Autor: Tiago Franco

  • Páscoa de chamas na Suécia

    Páscoa de chamas na Suécia


    O fim de semana de Páscoa esteve quente em várias cidades suecas. Esta entrada poder-nos-ia levar a pensar que esta seria uma crónica do saudoso Anthimio de Azevedo, mas não. Vamos falar de nazis, tema em voga há 70 anos, e que nunca desilude.

    Rasmus Paludan, um advogado gordinho de quem nunca tinha ouvido falar, é o fundador do Stram Kurs, um partido nacionalista de extrema-direita da Dinamarca, que, curiosa e felizmente, também nunca tinha ouvido falar.

    O bom do Rasmus, filho de um cruzamento entre suecos e dinamarqueses, e por isso beneficiado com dupla nacionalidade, pode dizer asneiras em ambos os lados da ponte Öresund, a maravilha da engenharia que liga Copenhaga a Malmö.

    Pegou no carro e em alguns amigos, e veio fazer uma tour pelo sul e centro da Suécia, com uma agenda bastante simples: falar em praças vazias para quem ali passava e, sempre que possível, queimar um Corão. Esta foi a estratégia de marketing pensada pelo gordinho para entrar no “mercado sueco” e tentar conseguir juntar assinaturas para concorrer às próximas eleições.

    O Stram Kurs, uma versão escandinava do PNR, Ergue-te ou qualquer outra coisa que o José Pinto Coelho se lembre amanhã, já disputou eleições, aqui ao lado de onde vos escrevo, na Dinamarca. Entre algumas frases polémicas, encontra-se esta: “a melhor coisa que poderia acontecer era não sobrar um muçulmano na nossa querida Terra”. Portanto, uma ternura de homem apenas com alguns problemas mal resolvidos.

    Agora, depois de umas dezenas de votos em 2017 e uns milhares em 2019 (com suspeita de fraude e suspensão) na Dinamarca, Rasmus Paludan tenta concorrer às eleições suecas em 2022.

    Num país onde uma em cada cinco pessoas vota no Chega local (Sverigedemokraterna), a quota de fascistas parece já estar bem preenchida, e não sei se há muito espaço para nazis da linha dura.

    Para já, a tour do Rasmus conseguiu que membros das várias comunidades muçulmanas se juntassem nas diferentes cidades em protesto pela queima do Corão. Protestos esses que resultaram em confrontos com a polícia, carros destruídos, gente ferida e prisões.

    Eu pensei, na minha mais profunda ingenuidade, que a sociedade cairia que nem um trovão em cima deste energúmeno, e que, em momento algum, se discutisse a liberdade de expressão numa acção que é simplesmente de incitamento ao ódio. Não há qualquer hipótese de discutir uma ideia política com alguém que vê num livro a arder uma mensagem. Seja o Corão, a Bíblia ou a Tora. É irrelevante para o que aqui se debate.

    Quem não tolera outras raças, outros credos ou outros tons de pele, não tem sequer base para o início da conversa. Com um fascista não se discute, combate-se.

    people kneeling and praying during daytime

    Hoje, no Göteborg Posten, o maior jornal da cidade de Gotemburgo, vejo um editorial onde se exigem mais e melhores meios para a polícia. Canhões de água e toda uma lista de requisitos que transformem as pacíficas forças de segurança, pouco habituadas a motins, numa SWAT de louros que, ao mais pequeno sinal de manifestação, aprendam a disparar e depois perguntar.

    Curiosamente, nem uma palavra sobre prender o gordinho que originou tudo isto. Ou seja, envolto na capa da liberdade de expressão, o fascismo e o nazismo tiveram tempo de antena, e o odioso ficou do lado de quem mostrou a sua indignação.

    Mais de 70 anos depois de termos dito “nunca mais”, vou-me convencendo que o maior perigo neste cancro, que se espalha novamente pela Europa, não está necessariamente nos nazis que se assumem de megafone numa praça perdida. O real problema está naqueles que, em silêncio e nos escritórios, parecem concordar com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Sonae como exemplo de uma mentalidade

    A Sonae como exemplo de uma mentalidade


    A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.

    Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.

    Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.

    Cláudia Azevedo, CEO da Sonae

    Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.

    Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”

    Permitam-me discordar.

    Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.

    Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.

    Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.

    Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.

    Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.

    Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.

    Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.

    Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.

    Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.

    Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.

    Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.

    Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.

    Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.

    A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.

    E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.

    Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.

    Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um novo Hotel Ruanda

    Um novo Hotel Ruanda


    Poucas coisas se comparam à emoção de ter um texto pronto a enviar, e ver o computador entregar a alma ao Criador antes de o gravar.

    Quer isto dizer que o caro leitor apanhará um texto novo sobre outra temática, produzido quando me passar a neura?

    Não, não senhor.

    O estimado leitor que apoia este jornal vai ler o mesmíssimo texto, mas elaborado com as palavras que a minha memória guardou. Não prometo grande coisa, porque a minha memória apresenta-se, taco a taco, ao nível dos conhecimentos de Excel da doutora Graça Freitas. Mas, convenhamos, o Colombo também não sabia o caminho, e tentou. Vamos a isto.

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    Volto a uma forma particular de argumentação que me enerva: a de que apenas podemos discutir um assunto de cada vez, para não cairmos em whataboutismo. Coisas que me enervam são, aliás, a minha maior fonte de escrita, e felizmente o mundo nunca me desilude.

    Sempre que ouço ou leio a redução mental de “então és um whataboutista“, se, por audácia, discutirmos Palestina, Iémen ou Afeganistão entre um ou outro morteiro no Donbass, fico na dúvida se terei perdido algo nos últimos anos? Nomeadamente no que concerne ao envio de arroz para o Iémen e no acolhimento de afegãos na União Europeia.

    Ouvindo quem recusa o alargamento do debate, parece que estávamos todos imbuídos numa solidariedade monstruosa com as guerras em África, Ásia e Médio Oriente, e, de repente, com um conflito mais próximo, interrompemos os esforços para nos concentrarmos na ajuda aos ucranianos.

    Ora, como se percebe, nada disso alguma vez aconteceu. Os conflitos que geram refugiados há décadas nunca nos mereceram particular interesse, e quem agora inventou essa idiotice do whataboutismo precisa apenas de um escape argumentativo que justifique o racismo encapotado.

    Não é preciso andarmos com voltas e mais voltas, é preferível chamarmos os bois pelos nomes, usando aqui algum português técnico.

    Tedros Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial de Saúde, disse esta semana que é importante continuar a ajudar a Ucrânia, mas que, e cito, o “Mundo não presta a mesma atenção às vidas de negros e brancos “. O pobre Tedros não sabe que, por esta altura, em Portugal, já é considerado whataboutista (usou um “mas” no discurso), um comunista e um pró-Putin. Nada mau para uma manhã de trabalho.

    Mas o nosso TG não está só na afirmação. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, anunciou esta semana um acordo assinado com o Ruanda para alojamento de refugiados com destino a terras de Sua Majestade. Em abono da verdade, Party Boris não está a ser muito original.

    Já no ano passado, a Dinamarca iniciou um protocolo semelhante com o mesmo Ruanda e outros países africanos. A ideia é simples e pretende desocupar as fronteiras do Reino Unido. Quem ali chegue vindo do Magreb, do Médio Oriente ou de outras paragens problemáticas, em busca de um futuro seguro, será gentilmente recambiado para o Ruanda. Entre fugir de uma guerra na Ásia Central ou desembarcar no Ruanda, julgo que toda uma nova equação de vida se coloca.

    Passei esta semana em Londres, e ouvi diariamente na BBC as críticas e os apoios a esta medida. Um parlamentar dizia que o Reino Unido gastava uma fortuna em hotéis para alojar todos os refugiados que por cá apareciam, e que, como se percebe, o modelo não era sustentável.

    Já enviar essa malta para longe, algures no centro de África, parecia, segundo este deputado, uma medida com futuro. Aliás, para quem sabe um bocadinho de História, os hotéis no Ruanda costumam ser um porto seguro, se não aparecer um machete maroto aqui ou ali.

    Curiosamente, estas medidas não se aplicam a refugiados ucranianos. À primeira vista, comentar esse facto poder-vos-ia parecer um ligeiro whataboutismo, mas, se pensarmos bem, é só uma colocação do referencial no sítio certo.

    Portanto, chega um ucraniano a Londres ou Copenhaga, recebe casa, comida e uma ajuda para voltar a organizar a vida. E ainda bem – já agora, convém dizer isto. Ainda bem.

    Chega um afegão a Gatwick ou um sírio a Kastrup, e, com sorte, acorda dali a uns dias em Kigali.

    No meio disto, aparece o Tedros a dizer que tem a sensação de andarmos a tratar a vida de forma diferente consoante a tonalidade da pele.

    Tedros, Tedros… vê se te acalmas. Ninguém suporta whataboutistas.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A claque dos generais

    A claque dos generais


    Não tendo passado por qualquer teatro de guerra, nem sequer como soldadinho de chumbo, tenho apreciado com algum vigor os comentários aos comentários no que ao desfilar de militares nas televisões nacionais diz respeito.

    Aparentemente, também se está a formar uma claque de vila bajo e outra de vila arriba – publicidade dos anos 90, sinal primeiro de velhice – para puxar pelos nossos generais.

    Pelo que percebo, se dizem aquilo que achamos ser a lógica da guerra no momento, são as vozes da razão. Já se escorrem opiniões disparatadas, são uns energúmenos ao serviço de alguém. Note-se que somos nós, que nem o serviço militar fizemos, que decidimos o que faz sentido ser dito sobre o teatro de guerra.

    black megaphone pendant

    Jornalistas conceituados como, por exemplo, Fernanda Câncio, insultam generais no Twitter ridicularizando as suas opiniões. Classificando-as como disparatadas.

    Fernanda Câncio pode não detectar uma moscambilha, digamos, no próprio quarto ou no cofre de uma hipotética sogra, mas sobre invasões e reagrupamento de batalhões não pede meças a ninguém.

    Acho extraordinária a arrogância com que arriscamos entrar em campos desconhecidos. É algo muito português esta coisa da convicção na opinião. Não primamos pela busca do conhecimento, mas defendemos, com unhas e dentes, uma opinião pouco fundamentada. Até ao limite. Mesmo que tenhamos de insultar homens que andaram em cenários de guerra como observadores internacionais.

    Tudo porque, no decorrer de uma guerra, eles, os militares, não pensam como nós, que vimos todos os Rambos e até nos emocionámos com o Platoon.

    E nesta coisa das claques definimos logo que uns militares defendem cegamente a causa russa, outros estão pela Ucrânia. A poucos parece passar pela cabeça que aqueles homens, sentados em frente a uma câmara, se limitam a correr o risco de emitir uma opinião para que possam ser mais tarde ridicularizados pelos verdadeiros especialistas de sofá.

    Se afirmam que o exército russo é mais forte, são pró-Putin. Se observam na resistência ucraniana os novos barbudos da Sierra Maestra, logo são pró-Zelensky. Sofrem do delito de opinião e sujeitam-se ao julgamento da Câncio, do Milhazes ou do Rogeiro, que fala por interpostas pessoas com o Zelensky.

    Durante a pandemia tínhamos doutorados em Geologia a dar lições de Saúde Pública, e todos faziam ámen. Agora temos militares a falar sobre guerra e… dizem que todos estão ao serviço de uma agenda qualquer. Tenho a impressão de que o excesso de informação nos retirou a capacidade de raciocínio. Ou, pior, nos deixou com a sensação que sabemos mais do que nos ensinaram.

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    Hoje ouvi um militar na CNN, cujo nome não decorei, a dizer que na preparação da grande batalha do Donbass, as tropas russas estavam com o moral em baixo. A razão? Muitos reservistas vinham de longe, lá dos confins da Sibéria, mal preparados, sem saber bem o que iam fazer para o centro da Europa. Já os ucranianos, com os civis em grande forma e os drones a terem um papel decisivo, estariam em melhor posição para a fase decisiva do conflito.

    Com os afilhados de Putin a ganharem votos por toda a Europa civilizada – veja-se França, por exemplo –, a última coisa que precisamos é que a Rússia ganhe mais território em direcção ao Ocidente.

    De modo que, como nem sequer passei da recruta, espero que o general de hoje tenha razão. Na dúvida, vou ver o que a Câncio diz. Só para ficar esclarecido.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião

    De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião


    Observei com a estupefacção de quem vê um acidente entre dois camiões, a voracidade das discussões sobre Bucha, na Ucrânia. Com cadáveres espalhados no chão, e um cenário que já não estamos habituados a ver na Europa (que é diferente de não existir), as trincheiras voltaram a formar-se a uma velocidade estonteante.

    Li e ouvi todo o tipo de teorias sobre a autoria daquelas mortes. A Ucrânia acusa a Rússia de crimes de guerra, enquanto do Kremlin chegam notícias contrárias. Até aqui nada de novo: é uma guerra, ninguém assume seja o que for até ao dia de se apresentar em Haia.

    Mas por cá, confortavelmente sentados nos nossos sofás, escorremos ódio baseado em certezas absolutas.
    Discutimos teorias, ouvimos generais que defendem que tudo aquilo foi encenado. Outros dizem-nos que os russos estão a repetir a barbárie da Síria. Foi a mão que abanou à passagem dos soldados, as faixas com Z que indicariam a proximidade com os russos por parte das vítimas ou os corpos, em teoria ali deixados há três dias (altura da partida dos russos) que não mostravam um estado de decomposição satisfatório para 72 horas.

    Zelinsky acusado por uns por usar Bucha como uma última cartada para puxar o “Ocidente”, ao mesmo tempo que as hipóteses de acordo de paz se vão esfumando. Putin, garantem-nos, desistiu de Kiev, assumindo essa derrota para apostar tudo na conquista do leste ucraniano, unindo territórios com a Crimeia. Bucha tem todo o ar de ter sido um crime de guerra daqueles que, cedo ou tarde, chegam a Haia.

    Em momento algum se tentou perceber o óbvio ou, pelo menos, perguntar o que mais interessa: de quem são aqueles corpos esquartejados no meio do chão?

    Entre teorias de trincheira, alguém parou para pensar dois minutos que, factualmente, estavam ali centenas de pessoas atiradas para o chão, mortas, assassinadas, sem qualquer piedade?

    Gente que terá filhos algures, família que procura saber deles, amigos que perderam o seu paradeiro. Gente como nós que está ali a figurar num quadro de horror para que, agora, no quente do lar, possamos discutir teorias sobre quem os matou, e para que, em conjunto, consigamos odiar o outro lado da barricada.

    Ouvi os noticiários durante 24 horas. Li todas as teorias possíveis e imaginárias. Escutei generais, jornalistas e analistas de uma forma geral. Segui discussões intermináveis sobre o crime ou montagem. Nem uma palavra sobre os seres no chão que outrora estavam vivos.

    A famosa coluna de 64 quilómetros do exército russo, estacionada nos arredores de Kiev durante semanas, parece ser agora um depósito de ferro-velho. Ainda bem, acrescento eu. Há notícias de, durante o reagrupamento das tropas em direcção a leste, aldeias e vilas terem sido pilhadas por russos. Mulheres e meninas apresentam agora as primeiras queixas de violação, em zonas que foram reconquistadas pelo exército ucraniano. Molestadas por soldados russos e, quem diria, também ucranianos (segundo o The Guardian).

    A eterna discussão do lado civilizado numa guerra fez-me lembrar a história das invasões napoleónicas e dos nossos eternos aliados ingleses: depois de nos ajudarem a expulsar os franceses, roubavam ainda mais do que aqueles no regresso a casa.

    Aprendi nas últimas horas todas as hipóteses teóricas do que poderá ter acontecido em Bucha. Tudo, menos quem morreu e por que razão. O mais importante, portanto, e o que verdadeiramente me interessa.

    Entre as discussões políticas e as convicções ideológicas, vamos esquecendo que gente com uma história inocente está a pagar por decisões dos governantes.

    É nisto que penso quando vejo os gritos de trincheira nas redes sociais.

    É disto que me lembro quando vejo narrativas ensaiadas que nos obrigam a escolher um lado, seja ele qual for, e ali ficar, independentemente daquilo que a realidade nos vai mostrando.

    Vamos perdendo a sensibilidade e o afecto. Queremos ter razão. Queremos que a nossa teoria passe no crivo dos vencedores. Não queremos saber de quem vai tombando. São danos colaterais.

    Bucha diz muito sobre o agressor, bastante sobre a linha das regras que alguns julgam existir numa guerra. E, claro, qualquer coisa sobre nós.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mais armas, por favor… sempre em nome da paz

    Mais armas, por favor… sempre em nome da paz


    Sempre que vou a casa do meu pai, passo os olhos pela porta amolgada do correio. Sinais de outros tempos em que ainda se escreviam cartas à mão e um teenager, ansioso, dobrava a lata para não ter de esperar pela chave, que chegaria no bolso de um adulto lá para o fim do dia.

    Hoje a rotina é consideravelmente diferente. Já ninguém escreve algo que mereça uma ida ao correio, e o entulho que por lá se acumula, na caixa, varia entre a publicidade de supermercado ou ofertas de crédito com fantásticas taxas de juro de 11% de uma qualquer cofidis. Até as contas – a adrenalina do mês, como lhes chama o meu pai –, já nos aparecem nos computadores e smartphones, em formato digital.

    Ontem, enfim, pensei, antes de ir dormir, que já não ia ao correio há uma semana. Desafiei os graus negativos, e lá fui enfiar a mão naquela montanha de papiro.

    red steel Royal Mail mailbox

    Devo dizer que a entrada em Abril é, daqui de onde vos escrevo, de autêntica tortura para mim. Na minha Lisboa natal, o céu azul começa a acompanhar-se de algum calor, vocês arriscam nas t-shirts, e eu aqui, entre impropérios verbais, desloco-me em temperaturas que não convidam à interacção com outros humanos.

    É a altura do ano em que repito que já chega, que agora é que me vou mesmo embora. Depois visto um casaco, acalmo-me, e espero pelo próximo Abril. O décimo sétimo, neste meu caso.

    Mas já me desviei do tema, e levei-vos por divagações pouco importantes para o tema em debate. Peço desde já perdão pela minha reduzida capacidade de síntese…

    O entulho na minha caixa de correio, voltemos a ele.

    Entre a resma de publicidade estava um panfleto do partido liberal de cá. Em linhas gerais dizia que a Suécia devia entrar na NATO (e já!), e que o país teria que investir mais na defesa.

    Acrescentavam ainda que há já 10 anos que defendiam esta ideia, e que hoje estaria mais actual do que nunca por causa do “efeito Putin”.

    Confesso-vos, com alguma tristeza, que não tenho seguido o partido liberal sueco na última década, mas percebo agora, com algum embaraço, que tenho perdido momentos memoráveis.

    Fiquei a pensar naquilo até adormecer, e concluí que os liberais suecos têm razão. Diria mais: não só estão cobertos de razão como estão a revitalizar um mercado algo adormecido desde a Guerra Fria. É tempo de a Suécia começar a usar o dinheiro dos impostos para comprar mais armamento.

    Existem várias razões para isso. A primeira é que, como sabemos, a compra de material bélico é a primeira forma de prolongar a paz. Quem nunca ouviu “estamos a bombardear para conseguir terminar esta guerra”, que atire a primeira pedra.

    Depois, aqui entre nós, a Suécia fez opções políticas a partir da década de 60 do século XX que são um verdadeiro ultraje à vida no limbo da incerteza que todos aspiramos. Investiu fortemente em habitação, num programa que trouxe um tecto para todos, colocou o erário público ao serviço de uma Educação verdadeiramente universal onde, e reparem neste escândalo, os miúdos são subsidiados pelo Estado para estudarem no ensino superior.

    Ou seja, os filhos do sapateiro e do astronauta partem do mesmo patamar no que toca às oportunidades na vida. Como se não bastasse, ainda nos sacam mais uma fortuna em impostos para que os mais velhos tenham assistência em casa na fase final da vida, para que os miúdos tenham dentista grátis até aos 26 anos, e para que, de uma forma geral, toda a população tenha assistência gratuita providenciada pelo Serviço Nacional de Saúde.

    Por fim, proporcionam a todos, no fim da vida contributiva, uma pensão pública, devolvem em sede de IRS 30% dos juros cobrados pelos bancos, proporcionam centenas de dias de paternidade a cada casal, e garantem uma Segurança Social que não deixa ninguém debaixo da ponte nos momentos mais difíceis.
    Como se percebe, um tédio. Uma vida sem surpresas, receios ou aflições provenientes da falta de emprego, falhas de saúde ou azares de percurso.

    Pessoalmente, isto tudo enerva-me. Raramente estou doente e não vou a hospitais.

    Estudei em Portugal e, em princípio, também passarei por lá o tempo da reforma. Ou seja, nem consigo aproveitar bem os descontos. Já se tivéssemos um grupo de vigilantes em cada bairro, talvez com um tanque ou um lança-mísseis, sempre me poderia entreter nas noites de frio, que vão de Agosto a Julho. De resto, são óptimas.

    Como se não bastasse, com estas escolhas de investimento, a Suécia conseguiu, durante décadas, figurar entre os mais ricos do mundo, com elevada percentagem da população a concluir o ensino superior e a chegar a um valor mínimo de salário a rondar os 2.000 euros (não oficial).

    Note-se ainda que, para os senhores da guerra, fãs dos mercados e da corrida ao armamento, que durante estes anos de paz e neutralidade, parte do desenvolvimento económico da Suécia foi também assente na produção e venda de equipamento militar.

    Cerca de 2% dos tiros dados a nível mundial são produzidos pela Suécia. Nada mau para uma população igual à portuguesa. Ambos têm 0,13% da população mundial. No fundo, a Suécia pratica aquela paz que consiste em vender armas aos dois lados. Onde é que já vi isto?

    Mas essa neutralidade, com uma mancha aqui e outra ali, valeu 77 anos de prosperidade e de enorme crescimento económico, reflectido diretamente na qualidade de vida dos seus habitantes.

    men in green and brown camouflage uniform

    Chegados aqui, o que devemos fazer?

    Seguir uma receita de sucesso testada ao longo de quase oito décadas, ou desviar os fundos que construíram isto para nos armarmos até aos dentes? Melhor, perante a ausência de ameaça, devemos criar uma narrativa para que passemos a ter uma preocupação nova?

    Eu acho que sim. E entendo perfeitamente os liberais. Tal como eles, também eu estou aborrecido com esta vida calma, organizada e sem problemas. Aliás, quando aqui cheguei em 2007 fiquei logo desconfiado.

    Habituado em Lisboa a entregar uma bíblia impressa em A4, a que chamavam declaração de IRS, fiquei estupefacto quando apenas me pediram um sms com a mensagem; “sim” ou “não”, para fazer o mesmo em Gotemburgo, ao fim do meu primeiro ano de trabalho. Era o primeiro de vários anos sem emoções e irritações com o quotidiano.

    Assim, há que aderir à NATO, e meter um alvo nas nossas costas. Há que tirar dinheiro das escolas e canalizá-lo para mísseis. E depois é deixar os mercados agirem. Todos temos visto ao longo do último mês como eles se ajustam bem.

    É como diz o poeta João: o liberalismo é necessário e funciona.

    Primeiro cria-se o deserto, depois vende-se a água. Brilhante.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Qatar à vista, apesar de Fernando Santos

    Qatar à vista, apesar de Fernando Santos


    Diz quem se defende da alcunha de sortudo que tê-la, à sorte entenda-se, dá muito trabalho. No caso de Fernando Santos, nos anos que leva à frente da Selecção Nacional, a fortuna dos deuses se convertida em calcário, granito e argamassa daria para construir mais três pirâmides de Gizé.

    Não sendo eu um apreciador do estilo, percebo o óbvio: os únicos troféus internacionais de Portugal chegaram pela mão do nosso Fernando, pelo que teremos de aguentar a estucha até que ele queira, ou, em alternativa, que o descalabro de derrotas seja tal que nos faça esquecer a vitória no Euro 2016 e na Liga das Nações de 2019.

    Uma espécie de Mancini, versão Amadora.

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    O problema, contudo, é que o Mancini ganhou o Euro 2020 com um grupo de bons rapazes, e não é propriamente um escândalo não participar no Mundial.

    Já Fernando Santos tem ao seu dispor, há anos, a melhor geração de futebolistas nacionais, presentes nas equipas mais fortes do Mundo, e repetidamente vencedores das competições de clubes mais importantes.

    Mesmo assim, insiste num modelo de jogo ultra-defensivo, deixando de fora, consecutivamente, boa parte das opções de ataque.

    Quando Fernando Santos foi convidado para seleccionador nacional, de certa forma todos percebemos o que ali estava a ser feito. Era um chef que entrava na cozinha de um restaurante com três estrelas Michelin apenas para fazer esparguete à carbonara.

    Pergunto: quem sai de casa para comer esparguete com queijo e fiambre, tendo dourada grelhada ou bacalhau escalado no menu?

    Foi assim no Benfica, Sporting, Porto, Selecção grega, Panathinaikos e AEK. Quatro defesas, quatro médios em losango. Defender, defender, defender. De empate em empate até à vitória final.

    white and blue soccer ball on green grass field

    Nada contra se a equipa treinada for a Albânia, a Bulgária ou Islândia. Agora, um país que consegue ter Diogo Jota, Cristiano Ronaldo, João Félix, Bruno Fernandes, Rafa, Renato Sanches, Bernardo Silva, Gonçalo Guedes, Rafael Leão, entre outros, com as suas cores, vai jogar apenas com dois ou três destes em campo?

    E colocar oito para “segurar” e “passar para o lado”? Ou vai seguir a lógica de Johan Cruyff quando se defendia dos críticos que o acusavam de sofrer muitos golos? No fundo, “o que importa levar 3 se marcamos 5?”

    Não é preciso ser engenheiro, como o Fernando, para fazer esta conta. O futebol não é física quântica, e é pela sua simplicidade que apaixona milhões.

    Se te dão uma equipa com Pepes e Williams, jogas como o Portugal do Fernando.

    Se te dão Jotas, Bernardos e Ronaldos, jogas como o Bayern de Munique ou o Liverpool. Em modo trituradora.

    Em princípio ganha-se mais do que se perde porque, e esta vai de borla, a maioria dos adversários são piores.

    Chegados ao ano da graça de 2022, depois de falhar um apuramento direto num grupo onde a única coisa parecida com concorrência vinha da Sérvia, que se apresentava com pouco mais do que três ou quatro jogadores de primeiro plano – e já estou a contar com o ponta de lança que é figura na segunda divisão inglesa –, Fernando Santos fez o que sabe fazer melhor: rezar.

    Neste plano julgo que estaremos mesmo perante um escolhido dos deuses. Não sei bem quais, mas alguém olha para o nosso Fernando num Olimpo qualquer.

    Com a Itália no caminho, Portugal viu a Macedónia fazer o trabalho de sapa na maior vitória da sua História, mesmo ao cair do pano.

    Poucos minutos antes, a Turquia, em pleno Dragão, falhou o penalti que justamente lhes daria o empate.

    Ninguém me convence que, se Fernando Santos desembarcasse em Kiev, um míssil em rota para a Praça Maiden acabasse afinal desviado para o Kremlin, rebentando na sala da mesa infinita onde se senta Putin, dando como concluída a guerra.

    Tantos especialistas na CNN e nenhum se lembrou desta.

    Provavelmente, esta terça-feira, Portugal chegará mesmo a um Mundial que nem deveria existir.

    Tudo o que envolveu a atribuição da competição ao Qatar e o trabalho escravo na construção dos estádios, justifica certamente outro texto. Mas para já, no que ao futebol diz respeito, parece que Ronaldo se prepara para ter a merecida despedida com a camisola da Selecção Nacional.

    E isto apesar de Fernando Santos. Este rapaz não pára mesmo de bater recordes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mais longe de um acordo de paz

    Mais longe de um acordo de paz


    Conselho Europeu, G7 e NATO reuniram-se esta semana, e todos vimos, em direto, a chegada dos líderes, o carro que trazia Biden e a indumentária de Macron. Fez-me lembrar o acompanhamento do autocarro com a selecção de Scolari naquela fatídica noite de 2004.

    Segundo alguns analistas, poucas decisões importantes saíram da cimeira, e espera-se por mais, apenas em Junho. Eu discordo. Acho que dali saíram várias informações, ainda que contraditórias.

    A primeira é que Zelinsky continua a desafiar a NATO para que faça mais pela Ucrânia, e que, por exemplo, feche o espaço aéreo, que na prática seria uma entrada directa na guerra. Isto dias depois de ter dito que aceitava discutir o estatuto de neutralidade. Algo parece ter mudado no terreno, para lá de Mariupol, para Zelinsky se estar novamente a afastar da perspectiva de acordo.

    desk globe on table

    A NATO, em conferência de imprensa no fim dessa cimeira, disse que iria reforçar os batalhões nas fronteiras – agora da Roménia, Hungria e Eslováquia –, fazendo um total de 40.000 homens, incluindo aqueles já estacionados no Báltico e na Polónia. Acrescentaram ainda que vão enviar marinha de guerra para a costa ucraniana, para além de mais armamento pesado que continuaria a ser enviado.

    Zelinsky pediu caças, tanques e anti-aéreas. Começa a ser difícil perceber onde está a linha a partir da qual podemos dizer que a NATO se envolveu activamente na guerra. Se enviam barcos de guerra para o teatro de operações, enfim, não sei bem se podemos continuar a dizer que estão apenas a assistir.

    Quanto à União Europeia, declararam os seus líderes um aumento das sanções à Rússia, sem que esta posição seja unânime entre os países membros. A Alemanha, altamente dependente do fornecimento de energia vinda da Rússia, não quer sanções kamikaze, uma vez que seria o seu povo o primeiro a pagar a factura. E quando se trata da voz europeia, conta essencialmente o que os alemães deixam ou não. Os franceses habitualmente vão-se colocando em bicos dos pés naquela ilusão do eixo franco-alemão, mas quem realmente dá as ordens é Berlim.

    O Kremlin vai pedindo o pagamento do gás em rublos – e admira-me que não tenham pedido em ouro – para se defender, e Boris, o party man de Downing Street, está em pulgas para enviar tropas nos contentores de armamento.

    blue and white train

    Uma coisa parece ser certa, a Europa segue o conflito a três velocidades: o Reino Unido vota por mais sangue; os países energeticamente dependentes querem mandar misseis para Kiev e rublos para Moscovo; e nós, com a restante maioria dos países europeus, queremos fazer o que a NATO mandar. Seja lá isso o que for.

    Chegámos, no entanto, a um ponto do conflito onde a resistência ucraniana, o armamento enviado, a ajuda financeira e a legião de 20 mil voluntários, parecem estar a virar o sentido da guerra. É essa pelo menos a indicação da nossa comunicação social.

    Ouvem-se também notícias de opositores de Putin e um possível golpe de estado. É impossível saber que percentagem de verdade existe no que nos vai chegando, mas espero, a bem da paz, que a queda de Putin esteja próxima.

    Na semana passada escrevi que esta guerra era um beco sem saída para Putin, uma vez que ou ganharia uma guerrilha permanente (no caso de um governo fantoche) ou seria arrastado para fora da Ucrânia com a Europa a fechar as portas. Já há notícias da possível utilização de armamento químico e nuclear, em novas ameaças russas.

    Seria interessante perceber, neste chorrilho de informações que nos vai chegando, qual é de facto a verdade absoluta sobre o cenário de guerra. Ou aproximada, vá.

    Na semana passada ninguém colocava em questão o cerco feito pela Rússia. Hoje dizem que não tem tropas suficientes. Mariupol está numa situação desesperada, e todos os dias ouço falar no batalhão Azov em combate. No entanto, leio depois que são apenas cem soldados. Terão vindo de Sparta?

    Uma coisa é certa, parecem ter algum repúdio por nazis portugueses. Portanto, mesmo em tempo de barbárie, ainda há um vislumbre de lucidez.

    Entre o caminho de sentido único de Putin e o belicismo da NATO, só vejo a escalada do conflito quando, há uns dias, nos diziam que o acordo de 15 pontos estava perto de ser assinado.

    A quem interessará a continuação desta guerra? É a pergunta do milhão de euros…

    Terá ou não Putin o apoio da China se a derrota for o cenário mais provável?

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Putin e o meu entrevistador

    Putin e o meu entrevistador


    Algures nos idos de 97, era eu um estudante de engenharia desiludido, quando me apresentei na redacção do extinto semanário Independente para uma entrevista de trabalho. Não sabia bem o que estava ali a fazer, ou sequer para onde caminhava. Gostava de escrever, e não ficava maravilhado com circuitos recheados por transístores e condensadores. Era esse o ponto de partida.

    Tinha enviado um texto para análise, que escrevera num jornal regional (Jornal de Leiria), e que, se a memória não me atraiçoa, começava com “as ex-repúblicas soviéticas”. Não me lembro do tema em concreto, mas andaria à volta de qualquer coisa sobre o desmembramento da URSS, poucos anos antes.

    O diretor-adjunto de então perguntou-me o que fazia um estudante de engenharia ali. Eu disse-lhe que me sentia mais útil a escrever uma linha de texto do que uma linha de código. A conversa desenrolou-se e seguimos para a análise da minha crónica.

    A primeira coisa que me disse foi “sabe, não existem ex-repúblicas soviéticas”, e rapidamente entrámos num debate sobre História, impérios, factos e convicções.

    Não me recordo de muito, mas lembro-me de, a meio, ter percebido que entre o meu gosto pela escrita, as ideologias e a política editorial de um jornal bem encostado à direita, haveria pouco espaço para mim.

    Antes de terminar a conversa perguntou-me, o entrevistador, em quem votaria na autarquia de Lisboa. Respondi que seria na coligação encabeçada por João Soares, e, não satisfeito, cavei o último pedaço da cova das minhas ambições jornalísticas naquele periódico com a frase: “essencialmente por causa da CDU”.

    Pediram-me ainda que cobrisse o comício de encerramento da campanha no Coliseu dos Recreios, para onde fui, todo animado, com um bloco de notas. Fiz a crónica do evento, enviei-a para o dito senhor e, até hoje, aguardo que me digam se gostaram. Imagino que não; é um pressentimento.

    Ainda assim, essa pequena experiência mal-sucedida serviu-me para concluir o óbvio: poucas profissões são tão interessantes como a de repórter da imprensa escrita. O meu respeito para eles.

    Gosto sempre de pensar que o mundo perdeu um jornalista que poderia ter chegado a razoável, e ganhou um engenheiro que, quando muito, se tornou sofrível. Mas a frase, dita com alguma pompa, que não existiam ex-repúblicas soviéticas, martela-me o subconsciente há 20 dias.

    É que não passa uma hora sem que um jornalista, comentador, analista ou político, se refira às ambições imperialistas de Putin de voltar a reconstruir o que o Muro levou, anexando territórios das ex-repúblicas soviéticas. Terá o termo voltado a entrar no jargão popular ou será que, o meu entrevistador, considerava simplesmente que nada seria ex-soviético porque essa união nunca existira?

    No terreno vemos uma sucessão de factos algo contraditórios. Zelensky admite discutir a neutralidade da Ucrânia e a situação dos territórios. Ao mesmo tempo faz vídeos diários a apelar à intervenção externa.

    Putin parece interessado em garantir a neutralidade, mas quer também a cabeça de Zelensky por troca com um Governo fantoche. Ora, isto era exactamente onde estávamos antes do primeiro míssil e da primeira morte. Precisou Zelensky de ver compatriotas no chão para aceitar o que tinha já na mesa? E o que esperará Putin com novo Governo fantoche? Que uma população imensa de um país enorme, não mantenha uma luta de guerrilha nos anos vindouros? Nada disto parece fazer sentido.

    No caminho das contradições a Rússia bombardeou, de forma cirúrgica, uma base perto de Lviv onde se aquartelava uma legião de soldados estrangeiros. Muitos morreram nesse ataque considerado, nas nossas televisões, como dissuasor para outros combatentes estrangeiros que pensem alistar-se.

    A CNN, sempre em procura de um final feliz, entrevistou um soldado americano que sobreviveu a esse ataque, e que, segundo ele, depois de fugir para a floresta, olhou para o céu e gritou: Putin, is that all you got?

    Depois, para as câmaras disse que, apesar de todos os milhões gastos em armas, a única coisa que o ataque russo lhe tinha feito fora um corte no pulso. E neste momento mostra orgulhoso o pulso para o “cameraman”. Hollywood não escreveria melhor, e um desastre humanitário é-nos apresentado, à hora de jantar, como uma sequela do Platoon – Os Bravos do Pelotão.

    Vejo teorias divididas entre um final da guerra em Maio – por ser o limite de autonomia do exército russo – ou um acordo nos próximos dias, com a capitulação da Ucrânia antes da invasão de Kiev.

    Visto daqui parece um beco sem saída. Putin perderá esta guerra em qualquer cenário, seja com as revoltas a um Governo fantoche ou o fecho da Europa à Rússia. Contudo, dificilmente não aumentará o território controlado até há 20 dias.

    A pergunta que ninguém consegue responder é: até onde irá na reconstrução do império?
    Crimeia, Donbass, Odessa e Abecásia eram zonas de fronteira. A invasão da Ucrânia já mostra um outro nível de loucura e uma tentativa de anexar, ou pelo menos controlar, um país na sua totalidade. Duvido muito do sucesso das ambições do frio e calculista Putin, mas acredito que não fique por aqui.

    O Vladimir, tal como o meu entrevistador em 1997, parece convencido que não existem ex-repúblicas soviéticas. Apenas soviéticas. Percebo agora que o meu interlocutor não estava errado, lançou foi o conceito 25 anos antes do seu tempo. Um visionário. E queria eu o emprego…

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eram 20 euros de Swarovski, s. f. f.

    Eram 20 euros de Swarovski, s. f. f.


    Tento aprender com camaradas de fiscalidade – gente extraordinariamente aborrecida, que ainda assim domina conceitos importantes para que nós, comuns mortais, consigamos perceber de que forma somos apertados a cada mês.

    Reparem que escrevi “apertados”, e não o vernáculo apropriado para esta situação. Estive a reler alguns textos e cheguei à conclusão que, aqui e ali, deixava escapar um calão mais ofensivo, por sorte convenientemente censurado pelo meu editor. E não há necessidade: pessoas com a idade da minha avó passam por aqui. Crianças também. E mesmo vocês que são só velhos, como eu, ficariam com a ideia que estou chateado, aqui no frio. Ou que me falta vocabulário.

    Hoje é o dia em que tudo muda. Falamos a sério, sem prosa de Bocage, metáforas ou hipérboles.
    Portanto, fiscalidade dizia eu quando…uahhh, uaaahhh… zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

    Explicam-me que o mercado liberalizado dos combustíveis tem uma lei que, entre outras coisas, permite às gasolineiras decidirem o preço por litro, os aumentos, etc. Livre concorrência entre marcas, algo que, acrescentam na tese, em princípio favorecerá o cliente (baixa de preços e coisa e tal).

    Como qualquer nabo que vai a uma bomba de gasolina, tenho aquela eterna questão na cabeça: se o barril de Brent aumenta o preço, a gasolina também aumenta passados poucos dias. Já o contrário não se verifica. Não, nabo não é vernáculo, baixem lá as forquilhas.

    Na minha ingenuidade penso que a guerra é a mãe de todos os males. Ou seja, se o fornecimento de petróleo é cortado, reduzido ou a produção menor, o preço sobe. E a coisa parece umbilicalmente ligada. Dispara-se um tiro num país produtor, no dia seguinte há mexidas nas tabelas da Repsol da Segunda Circular. Parece que recebem o baldinho de gasolina pela manhã, com a entrega de pão quente.

    Elucidam-me os camaradas fiscalistas/economistas que nada se faz com balde, e julgo que até me dirigem uns merecidos insultos. Portugal compra o seu crude à Nigéria, à Angola, à Líbia, etc., e tem reservas, portanto, nada se altera hoje porque ontem caiu um míssil em Kiev, ou se alterará se amanhã rebentar outro carro armadilhado em Bagdade.

    “O que é que acontece então?”, pergunto eu na minha sede de conhecimento. Aqui junta-se um camarada major-general à conversa, que separa um pouco as águas. Num cenário de crise há sempre quem consiga lucros extraordinários. Por exemplo, na pandemia foram os laboratórios, e agora, com um país produtor de energia a invadir outro, está a tempestade perfeita montada para uma crise energética, mesmo nos países menos afectados.

    Por outras palavras, as refinarias aproveitam para vender mais caro, e as gasolineiras também, maximizando os seus lucros. De forma legal, entenda-se. No entanto, e esta é a parte verdadeiramente fantástica, quando o barril volta a descer e as refinarias também, ainda assim as gasolineiras dificilmente baixam, pelo menos em igual percentagem.

    O que resulta daqui? O caos total num país completamente estrangulado pela carga fiscal e os baixos salários. Dizem-me que o Governo, que, entretanto, se fartou de arrecadar impostos com os aumentos, dá uma compensação a cada um de nós – vouchers, certo? –, mas, no essencial, a pressão devia ser feita pelo Estado nas gasolineiras, não permitindo o aumento descarado de lucros numa altura de crise.

    Fico verdadeiramente baralhado. Se é um camarada que me diz isto, bom, compreendo. Somos pela regulação do sector. Reparem no “somos” a apelar ao insulto gostoso.

    black and yellow industrial machine

    Mas é um liberal que me diz: “temos que meter travão nas gasolineiras!”. Como dirão o mesmo das eléctricas quando o quilowatt por hora subir e a autonomia da bateria der para pouco mais de 300 quilómetros.

    Percebo pouco de Economia, menos de fiscalidade e nada de crude, mas se há coisa que os últimos dois anos me ensinaram é que não há como uma boa crise para um liberal passar a socialista. Está a tornar-se uma verdade tão profunda que, não tarda começa a entrar nos prefácios do Minh’Alma.

    Fiquei na mesma em relação à lógica dos aumentos, o mercado liberalizado, a lei que dá o poder às gasolineiras e o pudor do Estado em lá meter o pé.

    Cheirou-me a capitalismo puro e duro, mas que se “coza tudo isto” [N.D. censurámos o vernáculo original], sempre foi uma hora bem passada entre ilustres pensadores.

    Ahhhh…estava eu a ir tão bem [N.D. e ficaste bem; nós aqui estamos atentos a desvarios!].

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.