Autor: Tiago Franco

  • Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição

    Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição


    Quando Miguel Sousa Tavares, no seu habitual espaço de comentário na CNN, perguntou a José Alberto de Carvalho se ele casaria com a Miss Portugal, imaginei que a polémica rapidamente estalasse. Pensei se deveria contribuir para isso, numa altura em que Gaza arde e o massacre de palestinianos já ultrapassa as 9.000 mortes.  Achei, ainda assim, que haveria um ponto interessante nesta discussão, que não propriamente um concurso de misses. Voltarei ao genocídio em curso na Faixa de Gaza na próxima segunda-feira, no meu sexto texto sobre o tema, aqui no PÁGINA UM.

    Começo por dizer que só percebo o rasgar de vestes pelos tempos em que vivemos, onde as fogueiras da inquisição são substituídas pelas redes sociais. Precisamos de causas para a indignação 24 horas por dia. Não há nada, absolutamente nada que se diga ou escreva, que não ofenda pelo menos um ouvinte ou um leitor.  

    People At The Bar

    Miguel Sousa Tavares foi deselegante e brejeiro. Importa pouco para a discussão sobre um transsexual num concurso de misses, se ele acha o produto final apresentável, com ou sem plásticas. Um estúdio de televisão não é o sítio adequado para conversas de taberna ou para as questões que, imagino, o Miguel Sousa Tavares deve colocar aos amigos quando vai às perdizes, ali em redor do monte alentejano em Mora.

    Também não sei se este comentário teria incendiado opiniões se fosse feito a propósito de uma mulher biológica ou de um homem, biológico ou não. Notem até que para escrever isto, não sei bem como me referir às pessoas em questão porque imagino que alguma formulação possa ofender seja quem for. Para o termo “mulher biológica”, usei uma expressão dita pela própria miss, numa entrevista dada ao JN no dia 22 de Outubro.

    Talvez seja um defeito geracional, acredito que sim, mas cresci a ver descrições nada simpáticas de personalidades portuguesas sem grande celeuma da sociedade em geral. Nos premiados bonecos do “Contra-informação”, programa que durante muitos anos foi transmitido pela RTP diariamente, a antiga deputada comunista Odete Santos era representada por uma imagem particularmente feia. Manuela Moura Guedes aparecia com uns lábios enormes (tal como Guterres), e Marques Mendes como um pigmeu. Sempre achei as caricaturas mais suaves para uns do que para outros, e questionava-me se os visados não se sentiriam desconfortáveis. O programa (de sátira política) era genial, entenda-se, mas a forma como algumas pessoas eram caracterizadas estaria hoje na categoria de body shaming.

    Importa-me muito pouco o tema de “nascer A mas sentir-se B”. Se um humano se identificar como gato e passar o resto da vida a lavar-se com a língua, mesmo que necessite de retirar umas costelas para atingir tal objectivo, não vejo qualquer problema nisso. Não me incomoda, absolutamente nada, que cada pessoa faça o que quiser da sua vida (e do seu corpo) para se sentir melhor. A parte que me parece mais discutível e com algum interesse é a forma como o todo é afectado pela escolha individual. Espero conseguir explicar esta frase.

    Não é fácil, pelo menos para mim, acompanhar todas as etiquetas que a sociedade vai criando para catalogar preferências sexuais, de género, religiosas, alimentícias e sei lá mais o quê. Acabo por ficar no campo que imagino ser o do bom senso, que é: sejam felizes, mas não me obriguem a defender a teoria do pensamento único onde tudo, todos e a toda a hora cabem em todos os sítios. Não dá. Não é ser inclusivo, é ser idiota e abrir caminho ao disparate eterno.

    Se um homem se sente bem num corpo de mulher, tudo bem. Para mim, até esse momento não há discussão. É uma decisão individual. Se deve entrar num concurso de misses? Já tenho as minhas dúvidas e essa não é certamente uma decisão de uma só pessoa; é da sociedade. E notem, uso o concurso de misses porque é daí que vem a frase infeliz do Sousa Tavares. Num mundo civilizado, não existiriam concursos onde as mulheres são avaliadas pela sua beleza. Seja lá isso o que for. Quando nos dizem, e bem, que vivemos num mundo machista, os concursos de misses são exactamente uma das provas disso.

    Mas essa discussão é interessante. É por aí que quero ir. Deve uma mulher transsexual concorrer a uma disputa de misses? Em teoria, não teria qualquer vantagem, logo, não vejo grande problema. Mas se assim for, a bem de evitar qualquer discriminação, deve um homem que se identifica como mulher ou uma mulher que se identifica como homem, poder concorrer em qualquer competição restrita ao género no qual se identificam?

    No caso de um concurso de beleza, julgo que ninguém vê vantagens aparentes. Ou até no Festival da Canção, onde Conchita Wurst venceu, também não vislumbro qualquer relevância na escolha de género. Se as vitórias forem em nome das escolhas justas (mais bonita, melhor voz), seja lá qual for o critério, e não o “vamos apoiar a coragem e dar o prémio para marcar uma posição”, então tudo bem. Se por oposição, acontecer como em 2022, onde, a propósito da invasão russa, a Ucrânia ganhava todas as competições onde entrava, por solidariedade dos restantes, então já me faz alguma confusão.

    Mas se com beleza e voz, em princípio, não há aparente vantagem na troca de géneros, o que acontece, por exemplo, numa competição onde o físico marca a diferença? O caso de Lia Thomas, a primeira mulher transgénero a vencer um campeonato nacional de natação nos Estados Unidos. Um nadador desconhecido e com resultados modestos na competição masculina que, ao concorrer no género com o qual se identifica, passou a ganhar, causando desconforto nas mulheres biológicas com quem competia. Neste caso, há um claro benefício em usar a parte biológica para obter resultados no outro género.

    People Gathered Near Building Holding Flag at Daytime

    Como resolver a situação? Como é que se garante a liberdade individual das escolhas sem prejudicar o colectivo? Criam-se competições só para trans? Arranjam-se mais umas caixinhas?

    Em tempos, trabalhei com uma pessoa chamada Teresa. Chamemos-lhe assim. Durante dois anos cumprimentei-a todos os dias e dirigi-me a ela com o nome com que se apresentara. Um dia, informaram-me que ela deixara de ser Teresa e agora se identificava como Roberto. A pessoa que estava à minha frente era a mesma, mas, a partir daí, eu deveria tratá-la por Roberto. Foi o que fiz. Mas nunca a consegui ver como um homem. E é aqui que as liberdades se cruzam e devem respeitar. Ela sentia-se melhor como homem num corpo de mulher e com um nome diferente. Eu passei a chamar um
    nome de homem a um corpo de mulher, respeitando a escolha da minha colega. E espero eu, que ela, aliás, ele, tenha conseguido compreender que, aos meus olhos, eu via exactamente a mesma mulher com outro nome.

    Quem sente e muda, vê uma coisa; quem acompanha a mudança, vê outra.  E isto não tem de ser necessariamente negativo. Se todos conseguirmos lidar com as diferenças de opinião e pudermos aceitar as escolhas, sem impor doutrinas, então temos uma boa base para conversar e chegar a qualquer lado.

    Portrait of Woman Wearing Teal Eyelashes

    Se quisermos obrigar toda a gente a escrever “todes“, para não ofender quem não se identifica com o género masculino ou feminino, ou aceitar que um homem passa a ser uma mulher só porque ele diz que sim, então vamos andar a saltar de gritaria em gritaria, e de barricada em barricada, sem chegarmos a grande porto de abrigo.

    Enfim, a questão, para mim, não é se a Miss “marchava” ou não pelos pergaminhos do Miguel Sousa Tavares.

    Conversa de taberna será sempre conversa de taberna, e obviamente não cai bem no Jornal da Noite. A questão, na verdade, é se uma mulher trans deve ser legalmente equiparada a uma mulher biológica. Se sim, temos um caminho onde casos como o de Lia Thomas passarão a ser comuns. Se não, teremos de criar uma infinidade de casos, regras e leis que tragam conforto a todos os tipos de identificação. Para aquelas que hoje conhecemos e para aquelas que possam seguir.

    A Man Looking at the Woman Wearing Brown Hijab

    Nenhum dos caminhos me choca. No primeiro, vejo uma mulher, bem mais flexível que homens, a ganhar ouro olímpico no all around de ginástica masculina. No segundo, vejo o código civil de cada país a ter novos volumes em cada ano. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Nada disso me assusta. Aquilo que me assusta é o radicalismo na discussão de ideias e a necessidade de impor regras ao pensamento do vizinho.

    Miguel Sousa Tavares tem um pensamento, que está longe de ser isolado, sobre um transsexual num concurso de misses. Não é a minha visão e, se fosse, não a diria certamente no Jornal da Noite. Mas, ainda assim, ser inclusivo não é queimar Miguel Sousa Tavares no lume brando das redes sociais. É perceber como se faz a inclusão do indivíduo sem ser injusto para com o todo. Essa é a discussão certa. O resto é apenas ruído, radicalismo e taberna. Vossa e do Miguel.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Comentar os comentadores

    Comentar os comentadores


    O domingo é, em semanas boas e de alguma sorte, o meu dia de folga. Tento, nessa altura, desligar-me da realidade e fazer qualquer coisa que me relembre como a vida era antes de 2020. Tenho a sensação que desde que embirraram com o morcego que trazia o covid-19, nunca mais o Mundo foi o mesmo. Ficámos com os movimentos restritos, perdemos empregos, ficámos sem casas, multiplicaram-se as guerras, levantámos mais muros, empobrecemos em larga escala.

    Viver agora numa pequena ilha, algo remota, tem a vantagem de me permitir desligar do Mundo, se assim quiser. Vou pedalar pelas encostas, ver o mar, caminhar na areia, enquanto o mar não a leva para passar o Inverno, ou então escondo-me na garagem, a arranjar o que estiver na lista de afazeres domésticos.

    Ontem foi dia de fazer lego para adultos, também conhecido por Ikea. Uma pessoa pode fugir da Escandinávia, mas há sempre uma parte que nos persegue. Em princípio, já é tarefa para irritar por si mas, não satisfeito com a hipótese, resolvi deixar a televisão ligada e fui ouvindo análises, debates e podcasts em atraso. Devo dizer que os melhores momentos desta experiência aconteceram quando tinha o berbequim ligado e deixava, por isso, de ouvir os comentadores locais.

    A cada dia que passa constato que, salvo raras excepções, os comentários e análises nas televisões portuguesas são de uma tal pobreza que me pergunto se o campo de recrutamento será assim tão limitado. Enquanto partia a cabeça de um parafuso, deixando o resto dentro da parede (qual seria a probabilidade?), ouvia Helena Ferro de Gouveia (HFdG), sempre naquele tom calmo e pensado, a dizer que Israel já tinha perdido a guerra da comunicação, mas tinha o dever de se defender à luz do direito internacional.

    HFdG é o paradigma dos comentadores televisivos com uma agenda presa por ideologia. Não se limitam aos factos e às informações que conseguem recolher. Moldam a opinião dos ouvintes com a sua opinião formada, muitas vezes, por uma ideologia que não se consegue disfarçar. Não tenho nada contra o debate de opiniões; não gosto é de ver esse exercício a ser apresentado como análise isenta de factos.

    turned-on flat screen television

    Há mais de um ano que ouço HFdG defender activamente o empobrecimento generalizado da população europeia como resultado do incondicional apoio à Ucrânia, para que esta se possa defender da invasão russa. Como todos os que defendem esta tese (mais bombas pela paz), HFdG coloca o relógio do conflito na Ucrânia com início para Fevereiro de 2022, e daí traça toda uma série de cenários onde, basicamente, se deve alimentar militar e financeiramente a Ucrânia até que o último soldado ucraniano morra. É, em resumo, a teoria americana. Ou seja, usar sangue ucraniano enquanto der, até se enfraquecer a Rússia de forma a que fique sossegada nos próximos anos e deixe americanos e chineses a dividirem as rédeas do globo.

    Agora, no caso de Gaza, perante factos semelhantes (um invasor e um invadido), a nossa Helena volta a acertar o relógio para o dia 7 de Outubro (ataque do Hamas) e ignora olimpicamente os 70 anos anteriores para apelar ao direito de defesa israelita. Aqui, o estatuto de invasor já não colhe, como se percebe. Mas pior mesmo, é ver a lista de mortos a crescer diariamente naquele território sem fuga possível e ver como alguns dos nossos comentadores, com HFdG à cabeça, a tentar justificar o injustificável.

    O “direito de defesa de Israel”, frase que já não consigo ouvir, significa, ao fim de 20 dias de bombardeamentos, um saldo de 8.000 mortos, 7.000 dos quais em Gaza e, notem este detalhe, mais de 3.000 crianças. Ou seja, em cálculos simples, a cada 10 minutos morre uma criança na Faixa de Gaza. Isto não é o direito à defesa: é um genocídio com o alto patrocínio dos Estados Unidos e boa parte da União Europeia.

    Estamos novamente na discussão redutora: se não se defende a carnificina em Gaza, então somos apoiantes do Hamas. Já o disse e repito que não acho o Hamas benéfico para a libertação da Palestina, mas pergunto: quem pode criticar o aparecimento de movimentos radicais de libertação entre um povo encarcerado? Recupero aqui uma frase de Miguel Tiago durante um debate com Tiago Mayan Gonçalves: “durante a guerra do Ultramar, também o Estado Novo chamava terroristas aos combatentes que lutavam pela independência dos colonizadores”. Portanto, a visão da História depende sempre de quem a conta e do momento temporal em que é discutida.

    Há ainda outro detalhe que raramente se discute nas televisões portuguesas, a propósito deste conflito: Israel não permite a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza e, como tal, tudo o que vemos e ouvimos são relatos do exterior. Em alguns casos, como são as intervenções de Ana Sofia Cardoso (CNN), estamos perante peças altamente sensacionalistas, a largos quilómetros do conflito e sempre a procurar mostrar o sofrimento no interior de Israel.

    Eu percebo ser difícil mostrar os dois lados quando a entrada em Gaza não é permitida, mas, convenhamos, com crianças a morrer todos os dias debaixo dos bombardeamentos israelitas, torna-se algo anedótico um momento de reportagem com uma janela partida numa prédio intacto, por causa de um rocket do Hamas. Ou ‘rámas’, como a própria Ana diz, fazendo as vezes de Milhazes do Médio Oriente.

    green tree on brown sand during daytime

    Mudei o canal porque não consigo mesmo ouvir mais este nível de hipocrisia e racismo básico.

    Entretanto, resolvi o problema do parafuso sem cabeça. Não foi bonito de se ver, acrescente-se.

    Paro na RTP e estou na análise de Rui Moreira. O tema é a TAP. Não prevejo grande futuro, mas lá está, como já vos expliquei, não resisto a um bom acidente.

    Desligo o berbequim, porque adivinho asneira da grossa. Rui Moreira analisa o veto presidencial ao negócio da venda da TAP e, entre outras coisas, explica que alguns dos grupos interessados já foram falar com ele, enquanto presidente da Câmara do Porto, por causa do investimento pretendido no Aeroporto Sá Carneiro. Segundo ele, a Iberia estaria interessada em passar muitas rotas para lá, dadas as limitações existentes em Lisboa. Expliquem-me, porque o meu limitado vocabulário de emigrante me vai pregando rasteiras, se a palavra “incompatibilidade” ainda está contemplada no dicionário da Língua Portuguesa.

    Como é que um homem que há anos faz campanha contra a TAP pública, com o aberrante argumento que “não serve o Porto”, pode agora estar no papel de comentador a opinar sobre a venda, hubs, interessados e o que melhor serve Portugal,quando há anos que faz, a proveito dos votos, exactamente o contrário? Não há um mínimo de vergonha na cara e alguma coerência no alinhamento informativo? É a RTP, caramba! Não é a CMTV. Exige-se algo mais.

    Voltei a carregar apressadamente no comando e passei pela homilia do Paulo Portas, que desfazia António Guterres, a propósito das declarações do secretário-geral das Nações Unidas sobre o aumento da violência por parte de Israel. Aqui não aguentei sequer um minuto, e decididamente não entendo como há espaço de propaganda e restauração de imagem para políticos que se viram envolvidos em escândalos de corrupção, abuso de poder ou conflito de interesses.

    José Sócrates, Paulo Portas, Miguel Relvas, entre outros, estiveram debaixo das objectivas em diversos momentos das respectivas governações por crimes, suspeitas ou abusos. Como é que aparecem nas televisões, algum tempo depois, como senadores da opinião e alguém a quem os portugueses devem prestar atenção? Não há mesmo mais ninguém? Como é que um político português a quem ainda hoje não se conseguiu retirar toda a verdade do desastre da compra dos submarinos, pode vir criticar Guterres, depois deste ter sido o único dirigente do mundo ocidental a alertar para o genocídio que acontece em Gaza?

    Desisti da televisão e passei para os podcasts. O primeiro era o do Rogeiro com o Milhazes. Ao fim de cinco minutos, já ouvia o Milhazes a dizer que “não nos podemos esquecer da Ucrânia”, como quem faz um apelo de emprego. Compreendo-o. Quem é que quer perder receita depois destes dois anos de sonho? Foi sol de pouca dura e continuei a desfazer móveis ao som de uma playlist do Spotify que era exactamente por onde deveria ter começado. E ficado.

    Motherland Monument among green trees on embankment in Kiev

    Enfim, mas o que custa afinal fazer jornalismo mostrando os dois lados do mesmo conflito? Custa assim tanto dar às pessoas as diferentes versões do mesmo tema e deixá-las formar opinião livremente? Na Al Jazeera, um destes dias, via um painel com um professor de História Árabe, um antigo funcionário das Nações Unidas ligado à ajuda humanitária em Gaza e um antigo membro da Mossad.

    Portanto, um debate com três visões (duas delas totalmente opostas) sobre um conflito com 75 anos. Não há um despejar de narrativas e muito menos horas e horas de especulação criada a partir de um lado. Há discussão, troca de opinião e um verdadeiro debate com argumentos de parte a parte que permite, a quem vê, criar uma opinião mais informada.

    Parte da nossa pobreza e atraso estrutural vem, também, da forma como aceitamos tudo aquilo que alguém, sentado num estúdio de televisão, nos diz. Mesmo que a coerência não exista, o contraditório seja raro e os argumentos mudem entre situações semelhantes.

    Em 10 milhões de habitantes, não deve ser assim tão difícil conseguir ouvir pessoas, em análises televisivas, com mais conhecimento e menos ideologia. E certamente, mesmo entre os antigos políticos que tanto parecem apreciar, devem existir duas mãos cheias que tenham mesmo feito os cursos através de aulas e exames ou não tenham desviado dinheiro público.

    Se a bitola está na CMTV, então tudo bem. Se queremos um pouco mais do que uma população que ainda vê o Big Brother, então é preciso dar um pouco mais do que palha em horário nobre. A começar pelos canais de informação.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O canto do cisne de Montenegro

    O canto do cisne de Montenegro


    Parece estranho olhar para o Orçamento de Estado num momento em que o Planeta arde com guerras, taxas de juro, inflação e um empobrecimento geral da população. Tendo em conta a irrelevância de Portugal no contexto internacional, e o caos em que estamos mergulhados, pensar na política nacional e nas decisões à nossa micro-escala, é quase um momento de puro masoquismo.

    Mas como já expliquei algures por estes textos, eu sou aquele tipo de pessoa que reduz a velocidade, causa algum congestionamento na estrada e fica ali a olhar para o acidente do outro lado da faixa, enquanto segue a 20 quilómetros por hora. Não consigo evitar olhar para desgraças e, como tal, mesmo com dramas e calamidades a encherem as 24 horas do dia, fui perder tempo à volta do debate do Orçamento do Estado apresentado pelo Partido Socialista (PS) para 2024.

    Olho sempre para Orçamentos com alguma desconfiança porque, no essencial, parece-me que os sucessivos Governos se limitam a distribuir apoios e subsídios e nunca a fazer as reformas estruturais ou a tomar as opções políticas que o país precisa. Com a Educação como ponto de partida, obviamente. E quando falo em Educação, refiro-me a tudo o que vai da creche até à universidade. Grátis e universal. É esse o desígnio de um país que se quer desenvolver e não apenas fazer de incubadora de talentos para os países de primeiro mundo.

    As linhas gerais deste orçamento são um sonho para a direita e veio daí a minha principal curiosidade. O que diriam o Partido Social Democrata (PSD) e a Iniciativa Liberal? O Chega nestas contas não importa tanto porque, por regra, grita e critica para chamar a atenção mas não tem ideias para apresentar. E enquanto for assim, são um problema a menos. Quando além do milhão de votos começarem também a ter propostas inteligentes, é que a coisa fica sem solução.

    Redução do IRS nos cinco primeiros escalões parece ser uma boa iniciativa, apanhando a maior parte dos trabalhadores e deixando aqueles que ganham mais de 2000 euros de fora. O que em Portugal se considera rico, num país desenvolvido seria um pobre, mas enfim, há que começar por algum lado. Ao mesmo tempo, aumentam-se alguns impostos indirectos em artigos como o tabaco e outros não essenciais para não causar muita polémica e ainda aliviar o SNS. Medina repetiu várias vezes o jargão das “contas certas” que, por tradição, pertencia ao PSD de Passos Coelho.

    Luís Montenegro anda há meses a dizer que o Governo de Costa é o campeão dos impostos, e Costa resolve baixar os impostos sobre os rendimentos. Julgo que cheguei a ouvir o PSD a queixar-se das pensões baixas e dos aumentos miseráveis dos salários na função pública. Montenegro grita por medidas em que nunca acreditou e tenta ultrapassar o PS pela esquerda. O que faz António Costa? Aumenta as pensões acima do nível da inflação e passa o salário mínimo para 820 euros, ultrapassando o PSD pela direita.

    Até o IVA da restauração diminuiu, uma antiga exigência da direita no apoio às empresas. A TAP, como se sabe, está a caminho de ser vendida e o governo, já se percebeu, também não vai travar o aumento das rendas. Em resumo, o PS apresentou o orçamento com que o PSD sempre sonhou e, de uma só vez, secou a direita e deixou Luís Montenegro sem qualquer oposição para fazer. O que disse ele? Que o PSD votaria contra o Orçamento porque, e cito, “o partido não poderia votar de outra forma um documento que continua a viver da “ilusão” das alegadas contas certas, de uma suposta baixa de impostos que não acontece e de serviços públicos mínimos, ao mesmo tempo que hipoteca o futuro do país e adia reformas verdadeiramente estruturais”.

    Estão a compreender? O PSD de Montenegro queria contas menos certas, mais impostos e mais serviços públicos. Um dia que nunca pensei ver, afinal, chegou. Melhor teria feito se, tal como a IL e o Chega, se tivesse agarrado com unhas e dentes a disparates como o aumento do IUC (Imposto Único de Circulação) para automóveis mais velhos. Não tendo nada para dizer, disfarça-se a ausência de projecto próprio procurando algo para criticar, mesmo que seja o IUC, esse desígnio nacional de extrema importância.

    O que o PS conseguiu com este Orçamento, não foi propriamente melhorar muito a vida dos portugueses. No essencial, continuaremos pobres, sem criar riqueza, sem ter uma educação verdadeiramente universal e com um SNS em contínuo estado de degradação. O que António Costa e a sua equipa de ministros fizeram foi mostrar ao país que a oposição de direita não tem uma única ideia, um único projecto, uma única visão para o desenvolvimento de Portugal.

    Até aqui, pensava-se que o papel de cavalgar as gaffes do governo e disfarçar a falta de ideias com gritos era uma exclusividade do Chega. Agora percebe-se que é um denominador comum à IL (já se desconfiava) e até ao PSD, que deveria ter mais alguma responsabilidade na vida pública portuguesa.

    Reparem até no alinhamento patético e algo deprimente que, esta tríade, consegue ter em assuntos verdadeiramente sérios para lá do parlamento português. Todos condenaram, com maior ou menos violência, as palavras de António Guterres sobre as constantes violações de Israel em Gaza.

    Se no caso de André Ventura não se espera outra coisa porque se rege pelo racismo básico contra árabes, já de Paulo Rangel e Cotrim Figueiredo, aguarda-se mais alguma inteligência e conhecimentos básicos de história, mesmo que aborrecidos para a ideologia.

    Não há oposição de direita em Portugal e a que, neste momento, faz esse papel, é apenas uma piada de mau gosto. Montenegro nunca chegará a primeiro-ministro enquanto Costa, o sonho de qualquer verdadeiro partido de centro, por cá andar. E neste cenário, apenas neste cenário, essa não é uma má notícia. O Governo não é bom, e desde 2020 tem acumulado um rol de disparates a considerar mas esta oposição que lhes tocou, nem de encomenda poderia ser melhor.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gaza: a fase da ‘medição das ditas cujas’

    Gaza: a fase da ‘medição das ditas cujas’


    Em Gaza, entramos na fase do conflito conhecida como “medição das ditas cujas”: o momento em que cada líder ameaça os seus adversários com a força que, por regra, não tem. Netanyahu, o primeiro-ministro israelita, anda há 10 dias a perceber como fazer valer a sua palavra perante a população local e a promessa da invasão terrestre na Faixa de Gaza que, em teoria, erradicaria o Hamas do planeta.

    Ao mesmo tempo, Joe Biden vai avisando Netanyahu que aquela história de we have your back só funciona se ele não matar muitos civis inocentes por dia. Quantos? Não sei. Mas vou arriscar: 50… Ou 100. Não interessa, são palestinianos… Quem é que se vai dar ao trabalho de os contar ou dizer os respectivos nomes? Isso só existe em conferências de imprensa levadas a cabo em Telavive ou Washington.

    a measuring tape on a pink background

    A norte, na fronteira com o Líbano, o líder do Hezbollah grita a plenos pulmões que caso a infantaria israelita entre em Gaza, o grupo armado também entrará no conflito. Esta ameaça levou Netanyahu a reagir: se isso acontecer, será o fim do Líbano como o conhecemos hoje. Isto levou a que os irmãos mais velhos entrassem no bate-boca. No caso de Israel atacar o Hezbollah no Líbano, o Irão avisou já que entraria na confusão também. O irmão mais forte de todos, na pessoa de Biden, respondeu à ameaça iraniana com um simples Don’t. Don’t. Don’t.

    Portanto, temos uma matrioska de ameaças onde velhos que mal conseguem andar sem a fralda, por esta altura das suas vidas, andam sim a prometer pancada uns aos outros, à custa do sangue de soldados mais novos, que terão de combater as guerras por eles decididas. O caldo está mais do que montado e a possibilidade de um conflito regional é real. Há combates na fronteira do Líbano e rockets disparados até do Iémen; portanto, já ultrapassámos os muros de Gaza e ninguém consegue adivinhar o que aí virá.

    Noto uma ansiedade nas reportagens que diariamente anunciam que “a invasão terrestre está por horas”. Parece que a chacina dos bombardeamentos já não vende o suficiente e é preciso sangue fresco. Por vezes, esquecemo-nos que enquanto se discutem tácticas de invasão terrestre, diplomacia e como entrar nos túneis do Hamas e tudo o resto, a aviação israelita continua a bombardear aquela prisão a céu aberto chamada Gaza. Isto é como pescar à cana num aquário e ficar espantado por ver que os peixes não fogem, não nadam para longe.

    black and gray bird on gray concrete wall during daytime

    Nestas duas semanas de bombardeamentos, já morreram cerca de 5.000 palestinianos, a maior parte civis inocentes, não são líderes ou combatentes do Hamas. Para se entender a dimensão do massacre que, pessoas como a Helena Ferro Gouveia continuam a dizer que está dentro do direito de defesa de Israel, atente-se nestes números.

    Segundo as Nações Unidas, desde o dia 24 de Fevereiro de 2022, data do início da invasão russa à Ucrânia, morreram cerca de 9.700 civis. Portanto, em Gaza, em pouco mais de 10 dias, morreram metade dos civis que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia levou em 600 dias. Conseguem por aqui perceber o massacre e genocídio que está em marcha, antes sequer de uma qualquer invasão terrestre?

    Um dos comentários que mais me espantou, de um conhecido e, por norma, errático comentador da nossa praça, é que a paz seria alcançada depois de se erradicar o Hamas. Digam-me, por favor, em que momento da História é que se arrasaram populações inteiras e se conseguiu outra coisa que não fosse criar mais ódio?

    Ouço um pai que perdeu os três filhos num bombardeamento em Gaza, um dos tais sem nome que ali anda pelos escombros à procura da família. Não pertence ao Hamas, limita-se a tentar fazer uma vida naquela prisão. Qual agora a razão que o impede de se juntar ao Hamas? Que se produz dali, agora, que não seja o ódio?

    people gathering in a street during daytime

    Controlar populações e impor-lhes regras (o hobby favorito dos governos americanos) alguma vez trouxe paz? Em que zona do globo isso resultou, que eu não me lembro? No Iraque? Na Síria? Na Líbia? No Curdistão? Na América Central? Nos Balcãs? No Afeganistão? Em que sítio é que, bombardeando-se populações, não se criaram novos inimigos ou não se deu origem a regimes ainda piores?

    Enquanto Lavrov visita o Irão, para ver como param as modas, Putin deixou um recado a Biden: os norte-americanos podiam começar a respeitar as decisões dos outros povos, e não ter o impulso de querer impor fosse o que fosse para lá das suas fronteiras. Dessa forma, não precisariam de estar constantemente a reprimir outros povos. E o pior é que a intromissão norte-americana nos cinco continentes mostra-se de tal forma, que fazem um ditador de extrema-direita ter razão e parecer um turista.

    Entretanto, o foco saiu da Ucrânia porque o Ocidente precisa agora de defender um invasor e, com isto, Putin vai ganhando em vários palcos ao mesmo tempo. Putin aperta a mão de Orban, defende a solução dos dois Estados em Israel, visita a China e manda o número dois a Teerão. Nada mau para uma semana no escritório.

    Já Joe Biden, que mal conseguia respirar e falar ao mesmo tempo, tal era o estado de debilidade, dizia a um jornalista norte-americano que não só se iria recandidatar, como achava que os Estados Unidos tinham aqui uma hipótese de ouro, com estes conflitos, de deixar o Mundo melhor (com o fim do Hamas e de Putin). Não é que ele acredite nisso, mas está a fazer o que pode pelo lobby das armas e a tentar não perder a influência no Médio Oriente. Ele sabe tão bem, como qualquer um de nós, que não se acaba com o radicalismo erguendo mais muros ou largando mais bombas. Mas, como ele dizia nos tempos de senador, Israel é o melhor investimento externo dos Estados Unidos para dominar aquela região.

    E com decisões que afectam a vida de todos em curso, Paulo Portas aproveitou o espaço semanal na TVI para nos lembrar da nossa pequenez e das linhas clássicas dos programas do CDS. Diz que é tempo da Europa controlar melhor a imigração e não receber mais terroristas. Aliás, como se sabe, de momento a entrada é um passeio no parque e os milhares de mortos no Mediterrâneo só por ali ficam, afogados, por má vontade. É caricato e algo deprimente que a direita clássica, e aquela mais camuflada na voz de diversos comentadores das televisões portuguesas, nunca discutam a base do radicalismo. Ou até, vá lá, que um emigrante não é necessariamente alguém mau.

    Vendem-se duas narrativas neste momento. A primeira é que Israel tem direito a defender-se, embora já tenha morto mais de três vezes o número de vítimas que recebeu. A outra é que depois de eliminar o Hamas, a paz virá finalmente e que os restantes palestinianos vão viver felizes para sempre nas prisões que para eles Israel reservou.

    Por esta altura, a avaliar pelos protestos que vão sendo proibidos pela Europa de apoio à Palestina (outro exemplo forte de democracia, diga-se), parece-me que a maior parte das populações já percebeu o que aqui se discute.

    O conflito não começou a 7 de Outubro, o Hamas não nasceu de geração espontânea, o ódio não desaparece com muros ou bombardeamentos. Os territórios estão ocupados, até Guterres o disse, há 50 anos. Portanto, neste cenário, Biden, Ursula von der Leyen, Netanyahu, Rishi Sunak e mais uma série de tristes líderes, querem-nos convencer de que estamos, novamente, numa luta entre o Bem e o Mal. Não estamos. Estamos perante um genocídio com o apoio norte-americano e inglês e o silêncio cúmplice e vergonhoso da Europa.

    É disso que se trata e, por uma vez, tenham a coragem de o assumir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A história do hospital em Gaza

    A história do hospital em Gaza


    O bombardeamento do hospital em Gaza tem tudo o que precisamos para um bom enredo conspirativo. Adianto-vos que não contribuirei para esse peditório, mas, como tudo nesta vida, as argumentações deixam-me a pensar. A história fez-me lembrar, por momentos, a discussão em torno da explosão do gasoduto “Nord Stream”, atribuído a russos, americanos e agentes europeus da NATO. Já passou um ano e não se chegou a lado nenhum que não fosse um enredo de novelas da conspiração.

    No caso do hospital em Gaza, pessoalmente acredito em qualquer cenário: acidente do Hamas ou falha não assumida de Israel. E são 500 mortos ou 50? Importante mesmo é que mais umas dezenas de inocentes, ainda por cima a receber assistência, foram vitimados por esta guerra. Por vezes, no meio desta passagem de culpas e troca de estatísticas, parece-me que nos esquecemos que a única coisa indiscutível é a morte diária de civis inocentes.

    caution children playing graffiti

    Vou no quarto texto seguido sobre este tema aqui no PÁGINA UM e, ao fim de 10 dias de bombardeamentos, as mortes ascendem a 4.000 entre palestinianos, com cerca de 12.000 feridos. O lado israelita mantém-se estável desde os primeiros dias do conflito, com cerca de 1.200 mortos. É, aliás, curioso que enquanto se discute diariamente o direito de Israel a defender-se, os bombardeamentos e mortes não param de aumentar na Faixa de Gaza. Quem ouve os debates imagina que a invasão terrestre é que trará o “direito à defesa”, mas esse, juntamente com a vingança mais do que assumida, está em curso a cada hora que nos sentamos a ouvir os relatos e as diferentes narrativas.

    Reparem como o ciclo de qualquer guerra se repete e, essencialmente, se ganha não só no terreno mas também na comunicação. Lembrar-se-ão, certamente, dos périplos que Zelensky fazia um pouco por todo o Mundo Ocidental em busca de apoio para a causa ucraniana, referindo sempre um momento histórico marcante do país que o recebia. Ontem, Benjamin Netanyahu, dirigindo-se a Rishi Sunak, o primeiro-ministro inglês, disse-lhe que o “Mundo esteve com Inglaterra na sua hora mais negra [referência aos ataques alemães na II Guerra Mundial] e que, agora, Israel esperava o mesmo do Mundo.

    Importa criar condições para continuar a ocupar um território, aprisionar e matar indiscriminadamente, sem passar a bárbaro e/ou terrorista. Graças ao apoio norte-americano nas Nações Unidas, na vertente bélica e financeira, esse papel por parte de qualquer Governo israelita é não só possível como bem real. Os restantes do chamado Mundo Ocidental, com o Reino Unido à cabeça, limitam-se a seguir as indicações da potência dominante. Eis como funciona o Mundo neste conflito.

    blue and white printer paper

    Ainda assim, e voltando ao início, há coisas que eu não percebo, e como também certamente nunca terei hipótese de perguntar a quem de direito, escrevo aqui. Há meses que a Europa e os Estados Unidos afirmam que esgotaram as suas reservas de armas e munições e, por isso, a Ucrânia teria de esperar. Mas mal rebentou a primeira bomba em Gaza, os Estados Unidos começaram a fornecer armas e munições a Israel, o que resultou na demissão de uma alta patente no Governo de Biden, em forma de protesto por mais este despejar de ‘gasolina’ no Médio Oriente. Provavelmente, algures nos confins do Pentágono, há uma despensa maior para as eventualidades em Gaza.

    Outra dúvida que me assalta é a falta de contraditório à argumentação israelita. A história do rocket falhado pela Jihad Islâmica (nem foi o Hamas) que caiu no parque de estacionamento do hospital já corre Mundo. A Jihad Islâmica negou que tenha lançado qualquer rocket e, um pouco por toda a parte, os israelitas contam uma história afinada sobre um míssil que não era deles.

    No caso português, arranjaram um major que falava espanhol e que foi “entrevistado” pela Helena Ferro de Gouveia para nos contar a versão oficial de Israel. “Entrevistar” é uma força de expressão, porque durante seis minutos o senhor falou sem que lhe fizessem qualquer pergunta. Foi mais um tempo de antena. Entre outras coisas, disse ele que nos radares israelitas não havia qualquer bomba enviada para aquela zona.

    person holding green white and red flag

    Não digo que esteja a mentir, note-se, mas é como aqueles vistos que preenchemos para entrar nos Estados Unidos onde nos perguntam se andamos envolvidos em actividades terroristas.
    Parece-me uma dose de fé excessiva, esperar que um terrorista se identifique como tal. Mais ou menos o mesmo que esperar que um exército que envia uma bomba que acaba num hospital, ir a seguir a correr mostrar imagens de radar com a mesma. É a história da raposa que guarda o galinheiro.

    Disse ele também, o nosso major que falava espanhol, que uma das provas era uma comunicação interceptada entre dois membros do Hamas que discutiam a gaffe com o lançamento do rocket a(de outro grupo que não eles). Uma vez mais, também pode ser verdade. Se eu estivesse no lugar da Helena, ter-lhe-ia perguntado qual era o operador telefónico que garantiu a chamada entre os dois terroristas. Num território onde a luz falha e, de todos os operadores telefónicos, já só sobra um com antenas operacionais e a 60% da sua capacidade, seria curioso fazer um fact check mínimo. Mas não era para isso que a nossa Helena estava lá e também ninguém se vai aborrecer por causa disso. O senhor pode estar a falar a verdade, notem. Mas aparentemente, esta história é aceite sem que uma equipa independente esteja no terreno a averiguar.

    Há ainda outra frase que me anda aqui a beliscar a orelha e que fui ouvindo ao longo da semana – e não é nova nem original, e repete-se a cada conflito em Gaza ou na Cisjordânia: “Se nem os vizinhos os querem é porque não são boa coisa”, assim dito por populares, anónimos e comentadores com alguma responsabilidade, a propósito de Egipto e Jordânia se recusarem a receber refugiados.

    Ora, meus amigos, e por que razão deveriam os vizinhos abrir as portas para mais refugiados? Acharão porventura que já lá terão poucos? Desde que a ocupação israelita começou, cerca de 1,4 milhões de palestinianos mudaram-se para campos de refugiados espalhados entre Síria, Líbano, Jordânia e os próprios territórios ocupados em Gaza ou na Cisjordânia. E dali nunca mais saíram. Portanto, que motivo teriam os vizinhos para continuar a contribuir para o sucesso da invasão israelita? O que se devia discutir não é para onde os palestinianos devem ir, mas sim, porque necessitam de ir seja para onde for?

    Não haverá paz até que se criem os dois Estados e não há dois Estados com apenas uma potência dominante. Aqueles que ficaram felizes com o enfraquecimento da Rússia, escusam de chorar agora pelas milhares de crianças que vão morrendo em Gaza. Repito aquilo que disse em textos passados sobre o conflito no Donbass: não existem impérios bons ou maus, só existem impérios. E pior do que ter duas ou três super-potências, é claramente ter apenas uma a decidir por todos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números

    Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números


    Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.

    Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”

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    O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.

    Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.

    Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”

    blue and white flag on pole

    O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.

    Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.

    Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?

    E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.

    Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.

    Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.

    Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.

    PALESTINE

    Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?

    Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.

    Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar

    Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar


    Desde segunda-feira, dia em que escrevi o primeiro texto sobre o mais recente episódio do conflito israelo-árabe, que tenho tentado acompanhar a situação através de meios de comunicação portugueses e estrangeiros. É extraordinariamente difícil perceber o que se passa no terreno porque sobram ideologias onde se espera informação. Não há a mais pequena dúvida sobre como este conflito é descrito pelo Ocidente. Com raras excepções, estamos perante terroristas que atacaram uma democracia. Ponto final. Toda a análise que se pode ou deve fazer a partir daí passa para segundo plano.

    Eu não consigo, por mais que tente, ver um conflito de um dos lados e muito menos no caso da Palestina. Não se trata de ideologia, trata-se de um simples conhecimento da história e, já agora, de ver e conhecer as condições de vida daquele povo nos territórios ocupados.

    Man in Blue and White T-shirt Holding Black Dslr Camera

    Há uns meses um leitor dizia-me, a propósito de um texto onde defendi as negociações em vez da escalada de violência na Ucrânia, que não se pode negociar enquanto o adversário está numa posição vantajosa, de força. Ou seja, há que o enfraquecer (com balas), e depois negociar. Esta é uma posição mais ou menos consensual em relação à invasão russa do Donbass. Primeiro é preciso “cortar-lhes um pouco as pernas” e depois sentar à mesa. Notem que o mesmíssimo raciocínio desaparece quando se fala de Gaza ou da Cisjordânia. Aqui já não se pode enfraquecer o invasor porque passa a barbárie.

    Também já ouvi, em horário nobre, que é normal que a nossa simpatia seja maior com o povo ucraniano por estes serem mais “parecidos connosco”. Louros, brancos e de olhos azuis. Para quê aprender história quando os conflitos do mundo se podem resolver com uma boa dose de racismo? Como sou mais parecido com um árabe do que com um norueguês, achei por bem tentar perceber o que por ali se passava e andei a vaguear, no terreno, atravessando os muros entre territórios ocupados e as zonas (teoricamente) controladas pelos palestinianos. É relativamente importante ver para compreender o que se discute.

    Dou-vos um exemplo. Ontem, Benjamin Netanyahu, disse que tinha ordenado um cerco à Faixa de Gaza, corte de água e luz, até que os reféns fossem libertados. Ao mesmo tempo, o exército israelita acampou às portas do território, esperando pela luz verde para entrar a atirar para tudo o que mexe.

    People Gathering in a Concert during Night Time

    A ironia aqui está na ordem para “cercar Gaza”. Deixem-me falar-vos sobre Gaza, uma pequena faixa de terreno com 60 quilómetros, cercada pelo mar, pelo Egipto numa pequena porção de terreno (zona de Rafah) e por um gigantesco muro, com os mesmos 60 quilómetros, que separa 2 milhões de pessoas dos territórios ocupados por Israel. Um muro com torres de guardas a cada 150 metros, armas automáticas ligadas a sensores, arame farpado, placas de betão subterrâneas para evitar túneis e todo o tipo de video-vigilância que possa detectar qualquer movimento perto da zona de fronteira. Portanto… o primeiro-ministro de Israel mandou cercar o quê? Quando é que Gaza não esteve cercada nos últimos 30 anos? O muro começou a ser construído em 1994 e ainda estamos a discutir, em 2023, como se os habitantes de Gaza fossem livres de decidir os seus movimentos?

    Se percebermos que eles vivem numa prisão desde que nascem, talvez seja mais fácil analisar o ódio pelos seus carcereiros. E é essa honestidade que devemos ter quando discutimos este conflito. É que dou por mim a ver gente, que é vista por uns quantos milhares na televisão, a falar no ataque do Hamas como se tivessem partido de um jardim de flores e iniciado uma guerra nova. Israel colhe os frutos das suas ocupações e criações, a começar pelo próprio Hamas.

    Outra coisa que me está a fazer alguma confusão é o relato apaixonado e dramatizado dos sequestros. Há conferências de imprensa com famílias que pedem a devolução dos seus entes queridos por estes não terem qualquer relevância para o conflito.

    green tree on brown sand during daytime

    A primeira coisa que gostaria de dizer é que não imagino o sofrimento de ver um familiar raptado e escondido algures por guerrilheiros. Não consigo perceber sequer, felizmente, o que estão aquelas famílias a sentir. Mas não é verdade que não tenham relevância. Isto não é particularmente simpático de se dizer agora mas, quando alguém aceita mudar-se para uma zona que estava habitada por um povo, entretanto aprisionado a poucos quilómetros dali, devia saber que está a correr riscos e que a sua liberdade significa, literalmente, a prisão de outro ser humano.

    Um habitante do Kibutz de Be’eri dizia à CNN internacional que aquela comunidade era pacífica, próspera e que nada fazia prever o que aconteceu. O calmo e pacífico Kibutz de Be’eri está a pouco mais de 7 quilómetros dos muros de Gaza, a maior prisão do mundo onde 2 milhões de pessoas estão encurraladas, para que nas suas antigas moradas floresçam Kibutzs cheios de harmonia. Lamento mas não consigo pactuar com esta hipocrisia. Uma vida é uma vida e pouco me importa a sua origem, raça ou credo.

    Os pedidos para que os reféns sejam devolvidos e as imagens das famílias em desespero, sempre com visibilidade em horário nobre nas televisões, também me faz pensar na forma como choramos por uns e desprezamos outros. Desde que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém e a Faixa De Gaza, em 1967, já prendeu cerca de um milhão de palestinianos (dados das Nações Unidas). Em detalhe, um em cada cinco palestinianos já foi preso com base em cerca de 1500 ordens militares que foram criadas para controlar o que podem e o que não podem eles fazer.

    blue and white flag on pole

    Ou seja, Israel decide as regras de comportamento com que brinda os invadidos e, sempre que estes não as cumprem, desaparecem. Por uns tempos ou para sempre. Não me lembro de ver, ao longo destas décadas, famílias em Londres, Nova Iorque ou Berlim, em directo à hora de jantar, a ter tempo de antena e comoção, para pedir o regresso dos seus entes queridos. Certamente que, entre um milhão de presos, algum deve ter uns familiares no estrangeiro que sintam a sua falta e consigam falar inglês para as câmaras.

    Bem sei que este discurso será confundido com “apoio ao Hamas” quando, o que pretendo, é que mortes e crimes sejam encarados como tal. Venham de onde vieram. Para mim, a fuga da prisão do Hamas (e demais grupos, convém lembrar também que não estão sós na luta armada pela Palestina) não tem qualquer problema, não sou hipócrita. É uma prisão. Já o assassinato de pessoas que estão num concerto, é simplesmente um crime hediondo. O problema é que esse crime é tratado como tal se for feito por árabes e como “direito a resposta” se vier do lado de Israel.

    Há aliás um conceito altamente interessante neste conflito, bem patente nas palavras do secretário de estado americano, Antony Blinken, quando disse “we have Israel’s back“. Traduzido para português corrente, significa que Israel pode arrasar com Gaza e país nenhum árabe pode ajudar aquela gente ou os Estados Unidos entrarão no conflito. E quando se fala em arrasar com famílias inteiras na Faixa de Gaza, já não há o problema ocidental das famílias de inocentes ou dos menores de idade.

    Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel.

    Ouvi alguns analistas portugueses que defendem que Israel deve aplicar o “olho por olho”, matar em quantidade suficiente para “trazer a paz de volta” (o famoso conceito das bombas do bem) mas não ultrapassar os limites para não ser bárbaro como o inimigo. Ora, esta é uma conta difícil de fazer. Quantos civis pode Israel matar em Gaza para meter o Hamas na ordem e, ao mesmo tempo, aparecer aos olhos do mundo como não-invasor e país civilizado? Eu respondo: tanto faz. Podem matar o que quiserem. Os Estados Unidos estão convosco, logo, a NATO está, a União Europeia também, e até algumas ditaduras árabes do bem (que nos dão uns barris), até são capazes de ficar do mesmo lado.

    Já os russos, com um regime pouco recomendável, disseram ontem que no fim deste conflito tinham que finalmente criar os dois estados. Zelensky, por sua vez, vendo que a agenda noticiosa mudou de Kiev para Gaza, acusou Putin de apoiar o Hamas e o terrorismo em geral. E até por ter instigado a covid num morcego chinês qualquer.

    Com os poderes todos alinhados e os lados escolhidos, agora resta aos habitantes de Gaza fazer o que fazem melhor. Morrer. E em silêncio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Há uma invasão que é aceite pelas Nações Unidas

    Há uma invasão que é aceite pelas Nações Unidas


    Ouvi o embaixador Seixas da Costa a definir o Hamas como uma organização terrorista porque, e cito de cabeça, as Nações Unidas assim o dizem e a organização palestiniana faz ataques a civis no seu combate a partir da Faixa de Gaza. Este é um tema que daria para escrever um livro e, honestamente, nem sei bem por onde começar mas vou por aqui: o Hamas não é propriamente um grupo recomendável e até acho que prejudica mais a causa palestiniana do que para ela recolhe apoios, mas meus amigos, quem é que ajuda a luta da Palestina?

    A definição das Nações Unidas sobre o Hamas é absolutamente irrelevante. Neste ou em qualquer assunto. Uma organização que aceita, durante 50 anos, um bloqueio a Cuba assente em dois votos favoráveis (Estados Unidos e Israel) contra 180 de nações que o rejeitam consecutivamente, não tem para mim qualquer legitimidade. As Nações Unidas servem para condenar (veemente, por norma) os ataques que o Governo de Washington mandar condenar. De resto, são como um garfo num prato de sopa.

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    Seixas da Costa dizia, nessa análise (de Domingo, julgo) que tinha toda a simpatia pela causa da Palestina mas que existiam limites para a barbárie. Outra analista, agora não me lembro qual, dizia que a solução dos dois Estados para o conflito israelo-árabe ficava agora mais distante. Não vou agora escrever que palavras me saíram quando ouvi estas análises, mas julgo, para o leitor, não serão difíceis de adivinhar, sabendo que ficam mal numa mesa de jantar com os avós.

    Claro que existem limites para a barbárie, claro que atacar civis é condenável e claro que, mesmo uma guerra, tem regras. Mas porque é que toda essa solidariedade e compreensão só acontece, na comunidade internacional, para o lado de Israel? A Faixa de Gaza é bombardeada constantemente e o que vemos na comunidade internacional? Algumas palavras de ocasião, as habituais justificações de que se trata de uma resposta a um rocket que não matou ninguém.

    Andamos há anos a ver uma luta entre David e Golias onde guerrilheiros de scooter desafiam um dos mais poderosos exércitos do mundo. Por cada morto no lado israelita há dezenas do lado da Palestina. Militantes do Hamas, civis, mulheres, crianças. O que estiver à frente, importa pouco. Quando morre um israelita estamos perante uma barbárie, quando morrem 10 palestinianos em Gaza foi porque o Hamas os usou como escudo. Andamos há décadas com estes dois pesos e duas medidas.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Quando nos dizem que AGORA a solução dos dois estados fica mais difícil, eu pergunto, quando é que estiveram mais próximas? Os 70 anos anteriores ainda não foram tempo suficiente para se chegar a uma
    solução? Quem é que acredita que algum dia existirá uma solução quando as decisões e imposições israelitas são secundadas e protegidas pelo maior exército do mundo (o americano).

    Eu acho até um pouco revoltante esta condenação generalizada pela luta armada de um povo invadido há décadas. Ou neste caso já não se aplica o direito a defender a integridade territorial? Não sei se alguma vez visitaram os territórios ocupados da Palestina e viram, por exemplo, a humilhação diária por que passam os habitantes da Cisjordânia para irem trabalhar do outro lado do muro.

    Perceber que os milhões de palestinianos na Cisjordânia e, especialmente, em Gaza, vivem numa prisão a céu aberto com os passos controlados pelas forças de segurança israelita,  é meio caminho andado para se discutir o conflito com alguma inteligência. Não são dois países independentes a disputar uma fronteira. É um povo invadido que tenta fugir de uma prisão há décadas, com o Ocidente todo contra eles. E não vale a pena dizer que “sou a favor da causa da Palestina mas isto de raptar pessoas não pode ser”.

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    Meu amigos, há décadas, não são meses, são décadas, aquele povo espera alguma ajuda enquanto é cercado e bombardeado repetidamente. Ninguém, que não sejam eles, percebe aquilo por que passam e a luta que travam sozinhos contra as potências do Mundo. Ninguém quer saber daquela gente, ninguém. Não suporto ouvir dirigentes a afirmar, o politicamente correto, apoio à Palestina. Se apoiam, condenam a invasão de Israel e fazem o que podem para libertar um povo que vive em condições desumanas. É uma invasão. Também ali se trata de uma invasão mas com regras de apoio bem diferentes das concedidas à Ucrânia.

    Desta vez levaram a guerra para território inimigo e surpreenderam toda a gente. É daí que vem a condenação geral. Morreram israelitas, muitos. Normalmente não chegam aos dedos de uma mão. A espectacularidade militar da accão foi tal que, de imediato, os Estados Unidos destacaram um porta-avião para a zona de forma a refrear os ânimos de intervir por parte do Hezbollah.

    Reparem nas diferenças para a situação Ucraniana. Ali a Europa e os Estados Unidos aliam-se para fornecer armas e dinheiro, de forma a combater o invasor. Em Gaza, ninguém vê problema algum de 2 milhões de pessoas viverem entre muros numa faixa de 60 km. E também ninguém se aborrece se de vez em quando lá deixarem cair umas bombas. Quase 70 anos disto e continuamos a fingir que é normal. A cada tentativa de sair da prisão, a cada rocket que atinge um prédio (maior parte deles ficam no Iron Dome), lá vai o exército israelita matar 10 vezes mais. E a comunidade internacional segue impávida e serena a pactuar com um erro histórico do pós-guerra mundial.

    a close up of a wall with graffiti on it

    Mas no dia em que guerrilheiros palestinianos pisam solo israelita, as Nações Unidas cortam o financiamento aos projectos humanitários na zona, o exército israelita ganha ordem para matar indiscriminadamente e os Estados Unidos entram em menos de 24 horas no conflito.

    Há claramente invasores do bem e invasores do mal. Do lado dos dirigentes judeus, devem por estes dias andar a amaldiçoar aquele momento, no século passado, em que ajudaram a formar o Hamas, para combater a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat. Mesmo assim, que jeito deu a Netanyahu este conflito para desviar as atenções das reformas judiciais tão contestadas pelos povo israelita.

    Acredito na repressão brutal do exército israelita e, enquanto escrevo, ouço os bombardeamentos a Gaza. Não acredito no envolvimento de outros países árabes e imagino que no fim, tenhamos novamente um número desproporcionado de mortos de um lado e a comunidade internacional a venerar o invasor. A solução dos dois estados não ficou mais longe porque não estava sequer perto. A única coisa real era, e é, a humilhação diária de um povo mártir e aprisionado na sua própria casa.

    aerial view of city buildings during daytime

    O resto é a pura hipocrisia do chamado Ocidente, que tanto declara solidariedade com a invasão israelita ou trata como democracia a sanguinária ditadura saudita. Que se choca porque um milionário morre a caminho do Titanic, mas dispensa apenas um rodapé de notícia para milhares de africanos que se afundam no Mediterrâneo. Já não tenho paciência ou estômago para tanta hipocrisia ou indiferença pela vida humana, consoante a cor da pele, credo ou tipo de negócio que nos proporciona. A nós, os tais civilizados do mundo bom.

    Acabo como comecei: não acho que o Hamas traga uma grande vantagem à causa palestiniana. Mas não tenho qualquer dúvida que, com Hamas ou sem Hamas, eles, o povo da Palestina, já esperaram e em condições miseráveis, por alguém que lhes desse a mão. Ninguém os tirou daquela prisão. Ninguém. E não se pode dizer que tenham esperado pouco.

    Aos ucranianos bastaram dois meses para terem o Mundo a combater os invasores. Na Palestina, não tarda, chegamos a um século sem uma solução que lhes traga, pelo menos, um cartão para sair da prisão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Greta de Xabregas

    A Greta de Xabregas


    Tenho, por norma, o hábito de apreciar (quase) todas as manifestações de ideias, convicções e ideais no espaço público. As excepções à regra serão, obviamente, manifestações anti-democráticas, fascistas e outras que tal.

    Entendo o grupo de jovens que agora aparece, quase todos os dias, em acções de luta contra as alteracões climáticas mas parece-me que precisam rapidamente de um estratega naquele meio-campo. 

    Close-Up Photo of Assorted Color of Push Pins on Map

    A primeira coisa a perceber é quem devem chatear. Em princípio não vão conseguir grande coisa com três almas sentadas numa rua de Lisboa ou uma dúzia a atrapalhar o trânsito na Segunda Circular. E porquê? Porque aqueles desgraçados que andam na Segunda Circular já têm problemas que cheguem na vida, a começar pela própria Segunda Circular, e não podem fazer absolutamente nada pela causa ambiental. Bom… não é bem assim, dizes tu jovem votante do PAN; eles podiam todos largar o carro e ir nos transportes públicos. O que é verdade, mas, para isso, a rede pública de transportes tinha de ser uma verdadeira alternativa, o que nos traz, novamente, para a minha primeira afirmação: os automobilistas da Segunda Circular não decidem nada. 

    Neste caso não se aplica aquela máxima das greves: “greve boa é aquela que incomoda”. Vejam o caso da CP, por exemplo: não há forma de reivindicar sem atrapalhar a vida de milhares, mas nesse caso faz sentido porque é uma forma directa de pressionar os decisores. Não é o que acontece aqui.

    As únicas pessoas que os manifestantes incomodaram, como se percebeu, foram aqueles condutores que os tiraram da estrada como quem puxa um fardo de palha. Apareceram nos noticiários, de facto, mas a discussão sobre o tema foi inexistente, e o incómodo a quem tem que decidir foi nulo. Quanto muito conseguiram virar a opinião pública contra eles.

    Não é fácil discutir este tema num país pequeno como Portugal, que se limita a seguir as políticas da União Europeia e a gerir fundos comunitários. Reconheço esse esforço aos activistas. Mas estar a chatear pessoas que andam na luta diária para conseguir pagar taxas de juro e a inflação no supermercado, não os levará a bom porto. Fazem-me lembrar um jornalista que andava a lamber maçanetas de porta, durante os confinamentos, para dizer que a vida continuava apesar da covid-19.

    person holding black and brown globe ball while standing on grass land golden hour photography

    De facto, continuava e continuou mas para isso bastava, por exemplo, fazer o que os suecos faziam nessa altura: uma vida relativamente normal com algum distanciamento e regras básicas de higiene. No fundo aquilo que se deveria fazer sempre. Ninguém lambia maçanetas de portas antes de se ouvir falar na covid-19, portanto, começar essa nobre actividade era só estúpido e não trouxe nada do que se pretendia para a discussão. Hoje, que pagamos a factura dos confinamentos e vivemos na mesma com infecções por covid-19, o tema já não se discute com o fanatismo de então. E ainda bem. Mas as discussões entre dois pólos de radicalismo raramente ajudam seja que causa for.

    Portugal tem na pirâmide das necessidades um mundo de prioridades antes de se focar nas alteracões climáticas. Não é que não sejam importantes, entenda-se, mas normalmente quem não sabe se garante o jantar, não está assim tão preocupado com o aquecimento do planeta. 

    Eu diria para estes activistas, que querem ter o assunto na agenda, se concentrarem em arranjar números e alvos. Números, desde logo, porque três pessoas subnutridas não incomodam ninguém. Alvos porque se querem discutir ideias, têm de ir ao encontro de quem as pode legislar. Vão furar pneus aos ministros, fazer greves de fome em frente à Assembleia da República, mandem um mail à Greta para acções conjuntas, marchem com outros jovens europeus sobre Bruxelas. Mas não vão aborrecer os lisboetas que já andam com a cabeça em papa por aquilo que a realidade lhes traz diariamente e, muito importante, não podem fazer absolutamente nada pelas alterações climáticas.

    aerial photography of city buildings

    Como em todos os grandes temas da actualidade, Portugal seguirá o que outros disserem. Não somos líderes e muito menos temos peso político para impôr agendas na União Europeia. Este é um assunto global, que será decidido por políticas comuns, quando e como as potências assim quiserem. Quando os interesses se alinharem, as guerras acalmarem (acabar, nunca) e as trocas comerciais entre produtores e consumidores não estiverem em risco.

    Notem, por exemplo, que toda a indústria automóvel, dos países desenvolvidos da Europa, nos vende uma revolução verde com a transicão dos motores a combustão para motores eléctricos. Como se o lítio nascesse nas árvores e o seu ciclo de vida não tivesse um enorme impacto ambiental e na saúde das populações que vivem perto das zonas de extração. Revolução verde, ou lá o que lhe quiserem chamar, é tirar 50 pessoas de 50 carros e colocá-las num autocarro. Todo o resto que se discute são apenas alterações de modelo de negócio para diferentes multinacionais. 

    Portugal, como todos sabemos, está longíssimo de ter no clima a sua principal preocupacão e, como qualquer país pobre, tratará de sobreviver primeiro aos juros e depois logo verá o que fazer com a subida das águas. Se, entretanto, quem de facto dá as ordens indicar outra direcção qualquer, pois trataremos de a seguir com algumas bazucas pelo meio.

    man near building

    Até lá, recomendo aos activistas, que certamente não quererão deixar o tema arrefecer, que se manifestem junto dos agentes políticos e procurem granjear simpatia e apoiantes para a discussão que, repito, é importante. E pela vossa saúde, arranjem um porta-voz que tenha apanhado sol nos últimos três anos e não coma só rebentos de soja. 

    Uma pessoa tem mais vontade de ouvir se o interlocutor não for um rapaz que declarou guerra a todo o tipo de vitaminas.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo

    Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo


    Durante muitos anos, tive como ideal de vida uma solução que me permitisse trabalhar e, ao mesmo tempo, ir vendo o Mundo em permanência. Imaginava-me a viver num veículo qualquer, a trabalhar de forma remota e, noite após noite, ir avançando na direção desejada.

    O melhor que consegui foi fazer isso por períodos curtos de algumas semanas. Nunca descobri a solução mágica de coordenar esta opção com as responsabilidades de manter um ambiente estável e mais convencional para a minha família. Portanto, ser pai e marido ganhou sempre a ser nómada digital sobre rodas. O que também não me aborrece, devo dizer. Voltarei à estrada, ou ao mar, quando as crias estiverem prontas para voarem sozinhas.

    green and white van

    Pensava nisto enquanto via uma reportagem sobre o aumento nas vendas de auto-caravanas, procuradas hoje em dia como uma alternativa às crescentes dificuldades com a  habitação, em Portugal. Já não achei a solução tão idílica e aventureira como nos meus sonhos originais.

    Sabia que algumas famílias se tinham mudado permanentemente para casas pré-fabricadas em parques de campismo, para casas de familiares, para habitações divididas com outras famílias e, nos casos mais graves, para a rua. Mas ainda não tinha visto esta opção de pagar um crédito automóvel para viver nele.

    Na reportagem em questão aparecia uma senhora que trabalhava na câmara de Cascais e que ia rodando vários parques de estacionamento, para contornar a proibição das 48 horas para este tipo de veículos. Mostrou-nos o seu dia-a-dia e explicou que parava naquela zona para ficar perto das imediações da escola do filho. O miúdo, como é lógico, não apareceu em frente às câmaras. Ninguém quer que na escola se saiba que a morada real é um parque de estacionamento.

    Mas o que me impressionou mesmo foi a família em questão. Tudo normal, tudo dentro do que se imagina ser a contribuição normal para a sociedade. A mãe tem um emprego permanente, um salário e o filho vai para a escola. Nada de estranho aqui. Mas com o fruto do trabalho não conseguem pagar um aluguer ou contrair um empréstimo para compra.

    silver sedan parked beside white van

    Não estamos a falar de alguém que desistiu, que já nem tenta, que deixou a vida seguir por caminhos mais duvidosos ou que se excluiu da sociedade enquanto membro contributivo. É apenas alguém que vai trabalhar e não consegue pagar uma casa. Não é aqui que percebemos que falhamos enquanto sociedade?

    Normalmente, quando vemos um desgraçado a dormir num cartão nas arcadas da Almirante Reis, somos rápidos a julgar. “Foi a droga”, “perdeu tudo no vício”, “não quer trabalhar”. Raramente temos o discernimento de perceber o mundo de razões que atira alguém para o meio da rua. Apontamos o dedo. Logo. É uma forma de dormirmos bem com a nossa consciência. Não há nada a fazer por aquele desgraçado.

    Mas…e agora? O que fazer quando os juros das prestações bancárias duplicam ou triplicam? Como é que se aponta o dedo a milhares de famílias que ficam aflitas e sem salários que combatam estes aumentos que ninguém percebe? Foi algo que fizemos? Pagámos poucos impostos? Trabalhámos menos do que devíamos? Qual foi a nossa falha, enquanto sociedade que trabalha 40 horas por semana, para de repente estarmos a viver em caravanas, parques de campismo ou quartos com casa de banho partilhada? Qual é a diferença entre isto e os famosos bairros de “trailers” nos Estados Unidos, para onde vão aqueles a quem a falta de segurança social não permite segurar uma habitação convencional?

    white and red building under white clouds during daytime

    Como é que nós, num continente onde o apoio na doença e no desemprego sempre foi o cartão de visita, onde os impostos sempre serviram para garantir o suporte social, de repente estamos a caminhar na mesma direção dos que toda a vida viveram na selva do liberalismo e do individualismo? Como? Não é da liberdade, não se iludam, é do individualismo e da roleta do salve-se quem puder.

    Vejo no Instituto Nacional de Estatística que Portugal tem cerca de seis milhões de apartamentos e que 10% da população vive sozinha. O ritmo de construção não é enorme (110.000 edifícios na última década) mas, somando o que existe, ao que se vai erguendo e à quantidade de agregados familiares, é mais ou menos simples de perceber que, em teoria, há tectos para todos. Onde estão as casas, pergunta-se?

    Não deixa de ser extraordinário que, em todas as ações do Estado para combater os problemas na habitação, ainda ninguém lhes tenha exigido (a começar pela oposição) que entreguem um estudo com todos os imóveis públicos disponíveis para reabilitação ou ocupação, por parte destas famílias que simplesmente já não conseguem pagar as prestações.

    crystal chandelier

    Se pensarmos um pouco nisto, não é assim tão complicado chegar a uma solução. Ou a várias. Até porque o problema é perceptível para todos. Uma hipótese é os governos obrigarem a banca a ignorar a
    Lagarde e a arcar com o prejuízo, deixando as prestações como estavam. Outra é, eles próprios, usarem o dinheiro dos impostos para pagar os aumentos (como ao que parece o Governo de António Costa se propõe a fazer até 2024). Não deixa de ser uma opção política.

    Se acharam uma boa ideia desviar o erário público para manter pessoas saudáveis em casa, certamente não se importarão de o fazer agora para lhes assegurar a dita casa. Até porque, com as notícias que já se vão ouvindo dos vendedores de máscaras, não tarda estão a pedir novos confinamentos. Não dá para confinar sem casa, não é? Pensem lá nisso.

    Há ainda aquela hipótese mais rebuscada de se tentar o aumento de salários, a comelar pelo mínimo. É que isto de ver a inflação como indexante e justificação de todos os aumentos, menos dos salários, deixa quem trabalha numa situação de prisão e desespero permanente. No fim de tudo isto, também não seria mal pensado, enquanto se ataca a vertente financeira da coisa, que o Estado começasse a abrir as portas dos seus imóveis, tomando as dores de uma Remax dos pobres.

    aerial photography houses

    Das várias soluções possíveis, entre as leis da economia e as puras opções políticas, o que eu vejo são os trabalhadores a serem largados à sua sorte enquanto empobrecem a cada mês. Uma pessoa que trabalhe
    não deve ser pobre. Ponto final. Este é um princípio basilar de um país que se julga desenvolvido.

    Em Portugal já se perdem a conta aos que, trabalhando, já nem pobres conseguem ser. Perder o direito à habitação e ver que o Estado Social, para o qual todos contribuímos, pura e simplesmente não existe, é um desespero total, um atestado de terceiro-mundismo e, pior, terreno fértil para as demagogias da
    extrema-direita que se aproveita destes problemas para vender um mundo onde a solidariedade social não existe. Podem agradecer aos sucessivos governos do centrão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.