Autor: Tiago Franco

  • A ‘nossa’ solidariedade selectiva parece racismo

    A ‘nossa’ solidariedade selectiva parece racismo


    A rapidez com que mudamos o rumo do debate é usain-bolteana. Nós, portugueses, entenda-se.

    O tema pode mudar, mas os lados não. Dois. Hoje e sempre. Só há hipótese de haver um debate público se houver dois, dois lados, um a defender o preto, o outro o branco. E se quiseres, camarada, falar em cinzento, esquece; tens que escolher um lado nesta discussão binária. Somos todos informáticos num mundo de 0 e 1, e ninguém nos contou.

    A discussão desviou-se um pouco do palco de guerra – onde o desfecho parece mais ou menos inevitável – e seguiu para o como, o quando e o porquê da ajuda humanitária.

    E eu tenho lido um rol argumentativo que me transtorna, especialmente quando escrito por pessoas que considero inteligentes.

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    Há hoje, e novamente, uma espécie de proibição no ar sobre o debate em torno da origem dos emigrantes. Uma vez mais, devemos ser solidários com o actual conflito, e esquecer os restantes. Caso contrário, apoiamos a invasão, como se perceberá.

    Com o devido respeito, este é o tipo de argumentação que, além de pobre, deve ser direcionada para sítios onde o sol brilha pouco. Refiro-me à Sibéria e seu nevoeiro, obviamente.

    Acho muito bem que a União Europeia integre a Ucrânia – embora a versão “expresso” sejam uns tortuosos cinco anos –, e aprecio ver como toda a Europa se junta em donativos, em acolhimento e em todo o tipo de ajuda humanitária. Tento também ajudar, é o mínimo que podemos fazer, seguros no conforto de casa – chama-se a isso solidariedade entre povos.

    Não me venham é, depois, dizer que vendo toda esta iniciativa em torno de uma guerra, que dura há 15 dias, não posso questionar as políticas europeias de acolhimento das últimas décadas.

    Posso. E devo.

    Quem vem com o paleio do whataboutismo, quando se fala de outros refugiados, tenta reduzir o debate com um insuportável “então, como não ajudámos os outros, agora não podemos ajudar estes?”.

    Sim, podemos. Podemos. E devemos. Mas temos que discutir por que razão ajudamos estes e não queremos saber dos outros. É uma discussão legítima, e que deve ser aberta.

    E não estamos a debater refugiados do passado. Estamos a falar sobre refugiados de hoje. Por exemplo, crianças palestinianas que nascem, crescem e morrem em campos de refugiados na Jordânia. Ou migrantes que chegam às costas de Itália ou da Grécia, e que são imediatamente recambiados para África. Ou outros que tentam trepar as grades nos territórios ocupados por Espanha em Marrocos. Ou os afegãos que vendem rins para meter comida na mesa. Ou os sírios que chegam às portas da Escandinávia, e são enviados para o Ruanda.

    Dizem-me que refugiados de guerra não são migrantes… Bom, é verdade. Mas não são essencialmente pessoas que fogem da fome, da miséria, das guerras de clãs, da escassez, no fundo, da morte? Que diferença há entre um ucraniano que foge de Kiev e um maliano que depende da vontade de um senhor da guerra para ter acesso a água potável? Não tentam ambos conservar a vida?

    Palestinianos em guerra contra o invasor desde que se lembram, ou afegãos invadidos por tudo o que é gente desde a década de 80, não estão em situações semelhantes há décadas?

    Sim, estão. Qualquer pessoa percebe o óbvio e os porquês. A Europa abre as portas a uns e fecha-as a outros. É uma opção, uma escolha. E uma clara distinção entre povos.

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    A solidariedade existe, mas não se destina a todos de forma igual. E o que me enerva verdadeiramente na discussão em Portugal é a tentativa de arranjar justificações, protocolos, regras, burocracias, estatutos, que justifiquem uma coisa muito simples chamada racismo.

    Não é necessário, torna-nos um pouco mais ridículos e parece que tentamos chamar estúpido a quem nos ouve. Há apenas que assumir o óbvio que passa, entre outras coisas, por manter a maior parte das portas da Europa aberta aos seus povos, e meter um travão aos migrantes e refugiados que venham de países árabes ou africanos.

    Na Suécia essa posição foi assumida, no canal do Estado por Ulft Ktistersson, o Rui Rio cá do sítio. Num país com uma enorme tradição de receber refugiados – julgo que desde a década de 70 –, há uma clara diferenciação da direita, neste momento, entre receber ucranianos ou árabes e africanos. É mais ou menos isto que quem reduz o debate em Portugal ao whataboutismo faz. Racismo encapotado.

    Façam então como o Ulf: abracem a solidariedade selectiva. Louros e brancos, tudo bem. Pretos e árabes, de momento já preenchemos a quota.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O último capítulo?

    O último capítulo?


    Apesar dos bombardeamentos que continuam no sul da Ucrânia (não percebo bem se as 12 horas de cessar-fogo eram parte de uma metáfora), hoje é o primeiro dos 13 dias com alguma esperança. Julgo eu.
    Zelensky admite deixar cair a adesão à NATO, que nunca esteve verdadeiramente na mesa, pelo menos para a própria NATO, e discutir um acordo para as regiões anexadas pela Rússia.

    Fico com a sensação que o tempo não favorece ninguém. Putin nunca mais chega a Kiev e Zelensky não sabe quanto tempo mais resiste a capital. Imagino que tentem os dois uma saída que lhes permita sair do conflito mantendo o poder nos respectivos países.

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    Os vizinhos europeus parecem um pouco à nora e sem grande coordenação na reacção à situação. Os polacos tiveram aquela ideia peregrina de dar os MIGs à Ucrânia, mas os Estados Unidos meteram um travão na coisa. Os holandeses dizem que, sendo uma verdade inconveniente, não podem simplesmente deixar de receber gás e petróleo russos, porque não há alternativa. Finlândia fala em aderir à NATO, Suécia fica quieta e não quer contribuir para mais atritos, a Moldávia não tem condições para receber refugiados, e já vê os rapazes de Tiraspol, na Transnístria, a pedirem a Putin que os reconheça também.

    A crise dos refugiados é a única parte deste conflito não sujeito a opinião, enquadramento ou discussão. Pessoas que ficam sem tecto e passam a depender da caridade alheia. Ponto final. É este o drama real.
    Salvini foi humilhado por um presidente de câmara, na fronteira polaca, quando tentou visitar refugiados, e isso é bom. Mostra que alguns detentores de cargos públicos têm memória e espinha. Ventura tomou notas e pensou que continuar calado ainda era, mesmo assim, a melhor opção.

    Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano anda a fazer um rolé pelos países da NATO que fazem fronteira com a Rússia, e, a cada dia, faz uma conferência de imprensa onde anuncia mais batalhões e armas para as bases europeias.

    É o senhor que anda com o barril de gasolina no meio do incêndio.

    Sindicatos portugueses apareceram e deram voz a preocupações de exploração de trabalhadores ucranianos, embrulhadas em papel de solidariedade. Fiquei contente.

    A hipótese de acordo deixou o pessoal das certezas absolutas, especialistas em cenas e com informações no terreno, perdidos em manobras de contorcionismo. Mais importante do que contar o número de mortos é ter a certeza de que o Alfa português não se enganou no Jornal das 8.

    Quem dizia que Putin ia anexar a Ucrânia em cinco dias, agora é um estudioso da resistência. Quem dizia que Putin estava a fazer bluff, é agora um especialista da CIA que afirma “se a inteligência americana avisava, é porque ia acontecer”.

    Quem defendia que a NATO tinha que integrar a Ucrânia, ficou assim um pouco sem chão quando o Zelensky disse que “daqui a 15 anos logo vemos”.

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    Quem defendia que uma coisa são separatistas albaneses e outra são separatistas russos, vê agora com bons olhos uma “relativa autonomia” para o Donbass.

    Entretanto, consoante o que sair das conversações amanhã, teremos mais 2.727.4648 posts, debates e intervenções iniciados com um “tal como eu disse/avisei”. Nunca percebi como é que num país com tantas certezas absolutas nunca deixámos de ser pobres. Ah… espera, é por causa do PCP.

    Aproximam-se duas discussões interessantes que não podemos ter.

    A primeira relativa aos refugiados e à forma como os tratamos, consoante a sua origem. É realmente uma “discussão de caca” que, segundo especialistas me explicam, não deve ser feita neste momento. Por um lado, estão dois milhões de ucranianos em fuga, e há um problema para resolver agora.

    Percebo, não é tempo de discutir, mas de agir.

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    Ao mesmo tempo, no mesmo dia, mas um pouco mais longe, vive um povo há 74 anos nessa situação.

    Como estarão eles a olhar para tudo isto?

    Mais: o que pensarão, ao ver a Europa solidária contra o invasor russo, e a aceitar como mediador do conflito o Governo que os acorrenta em Gaza e na Cisjordânia?

    Bom, mas relativizemos, imagino que para quem já esperou 70 anos, mais semana menos semana, também “não será por aí que o gato vai às filhoses”. Eles aguentam mais 10 ou 15 dias, o Putin volta para casa, e a Europa logo se dedica em força à causa palestiniana.

    A outra discussão é o chamado totobola de segunda-feira. Eu, que sempre pensei que a Rússia fosse fazer aqui uma Geórgia 2.0, anexar os territórios do Donbass e dar uns sinais à NATO, fico agora confuso com uma saída antes de tomarem Kiev.

    Espero obviamente que isso aconteça, e que o conflito termine o quanto antes. Mas, nesse caso, o que leva Putin daqui? O que já tinha ao fim de dois ou três dias no terreno? E pior do que isso, o que virá a seguir? Narva na Estónia? Klaipeda via Kalinegrado na Lituânia? A Moldávia? Será isto o embrião da Guerra Fria, parte II, ou há um Rambo qualquer que meta uma bala na cabeça deste gajo?

    Dúvidas que me assaltam numa Europa que raramente se consegue organizar e falar a uma só voz.

    Mas há que dizer, em abono da verdade, que ainda não vi o vídeo da TVI onde o Paulo Portas explica o conflito. Mais três ginjas, e consigo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Fácil para uma criança, improvável para Ana Gomes

    Fácil para uma criança, improvável para Ana Gomes


    O meu filho faz-me perguntas há 11 anos. Todos os dias. Sobre tudo e mais alguma coisa. Até sobre argumentos de filmes e a forma como foram escritos. Pausa a transmissão do dito, e diz: “achas que ele aqui devia ter fugido à polícia pela ponte? Se fosses tu como é que fazias? E não digas não sei; se quiseres inventa”.

    Normalmente, respondo: “bom, se isso não fosse um filme com um argumento já escrito e imutável, e, se por acaso, reflectisse algum momento da minha vida, nesse caso eu tentaria fugir à polícia usando uma zona onde me pudesse misturar na multidão, nunca uma ponte porque estaria exposto”.

    Pensando eu que isto arrumava o tema, ele acrescenta, “ok, mas se eles tivessem um sniper, estarias a meter a população em perigo”. E seguindo por aí até todas as combinações possíveis de hipotéticas questões.

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    É assim desde o dia em que ele começou a articular palavras suficientes para formar uma interrogativa.
    A Ucrânia é tema cá em casa, e a posição da Suécia, também. Os miúdos falam na escola, os professores explicam o conflito. O tik-tok está cheio de propaganda. Falsa, menos falsa, verdadeira. Há de tudo. Vão-se formando opiniões em cabeças mais jovens com a inocência que uma vida na bolha oferece.

    Diz-me em tom de desafio que a Suécia devia entrar para a NATO e que a Rússia nunca teria coragem de nos atacar. Segundo ele, a NATO só não deixa um país entrar se já estiver em guerra, portanto, se fizermos o acordo muito depressa, o Putin nem a vê passar. É uma espécie de diplomacia expresso. Para ele não há forma de evitar a terceira guerra mundial, e temos que lutar. Os amigos acham o mesmo.

    Na redondeza de classe média-alta, quase sem emigrantes, e onde nós somos uma minoria, o meu filho e os amigos vivem numa redoma de privilégio, e olham para Kiev como um episódio da Guerra dos Tronos.

    Curiosamente, ou porque ainda não têm maturidade para tal, esquecem-se das 10 famílias de sírios, colocadas aqui no bairro, a 200 metros da nossa casa, cujas crianças foram distribuídas pelas turmas deles, e que, no primeiro dia de aulas, apenas tinham a roupa do corpo. Famílias que procuraram refúgio na Suécia, e que não faziam a menor ideia onde ficava Eklanda, Mölndal ou Gotemburgo, mas que foram forçadas a recomeçar do zero. A sair sem olhar para trás.

    Perguntei-lhe se conseguia sequer imaginar um cenário desses. Fechar a porta, meter três malas no carro, e fugir para Portugal, deixando para trás uma casa destruída, e o bairro, onde esteve toda a vida, arrasado. Quão excitante seria isso?

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    Melhor: se nem em Portugal tivéssemos abrigo, e, tal como ucranianos, sírios, afegãos ou palestinianos, ficássemos dependentes da caridade alheia, dos campos de refugiados, de asilo num outro país que nada nos dissesse? Quão excitante seria entrar nesse mundo de horror não transmitido no Netflix?

    Peguei no caderno, onde fazia os exercícios de Matemática, e esqueci a minha irritação momentânea com a simplificação de equações. Desenhei a Europa, a Ucrânia, as regiões separatistas. Expliquei o que era a URSS, a Cortina de Ferro, a NATO. Contei a história de outros ditadores que, como Putin, reclamavam o seu lugar na História. Falei de combatentes russos que não sabiam o que ali faziam, do batalhão Azov, dos oito anos de Donetsk, do Kosovo.

    Falei dos inocentes que sofrem na pele as loucuras de quem decide e no fim, lembrei-me de uma imagem que vira há pouco tempo, num jornal qualquer, onde quatro miúdos ucranianos, com 18 anos, se apresentaram para o “combate” com capacetes de bicicleta e joalheiras de skate.

    Perguntei-lhe se, embora aquela imagem desse uma história super cool para umas horas de internet, achava que aqueles jovens teriam alguma hipótese de sobreviver numa frente de guerra contra soldados profissionais e bem equipados. Ele disse que não, não tinham.

    Chegámos, pois, ao conceito de carne para canhão.

    Pergunta-me, então, quase indignado, como é que mandam pessoas sem treino para a guerra.

    Eu digo-lhe que cada civil que se junta ao exército na Ucrânia tem um treino de três dias antes de ir para o terreno. Vejo a expressão a mudar e alguma preocupação no semblante. “Só três dias?? O que é que se aprende em três dias??”

    Fica algum silêncio. Nunca há silêncio quando o meu filho está por perto. Nunca.

    Faz mais um exercício de Matemática e pergunta: “então…se a guerra chegar aqui, se a NATO entrar, e se os civis forem chamados, tu és obrigado a ir também?”. “Acho que sim”, respondi.

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    “E também terás só três dias de treino?”, acrescentou. “Não sei, pode ser que tenha uma semana. Em Portugal a coisa faz-se sempre mais devagar”, disse eu, tentando desanuviar o clima.

    Imagino que os segundos seguintes tenham sido passados a construir uma imagem futura menos agradável.

    De repente, com os olhos em lágrimas, dirige-se a mim visivelmente chateado. Quase como se a culpa da invasão da Ucrânia fosse minha. Disse, reclamando: “então nem vais aguentar três dias na frente da batalha!! Tu nem a pistola da minha VR consegues carregar depressa!!”

    Abracei-o, e disse que não se preocupasse. Se os russos conseguirem pagar o combustível para levarem os tanques até à Margem Sul, a malta rouba-lhes as lagartas na Fonte da Telha, e dali já não passam. A sensação de perda de algo ou alguém querido, fê-lo pensar de forma mais racional sobre os perigos da guerra, da escalada do conflito ou de encurralar um doido, com armamento nuclear, deixando-o sem outra saída que não seja disparar.

    Um simples raciocínio que uma criança de 12 anos consegue compreender, mas, aparentemente, uma lógica impossível de perceber por uma ex-candidata presidencial que, ontem, apelou ao início da III Guerra Mundial.

    De repente lembrei-me que 541.556 pessoas, há cerca de um ano, achavam que Ana Gomes tinha perfil para ser a voz mais alta de Portugal.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O whataboutismo do momento

    O whataboutismo do momento


    Aprecio muito modas linguísticas e bengalas argumentativas. Julgo que nos trazem a vantagem de encurtar discussões, evitar a trabalheira que é articular o pensamento e, como bónus, ainda nos dão uma certa aura de inteligência sem grandes desenvolvimentos.

    Na guerra das indignações a que está a fazer furor neste momento é o whataboutismo. Caminham lentamente para remover o “negacionista” da pandemia do pódio mediático. Lembram-se desses tempos, quando uma pessoa que não concordava com o confinamento via a discussão encurtada com a ajuda da bengala do negacionismo? Julgo que vamos por aí no caso do conflito russo-ucraniano, mas com uma componente histórica bem mais interessante.

    Debater, nos dias de hoje este tema, é andar literalmente em areia movediça. Vou arriscar, em todo o caso, com um exemplo, e logo se vê.

    O Martim rejubila com o fabrico caseiro de cocktails molotov nos subúrbios de Kiev. É um povo a resistir a uma ocupação externa, um exemplo de bravura, um acto heróico que nos inspira a todos.

    Pessoalmente, consigo alinhar com este pensamento. O Martim é um gajo que lê jornais, mas não liga muito a História. É informado, mas pouco culto. Junta-se à conversa o Renato, que é um tipo mais dado à História, e que mistura a leitura da imprensa nacional com a internacional. O Renato diz ao Martim: “Ouve lá, não dizias que quando se fabricaram cocktails molotov na Cisjordânia, estávamos perante um acto de terrorismo? Não era afinal a mesma acção de defesa de um povo contra o invasor?”

    O Martim pensa cerca de cinco segundos, e dispara: “Renato, isso agora é whataboutismo!”, ou seja, está a fazer uma acusação de se estar a usar outros exemplos, mesmo se semelhantes, que desculpam a actual situação. Portanto, segundo esta corrente de pensamento, é um argumento não possível de ser utilizado. Porquê? Ninguém sabe.

    Qual a razão de aceitarmos o bombardeamento da Sérvia, pela NATO, para defender separatistas, mas condenarmos o bombardeamento russo que está a defender separatistas? Nenhuma, mas quando o fazemos, não caímos em whataboutismo, o que é sempre positivo.

    O Governo norte-americano, por exemplo, também tem a sua própria definição de coerência. Russos que anexam a Crimeia ou Chineses que chateiam Taiwan, em princípio não; israelitas que anexam colonatos ou fazem paredes altas e sem tectos, já está bom. E nunca, mas nunca, referir as duas contradições em simultâneo, porque, lá está, cairíamos em whataboutismo. E ninguém quer isso.

    Os fãs do whataboutismo gostam de analisar os problemas da vida no dia em que começam.

    Por exemplo, um tipo fuma durante 30 anos, e algures no processo é-lhe diagnosticado um cancro de pulmão. Passa o resto da vida a tentar perceber como é que aquilo aconteceu, porque os últimos 30 anos são encerrados num bunker.

    O que eu ouço quando me dizem “epá!, isso já é whataboutismo“, é isto: um amigo da secundária, que era supercool, porque foi o primeiro a ter uns Air Jordan que não vieram da feira, escreveu isto no mural e eu, que não sabia onde ficava Donetsk até o Paulo Fonseca ir para lá, achei que era um bom drop the mic para finalizar discussões. Ainda por cima é uma linha em estrangeiro. LMAO.

    O meu problema com essa bengala é a impossibilidade de se discutir ou resolver qualquer problema que não seja o do momento. Um argumento inteligente seria, por exemplo, que a reacção ucraniana é exactamente igual à palestiniana, e que qualquer uma das invasões é inaceitável. Seja na Sérvia, na Líbia, no Iraque ou na Ucrânia. E venha de que agressor vier. Sem cores, bandeiras ou partidos. Uma invasão é uma invasão.

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    Ou então, um fã do whataboutismo diria: “ouve lá… agora o Mundo está com a Ucrânia, vamos fazer pressão para derrubar o Putin. No fim disto vamos safar os gajos na Faixa de Gaza!! Certo??”. Ora, isto já me pareceria algo com sentido, ou seja, o Mundo preocupado com as populações oprimidas.

    E reparem, desta forma o whataboutismo desapareceria, porque não existiriam exemplos passados para dar. Estão a imaginar a maravilha? Poderíamos lidar com uma catástrofe de cada vez e ninguém vos pediria o número de crianças mortas no Iémen ontem. O problema é que isso nunca acontece, não é? Há populações no Mundo que podem e devem ser invadidas. Ou são pretos, ou árabes ou estão longe de nossa casa. Outros não podem, e o nosso sentido de decência vem ao de cima.

    Três mil mortos na queda das Torres Gémeas foram uma catástrofe que parou o Mundo. Um acontecimento que mudou a História e a nossa vida. A minha pelo menos mudou.

    Já os 500.000 que em consequência desse ataque morreram no Iraque, foram danos colaterais.

    E ligar os dois acontecimentos, dizem, não é perceber a História ou contextualizar a desproporção da brutalidade. É whataboutismo.

    No fundo passamos a vida em discussões circulares sobre qual o melhor império opressor, e ainda há quem acredite que isto é, de facto, uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

    Há pouco ouvi que os Estados Unidos não tinham qualquer interesse neste conflito, o que, na minha opinião, é como dizer que um vendedor de pipocas não quer saber de milho. Os ucranianos morrem no terreno. Os russos também. Os interesses no conflito começam em Washington e acabam em Pequim.

    E sobre mortes há também um dado interessante, mas mórbido. Começam aos poucos a aparecer relatos de desportistas, mais ou menos famosos, mortos em combate. Os líderes são justamente criticados por mandarem jovens para a frente, sem treino, enquanto eles e suas famílias estão resguardados em palácios, bunkers ou até noutros países.

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    Guerras combatem-se com exércitos, não com civis. Putin é um assassino, de opositores ou até dos seus próprios soldados, algo que não será original na História da Rússia. E é retratado como tal. Faz sentido na minha cabeça.

    Já Zelinsky, guardado pelas forças especiais num bunker de Kiev, obrigando todos os homens entre os 18 e 60 anos a ficarem no país, esperando que a população se atire para cima de tanques com garrafas de vinho em chamas, é um herói. E não concordar com isto, meus amigos, ou comparar a sua acção com a de outros líderes que enviam civis para a morte, é whataboutismo.

    Reparem que quando Israel nos diz que o Hamas usa escudos humanos, nós gritamos pela barbárie. Já se mulheres ucranianas atravessam a fronteira a chorar porque os maridos, civis, são forçados a ficar para escudo, achamos ser heróico.

    Glória às bengalas e à estupidificação do discurso. A coerência não faz parte da realpolitik.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O enquadramento histórico selectivo

    O enquadramento histórico selectivo


    António Filipe foi à CNN Portugal discutir a actual situação da Ucrânia ou, pelo menos, assim pensava ele. Ladeado por Sérgio Sousa Pinto e Sebastião Bugalho, portanto, direita conservadora, acabou a discutir a posição do PCP em relação ao conflito. Ou, nas palavras de Sérgio Sousa Pinto, do “capacho de Putin”.

    Sérgio, antigo líder da Juventude Socialista (JS), disse há uns tempos, numa entrevista a um jornal, que era um betinho de Lisboa e que, graças à JS conseguiu conhecer Portugal.

    Não me admirei por ser um betinho, mas já fiquei mais surpreendido com a vertente turística da JS. Sabia que o cartão de jotinha abria muitas portas, mas nunca pensei que uma delas fosse a da Agência Abreu.

    O que eu achei interessante no debate de ideias é que, a dada altura, passou a ser mais importante a posição do PCP em relação a Putin, ao conflito ou à NATO, do que propriamente a análise ao que aqueles desgraçados sofrem no terreno. Fico sempre encantando com a atenção que o país dá à opinião de um partido que, segundo me explicam, está para desaparecer desde o século passado.

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    Há um ponto do debate que vale a pena relevar: o “mas”. Sérgio Sousa Pinto, que não parece saber que o partido comunista russo é oposição, e não poder, fica a espumar porque o PCP condena a NATO ao mesmo tempo que critica a invasão.

    Para ele, não pode haver um “mas”. Há que arrasar a Rússia e acertar o relógio da História para sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2022. Aliás, como disse o moderador/pivot da CNN: “António Filipe, a guerra começou há 3 dias!”

    Ora, aí é que está, não começou, não. A não ser que comecemos a procurar sinónimos mais latos para guerra. Há oito anos que se trocam tiros na região de Donbass, entre russos e ucranianos. Para mim, que não sou muito versado em kalashnikovs, se há tiros no ar durante muito tempo, e entre as mesmas pessoas, já lhe chamo uma guerra.

    Entramos então na moralidade do “mas”, que me irrita ligeiramente, confesso. A direita acusa o PCP de não condenar a Rússia com força suficiente, embora já repetidas vezes tenham dito que não apoiam Putin. Ou, como disse António Filipe, “a Rússia capitalista e senhor Putin nunca nos enganaram”. Mas não chega.

    Não se pode falar na História de 2014, do Acordo de Minsk ou na expansão da NATO. Para Sérgio Sousa Pinto e para a direita em geral, isso é validar a agressão. O relógio temporal tem que ser iniciado apenas no dia 25 de Fevereiro e nós temos que ignorar tudo o que nos trouxe aqui.

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    O problema é que este “MAS” só se aplica nas críticas feitas ao PCP. Aos outros não só é permitido como essencial na argumentação. Exemplo: “O PCP foi importante na luta contra a ditadura, MAS queria, ele próprio, impor outra em seguida”, diz um dirigente do CDS enquanto comemora o 25 de Novembro.

    Durante os bombardeamentos da Faixa de Gaza, há pouco mais de um ano, ouvimos todos os dias os lamentos pela morte de 50 crianças palestinianas, MAS fomos recordados que morreu uma do lado israelita. Portanto, a brutalidade está justificada para o mundo ocidental. Ainda nestas últimas eleições, elementos do PSD se indignaram com o cordão sanitário exigido na relação com o Chega dizendo que, se o PS se pode coligar com o PCP e BE, por que razão não pode o PSD coligar-se com o Chega? Ou seja, na discussão sobre um partido racista e xenófobo, sentiram necessidade de falar em dois partidos que cumprem a Constituição.

    Sérgio Sousa Pinto dizia a António Filipe, por que razão devemos falar da NATO quando há uma invasão no terreno? Pela mesma razão que o caro Sérgio, na análise das legislativas, dizia que a demonização do Chega não fazia sentido quando o PCP tinha um acordo de Governo.

    Para o jotinha que conheceu Portugal faz sentido falar no PCP quando se discute um Governo de direita com o Chega, mas já é estranho, ou vá, descabido, falar na NATO por causa de uma guerra onde ela é uma causa direta. Realmente… quem é que se lembraria, Sérgio, quem?

    O que é que isto nos diz? Que sempre, em qualquer tema ou discussão, a análise é feita de acordo com as convicções, conhecimento histórico e enquadramento global. Aqueles que agora exigem ao PCP que ignore tudo o que aconteceu antes de dia 25, são os mesmo que usam o comparativo quando o seu lado se apresenta como o facínora da história.

    Pior, fazem-no num momento delicado, tentando colar o PCP a um regime de direita e confundindo a crítica à NATO com a validação da guerra. E por mais que António Filipe e seus pares digam o contrário, a mensagem vai circulando, e o PCP fica com o odioso rótulo de ser o apoio de Putin em Portugal.

    Putin que, lembremo-nos, financia os partidos de extrema-direita na Europa, entre os quais os amigos Salvini e Le Pen, companheiros de retrato de Ventura.

    Isto, meus amigos, é desinformação em horário nobre. E da boa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ventos de mudança

    Ventos de mudança


    Acompanhar e perceber o confronto entre a Rússia e a Ucrânia é bem mais difícil do que esforço, a todos exigido, naqueles “anos felizes” em que éramos apenas especialistas em Saúde Pública.

    Agora estamos em modo Enciclopédia. Historiadores de manhã para entendermos o relato dos acordos de Lisboa (durante a crise da Bósnia), feitos pelo major-general Raul Cunha. Daí passamos logo a Especialistas Militares, porque descobrimos que major-general é um posto.

    À tarde ouvimos o Rogeiro e ficamos com Phd em Logística de Combate.

    Segue-se o Monjardino com quatro hipóteses futuras para as opções de Putin no Kremlin. Concluímos a tese de mestrado em Ciência Política.

    Chega então o Zé Gomes da SIC, e dá-nos uma esfrega com as sanções e a “bomba nuclear” do Swift. É a pós-graduação em Economia.

    Quando chega a hora de dormir, já nem a tabuada se consegue processar. Nestas intermináveis horas de directos, com muitas repetições, e por vezes perguntas idiotas, tenho visto também bom serviço (público e não só), excelentes comentadores que trazem alguma luz à contra-informação, e repórteres no local que acrescentam algo à informação.

    blue and yellow striped country flag

    Pedro Mourinho, agora com matéria, tem sido um exemplo de sobriedade e tranquilidade na transmissão de informação. Já José Rodrigues dos Santos pula de angústia, em exclamações de excitação, como se estivesse em trabalho de prospecção para o próximo livro sobre campos de concentração.

    Algo parece ter mudado nas últimas 48 horas. Pensava-se que a capital cairia anteontem noite, mas a resistência ucraniana mostrou-se organizada. O presidente Zelinsky, que incentivou civis a pegarem em armas e cocktails molotov, parece ter ganhado uma nova aura de líder, depois de ter recusado as ofertas de exílio oferecidas pelos Estados Unidos e Letónia. Disse que não queria boleia, mas sim armas.

    Zelinsky anunciou que a Turquia iria bloquear o acesso ao Mar Negro, o que não se verificou, mas a Ucrânia conseguiu mobilizar a atenção mundial e cocar Putin como um pária. O líder russo já quer terminar as invasões, que não estão a ser um passeio para as suas tropas, e quer encetar negociações. Putin mostra que não quer uma guerra longa, mas tal pode não suceder. Alemanha enviou mais armas para ajudar a resistência ucraniana, tal como os Estados Unidos.

    Contudo, por agora são apenas sanções contra os russos, e armas para a Ucrânia resistir. Os ucranianos, na verdade, continuam sozinhos, mas parecem manter a fé. Resta saber até quando vão aguentar. Suecos e finlandeses entram agora no radar e começam também a enviar dinheiro para o combate à Rússia. A Bielorrússia cedeu o seu território sem pensar que, no futuro, podem eles ser a próxima Ucrânia.

    Que amanhecer teremos daqui a umas horas?

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os sonhos do czar Putin

    Os sonhos do czar Putin


    Não é muito fácil imaginar o que passará pela cabeça de Putin neste momento. Mais difícil ainda é perceber que acesso de loucura imperialista o levou a meter-se num buraco de onde dificilmente sairá vencedor. Depois de semanas de incentivo americano, especulação em algumas televisões e promessas de guerra com hora marcada, a Rússia lançou de facto uma ofensiva em todo o território ucraniano. A partir deste momento o regime de Putin deixou de ter qualquer poder de argumentação para o que se seguirá.

    Numa situação extremamente complexa, como a que se vive neste conflito, acho confrangedora a simplista análise do Bem contra o Mal, e a escolha de lados.

    man holding sword and shield statue

    Mariana Mortágua fez, até ao momento, o julgamento que me parece mais lógico, e com o qual concordo. Putin é um oligarca de extrema-direita, sem qualquer apreço pela democracia e com sonhos imperialistas, como mostram as anexações na Geórgia, Crimeia e, desde 2014, Donbass.

    Mas a história não começa aqui. Independentemente da loucura atribuída a Putin, não se pode contar esta história sem pensarmos na expansão da NATO para os países da antiga Cortina de Ferro, nos repetidos ataques de pelotões de neonazis à população russa no leste ucraniano, dos bombardeamentos da NATO na Sérvia, da invasão da Líbia e do Iraque, dos interesses americanos no conflito, seja pelo armamento ou pelos acordos energéticos.

    Putin poderia até querer equilibrar a balança de poder, e trazer a Rússia para o confronto com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que colocaria um tampão à expansão da NATO. Era uma posição, ainda assim discutível. Uma versão russa do Kosovo, quiçá.

    Contudo, assim que as tropas russas lançam ataques em todo o território ucraniano, cai por terra a defesa dos separatistas de leste.

    Fica visível que o discurso sobre a Ucrânia, onde Putin considerou que aquele território nem um país deveria ser, não era um bluff.

    E é aqui que as dúvidas se multiplicam. O que esperará Putin obter de tudo isto?

    A narrativa oficial é de que a Rússia não quer controlar a Ucrânia, mas sim retirar-lhe qualquer poder militar. Pergunto: porquê? Para defender uma região separatista de leste? Não bastava para isso estacionar tropas como fizeram na Crimeia? Alguém comprará a narrativa oficial?

    Mesmo que a Rússia consiga vergar a Ucrânia, e trocar o governo pró-europeu por um pró-russo, que mais valia tirarão daí para além do acesso às riquezas do subsolo?

    No outro lado da balança estará o despertar do fantasma russo na União Europeia. Os Estados Unidos atiram-se ao fornecimento de gás, a Europa certamente começará a pensar em sanções económicas, e mais defesas militares contra a Rússia. É este o preço que Putin quer pagar? O de ter como inimigos praticamente todos os parceiros comerciais do continente? Ainda por cima quando a NATO nem sequer queria admitir a Ucrânia como membro.

    brown chess piece on white surface

    Putin fez tudo o que o governo americano poderia desejar, e é isso que, decididamente, não consigo compreender.

    Numa das declarações à televisão russa, Putin avisou ainda que, para além da invasão nos seus termos, não quer qualquer interferência no terreno de outros países, porque, se for esse caso, também esses países serão visados pelo exército russo.

    Há quem diga que desde 1989, quando em Berlim assistiu encurralado à queda do muro, que os sonhos de grandeza e de recuperação do império habitam a mente deste ex-KGB. Será este o seu momento?
    A NATO informou que não terá qualquer intervenção, e sabemos que tropas estrangeiras, entre elas portuguesas, estarão nas fronteiras apenas para controlar refugiados. Ainda assim, por quanto tempo ficarão os ucranianos entregues à sua sorte? Poderá o conflito ficar resolvido sem ultrapassar as fronteiras da União Europeia?

    Imagino que as conversas da III Guerra Mundial comecem agora a tomar forma.

    O rublo está em queda e o preço do gás e do crude começam a subir, afectando a vida de todos no continente europeu. A União Europeia vai ter que acelerar a transição energética e, com isso, reduzir a dependência da Rússia. Não há nada neste quadro que possa beneficiar a Rússia, seja qual for o desfecho da guerra.

    Entendo que um homem como Putin, que entre manobras internas com Medvedev ou a alteração da Constituição, se consegue manter no poder há duas décadas, queira deixar uma marca na História do país. Pergunto-me é se terá feito as contas todas antes de ultrapassar as fronteiras de Donbass.

    people gathering on street during nighttime

    Por fim uma nota interna para quem, a partir de Lisboa, vê este conflito. Putin não é um político de esquerda. Putin não é comunista. Putin nem sequer vê com agrado as ideias de Lenine ou uma sociedade socialista. Putin é um capitalista corrupto à frente de um império que defende os seus interesses económicos. Tal como os que estão do outro lado do Atlântico.

    Portanto, por favor, Partido Comunista Português, organização fundamental na luta contra a ditadura e defesa dos trabalhadores, não confundam a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obra. Uma coisa é a política expansionista da NATO, orquestrada pelos Estados Unidos, que está na origem do conflito – e sim, deve ser criticada. Outra, é fechar os olhos a um louco de extrema-direita, só porque dirige um país que já foi palco de revoluções de trabalhadores e de ideais de Lenine.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O tempo das sanções

    O tempo das sanções


    As declarações de Putin, reconhecendo a independência dos territórios no leste da Ucrânia, geraram uma multiplicação de reuniões e respectivas reacções dos decisores políticos.

    Nas Nações Unidas, o representante ucraniano disse que não dariam nada a ninguém. O russo avisou o Ocidente para uma reflexão antes de começarem com sanções, que é como quem diz, depois não digam que não avisei.

    Os Estados Unidos avisaram que as tropas russas, ao contrário do afirmado por Putin, não são forças de paz, mas sim invasores.

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    As Nações Unidas, aqui que ninguém nos ouve, servem para muito pouco.

    Basta ver que há mais de 50 anos, por voto favorável de apenas dois países, contra os restantes cento e tal, o embargo a Cuba não é levantado.

    O Reino Unido também mostra as garras, e o good old Boris lançou já uma série de sanções a cinco bancos e três milionários russos. Felizmente Abramovich pediu passaporte português aqui há uns tempos, senão, digo eu, lá iria a Premier League ao fundo. É que é importante fazer muito alarido, dar a sensação que se está a mudar algo, mas, no essencial, deixar tudo na mesma enquanto os impérios se entendem.

    A União Europeia também impôs sanções, nomeadamente ao Nord Stream 2 – o famoso abastecimento de gás, que resulta numa grande fonte de rendimento para Moscovo. E já agora, que fornece uns bons banhos quentes na Finlândia, Bulgária, Eslováquia, Alemanha, Itália, Polónia e França, sem passar pela Ucrânia.

    Joe Biden não quer o Nord Stream 2 a funcionar, pois acabará por amarrar os alemães, e, já se sabe, sem os alemães a Europa não decide seja o que for.

    Aliás, a União Europeia dá, neste momento, uma imagem de fraqueza confrangedora nesta luta de interesses entre russos e americanos, via NATO. Polónia e Ucrânia dificultam sempre que lhes interessa a passagem de gás russo para a Europa. É por estes territórios que é hoje feito o abastecimento. A Ucrânia, mais concretamente, até já bloqueou a passagem prejudicando países da União Europeia.

    Contudo, neste momento de aflição, exigem que a União Europeia boicote um abastecimento de gás que não dependeria dos interesses ucranianos… é, no mínimo, curioso.

    Mas como é essa a vontade dos Estados Unidos, via NATO, a União Europeia faz.

    Os cidadãos europeus que lidem com o que aí vier. Depois do gás, veremos o aumento do preço do petróleo, também fornecido pela Rússia a alguns países da União Europeia.

    Somos uns meros peões neste tabuleiro de reis e rainhas.

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    Portugal, na voz do nosso Marcelo, já repudiou veemente as acções russas. Julgo que terá sido a gota de água para Putin. Uma coisa é receber uns milionários recambiados de Londres, ou ter que fechar a torneira do gás. Outra é o repúdio do Marcelo. Um homem não é de ferro.

    Putin fez, durante uma hora, um discurso inenarrável, que, entre outras coisas, afirmou que os ucranianos não se conseguiam governar sem ajuda externa. Ou seja, estão mesmo a pedir uma anexação para se organizarem. Já os Estados Unidos vêm com bons olhos o aumento do preço dos combustíveis na Europa, mais dificuldades para as populações e a abertura de uma linha de crédito para continuarem a armar os ucranianos.

    Portanto, pergunto-me se, nesta disputa de interesses entre duas potências, com a China a observar, há ainda alguém que acredite num confronto entre o Bem e o Mal.

    Não. Nada disso. Há negócio e interesses. Os ucranianos podem esperar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O dia em que Putin nos estragou a prosa

    O dia em que Putin nos estragou a prosa


    Julgo que foi Ricardo Araújo Pereira quem, em tom humorístico, deu a melhor receita até ao momento para analisar a tensão entre a Rússia e a Ucrânia.

    Disse, e cito de cor: “gosto de ouvir o que têm a dizer aqueles que afirmaram que o Iraque tinha armas de destruição maciça. Depois, em princípio, é fazer o contrário”.

    Faz algum sentido. Há mais de uma semana que Joe Biden grita aos quatros cantos que, hoje é que é! A CNN dá-nos, diariamente, várias opções de ataque ao território ucraniano, com base em informações das inteligências francesa, inglesa ou americana. E nada acontece. Até Nuno Rogeiro, que normalmente mantém um tom sério nestas coisas, ocupou boa parte do seu programa “Leste-Oeste” a falar de bloopers e episódios caricatos.

    St. Basils Cathedral

    Mas centremos a discussão em dois pontos essenciais. O que quer realmente Putin e, já agora, a NATO?

    A primeira coisa que a NATO não quer, nem oferecida, é a Ucrânia. Entre presidentes pró-russos, revoluções, deposições, independentistas, acusações de corrupção, eleições falseadas, grupos nazis e, agora, um comediante à frente do país, o xadrez ucraniano é de uma complexidade tal que dificilmente o Ocidente se poderia segurar a qualquer tipo de estabilidade para justificar fosse o que fosse.

    Por outro lado, a NATO não vai correr o risco de aceitar um novo membro que tem disputas territoriais com a Rússia.

    Já Putin, apesar de não ser grande democrata, vê o mesmo que todos nós, a expansão da NATO para leste. Um tratado de defesa militar que, desde a queda da URSS, deixou de ter a raiz da sua existência, mas, como se percebe, nunca parou de ir ocupando os territórios circundantes da Rússia.

    Seria um exercício interessante o de pensarmos como reagiriam os Estados Unidos se, durante umas décadas, os russos fossem instalando bases no México, em Cuba, na Jamaica ou no Canadá? Melhor, como veria a comunicação social do Mundo Ocidental essa movimentação? Nós acabamos sempre por formar opinião sobre a História pela forma como esta nos é narrada.

    Sobre essa dualidade de critérios há ainda um pormenor relevante. A NATO, que agora defende que os territórios ucranianos com maioria étnica russa devem permanecer na Ucrânia, foi a mesma NATO que em 1999 bombardeou a Sérvia, para que esta abrisse mão de 20% do seu território onde estava uma maioria albanesa (Kosovo).

    Portanto, percebemos sempre em cada capítulo do confronto de potências que, a chamada comunidade internacional, não defende o que está certo ou o que é melhor para as populações. Defendem, cada uma das potências, o seu próprio interesse. E a comunidade internacional segue o rasto do dinheiro.

    No caso da NATO, uma espécie de cão de fila do governo americano na Europa, qualquer hipótese de conflito na Ucrânia é óptimo. Desde logo porque podem vender armas aos ucranianos, mas não precisam de gastar dinheiro no envio de tropas. Depois, porque, qualquer limitação ao fornecimento de energia na Europa, que passe pela Ucrânia, pode ser substituído por fornecimento americano. E é por isso que Biden grita todos os dias. Está no Bolhão da Real Politik, a puxar pelo negócio.

    man in black leather jacket and brown pants standing beside black and white wall

    O que fez afinal Putin? Obviamente, não invadiu a Ucrânia, como se percebia pela quantidade de tropas na fronteira (excepto para os analistas da CNN que já tinham o caminho traçado até Kiev), e deixou os separatistas no leste ucraniano fazerem o trabalho de sapa.

    Depois, reconheceu à maioria russa no território o direito à independência. A partir daqui, mesmo que mais ninguém no mundo reconheça estes territórios, qualquer ataque ucraniano passará a ser um ataque à Rússia. Em resumo, uma repetição da guerra dos 5 dias na Geórgia com as zonas fronteiriças da Ossétia e Abecásia. Estava nos livros.

    Putin quer recuperar o controlo de partes da União Soviética onde foram deixadas populações russas, depois de afastados os nazis no caminho para Berlim. Pelo meio da jorna ainda recupera algumas prendas oferecidas, como a Crimeia. E pode, como se vê, pode.

    Os textos entretanto escritos ficaram obsoletos em 24 horas, e começam, a partir de hoje, novos diretos de especulação. A lógica, na minha opinião, será a de que Putin procura zonas tampão, territórios na fronteira, áreas com maiorias étnicas russas. Mas não estou a ver isto chegar para grandes directos de Kiev e horas de Azeredo Lopes. É preciso usar esta declaração de independência de forma algo mais espectacular e preparar novos gráficos com setas vermelhas.

    Assim, esta manhã, já se contavam os possíveis mortos causados pela nova invasão russa e o caminho escolhido até Kiev. Amanhã, Pedro Mourinho dir-nos-á que ainda não aconteceu nada, mas estará para breve, sente-se no ar. Biden pedirá sanções, enquanto oferece descontos nos morteiros. Em princípio temos audiências garantidas para mais um mês. Depois começa o Big Brother Quase Famosos 2.

    Impérios. São impérios na sua formação contínua e afirmação de poder. E nós, neste cantinho sem direito a audiência na mesa dos seis metros, ficamos a ver a posição da União Europeia de subserviência a quem lhe der energia e a ouvir o que aí vem nas vozes de Marques Mendes ou Helena Ferro Gouveia. São sortes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vamos abanar o sistema. Mas primeiro entramos.

    Vamos abanar o sistema. Mas primeiro entramos.


    Não me lembro de ouvir falar em eleições de vice-presidentes para a Assembleia da República. Será provavelmente um lapso meu, mas, daquilo que me recordo, eles apareciam simplesmente nas sessões plenárias, passavam a palavra de A para B, de vez em quando ausentavam-se para uma ou outra necessidade fisiológica, e era isso. Sem grandes dramas ou confusões.

    Hoje já sei mais qualquer coisa sobre o tema porque, graças ao Chega, há três semanas que vejo debates sobre o Diogo Pacheco Amorim.

    Existem dois méritos inegáveis da extrema-direita portuguesa. O primeiro é o de conseguirem trazer, para a agenda política, temas que não interessam ao menino Jesus. O segundo é o de se contradizerem a cada passo das polémicas que criam e, mesmo assim, aproveitarem a onda gerada para se vitimizarem.

    Vamos por partes. O Chega apresenta-se como um partido anti-sistema. Não é que a maioria acredite, basta ver o percurso de André Ventura, mas foi essa a mensagem passada. Se bem me recordo da última visita à minha mãe, ali no concelho do Seixal, numa das rotundas perto do afluente do Tejo pontificava um cartaz enorme com a estampa “dia 30 vamos abanar o sistema!”.

    metal bridge and calm water

    Qual foi então a primeira coisa que o Chega fez depois de dia 30, assim que conseguiu formar um grupo parlamentar? Tentar entrar para o sistema…

    O cargo de vice-presidente, com direito a gabinete próprio, carro e motorista, é exactamente a personificação do sistema que o Chega afirma querer combater. Pessoalmente nunca tive qualquer dúvida, mas, para a próxima, sugeria mais calma ao pastor André. É que nem tiveram tempo de tirar os cartazes para que as pessoas se esquecessem das parangonas eleitorais, e já a extrema-direita voltava a dar o dito por não dito.

    Ficámos durante semanas a discutir um não assunto. Não há sequer tema para debate. O Chega pode indicar um vice-presidente para a eleição, tal como fizeram. Os restantes deputados votam. É isso. Por isso se chama eleição e não nomeação. Tudo dentro da lei, tudo dentro da Constituição.

    Ventura aproveita a recusa do Parlamento para trazer a sua verdadeira força: a vitimização. Não só o Chega marca a agenda durante semanas como André Ventura grita em frente às câmaras pela tradição parlamentar que é recusada ao Chega. Alguém lhe explicou, julgo ter sido Isabel Moreira, que tradição não é lei. E que garantia de resultado numa eleição, como pretende o Chega, não é democracia, é regime de Estado Novo do exemplar Marcelo Caetano.

    woman in black long sleeve shirt standing under green tree during daytime

    Uma nota para pessoas inteligentes, como Adolfo Mesquita Nunes ou Lobo Xavier, que tentaram comparar Diogo Pacheco Amorim, um “homem culto e afável” com outros “bombistas no parlamento”, e o Chega com “o PCP que defende de facto ditaduras”.

    Destaque para Pedro Frazão, novo deputado do Chega, já condenado em tribunal por difamação contra Francisco Louçã, que disse sobre o passado bombista no MDLP, e cito, “o Dr. Pacheco Amorim só tinha 24 ou 25 anos nessa altura!”. O que me parece fazer sentido. Uma coisa é andar metido em atentados e mortes, como por exemplo do padre Max, quando se tem 25 anos. Outra, bem diferente, é fazê-lo aos 70. Uma pessoa, entretanto, perde aquele sangue na guelra e a morte parece que já não sabe ao mesmo.

    Aliás, Pedro Frazão caiu-me no goto, devo dizer. Trata-se de um discípulo de Ventura bastante mais calmo. Desde logo tem a condenação por difamação que, a reboque do líder, é uma espécie de requisito para entrar no grupo parlamentar do Chega. Depois, com um sorriso e de forma tranquila, interrompe cada adversário de debate na mesmíssima forma patenteada por Ventura, marcando um estilo de pocilga no confronto de ideias.

    Imaginem, por segundos, uma sessão plenária dirigida por um partido que não se revê na Constituição, que defende ideias anti-democráticas, que quer um Estado mínimo e um controlo privado de dinheiro público e que vê com bons olhos o autoritarismo. Bem sei que em Portugal já nos habituámos a bater repetidamente no fundo, mas, até nós, temos limites.

    Ventura diz que o Parlamento não respeita os 7% que votaram no Chega o que, como se percebe, não é verdade. Tanto que respeita que um grupo de extrema-direita tem hoje 12 lugares no órgão máximo da Nação, pode indicar um vice-presidente e terá, provavelmente, presidências de comissões parlamentares.
    O facto de esse mesmo Parlamento chumbar o nome de Diogo Pacheco de Amorim significa apenas que os 93% que não votaram no Chega têm, felizmente, uma representatividade maior.

    E isso, por muito que custe a André Ventura e afilhados, chama-se democracia.

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    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.