Autor: Tiago Franco

  • O milagre da Luz

    O milagre da Luz


    Desde que troquei a vida de emigrante, por um vaivém relativamente estranho entre diferentes localizações, noto que a minha vida é feita na base do improviso. Ou em cima do joelho, como diria a minha professora de Matemática.

    Aterrei em Lisboa e, a caminho de um médico, parei para comer bacalhau. Não existem momentos bons ou maus para comer bacalhau, julgo que todos concordamos nessa parte. Ainda o tinto alentejano ajudava o bacalhau a nadar no meu tubo digestivo e já ouvia, a poucos metros, num pavilhão ali ao lado, música estridente ao ritmo de ensaio. Era a banda da Madonna ajustando os acordes para essa noite, naquela sala de espectáculos vendida a preço de amigo ao genro do nosso Aníbal Cavaco Silva.

    Não sabia que a Madonna tinha voltado a casa, confesso, e lá fui eu, poucas horas antes do evento, ver se arranjava uns bilhetes para lá ir reviver os hits dos meus 10 anos de idade. Assim, meio aos trambolhões, dei por mim, ainda cheio do bacalhau, a ver um espectáculo da rainha da pop. Não lhe chamaria um concerto, não diria que ela cantou, mas certamente proporcionou entretenimento.

    O desejo de rever o fiel amigo, regado com bom azeite (um luxo nos dias que correm), levou-me à Madonna e à Isla Bonita da minha infância. Em cima do joelho, como diria a minha professora de matemática. Poucos dias depois, era suposto apanhar um avião e ir para outras paragens. Não entrei nele e acabei por ficar em Lisboa. Foi ontem e era dia de derby. Sim, este é um texto sobre futebol, embora não pareça.

    Tratei de procurar um bilhete de última hora e, entre falsos e oficiais, lá arranjei um que me deixasse transpor as portas da Luz. Era dia de ir à bola, fazer aquilo para que ela serve, ou seja, distrair-me dos problemas reais, nem que seja por 90 minutos.

    Dito isto, eu não sou um adepto fácil. Admito isso. Para mim, não chega ganhar de vez em quando, e muito menos ganhar sem se saber como. Irrita-me profundamente a mediocridade futebolística de uma equipa que tem, de longe, o melhor plantel em Portugal – mesmo com os erros de casting.

    Roger Schmidt, actual treinador do Benfica

    Por esta altura, já perceberam que além de o texto ser sobre futebol, o meu clube é o Benfica. Ao contrário da crónica do Pedro Almeida Vieira a partir do estádio, eu não corro o risco de ter de ser isento. Lembrem-se, o que vão ler a seguir, é opinião sobre o derby de ontem. Não é a crónica do jogo.

    Há qualquer coisa de kamikaze ou incompetência, ainda não percebi, no Roger Schmidt que esta época resolveu irritar o Terceiro Anel. Desde os tempos da conclusão do Estádio da Luz antigo, do fecho do mítico Terceiro Túnel, que todos sabemos que por aí se concentram os sábios da bola. Treinador algum sabe mais do que nós, sobre o nosso clube, ao fim de anos e anos a viver noites épicas com Isaias ou vergonhas inesquecíveis com Jorge Jesus. A idolatrar Pablo Aimar e a pensar como é que, algum dia, Nelo foi o nosso número 10. A relembrar os anos em que João Pinto carregava uma equipa miserável às costas e como Trapattoni, com vitórias de 1-0, acabou com o fado por nós conhecido por “Anos do Vietname”.

    Na época de estreia usou o mesmo 11 até os jogadores se arrastarem, e este ano, com um plantel mais rico (em teoria), não repete a mesma equipa dois jogos e parece já ter tentado todas as combinações possíveis de esquemas tácticos.

    Giovanni Trapattoni

    Qualquer equipa coloca problemas ao Benfica este ano. A defesa não é sólida, o ataque é inexistente e o meio-campo, a parte mais forte, tem soluções a mais. O sonho de qualquer bom treinador e um drama para os incompetentes. Tudo o Terceiro Anel aguentou. A inutilidade dos dois laterais esquerdos comprados para o lugar de Grimaldo. A dispensa de um que já lá estava e era melhor (Ristic). A incompreensível insistência em João Mário, que simplesmente não existe encostado à linha. Os jogos na Liga dos Campeões sem o único trinco do plantel. A dispensa de Vlachodimos. A compra de Tengsted e a dispensa de Henrique Araújo. Ainda assim, de longe, de muito longe, Roger Schmidt tem o melhor plantel em Portugal e a tarefa mais facilitada quando comparado com os seus adversários directos.

    Sérgio Conceição tem uma equipa que nem ele percebe bem o que fazer daquilo, e Ruben Amorim deposita toda a confiança em bola para a frente e o sueco que se desenrasque. A propósito, que grande jogador.

    Ao fim de 36 minutos de jogo, já o Terceiro Anel exigia a substituição de João Mário. Todas as bolas que ali chegaram, sem excepção, ou saíram para o lado ou foram perdidas. Nenhum ataque teve continuidade. O jogo que João Neves carregava, entupia nas alas. Di Maria também andou pelo Instagram nos primeiros 45 minutos e, que me lembre, pouco mais fez do que dois remates. Muito pouco para quem apenas ataca e deixa o trabalho defensivo para o lateral e o médio de cobertura.

    Nem com Di Maria o público foi particularmente simpático, apesar do seu número de títulos e da sua história com o Benfica. Gritavam para que se levantasse. Ao contrário de outros adeptos, que procuram pressionar os árbitros a cada mergulho dos seus jogadores, nós, no estádio da luz, não pactuamos com isso. E um pouco por todo o lado, acompanhado de alguns impropérios, lá iam gritando a Di Maria que se levantasse e corresse – o que pudesse, pelo menos.

    Não sei se Schmidt tirou algum curso de treinador de futebol quando acabou o de engenharia, mas, lá do alto, e em uníssono, os adeptos explicaram o que fazer. O Sporting jogava com menos um e havia mais espaço para correr. As nossas alas não carburavam por culpa de João Mário e Di Maria. Era tempo de os substituir por Guedes e Tiago Gouveia. A leitura era tão simples e óbvia que a poderíamos ter recitado em coro para que ele a ouvisse no balneário. Aliás, era tão cristalina que foi repetida nos quatro canais informativos por antigos jogadores, técnicos e comentadores. Não é Física Quântica porque, se fosse, não estariam mais de 60 mil Einsteins no Estádio da Luz.

    Esperei mais alguns minutos e, a cada tentativa de Tengsted fazer alguma coisa com a bola, eu fui desesperando. Notem que o meu objectivo era ir para ali descontrair da vida real e, afinal, tudo o que estava a conseguir era acumular problemas. O João Neves ainda me tentava dar esperança levando a equipa ao colo em frente a um Sporting que, por esta altura, fazia o que podia apenas para aguentar e perder algum tempo.

    Fui-me embora e já estava no carro quando Gonçalo Guedes entrou. Não aos 83 minutos como escrevi na minha página de Facebook, mas sim aos 86. Uma substituição que chegou com cerca de 86 minutos de atraso e que todos, mas mesmo todos, exigíamos desde o intervalo. Guedes fez o que sabe: correr para a baliza, em contraponto com João Mário que habitualmente corre para os lados. As oportunidades foram surgindo, até que João Neves, o próximo Senhor 100 Milhões, fez o que os génios – os tais que não precisam de tempo de adaptação, bolas mais redondas ou relvas mais aparadas – sabem fazer: parou a bola com perfeição, na sua única tentativa, e fuzilou Adán.

    E depois, enquanto o estádio vinha abaixo e a equipa saltava em redor do novo Menino de Ouro, o outro menino, António Silva, puxava toda a gente para o outro lado do campo, porque havia um jogo para ganhar. Estes miúdos, que respiram Benfica, é que devem ser a aposta. Quase sempre, mas em especial quando são melhores do que o refugo que se compra por 10 milhões.

    O Benfica ganhou, apesar do treinador e sem jogar nada de especial. Os adeptos ficam eufóricos porque, no fim, conta a vitória. Eu faço parte daquela minoria que acha que, jogando assim, é mais fácil perder do que ganhar.

    A imprensa fala hoje num milagre, porque foi isso mesmo que aconteceu, de facto. Nunca tinha visto algo semelhante e, como se percebe, também não vi ontem. Roger Schmidt fez tudo o que podia para perder o jogo, mas a equipa não deixou. Note-se ainda que, “o bom momento do Sporting” que vinha desde o início da época, estava suportado por jogos de nível inferior. Tirando Braga e Atalanta (a quem não ganhou), o Sporting não tinha ainda defrontado um adversário de peso esta época. Já o Benfica, em “crise”, já jogou com o Porto duas vezes, Inter e Real Sociedad. Parece a mesma coisa, mas não é.

    Não sei o que virá aí, mas se fosse eu o presidente do Benfica, e vendo como todos os anjos (e João Neves), protegeram Roger Schmidt no milagre da Luz, somando a todos os erros acumulados da época, trataria de lhe endereçar o convite para passar o Natal à Alemanha. Sorte como a de ontem não se repete. Já a incompetência, temo que sim.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Costa e o circuito fechado da democracia portuguesa

    Costa e o circuito fechado da democracia portuguesa


    Não sou um grande fã de julgamentos na praça pública e, por isso, depois de tantas vezes ter criticado António Costa e o seu Governo, queria deixar-lhe agora, nesta altura, algumas palavras mais meigas nesta. Pelo menos para mim, é difícil perceber todos os contornos desta teia que levou à queda do Governo. Aliás, depois de ler o comunicado da Procuradoria-Geral da República, continuo sem entender ao certo qual é a acusação. O nome de Costa é referido nesta parte que aqui transcrevo:

    No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido [processos do lítio e do hidrogénio]. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente“.

    Portanto, de acordo com as escutas feitas pelo Ministério Público, alguém usou o nome do primeiro-ministro para desbloquear negociatas. Essa é, até ver, a suspeita que recai sobre António Costa. Tratará agora o Ministério Público de provar a acusação e de nos explicar maiores envolvimentos e compadrios. Voltarei à teia do favorecimento e aos envolvidos quando a clareza for maior. Por enquanto estamos na fase do grito e dos ajustes de contas. De Marcelo a Sandra Felgueiras, o activo tóxico Galamba parece estar a produzir resultados.

    Para já, quero comentar a atitude de António Costa que, naquela conferência de imprensa em que anunciava a demissão, sozinho, me pareceu um homem decente. Bem sei que vivemos tempos de fogueiras e precisamos de sangue a toda a hora, mas, se muitos fazem tábua rasa do direito de presunção de inocência, eu prefiro correr o risco contrário, e assim dizer que António Costa, com todas as divergências das políticas escolhidas – que fui aqui escrevendo desde o primeiro dia no PÁGINA UM –, sempre me pareceu um homem honesto. E assumo esta frase sem certezas, mas também sem grandes problemas.

    Pareceu-me um homem decente porque teve a honestidade de, perante a gravidade da suspeição e a esperada morosidade habitual da Justiça portuguesa, não se agarrar ao poder. Não faço ideia em que resultará mais este mega-processo, mas certamente que o nome de António Costa andará pela lama por uns tempos. E isso, mesmo num país onde a desonestidade faz escola, não pode ser normal para o detentor de um cargo político, em especial da função de primeiro-ministro.

    Mostra-se infindável a quantidade de funcionários públicos – convém não esquecer que um político é um funcionário público ou, pelo menos, alguém em funções públicas – que vemos envolvidos em casos mediáticos. com acusações de corrupção ou abuso de poder. Aliás, é um dos cancros da nossa jovem democracia, a normalização do roubo, da desonestidade e da má gestão de dinheiro público.

    O país empobrece, vários políticos enriquecem, há horas e horas de diretos à porta de cada investigado, mas…. no fim, poucos acabam por pagar seja por que crime for ou ver sequer acusações provadas. Nesse sentido, António Costa marcou alguma diferença e teve a sensatez que a posição exigia.

    O Ministério Público fez em quatro anos de investigações aquilo que a Oposição não fez em oito, mas foi engraçado ver, também em horário nobre, a sede de poder dos líderes de direita, enquanto pediam por eleições antecipadas.

    Uma prenda de Natal antecipada que André Ventura, o principal interessado em eleições, não se coibiu de aproveitar. Até o tom do discurso mudou para algo mais moderado – como diria Passos Coelho –, abrindo portas para conversas com o PSD e percebendo que é agora ou nunca.

    Só de imaginar um Governo português com o Montenegro e o Ventura – e eventualmente o rapaz da Iniciativa Liberal – até me crescem pêlos indesejados no pescoço, mas é de facto uma possibilidade. Escrevi aqui na semana passada que o PSD, com Montenegro na liderança, não ganharia eleições enquanto António Costa por cá andasse. Pois António Costa vai-se embora e arriscamos ver o maior número de medíocres que alguma vez representou a direita portuguesa chegar ao poder.

    Miguel Relvas, esse senador da transparência e da respeitabilidade, dizia que o melhor candidato a primeiro-ministro do PS, na óptica do PSD, seria Pedro Nuno Santos. Eu concordo com ele, embora por razões diferentes.

    Pedro Nuno Santos, ao contrário de Costa, encosta-se mais à esquerda e menos ao centro. Ou seja, em teoria, liberta votos que o PSD tinha perdido para António Costa. Contudo, Pedro Nuno Santos também pode ser um candidato bom para recuperar uma segunda versão da geringonça e unir as esquerdas – portanto, na minha perspectiva, pode de facto ser a melhor solução para o período pós-Costa.

    Assim de repente, e olhando para os anos de governação PS, pior do que uma maioria dos socialistas, só mesmo um Governo de coligação entre liberais, tutti-frutti e racistas assumidos. E Portugal já tem problemas que chegue sem esta gente.

    Também agora é preciso saber se o Orçamento de Estado vai ser aprovado – com tudo o que isso implica nos escalões do IRS e no aumento das pensões –, ou se a crise política também vai afectar, ainda mais, uma população que não sabe fazer outra coisa que não seja empobrecer.

    Adivinham-se tempos complicados para Portugal e para os portugueses. Horas de debate, sangue e especulação nas televisões, sem que venha daí grande informação. Se tudo seguir o seu curso habitual, daqui a uns anos teremos prescrições administrativas e, com algum azar, um Governo por onde passou o Ventura. Mais uns milhões desperdiçados pela corrupção institucional que devora o país. Mais uma hipótese perdida de sermos um país civilizado.

    Quando vejo a dança e a azáfama, na demarcação da corrida ao poder, que se seguiram à declaração de António Costa, percebo que essa é a verdadeira luta. Os actores políticos, aqueles que nos dirigem e em quem votamos, não estão preocupados com a verdade ou com o apuramento de responsabilidades. Ninguém quer tornar a nossa democracia um lugar mais respirável para se viver. Aquilo que querem é, essencialmente, perceber quem será o próximo a tirar vantagem do sistema de Terceiro Mundo em que vivemos.

    Ou, como se diz nos Açores, querem “terminar uma vidinha”. A malta dos 900 euros mensais, os tais 75% que seguram o país, podem ir trocando discussões nas redes, nos cafés, entre um golo falhado do Rafa ou um roubo mais ou menos denunciado de um político. No essencial, receio que vamos mudar para tudo ficar igual. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Agora a sério, Marcelo: ¿Por qué no te callas?

    Agora a sério, Marcelo: ¿Por qué no te callas?


    Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Marcelo, Presidente dos Afectos e das Selfies, disse a um representante palestiniano, no Bazar Diplomático, que, “desta vez, foram vocês que começaram” e “têm que ser mais moderados”. Há muito que deixei de prestar atenção a MRS, não só por ser um presidente no qual não me sinto representado mas, principalmente, pela vergonha alheia que me causa.

    Sempre achei o Marcelo, suposto ‘afilhado’ do outro Marcelo, um excelente actor. Alguém que, lá no íntimo, bebeu os ensinamentos do Estado Novo, maturou aquele conservadorismo ao longo das décadas e deu-lhe uma nova roupagem de modernidade nos comentários da TVI, até se tornar um suportável moderado para ganhar eleições.

    No fundo, no fundo, Marcelo é aquele velhinho hiperactivo que não distingue proximidade da população com demagogia barata. Aquele que não separa a pose de Estado da piada barata. Aquele que pensa que estar à vontade e à vontadinha são a mesma coisa.

    Marcelo é o homem profundamente sensível e preocupado que aparece na capa das revistas agarrado a outro ancião que chora, desesperado, a perda da casa e pertences engolidos pelo fogo de Pedrógão, mas que, depois das luzes das televisões se desligarem, o viu morrer alguns anos depois, ainda sem ter uma casa para viver.

    Marcelo é o presidente que visita a comunidade portuguesa no Canadá e comenta o tamanho dos decotes alheios, ou é aquele que passa pelo Alentejo e faz questão de realçar a obesidade de uma das pessoas com quem tira fotografias. Marcelo é um homem que me envergonha, por estes dias, enquanto primeira figura da Nação.

    Se enquanto o tema são decotes, ainda se pode mudar de canal e procurar temas fracturantes. Mas quando a gaffe acontece dirigida a Gaza, já é mais difícil de tolerar. Essencialmente, por uma questão: não é uma gaffe.

    Não foi um deslize. Não foi uma inconveniência. Foi sim a demonstração de uma ideologia e de um pensamento profundamente enviesado, onde Marcelo não está sozinho neste chamado “Mundo Ocidental”, note-se. Mesmo sabendo ser nula a importância de Portugal nas decisões que contam para a política externa da União Europeia, eu fico, ainda assim, incomodado por ver que um Presidente, o do país onde nasci, dizer a um diplomata palestiniano que, “desta vez, eles é que começaram”.

    De forma educada, o representante da Palestina ainda respondeu: “Senhor. Presidente, nós estamos a ser ocupados há 56 anos… Como é que começámos algo?” E Marcelo, como não é rapaz de se calar perante as asneiras, ainda retorquiu que precisam de mais moderação.

    Faz sentido. De facto, tudo aquilo que precisa um povo a viver há décadas numa prisão, e a ser chacinado perante a aprovação do Ocidente, com uma tenebrosa regularidade, é de mais calma e de mais moderação. Como não pedir a pessoas que andam há 50 anos a retirar os filhos de baixo dos escombros de edifícios, que tenham mais calma e moderação perante o invasor?

    Há uma imagem deste fim-de-semana que me marcou. Um pai, relativamente novo, que gritava desesperado para encontrarem o filho no meio da destruição provocada pelo bombardeamento. Um entre milhares que ficam sem os filhos sem terem feito absolutamente nada que não seja aceitar nascer, viver e morrer numa terra cercada.

    Enquanto vejo o desespero daquele homem, e de imediato penso na dor que deve ser perder um filho, imagino o novo militante do Hamas que ali se criou. Em que Mundo vivemos nós se imaginarmos que, para destruir o Hamas, se torna aceitável arrasar milhares de palestinianos inocentes? A única coisa que Israel conseguirá é, sem a mais pequena dúvida, engrossar as filas dos guerrilheiros que defendem o fim de Israel.

    Entretanto, o ‘nosso’ general-NATO, Isidro Pereira, comentava um destes dias que a Resolução das Nações Unidas sobre alvos permitidos é muito clara. Se por lá anda o inimigo, deixa de ser zona civil e passa a militar. Ou seja, num espaço tão pequeno como Gaza, isto é uma espécie de bar aberto. Se entre túneis, um militante do Hamas passar numa qualquer rua de Gaza, aquela rua passa a ser um alvo possível. E é dessa forma que, ao fim de três semanas, os mortos palestinianos vão a caminho dos 11.000. Mais crianças e adultos civis do que em toda a guerra da Ucrânia.

    Dizia outro diplomata palestiniano em Londres que, desta vez, os olhos do mundo se viraram para Gaza porque há mortos israelitas para lamentar. Esta parte é muito importante, pois também mostra o nosso racismo primário nas décadas deste conflito.

    No dia 7 de Outubro, o Hamas fugiu ao controlo israelita, que por norma controla a prisão onde os palestinianos vivem, e num ataque sem precedentes, matou mais de mil israelitas entre soldados e civis. O mundo condenou (e bem) o Hamas, e o racismo presente em boa parte dos analistas, tratou de sincronizar o relógio do conflito israelo-árabe para a linha temporal definida por Marcelo Rebelo de Sousa.

    Desta vez, “foram vocês que começaram”. Desta vez, foram vocês que não ficaram quietos e moderados, satisfeitos e pacientes, dentro do pátio da prisão. Desta vez, foram vocês que não se deixaram matar, tranquilamente e sem grande barulho do Ocidente, pelos bombardeamentos habituais e rotineiros.

    Hoje, três semanas passadas, cada morto israelita foi honrado e vingado com 11 mortos palestinianos, quatro ou cinco dos quais crianças. Mais de um milhão de pessoas deslocadas. Um genocídio em curso perante a protecção norte-americana e, parcialmente, europeia.

    Há 50 anos que estamos habituados aos rodapés de Gaza e da Cisjordânia. Mais uma bomba, mais 50 mortos; mais uma retaliação, mais 100 presos como resposta à morte de um rabino; mais quatro prédios no chão por causa do rocket que ficou no Iron Dome.

    A moderação dos palestinianos levou-os a aguentar uma ocupação durante 75 anos, a ver mais de 30.000 pessoas morrerem em bombardeamentos indiscriminados de Israel e a ter um terço da população deslocada. Quase 1,5 milhões de palestinianos não sabem o que é viver fora de um campo de refugiados. Mas notem… Foram eles que começaram, desta vez.

    Marcelo, como diria um rei espanhol de má memória: ¿Por qué no te callas?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição

    Miguel Sousa Tavares na taberna da Inquisição


    Quando Miguel Sousa Tavares, no seu habitual espaço de comentário na CNN, perguntou a José Alberto de Carvalho se ele casaria com a Miss Portugal, imaginei que a polémica rapidamente estalasse. Pensei se deveria contribuir para isso, numa altura em que Gaza arde e o massacre de palestinianos já ultrapassa as 9.000 mortes.  Achei, ainda assim, que haveria um ponto interessante nesta discussão, que não propriamente um concurso de misses. Voltarei ao genocídio em curso na Faixa de Gaza na próxima segunda-feira, no meu sexto texto sobre o tema, aqui no PÁGINA UM.

    Começo por dizer que só percebo o rasgar de vestes pelos tempos em que vivemos, onde as fogueiras da inquisição são substituídas pelas redes sociais. Precisamos de causas para a indignação 24 horas por dia. Não há nada, absolutamente nada que se diga ou escreva, que não ofenda pelo menos um ouvinte ou um leitor.  

    People At The Bar

    Miguel Sousa Tavares foi deselegante e brejeiro. Importa pouco para a discussão sobre um transsexual num concurso de misses, se ele acha o produto final apresentável, com ou sem plásticas. Um estúdio de televisão não é o sítio adequado para conversas de taberna ou para as questões que, imagino, o Miguel Sousa Tavares deve colocar aos amigos quando vai às perdizes, ali em redor do monte alentejano em Mora.

    Também não sei se este comentário teria incendiado opiniões se fosse feito a propósito de uma mulher biológica ou de um homem, biológico ou não. Notem até que para escrever isto, não sei bem como me referir às pessoas em questão porque imagino que alguma formulação possa ofender seja quem for. Para o termo “mulher biológica”, usei uma expressão dita pela própria miss, numa entrevista dada ao JN no dia 22 de Outubro.

    Talvez seja um defeito geracional, acredito que sim, mas cresci a ver descrições nada simpáticas de personalidades portuguesas sem grande celeuma da sociedade em geral. Nos premiados bonecos do “Contra-informação”, programa que durante muitos anos foi transmitido pela RTP diariamente, a antiga deputada comunista Odete Santos era representada por uma imagem particularmente feia. Manuela Moura Guedes aparecia com uns lábios enormes (tal como Guterres), e Marques Mendes como um pigmeu. Sempre achei as caricaturas mais suaves para uns do que para outros, e questionava-me se os visados não se sentiriam desconfortáveis. O programa (de sátira política) era genial, entenda-se, mas a forma como algumas pessoas eram caracterizadas estaria hoje na categoria de body shaming.

    Importa-me muito pouco o tema de “nascer A mas sentir-se B”. Se um humano se identificar como gato e passar o resto da vida a lavar-se com a língua, mesmo que necessite de retirar umas costelas para atingir tal objectivo, não vejo qualquer problema nisso. Não me incomoda, absolutamente nada, que cada pessoa faça o que quiser da sua vida (e do seu corpo) para se sentir melhor. A parte que me parece mais discutível e com algum interesse é a forma como o todo é afectado pela escolha individual. Espero conseguir explicar esta frase.

    Não é fácil, pelo menos para mim, acompanhar todas as etiquetas que a sociedade vai criando para catalogar preferências sexuais, de género, religiosas, alimentícias e sei lá mais o quê. Acabo por ficar no campo que imagino ser o do bom senso, que é: sejam felizes, mas não me obriguem a defender a teoria do pensamento único onde tudo, todos e a toda a hora cabem em todos os sítios. Não dá. Não é ser inclusivo, é ser idiota e abrir caminho ao disparate eterno.

    Se um homem se sente bem num corpo de mulher, tudo bem. Para mim, até esse momento não há discussão. É uma decisão individual. Se deve entrar num concurso de misses? Já tenho as minhas dúvidas e essa não é certamente uma decisão de uma só pessoa; é da sociedade. E notem, uso o concurso de misses porque é daí que vem a frase infeliz do Sousa Tavares. Num mundo civilizado, não existiriam concursos onde as mulheres são avaliadas pela sua beleza. Seja lá isso o que for. Quando nos dizem, e bem, que vivemos num mundo machista, os concursos de misses são exactamente uma das provas disso.

    Mas essa discussão é interessante. É por aí que quero ir. Deve uma mulher transsexual concorrer a uma disputa de misses? Em teoria, não teria qualquer vantagem, logo, não vejo grande problema. Mas se assim for, a bem de evitar qualquer discriminação, deve um homem que se identifica como mulher ou uma mulher que se identifica como homem, poder concorrer em qualquer competição restrita ao género no qual se identificam?

    No caso de um concurso de beleza, julgo que ninguém vê vantagens aparentes. Ou até no Festival da Canção, onde Conchita Wurst venceu, também não vislumbro qualquer relevância na escolha de género. Se as vitórias forem em nome das escolhas justas (mais bonita, melhor voz), seja lá qual for o critério, e não o “vamos apoiar a coragem e dar o prémio para marcar uma posição”, então tudo bem. Se por oposição, acontecer como em 2022, onde, a propósito da invasão russa, a Ucrânia ganhava todas as competições onde entrava, por solidariedade dos restantes, então já me faz alguma confusão.

    Mas se com beleza e voz, em princípio, não há aparente vantagem na troca de géneros, o que acontece, por exemplo, numa competição onde o físico marca a diferença? O caso de Lia Thomas, a primeira mulher transgénero a vencer um campeonato nacional de natação nos Estados Unidos. Um nadador desconhecido e com resultados modestos na competição masculina que, ao concorrer no género com o qual se identifica, passou a ganhar, causando desconforto nas mulheres biológicas com quem competia. Neste caso, há um claro benefício em usar a parte biológica para obter resultados no outro género.

    People Gathered Near Building Holding Flag at Daytime

    Como resolver a situação? Como é que se garante a liberdade individual das escolhas sem prejudicar o colectivo? Criam-se competições só para trans? Arranjam-se mais umas caixinhas?

    Em tempos, trabalhei com uma pessoa chamada Teresa. Chamemos-lhe assim. Durante dois anos cumprimentei-a todos os dias e dirigi-me a ela com o nome com que se apresentara. Um dia, informaram-me que ela deixara de ser Teresa e agora se identificava como Roberto. A pessoa que estava à minha frente era a mesma, mas, a partir daí, eu deveria tratá-la por Roberto. Foi o que fiz. Mas nunca a consegui ver como um homem. E é aqui que as liberdades se cruzam e devem respeitar. Ela sentia-se melhor como homem num corpo de mulher e com um nome diferente. Eu passei a chamar um
    nome de homem a um corpo de mulher, respeitando a escolha da minha colega. E espero eu, que ela, aliás, ele, tenha conseguido compreender que, aos meus olhos, eu via exactamente a mesma mulher com outro nome.

    Quem sente e muda, vê uma coisa; quem acompanha a mudança, vê outra.  E isto não tem de ser necessariamente negativo. Se todos conseguirmos lidar com as diferenças de opinião e pudermos aceitar as escolhas, sem impor doutrinas, então temos uma boa base para conversar e chegar a qualquer lado.

    Portrait of Woman Wearing Teal Eyelashes

    Se quisermos obrigar toda a gente a escrever “todes“, para não ofender quem não se identifica com o género masculino ou feminino, ou aceitar que um homem passa a ser uma mulher só porque ele diz que sim, então vamos andar a saltar de gritaria em gritaria, e de barricada em barricada, sem chegarmos a grande porto de abrigo.

    Enfim, a questão, para mim, não é se a Miss “marchava” ou não pelos pergaminhos do Miguel Sousa Tavares.

    Conversa de taberna será sempre conversa de taberna, e obviamente não cai bem no Jornal da Noite. A questão, na verdade, é se uma mulher trans deve ser legalmente equiparada a uma mulher biológica. Se sim, temos um caminho onde casos como o de Lia Thomas passarão a ser comuns. Se não, teremos de criar uma infinidade de casos, regras e leis que tragam conforto a todos os tipos de identificação. Para aquelas que hoje conhecemos e para aquelas que possam seguir.

    A Man Looking at the Woman Wearing Brown Hijab

    Nenhum dos caminhos me choca. No primeiro, vejo uma mulher, bem mais flexível que homens, a ganhar ouro olímpico no all around de ginástica masculina. No segundo, vejo o código civil de cada país a ter novos volumes em cada ano. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Nada disso me assusta. Aquilo que me assusta é o radicalismo na discussão de ideias e a necessidade de impor regras ao pensamento do vizinho.

    Miguel Sousa Tavares tem um pensamento, que está longe de ser isolado, sobre um transsexual num concurso de misses. Não é a minha visão e, se fosse, não a diria certamente no Jornal da Noite. Mas, ainda assim, ser inclusivo não é queimar Miguel Sousa Tavares no lume brando das redes sociais. É perceber como se faz a inclusão do indivíduo sem ser injusto para com o todo. Essa é a discussão certa. O resto é apenas ruído, radicalismo e taberna. Vossa e do Miguel.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Comentar os comentadores

    Comentar os comentadores


    O domingo é, em semanas boas e de alguma sorte, o meu dia de folga. Tento, nessa altura, desligar-me da realidade e fazer qualquer coisa que me relembre como a vida era antes de 2020. Tenho a sensação que desde que embirraram com o morcego que trazia o covid-19, nunca mais o Mundo foi o mesmo. Ficámos com os movimentos restritos, perdemos empregos, ficámos sem casas, multiplicaram-se as guerras, levantámos mais muros, empobrecemos em larga escala.

    Viver agora numa pequena ilha, algo remota, tem a vantagem de me permitir desligar do Mundo, se assim quiser. Vou pedalar pelas encostas, ver o mar, caminhar na areia, enquanto o mar não a leva para passar o Inverno, ou então escondo-me na garagem, a arranjar o que estiver na lista de afazeres domésticos.

    Ontem foi dia de fazer lego para adultos, também conhecido por Ikea. Uma pessoa pode fugir da Escandinávia, mas há sempre uma parte que nos persegue. Em princípio, já é tarefa para irritar por si mas, não satisfeito com a hipótese, resolvi deixar a televisão ligada e fui ouvindo análises, debates e podcasts em atraso. Devo dizer que os melhores momentos desta experiência aconteceram quando tinha o berbequim ligado e deixava, por isso, de ouvir os comentadores locais.

    A cada dia que passa constato que, salvo raras excepções, os comentários e análises nas televisões portuguesas são de uma tal pobreza que me pergunto se o campo de recrutamento será assim tão limitado. Enquanto partia a cabeça de um parafuso, deixando o resto dentro da parede (qual seria a probabilidade?), ouvia Helena Ferro de Gouveia (HFdG), sempre naquele tom calmo e pensado, a dizer que Israel já tinha perdido a guerra da comunicação, mas tinha o dever de se defender à luz do direito internacional.

    HFdG é o paradigma dos comentadores televisivos com uma agenda presa por ideologia. Não se limitam aos factos e às informações que conseguem recolher. Moldam a opinião dos ouvintes com a sua opinião formada, muitas vezes, por uma ideologia que não se consegue disfarçar. Não tenho nada contra o debate de opiniões; não gosto é de ver esse exercício a ser apresentado como análise isenta de factos.

    turned-on flat screen television

    Há mais de um ano que ouço HFdG defender activamente o empobrecimento generalizado da população europeia como resultado do incondicional apoio à Ucrânia, para que esta se possa defender da invasão russa. Como todos os que defendem esta tese (mais bombas pela paz), HFdG coloca o relógio do conflito na Ucrânia com início para Fevereiro de 2022, e daí traça toda uma série de cenários onde, basicamente, se deve alimentar militar e financeiramente a Ucrânia até que o último soldado ucraniano morra. É, em resumo, a teoria americana. Ou seja, usar sangue ucraniano enquanto der, até se enfraquecer a Rússia de forma a que fique sossegada nos próximos anos e deixe americanos e chineses a dividirem as rédeas do globo.

    Agora, no caso de Gaza, perante factos semelhantes (um invasor e um invadido), a nossa Helena volta a acertar o relógio para o dia 7 de Outubro (ataque do Hamas) e ignora olimpicamente os 70 anos anteriores para apelar ao direito de defesa israelita. Aqui, o estatuto de invasor já não colhe, como se percebe. Mas pior mesmo, é ver a lista de mortos a crescer diariamente naquele território sem fuga possível e ver como alguns dos nossos comentadores, com HFdG à cabeça, a tentar justificar o injustificável.

    O “direito de defesa de Israel”, frase que já não consigo ouvir, significa, ao fim de 20 dias de bombardeamentos, um saldo de 8.000 mortos, 7.000 dos quais em Gaza e, notem este detalhe, mais de 3.000 crianças. Ou seja, em cálculos simples, a cada 10 minutos morre uma criança na Faixa de Gaza. Isto não é o direito à defesa: é um genocídio com o alto patrocínio dos Estados Unidos e boa parte da União Europeia.

    Estamos novamente na discussão redutora: se não se defende a carnificina em Gaza, então somos apoiantes do Hamas. Já o disse e repito que não acho o Hamas benéfico para a libertação da Palestina, mas pergunto: quem pode criticar o aparecimento de movimentos radicais de libertação entre um povo encarcerado? Recupero aqui uma frase de Miguel Tiago durante um debate com Tiago Mayan Gonçalves: “durante a guerra do Ultramar, também o Estado Novo chamava terroristas aos combatentes que lutavam pela independência dos colonizadores”. Portanto, a visão da História depende sempre de quem a conta e do momento temporal em que é discutida.

    Há ainda outro detalhe que raramente se discute nas televisões portuguesas, a propósito deste conflito: Israel não permite a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza e, como tal, tudo o que vemos e ouvimos são relatos do exterior. Em alguns casos, como são as intervenções de Ana Sofia Cardoso (CNN), estamos perante peças altamente sensacionalistas, a largos quilómetros do conflito e sempre a procurar mostrar o sofrimento no interior de Israel.

    Eu percebo ser difícil mostrar os dois lados quando a entrada em Gaza não é permitida, mas, convenhamos, com crianças a morrer todos os dias debaixo dos bombardeamentos israelitas, torna-se algo anedótico um momento de reportagem com uma janela partida numa prédio intacto, por causa de um rocket do Hamas. Ou ‘rámas’, como a própria Ana diz, fazendo as vezes de Milhazes do Médio Oriente.

    green tree on brown sand during daytime

    Mudei o canal porque não consigo mesmo ouvir mais este nível de hipocrisia e racismo básico.

    Entretanto, resolvi o problema do parafuso sem cabeça. Não foi bonito de se ver, acrescente-se.

    Paro na RTP e estou na análise de Rui Moreira. O tema é a TAP. Não prevejo grande futuro, mas lá está, como já vos expliquei, não resisto a um bom acidente.

    Desligo o berbequim, porque adivinho asneira da grossa. Rui Moreira analisa o veto presidencial ao negócio da venda da TAP e, entre outras coisas, explica que alguns dos grupos interessados já foram falar com ele, enquanto presidente da Câmara do Porto, por causa do investimento pretendido no Aeroporto Sá Carneiro. Segundo ele, a Iberia estaria interessada em passar muitas rotas para lá, dadas as limitações existentes em Lisboa. Expliquem-me, porque o meu limitado vocabulário de emigrante me vai pregando rasteiras, se a palavra “incompatibilidade” ainda está contemplada no dicionário da Língua Portuguesa.

    Como é que um homem que há anos faz campanha contra a TAP pública, com o aberrante argumento que “não serve o Porto”, pode agora estar no papel de comentador a opinar sobre a venda, hubs, interessados e o que melhor serve Portugal,quando há anos que faz, a proveito dos votos, exactamente o contrário? Não há um mínimo de vergonha na cara e alguma coerência no alinhamento informativo? É a RTP, caramba! Não é a CMTV. Exige-se algo mais.

    Voltei a carregar apressadamente no comando e passei pela homilia do Paulo Portas, que desfazia António Guterres, a propósito das declarações do secretário-geral das Nações Unidas sobre o aumento da violência por parte de Israel. Aqui não aguentei sequer um minuto, e decididamente não entendo como há espaço de propaganda e restauração de imagem para políticos que se viram envolvidos em escândalos de corrupção, abuso de poder ou conflito de interesses.

    José Sócrates, Paulo Portas, Miguel Relvas, entre outros, estiveram debaixo das objectivas em diversos momentos das respectivas governações por crimes, suspeitas ou abusos. Como é que aparecem nas televisões, algum tempo depois, como senadores da opinião e alguém a quem os portugueses devem prestar atenção? Não há mesmo mais ninguém? Como é que um político português a quem ainda hoje não se conseguiu retirar toda a verdade do desastre da compra dos submarinos, pode vir criticar Guterres, depois deste ter sido o único dirigente do mundo ocidental a alertar para o genocídio que acontece em Gaza?

    Desisti da televisão e passei para os podcasts. O primeiro era o do Rogeiro com o Milhazes. Ao fim de cinco minutos, já ouvia o Milhazes a dizer que “não nos podemos esquecer da Ucrânia”, como quem faz um apelo de emprego. Compreendo-o. Quem é que quer perder receita depois destes dois anos de sonho? Foi sol de pouca dura e continuei a desfazer móveis ao som de uma playlist do Spotify que era exactamente por onde deveria ter começado. E ficado.

    Motherland Monument among green trees on embankment in Kiev

    Enfim, mas o que custa afinal fazer jornalismo mostrando os dois lados do mesmo conflito? Custa assim tanto dar às pessoas as diferentes versões do mesmo tema e deixá-las formar opinião livremente? Na Al Jazeera, um destes dias, via um painel com um professor de História Árabe, um antigo funcionário das Nações Unidas ligado à ajuda humanitária em Gaza e um antigo membro da Mossad.

    Portanto, um debate com três visões (duas delas totalmente opostas) sobre um conflito com 75 anos. Não há um despejar de narrativas e muito menos horas e horas de especulação criada a partir de um lado. Há discussão, troca de opinião e um verdadeiro debate com argumentos de parte a parte que permite, a quem vê, criar uma opinião mais informada.

    Parte da nossa pobreza e atraso estrutural vem, também, da forma como aceitamos tudo aquilo que alguém, sentado num estúdio de televisão, nos diz. Mesmo que a coerência não exista, o contraditório seja raro e os argumentos mudem entre situações semelhantes.

    Em 10 milhões de habitantes, não deve ser assim tão difícil conseguir ouvir pessoas, em análises televisivas, com mais conhecimento e menos ideologia. E certamente, mesmo entre os antigos políticos que tanto parecem apreciar, devem existir duas mãos cheias que tenham mesmo feito os cursos através de aulas e exames ou não tenham desviado dinheiro público.

    Se a bitola está na CMTV, então tudo bem. Se queremos um pouco mais do que uma população que ainda vê o Big Brother, então é preciso dar um pouco mais do que palha em horário nobre. A começar pelos canais de informação.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O canto do cisne de Montenegro

    O canto do cisne de Montenegro


    Parece estranho olhar para o Orçamento de Estado num momento em que o Planeta arde com guerras, taxas de juro, inflação e um empobrecimento geral da população. Tendo em conta a irrelevância de Portugal no contexto internacional, e o caos em que estamos mergulhados, pensar na política nacional e nas decisões à nossa micro-escala, é quase um momento de puro masoquismo.

    Mas como já expliquei algures por estes textos, eu sou aquele tipo de pessoa que reduz a velocidade, causa algum congestionamento na estrada e fica ali a olhar para o acidente do outro lado da faixa, enquanto segue a 20 quilómetros por hora. Não consigo evitar olhar para desgraças e, como tal, mesmo com dramas e calamidades a encherem as 24 horas do dia, fui perder tempo à volta do debate do Orçamento do Estado apresentado pelo Partido Socialista (PS) para 2024.

    Olho sempre para Orçamentos com alguma desconfiança porque, no essencial, parece-me que os sucessivos Governos se limitam a distribuir apoios e subsídios e nunca a fazer as reformas estruturais ou a tomar as opções políticas que o país precisa. Com a Educação como ponto de partida, obviamente. E quando falo em Educação, refiro-me a tudo o que vai da creche até à universidade. Grátis e universal. É esse o desígnio de um país que se quer desenvolver e não apenas fazer de incubadora de talentos para os países de primeiro mundo.

    As linhas gerais deste orçamento são um sonho para a direita e veio daí a minha principal curiosidade. O que diriam o Partido Social Democrata (PSD) e a Iniciativa Liberal? O Chega nestas contas não importa tanto porque, por regra, grita e critica para chamar a atenção mas não tem ideias para apresentar. E enquanto for assim, são um problema a menos. Quando além do milhão de votos começarem também a ter propostas inteligentes, é que a coisa fica sem solução.

    Redução do IRS nos cinco primeiros escalões parece ser uma boa iniciativa, apanhando a maior parte dos trabalhadores e deixando aqueles que ganham mais de 2000 euros de fora. O que em Portugal se considera rico, num país desenvolvido seria um pobre, mas enfim, há que começar por algum lado. Ao mesmo tempo, aumentam-se alguns impostos indirectos em artigos como o tabaco e outros não essenciais para não causar muita polémica e ainda aliviar o SNS. Medina repetiu várias vezes o jargão das “contas certas” que, por tradição, pertencia ao PSD de Passos Coelho.

    Luís Montenegro anda há meses a dizer que o Governo de Costa é o campeão dos impostos, e Costa resolve baixar os impostos sobre os rendimentos. Julgo que cheguei a ouvir o PSD a queixar-se das pensões baixas e dos aumentos miseráveis dos salários na função pública. Montenegro grita por medidas em que nunca acreditou e tenta ultrapassar o PS pela esquerda. O que faz António Costa? Aumenta as pensões acima do nível da inflação e passa o salário mínimo para 820 euros, ultrapassando o PSD pela direita.

    Até o IVA da restauração diminuiu, uma antiga exigência da direita no apoio às empresas. A TAP, como se sabe, está a caminho de ser vendida e o governo, já se percebeu, também não vai travar o aumento das rendas. Em resumo, o PS apresentou o orçamento com que o PSD sempre sonhou e, de uma só vez, secou a direita e deixou Luís Montenegro sem qualquer oposição para fazer. O que disse ele? Que o PSD votaria contra o Orçamento porque, e cito, “o partido não poderia votar de outra forma um documento que continua a viver da “ilusão” das alegadas contas certas, de uma suposta baixa de impostos que não acontece e de serviços públicos mínimos, ao mesmo tempo que hipoteca o futuro do país e adia reformas verdadeiramente estruturais”.

    Estão a compreender? O PSD de Montenegro queria contas menos certas, mais impostos e mais serviços públicos. Um dia que nunca pensei ver, afinal, chegou. Melhor teria feito se, tal como a IL e o Chega, se tivesse agarrado com unhas e dentes a disparates como o aumento do IUC (Imposto Único de Circulação) para automóveis mais velhos. Não tendo nada para dizer, disfarça-se a ausência de projecto próprio procurando algo para criticar, mesmo que seja o IUC, esse desígnio nacional de extrema importância.

    O que o PS conseguiu com este Orçamento, não foi propriamente melhorar muito a vida dos portugueses. No essencial, continuaremos pobres, sem criar riqueza, sem ter uma educação verdadeiramente universal e com um SNS em contínuo estado de degradação. O que António Costa e a sua equipa de ministros fizeram foi mostrar ao país que a oposição de direita não tem uma única ideia, um único projecto, uma única visão para o desenvolvimento de Portugal.

    Até aqui, pensava-se que o papel de cavalgar as gaffes do governo e disfarçar a falta de ideias com gritos era uma exclusividade do Chega. Agora percebe-se que é um denominador comum à IL (já se desconfiava) e até ao PSD, que deveria ter mais alguma responsabilidade na vida pública portuguesa.

    Reparem até no alinhamento patético e algo deprimente que, esta tríade, consegue ter em assuntos verdadeiramente sérios para lá do parlamento português. Todos condenaram, com maior ou menos violência, as palavras de António Guterres sobre as constantes violações de Israel em Gaza.

    Se no caso de André Ventura não se espera outra coisa porque se rege pelo racismo básico contra árabes, já de Paulo Rangel e Cotrim Figueiredo, aguarda-se mais alguma inteligência e conhecimentos básicos de história, mesmo que aborrecidos para a ideologia.

    Não há oposição de direita em Portugal e a que, neste momento, faz esse papel, é apenas uma piada de mau gosto. Montenegro nunca chegará a primeiro-ministro enquanto Costa, o sonho de qualquer verdadeiro partido de centro, por cá andar. E neste cenário, apenas neste cenário, essa não é uma má notícia. O Governo não é bom, e desde 2020 tem acumulado um rol de disparates a considerar mas esta oposição que lhes tocou, nem de encomenda poderia ser melhor.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gaza: a fase da ‘medição das ditas cujas’

    Gaza: a fase da ‘medição das ditas cujas’


    Em Gaza, entramos na fase do conflito conhecida como “medição das ditas cujas”: o momento em que cada líder ameaça os seus adversários com a força que, por regra, não tem. Netanyahu, o primeiro-ministro israelita, anda há 10 dias a perceber como fazer valer a sua palavra perante a população local e a promessa da invasão terrestre na Faixa de Gaza que, em teoria, erradicaria o Hamas do planeta.

    Ao mesmo tempo, Joe Biden vai avisando Netanyahu que aquela história de we have your back só funciona se ele não matar muitos civis inocentes por dia. Quantos? Não sei. Mas vou arriscar: 50… Ou 100. Não interessa, são palestinianos… Quem é que se vai dar ao trabalho de os contar ou dizer os respectivos nomes? Isso só existe em conferências de imprensa levadas a cabo em Telavive ou Washington.

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    A norte, na fronteira com o Líbano, o líder do Hezbollah grita a plenos pulmões que caso a infantaria israelita entre em Gaza, o grupo armado também entrará no conflito. Esta ameaça levou Netanyahu a reagir: se isso acontecer, será o fim do Líbano como o conhecemos hoje. Isto levou a que os irmãos mais velhos entrassem no bate-boca. No caso de Israel atacar o Hezbollah no Líbano, o Irão avisou já que entraria na confusão também. O irmão mais forte de todos, na pessoa de Biden, respondeu à ameaça iraniana com um simples Don’t. Don’t. Don’t.

    Portanto, temos uma matrioska de ameaças onde velhos que mal conseguem andar sem a fralda, por esta altura das suas vidas, andam sim a prometer pancada uns aos outros, à custa do sangue de soldados mais novos, que terão de combater as guerras por eles decididas. O caldo está mais do que montado e a possibilidade de um conflito regional é real. Há combates na fronteira do Líbano e rockets disparados até do Iémen; portanto, já ultrapassámos os muros de Gaza e ninguém consegue adivinhar o que aí virá.

    Noto uma ansiedade nas reportagens que diariamente anunciam que “a invasão terrestre está por horas”. Parece que a chacina dos bombardeamentos já não vende o suficiente e é preciso sangue fresco. Por vezes, esquecemo-nos que enquanto se discutem tácticas de invasão terrestre, diplomacia e como entrar nos túneis do Hamas e tudo o resto, a aviação israelita continua a bombardear aquela prisão a céu aberto chamada Gaza. Isto é como pescar à cana num aquário e ficar espantado por ver que os peixes não fogem, não nadam para longe.

    black and gray bird on gray concrete wall during daytime

    Nestas duas semanas de bombardeamentos, já morreram cerca de 5.000 palestinianos, a maior parte civis inocentes, não são líderes ou combatentes do Hamas. Para se entender a dimensão do massacre que, pessoas como a Helena Ferro Gouveia continuam a dizer que está dentro do direito de defesa de Israel, atente-se nestes números.

    Segundo as Nações Unidas, desde o dia 24 de Fevereiro de 2022, data do início da invasão russa à Ucrânia, morreram cerca de 9.700 civis. Portanto, em Gaza, em pouco mais de 10 dias, morreram metade dos civis que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia levou em 600 dias. Conseguem por aqui perceber o massacre e genocídio que está em marcha, antes sequer de uma qualquer invasão terrestre?

    Um dos comentários que mais me espantou, de um conhecido e, por norma, errático comentador da nossa praça, é que a paz seria alcançada depois de se erradicar o Hamas. Digam-me, por favor, em que momento da História é que se arrasaram populações inteiras e se conseguiu outra coisa que não fosse criar mais ódio?

    Ouço um pai que perdeu os três filhos num bombardeamento em Gaza, um dos tais sem nome que ali anda pelos escombros à procura da família. Não pertence ao Hamas, limita-se a tentar fazer uma vida naquela prisão. Qual agora a razão que o impede de se juntar ao Hamas? Que se produz dali, agora, que não seja o ódio?

    people gathering in a street during daytime

    Controlar populações e impor-lhes regras (o hobby favorito dos governos americanos) alguma vez trouxe paz? Em que zona do globo isso resultou, que eu não me lembro? No Iraque? Na Síria? Na Líbia? No Curdistão? Na América Central? Nos Balcãs? No Afeganistão? Em que sítio é que, bombardeando-se populações, não se criaram novos inimigos ou não se deu origem a regimes ainda piores?

    Enquanto Lavrov visita o Irão, para ver como param as modas, Putin deixou um recado a Biden: os norte-americanos podiam começar a respeitar as decisões dos outros povos, e não ter o impulso de querer impor fosse o que fosse para lá das suas fronteiras. Dessa forma, não precisariam de estar constantemente a reprimir outros povos. E o pior é que a intromissão norte-americana nos cinco continentes mostra-se de tal forma, que fazem um ditador de extrema-direita ter razão e parecer um turista.

    Entretanto, o foco saiu da Ucrânia porque o Ocidente precisa agora de defender um invasor e, com isto, Putin vai ganhando em vários palcos ao mesmo tempo. Putin aperta a mão de Orban, defende a solução dos dois Estados em Israel, visita a China e manda o número dois a Teerão. Nada mau para uma semana no escritório.

    Já Joe Biden, que mal conseguia respirar e falar ao mesmo tempo, tal era o estado de debilidade, dizia a um jornalista norte-americano que não só se iria recandidatar, como achava que os Estados Unidos tinham aqui uma hipótese de ouro, com estes conflitos, de deixar o Mundo melhor (com o fim do Hamas e de Putin). Não é que ele acredite nisso, mas está a fazer o que pode pelo lobby das armas e a tentar não perder a influência no Médio Oriente. Ele sabe tão bem, como qualquer um de nós, que não se acaba com o radicalismo erguendo mais muros ou largando mais bombas. Mas, como ele dizia nos tempos de senador, Israel é o melhor investimento externo dos Estados Unidos para dominar aquela região.

    E com decisões que afectam a vida de todos em curso, Paulo Portas aproveitou o espaço semanal na TVI para nos lembrar da nossa pequenez e das linhas clássicas dos programas do CDS. Diz que é tempo da Europa controlar melhor a imigração e não receber mais terroristas. Aliás, como se sabe, de momento a entrada é um passeio no parque e os milhares de mortos no Mediterrâneo só por ali ficam, afogados, por má vontade. É caricato e algo deprimente que a direita clássica, e aquela mais camuflada na voz de diversos comentadores das televisões portuguesas, nunca discutam a base do radicalismo. Ou até, vá lá, que um emigrante não é necessariamente alguém mau.

    Vendem-se duas narrativas neste momento. A primeira é que Israel tem direito a defender-se, embora já tenha morto mais de três vezes o número de vítimas que recebeu. A outra é que depois de eliminar o Hamas, a paz virá finalmente e que os restantes palestinianos vão viver felizes para sempre nas prisões que para eles Israel reservou.

    Por esta altura, a avaliar pelos protestos que vão sendo proibidos pela Europa de apoio à Palestina (outro exemplo forte de democracia, diga-se), parece-me que a maior parte das populações já percebeu o que aqui se discute.

    O conflito não começou a 7 de Outubro, o Hamas não nasceu de geração espontânea, o ódio não desaparece com muros ou bombardeamentos. Os territórios estão ocupados, até Guterres o disse, há 50 anos. Portanto, neste cenário, Biden, Ursula von der Leyen, Netanyahu, Rishi Sunak e mais uma série de tristes líderes, querem-nos convencer de que estamos, novamente, numa luta entre o Bem e o Mal. Não estamos. Estamos perante um genocídio com o apoio norte-americano e inglês e o silêncio cúmplice e vergonhoso da Europa.

    É disso que se trata e, por uma vez, tenham a coragem de o assumir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A história do hospital em Gaza

    A história do hospital em Gaza


    O bombardeamento do hospital em Gaza tem tudo o que precisamos para um bom enredo conspirativo. Adianto-vos que não contribuirei para esse peditório, mas, como tudo nesta vida, as argumentações deixam-me a pensar. A história fez-me lembrar, por momentos, a discussão em torno da explosão do gasoduto “Nord Stream”, atribuído a russos, americanos e agentes europeus da NATO. Já passou um ano e não se chegou a lado nenhum que não fosse um enredo de novelas da conspiração.

    No caso do hospital em Gaza, pessoalmente acredito em qualquer cenário: acidente do Hamas ou falha não assumida de Israel. E são 500 mortos ou 50? Importante mesmo é que mais umas dezenas de inocentes, ainda por cima a receber assistência, foram vitimados por esta guerra. Por vezes, no meio desta passagem de culpas e troca de estatísticas, parece-me que nos esquecemos que a única coisa indiscutível é a morte diária de civis inocentes.

    caution children playing graffiti

    Vou no quarto texto seguido sobre este tema aqui no PÁGINA UM e, ao fim de 10 dias de bombardeamentos, as mortes ascendem a 4.000 entre palestinianos, com cerca de 12.000 feridos. O lado israelita mantém-se estável desde os primeiros dias do conflito, com cerca de 1.200 mortos. É, aliás, curioso que enquanto se discute diariamente o direito de Israel a defender-se, os bombardeamentos e mortes não param de aumentar na Faixa de Gaza. Quem ouve os debates imagina que a invasão terrestre é que trará o “direito à defesa”, mas esse, juntamente com a vingança mais do que assumida, está em curso a cada hora que nos sentamos a ouvir os relatos e as diferentes narrativas.

    Reparem como o ciclo de qualquer guerra se repete e, essencialmente, se ganha não só no terreno mas também na comunicação. Lembrar-se-ão, certamente, dos périplos que Zelensky fazia um pouco por todo o Mundo Ocidental em busca de apoio para a causa ucraniana, referindo sempre um momento histórico marcante do país que o recebia. Ontem, Benjamin Netanyahu, dirigindo-se a Rishi Sunak, o primeiro-ministro inglês, disse-lhe que o “Mundo esteve com Inglaterra na sua hora mais negra [referência aos ataques alemães na II Guerra Mundial] e que, agora, Israel esperava o mesmo do Mundo.

    Importa criar condições para continuar a ocupar um território, aprisionar e matar indiscriminadamente, sem passar a bárbaro e/ou terrorista. Graças ao apoio norte-americano nas Nações Unidas, na vertente bélica e financeira, esse papel por parte de qualquer Governo israelita é não só possível como bem real. Os restantes do chamado Mundo Ocidental, com o Reino Unido à cabeça, limitam-se a seguir as indicações da potência dominante. Eis como funciona o Mundo neste conflito.

    blue and white printer paper

    Ainda assim, e voltando ao início, há coisas que eu não percebo, e como também certamente nunca terei hipótese de perguntar a quem de direito, escrevo aqui. Há meses que a Europa e os Estados Unidos afirmam que esgotaram as suas reservas de armas e munições e, por isso, a Ucrânia teria de esperar. Mas mal rebentou a primeira bomba em Gaza, os Estados Unidos começaram a fornecer armas e munições a Israel, o que resultou na demissão de uma alta patente no Governo de Biden, em forma de protesto por mais este despejar de ‘gasolina’ no Médio Oriente. Provavelmente, algures nos confins do Pentágono, há uma despensa maior para as eventualidades em Gaza.

    Outra dúvida que me assalta é a falta de contraditório à argumentação israelita. A história do rocket falhado pela Jihad Islâmica (nem foi o Hamas) que caiu no parque de estacionamento do hospital já corre Mundo. A Jihad Islâmica negou que tenha lançado qualquer rocket e, um pouco por toda a parte, os israelitas contam uma história afinada sobre um míssil que não era deles.

    No caso português, arranjaram um major que falava espanhol e que foi “entrevistado” pela Helena Ferro de Gouveia para nos contar a versão oficial de Israel. “Entrevistar” é uma força de expressão, porque durante seis minutos o senhor falou sem que lhe fizessem qualquer pergunta. Foi mais um tempo de antena. Entre outras coisas, disse ele que nos radares israelitas não havia qualquer bomba enviada para aquela zona.

    person holding green white and red flag

    Não digo que esteja a mentir, note-se, mas é como aqueles vistos que preenchemos para entrar nos Estados Unidos onde nos perguntam se andamos envolvidos em actividades terroristas.
    Parece-me uma dose de fé excessiva, esperar que um terrorista se identifique como tal. Mais ou menos o mesmo que esperar que um exército que envia uma bomba que acaba num hospital, ir a seguir a correr mostrar imagens de radar com a mesma. É a história da raposa que guarda o galinheiro.

    Disse ele também, o nosso major que falava espanhol, que uma das provas era uma comunicação interceptada entre dois membros do Hamas que discutiam a gaffe com o lançamento do rocket a(de outro grupo que não eles). Uma vez mais, também pode ser verdade. Se eu estivesse no lugar da Helena, ter-lhe-ia perguntado qual era o operador telefónico que garantiu a chamada entre os dois terroristas. Num território onde a luz falha e, de todos os operadores telefónicos, já só sobra um com antenas operacionais e a 60% da sua capacidade, seria curioso fazer um fact check mínimo. Mas não era para isso que a nossa Helena estava lá e também ninguém se vai aborrecer por causa disso. O senhor pode estar a falar a verdade, notem. Mas aparentemente, esta história é aceite sem que uma equipa independente esteja no terreno a averiguar.

    Há ainda outra frase que me anda aqui a beliscar a orelha e que fui ouvindo ao longo da semana – e não é nova nem original, e repete-se a cada conflito em Gaza ou na Cisjordânia: “Se nem os vizinhos os querem é porque não são boa coisa”, assim dito por populares, anónimos e comentadores com alguma responsabilidade, a propósito de Egipto e Jordânia se recusarem a receber refugiados.

    Ora, meus amigos, e por que razão deveriam os vizinhos abrir as portas para mais refugiados? Acharão porventura que já lá terão poucos? Desde que a ocupação israelita começou, cerca de 1,4 milhões de palestinianos mudaram-se para campos de refugiados espalhados entre Síria, Líbano, Jordânia e os próprios territórios ocupados em Gaza ou na Cisjordânia. E dali nunca mais saíram. Portanto, que motivo teriam os vizinhos para continuar a contribuir para o sucesso da invasão israelita? O que se devia discutir não é para onde os palestinianos devem ir, mas sim, porque necessitam de ir seja para onde for?

    Não haverá paz até que se criem os dois Estados e não há dois Estados com apenas uma potência dominante. Aqueles que ficaram felizes com o enfraquecimento da Rússia, escusam de chorar agora pelas milhares de crianças que vão morrendo em Gaza. Repito aquilo que disse em textos passados sobre o conflito no Donbass: não existem impérios bons ou maus, só existem impérios. E pior do que ter duas ou três super-potências, é claramente ter apenas uma a decidir por todos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números

    Nove dias de bombardeamentos: vamos então aos números


    Por estes dias, vou enchendo a paciência para lá do limite do saudável com histórias da carochinha e narrativas de virgens inocentes que já não consigo mesmo suportar. Sabemos já que uma das grandes vantagens de Israel nesta ocupação da Palestina, para lá do suporte financeiro e bélico dos Estados Unidos, é deter um departamento de marketing, infinitamente superior ao dos adversários, que serve para plantar histórias um pouco por todo o globo.

    Por exemplo, a CNN portuguesa entrevistou o embaixador de Israel e, pela mesma altura, um político representante da Palestina. Os discursos não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, com um inglês impecável, dirigia-se ao pivot com um: “João, você vive em Portugal, é muito afortunado por isso, está em segurança. Agora imagine que ia ao NOS Alive, e, de repente, entrava por lá um grupo armado que começava a matar toda a gente!”

    man waving flag

    O João (Marinheiro) lá foi digerindo a coisa, e entretanto mete a pergunta fatal: “mas agora o que significa o direito de defesa de Israel?”. Nesta altura, já as mortes palestinianas tinham ultrapassado as baixas israelitas. O embaixador foi rodeando, rodeando, e dizia que não podia revelar os planos, mas que, depois disto, nem o Médio Oriente voltaria a ser o mesmo, nem o Hamas teria nova oportunidade de fazer algo semelhante. Quando o “João” lhe perguntou como é que iriam evitar as mortes civis, ele disse que iam fazer o melhor possível para salvar inocentes, porque, como se sabe, eles já estão lá para escudos humanos de qualquer forma.

    Portanto, com um jargão fantástico e a tranquilidade de quem nos tenta vender uma Bimby, o embaixador israelita foi apresentando o plano para terraplanar Gaza. E muito de vós foram ouvindo aquilo e pensando que, enfim, é natural, afinal, o Hamas matou mulheres e crianças inocentes e jovens num festival. Se agora dois milhões de pessoas, que estão presas desde que nasceram, tiverem de pagar mais um bocadinho, tudo bem, compreende-se. É a clássica lei de talião: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, mas transformada na versão ’olho por vários olhos” et cetera.

    Já o representante da Palestina, munido de um inglês mais rudimentar, dizia algo de puro e simples senso comum: se Israel viesse com uma proposta para os dois Estados e aceitasse negociar, o problema desaparecia. O conflito, o Hamas, o radicalismo, as mortes. E acrescentou, olhando para João Marinheiro: “acha que nós não gostamos de paz? O conflito começou quando eu era criança, e agora, quase a chegar à reforma, ainda não tive um dia de paz.”

    blue and white flag on pole

    O primeiro problema é que não há negociação, não é? Nem agora, nem em momento algum deste século. Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita com mais tempo no cargo (já vai na sexta vez), teve todas as oportunidades de trabalhar na opção que facilitaria a paz, mas o que fez foi incentivar colonatos e aumentar a repressão. Há entrevistas de Netanyahu nos Estados Unidos, no final da década de 70, onde dizia que o senado norte-americano não podia permitir a opção dos dois Estados porque seria injusto para o povo judeu. Nunca este homem quis outra coisa que não fosse expulsar os árabes das suas casas.

    Quando se fala do Hamas como a origem de todos os males, damos um passo maior no índice de estupidez do que aquele já tínhamos dado com a “origem do conflito na Ucrânia em 2022”: a Faixa de Gaza, que era controlada pelos egípcios, começou a ser povoada pelos palestinianos expulsos das suas casas depois da primeira guerra israelo-árabe, em 1948.

    Não sei se estão a perceber o que vem a seguir. Já os palestinianos viviam em campos de refugiados ou em zonas militarmente controladas há quatro décadas quando o Hamas foi fundado, no final da década de 80. Portanto, não é a coisa mais estranha do Mundo ver o surgimento de um movimento radical quando prendemos pessoas durante 40 anos. Bem sei que, pelos relatos do Antigo Testamento, não são tantos como os 400 anos dos judeus sob o jugo dos egípcios, e que só terminou de forma nada pacífica lembremo-nos, com o Êxodo de Moisés – mas sempre são 40 anos, não é?

    E já agora, apesar de não ser estranho, convém lembrar sempre que Israel achou uma óptima ideia o aparecimento do Hamas e até ajudou, porque lhes dava jeito que fizessem uma perninha na luta com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

    three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

    Bem sei que já falei disto, mas parece-me algo inacreditável que se repitam horas e horas a fio em horário nobre, sem explicar por um minuto que seja que esta gente não nasceu nas árvores, e que os sentimentos de ódio a Israel também não apareceram durante aquele concerto. Sem enquadrar as acções no contexto, estamos só a ter uma discussão de surdos sem qualquer interesse e puramente assente em ideologias.

    Entre 2008 e 2020, nos diferentes conflitos entre Israel e palestinianos, estimam-se 5.600 mortes e 115.000 feridos para o lado árabe, e do outro lado, 250 mortes e 5.600 feridos.

    Entendam-me, não quero com isto dizer que 250 vidas valem menos do que 5.600. Digo é que, quando se mata 22 vezes mais, é normal que, aqui e ali, vão aparecendo movimentos radicais assentes em ódio. Se pelo menos percebermos esta parte, já conseguimos discutir o conflito para lá dos inocentes num festival que foram atacados por bárbaros. É verdade, mas não é toda a verdade.

    Só nesta guerra, a tal onde Israel teve mais mortos do que nos 20 anos anteriores, ao fim de nove dias de bombardeamentos em Gaza já morreram quase 3.000 palestinianos e há 10.000 feridos e quase um milhão de deslocados do norte de Gaza.

    PALESTINE

    Segundo as Nações Unidas, estima-se que mais de 1.000 pessoas ainda estejam presas (mortas provavelmente) nos escombros. A resposta, o tal direito de defesa que os Estados Unidos apregoam no seu périplo pelos países vizinhos, é assim, há 40 ou 50 anos, ir ao pátio da prisão onde permitem que os palestinianos sobrevivam, e despejar bombas em cima de pessoas que não têm para onde fugir. Como não odiar quem faz isto?

    Que poderá acontecer quando a invasão terrestre começar? Espera-se que os vizinhos fiquem a assistir? A Europa pede que a força não seja excessiva (o tal matar mas com cuidado), os Estados Unidos voltam para a sua guerra preferida (a Ucrânia tem de esperar um bocadinho), e nós, que andamos a apoiar o enfraquecimento de uma super-potência, voltamos a viver o problema de um Mundo controlado por apenas um país sem qualquer contra-poder.

    Depois da covid-19, da Ucrânia e dos juros da Lagarde, o que precisávamos mesmo era de mais um massacre em Gaza e eleições norte-americanas. E pensava eu que 2020 tinha sido um ano de merda.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar

    Netanyahu, James Netanyahu… licença para matar


    Desde segunda-feira, dia em que escrevi o primeiro texto sobre o mais recente episódio do conflito israelo-árabe, que tenho tentado acompanhar a situação através de meios de comunicação portugueses e estrangeiros. É extraordinariamente difícil perceber o que se passa no terreno porque sobram ideologias onde se espera informação. Não há a mais pequena dúvida sobre como este conflito é descrito pelo Ocidente. Com raras excepções, estamos perante terroristas que atacaram uma democracia. Ponto final. Toda a análise que se pode ou deve fazer a partir daí passa para segundo plano.

    Eu não consigo, por mais que tente, ver um conflito de um dos lados e muito menos no caso da Palestina. Não se trata de ideologia, trata-se de um simples conhecimento da história e, já agora, de ver e conhecer as condições de vida daquele povo nos territórios ocupados.

    Man in Blue and White T-shirt Holding Black Dslr Camera

    Há uns meses um leitor dizia-me, a propósito de um texto onde defendi as negociações em vez da escalada de violência na Ucrânia, que não se pode negociar enquanto o adversário está numa posição vantajosa, de força. Ou seja, há que o enfraquecer (com balas), e depois negociar. Esta é uma posição mais ou menos consensual em relação à invasão russa do Donbass. Primeiro é preciso “cortar-lhes um pouco as pernas” e depois sentar à mesa. Notem que o mesmíssimo raciocínio desaparece quando se fala de Gaza ou da Cisjordânia. Aqui já não se pode enfraquecer o invasor porque passa a barbárie.

    Também já ouvi, em horário nobre, que é normal que a nossa simpatia seja maior com o povo ucraniano por estes serem mais “parecidos connosco”. Louros, brancos e de olhos azuis. Para quê aprender história quando os conflitos do mundo se podem resolver com uma boa dose de racismo? Como sou mais parecido com um árabe do que com um norueguês, achei por bem tentar perceber o que por ali se passava e andei a vaguear, no terreno, atravessando os muros entre territórios ocupados e as zonas (teoricamente) controladas pelos palestinianos. É relativamente importante ver para compreender o que se discute.

    Dou-vos um exemplo. Ontem, Benjamin Netanyahu, disse que tinha ordenado um cerco à Faixa de Gaza, corte de água e luz, até que os reféns fossem libertados. Ao mesmo tempo, o exército israelita acampou às portas do território, esperando pela luz verde para entrar a atirar para tudo o que mexe.

    People Gathering in a Concert during Night Time

    A ironia aqui está na ordem para “cercar Gaza”. Deixem-me falar-vos sobre Gaza, uma pequena faixa de terreno com 60 quilómetros, cercada pelo mar, pelo Egipto numa pequena porção de terreno (zona de Rafah) e por um gigantesco muro, com os mesmos 60 quilómetros, que separa 2 milhões de pessoas dos territórios ocupados por Israel. Um muro com torres de guardas a cada 150 metros, armas automáticas ligadas a sensores, arame farpado, placas de betão subterrâneas para evitar túneis e todo o tipo de video-vigilância que possa detectar qualquer movimento perto da zona de fronteira. Portanto… o primeiro-ministro de Israel mandou cercar o quê? Quando é que Gaza não esteve cercada nos últimos 30 anos? O muro começou a ser construído em 1994 e ainda estamos a discutir, em 2023, como se os habitantes de Gaza fossem livres de decidir os seus movimentos?

    Se percebermos que eles vivem numa prisão desde que nascem, talvez seja mais fácil analisar o ódio pelos seus carcereiros. E é essa honestidade que devemos ter quando discutimos este conflito. É que dou por mim a ver gente, que é vista por uns quantos milhares na televisão, a falar no ataque do Hamas como se tivessem partido de um jardim de flores e iniciado uma guerra nova. Israel colhe os frutos das suas ocupações e criações, a começar pelo próprio Hamas.

    Outra coisa que me está a fazer alguma confusão é o relato apaixonado e dramatizado dos sequestros. Há conferências de imprensa com famílias que pedem a devolução dos seus entes queridos por estes não terem qualquer relevância para o conflito.

    green tree on brown sand during daytime

    A primeira coisa que gostaria de dizer é que não imagino o sofrimento de ver um familiar raptado e escondido algures por guerrilheiros. Não consigo perceber sequer, felizmente, o que estão aquelas famílias a sentir. Mas não é verdade que não tenham relevância. Isto não é particularmente simpático de se dizer agora mas, quando alguém aceita mudar-se para uma zona que estava habitada por um povo, entretanto aprisionado a poucos quilómetros dali, devia saber que está a correr riscos e que a sua liberdade significa, literalmente, a prisão de outro ser humano.

    Um habitante do Kibutz de Be’eri dizia à CNN internacional que aquela comunidade era pacífica, próspera e que nada fazia prever o que aconteceu. O calmo e pacífico Kibutz de Be’eri está a pouco mais de 7 quilómetros dos muros de Gaza, a maior prisão do mundo onde 2 milhões de pessoas estão encurraladas, para que nas suas antigas moradas floresçam Kibutzs cheios de harmonia. Lamento mas não consigo pactuar com esta hipocrisia. Uma vida é uma vida e pouco me importa a sua origem, raça ou credo.

    Os pedidos para que os reféns sejam devolvidos e as imagens das famílias em desespero, sempre com visibilidade em horário nobre nas televisões, também me faz pensar na forma como choramos por uns e desprezamos outros. Desde que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém e a Faixa De Gaza, em 1967, já prendeu cerca de um milhão de palestinianos (dados das Nações Unidas). Em detalhe, um em cada cinco palestinianos já foi preso com base em cerca de 1500 ordens militares que foram criadas para controlar o que podem e o que não podem eles fazer.

    blue and white flag on pole

    Ou seja, Israel decide as regras de comportamento com que brinda os invadidos e, sempre que estes não as cumprem, desaparecem. Por uns tempos ou para sempre. Não me lembro de ver, ao longo destas décadas, famílias em Londres, Nova Iorque ou Berlim, em directo à hora de jantar, a ter tempo de antena e comoção, para pedir o regresso dos seus entes queridos. Certamente que, entre um milhão de presos, algum deve ter uns familiares no estrangeiro que sintam a sua falta e consigam falar inglês para as câmaras.

    Bem sei que este discurso será confundido com “apoio ao Hamas” quando, o que pretendo, é que mortes e crimes sejam encarados como tal. Venham de onde vieram. Para mim, a fuga da prisão do Hamas (e demais grupos, convém lembrar também que não estão sós na luta armada pela Palestina) não tem qualquer problema, não sou hipócrita. É uma prisão. Já o assassinato de pessoas que estão num concerto, é simplesmente um crime hediondo. O problema é que esse crime é tratado como tal se for feito por árabes e como “direito a resposta” se vier do lado de Israel.

    Há aliás um conceito altamente interessante neste conflito, bem patente nas palavras do secretário de estado americano, Antony Blinken, quando disse “we have Israel’s back“. Traduzido para português corrente, significa que Israel pode arrasar com Gaza e país nenhum árabe pode ajudar aquela gente ou os Estados Unidos entrarão no conflito. E quando se fala em arrasar com famílias inteiras na Faixa de Gaza, já não há o problema ocidental das famílias de inocentes ou dos menores de idade.

    Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel.

    Ouvi alguns analistas portugueses que defendem que Israel deve aplicar o “olho por olho”, matar em quantidade suficiente para “trazer a paz de volta” (o famoso conceito das bombas do bem) mas não ultrapassar os limites para não ser bárbaro como o inimigo. Ora, esta é uma conta difícil de fazer. Quantos civis pode Israel matar em Gaza para meter o Hamas na ordem e, ao mesmo tempo, aparecer aos olhos do mundo como não-invasor e país civilizado? Eu respondo: tanto faz. Podem matar o que quiserem. Os Estados Unidos estão convosco, logo, a NATO está, a União Europeia também, e até algumas ditaduras árabes do bem (que nos dão uns barris), até são capazes de ficar do mesmo lado.

    Já os russos, com um regime pouco recomendável, disseram ontem que no fim deste conflito tinham que finalmente criar os dois estados. Zelensky, por sua vez, vendo que a agenda noticiosa mudou de Kiev para Gaza, acusou Putin de apoiar o Hamas e o terrorismo em geral. E até por ter instigado a covid num morcego chinês qualquer.

    Com os poderes todos alinhados e os lados escolhidos, agora resta aos habitantes de Gaza fazer o que fazem melhor. Morrer. E em silêncio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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