Autor: Tiago Franco

  • O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial

    O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial


    Aqui há uns dias tive uma discussão com um amigo sobre o “estado da arte” na Ucrânia. Discussão não; um debate. É sempre bom lembrar que mesmo na maior das discordâncias ainda somos capazes de conviver e tolerar as opiniões alheias. Já não é mau para os tempos que se vivem, onde escolhemos odiar a cada divergência.

    Eu acho um erro continuar a armar a Ucrânia, ele acha que se deve “armar pela paz”. Como nos bombardeamentos de Belgrado ou nos ataques de Nagasaki e Hiroshima. Matar pela paz. Foi este o início de conversa, e o cabo das tormentas, que, julgo eu, divide a maior parte das opiniões.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Percebo a visão de continuar a armar a Ucrânia. Não o digo de forma irónica, percebo mesmo. Há um invasor; logo, temos que correr com ele. E para esta argumentação vou fugir ao whataboutismo abordado noutras crónicas. Vou ignorar todos os demais invasores a quem continuamos a estender a passadeira, consoante os interesses económicos do momento, e focar-me apenas no caso ucraniano.

    Se optamos por continuar a armar a Ucrânia temos duas saídas possíveis no pensamento.

    Ou acreditamos que os ucranianos, sozinhos, vão conseguir fazer o regime de Putin capitular. Ou então, alimentamos a escalada do conflito até a intervenção da NATO ser irremediável. Em qualquer um dos casos morrerão mais ucranianos e corremos o risco da utilização das armas nucleares. No segundo caso, deixamos de assistir à guerra pela CNN, já que entraremos num conflito global.

    Sempre que ouço o facilitismo com que se discute a escalada bélica, pergunto-me se os autores de tal discurso estão dispostos a sacrificar o seu estilo de vida, ou mesmo a própria vida, com as consequências de tais actos.

    Depois, para quem defende o armamento contínuo, esperando por uma rendição russa – lembremo-nos que, neste momento, o desequilíbrio de forças é de 10 para 1 –, é preciso lembrar que dois dos maiores exércitos do mundo (China e Índia) não só não condenaram a invasão como continuam a fazer negócios com a Rússia.

    Portanto, caso cheguemos a um conflito global, quem é que nos garante o lado em que ficarão indianos e chineses?

    landscape photography of trees

    Eu compreendo a solidariedade com um povo que sofre. Com todos, já agora. Só não vislumbro menos mortes com mais armas. É apenas isso.

    Isto leva-nos ao odioso da questão. E então, qual é a alternativa? Deixamos os ucranianos entregues à sua sorte?

    Ora, a não ser que de facto um exército estrangeiro vá para o teatro de operações, os ucranianos estão entregues à sua sorte. E com todos os erros de cálculo dos russos, com todas as perdas assumidas, com todo o material deixado a meio do caminho, são os ucranianos que estão a perder as famílias, a ver as suas cidades arrasadas e a perder o controlo do Este e Sul do país.

    Por mais injusta que possa ser a discussão com o inimigo e invasor, de que servirá chegar a essa conversa com um número de mortos maior?

    Ouvindo os jornalistas no terreno e os especialistas militares, tenho a sensação que estamos a assistir a uma viagem entre Lisboa e Porto. A dúvida parece apenas ser se lá chegamos rapidamente ou se optamos por dar a volta pelo Algarve. Quanto maior for o percurso, mais pesada será a factura na contagem de mortos e mais do território haverá para reconstruir.

    Sim, porque essa também é uma parte que convém não esquecer. Quando a poeira da guerra assentar e se enterrarem os mortos, Putin – ou o que sobrar do seu regime – estará isolado do resto da Europa (espero eu!) com os restantes amigos de França, Itália e Hungria, entre outros.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas a Ucrânia, com o FMI a bater à porta, terá um garrote financeiro por décadas. Os falcões da guerra lucram sempre duas vezes. Primeiro, com o ecoar da destruição provocada pelas armas; depois com a estridente azáfama dos camiões e das escavadoras.

    Em resumo, se continuarmos a enviar armas ninguém se sentará à mesa e com mais mortos, o regime de Zelensky ficará na mesma sem os territórios ocupados e com uma factura maior de reconstrução. É chegar ao mesmo sítio usando um caminho maior.

    Para as armas, que enviamos, servirem de facto para ganhar esta guerra, então temos que estar preparados, sem burocracias, para intervir. Nós, a tão famosa comunidade internacional.

    Na frieza do pragmatismo parece-me que, apesar de tudo, ainda são dois cenários bastante diferentes. Um leva à perda de parte de um território soberano. Com tudo o que isso tem de injusto para um povo – ninguém o discute. O outro, leva a um conflito mundial. Perdoem-me quando digo que, entre estes dois males, não pode haver dúvidas sobre qual o caminho a seguir.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje mais do que nunca, sempre!

    Hoje mais do que nunca, sempre!


    Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

    O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

    O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

    yellow ball on water during night time

    Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

    Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

    Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

    O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

    Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

    O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

    Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

    Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

    De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

    group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

    E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

    O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

    Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

    Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

    Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

    Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

    Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

    Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

    woman in black and white tank top leaning on wall

    O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

    E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

    E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem quer ser professor?

    Quem quer ser professor?


    Maria de Lurdes Rodrigues, actual reitora do ISCTE, num debate sobre o futuro da Educação na RTP, disse: “não sei como chegámos aqui, e nem quero saber, quero olhar para o futuro”. O “chegámos aqui” é a falta de professores, que existe hoje, e que se agravará ainda mais com o envelhecimento da classe.

    Também não sou grande coisa de memória, até escrevo temas para estas crónicas nos braços para não me esquecer passados cinco minutos. Ainda assim, deixo duas sugestões para início de conversa do “por que razão não temos professores suficientes hoje?”:

    1 – Pedir à Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que pergunte à Maria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação de governos PS. Podia ser que a segunda elucidasse a primeira que, hoje, parece sofrer de amnésia localizada. Como a do Salgado, mas com um livro de cheques mais modesto.

    2 – Porque as carreiras estiveram congeladas 10 anos e os salários são uma miséria?

    people sitting on chair

    A maior parte dos intervenientes no debate repetiram que, hoje, a carreira docente não é atractiva. Entre salários baixos, contratos temporários e colocações onde Judas deixou as botas (termo técnico), não são assim tantos os que sonham com essa vida depois de quatro ou cinco anos numa universidade.

    Isso seria um problema em qualquer parte do Mundo; logo, em Portugal, com o seu crónico atraso nos níveis de Educação, o impacto ainda é maior.

    Eu acrescentaria os problemas familiares provocados pela distância.

    Pouco acompanhamento dos filhos ou dificuldades de ter uma vida normal de casal. Um professor no século XXI é um nómada. Roda escolas na esperança de algum dia ficar efectivo algures.

    Passa 10 anos sem progressão salarial enquanto o custo de vida do país galopa ao ritmo das melhores capitais europeias.

    grayscale photography of two people raising their hands

    Os habituais detratores da Função Pública repetem até à exaustão que os professores apenas trabalham 35 horas, quando, é mais ou menos senso comum, que depois das aulas ainda têm mais umas horas pela frente para preparar matéria, fazer avaliações ou embrulharem-se em tarefas burocráticas.

    Um dos professores presente no debate dizia que as plataformas informáticas apareceram para substituir o papel e facilitar o trabalho administrativo, mas, numa medida muito portuguesa, estes continuavam a fazer tudo em papel, repetindo a informação que deixavam na plataforma.

    Faz-me lembrar a anedota do burocrata a quem pediram para reduzir o arquivo, e ele disse, convicto, para a secretária mandar tudo fora depois de tirar uma fotocópia. É algo muito nosso, precisamos de papel que valide outro papel. Não há “cloud” que safe este rectângulo à beira-mar plantado.

    Sou da opinião que professor e médico são as profissões mais importantes em qualquer sociedade civilizada. Um salva vidas, outro forma. E é por isso que não entendo muito bem como é que chegámos ao ponto de ser tão pouco atractivo ser professor.

    Esse é o primeiro passo para conseguir apenas aqueles que vêm na carreira uma terceira ou quarta opção, enquanto os melhores fogem para outros sectores de actividade. Se um bom professor forma milhares de alunos, um mau também os deixa mal preparados para o que se seguirá.

    Não há muitas voltas a dar a isto, e por muito que os sucessivos Governos fujam, a questão dos salários é crucial. As pessoas vendem a sua força de trabalho a troco de uma compensação financeira que se espera justa. Os professores não são diferentes.

    Por muita paixão que tenham pelo ensino e pelos seus alunos, também pagam contas. E ao fim de 20 anos de trabalho, divididos por não sei quantas escolas e concelhos, levar 1.200 euros para casa é um insulto. Especialmente se pensarmos que Portugal anda há 35 anos a receber subsídios e escolheu, apesar do seu diminuto tamanho, ceder ao lobby do betão e construir uma rede de auto-estradas como nenhum outro país europeu tem.

    Para se compreender as decisões dos sucessivos Governos, podemos pensar nas três auto-estradas que ligam Lisboa ao Porto. São 300 quilómetros com três opções rápidas. Noutro país daria prisão, em Portugal deu votos. No mesmo sítio onde se recusam a deixar um banco privado ir à falência durante 13 anos, aceitam deixar milhares de professores a recibos verdes ou com o mesmo salário anos a fio.

    people raising hands with bokeh lights

    Portanto, se não querem procurar os culpados do passado, como disse Maria de Lurdes Rodrigues, pelo menos não repitam os erros no futuro. Usem o Orçamento do Estado para o que ele serve, e comecem a pagar aos professores o que eles merecem. Não há dignificação da carreira docente sem salários de Primeiro Mundo.

    E aos professores que lutam por melhores direitos, façam um favor à classe: ponham uma guia de marcha ao Mário Nogueira. Os sindicatos são essenciais neste processo, e o Nogueira, ao fim de 20 anos sem entrar numa sala, é como um jacaré numa banheira. Só atrapalha.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Páscoa de chamas na Suécia

    Páscoa de chamas na Suécia


    O fim de semana de Páscoa esteve quente em várias cidades suecas. Esta entrada poder-nos-ia levar a pensar que esta seria uma crónica do saudoso Anthimio de Azevedo, mas não. Vamos falar de nazis, tema em voga há 70 anos, e que nunca desilude.

    Rasmus Paludan, um advogado gordinho de quem nunca tinha ouvido falar, é o fundador do Stram Kurs, um partido nacionalista de extrema-direita da Dinamarca, que, curiosa e felizmente, também nunca tinha ouvido falar.

    O bom do Rasmus, filho de um cruzamento entre suecos e dinamarqueses, e por isso beneficiado com dupla nacionalidade, pode dizer asneiras em ambos os lados da ponte Öresund, a maravilha da engenharia que liga Copenhaga a Malmö.

    Pegou no carro e em alguns amigos, e veio fazer uma tour pelo sul e centro da Suécia, com uma agenda bastante simples: falar em praças vazias para quem ali passava e, sempre que possível, queimar um Corão. Esta foi a estratégia de marketing pensada pelo gordinho para entrar no “mercado sueco” e tentar conseguir juntar assinaturas para concorrer às próximas eleições.

    O Stram Kurs, uma versão escandinava do PNR, Ergue-te ou qualquer outra coisa que o José Pinto Coelho se lembre amanhã, já disputou eleições, aqui ao lado de onde vos escrevo, na Dinamarca. Entre algumas frases polémicas, encontra-se esta: “a melhor coisa que poderia acontecer era não sobrar um muçulmano na nossa querida Terra”. Portanto, uma ternura de homem apenas com alguns problemas mal resolvidos.

    Agora, depois de umas dezenas de votos em 2017 e uns milhares em 2019 (com suspeita de fraude e suspensão) na Dinamarca, Rasmus Paludan tenta concorrer às eleições suecas em 2022.

    Num país onde uma em cada cinco pessoas vota no Chega local (Sverigedemokraterna), a quota de fascistas parece já estar bem preenchida, e não sei se há muito espaço para nazis da linha dura.

    Para já, a tour do Rasmus conseguiu que membros das várias comunidades muçulmanas se juntassem nas diferentes cidades em protesto pela queima do Corão. Protestos esses que resultaram em confrontos com a polícia, carros destruídos, gente ferida e prisões.

    Eu pensei, na minha mais profunda ingenuidade, que a sociedade cairia que nem um trovão em cima deste energúmeno, e que, em momento algum, se discutisse a liberdade de expressão numa acção que é simplesmente de incitamento ao ódio. Não há qualquer hipótese de discutir uma ideia política com alguém que vê num livro a arder uma mensagem. Seja o Corão, a Bíblia ou a Tora. É irrelevante para o que aqui se debate.

    Quem não tolera outras raças, outros credos ou outros tons de pele, não tem sequer base para o início da conversa. Com um fascista não se discute, combate-se.

    people kneeling and praying during daytime

    Hoje, no Göteborg Posten, o maior jornal da cidade de Gotemburgo, vejo um editorial onde se exigem mais e melhores meios para a polícia. Canhões de água e toda uma lista de requisitos que transformem as pacíficas forças de segurança, pouco habituadas a motins, numa SWAT de louros que, ao mais pequeno sinal de manifestação, aprendam a disparar e depois perguntar.

    Curiosamente, nem uma palavra sobre prender o gordinho que originou tudo isto. Ou seja, envolto na capa da liberdade de expressão, o fascismo e o nazismo tiveram tempo de antena, e o odioso ficou do lado de quem mostrou a sua indignação.

    Mais de 70 anos depois de termos dito “nunca mais”, vou-me convencendo que o maior perigo neste cancro, que se espalha novamente pela Europa, não está necessariamente nos nazis que se assumem de megafone numa praça perdida. O real problema está naqueles que, em silêncio e nos escritórios, parecem concordar com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Sonae como exemplo de uma mentalidade

    A Sonae como exemplo de uma mentalidade


    A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.

    Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.

    Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.

    Cláudia Azevedo, CEO da Sonae

    Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.

    Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”

    Permitam-me discordar.

    Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.

    Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.

    Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.

    Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.

    Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.

    Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.

    Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.

    Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.

    Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.

    Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.

    Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.

    Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.

    Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.

    A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.

    E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.

    Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.

    Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um novo Hotel Ruanda

    Um novo Hotel Ruanda


    Poucas coisas se comparam à emoção de ter um texto pronto a enviar, e ver o computador entregar a alma ao Criador antes de o gravar.

    Quer isto dizer que o caro leitor apanhará um texto novo sobre outra temática, produzido quando me passar a neura?

    Não, não senhor.

    O estimado leitor que apoia este jornal vai ler o mesmíssimo texto, mas elaborado com as palavras que a minha memória guardou. Não prometo grande coisa, porque a minha memória apresenta-se, taco a taco, ao nível dos conhecimentos de Excel da doutora Graça Freitas. Mas, convenhamos, o Colombo também não sabia o caminho, e tentou. Vamos a isto.

    woman in white long sleeve shirt kissing girl in white long sleeve shirt

    Volto a uma forma particular de argumentação que me enerva: a de que apenas podemos discutir um assunto de cada vez, para não cairmos em whataboutismo. Coisas que me enervam são, aliás, a minha maior fonte de escrita, e felizmente o mundo nunca me desilude.

    Sempre que ouço ou leio a redução mental de “então és um whataboutista“, se, por audácia, discutirmos Palestina, Iémen ou Afeganistão entre um ou outro morteiro no Donbass, fico na dúvida se terei perdido algo nos últimos anos? Nomeadamente no que concerne ao envio de arroz para o Iémen e no acolhimento de afegãos na União Europeia.

    Ouvindo quem recusa o alargamento do debate, parece que estávamos todos imbuídos numa solidariedade monstruosa com as guerras em África, Ásia e Médio Oriente, e, de repente, com um conflito mais próximo, interrompemos os esforços para nos concentrarmos na ajuda aos ucranianos.

    Ora, como se percebe, nada disso alguma vez aconteceu. Os conflitos que geram refugiados há décadas nunca nos mereceram particular interesse, e quem agora inventou essa idiotice do whataboutismo precisa apenas de um escape argumentativo que justifique o racismo encapotado.

    Não é preciso andarmos com voltas e mais voltas, é preferível chamarmos os bois pelos nomes, usando aqui algum português técnico.

    Tedros Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial de Saúde, disse esta semana que é importante continuar a ajudar a Ucrânia, mas que, e cito, o “Mundo não presta a mesma atenção às vidas de negros e brancos “. O pobre Tedros não sabe que, por esta altura, em Portugal, já é considerado whataboutista (usou um “mas” no discurso), um comunista e um pró-Putin. Nada mau para uma manhã de trabalho.

    Mas o nosso TG não está só na afirmação. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, anunciou esta semana um acordo assinado com o Ruanda para alojamento de refugiados com destino a terras de Sua Majestade. Em abono da verdade, Party Boris não está a ser muito original.

    Já no ano passado, a Dinamarca iniciou um protocolo semelhante com o mesmo Ruanda e outros países africanos. A ideia é simples e pretende desocupar as fronteiras do Reino Unido. Quem ali chegue vindo do Magreb, do Médio Oriente ou de outras paragens problemáticas, em busca de um futuro seguro, será gentilmente recambiado para o Ruanda. Entre fugir de uma guerra na Ásia Central ou desembarcar no Ruanda, julgo que toda uma nova equação de vida se coloca.

    Passei esta semana em Londres, e ouvi diariamente na BBC as críticas e os apoios a esta medida. Um parlamentar dizia que o Reino Unido gastava uma fortuna em hotéis para alojar todos os refugiados que por cá apareciam, e que, como se percebe, o modelo não era sustentável.

    Já enviar essa malta para longe, algures no centro de África, parecia, segundo este deputado, uma medida com futuro. Aliás, para quem sabe um bocadinho de História, os hotéis no Ruanda costumam ser um porto seguro, se não aparecer um machete maroto aqui ou ali.

    Curiosamente, estas medidas não se aplicam a refugiados ucranianos. À primeira vista, comentar esse facto poder-vos-ia parecer um ligeiro whataboutismo, mas, se pensarmos bem, é só uma colocação do referencial no sítio certo.

    Portanto, chega um ucraniano a Londres ou Copenhaga, recebe casa, comida e uma ajuda para voltar a organizar a vida. E ainda bem – já agora, convém dizer isto. Ainda bem.

    Chega um afegão a Gatwick ou um sírio a Kastrup, e, com sorte, acorda dali a uns dias em Kigali.

    No meio disto, aparece o Tedros a dizer que tem a sensação de andarmos a tratar a vida de forma diferente consoante a tonalidade da pele.

    Tedros, Tedros… vê se te acalmas. Ninguém suporta whataboutistas.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A claque dos generais

    A claque dos generais


    Não tendo passado por qualquer teatro de guerra, nem sequer como soldadinho de chumbo, tenho apreciado com algum vigor os comentários aos comentários no que ao desfilar de militares nas televisões nacionais diz respeito.

    Aparentemente, também se está a formar uma claque de vila bajo e outra de vila arriba – publicidade dos anos 90, sinal primeiro de velhice – para puxar pelos nossos generais.

    Pelo que percebo, se dizem aquilo que achamos ser a lógica da guerra no momento, são as vozes da razão. Já se escorrem opiniões disparatadas, são uns energúmenos ao serviço de alguém. Note-se que somos nós, que nem o serviço militar fizemos, que decidimos o que faz sentido ser dito sobre o teatro de guerra.

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    Jornalistas conceituados como, por exemplo, Fernanda Câncio, insultam generais no Twitter ridicularizando as suas opiniões. Classificando-as como disparatadas.

    Fernanda Câncio pode não detectar uma moscambilha, digamos, no próprio quarto ou no cofre de uma hipotética sogra, mas sobre invasões e reagrupamento de batalhões não pede meças a ninguém.

    Acho extraordinária a arrogância com que arriscamos entrar em campos desconhecidos. É algo muito português esta coisa da convicção na opinião. Não primamos pela busca do conhecimento, mas defendemos, com unhas e dentes, uma opinião pouco fundamentada. Até ao limite. Mesmo que tenhamos de insultar homens que andaram em cenários de guerra como observadores internacionais.

    Tudo porque, no decorrer de uma guerra, eles, os militares, não pensam como nós, que vimos todos os Rambos e até nos emocionámos com o Platoon.

    E nesta coisa das claques definimos logo que uns militares defendem cegamente a causa russa, outros estão pela Ucrânia. A poucos parece passar pela cabeça que aqueles homens, sentados em frente a uma câmara, se limitam a correr o risco de emitir uma opinião para que possam ser mais tarde ridicularizados pelos verdadeiros especialistas de sofá.

    Se afirmam que o exército russo é mais forte, são pró-Putin. Se observam na resistência ucraniana os novos barbudos da Sierra Maestra, logo são pró-Zelensky. Sofrem do delito de opinião e sujeitam-se ao julgamento da Câncio, do Milhazes ou do Rogeiro, que fala por interpostas pessoas com o Zelensky.

    Durante a pandemia tínhamos doutorados em Geologia a dar lições de Saúde Pública, e todos faziam ámen. Agora temos militares a falar sobre guerra e… dizem que todos estão ao serviço de uma agenda qualquer. Tenho a impressão de que o excesso de informação nos retirou a capacidade de raciocínio. Ou, pior, nos deixou com a sensação que sabemos mais do que nos ensinaram.

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    Hoje ouvi um militar na CNN, cujo nome não decorei, a dizer que na preparação da grande batalha do Donbass, as tropas russas estavam com o moral em baixo. A razão? Muitos reservistas vinham de longe, lá dos confins da Sibéria, mal preparados, sem saber bem o que iam fazer para o centro da Europa. Já os ucranianos, com os civis em grande forma e os drones a terem um papel decisivo, estariam em melhor posição para a fase decisiva do conflito.

    Com os afilhados de Putin a ganharem votos por toda a Europa civilizada – veja-se França, por exemplo –, a última coisa que precisamos é que a Rússia ganhe mais território em direcção ao Ocidente.

    De modo que, como nem sequer passei da recruta, espero que o general de hoje tenha razão. Na dúvida, vou ver o que a Câncio diz. Só para ficar esclarecido.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião

    De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião


    Observei com a estupefacção de quem vê um acidente entre dois camiões, a voracidade das discussões sobre Bucha, na Ucrânia. Com cadáveres espalhados no chão, e um cenário que já não estamos habituados a ver na Europa (que é diferente de não existir), as trincheiras voltaram a formar-se a uma velocidade estonteante.

    Li e ouvi todo o tipo de teorias sobre a autoria daquelas mortes. A Ucrânia acusa a Rússia de crimes de guerra, enquanto do Kremlin chegam notícias contrárias. Até aqui nada de novo: é uma guerra, ninguém assume seja o que for até ao dia de se apresentar em Haia.

    Mas por cá, confortavelmente sentados nos nossos sofás, escorremos ódio baseado em certezas absolutas.
    Discutimos teorias, ouvimos generais que defendem que tudo aquilo foi encenado. Outros dizem-nos que os russos estão a repetir a barbárie da Síria. Foi a mão que abanou à passagem dos soldados, as faixas com Z que indicariam a proximidade com os russos por parte das vítimas ou os corpos, em teoria ali deixados há três dias (altura da partida dos russos) que não mostravam um estado de decomposição satisfatório para 72 horas.

    Zelinsky acusado por uns por usar Bucha como uma última cartada para puxar o “Ocidente”, ao mesmo tempo que as hipóteses de acordo de paz se vão esfumando. Putin, garantem-nos, desistiu de Kiev, assumindo essa derrota para apostar tudo na conquista do leste ucraniano, unindo territórios com a Crimeia. Bucha tem todo o ar de ter sido um crime de guerra daqueles que, cedo ou tarde, chegam a Haia.

    Em momento algum se tentou perceber o óbvio ou, pelo menos, perguntar o que mais interessa: de quem são aqueles corpos esquartejados no meio do chão?

    Entre teorias de trincheira, alguém parou para pensar dois minutos que, factualmente, estavam ali centenas de pessoas atiradas para o chão, mortas, assassinadas, sem qualquer piedade?

    Gente que terá filhos algures, família que procura saber deles, amigos que perderam o seu paradeiro. Gente como nós que está ali a figurar num quadro de horror para que, agora, no quente do lar, possamos discutir teorias sobre quem os matou, e para que, em conjunto, consigamos odiar o outro lado da barricada.

    Ouvi os noticiários durante 24 horas. Li todas as teorias possíveis e imaginárias. Escutei generais, jornalistas e analistas de uma forma geral. Segui discussões intermináveis sobre o crime ou montagem. Nem uma palavra sobre os seres no chão que outrora estavam vivos.

    A famosa coluna de 64 quilómetros do exército russo, estacionada nos arredores de Kiev durante semanas, parece ser agora um depósito de ferro-velho. Ainda bem, acrescento eu. Há notícias de, durante o reagrupamento das tropas em direcção a leste, aldeias e vilas terem sido pilhadas por russos. Mulheres e meninas apresentam agora as primeiras queixas de violação, em zonas que foram reconquistadas pelo exército ucraniano. Molestadas por soldados russos e, quem diria, também ucranianos (segundo o The Guardian).

    A eterna discussão do lado civilizado numa guerra fez-me lembrar a história das invasões napoleónicas e dos nossos eternos aliados ingleses: depois de nos ajudarem a expulsar os franceses, roubavam ainda mais do que aqueles no regresso a casa.

    Aprendi nas últimas horas todas as hipóteses teóricas do que poderá ter acontecido em Bucha. Tudo, menos quem morreu e por que razão. O mais importante, portanto, e o que verdadeiramente me interessa.

    Entre as discussões políticas e as convicções ideológicas, vamos esquecendo que gente com uma história inocente está a pagar por decisões dos governantes.

    É nisto que penso quando vejo os gritos de trincheira nas redes sociais.

    É disto que me lembro quando vejo narrativas ensaiadas que nos obrigam a escolher um lado, seja ele qual for, e ali ficar, independentemente daquilo que a realidade nos vai mostrando.

    Vamos perdendo a sensibilidade e o afecto. Queremos ter razão. Queremos que a nossa teoria passe no crivo dos vencedores. Não queremos saber de quem vai tombando. São danos colaterais.

    Bucha diz muito sobre o agressor, bastante sobre a linha das regras que alguns julgam existir numa guerra. E, claro, qualquer coisa sobre nós.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Mais armas, por favor… sempre em nome da paz

    Mais armas, por favor… sempre em nome da paz


    Sempre que vou a casa do meu pai, passo os olhos pela porta amolgada do correio. Sinais de outros tempos em que ainda se escreviam cartas à mão e um teenager, ansioso, dobrava a lata para não ter de esperar pela chave, que chegaria no bolso de um adulto lá para o fim do dia.

    Hoje a rotina é consideravelmente diferente. Já ninguém escreve algo que mereça uma ida ao correio, e o entulho que por lá se acumula, na caixa, varia entre a publicidade de supermercado ou ofertas de crédito com fantásticas taxas de juro de 11% de uma qualquer cofidis. Até as contas – a adrenalina do mês, como lhes chama o meu pai –, já nos aparecem nos computadores e smartphones, em formato digital.

    Ontem, enfim, pensei, antes de ir dormir, que já não ia ao correio há uma semana. Desafiei os graus negativos, e lá fui enfiar a mão naquela montanha de papiro.

    red steel Royal Mail mailbox

    Devo dizer que a entrada em Abril é, daqui de onde vos escrevo, de autêntica tortura para mim. Na minha Lisboa natal, o céu azul começa a acompanhar-se de algum calor, vocês arriscam nas t-shirts, e eu aqui, entre impropérios verbais, desloco-me em temperaturas que não convidam à interacção com outros humanos.

    É a altura do ano em que repito que já chega, que agora é que me vou mesmo embora. Depois visto um casaco, acalmo-me, e espero pelo próximo Abril. O décimo sétimo, neste meu caso.

    Mas já me desviei do tema, e levei-vos por divagações pouco importantes para o tema em debate. Peço desde já perdão pela minha reduzida capacidade de síntese…

    O entulho na minha caixa de correio, voltemos a ele.

    Entre a resma de publicidade estava um panfleto do partido liberal de cá. Em linhas gerais dizia que a Suécia devia entrar na NATO (e já!), e que o país teria que investir mais na defesa.

    Acrescentavam ainda que há já 10 anos que defendiam esta ideia, e que hoje estaria mais actual do que nunca por causa do “efeito Putin”.

    Confesso-vos, com alguma tristeza, que não tenho seguido o partido liberal sueco na última década, mas percebo agora, com algum embaraço, que tenho perdido momentos memoráveis.

    Fiquei a pensar naquilo até adormecer, e concluí que os liberais suecos têm razão. Diria mais: não só estão cobertos de razão como estão a revitalizar um mercado algo adormecido desde a Guerra Fria. É tempo de a Suécia começar a usar o dinheiro dos impostos para comprar mais armamento.

    Existem várias razões para isso. A primeira é que, como sabemos, a compra de material bélico é a primeira forma de prolongar a paz. Quem nunca ouviu “estamos a bombardear para conseguir terminar esta guerra”, que atire a primeira pedra.

    Depois, aqui entre nós, a Suécia fez opções políticas a partir da década de 60 do século XX que são um verdadeiro ultraje à vida no limbo da incerteza que todos aspiramos. Investiu fortemente em habitação, num programa que trouxe um tecto para todos, colocou o erário público ao serviço de uma Educação verdadeiramente universal onde, e reparem neste escândalo, os miúdos são subsidiados pelo Estado para estudarem no ensino superior.

    Ou seja, os filhos do sapateiro e do astronauta partem do mesmo patamar no que toca às oportunidades na vida. Como se não bastasse, ainda nos sacam mais uma fortuna em impostos para que os mais velhos tenham assistência em casa na fase final da vida, para que os miúdos tenham dentista grátis até aos 26 anos, e para que, de uma forma geral, toda a população tenha assistência gratuita providenciada pelo Serviço Nacional de Saúde.

    Por fim, proporcionam a todos, no fim da vida contributiva, uma pensão pública, devolvem em sede de IRS 30% dos juros cobrados pelos bancos, proporcionam centenas de dias de paternidade a cada casal, e garantem uma Segurança Social que não deixa ninguém debaixo da ponte nos momentos mais difíceis.
    Como se percebe, um tédio. Uma vida sem surpresas, receios ou aflições provenientes da falta de emprego, falhas de saúde ou azares de percurso.

    Pessoalmente, isto tudo enerva-me. Raramente estou doente e não vou a hospitais.

    Estudei em Portugal e, em princípio, também passarei por lá o tempo da reforma. Ou seja, nem consigo aproveitar bem os descontos. Já se tivéssemos um grupo de vigilantes em cada bairro, talvez com um tanque ou um lança-mísseis, sempre me poderia entreter nas noites de frio, que vão de Agosto a Julho. De resto, são óptimas.

    Como se não bastasse, com estas escolhas de investimento, a Suécia conseguiu, durante décadas, figurar entre os mais ricos do mundo, com elevada percentagem da população a concluir o ensino superior e a chegar a um valor mínimo de salário a rondar os 2.000 euros (não oficial).

    Note-se ainda que, para os senhores da guerra, fãs dos mercados e da corrida ao armamento, que durante estes anos de paz e neutralidade, parte do desenvolvimento económico da Suécia foi também assente na produção e venda de equipamento militar.

    Cerca de 2% dos tiros dados a nível mundial são produzidos pela Suécia. Nada mau para uma população igual à portuguesa. Ambos têm 0,13% da população mundial. No fundo, a Suécia pratica aquela paz que consiste em vender armas aos dois lados. Onde é que já vi isto?

    Mas essa neutralidade, com uma mancha aqui e outra ali, valeu 77 anos de prosperidade e de enorme crescimento económico, reflectido diretamente na qualidade de vida dos seus habitantes.

    men in green and brown camouflage uniform

    Chegados aqui, o que devemos fazer?

    Seguir uma receita de sucesso testada ao longo de quase oito décadas, ou desviar os fundos que construíram isto para nos armarmos até aos dentes? Melhor, perante a ausência de ameaça, devemos criar uma narrativa para que passemos a ter uma preocupação nova?

    Eu acho que sim. E entendo perfeitamente os liberais. Tal como eles, também eu estou aborrecido com esta vida calma, organizada e sem problemas. Aliás, quando aqui cheguei em 2007 fiquei logo desconfiado.

    Habituado em Lisboa a entregar uma bíblia impressa em A4, a que chamavam declaração de IRS, fiquei estupefacto quando apenas me pediram um sms com a mensagem; “sim” ou “não”, para fazer o mesmo em Gotemburgo, ao fim do meu primeiro ano de trabalho. Era o primeiro de vários anos sem emoções e irritações com o quotidiano.

    Assim, há que aderir à NATO, e meter um alvo nas nossas costas. Há que tirar dinheiro das escolas e canalizá-lo para mísseis. E depois é deixar os mercados agirem. Todos temos visto ao longo do último mês como eles se ajustam bem.

    É como diz o poeta João: o liberalismo é necessário e funciona.

    Primeiro cria-se o deserto, depois vende-se a água. Brilhante.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Qatar à vista, apesar de Fernando Santos

    Qatar à vista, apesar de Fernando Santos


    Diz quem se defende da alcunha de sortudo que tê-la, à sorte entenda-se, dá muito trabalho. No caso de Fernando Santos, nos anos que leva à frente da Selecção Nacional, a fortuna dos deuses se convertida em calcário, granito e argamassa daria para construir mais três pirâmides de Gizé.

    Não sendo eu um apreciador do estilo, percebo o óbvio: os únicos troféus internacionais de Portugal chegaram pela mão do nosso Fernando, pelo que teremos de aguentar a estucha até que ele queira, ou, em alternativa, que o descalabro de derrotas seja tal que nos faça esquecer a vitória no Euro 2016 e na Liga das Nações de 2019.

    Uma espécie de Mancini, versão Amadora.

    three white-and-black soccer balls on field

    O problema, contudo, é que o Mancini ganhou o Euro 2020 com um grupo de bons rapazes, e não é propriamente um escândalo não participar no Mundial.

    Já Fernando Santos tem ao seu dispor, há anos, a melhor geração de futebolistas nacionais, presentes nas equipas mais fortes do Mundo, e repetidamente vencedores das competições de clubes mais importantes.

    Mesmo assim, insiste num modelo de jogo ultra-defensivo, deixando de fora, consecutivamente, boa parte das opções de ataque.

    Quando Fernando Santos foi convidado para seleccionador nacional, de certa forma todos percebemos o que ali estava a ser feito. Era um chef que entrava na cozinha de um restaurante com três estrelas Michelin apenas para fazer esparguete à carbonara.

    Pergunto: quem sai de casa para comer esparguete com queijo e fiambre, tendo dourada grelhada ou bacalhau escalado no menu?

    Foi assim no Benfica, Sporting, Porto, Selecção grega, Panathinaikos e AEK. Quatro defesas, quatro médios em losango. Defender, defender, defender. De empate em empate até à vitória final.

    white and blue soccer ball on green grass field

    Nada contra se a equipa treinada for a Albânia, a Bulgária ou Islândia. Agora, um país que consegue ter Diogo Jota, Cristiano Ronaldo, João Félix, Bruno Fernandes, Rafa, Renato Sanches, Bernardo Silva, Gonçalo Guedes, Rafael Leão, entre outros, com as suas cores, vai jogar apenas com dois ou três destes em campo?

    E colocar oito para “segurar” e “passar para o lado”? Ou vai seguir a lógica de Johan Cruyff quando se defendia dos críticos que o acusavam de sofrer muitos golos? No fundo, “o que importa levar 3 se marcamos 5?”

    Não é preciso ser engenheiro, como o Fernando, para fazer esta conta. O futebol não é física quântica, e é pela sua simplicidade que apaixona milhões.

    Se te dão uma equipa com Pepes e Williams, jogas como o Portugal do Fernando.

    Se te dão Jotas, Bernardos e Ronaldos, jogas como o Bayern de Munique ou o Liverpool. Em modo trituradora.

    Em princípio ganha-se mais do que se perde porque, e esta vai de borla, a maioria dos adversários são piores.

    Chegados ao ano da graça de 2022, depois de falhar um apuramento direto num grupo onde a única coisa parecida com concorrência vinha da Sérvia, que se apresentava com pouco mais do que três ou quatro jogadores de primeiro plano – e já estou a contar com o ponta de lança que é figura na segunda divisão inglesa –, Fernando Santos fez o que sabe fazer melhor: rezar.

    Neste plano julgo que estaremos mesmo perante um escolhido dos deuses. Não sei bem quais, mas alguém olha para o nosso Fernando num Olimpo qualquer.

    Com a Itália no caminho, Portugal viu a Macedónia fazer o trabalho de sapa na maior vitória da sua História, mesmo ao cair do pano.

    Poucos minutos antes, a Turquia, em pleno Dragão, falhou o penalti que justamente lhes daria o empate.

    Ninguém me convence que, se Fernando Santos desembarcasse em Kiev, um míssil em rota para a Praça Maiden acabasse afinal desviado para o Kremlin, rebentando na sala da mesa infinita onde se senta Putin, dando como concluída a guerra.

    Tantos especialistas na CNN e nenhum se lembrou desta.

    Provavelmente, esta terça-feira, Portugal chegará mesmo a um Mundial que nem deveria existir.

    Tudo o que envolveu a atribuição da competição ao Qatar e o trabalho escravo na construção dos estádios, justifica certamente outro texto. Mas para já, no que ao futebol diz respeito, parece que Ronaldo se prepara para ter a merecida despedida com a camisola da Selecção Nacional.

    E isto apesar de Fernando Santos. Este rapaz não pára mesmo de bater recordes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.