualquer tabela de desenvolvimento social para compreender que esta zona do globo está naquilo a que convencionámos chamar o mundo civilizado.

    A base social assente em impostos progressivos permite que o país seja dotado de um sistema público de saúde e uma educação verdadeiramente universal. Gratuita desde o primeiro dia na creche até ao último dia da universidade. Classes profissionais separadas por pequenos degraus onde, por exemplo, o fosso entre um gestor de empresa e um canalizador não permite que algum deles viva na pobreza. Uma Economia assente num sector produtivo tão grande que nunca há gente suficiente para preencher as vagas.

    baked breads

    Atravessei duas crises mundiais por aqui, com milhares de despedimentos. Lembro-me de ao fim de seis meses já estar tudo em ritmo de “business as usual” enquanto mais a sul demoraram anos a reerguer.

    É, de facto, difícil largar uma realidade onde a sociedade civil funciona, as regras são cumpridas e as oportunidades são mais do que muitas. Ninguém enriquece a trabalhar por aqui, mas também ninguém volta a olhar para o saldo. É uma realidade que ouço de vez em quando na boca de outros emigrantes.

    O problema é a outra parte. Os afectos, as relações, a proximidade, o contacto. Aquele calor humano, a espontaneidade, o improviso, a alegria não planeada. Todos os ingredientes que nos fazem latinos. O sol, o céu azul, o mar com ondas, a gastronomia. Enfim, não ter que pensar no que se diz quando se misturam três línguas diariamente.

    white ceramic mug with brown liquid on white ceramic saucer

    Num destes dias, disse-me o meu filho, nascido aqui, que depois de acabar a escola queria sair da Suécia. Perguntei porquê, afinal, esta é a realidade que ele conhece e de onde nunca pareceu interessado em sair. Disse-me que quando a vida académica o separasse dos amigos que o acompanham desde a creche, qual seria o sentido de passar a vida num sítio gelado?

    Realmente… Para ele isto é um sítio gelado onde tem os amigos. Não é um país de primeiro mundo que por acaso também é gelado.

    Ele não tem termo de comparação e, ainda assim, todos estes anos com meses passados em Portugal, já o fizeram perceber que a vida pode ser mais simples noutras latitudes. Pelo menos aos olhos de uma criança que depende das relações humanas e, ainda não, de um emprego.

    people sun bathing on beach

    Durante estes anos, perdi a conta às pessoas que ajudei a vir para aqui, a arranjar um primeiro emprego, o primeiro alojamento. A todos disse, quando me perguntaram, que a emigração não era um el dorado. Ao contrário do que o Passos Coelho disse, não chega ter uma Europa sem fronteiras e com livre circulação.

    Ninguém, absolutamente ninguém, deveria ter necessidade de sair do sítio de onde nasceu à procura de melhores condições de trabalho. É uma violência da qual nunca recuperamos e é uma fatia da vida que, por muitas coisas boas que nos traga, leva invariavelmente uma boa parte da alma.

    O tempo que perdemos com a família e amigos. Os momentos em que aparecemos no vídeo numa mesa recheada de caras conhecidas. As semanas de solidão que atravessamos nos invernos que parecem não ter fim. 

    person looking out through window

    Hoje, ainda coloco questões. Voltaria a fazer tudo de novo? Sim. Não sou um emigrante mal-agradecido ao país de acolhimento. Todo o reconhecimento profissional que obtive, devo-o à Suécia. A vida que é proporcionada à minha família, devo-o à Suécia. As oportunidades que os meus filhos têm hoje e o conhecimento que têm do mundo, devo-o à Suécia.

    Provavelmente, poderia ter sido mais fácil. Certamente ter-me-ia dado jeito alguma ajuda no início do processo.

    Mas sim, voltaria a fazer este caminho, passando pelo mesmo sofrimento, sabendo que poderia dessa forma ajudar a minha família.

    De há uns anos a esta parte, venho dizendo aos que me estão mais próximos que está na hora de voltar. Normalmente, ouço um “deixa-te estar lá que estás bem, aqui não há nada”.

    Discordo. Aí está praticamente tudo o que importa. Aos 46 anos, e 6.339 dias depois, o ciclo fechou.

    Vou para casa. Agora.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • António Costa e o momento Luísa Brandão

    António Costa e o momento Luísa Brandão


    António Costa voltou a mostrar nas comemorações do 10 de Junho como é que se consegue atravessar a turbulência dos casos da TAP, escândalos de ministros desde os tempos do Cabrita, uma pandemia, uma guerra, pobreza crescente, inflação descontrolada, taxas de juro altíssimas e famílias desesperadas e, ainda assim, manter o cargo de primeiro-ministro durante sete anos.

    Este foi o homem que chegou à liderança do PS depois de António José Seguro atravessar sozinho o deserto e, em eleições nacionais, o que formou Governo sem ser o mais votado (felizmente, acrescento eu aqui).

    Portanto, meus amigos: António Costa é hábil, político de corpo e alma (para o bem e para o mal) e pensa as jogadas uma semana antes dos oponentes.

    Naquelas tristes comemorações do Dia de Portugal destacam-se sempre três coisas: discursos aborrecidos com recados que não servem para nada, a quantidade de latas velhas que a cada ano vai desaparecendo do desfile (positivo) e o barómetro de popularidade aos políticos em funções.

    Marcelo, o habitual rei do “não chove nem molha” recolheu o apoio popular, Galamba foi o alvo-mor dos apupos e não há quem perceba como é que este homem ainda é ministro.  Costa andou no limbo, teve que suar pelo voto e… safou-se.

    Fez questão de andar a pé com a mulher no meio dos professores descontentes e enfrentou-os. Certamente ia preparado para isso, mas a paciência com que falava e era interrompido (ou insultado) sem perder a calma, mostra que nada lhe acontece por acaso.

    Deixou os jornalistas apanharem o teor das conversas com alguns professores que o apertaram e tinha as medidas do descongelamento das carreiras na ponta da língua. Costa é um rapaz que se prepara.

    Um grupo mais restrito de professores fez-lhe o favor de o insultar com cartazes de muito mau gosto e índole racista. Meus amigos: numa luta onde a razão está toda do lado dos professores, dar tiros de pólvora seca com uns cartazes que até ao Chega envergonhariam (ou talvez não), é fazer do Governo um alvo de simpatia popular. Com este tipo de pensamento tão limitado e uma visão tão reduzida da realidade, espero que nenhum daqueles professores dê aulas de história. Seria uma verdadeira catástrofe.

    A Fenprof afastou-se deste grupo de professores e traçou a linha da decência. E fez bem. Na luta pelos direitos laborais, ou em qualquer luta, não se usam argumentos racistas. Se o fizermos a causa está perdida antes sequer de começar. 

    Até que chegou o momento Luísa Brandão. Uma professora que fez 120 km para se meter na fila das selfies.

    Chegada a sua vez, disse que não queria fotografias mas sim ser ouvida. Falou das suas preocupações e de tudo o que ia para lá dos salários, nomeadamente a vertente pedagógica e a falta de condições em que os professores trabalham.

    Costa ouviu, debateu, argumentou e sacou o golpe de génio: prometeu, em frente a um batalhão de jornalistas, que lhe ligaria para discutir aqueles temas e ainda lhe pediu o número de telefone, escrito num papel para que em redor ninguém ficasse com ele. É o tocar no chão e meter-se ao nível dos problemas de cada um de nós. É o ganhar a simpatia entre quem o insulta. Saiu entre sorrisos e boa disposição.

    No dia seguinte poucos falavam do “momento Galamba” do discurso do presidente da República (quando disse que era preciso cortar alguns galhos estragados) e muitos contavam a história de Luísa, a professora da Póvoa de Lanhoso, que saíra de casa com a convicção de que chegaria à fala com o primeiro-ministro. 

    Em princípio, ninguém se lembrará de confirmar, daqui a umas semanas, se Costa efectivamente lhe ligou mas, naquele dia, o ódio ao Governo caiu em Galamba, a indiferença em Marcelo e Costa, uma vez mais, passou pelos pingos e saiu em ombros.

    Anselmo Crespo dizia na CNN que por muito mau que seja o Governo, as pessoas olham em redor e pensam nas alternativas. Ventura e Montenegro. Montenegro e Ventura. É pouco, muito pouco. Costa mete-os no bolso com duas ou três Luísas.

    A direita ainda se arrisca a perder as eleições mais fáceis da história.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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