Autor: Tiago Franco

  • O sonho de carregar pedras em Pinhel

    O sonho de carregar pedras em Pinhel


    Dizia a responsável de uma empresa de extracção de granito, em Pinhel, no distrito da Guarda, que as pessoas deviam pensar um pouco mais no interior. Há falta de mão-de-obra, todos fogem para o litoral.

    É um facto, não há muito a dizer sobre isso. Há um êxodo, de décadas, para o litoral do país. Dizem-nos que a principal razão se prende com a concentração do mercado de trabalho nas cinturas de Porto e Lisboa.

    Pessoalmente, acho que a escolha de deixar o interior não acaba nas oportunidades laborais, mas sim na ilusão de estarmos no sítio onde tudo acontece. Em Portugal, isso resume-se a Lisboa e, de quando em vez, ao Porto.

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    E digo ilusão porque, depois de ter mudado de casa 30 vezes, vivido em subúrbios bons e maus, vilas e cidades, capitais e periferias, passando ainda por uma ilha com apenas cinco mil habitantes, considero hoje que se vive melhor fora dos grandes centros.

    Obras, trânsito, especulação imobiliária. Três coisas que gosto de evitar na minha vida, e que me fazem passar na minha Lisboa natal sempre em rotação para outro sítio qualquer.

    Gosto de estar no centro de tudo…Londres, Paris, Nova Iorque, Lisboa, Berlim, Amsterdão, Tóquio, Istambul ou Rio de Janeiro estão entre os sítios onde me sinto melhor. Mas, no fim, no fim de tudo, gosto de regressar à paz do mar, do silêncio, das caras conhecidas e da ausência de conflitos na estrada. Gosto da guerra urbana por uns dias, não por uma vida.

    O problema, pelo menos em Portugal, é como transformar o interior num sítio apelativo. Na Suécia é relativamente simples. Tanto as fábricas como as empresas ou serviços do Estado estão espalhadas pelo país. Claro que há mais oportunidades nas três principais cidades – Estocolmo, Gotemburgo e Malmö –, mas ninguém tem que sair da sua aldeia se não quiser. Há sempre emprego por perto.

    Em Portugal não será bem assim. Empresas que abrem no interior são notícia. Casos raros. Exemplos de coragem e de quebra de barreiras. Mas poucos querem ir para lá viver. A qualidade de vida difere de análise para análise e, pessoalmente, sempre que tenho esta conversa com conhecidos o que mais ouço é “o que vou eu fazer numa aldeia do Alentejo?”.

    Isto dito por quem vive na Arrentela, famosa pelos seus museus, restaurantes de grelhados, bailados, orquestras sinfónicas e arranha-céus com vista para o Monsanto. Quem nunca viu o Lago dos Cisnes na Torre da Marinha, que atire a primeira pedra.

    Nos grandes centros urbanos, as deslocações tornaram-se um pesadelo – julgo que ouço a conversa da fila na segunda ponte do Feijó desde que nasci – e, com a especulação imparável no centro, a tendência é que os subúrbios não parem de receber gente, futuros clientes do caos no trânsito.

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    Ainda assim, quem quer deixar este inferno – para mim, isto é um cenário de Dante –, que hipótese de emprego tem no interior?

    Esqueçamos a oferta cultural, as actividades, a ocupação dos tempos livres, ou tudo aquilo que achamos imperdível numa cidade. Que empregos esperam estas pessoas em Pinhel, por exemplo, nas palavras da senhora que se queixava ao jornalista de serviço?

    Dizia ela que as pessoas normalmente só querem empregos de escritório, como em Lisboa. E que tinham que procurar também outras coisas, porque o interior precisava. Só a referência a um emprego de escritório como algo bom faz-me logo lembrar a bitola da minha avó, quando falava de uma neta ou filha de uma amiga qualquer na sua pequena aldeia do Alentejo: “Olha, ela até conseguiu um emprego muito bom. Num escritório. Não sei o que fazia, mas era num escritório”.

    Eu sorrio sempre com as avaliações à vida feitas pela minha avó. Ela nasceu em 1927. Nas décadas seguintes, os escritórios estariam reservados para umas elites e, portanto, tudo aquilo faz sentido na cabeça dela. Já ouvir esse discurso numa empresária do granito neste século, enfim, ajuda um pouco a perceber a falta de mão-de-obra.

    O problema, em última análise, é o “arame”, como lhe chamava Mário Soares. À pergunta sobre o nível salarial feita pela jornalista, respondeu a empresária, ligeiramente envergonhada: “Bom, isso depende do trabalhador”. Seguiu-se a insistência da entrevistadora, na tentativa de sacar um número: “Mas qual é a base? Está ao nível do salário mínimo?”. Aí a entrevistada já se soltou um pouco mais. “Sim, sim. Começam todos pelo salário mínimo, e depois vão evoluindo por aí fora”.

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    Ui…por aí fora. Eu imagino as reuniões com análises de produtividade, aumentos salariais correspondentes, e acordos com os sindicatos para as evoluções da carreira da extracção da pedra. Por outro lado, se começam todos pelo salário mínimo, lá se vai aquela narrativa do “depende do trabalhador”.

    Portanto, em resumo, oferece-se um salário mínimo para acartar pedra a norte da Guarda. Progressões de carreira “por aí fora” e actividade ao ar livre – boa para evitar as bronquites causadas pelo ar condicionado dos escritórios. Garante-se um frio de rachar penicos durante os meses de Inverno, que só fortalece os ossos, e gasolina mais barata, uma vez que Espanha dista pouco mais de 30 quilómetros.

    Visto assim, também não percebo a dificuldade em arranjar trabalhadores. Ou colaboradores, como se diz agora.

    Eu gosto muito do interior de Portugal, mas infelizmente, tal como no litoral, o tecido empresarial ainda se rege pela exploração da força de trabalho, confundindo essa prática com o que, levianamente, costumam apelidar de “oferta de emprego”.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Amigos, amigos, mártires à parte

    Amigos, amigos, mártires à parte


    O meu dia começa invariavelmente a olhar para um mapa. Diz quem me conhece que só estou bem onde não estou. Todos os dias planeio uma viagem diferente. Todos os dias encontro problemas no destino.

    Ou, na minha meninice, era o Mundo mais simpático, ou era eu que consultava menos mapas.

    Por estes dias, olho bastante para Chisinau e para a região separatista em redor de Tiraspol. Há mais de 10 anos que penso lá ir, desde que vi um documentário narrado pelo Michael Palin, dos Monty Python. Não sei se daqui a uns meses ainda existirá como caso único no mundo, ou se, em alternativa, como novo território nos domínios de Putin.

    Dramas reais à parte, isto lembra-me uma máxima de um antigo marinheiro e colega na Autoeuropa que diz haver “duas coisas que nunca se trocam ou adiam na vida: aumentos salariais e viagens”.

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    O velho lobo-do-mar sabia que sem um dificilmente aconteceria o outro.

    De Tiraspol, desloco-me 650 quilómetros para leste, com um simples click, e estou em Mariupol, a cidade mártir da invasão russa. Começam aqui algumas das minhas dúvidas sobre este conflito, e a diferença entre aquilo que nos contam e o que, efectivamente, é a realidade.

    Durante várias semanas, ouvi glorificações ao batalhão Azov (ou Combatentes da Liberdade). Desde a direita portuguesa a Inês Pedrosa, passando por dirigentes europeus e, obviamente, Zelensky, que tentou transformar uma milícia nazi numa feroz unidade de combate patriota. Confesso que nunca percebi a razão de tal esforço.

    Escrevi aqui, neste jornal, há umas semanas, que, por mim, se estivesse num teatro de guerra com soldados ao meu lado, tornar-se-ia absolutamente irrelevante saber em quem votariam nas próximas eleições. Interessar-me-ia, isso sim, perceber se tinham boa mira ou se faziam bombas com um elástico, pastilha e um sumo de laranja, tal como o MacGyver. O resto, meus amigos, é política de sofá.

    É por isso mais ou menos óbvio para todos, hoje, que o grupo nazi que entrou em combate com os separatistas em 2014, e que, segundo Rodrigo Moita de Deus, “já venceu os russos duas vezes e por isso é que não gostam deles”, foi normalizado enquanto parte do exército ucraniano. E repito o que disse antes, para não deixar dúvidas: acho normal.

    Só vê aqui algo estranho quem nunca precisou do maior rufia da turma para se safar. Os ucranianos têm nazis nas suas fileiras. Os russos também. O eterno esforço de encontrar aqui meninos de coro, bombas pela paz ou violações razoáveis, é algo que me deixa doente. As regras de bom comportamento são para as salas de aula, ou um jantar em casa da Bobone; não para um teatro de guerra.

    A minha dúvida começa, contudo, hoje, depois de ouvir as declarações dos civis, que foram libertados de Azovstal, e, principalmente, do pedido de ajuda desesperado de um comandante do batalhão Azov.

    Desde já parece que a viagem de António Guterres, apesar do escárnio a que foi sujeito pelos especialistas nacionais em postura vertical nas cadeiras do Kremlin, teve algum efeito positivo e abriu um corredor para a saída de civis.

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    Relatos de alguns desses civis indicam que eram ameaçados dentro da fábrica por elementos do batalhão, e que não os deixavam sair. A ser verdade, indica duas coisas. Que, de facto, estavam a ser usados como escudos humanos, e que a narrativa de os invasores não permitirem a saída era falsa. Mas, enfim, o que sabemos nós sobre a verdade num cenário daqueles?

    Porém, são as declarações do comandante do batalhão Azov, e o seu pedido de ajuda, que me deixa mais surpreso. Zelensky anda a dizer há semanas que Mariupol resistirá até ao último homem, sabendo de antemão que esse homem será do glorificado batalhão Azov.

    Contudo, os homens dentro da fábrica, e agora sem civis para trocar, parecem relatar um abandono das autoridades ucranianas. Apelam aos líderes europeus, ao governo ucraniano, às Nações Unidas. Os homens que estavam dispostos a morrer pela pátria, segundo Zelensky, afinal parecem que têm onde estar para a semana, e não estão muito interessados em contribuir com os respectivos corpos para a fertilização do solo agrícola.

    Não os posso condenar. Não sei bem como pensa um nazi, mas quando toca a morrer somos todos muito pouco católicos: ninguém tem pressa para confirmar se o Paraíso tem aquelas cores que nos vendem na Sentinela.

    Alguns analistas defendem que o presidente ucraniano pretende livrar-se de um problema (nazis), transformando-os em mártires de guerra, num combate que sabe estar perdido (Mariupol).

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    Esta explicação é ligeiramente hedionda. Faz-me lembrar um pouco aquela de que os suecos queriam matar velhinhos com a covid-19 para pouparem nas pensões da Segurança Social. Mas lá que eu gostava de saber quais os planos da Ucrânia para os encurralados de Azovstal, isso gostava. Aliás, é nestas alturas que todos precisamos de um amigo como Rogeiro que fala por interposta pessoa com Zelensky.

    Com o cerco russo e abandonados pelo seu governo, o batalhão Azov parece ter os dias contados. Zelensky fez um vídeo poderoso – muito bem feito, diga-se – para relembrar o dia da vitória aliada. Falou longos minutos sobre a destruição nas cidades ucranianas, o heroísmo do povo ucraniano, a contribuição da Ucrânia na II Guerra Mundial e as vidas que deu para combater as forças de Hitler.

    Disse, entre outras coisas, que o never again tinha que perder o never, já que, hoje, a Ucrânia era novamente vítima do nazismo e das forças de ocupação. Hoje, como antes, disse-nos Zelensky, a Ucrânia voltará a derrotar o totalitarismo.

    Ficou foi por esclarecer se a empreitada começaria por Azovstal.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Em ritmo de tourada

    Em ritmo de tourada


    Portugal entrou numa tourada sem fim à vista. Será uma metáfora simplória, reconheço, mas andamos todos a marrar no vermelho. Não sei se o editor vai deixar passar a palavra “marrar” [N.D.: deixou], mas convenhamos, não há melhor sinónimo para a situação actual. Evitemos discussões sobre o VAR, uma distância de dois centímetros e os 400 penaltis do Taremi, e foquemo-nos no outro vermelho que o país tenta abater.

    Não entendo, na verdade, o destaque dado ao presidente de uma associação ucraniana, residente há 20 anos em Portugal, que disse não perceber como é que um país da União Europeia, como Portugal, ainda tinha um partido comunista.

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    Segundo a mesma notícia (SIC), este senhor fez o ensino secundário e universitário em Portugal. A avaliar pela questão deixada aos microfones das televisões, assumo que tenha estudado qualquer coisa ligada às ciências. Malta dos números é sempre mais trapalhona com o conhecimento e percepção da História. Ou então, frequentava muito a zona dos matraquilhos enquanto a professora se esforçava para explicar o que foi o Estado Novo em Portugal e o papel do PCP no combate à ditadura. 

    Ainda assim, sem grandes teorias, a resposta mais simples para esta questão é: Portugal tem um partido comunista por que é uma democracia. É só isso.

    Todas as correntes políticas que não vão contra a Constituição são legais, aceites e debatidas. Não é assim em todos os países, de facto, e talvez daí a confusão do nosso interlocutor. Por exemplo, na sua Ucrânia natal já se passou uma esponja sobre os partidos de esquerda.

    Estas declarações originaram uma série de manifestações xenófobas, que se poderiam resumir ao “vai mandar bocas para a tua terra”.

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    Ora, isso também não é grande coisa, vista do nosso lado, pois não? Julgo que foi Raquel Varela quem melhor resumiu a polémica. O que este senhor disse é um problema, apenas e só, por ser uma declaração profundamente anti-democrática.

    O facto de um ucraniano comentar a vida política portuguesa é absolutamente irrelevante. A democracia acolhe todas as asneiras sem olhar para o passaporte. E assim é que deve ser.

    O PCP não faz grande falta à Ucrânia. E as suas posições contra qualquer guerra, império, aliança, invasor ou governo pouco democrático, são isso mesmo, opiniões. Não afectam o teatro de operações. Já um jovem em idade de combater parece-me ser mais útil em Kiev do que no Terreiro do Paço a sugerir o fim de um partido secular. 

    Não o estou a mandar para a terra dele, que fique claro; só a dar sugestões de como usar melhor o tempo na defesa da causa.

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    Depois de Benfica e PCP, boa parte do país vai marrando também no vermelho do sangue. Querem mais. Ainda não chega. Crescem, florescem e multiplicam-se as opiniões de que a NATO deve entrar (ainda mais) nesta guerra.

    A última voz foi a de Inês Pedrosa que a cada semana vai ficando mais bélica. Já não chega armar, pagar, devemos agora entrar na guerra e ganhá-la. Disse ela: “A NATO deve entrar nesta guerra e ganhá-la”.

    Fico impávido e estarrecido a ver sexagenárias clamando pelo sangue alheio. A teoria é simples. Se a NATO não entrar, depois da Ucrânia, o Putin não parará. Quem sabe que país invadirá a seguir?

    Já se a NATO começar a bombardear Moscovo, relembrando os sucessos de Belgrado ou Tripoli, Putin certamente baterá em retirada para a sua datcha na Sibéria. Em princípio, não usará aqueles mísseis nucleares que tem lá na garrafeira, ao lado das reservas de Dão.

    A leveza com que as pessoas discutem ataques bélicos, é inversamente proporcional à probabilidade de lá irem parar.

    Portugal já envia ajuda para a Ucrânia, dinheiro, equipamento, bens de primeira necessidade. Proponho que os nossos pensantes e opinadores públicos contribuíssem antes para a resolução de problemas mais simples e próximos. Por exemplo, discutir como ajudar os refugiados ucranianos depois das luzes das televisões se desligarem. É que segundo relato dos próprios, ter acesso às ajudas depois de aqui chegarem é um mar de burocracia sem fim, e o relançamento das vidas mostra-se extraordinariamente difícil.

    Português algum desconfia destas palavras. Burocracia é a nossa forma de estar na vida. A dar conferências de imprensa com medidas e acções em PowerPoint, somos uns ases. A fazer cabeçalhos com boas intenções, também. Já a simplificar a vida das pessoas, quando a poeira assenta, nem tanto.

    Começo eu, para não dizerem que é só conversa. Sugiro que pintem a burocracia de vermelho.

    Depois é só esperar que vão marrar no sítio certo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O novo Chega, versão “o sistema até se borra”

    O novo Chega, versão “o sistema até se borra”


    Não sei se vocês acompanham as sessões no plenário da Assembleia da República, mas por cá, enquanto penso num algoritmo, gosto de ter aquilo em som de fundo. Há sempre qualquer coisa que me alegra o dia. É quase como ir ao Jardim Zoológico dar a moeda ao elefante: magia e depressão no mesmo minuto.

    O debate do Orçamento do Estado foi particularmente interessante – no que a serrar presunto diz respeito, porque, quanto à votação, teremos quatro anos de aborrecida maioria e resultados combinados. Quase como os jogos da Liga Portuguesa, embora sem aquela chatice de nos sentarmos à chuva ou das filas e apalpões da entrada e da saída.

    Há, nesta legislatura, uma enorme novidade no movimento “caixa de ressonância” na bancada do Chega. O movimento “caixa de ressonância”, para quem não sabe, é aquele habitual apoio, registado competentemente em Diário da Assembleia da República, do colega de bancada que, por cima da voz do orador, vai dando umas palmadas no ego. “Muito bem”. “Isso mesmo”. “Dá-lhe”. E ainda outros guiões que também se encontram em filmes porno produzidos numas caves da Damaia.

    O CDS era muito bom neste movimento. PS e PSD também não se saem mal. E agora devo reconhecer que, ao contrário do que eu imaginava, os três ou quatro parlamentares do Chega, que ouvi, conseguem discursar com alguma fluidez. Porém, a receita é a do Ventura, o estilo também, os temas são escolhidos a dedo para polémica. A busca ainda é pelos dois minutos para seguir até ao canal de YouTube da ChegaTV, apresentada como “A Voz dos Portugueses de Bem”.

    Acredito que o Ventura faça uns workshops na sede do partido onde explica como misturar o ar indignado, de combatente contra o poder, com alguma dose de homem do povo.

    Ainda assim, ao fim de poucas semanas, começam a surgir as primeiras calinadas, o que me leva a pensar que nem todos estavam atentos nas aulas. Um dos deputados já empregou um familiar como assessor, algo que, para quem leu as nove páginas do programa, sabe que esbarra logo naquela alínea do “vamos fazer tremer o sistema”.

    Depois, durante o debate, enquanto se falava na distribuição das casas de renda social, disse um dos deputados do Chega que era preciso que estas fossem parar a quem delas precisa, e não aos do costume. E cito, aqueles “que não querem trabalhar, mas têm Mercedes, Porsches e Ferraris à porta de casa”.

    Aqui sou obrigado a deixar uma nota até porque vivi vários anos a 10 metros de um bairro social. Ferraris? Uma pessoa já deu de borla os Mercedes. Depois ainda fizemos aquele esforço de imaginação para visualizar um Porsche Cayenne no Laranjeiro. Mas um Ferrari?

    Quer dizer, ou começamos todos a ir para Nárnia ouvir as palestras do Chega, ou então, neste mundo em que vivemos, temos que pensar que, para as ovelhas do pastor, um bairro social é aquilo que, nós, as pessoas mais simples, chamamos de Quinta da Marinha. 

    Antes, já um outro parlamentar do Chega, Mithá Ribeiro (este consegui decorar o nome), tinha dito que apenas o racismo reinante o impedira de ter sido eleito vice-presidente da Assembleia da República. Curiosamente, o mesmo Mithá, antes da campanha eleitoral, era conhecido por ter decretado o fim do racismo e, tal como o seu partido, afirmar que não existia racismo em Portugal.

    Bem sei que isto ainda agora começou, mas este novo Chega, versão “agora é que o sistema vai tremer”, promete muito. Só pelo trailer já deu para perceber que, no fim, o mordomo acaba com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral

    O trabalhador, o CEO e a vergonha de se exigir justiça laboral


    O meu filho, com 13 anos feitos há dois meses, tem uma concepção do mundo do trabalho relativamente simples e prática. O plano dele é ir para uma universidade nos Estados Unidos e, em paralelo, trabalhar entre os 20 e os 25 anos, de forma a conseguir ficar milionário. Em seguida, palavras dele, quer aproveitar a vida, porque é mais fácil fazê-lo sendo milionário.

    Pessoalmente encontro várias falhas no plano. Desde logo, onde está o financiamento inicial para se tornar milionário? Na Suécia, onde ele nasceu e cresceu, a universidade é gratuita. Nos Estados Unidos custa um rim – europeu; se for afegão custa uns sete.

    O TikTok mostra-lhe os self made billionaires, como o Elon Musk na Land of Opportunities, sem lhe contar o arranque inicial com a mina de esmeraldas do papá.

    Mas tudo bem, não sou progenitor de estragar os sonhos. Também eu quero muito ir à Polinésia Francesa, e não admito que me digam o contrário.

    A discussão que verdadeiramente me interessa são os porquês.

    Qual a razão de se querer ser milionário e de ter dinheiro que não se consegue gastar em tempo algum de vida? Ou melhor, sabendo que quando o dinheiro se concentra num sítio é porque desapareceu de vários, qual é o desejo de acumular tanto?

    Contei-lhe a história de Mino Raiola, um predador de contratos de jogadores de futebol que gravitava em torno deles, conseguindo comissões absolutamente obscenas e uma fortuna acumulada sem nunca ter dado um pontapé numa bola. Representava tudo o que de errado e ganancioso existia no mundo dos empresários de futebol. Morreu esta semana, milionário, com pouco mais de 50 anos.

    Esta conversa surgiu no Dia do Trabalhador, e desenvolveu-se para a realidade do mundo laboral e dos self made billionaires como Bezos ou Musk. Nós, sociedade em geral, partimos quase sempre do princípio que é legítimo uma empresa acumular os lucros que conseguir e distribuí-los como bem entender.

    Pois eu não acho.

    A razão por que Bezos tem dinheiro de sobra para ir ao espaço, numa nave em forma de falo, é, entre outras, os salários e condições de trabalho que proporciona em muitos dos seus armazéns. O mesmo se passa entre os milionários portugueses, sejam eles donos da Jerónimo Martins ou da Sonae. A acumulação de lucro é feita nas e às costas dos trabalhadores e dos seus baixos salários.

    Há algum problema com o lucro? Não.

    Deve uma empresa ser gerida para a bancarrota? Não, claro que não.

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    Mas torna-se pornográfico quando entre o CEO e o trabalhador de base vão centenas de salários mínimos de diferença.

    Qual é a vergonha de dizer isto? Qual é o problema de exigir uma justa divisão da riqueza gerada?

    Por acaso os produtos do Continente criam-se e vendem-se por ordem divina? Não são resultado do trabalho de milhares de pessoas? Então que sentido faz a CEO ser aumentada em quase meio milhão de euros e a funcionária de caixa receber 700 ou 800 euros?

    No fim da história é, hoje e sempre, uma questão de opção. Em 2008 trabalhei numa empresa onde o chefe de departamento, graças ao trabalho de 160 como eu, recebeu um bónus enorme. Ele, que poderia ter comprado uma casa ou um barco, pegou no bónus e levou-me, com os outros 159, para um fim de semana em Budapeste com tudo pago.

    Teria ficado mais rico com aquele bónus? Certamente. Mas faria isso uma enorme diferença numa vida onde toda a base da pirâmide e das necessidades básicas está mais do que preenchida? Provavelmente não.

    É esta parte que decididamente não compreendo. A facilidade com que aceitamos ser explorados e nos resignamos ao “pouco é melhor do que nada”.

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    Em 2017 disse, ao meu chefe de então, que estava cansado de trabalhar para deixar na empresa mais de metade do lucro produzido. Exigi fatia justa daquilo que era gerado por mim. No meu ramo de actividade tudo isso é facilmente quantificável, porque os nossos serviços são vendidos a um preço por hora [bem, dito assim até parece que o escritório é na recta de Coina; enfim, o pessoal da margem sul entenderá].

    Andei uns bons 10 anos a encher a mala a multinacionais sem que o esforço de estar longe de casa fosse verdadeiramente compensador. Fartei-me e despedi-me. O meu empregador de então ainda me ameaçou com um processo em tribunal por perder o contrato com o cliente da altura (Volvo), uma vez que eu me recusava a continuar a trabalhar para ele.

    Curiosamente, de tudo o que tentou para me manter a trabalhar, entre tribunais e listas negras em empresas de engenharia, nunca pensou em dividir o bolo das receitas. Os custos operacionais, o carro dele, o escritório dele, o cartão de crédito dele, o salário dele, tudo o que mantinha o CEO como CEO era mais importante do que a restante ralé, onde obviamente eu me incluía, já na casa dos 40 anos.

    Quando me vim embora – aliviado, mas um pouco sem saber o que fazer –, acabei por me juntar a uma empresa muito pequena, gerida por um amigo de longa data que escolheu entrar no ramo por conta própria. Optou por um modelo de gestão onde 80% dos lucros gerados vão para os trabalhadores. Não ficou rico, mas saiu do pior bairro de Gotemburgo, onde vivia, e mudou-se para uma zona boa da cidade.

    Todos os que ali trabalham ganharam a liberdade de negociar a venda da sua força de trabalho, e todos, sem excepção, melhoraram as suas condições de vida. Em jeito de brincadeira, digo-lhe sempre que, para quem chegou aqui num C130 a fugir à guerra, não está mau.

    Portanto, sim, é uma opção, a de querer ser milionário à custa do trabalho dos outros – ou a de, sempre que possível, contribuir para o aumento da classe média.

    A ganância da concentração de recursos em meia-dúzia de pessoas é que destrói a sociedade, não é um trabalhador querer viver de forma confortável com o resultado do que produz. Perceber isto é metade do caminho. A outra metade é parar. Parar tudo. Até que se perceba que é o trabalhador que gera lucro, e não o contrário. Pode ser que aí possamos aspirar a essa utopia de uma classe média para todos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ¿Por qué no te callas?

    ¿Por qué no te callas?


    Estava a preparar um texto do Primeiro de Maio, a pensar no Elon Musk, enquanto dois comentadores debatiam na CNN Portugal os próximos passos nas relações com a Rússia.

    Não conheço nenhum, nem os seus nomes me parecem aqui relevantes, mas senti magia nas palavras de ambos. Um dizia que tinha sido um erro a União Europeia ter criado uma dependência energética da Rússia. Acrescentou que “pensámos que, com as relações comerciais, a Rússia se tornaria numa democracia, mas estávamos errados. Temos que escolher parceiros mais fiáveis para o futuro”.

    Há aqui uma verdade absoluta. Dependência energética é má, concordo. Seja de quem for. E pela quantidade de fichas que metemos nos carros eléctricos significa que, em princípio, continuamos sem perceber o essencial.

    Mas gostei da parte onde perceberam que a democracia na Rússia afinal é fraquita. Quando distribuíamos Vistos Gold, a torto e a direito, pelos russos, correndo com os lisboetas para Corroios, o Kremlin era uma Assembleia Grega. Se a coisa avança e os chineses vêm em auxílio do Vladimir, ainda arriscamos ver algum quadro da EDP a dizer: “mas então, esta democracia não era das nossas?”

    Melhor ainda foi a frase de “temos que ir atrás de parceiros mais confiáveis”. É que a União Europeia virou-se entretanto para a Arábia Saudita e para o Qatar. Alguém sabe que partido ganhou as últimas autárquicas em Doha? Fiquei com a sensação que tinha sido o Al-Mesmo-de-Sempre, mas não sigo com acuidade a política do Golfo Pérsico. Já em Riade julgo que o novo presidente da autarquia também não gosta de bicicletas: parece que o chicote que leva à cintura prende-se nos raios.

    Gosto desta conversa das democracias à la carte. Os mujahidins foram, na década de 80, para a Time, uns freedom fighters – esta, por acaso, dava para aprender no Rambo III. Já no início do século XX passaram a terroristas.

    A Ucrânia era, até há uns meses, um estado corrupto sem os mínimos para sequer se candidatar à União Europeia. Hoje, já é uma democracia sólida. A Rússia largou o comunismo há várias dezenas de anos – há quem defenda que já vai em quase um século –, mas é hoje o invasor comunista.

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    A Líbia era uma ditadura, e quando o petróleo passou para mãos francesas deixou de existir nas notícias, apesar de viver numa anarquia há uma década.

    O que eu não percebo nestas análises é o porquê de termos que reescrever a História para justificar as nossas análises. Putin sempre foi um extremista que alimentou os fascistas europeus. Não é comunista, nunca foi. Não quer democracias. Terá sonhos imperialistas, acredito. E sempre foi isto. Quando sorria ao lado da Merkel, quando apertava a mão do Obama, ou quando fazia investimentos por toda a Europa e África.

    Então, ninguém queria saber se Putin roubava os recursos do seu próprio país a favor dos oligarcas, desde que, lá está!, o gás corresse para o lado certo. Ninguém apontou o dedo, ninguém questionou a democracia.

    Portanto, façam lá o favor, agora, de não serem uma cambada de hipócritas. Putin já foi isto na Geórgia, na Chechénia, na Crimeia. E ninguém quis saber. Não suporto virgens ofendidas consoante o drama do momento.

    Há nesta guerra um invasor e um invadido. Não há dúvida disso. Mas façam-me o favor de não criarem uma realidade que nunca existiu, na Rússia ou na Ucrânia. Na RTP3, ouvi Inês Pedrosa afirmar que o Batalhão Azov não era uma milícia nazi. Quer dizer, para negarmos a narrativa de Putin – que a Ucrânia é governada por nazis, o que é obviamente falso –, caímos no outro extremo que é o de transformarmos nazis em freedom fighters. E eu já disse que não me choca ver nazis na defesa de um país. Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas por favor, parem de pintar quadros alternativos. Torna-se insuportável.

    sunflower field under blue sky during daytime

    A outra senhora que comentava na CNN Portugal dizia, por sua vez, que, como prioridade, tínhamos que avançar para o armamento dos países europeus. A ideia é a de nos prepararmos para o que aí vem. Já com a Suécia e a Finlândia no grupo e, a propósito, depois de caças russos terem passado aqui por casa hoje.

    Pergunto a esta senhora, até apelando à sempre discutida igualdade entre os sexos: vestirá ela um colete, empunhará uma arma e virá, com todos os restantes, homens em idade de combater, afundar-se nas trincheiras e dar o corpo às balas?

    Ouço todo o santo dia conversas de “vamos a eles” que me arrepiam, tal é a facilidade de lidar com balas, morteiros, mísseis e, quiçá, um ou outro cogumelo atómico. Eu não sei se andam a aprender história no Rambo III, ou como sobreviver a bombas nucleares com frigoríficos no Indiana Jones IV, mas acreditem que, neste caso, o filme não acaba no Air Force One com o Harrison Ford a esmurrar o árabe e a bradar, triunfantemente, get out of my plane. Será coisa para aleijar um pouco mais, garanto-vos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Luís Montenegro, um acidente no horizonte

    Luís Montenegro, um acidente no horizonte


    A insónia é a minha pior maleita. Reza a lenda que começou aos dois anos, e deduzo que me acompanhe até ao descanso final. Ontem, em mais uma dessas noites, resolvi ver o que passava na RTP3 já para lá da meia-noite, na hora local do meu estimado Ártico.

    Vítor Gonçalves, na sua “Grande Entrevista“, tentava colocar umas questões relativamente simples a Luís Montenegro, um dos candidatos à travessia do Saara em patins nos próximos quatro anos, também conhecida por “liderança do PSD”.

    Questionava o bom do Vítor sobre a linha vermelha que entalou Rui Rio. “Então, e o Chega? É desta que alguém nos diz um sim ou não?”. Montenegro passou os minutos seguintes a elaborar uma tese que daria para apresentar na defesa de José Sócrates. Infelizmente, não respondia era à pergunta…

    Luís Montenegro em entrevista conduzida por Vítor Gonçalves na RTP3, em 27 de Abril passado.

    O Vítor tentava agora o gancho, e o Luís esquivava-se novamente, com um bom jogo de pés, dizendo que “não vou perder mais tempo com essa conversa que, no fundo, é fazer um frete ao PS”.

    O entrevistador, sorrindo, dizia-lhe que, “em vez de divagações tão longas, poderia reduzir o tempo dizendo apenas um sim ou não”, ao que o amigo Luís, ainda não satisfeito com o conforto do buraco cavado até ai, acrescentou “mas não é uma resposta de sim ou não!”.

    Oh Luís!, oh Luís!… é pois! Se te perguntassem, por exemplo, se a pizza deve ser comida com talheres ou não, é que era uma resposta não binária. Terias um infindável número de factores a considerar.

    Estás a comer a pizza no sul de Itália e não queres levar uma chapada? Usas a mão.

    Estás num primeiro encontro romântico? Arriscas o garfo.

    A pizza vem a ferver, mas estás esganado sem hipótese de esperar? Metes as fichas todas nos talheres.

    A base é muito fina e quando pegas no pão cai-te tudo nas calças? Voltas ao garfo.

    Estás a comer com a tua mulher e és casado há 30 anos? Comes com a mão, em qualquer circunstância, porque já não tens nada a perder.

    Não sei se me estou a fazer entender, Luís. Às vezes sou um pouco limitado no uso da metáfora. Mas acho que percebes a coisa…

    Agora, quando nos perguntam diretamente: “ouve lá, gostas de fachos?”; nós, em princípio, dizemos que não. É mesmo daquelas questões em que não usamos o 50/50 ou a ajuda do público. Basta teres completado o 9º ano sem faltar às aulas sobre a década de 40. É só disto que precisas para responder à pergunta do pobre Vítor.

    A minha insónia piorou, aliás, porque comecei a ficar interessado, cada vez mais, na catadupa de disparates.

    Infelizmente, sou uma daquelas pessoas que contribui para o caos no trânsito, sempre que acontece um acidente. Não consigo parar de olhar quando vejo uma desgraça. Assumo. Ouvir o Luís nesta entrevista foi como estar na Segunda Circular às 6 da tarde num dia de chuva.

    E pensei com os meus botões que o legado de Rui Rio estaria, se calhar, bem entregue – e, provavelmente, com resultados eleitorais idênticos.

    Mas Montenegro não se ficou por aqui. Piscou o olho à Função Pública, dizendo ser preciso atrair talento com melhores salários. Segundo ele, uma técnica superior não pode levar para casa 900 euros. Fez-se a “hola mexicana” em casa de cada funcionário público, e, antes que se voltassem a sentar no sofá, esclarecia o Luís que era necessário contribuir para as nossas responsabilidades na NATO, os tais 2% destinados ao Ministério da Defesa, indo buscar dinheiro com uma “melhor gestão da Administração Pública”.

    “Por exemplo, na Saúde”, dizia ele, “podemos poupar muito dinheiro”. Nada contra evitar o desperdício da má gestão, contudo, todos os que andamos por cá desde o tempo do Cavaco que percebemos o politiquês da coisa. Entendemos que esta é a famosa conversa das gorduras do Estado, que levou a uma década de congelamento das carreiras, destruindo parcialmente o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública. Isto, claro, enquanto se continuou a salvar a banca privada.

    Não sei absolutamente nada do outro candidato à liderança do PSD para lá do seu nome, Jorge Moreira da Silva, do seu anterior emprego (OCDE) e da total recusa em estabelecer conversas com o Chega.

    Se não quiser também rebentar com a Administração Pública para desviar o dinheiro para os lobbies – sejam estes da banca, da construção ou do armamento –, já parte em vantagem nesta corrida.

    Não é que algum dia vá votar em qualquer um deles, mas, como se vê pela maioria absoluta e crescimento da extrema-direita, o país não ganha nada com um PSD de joelhos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial

    O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial


    Aqui há uns dias tive uma discussão com um amigo sobre o “estado da arte” na Ucrânia. Discussão não; um debate. É sempre bom lembrar que mesmo na maior das discordâncias ainda somos capazes de conviver e tolerar as opiniões alheias. Já não é mau para os tempos que se vivem, onde escolhemos odiar a cada divergência.

    Eu acho um erro continuar a armar a Ucrânia, ele acha que se deve “armar pela paz”. Como nos bombardeamentos de Belgrado ou nos ataques de Nagasaki e Hiroshima. Matar pela paz. Foi este o início de conversa, e o cabo das tormentas, que, julgo eu, divide a maior parte das opiniões.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Percebo a visão de continuar a armar a Ucrânia. Não o digo de forma irónica, percebo mesmo. Há um invasor; logo, temos que correr com ele. E para esta argumentação vou fugir ao whataboutismo abordado noutras crónicas. Vou ignorar todos os demais invasores a quem continuamos a estender a passadeira, consoante os interesses económicos do momento, e focar-me apenas no caso ucraniano.

    Se optamos por continuar a armar a Ucrânia temos duas saídas possíveis no pensamento.

    Ou acreditamos que os ucranianos, sozinhos, vão conseguir fazer o regime de Putin capitular. Ou então, alimentamos a escalada do conflito até a intervenção da NATO ser irremediável. Em qualquer um dos casos morrerão mais ucranianos e corremos o risco da utilização das armas nucleares. No segundo caso, deixamos de assistir à guerra pela CNN, já que entraremos num conflito global.

    Sempre que ouço o facilitismo com que se discute a escalada bélica, pergunto-me se os autores de tal discurso estão dispostos a sacrificar o seu estilo de vida, ou mesmo a própria vida, com as consequências de tais actos.

    Depois, para quem defende o armamento contínuo, esperando por uma rendição russa – lembremo-nos que, neste momento, o desequilíbrio de forças é de 10 para 1 –, é preciso lembrar que dois dos maiores exércitos do mundo (China e Índia) não só não condenaram a invasão como continuam a fazer negócios com a Rússia.

    Portanto, caso cheguemos a um conflito global, quem é que nos garante o lado em que ficarão indianos e chineses?

    landscape photography of trees

    Eu compreendo a solidariedade com um povo que sofre. Com todos, já agora. Só não vislumbro menos mortes com mais armas. É apenas isso.

    Isto leva-nos ao odioso da questão. E então, qual é a alternativa? Deixamos os ucranianos entregues à sua sorte?

    Ora, a não ser que de facto um exército estrangeiro vá para o teatro de operações, os ucranianos estão entregues à sua sorte. E com todos os erros de cálculo dos russos, com todas as perdas assumidas, com todo o material deixado a meio do caminho, são os ucranianos que estão a perder as famílias, a ver as suas cidades arrasadas e a perder o controlo do Este e Sul do país.

    Por mais injusta que possa ser a discussão com o inimigo e invasor, de que servirá chegar a essa conversa com um número de mortos maior?

    Ouvindo os jornalistas no terreno e os especialistas militares, tenho a sensação que estamos a assistir a uma viagem entre Lisboa e Porto. A dúvida parece apenas ser se lá chegamos rapidamente ou se optamos por dar a volta pelo Algarve. Quanto maior for o percurso, mais pesada será a factura na contagem de mortos e mais do território haverá para reconstruir.

    Sim, porque essa também é uma parte que convém não esquecer. Quando a poeira da guerra assentar e se enterrarem os mortos, Putin – ou o que sobrar do seu regime – estará isolado do resto da Europa (espero eu!) com os restantes amigos de França, Itália e Hungria, entre outros.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas a Ucrânia, com o FMI a bater à porta, terá um garrote financeiro por décadas. Os falcões da guerra lucram sempre duas vezes. Primeiro, com o ecoar da destruição provocada pelas armas; depois com a estridente azáfama dos camiões e das escavadoras.

    Em resumo, se continuarmos a enviar armas ninguém se sentará à mesa e com mais mortos, o regime de Zelensky ficará na mesma sem os territórios ocupados e com uma factura maior de reconstrução. É chegar ao mesmo sítio usando um caminho maior.

    Para as armas, que enviamos, servirem de facto para ganhar esta guerra, então temos que estar preparados, sem burocracias, para intervir. Nós, a tão famosa comunidade internacional.

    Na frieza do pragmatismo parece-me que, apesar de tudo, ainda são dois cenários bastante diferentes. Um leva à perda de parte de um território soberano. Com tudo o que isso tem de injusto para um povo – ninguém o discute. O outro, leva a um conflito mundial. Perdoem-me quando digo que, entre estes dois males, não pode haver dúvidas sobre qual o caminho a seguir.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje mais do que nunca, sempre!

    Hoje mais do que nunca, sempre!


    Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

    O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

    O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

    yellow ball on water during night time

    Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

    Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

    Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

    O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

    Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

    O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

    Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

    Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

    De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

    group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

    E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

    O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

    Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

    Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

    Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

    Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

    Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

    Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

    woman in black and white tank top leaning on wall

    O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

    E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

    E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

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    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem quer ser professor?

    Quem quer ser professor?


    Maria de Lurdes Rodrigues, actual reitora do ISCTE, num debate sobre o futuro da Educação na RTP, disse: “não sei como chegámos aqui, e nem quero saber, quero olhar para o futuro”. O “chegámos aqui” é a falta de professores, que existe hoje, e que se agravará ainda mais com o envelhecimento da classe.

    Também não sou grande coisa de memória, até escrevo temas para estas crónicas nos braços para não me esquecer passados cinco minutos. Ainda assim, deixo duas sugestões para início de conversa do “por que razão não temos professores suficientes hoje?”:

    1 – Pedir à Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que pergunte à Maria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação de governos PS. Podia ser que a segunda elucidasse a primeira que, hoje, parece sofrer de amnésia localizada. Como a do Salgado, mas com um livro de cheques mais modesto.

    2 – Porque as carreiras estiveram congeladas 10 anos e os salários são uma miséria?

    people sitting on chair

    A maior parte dos intervenientes no debate repetiram que, hoje, a carreira docente não é atractiva. Entre salários baixos, contratos temporários e colocações onde Judas deixou as botas (termo técnico), não são assim tantos os que sonham com essa vida depois de quatro ou cinco anos numa universidade.

    Isso seria um problema em qualquer parte do Mundo; logo, em Portugal, com o seu crónico atraso nos níveis de Educação, o impacto ainda é maior.

    Eu acrescentaria os problemas familiares provocados pela distância.

    Pouco acompanhamento dos filhos ou dificuldades de ter uma vida normal de casal. Um professor no século XXI é um nómada. Roda escolas na esperança de algum dia ficar efectivo algures.

    Passa 10 anos sem progressão salarial enquanto o custo de vida do país galopa ao ritmo das melhores capitais europeias.

    grayscale photography of two people raising their hands

    Os habituais detratores da Função Pública repetem até à exaustão que os professores apenas trabalham 35 horas, quando, é mais ou menos senso comum, que depois das aulas ainda têm mais umas horas pela frente para preparar matéria, fazer avaliações ou embrulharem-se em tarefas burocráticas.

    Um dos professores presente no debate dizia que as plataformas informáticas apareceram para substituir o papel e facilitar o trabalho administrativo, mas, numa medida muito portuguesa, estes continuavam a fazer tudo em papel, repetindo a informação que deixavam na plataforma.

    Faz-me lembrar a anedota do burocrata a quem pediram para reduzir o arquivo, e ele disse, convicto, para a secretária mandar tudo fora depois de tirar uma fotocópia. É algo muito nosso, precisamos de papel que valide outro papel. Não há “cloud” que safe este rectângulo à beira-mar plantado.

    Sou da opinião que professor e médico são as profissões mais importantes em qualquer sociedade civilizada. Um salva vidas, outro forma. E é por isso que não entendo muito bem como é que chegámos ao ponto de ser tão pouco atractivo ser professor.

    Esse é o primeiro passo para conseguir apenas aqueles que vêm na carreira uma terceira ou quarta opção, enquanto os melhores fogem para outros sectores de actividade. Se um bom professor forma milhares de alunos, um mau também os deixa mal preparados para o que se seguirá.

    Não há muitas voltas a dar a isto, e por muito que os sucessivos Governos fujam, a questão dos salários é crucial. As pessoas vendem a sua força de trabalho a troco de uma compensação financeira que se espera justa. Os professores não são diferentes.

    Por muita paixão que tenham pelo ensino e pelos seus alunos, também pagam contas. E ao fim de 20 anos de trabalho, divididos por não sei quantas escolas e concelhos, levar 1.200 euros para casa é um insulto. Especialmente se pensarmos que Portugal anda há 35 anos a receber subsídios e escolheu, apesar do seu diminuto tamanho, ceder ao lobby do betão e construir uma rede de auto-estradas como nenhum outro país europeu tem.

    Para se compreender as decisões dos sucessivos Governos, podemos pensar nas três auto-estradas que ligam Lisboa ao Porto. São 300 quilómetros com três opções rápidas. Noutro país daria prisão, em Portugal deu votos. No mesmo sítio onde se recusam a deixar um banco privado ir à falência durante 13 anos, aceitam deixar milhares de professores a recibos verdes ou com o mesmo salário anos a fio.

    people raising hands with bokeh lights

    Portanto, se não querem procurar os culpados do passado, como disse Maria de Lurdes Rodrigues, pelo menos não repitam os erros no futuro. Usem o Orçamento do Estado para o que ele serve, e comecem a pagar aos professores o que eles merecem. Não há dignificação da carreira docente sem salários de Primeiro Mundo.

    E aos professores que lutam por melhores direitos, façam um favor à classe: ponham uma guia de marcha ao Mário Nogueira. Os sindicatos são essenciais neste processo, e o Nogueira, ao fim de 20 anos sem entrar numa sala, é como um jacaré numa banheira. Só atrapalha.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.