Autor: Tiago Franco

  • Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’

    Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’


    Há uns anos, ao fim de quase duas décadas de emigração, quando comecei a pensar regressar a Portugal ou passar por cá períodos maiores de tempo, decidi ir procurar casa em “casa”.

    Não sendo a minha cidade natal uma hipótese por causa dos preços (Lisboa), fiz como a maior parte de nós e fui averiguar na Margem Sul, onde vive boa parte da minha família. Lembro-me de ver umas maquetes de uns prédios em construção, ali perto do centro de estágio do Benfica (Seixal) e de comentar com o vendedor como achava tudo aquilo um absurdo e completamente fora do contexto real do país. Ele, obviamente feliz pela forma como corria a venda da maquete, dizia-me, a propósito do meu país de acolhimento, o seguinte: “olhe… ainda ontem saiu daqui um sueco velhote com a filha. Compraram um T4 por 800.000 euros. Onde amigo, onde, é que eu na minha vida alguma vez pensei vender um T4 no Seixal por 800.000 euros?”

    stack of books on table

    De facto, não pensou ele e, imagino, ninguém que tenha crescido e vivido por ali, como foi o meu caso. A “praia” para onde fugíamos tentando evitar as aulas, ali pelo final do século passado, baptizada com um nome pouco abonatório que incluía o recurso a adjectivos escatológicos, é hoje uma “vista desafogada para a baía”.

    Como imaginarão, fico contente com a reabilitação dos espaços urbanos, em especial nas zonas dos subúrbios que são, normalmente, pouco dadas a embelezamentos ou cuidados arquitectónicos. Mas há aqui toda uma matemática que, por mais que tentemos, não parece fazer qualquer sentido.

    Portugal tem um salario médio de 1.200 euros brutos (aproximadamente) e isto significa que a nossa classe média, a existir, é pequeníssima. A não ser que consideremos que a classe média recebe pouco mais do que o salário mínimo. Se for essa a bitola, então temos um país quase sem pobres.

    Se a maior parte dos portugueses vive com menos de 1.000 euros líquidos, como é que o preço médio de um apartamento com, por exemplo, 100 m2, vai de 445.700 euros em Lisboa a 285.700 euros no Porto? Ou até 230.600 euros em Faro e 193.300 euros em Setúbal?

    white and black concrete buildings

    Como é que isto é possível? Economistas defendem que há pouca construção e isso faz aumentar o preço dos imóveis disponíveis no mercado. É um facto que o nosso parque habitacional subiu pouco na última década (cerca de 1%), mas também não é menos verdade que a população é essencialmente a mesma. Entre entradas e saídas, mortes e nascimentos, continuamos a rondar os 10,5 milhões.

    Se os portugueses com poder de compra são cada vez menos, os imigrantes que tanto incomodam o Ventura recebem salários miseráveis… Quem é que compra estas casas em Lisboa entre 500.000 e um milhão de euros? São todos suecos como o amigo do Seixal? Ou franceses? Árabes? Russos?

    Segundo o Pordata, em Dezembro de 2023, Portugal tinha uma população estrangeira de 800.000 pessoas, das quais 30% seriam brasileiros. Admitindo que os brasileiros não são todos milionários, serão os restantes 70% compostos por golfistas ingleses e nómadas digitais australianos?

    Quando me falam no mercado para justificar tudo, é quando o fumo começa efectivamente a chegar à zona das orelhas. “Se alguém paga o valor, é porque vale. É assim o mercado”. Esta é uma versão redutora e que serve, na realidade, para justificar o injustificável. Para distribuir lucros pornográficos por uma minoria e prender boa parte da população a créditos eternos.

    white and red wooden cube

    Vi um prédio na Avenida do Brasil com apartamentos entre 300.000 e 1.200.000 euros. Dir-me-ão que tem melhores acabamentos, que os custos de produção aumentaram com a inflação, a guerra, e todo o novelo do costume. Mas, quando saímos de casa, do T3 que custa 1,2 milhões de euros, continuamos na Avenida do Brasil, não é? Com lixo a transbordar dos caixotes, merda de cão no passeio e marquises no prédio da frente. Não estamos na 5ª avenida ou nos Campos Elíseos. O preço surreal que o “mercado” atribui a uma casa em Portugal, seja esta no subúrbio ou no centro das cidades, é absolutamente incompreensível.

    Os custos de construção aumentaram? Por acaso têm visto pedreiros e carpinteiros em ferraris? O que aumentou verdadeiramente foram as margens de lucro de quem constrói e vende. Alguém acredita que o custo de produção de um T3 em Lisboa se aproxima sequer do milhão de euros? Não é mais ou menos óbvio que as margens subiram para valores que ninguém consegue perceber e muito menos, pagar?

    Nós, portugueses, chegámos a um ponto da nossa evolução em que não temos dinheiro para viver nas zonas onde somos forçados a trabalhar. Bem sei que devemos todos mudar para o interior onde tudo é mais barato e arranjar emprego na lavoura, mas eu ainda sou daqueles que defende que uma pessoa deve viver onde lhe apetecer, perto da família, do mar, da barragem, dos campos de girassóis ou na borda do rio. Um país não pode ter um parque habitacional onde o custo médio está muito, muitíssimo acima, daquilo que é o salário médio.

    burned 100 US dollar banknotes

    No outro dia, li algures que isto só lá vai com ocupações à força. Parece-me radical, até porque defendo o direito à propriedade privada (com regras). Ainda assim, não consigo aceitar que todos sejamos obrigados a viver em condições miseráveis para alimentar a especulação imobiliária ou então, em alternativa, sermos despejados para a porta da emigração.

    Há algo mais a fazer para resolver a crise da habitação. Desde logo, simplificar o processo de construção e deixar o mercado da concorrência funcionar. Depois, dar algum uso ao imenso parque habitacional público. E por fim, nos casos da mais pura e nojenta especulação, não me venham com conversas de investidores e segurança de mercado. Há que taxar sem complexos. Já se faz no primeiro mundo, não precisamos de inventar a roda.

    O que não podemos é continuar a viver em barracas enquanto pagamos palácios.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • ‘Quo vadis’ União Europeia?

    ‘Quo vadis’ União Europeia?


    Não é raro ficarmos espantados com as prioridades dos nossos governantes e o seu desfasamento com a realidade das populações. Eu, pelo menos, pergunto-me frequentemente em que mundo viverá a classe política? Do Parlamento nacional ao Parlamento Europeu, não raras vezes fico com a sensação que quem define as regras não vê notícias.

    A União Europeia lançou-se numa sequência de trapalhadas nos últimos quatro anos que, honestamente, piorou a vida de quem vive dentro das fronteiras dos 27.

    Primeiro, foi a pandemia que nos trouxe confinamento em quase todos os países, cancelamento das liberdades individuais, aquele inenarrável passaporte digital, perda de empregos e uma factura gigante transformada em impostos que ainda hoje pagamos. Ainda me lembro de ver noticiários com pessoas a bater palmas à janela e a histeria de quem achava que ficar em casa iria salvar vidas. Isto, enquanto milhões de pessoas dos serviços fundamentais ou do sector produtivo continuavam a trabalhar fora de casa todos os dias. O Capital, aparentemente, nunca passou pela pandemia.

    Seguiu-se a guerra na Ucrânia patrocinada pela União Europeia (UE), onde Rússia e Estados Unidos decidem o destino da Ucrânia. A não eleita Ursula Von der Leyen apressou-se a anunciar o empobrecimento obrigatório dos cidadãos europeus para pagarem as loucuras do impérios “as long as it takes“. Não sei se se lembram das delirantes conferências de imprensa dos líderes europeus que, sucessivamente, iam anunciando mais e mais pacotes de sanções à Rússia. Como consequência disso, os custos da energia dispararam no Continente e a guerra, em si, passou a ser causa (e desculpa) para o aumento dos preços generalizado. A UE escolheu financiar uma guerra que nos empobreceu duas vezes. Primeiro com o desvio dos Orçamentos do Estado para o sector bélico e, em seguida, com a inflação resultante da escalada nos preços da energia ou dos bens de consumo.

    Os Estados Unidos trataram dos seus interesses. Venderam armas, substituíram os russos no fornecimento de energia e ainda foram enfraquecendo um adversário directo à custa dos mortos ucranianos. Os russos também trataram da vida. Voltaram ao palco das decisões 20 anos
    depois, substituíram o mercado europeu com o asiático, trouxeram definitivamente a China para o seu ‘quintal’ e conseguiram, ainda assim, deixar a UE mais isolada. Até dentro da própria UE, a Rússia conseguiu apoio quando, há dois anos, nos tentavam vender a ideia de que estaria isolada.

    Já a União Europeia limitou-se a fazer a triste figura de fantoche dos Estados Unidos, sem força e opinião própria, e foi despejando dinheiro na guerra quando a isso foi ordenada, sem por momento algum defender os cidadãos europeus que, em última análise, até elegeram aquele parlamento.

    A mesma União Europeia que nos viu empobrecer ainda mais com as medidas do Banco Central Europeu e a subida das taxas de referência sem, uma vez mais, fazer fosse o que fosse para evitar a perda da qualidade de vida, o poder de compra e até o direito a ter uma casa, da generalidade dos europeus.

    Eis que chega o “direito a defesa de Israel” e, uma vez mais, Ursula Von der Leyen a fazer a triste figura de ter a UE a apoiar directamente aquilo que se está a tornar um genocídio. 1.000 mortos do lado israelita que já vão, três meses depois, em 25.000 mortos palestinianos e mais bombas despejadas do que aquelas que os Estados Unidos depositaram no Iraque. É uma carnificina onde os representantes europeus, uma vez mais, falam para se colocarem do lado errado da história.

    Depois de quatro anos a saltar de catástrofe em catástrofe, o que imaginaria eu que fariam os governantes europeus? Resolver qualquer coisa. Fosse o que fosse. Contribuir para a paz na Ucrânia ou em Israel. Não começar a ensaiar novas pandemias como parece que estão a tentar com a “X”. Intervir na questão das energias. Controlar as taxas de juro. Não deixar que a população dos países europeus, em especial os mais pobres, ficassem completamente reféns de políticas económicas. Tantos telhados que vão ardendo em simultâneo que, certamente, “em querendo”, como diz a minha avó, poderiam dedicar-se a fazer algo para melhorar a vida dos eleitores daquele inútil Parlamento Europeu.

    Mas não. Com o mundo em chamas, o que se discute em Bruxelas? Um novo projecto de lei que proíbe a reparação de carros com mais de 15 anos. Em nome do ambiente, claro. Devo dizer que a estupidez humana não pára de me surpreender.

    Não acho estranho que o lobby da indústria automóvel tente passar este tipo de leis. Faz parte do processo a que, resumidamente, chamamos capitalismo. Mas ver pessoas das classes trabalhadoras a defenderem esta “transição energética” como algo ambientalista é deveras alarmante.

    Nem me importa se a lei será aprovada ou não. Importa é discutir como é que um disparate destes vai sequer a votos?

    Devo fazer uma declaração de interesses, uma vez que há seis anos que trabalho no desenvolvimento de carros eléctricos e, portanto, contra o meu ganha-pão falo. Transição energética não é retirar 50 pessoas de carros a combustão e colocá-los em carros eléctricos. É, quando muito, meter essas 50 pessoas dentro do mesmo autocarro. Aí sim, há alguma preocupação ambiental. Isto, claro, para quem sabe que o lítio não cresce nas árvores.

    O que estas leis fazem, essencialmente, é dar um gigantesco impulso à indústria automóvel para vender carros caríssimos com uma autonomia baixíssima, e sem que o problema da extracção do lítio e tratamento das baterias esteja sequer perto de estar resolvido.

    black and white car door

    Mas pior do que a discussão da lei em si, é o alheamento da realidade que é necessário para que, num momento destes, se discutam temas destes no Parlamento Europeu.

    Uma pessoa pensa que a miséria dirigente se esgota na politiquice nacional mas, se observarmos com algum cuidado, percebemos que estamos entregues à bicharada, também, além-fronteiras.

    Estamos a um Trump de distância do absoluto caos no planeta.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)

    Sair novo de Portugal: uma viagem sem regresso (ou só para férias)


    Começo esta crónica a citar o cabeçalho de uma reportagem publicada no Expresso: “Portugal tem a taxa de emigração mais alta da Europa e uma das maiores do mundo. A vaga contínua de saídas ao longo das últimas décadas engrossou o número de portugueses no estrangeiro, acelerando a perda de população jovem. De acordo com uma estimativa do Observatório da Emigração, 30% dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos deixaram o país em algum momento e vivem atualmente no exterior. São mais de 850 mil.”

    Escrevi, numa destas crónicas do PÁGINA UM, aquilo que considerava ser o flagelo da emigração jovem, tendo como base a equipa com a qual trabalho no norte da Europa. Uma infeliz coincidência que, ainda assim, ilustra perfeitamente os tais 30% que desapareceram.

    the wing of an airplane flying over a city

    Somos sete (daqui a 15 dias seremos oito) engenheiros formados em Portugal que tomaram a decisão de emigrar ainda na casa dos 20 anos. Eu, o mais velho, ainda cheguei a trabalhar em Portugal cinco anos, mas já os restantes, muito mais espertos do que eu, começaram logo num sítio onde a força de trabalho é recompensada com salários decentes.

    Estamos a falar de gente que adquire os seus conhecimentos na Escola Pública, financiados pelos impostos, e que, em muitos casos, vão utilizar esses conhecimentos adquiridos em Portugal para o desenvolvimento económico de outro país qualquer.

    E já agora – e este é um detalhe importante, pelo que vou observando na minha área: são profissionais com uma formação de excelência que, uma vez fora de Portugal, com as portas que conseguem abrir à custa dessa mesma formação, ficam com o caminho de regresso praticamente vedado. As hipóteses de carreira que nos são oferecidas nos países desenvolvidos, desculpem-me a honestidade, envergonham aquilo que é expectável em Portugal.

    No nosso país chegamos a um ponto em que tudo está errado. A cultura de trabalho, a necessidade de marcar hierarquias, a limitação da criatividade, a burocracia em lugar da produtividade, os salários miseráveis.

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    Quando saí de Portugal, ainda Pedro Passos Coelho não nos tinha sugerido emigrar. As diferenças para a Europa civilizada eram mais fáceis de disfarçar. Lembro-me de ter pensado em emigrar porque queria ver qualquer coisa diferente. Acho que, no fundo, queria viajar. Estava convencido que dois ou três anos depois estaria de volta a Lisboa para vestir um daqueles fatos que nos exigiam para estar a trabalhar atrás de um computador. Ao fim desses mesmos três anos, já o meu filho tinha nascido fora de Portugal e o regresso passou a ter mais impedimentos.

    Já não eram só as condições de trabalho, mas também as regalias da paternidade. Também aí estamos a um mundo de distância. Os dois ou três anos passaram a 18 e, durante esse tempo, nada mudou de relevante em Portugal. Quer dizer, fizeram-se mais estradas, aquilo que os sucessivos Governos continuam a vender como “progresso e desenvolvimento”. Alguém continua a vender-nos a ideia de que, num país com 650 por 200 quilómetros, o crescimento económico aparece antes de termos 40 auto-estradas, Scuts e IPs espalhadas por todo o lado com portagens infindáveis. Ninguém ainda se deu ao trabalho de verificar que os países mais desenvolvidos no Norte da Europa não têm propriamente uma grande rede de auto-estradas, excepção feita à Alemanha por ser zona de passagem para todas as rotas do comércio.

    Por isto tudo, hoje… o que pensará um miúdo que sai de uma Universidade e percebe que os salários disponíveis não chegam sequer para ser independente e autónomo? A dúvida é sempre entre ficar perto de família e amigos a contar trocos para sobreviver ou, em alternativa, fazer o sacrifício de emigrar e deixar de ter preocupações com contas. Sim, sacrifício.

    turned of yellow road lights

    Emigrar acaba sempre por ser um sacrifício. Ou na altura da partida ou quando percebemos que o regresso é impossível. Foi isso que os restantes sete que trabalham comigo fizeram. Ganharam independência e autonomia antes de completarem 23 anos. Não precisam de viver com os pais, não dependem da formação de um casal para dividirem as contas de uma casa e são integrados num ambiente de trabalho onde todo o crescimento depende apenas da competência e da dedicação. Podem de facto chegar a algum lado pela via do trabalho se assim quiserem. Não é esse o cenário mais comum em Portugal.

    Diz o Expresso que 30% das pessoas entre os 15 e os 39 anos estão fora do país. Isto significa que não só o mercado de trabalho é afectado como a natalidade do país se ressente (ainda mais). O acaso de termos uma das populações mais envelhecidas da Europa e a taxa mais alta de emigração, como compreenderão, não é mera coincidência.

    Há 20 anos que me deito a pensar o que seria o nosso país se, em vez dos desastrosos investimentos na rodovia e nas construtoras do regime ou no resgate da banca, se tivessem construído creches públicas, tornado o ensino verdadeiramente universal e aumentado os salários para níveis de Primeiro Mundo?

    Li esta semana que o salário mínimo passou, aqui ao lado em Espanha, para 1.100 euros. Mas o que me espantou verdadeiramente foi perceber que apenas 5% dos espanhóis recebem esse salário. Em Portugal quase 75% das pessoas trazem para casa 900 euros ou menos – ou seja, não estamos longe de ter quase o país todo a receber o salário mínimo. O mais incrível é que partimos nesta corrida dentro da União Europeia ao mesmo nível de Espanha. Hoje somos, na melhor das hipóteses, o envergonhado parente pobre.

    desk globe on table

    Portanto, não há três soluções para estancar a saída de jovens do país. Ou se aumentam os salários para cobrir o absurdo custo de vida ou se reduz drasticamente, pelo menos, o custo da habitação e da Educação.

    Não se pode esperar que um casal fique num país onde o salário médio são 1.100 euros e uma creche, uma prestação de um carro, a renda de uma casa, energia e alimentação não deixam nada no bolso para viver. Limitamo-nos a trabalhar para pagar contas. Por mais que se goste do sol, do céu azul e da sardinha a pingar, ninguém quer passar 17 anos a estudar para andar os 40 anos seguintes a ver se chega ao fim do mês. A vida é e tem de ser algo mais do que isso.

    Voltamos sempre ao ponto crucial desta história toda que são as opções políticas. Portugal passou décadas a desviar subsídios europeus para uma clientela (para não lhe chamar corrupção) sem ter preocupações de verdadeiro desenvolvimento. Somos o caso de estudo na União Europeia para o que falhou. Há 30 anos que os nossos Governos se limitam a gerir fundos sem com isso contribuir verdadeiramente para o crescimento do país. São opções. No fim do caminho estão sempre as nossas escolhas. O Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) trilharam este caminho.

    a view of a bridge over a body of water

    Hoje, ontem, e provavelmente amanhã, Portugal escolhe fazer estradas e embelezar hotéis para receber turistas. Entretanto, aqueles que por cá nasceram, vão-se afogando em impostos, salários vergonhosos e custos de vida absolutamente incomportáveis. E vão-se embora.

    Quem é que os pode criticar? Eu não, certamente.

    Chegará o dia em que seremos oficialmente a Republica Dominicana do continente europeu – e estaremos divididos entre aqueles que ficam cá a servir à mesa e aqueloutros que voltarão, a cada Agosto, para matar saudades.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A mediocridade garantida até 10 de Março

    A mediocridade garantida até 10 de Março


    Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a data das eleições legislativas para 10 de Março, lembro-me de ter pensado que seria um martírio termos quatro meses de campanha eleitoral. Mas estava longe de imaginar esta a pobreza franciscana, desde que António Costa anunciou o seu despedimento.

    Nestes tempos, há uma luta quase deprimente, entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), para fazerem prova da sua honestidade. Andamos há um mês a fazer a “revisão da matéria dada” e a contar os “tutti-fruttis” que cada um destes partidos traz para a mesa das negociações.

    pair of pink boxing gloves

    Hoje, enquanto escrevo, discute-se a compra de acções dos CTT por parte do Governo PS e a renovação da casa de Montenegro, que, na realidade, foi uma construção de um prédio novo. Amanhã, deve começar a aparecer a participação de Pedro Nuno Santos na empresa da família, e lá para a semana que vem deve voltar a privatização da TAP e o frete feito ao Neeleman.

    Os dois partidos que tomam todas, mesmo todas, as decisões, que foram moldando a realidade portuguesa desde 1976, e que desperdiçaram rios de fundos europeus em estradas, corrupção e clientelismo, chegam a 2024 sem nada para dizer excepto apontar os roubos do vizinho.

    Mas faz sentido… E sabem porquê? Porque no essencial, cada um destes partidos do ‘centrão’, serve para criar carreiras aos seus quadros, garantir um emprego para a vida em redor de altos cargos públicos e, já agora, enriquecer alguns dos seus membros. É preciso gritar muito e apontar o dedo, dando a ilusão que se tenta marcar a diferença quando, em rigor, PS e PSD são faces parecidíssimas da mesma moeda.

    Vejam como as principais caras do PS são as mesmas, década após década. Gente que não passou um dia  a trabalhar noutra coisa que não fosse um cargo público arranjado pelo partido. Pessoas que se sentam a opinar e legislar a vida de milhões de portugueses sem nunca terem contacto com as dificuldades do mercado de trabalho, de um empréstimo bancário, da luta por uma casa.

    Há casos de filhos de antigos ministros ou altos quadros do PS que, mal saíram das universidades, já estavam em lugares elegíveis nas listas de deputados. Regionais, nacionais, não importa. São carreiras garantidas, zero idas a entrevistas de emprego, a mediocridade garantida e perpetuada nas costas dos ‘papás’ e do cartão do partido. Gente sem um dia de vida passado na realidade, e que nos tenta convencer que conhece as nossas dificuldades e até sabe quais são as soluções para os nossos problemas.

    Como é que alguém que nunca foi a uma entrevista de trabalho, que teve uma casa oferecida pelos pais, que teve passagem facilitada na universidade e que foi colocado numa assembleia, a legislar sobre temas que desconhece, me pode entender e/ou ajudar? Como é que medíocres destes se perpetuam décadas na função pública em cargos de decisão, entre PS e PSD? Como?

    Enquanto o PS “faz a renovação” com os filhos dos que por lá andam desde 1980, o PSD cria alianças em reuniões onde estão, e tomem nota, Nuno Melo, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Estão a um Freitas do Amaral, versão original, de fazer bingo do século XX.

    Enquanto se digladiam com a ilusão da honestidade e nos dão a ideia de um combate político, vão, isso sim, tratando da vida e evitando qualquer compromisso. Casos como o do tutti-frutti são importantes porque nos explicam aquilo que é a divisão do poder, ao longo de décadas, entre dois partidos. Os pactos de não agressão, a divisão da riqueza, a garantia que todos conseguem roubar do mesmo pote. Essa é a realidade da ascensão ao poder em Portugal e é isso, em resumo, que explica o atraso do país. Isso, e tratar da vida dos membros dos partidos, das suas carreiras, da garantia de emprego e prosperidade. E sem qualquer compromisso real com os eleitores. Já nem se dão ao trabalho de disfarçar com uma ou outra proposta. É um vazio de ideias; uma mediocridade que se arrastará penosamente até Março.

    Não é fácil sair disto, porque não há renovação na cena política. Não há espaço para quem vem de fora e não depende de aparelhos partidários. Não há como sair disto, mas é relativamente fácil perceber como aqui chegámos. Basta pensarem que partimos ao lado de Espanha nesta corrida, há quase 40 anos, e hoje eles são uma potência e nós um dos países mais atrasados da Europa. Os fundos correram em toda a Ibéria. Mas enquanto Espanha desenvolvia o tecido produtivo, nós financiávamos a indústria do betão, as parcerias público-privadas (PPP) das estradas e jovens agricultores que queriam comprar jipes e renovar os montes.

    No meio deste marasmo de ideias, aparece o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), outro deserto de propostas, mas absolutamente essenciais na formação de uma coligação de poder com o PSD. A única diferença entre estes partidos e o actual poder, é que tanto IL como Chega ainda não tiveram hipótese de chegar ao pote. Quando lá estiverem, farão o mesmo ou pior. Com a agravante de tanto IL como Chega terem, na sua génese, a missão de desviar o máximo de dinheiro possível dos serviços públicos para os privados. No fundo, fazerem aquilo que o PS já começou a fazer com este Orçamento do Estado e aplicarem a machadada final no SNS e na Escola Pública.

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    Restam Livre, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda, que parecem ainda ter algum compromisso com os trabalhadores e as condições de vida, sendo que duas destas forças já se manifestaram positivas quanto a futuras coligações de esquerda. Contudo, a avaliar pelas sondagens, as suas votações serão bastante baixas.

    Vivemos a realidade da mediocridade na política portuguesa e, segundo percebo, boa parte dos portugueses acha que a solução para os problemas da democracia virá de um partido anti-democrático que nem quadros consegue arranjar (o Chega), ou outro que, ao fim de alguns anos, ainda nem conseguiu concordar com uma visão política ou uma ideia que aguente mais do que 15 dias (a IL).

    Estamos de facto a entrar no restaurante que serve mau vinho e a achar, convictamente, que a água da sanita é o acompanhamento alternativo perfeito para o bacalhau do almoço.

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  • O cheiro a fim da era no jornalismo português

    O cheiro a fim da era no jornalismo português


    Cheira a fim de uma era no jornalismo português. O despedimento colectivo anunciado pelo Grupo Global Media (dono do Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF e Dinheiro Vivo) será, talvez, o capítulo mais recente, mas não deverá ser o último.

    Não é de facto fácil entender como é que os jornais sobrevivem. Comecemos pelo princípio elementar: quem é que lê?

    No terceiro trimestre de 2023, o Correio da Manhã, habitual ‘escorredor de sangue’, era o jornal mais comprado em banca com uma média diária de 40.391 exemplares. Há cinco anos, no mesmo período, vendia por dia 83.898 exemplares em banca. São dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) e mostra a evolução do jornal português com mais leitores diários. Ou seja, actualmente, o diário mais lido pelos portugueses, em papel, é comprado por 0,4% da população!

    man sitting on bench reading newspaper

    Outros países com títulos de referência começaram a abandonar a versão de papel e a adaptar-se às novas plataformas. Novos conteúdos, espaço para o multimédia, o papel a dar lugar a smartphones, Ipads, ecrãs em carros, aviões, zonas públicas.

    Temos informação mais dinâmica e necessidade de novos conteúdos 24 horas por dia. É o progresso, dizem.

    Agora, aparentemente, já não é necessário ter jornalistas na rua à descoberta da notícia e, muito menos, alguém que as escreva correctamente. A Inteligência Artificial faz uma parte e os estagiários dão as marteladas finais. Deixamos de ter notícias e passamos a repetir histórias contadas por alguém. Com ou sem confirmação de fontes. Pouco importa, dali a 20 minutos já é velha.

    Em Portugal, temos dois ou três grandes grupos de media a controlar toda a informação e, por isso mesmo, nunca conseguimos garantir a independência de tudo aquilo que nos é transmitido. Há sempre temas abafados, há sempre assuntos proibidos, há sempre investigações que conduzem a despedimento. Convém também dizer que os jornalistas, alguns pelo menos, tiveram a sua quota parte no que agora está a acontecer.

    Alguns dos títulos que hoje despedem pessoas, e tentam mudar de vida, foram, em tempos, dos mais prestigiados em Portugal. Mas também foram os sítios onde alguns dos seus trabalhadores aceitaram ‘encomendas de notícias’ e passagem de informações falsas com o intuito de prejudicar pessoas ou instituições, levando, aos poucos, ao descrédito da própria publicação.

    letter wood stamp lot

    É comum ouvir-se, um pouco por todo o lado, que não devemos acreditar em tudo o que vemos na televisão ou lemos no jornal. Ora, quando eu era criança, ouvia exactamente o contrário: se o senhor X escreveu no jornal, então era verdade. Havia crédito na imprensa escrita.

    Hoje, num mundo controlado por idiotas como o Elon Musk, deixamos de ter a capacidade de suportar o luxo do jornalismo independente e da busca da notícia pelo que a notícia tem para dar, em vez de quem esta poderá atingir.

    Curiosamente, no cenário que se vai desenhando em Portugal, projectos como o do PÁGINA UM tornam-se absolutamente essenciais para a qualidade da democracia. Admito que seja um modelo difícil de manter porque, num país pobre, ter um jornal totalmente livre a ser financiado exclusivamente pelos leitores é uma autêntica epopeia.

    Seria interessante, nos tempos cada vez mais controlados que se avizinham, que o PÁGINA UM continuasse a ter liberdade de investigar e informar. Infelizmente, isso não está neste momento garantido, porque o jornal, ainda por cima, tem todos os seus conteúdos abertos, para que os leitores possam também financiar o acesso daqueles que não tenham posses para contribuir.

    Nunca saberei, nunca saberemos, até quando a ‘novidade’ de um projecto arrojado pode cair no esquecimento dos leitores. Apenas sei que só o apoio contínuo dos leitores pode contribuir para que 2024 demonstre que o jornalismo independente ainda é valorizado em Portugal Por mim, agradeço a todos os que estiveram, desse lado, durante já dois anos, a lerem-me no PÁGINA UM, mesmo se não concordassem comigo. A democracia é exactamente que se espraia neste jornal.

    Um abraço e bom ano.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O condutor português é incrivelmente estúpido

    O condutor português é incrivelmente estúpido


    Acho alguma piada às operações de Natal da PSP e de GNR, com os directos do tabuleiro da Ponte 25 de Abril ou da VCI, onde um capitão qualquer, oriundo de Viseu, nos explica o sucesso da operação pelo número de condutores apanhados nas mais diferentes infracções.

    Sei que há uma coluna no Orçamento do Estado para as multas, e boa parte deve ser preenchido nesta quadra.

    Mas o que realmente se mostra hilariante, em todo o aparato, é como tudo aquilo mais não faz do que nos passar um atestado de estupidez. A polícia tenta, num período festivo, controlar aquilo que o mais comum dos portugueses faz o ano todo: conduzir depressa, ou bêbedo, ou sem documentos ou sem respeitar as mais elementares regras do Código da Estrada. E, por vezes, todas as situações em simultâneo.

    closeup photo of black analog speedometer

    Mesmo assim, com todos os avisos e intermináveis directos de manhã à noite em todos os canais informativos, milhares de condutores são apanhados em flagrante. E temos ainda 1.500 que conseguem ter acidentes. E ainda há, em média redonda, 20 desgraçados que morrem sem chegar ao jantar de família. Ou depois dele.

    Na verdade, o período de Natal não é diferente do resto do ano. Simplesmente os acidentes passam a ser notícia. Mas estupidez do condutor português, essa, é exactamente a mesma de Janeiro a Dezembro.

    Não sei se alguma vez consultaram as estatísticas de mortalidade nas estradas da União Europeia. Portugal está em destaque juntamente com países como a Bulgária, Roménia, Letónia, Hungria, Polónia e Croácia. Nenhum tem uma rede rodoviária como a portuguesa. Aliás, arrisco-me a dizer que não existe outro país no Mundo com o tamanho de Portugal (continental) e com igual quantidade de autoestradas, IPs, SCUTs e todo um conjunto de vias rápidas que deveriam facilitar a circulação em segurança.

    Mas isso de pouco serve se ao volante estiver um mentecapto que arrisca em cada curva e que conduz a três metros do carro da frente, não é?

    man driving car during golden hour

    Se eu atravessasse a Europa sem ver uma única placa, saberia, ainda assim, quando me estivesse a aproximar de Portugal. Bastaria ver o momento em que os carros ultrapassam, de uma forma geral, todos os limites de velocidade impostos na ânsia de chegar uns minutos mais cedo.

    Nesta semana que passou, enquanto conduzia entre a Suécia e Portugal, e com a quantidade de emigrantes que se deslocaram de países como Bélgica, Luxemburgo, França, Suíça ou Alemanha, conseguia quase sempre perceber, pelo tipo de condução, se eram portugueses ou não.

    Uma vez na estrada, fico com a sensação que estamos sempre dentro de um circuito do NASCAR e aflitos para chegar a algum lado, mesmo sabendo que aquilo é um percurso oval, sem saída possível.

    E tanto faz se estamos numa auto-estrada, no Marquês do Pombal ou no centro da vila. As regras são para os outros, os limites de velocidade uma chatice e a cordialidade no trânsito um acto de fraqueza.

    cars on road in sunset

    Quem não levou já uma buzinadela do ‘amigo’ de trás por dar passagem a um condutor ao lado? Todo o metro conta, a luta é constante, só os mais espertos se safam.

    Ninguém sabe que a uma velocidade constante não há filas porque não existem travagens bruscas nem efeitos de onda. Ninguém consegue ver para lá de 10 metros do próprio motor.

    Uma das coisas que me habituei a pensar, quando comecei a atravessar a Europa de carro, e já lá vão 20 anos, é que há sempre alguém que não chega ao destino. Há sempre alguém que fez planos com a família que não vai cumprir. E há sempre alguém que aguarda um abraço mas que não vai receber.

    Em Portugal, torna-se difícil explicar a quantidade de mortes na estrada sem fazer uso da nossa própria estupidez.  Não é a qualidade das estradas, porque são óptimas. Não é a sinalização. Muito menos o clima. Vou repetir as palavras, porque não encontro outras melhores: o condutor português é incrivelmente estúpido.

    time-lapse photography of highway road at night

    Na mesma estatística que acima mencionei, aparecem Dinamarca e Suécia com as estradas mais seguras da Europa. Notem: são países com estradas que não chegam aos ‘calcanhares’ das portuguesas. A Suécia, com 2.500 quilómetros de comprimento, tem uma mão cheia de auto-estradas. Portugal, só entre Lisboa e Porto, tem três. Ainda assim, os suecos têm pouquíssimas mortes na estrada porque cumprem duas regras básicas: respeitam os limites de velocidade e não conduzem bêbedos.

    E se o fizerem, só fazem uma vez, porque a polícia não brinca às “Operações Natal”. Aqui há uns anos, um amigo meu foi apanhado a conduzir sob efeito de álcool e acabou obrigado a pagar 5.000 euros ali, no momento, ficou sem carta e durante um ano teve visitas semanais obrigatórias à esquadra para mostrar análises ao sangue.

    Ou a população percebe, sozinha, que não pode meter a vida dos outros em risco, ou então deve isso ser-lhe explicado pelas autoridades. Mas não é com operações de Natal, Páscoa ou Ano Novo.

    selective-photography of stop signage

    É com multas a doer e com consequências que não deixem vontade de arriscar. Na Finlândia, as multas de velocidade são proporcionais ao valor declarado do IRS. Um milionário foi apanhado e encheu os cofres da polícia com uns milhares, numa simples multa por excesso de velocidade.

    Sugiro o mesmo para o caso português. Multas que afectem o bolso de cada um consoante as suas possibilidades. Ao fim de duas, começava-se a dispersar a estupidez e a sobressair o bom senso. Ou civismo, se preferirem.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • 500 mil cordeiros precisam-se

    500 mil cordeiros precisam-se


    Escrevo este texto na estrada; mais precisamente, nas Montanhas do País Basco. Espero ainda encontrar a repórter da TVI (ou da CMTV) na fronteira de Vilar Formoso para discutirmos receitas de bacalhau e todas aquelas perguntas interessantes em véspera de Natal.

    Um dos meus passatempos na estrada é descobrir a origem das matrículas e somar as parcelas que as constituem. De há dois anos para cá, vejo com muito maior frequência, na parte ocidental da Europa, veículos com registo ucraniano. Por princípio, parece-me boa ideia fugir do frio de Leste para a harmonia que só a Ibéria nos pode proporcionar. Se essa fuga acontecer no início de uma guerra, ainda acho a ideia melhor. Com os 60 mil milhões de dólares bloqueados no Senado norte-americano, e sem que a União Europeia consiga garantir igual financiamento ou armamento, Zelensky vê-se num aperto mais do que previsível. Tudo parece começar a faltar, inclusivamente homens no terreno. A Ucrânia decidiu, por isso, chamar mais 500.000 homens entre os 25 e os 60 anos para a frente da batalha.

    black and white chess piece

    Não sei se ainda se lembram do que foi escrito sobre o Putin, quando este andava pelo Daguestão a roubar jovens às famílias pobres para os mandar para Donbass. Zelensky e toda a ‘entourage’ ocidental diziam que a Rússia estava a mandar homens mal treinados para a sua própria morte.

    O que assistimos agora é exactamente o mesmo, mas feito do lado ucraniano. Homens que fugiram do país, sem qualquer treino militar, e até já perto da idade da reforma, são agora obrigados a regressar sob pena de sanções para enfrentarem a sua própria morte. Sem dinheiro, sem armamento, sem aviação, resta à Ucrânia utilizar a estratégia que os russos patentearam desde a Segunda Guerra Mundial: ter mais gente no campo de batalha do que o adversário.

    Esta atitude desesperada mostra os sucessivos falhanços da aliança que apoia a Ucrânia e dá razão a quem defende, há quase dois anos, que a solução do conflito nunca estaria no terreno, mas sim na diplomacia. As sanções à Rússia falharam redondamente. Somos nós, os Europeus, da Alemanha a Portugal, que pagamos a fatura da energia mais cara. Aquilo que a Rússia deixou de vender do lado europeu, passou a exportar para o lado asiático e, de igual forma, a suportar a economia de guerra.

    brown wooden bridge over river

    Terão alguma possibilidade estes 500.000 homens, ou aqueles que não conseguirem fugir, perante uma máquina de guerra que produz e tem todos os apoios necessários para prolongar esta situação o tempo que for necessário? Terá alguma hipótese a Ucrânia, mesmo que meta toda a população na frente sem financiamento externo ou exércitos de outros países? Não. Já todos percebemos que não. Então, quem é que pode condenar estes homens que saíram do país e que não estão dispostos a morrer por guerras decididas por outros?

    Do lado americano, continuamos a ouvir palavras de apoio incondicional, mas já sem o dinheiro. Ou seja, aquela situação clássica que todas as administrações americanas fazem na diplomacia externa. Financiam o conflito enquanto isso servir os seus interesses, até que começam a ensaiar a saída deixando os inocentes expostos à sua sorte. Bastaria conhecer a história dos curdos para entender que destino teriam os Ucranianos.

    photo of person reach out above the water

    Fico agora curioso para perceber como é que a União Europeia, que defende valores democráticos e já acenou com a bandeira da entrada no clube por parte da Ucrânia, vai agora pactuar com este recrutamento forçado de mais 500.000 cordeiros.

    Chegará o dia em que a Ucrânia gritará “traição”, por aquilo que vier dos Estados Unidos e da União Europeia. Provavelmente, muitos destes 500 mil homens não o verão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O futuro primeiro-ministro e o (nosso) segundo aniversário

    O futuro primeiro-ministro e o (nosso) segundo aniversário


    1.

    Pedro Nuno Santos (PNS) venceu, sem surpresa, a corrida a secretário-geral do Partido Socialista. Esta é uma boa notícia para o PSD e para a esquerda em geral. José Luís Carneiro representa a versão Montenegro do PS. É o chamado “não chove, nem molha”, para não utilizar uma metáfora à Bocage.

    Noto, desde já, alguma crítica fácil por parte dos analistas de direita residentes na televisão portuguesa. Impetuosidade é a primeira fraqueza apontada a PNS. Falam, criticam o gasto público, enquanto ministro das Infraestruturas, na CP e na TAP. Referem, vezes sem conta, a gaffe da localização do aeroporto de Lisboa. Dizem ainda que tem um discurso infantil e pouco preparado, como por exemplo, aquele do calote aos banqueiros alemães.

    Ora, meus amigos, isto para mim são qualidades. Alguém que compreende que a ferrovia e o transporte aéreo são essenciais para o país, está a um passo à frente dos habituais ministros do betão que vivem para o lobby das construtoras.

    Pensemos, em contraponto, no comportamento de Montenegro em relação ao novo aeroporto de Lisboa. Se bem se lembram, António Costa exigiu o compromisso do PSD antes de avançar com a comissão técnica que colocaria um ponto final na discussão sobre a localização do aeroporto. Montenegro aceitou. Ao fim de mais um ano de estudos e análises, a dita comissão deliberou que o Montijo seria a melhor solução para um problema que se arrasta há 50 anos. Montenegro, como seria de esperar em qualquer fantoche do capital, ignorou a palavra dada e disse que criaria um novo grupo de trabalho com o intuito de validar o estudo da comissão técnica. Nesse grupo de trabalho estão, como se sabe, apoiantes da solução “Alcochete”.

    Por outro lado, a Vinci já se manifestou contra a solução Alcochete, embora Montijo não tenha capacidade para receber voos de longo curso. Visto assim, parece que Montenegro, para além de ter muita dificuldade em honrar a palavra dada, tem ainda mais dificuldade em fugir aos interesses instalados que controlam o Centrão. O interesse nacional e o fim de uma vergonhosa novela com cinco décadas parecem ser detalhes na agenda dos donos do PSD.

    white airliner on runway

    Como compreenderão, eu prefiro alguém que tome decisões, como foi o caso de PNS, mesmo durante uma gaffe, do que ter um governante como Montenegro que se limita a proteger os grandes grupos económicos.

    Apesar de tudo, a vitória de PNS é uma boa notícia para o PSD porque permitirá a Montenegro ter alguma hipótese nas eleições. Há uma diferença de estilo, de discurso e até de propostas. As diferenças entre os candidatos permitirão ao PSD recolher alguns votos ao centro, por parte daqueles eleitores que acharão o jovem turco um pouco mais radical. Já se o candidato fosse José Luís Carneiro, a escolha seria entre uma versão má e outra menos má de Montenegro.

    Os partidos de esquerda mais clássicos como PCP, Bloco e até o Livre, poderão beneficiar desta conjuntura e voltar a entrar no arco de governação e/ou acordo parlamentar. PNS continua a referir-se ao período da Geringonça como uma época de estabilidade no país. E tem razão. Não há nada que venha de bom de uma maioria parlamentar do PS ou do PSD, mas há importantes conquistas sociais que só serão possíveis com PCP e Bloco de Esquerda na negociação do programa do próximo governo.

    O meu voto não vai na direção do PS, mas admito alguma esperança quando vejo um secretário-geral socialista com tiques de esquerda. Algo me diz que ainda recordaremos Costa com saudade, mas a sucessão, convenhamos, poderia ter sido pior.

    2.

    O PÁGINA UM faz esta quinta-feira dois anos. Confesso que quando começámos não imaginei que nos aguentássemos mais do que três meses “no ar”. Não é fácil manter um jornal totalmente independente, de opinião livre, sem amarras ou encomendas próprias de quem depende de acordos de publicidade. Pessoalmente, tem sido um prazer e um orgulho contribuir para este projecto onde, desde o primeiro dia, me foi pedido apenas para escrever o que pensava. Há um número considerável de pessoas, a quem devo agradecer, ao fim de dois anos por ainda aqui estarmos. Refiro-me obviamente aos leitores que, concordando ou não com o que aqui vou escrevendo, não deixam de apoiar o nosso jornal. Enquanto for essa a vossa vontade, da minha parte por cá continuarei. Muitos Parabéns PÁGINA UM!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mas, afinal, qual é o problema da ‘cunha’? 

    Mas, afinal, qual é o problema da ‘cunha’? 


    Em tempos que já lá vão, apaixonei-me por uma gémea. Percebi logo que ia ter problemas porque nunca sabia se estava a falar com a pessoa certa. Aos 7 anos ainda não estamos despertos para os detalhes e aquelas duas irmãs pareciam, ao longe e ao perto, a mesma pessoa.

    Cheguei a escrever uma carta de amor, que não sei a quem entreguei. Só descobri 30 anos mais tarde, quando a minha avó me disse que a tinha guardado para ela. Faz algum sentido. Por um lado, era ela o meu grande amor da altura e, como é óbvio, já sabia que nada de bom chegaria com aquelas gémeas.

    Ora… Marcelo não tem uma avó como a minha e não lhe cheirou a perigo quando a versão portuguesa do The Shining lhe bateu à porta. Já poucas dúvidas restam sobre a ‘cunha’ e agora a discussão ascende a novos patamares de surrealidade. A ‘cunha’ é do Marcelo ou do Dr. Nuno Filho? Ou é do secretário de Estado que não se lembra que marcou a consulta? Ou é do médico que escreveu a nota que a consulta tinha sido a pedido? 

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Foto: Presidência da República)

    Ouvi ‘n’ discursos durante a semana tentando, sem grande sucesso, normalizar a ‘cunha’ como uma instituição portuguesa. Um deles dizia que a ‘cunha’ é tão normal e até aceitável que não devemos discutir se o Marcelo fez um jeito ao filho e se um filho fez um jeito aos pacientes. O que importa é saber, dizia este analista, se alguma criança tinha ficado para trás na lista de espera. Isto porque, sendo uma doença tão rara, até era provável não haver lista de espera.  

    Não é bem assim. Apesar de tudo, há ‘cunhas’ e ‘cunhas’. 

    Nos meus tempos de emigrante pela Escandinávia habituei-me a ouvir a seguinte frase em ambiente laboral: “vens da parte de quem?”. É normal quem contrata aceitar como boa a palavra de um amigo sobre um novo trabalhador. A ‘cunha’ é oficial. Tão oficial que empregadores futuros telefonam a empregadores anteriores para terem uma ‘prova dos nove’ sobre o trabalhador que estão a contratar. 

    Sempre achei piada a isso. Infelizmente, nunca me tocou porque fui lá parar sem conhecer ninguém, o que dá muito mais trabalho, mas ao fim de alguns anos também juntei umas ‘palavrinhas’ por pessoas que conhecia. Sempre emigrantes, sempre malta que, de facto, precisava de ajuda. Nunca ‘calões’ ou incompetentes. 

    No fundo, se um trabalhador for aprovado nas suas funções, ganha estatuto para recomendar outros. É uma ‘cunha’, de facto. Mas não prejudica ou deixa alguém para trás. Quanto muito, poupa tempo às partes interessadas. E se correr mal… pois, segue-se o despedimento e não há custos para outros que não os envolvidos.

    O mesmo com o ‘camarada’ que pede licença a 50 pessoas para passar à frente na fila do Raio-X para não perder o avião. Ou o mecânico que arranja a correia de distribuição do carro ao amigo, mas cobra como se fossem umas pastilhas de travões. O dono do restaurante que deixa o primo comer de borla ou até o rapaz das Finanças que faz um ‘jeitinho’ à vizinha do 3º esquerdo. Todos esses “desenrasca aí” do quotidiano não me chocam numa sociedade que está sempre ‘entalada’ com qualquer coisa.

    Não é bem o caso, aqui. A história das gémeas é o Visa Gold das ‘cunhas’: alguém que adquire a nacionalidade portuguesa em tempo recorde e é despachado do serviço de saúde privado – que, obviamente, não paga a factura – e aparece no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sem qualquer espera, para receber um tratamento de 2 milhões de euros do erário público. Este caso está, um pouco, num mundo à parte.

    doctor holding red stethoscope

    Não quero saber se existiam mais pessoas na lista ou sequer se existia lista. Quero saber é se qualquer português, um daqueles que espera até morrer por uma consulta, pode ligar para a ‘Linha 24 Marcelo’ e pedir um ‘jeitinho’ para ser atendido por um médico.

    As ‘cunhas’ de 4 milhões de euros e os passaportes em 15 dias estão disponíveis para todos ou é preciso ser amigo do “Dr. Nuno, meu filho”? 

    Com o escândalo cuspido em frente aos nossos olhos, chegou o inquérito que foi nada mais do que um balão de oxigénio para Marcelo e demais envolvidos. Como sabeis, estando em investigação, eles não se podem pronunciar em público e, portanto, a coisa vai caindo no esquecimento. O mesmíssimo esquecimento que todos alegam a cada nova questão. Marcelo não se lembra do e-mail do filho, o secretário de Estado não se lembra de marcar a consulta e, por esta altura, imagino, o Dr. Nuno nem se deve lembrar quem é o pai.

    Depois, também gostava que me explicassem, de preferência vindo daqueles que defendem a “liberdade de escolha” na saúde, como é que se resolvem casos destes num mundo onde o atendimento depende da qualidade do seguro. Digam lá, ó defensores de um mundo só com saúde privada, quem é que pagaria uma factura destas? Eu digo-vos: os pais das miúdas enquanto as viam morrer. Era esse o resultado num mundo sem SNS. Mesmo para gente com ‘cunhas’ destas, agora imaginem para aqueles que não chegam ao Dr. Nuno.

    clear medical hose

    Bem podem, pois, tentar credibilizar uma ‘cunha’ escandalosa que não conseguirão. Marcelo não vai cair e até já começa a tentar lavar as mãos do caso mas, por mais que tente, levará este lastro com ele.

    Por fim, uma nota para quem defende que os mercados tudo regulam sem intervenção dos Estados. Como é que um medicamento pode custar 2 milhões de euros? Como é que governos deixam farmacêuticas vender, seja o que for, por um preço destes? Isto não é o mercado, meus amigos. É um assalto organizado e validado pelos lobbies dos mais ricos. É, na minha modesta opinião, um convite a bater à porta das farmacêuticas com o exército e entregar-lhes o novo caderno de encargos.

    Há um limite para a obtenção de capital à custa da doença e, num mundo decente, esse limite aparece vários zeros antes dos milhões.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • PISA, covid e incompetência para dar e vender 

    PISA, covid e incompetência para dar e vender 


    Talvez seja impressão minha, mas vejo pouca discussão sobre os resultados dos testes do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) na comunicação social portuguesa. Bem sei que não temos o hábito de discutir a Educação em horário nobre, mas este tema, parecendo que não, é um pouco mais importante do que os penalties que se debatem em todos os canais informativos, três ou quatro horas por dia.

    Os testes do PISA são a medida utilizada para comparar os diferentes sistemas de educação nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e alguns convidados, num total de 81 participantes. 

    Alunos de 15 anos são avaliados em temas como leitura e compreensão, Matemática e Ciência.  

    woman covering her face with white book

    O recente relatório publicado, referente aos resultados de 2022, é particularmente preocupante porque mostra um tombo enorme em quase todos os países. No caso de Portugal, há uma queda de mais de 20 pontos na Matemática, uma pequena hecatombe.

    Uma das conclusões do relatório é que a pandemia e o encerramento das escolas contribuíram para piorar os resultados. É uma consequência lógica, diria. Alunos em casa, escolas fechadas, países confinados, programas que ficaram por dar ou que foram despejados por aulas remotas. No fim, as notas mostram que há um equilíbrio nos conhecimentos entre os estudantes de 15 anos, em 2022, e os de 14, em 2018. Ou seja, em termos práticos, perderam um ano do seu percurso escolar.

    Esta é uma parte da factura da criminosa política que maior parte dos países europeus adoptaram durante a pandemia. A outra, como percebem em cada mês, é a quantidade absurda de impostos que pagam para compensar o endividamento que foi necessário para pagar salários enquanto se parava parte do sector produtivo. Ou até a destruição do SNS (Serviço Nacional de Saúde) enquanto se desviaram milhões para farmacêuticas que nunca abriram as patentes das vacinas e para laboratórios que cobravam fortunas por testes obrigatórios, ao abrigo de leis idiotas que nos condicionaram os movimentos.

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    Não sei se já estaremos no momento certo de analisar o que foram os anos da pandemia. Não sei se já podemos discutir o escândalo que foi o desvio de dinheiro dos impostos para vacinas. Não discuto a sua necessidade, discuto o financiamento a farmacêuticas pelos Estados para criar uma vacina e perceber que, durante o processo, estas nunca foram obrigadas a abrir mão das patentes. Foi nesse momento que ficou claro que a questão não era salvar vidas, mas sim rentabilizar um negócio.

    E isso foi válido para os hospitais privados que cobravam um preço absurdo por cada doente, deixando o SNS a rebentar pelas costuras.  Vimos leis que nos proibiam o mais básico dos movimentos e que geraram fortunas para laboratórios, a troco de um teste para sair de casa.

    Uma amiga, que trabalhava na indústria farmacêutica, num fabricante de álcool-gel, dizia-me que foram anos de jackpot e loucura total. Escorria dinheiro pelas paredes com a obrigatoriedade de usarmos aquela “baba” em cada sítio público onde entrávamos. No fim da pandemia e das obrigatoriedades, despediram pessoas e guardaram os lucros nos bolsos dos accionistas. Se há algo que nunca perde rumo em pandemias, guerras ou catástrofes, é o capital e os capitalistas.

    brown leather wallet on orange textile

    No meio desta loucura toda, andámos a bater palmas aos enfermeiros enquanto ficávamos em casa sem pensar como é que chegava aquele salário. Ninguém quis saber do endividamento do país para ir mantendo as contas. Diziam “o que é preciso é salvar vidas, logo se vê quem paga”.

    Ora, não só não era necessário estar em casa para “salvar vidas”, isso hoje está mais do que provado (a não ser que julguem que a covid-19 foi erradicada como a lepra), como, de facto, não havia condições para pagar por isso depois. Batemos palmas ao que seria o nosso próprio empobrecimento e, hoje, é essa a realidade. Somos, de facto, mais pobres.

    Perdemos empregos, perdemos casas, perdemos poder de compra. E pior do que aquilo que fizemos aos adultos, ainda conseguimos prejudicar gravemente o percurso escolar das nossas crianças. 

    Será alguma vez julgada esta elite política absolutamente incompetente que governou a Europa nestes últimos anos?

    O primeiro-ministro, António Costa, e Ursula von der Leyen. A presidente da Comissão Europeia tem estado sob suspeita devido ao alegado desaparecimento das mensagens trocadas via telemóvel com o presidente da Pfizer, Albert Bourla, no âmbito do mega-negócio de compra das vacinas. A polémica envolve ainda o secretismo em torno dos contratos assinados com as farmacêuticas na pandemia.

    Contudo, a pandemia não justifica tudo. Há conclusões do relatório para o caso português que, não sendo novidade, deviam ser tema de debate e reflexão.

    Em Portugal, segundo os resultados do PISA, a escola ainda não atenua as diferenças entre pobres e ricos.  É mais provável que uma criança de classe média tenha melhores notas do que uma que venha de um estrato social mais pobre. 

    A isto podemos juntar um sistema de ensino onde os melhores e mais ricos são escolhidos pelas escolas privadas, deixando no regime público quem não tem outra hipótese. Acrescentem à receita alguns professores que se reformaram sem serem substituídos e uma classe – inteira, assumo – desmotivada por 10 anos de congelamento das carreiras e salários miseráveis.

    boy in black hoodie sitting on chair

    Significa, pois, que Portugal já vinha, há anos, a desmantelar a escola pública. Tal como o Serviço Nacional de Saúde. A pandemia deu apenas a estocada final num processo que já era óbvio e perceptível há muitos anos.

    E a prova de que nada aprendemos com o caminho que nos levou ao trambolhão nos resultados do PISA está no Orçamento apresentado pelo PS, um Orçamento que alguns ainda insistem ser de esquerda. Por lá podem ver a maior transferência de sempre de dinheiro público para privados na saúde e a Educação com um dos menores aumentos, quando comparado com o Orçamento de 2023.

    Portanto, não há aqui coincidências, azares ou pandemias. Há decisões, normalmente erradas, antes, durante e depois da pandemia.

    man staring at white sky taken at daytime

    Por outro lado, o que é que importa, para Portugal, os resultados do PISA, a falta de conhecimento adquirido pelos nossos alunos ou até a assustadora degradação da escola pública? Grave seria se esses cérebros, no fim do seu percurso, ficassem a trabalhar em Portugal. Agora, como cortiça, vinho, azeite e miúdos com formação universitária, são produtos para despachar para o primeiro mundo, eles que resolvam o problema caso apareçam por lá dois ou três com deficiências na tabuada.

    Com tantas ofertas de mão de obra que fazemos aos países ricos, ninguém leva a mal se a produção tiver um soluço ou outro. É evitar o modelo de 2020 e esperar pela fornada seguinte. Com PISA ou sem PISA, continuaremos a educar para todos vós, enquanto esperamos a vossa visita com um moscatel e um pastel de bacalhau recheado com queijo da serra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.