Autor: Tiago Franco

  • As leis do empobrecimento

    As leis do empobrecimento


    Volto com alguma regularidade ao drama do Ruanda em 1994. Não é que o quotidiano não me preencha a quota de amarguras, mas há, naquele genocídio, uma lição sobre maiorias que, parece-me, vamos esquecendo com o passar das décadas.

    Não quero de forma alguma estabelecer comparações com um período da História de pura barbárie, embora queira aí recuar para pensar na saturação ou no rastilho que deu origem a uma das maiores catástrofes humanitárias do século XX.

    Resumindo uma história complexa: durante gerações, a minoria Tutsi foi utilizada pelos colonos (belgas) para controlar a restante população, maioritariamente Hutu. Uma situação de algum privilégio e acesso aos lugares de poder que se arrastou por décadas, até que a maioria se revoltou.

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    Não há nada que justifique o que ali aconteceu, e hoje o Ruanda não é propriamente um sítio melhor. Os Tutsies recuperaram o poder na guerra civil e, entre eleições fraudulentas e suspeitas de afastamento de opositores, Paul Kagame, antigo líder militar, está há mais de 20 anos na liderança do país.

    Mas a chacina aconteceu. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, e o desespero por condições de vida foram o rastilho. É aqui que nos quero transportar para a realidade europeia e, em especial, para a portuguesa.

    Bem sei que todos estes dramas nos passam um pouco ao lado, e dentro do continente europeu estamos habituados a alguma estabilidade. Mas agora, depois de dois anos e meio de absoluta loucura governativa com a covid-19, uma guerra que se alastrou – convém lembrar que a zona Este da Ucrânia está ao som de morteiros desde 2014 – , uma inflação a chegar aos dois dígitos e juros mais altos decididos pelo BCE, é justo de afirmar que boa parte da população portuguesa está em dificuldades.

    Num programa económico, não me lembro agora em que canal, explicava um analista, de forma pedagógica e em tom de conselho à população, o que poderiam fazer para aguentar o embate esperado dos aumentos das taxas de juro decididas pelo BCE (agora em Julho).

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    Em média, para créditos com spread actual a rondar os 1,5% e com os aumentos anunciados por Christine Lagarde, estima-se que por cada 150.000 euros de empréstimo, a prestação suba cerca de 100 euros.

    Não sendo economista, tento perceber, junto de quem sabe, o porquê destas medidas. Para mim, um simples e anónimo português, a pergunta que importa é esta: com um salário médio de 1.000 euros e 85% a levarem para casa menos de 900 euros líquidos, como é que se aguentam aumentos de centenas nas prestações bancárias?

    É esta a matemática simples que eu tento compreender.

    Normalmente levo com teorias do género “são as leias básicas da Economia, pá!”. Quais? Bom… se a inflação aumenta, tem de se aumentar também o juro para que fique menos dinheiro disponível para o consumo e, dessa forma, se reduza a inflação. Mas, pergunta minha, se a inflação (preços dos bens de consumo) aumenta, as pessoas não consomem menos porque perdem poder de compra?

    Em teoria sim, diz-me quem percebe disto, mas em Portugal está-se a verificar um fenómeno contrário, porque as pessoas acumularam algum dinheiro durante a pandemia.

    Por outro lado, acrescenta quem foi à escola ouvir falar disto, o banco não pode receber menos do que te emprestou e hoje o dinheiro vale menos. A forma de compensar é com a subida dos juros.

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    Volto ao meu bloco de notas e abro as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo que os portugueses tenham gastado menos daqueles fabulosos 900 euros mensais ao longo de um ou dois anos, quanto é que poderão ter poupado? O suficiente para umas férias? Mais jantares com bifes proibidos pela Jonet? Ou estão todos a comprar iates no Mónaco?

    De que nível de poupança estamos a falar? Com este nível de rendimentos não me parece que sejam sacos e mais sacos de arame, como lhe chamava Mário Soares.

    E sobre o dinheiro valer menos hoje, e a banca ter que ser compensada, confesso que começo a sentir algum fumo no emissor do meu transístor por onde passa a corrente. É que, vam’lá a ver, a banca portuguesa recebe dinheiro desviado dos impostos há mais de uma década. Pega nesse dinheiro e empresta-nos com juro. Portanto, nós pagamos duas vezes a mesma coisa, ou três, se contarmos com os prémios de gestão ao fim do ano. E agora, numa altura de óbvio embate, somos nós que voltamos a meter a pele.

    Eu compreendo o cenário de catástrofe: dois anos de pandemia, com o Governo a endividar-se para pagar confinamentos, layoffs e até vacinas em barda a farmacêuticas que, lembrem-se, nunca abriram as patentes. Portanto, a factura da covid-19 – depois dos lucros pornográficos dos laboratórios, farmacêuticas e empresas de bens de primeira necessidade/entregas online –, chegou e será entregue a quem as costuma pagar: os trabalhadores por conta de outrem.

    Em cima disto, metemos a guerra na Ucrânia e mais 2% do Orçamento de Estado desviado para políticas belicistas. Somamos o mercado liberal de combustíveis – que, afectado ou não pelo petróleo russo, aproveita para recuperar o que não ganhou quando todos estavam em casa. Aumento esse, no caso português, mesmo com a redução de impostos, o que é algo de extraordinariamente abjecto, e a confirmação do cartel petrolífero que usa e abusa da lei que lhes dá poder para decidirem tudo, sem qualquer regulação governamental.

    Ah… e quase que me esquecia: ainda temos que ter em conta a total desregulação do mercado imobiliário e o elevado endividamento das famílias portuguesas. Isto porque, claro, insistem em não viver debaixo da ponte, o que também não se compreende.

    Portanto, chegados aqui, e com esta bomba-relógio em ponto rebuçado, dizem-nos que temos de aumentar ainda mais o custo de vida. Porquê? Porque é uma lei da Economia, estúpidos. Mesmo sabendo que oito em cada 10 famílias podem vir a passar ainda por mais dificuldades, e muitos terão de entregar casas, mas, caso não percebam, é para o vosso bem.

    Dou comigo a pensar nisto, e a ver o comum português que trabalha de sol a sol para pagar contas, enquanto acumula aquela fortuna que lhe dá direito a 15 dias em Agosto na Quarteira.

    Que culpa tem este gajo dos confinamentos? Ou das ajudas à banca? Ou da invasão da Ucrânia? Ou das sanções impostas pela União Europeia? Algum de nós foi tido ou achado nesta merda que andamos a viver desde 2020? Não.

    O nosso papel é abdicar de liberdades básicas em nome não se sabe bem de quê, ou, em alternativa, pagar a conta.

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    Temos que andar a reboque e a empobrecer por decisões de uma minoria, algumas comprovadamente erradas e prejudiciais.

    Bem sei que, em democracia, elegemos outros para decidirem por nós, mas tudo tem um limite e, no fim das contas, a resistência de um povo à adversidade imposta pelo poder tem um tempo.

    Se forem três ou quatro que percam este ano a ida à Quarteira, enfim, a coisa faz-se. Se forem umas centenas sem casas, actualiza-se uma tabela de pobres do INE, e vamos para fim-de-semana. Mas se forem uns milhões a caminhar para a pobreza, a entregarem casas e a ficarem ainda mais desesperados, não pode o cenário ficar ligeiramente mais sombrio para quem nos governa?

    É que quando justificamos a pobreza de milhões com leis da economia, eu lembro-me sempre da afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, no jornal da TVI, nos tempos de comentador a propósito da careca descoberta no BES e da primeira intervenção estatal. “Mas está a brincar?”, disse ele para o pivot, “já imaginou o perigo de risco sistémico se não ajudássemos o BES?”. Aí está, outra lei da Economia que em 2008 nos disse o que fazer. Parece-me óbvio, 14 anos depois, que foi bom segui-la.

    Se a história dos nossos dias fosse o capítulo de um livro, com este enredo em que a população perde direitos, liberdades, condições de vida e boa parte do seu sustento no espaço de dois anos e meio, eu esperaria que o capítulo seguinte se iniciasse com uma revolução.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O fado dos rankings

    O fado dos rankings


    Adoramos um ranking que fale mal de nós. É a altura perfeita para nos deprimirmos um pouco mais e praticarmos o desporto nacional de lançamento da culpa. Se vem “lá de fora”, então deve ser verdade.

    Ainda me lembro dos gritos moralistas do “comprámos muitos LCDs e carros a crédito” quando o FMI nos assegurava que a nossa Economia valia “lixo”, e isto porque, durante anos, vivêramos acima das nossas possibilidades.

    Entretanto, o Air Help – um site alemão que vive da gestão das queixas de passageiros em trânsito aéreo – publicou um ranking onde o aeroporto de Lisboa surge classificado como o pior aeroporto do Mundo. Alguma imprensa portuguesa fez o alarido catastrófico do costume, e nós, naquela falta de orgulho tão nosso, lá fomos em coro dizer que sim, que obviamente a Portela era o pior aeroporto do Mundo.

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    Este tipo de “estudos” – o seu valor e a forma como a discussão fica pelas gordas – é algo que sempre me irritou. Já agora, também em sentido inverso, me irrito quando, ano sim, ano não, Lisboa ou Porto ganham os títulos turísticos dos “melhores destinos do Mundo”. Seja lá isso o que for…

    Nós somos o povo que descobriu os caminhos marítimos para o Mundo, mas que, em simultâneo, rebentamos de orgulho com o cão-de-água português dos Obama.

    Curiosamente, ninguém discutiu esse ranking para lá de Lisboa. Eu fiquei curioso e fui cavar mais um bocadinho.

    Quando Lisboa é classificada como a pior em qualquer coisa do Mundo, sabemos imediatamente que o problema deixa de estar na cidade e passa a estar na classificação.

    Nada, absolutamente nada em Lisboa, nem sequer as obras deixadas pelos pombos nas estátuas, são as piores do Mundo. Quem vos disser o contrário é porque nunca saiu do Prior Velho.

    Há desde logo uma curiosidade interessante. Nos “20 piores aeroportos do Mundo” estão, para além de Lisboa, também Dubai, Porto, Frankfurt, Paris (dois aeroportos), Londres (dois aeroportos), Edimburgo, Dusseldorf, Newark, Manchester e Malta.

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    Conheço-os quase todos, e por isso vos digo: para aeroportos como Frankfurt, Porto, Dubai ou Gatwick estarem sequer perto de uma cauda seja do que for, o standard mundial teria que ser uma ficção qualquer do Stanley Kubrick com muitos móveis retro e lacados brancos.

    Quando reparei neste top 20, confesso que a credibilidade deste ranking estava para a aviação como o Miguel Relvas para a Academia.

    Fui então ver a metodologia utilizada no “estudo” da Air Help. Sim, admito, há dias em que tenho muito tempo livre e uma vida triste.

    Portanto, verifiquei que eram excluídos todos os aeroportos onde não fosse possível recolher informação, e eram incluídos apenas os “mais conhecidos e mais utilizados”. No “ranking mundial” estavam assim, afinal, apenas 132 aeroportos dos cerca de 42 mil existentes no planeta. Atenção: dados da CIA, só para não pensarem que os fui contar ao Google Maps.

    Ou seja, a Air Help recolheu informação em 0,3% dos aeroportos e fizeram um ranking mundial. Foi isto que deu as parangonas e a discussão em Portugal. O equivalente a um ranking de medalhas numas Olimpíadas disputada apenas por um país.

    Além disso, 80% dos critérios de avaliação referiam-se a atrasos nos voos e ao tempo para passar a segurança. Portanto, aeroportos com mais tráfego e menos pistas, tinham maior possibilidade de irem para a cauda do “Mundo”.

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    Dizia um leitor qual alguma piada: “a sanita é um buraco no chão? Não? Então não é o pior aeroporto do Mundo”. Fiquei curioso de saber por onde andou ele a voar.

    Para que serve então, para lá do clickbait e de alguns ódios virtuais, este estudo da Air Help? Para nada. É a Portela o pior aeroporto do Mundo? Não, nem por sombras, por mais atrasos que a única pista disponível nos traga.

    Assim sendo, como corolário, porque discuto um estudo sem relevância em tom de irritação?

    Também não sei. Mas gostava.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Johnny Depp por umas horas

    Johnny Depp por umas horas


    Dos vários espectáculos degradantes que a vida nos vai proporcionando, o pior dos flagelos será a rentabilização da desgraça alheia. Nesse em particular, a cultura norte-americana é dona e senhora de um estatuto único no planeta.

    Não há nada, por mais desinteressante ou abjecto, que não possa ser transformado em espectáculo para entretenimento das massas. Tudo – menos um livro, vá – serve para massajar o cérebro de uma sociedade cada vez com maior acesso a informação em tempo real, mas, aparentemente, mais estúpida.

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    Confesso a minha estupefacção pelo interesse mundial que gerou um divórcio e as suas sequelas. As horas de directos a partir do tribunal, os rios de tinta sobre a toxicidade do casal, as claques que juravam conhecer a verdade, tudo e um par de botas sobre um simples divórcio entre uma estrela planetária de Hollywood e uma senhora que entrou no Aquaman.

    Antes que me acusem de sexismo, explico a frase anterior. Eu não sabia quem era Amber Heard até a ver num julgamento transmitido em direto.

    Johnny Depp julgo que será conhecido na ilha mais remota da Amazónia, pelo que, com alguma segurança, afirmo que será uma cara mais conhecida que a do papa. E espero, com isto, não ofender cristãos.

    Nos dias que correm, ao escrever uma linha, temos de pedir desculpa na seguinte.

    Ainda assim, com uma estrela mundial no palco, não consigo entender como é que um divórcio é tema de conversa para milhões. Num mundo cheio de lixo até às entranhas, onde ainda se morre de fome e a guerra se espalha por quatro continentes, discutimos apaixonadamente, e com certezas absolutas, as quezílias do divórcio de dois milionários. Sim, porque se fossem pobres, e se espancassem com mocas de pregos, ninguém queria saber.

    Sendo assim, se nada disto me interessa, perguntará o leitor porque estou a requentar o tema?

    Porque, no meio do chavascal, há um e um só detalhe que me interessa, com o qual me sinto representado e que, julgo eu, se aplica a qualquer mortal no planeta. Mesmo aqueles que nunca estiveram nas Caraíbas e nem chegaram a piratas.

    E é este o detalhe: o direito a não ser difamado.

    Não sei se já alguma vez passaram por um tribunal e tiveram que ler folhas e mais folhas contando-vos, por interposta pessoa, quem afinal vocês eram. Usando frases fora de contexto, textos escritos com amor para um filho, acções desesperadas de defesa, coisas que não fizeram, afirmações que não vos pertenciam. Tudo misturado num bolo para provar, num tribunal de estranhos, que vocês afinal são outra coisa que até ali não conheciam. Sem uma única prova palpável, mas com um chorrilho de intenções, planeadas e executadas ao detalhe.

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    Contando que a sociedade, apenas porque sim, apoiasse uma queixosa quando ela diz que o homem é o culpado de todos os seus problemas e um empecilho ao curso da sua vida. Alguém que deve ser afastado, de tudo e de todos, especialmente de um filho, para bem do menor. Alguém que pode até ser perigoso.

    E porquê? Porque uma mulher o afirma. Se não passaram por isso, devo dizer que não recomendo. Não tem o glamour de Hollywood e deixa marcas para a vida.

    Amber Heard escreveu um artigo no Washington Post onde, pelas suas palavras, deixou um rasto de suspeição sobre Johnny Depp. O facto de ser uma figura pública à escala mundial, fez o resto. Perdeu contratos, trabalho e ganhou ódios. Se fosse um de nós, teria sido apenas difamado; como era o Johhny Depp, passou a andar com um alvo nas costas.

    É-me absolutamente indiferente quem mente mais, quem era mais tóxico ou que transacções financeiras resultaram daqueles arranjos. Há milhares de divórcios por dia. Dizem-me todos eles o mesmo que o do Johhny Depp e da Amber Heard: nada. A falência de uma relação entre dois seres-humanos é privada, íntima. Deve ficar entre quem passa por ela.

    Já a difamação não. A difamação é pública, pensada, estruturada, objectiva.

    Quem a faz tem um objectivo. Pode ser o de conseguir uma indemnização, a custódia de um filho, mais uns seguidores para o #metoo, a simples destruição de uma vida alheia. É essa a parte da sentença que me interessa. Aquela que afirma que a dignidade de alguém não pode ser posta em causa só porque sim. Que não podemos destruir a imagem do outro para benefício próprio. Que não podemos acusar sem provas e que opinião não é sentença. E, principalmente, que a justiça se obtém num tribunal e não numa folha de jornal ou em likes do Instagram.

    Nessa e só nessa parte deste julgamento, digo com algum alívio, voltámos a ganhar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!

    O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!


    O dia em que Portugal seria elogiado pelos parceiros europeus por outra coisa que não sol, mar, comes e bebes, haveria de chegar. E chegou!

    A União Europeia felicita Portugal pela primeira posição no crescimento previsto do Produto Interno Bruto (PIB) na Zona Euro: 5,8%. Só para terem uma noção da tareia que vamos dar nos outros; no que toca a previsões, alemães e escandinavos nem aos 3% chegarão.

    Mal acabei de ler a notícia comecei aos saltos, e tive alguma dificuldade em conter a emoção. Bati com umas panelas, meti o Poeira da Ivete Sangalo aos berros e gozei com os meus vizinhos suecos. Finalmente, vamos crescer economicamente, meter este pessoal a comer o nosso pó do progresso, e ultrapassar a Lituânia, Estónia, Eslováquia e todos os outros que aparecem nos cartazes da Iniciativa Liberal.

    10 and 20 banknotes on brown wooden table

    Finda a celebração, limpei o suor da testa e sentei-me a fazer contas, só para perceber se mandava vir um Ferrari ou se teria que me contentar com um Mustang.

    O primeiro cálculo deu-me a sensação de que iríamos continuar pobres, o que só poderia ser falha minha. Contactei uma economista que conheci poucos dias depois de nascer. Eu; ela já por cá andava.

    Para não parecer muito idiota fui navegar na imensidão de dados que o Instituto Nacional de Estatística (INE) nos disponibiliza. Só para ler aquilo, uma pessoa tem de tirar um curso em Matemática Aplicada. Pelos últimos dados disponíveis (de 2020), 40% das famílias declararam menos de 10.000 euros de rendimentos anuais, ou seja, ficaram isentas. No universo de cerca de 5,5 milhões de trabalhadores, temos 86,5% dos agregados que levam para casa (cada elemento do casal em média) menos de 1.000 euros líquidos.

    Ou seja, numa aproximação mais simples, em cada 20 trabalhadores portugueses, 17 vendem o seu mês de trabalho por menos 1.000 euros líquidos. Numa realidade sueca isto seria o equivalente a ter 86.5% da população a viver com subsídios de estudante.

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    Por outro lado, menos de 1% dos agregados conseguem um salário bruto, por cabeça, igual ou superior a 3.500 euros, o que representaria menos de 3.000 líquidos. Ou seja, apenas 0.9% das famílias portuguesas têm um rendimento parecido com aquele que, a tal Europa mais rica que agora nos elogia, aceita como mínimo.

    Durante a pandemia a população portuguesa empobreceu – tínhamos cerca de 20% no limiar –, alguns empregos desapareceram e a dívida externa do país aumentou para pagar os custos do confinamento, dos lay-offs e dos apoios ao comércio/actividades encerrados. É por isso de esperar que os rendimentos das famílias tenham piorado.

    Junta-se a isto o anúncio do aumento nas taxas de juro e percebe-se facilmente que, com os salários declarados, 80% da população portuguesa não conseguiria comprar uma casa no centro de Porto ou Lisboa, aos preços de hoje.

    De onde vem então o milagroso crescimento do PIB? Segundo alguns economistas, essencialmente do consumo interno. Mas este aumento do consumo interno não se deve somente a um aumento do consumo de produtos e serviços, mas também ao aumento dos preços. Portanto, à inflação.

    green tractor on brown grass field under blue sky during daytime

    Mas vamos assumir que com o fim das restrições, o consumo aumentou, as pessoas voltam a sair de casa e os lucros já não vão apenas para os supermercados e bens de primeira necessidade.

    A vida volta ao normal – pelo menos para a fatia da população que conseguiu manter os seus empregos e o nível de vida. Há ainda a “bazuca europeia” que permitirá uma boa dose de investimento público. Ou seja, com mais pobres do que em 2020, com aumento da dívida externa (a “bazuca” não é grátis) e com a perda do poder de compra (por causa da inflação galopante), o PIB português crescerá.

    Que diferença isto trará à fatia de pessoas que depende do seu salário – especialmente daquelas que, apesar de trabalharem 160 horas por mês, não conseguirem abandonar a faixa de pobreza? Nenhuma. Zero.

    Algumas clientelas vão receber fatias da “bazuca”, mas, no essencial, o português comum continuará a fazer contas para esticar o salário até dia 25 do mês seguinte.

    Pelo meio dão-se ao luxo de um ou outro jantar fora, quem sabe uma volta ao Algarve e está feito. O PIB dispara.

    Champagne pouring on glass

    Entretanto, o combustível subirá amanhã pela 18ª vez – décima oitava vez – em seis meses, recuperando assim tudo o que não se vendeu durante a pandemia. Isto apesar da descida dos impostos, provando que o liberalismo dos mercados é um embuste e um apelo aos cartéis. E a Galp Energia obteve um resultado líquido de 155 milhões de euros no primeiro trimestre de 2022, que comparam com 26 milhões de euros do período homólogo.

    Bendita Ucrânia de costas largas.

    Enfim, estamos mais pobres, mais endividados e mais longe dos centros urbanos. Mas o PIB cresceu. Comemoremos, pois, mas com espumante. Champanhe é só para 0.9% dos portugueses.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A razão de um escroque

    A razão de um escroque


    De repente Henry Kissinger falou e o Mundo parou para o ouvir. Por princípio, tenho alguma alergia quando se destacam opiniões de assassinos, e se valorizam as ditas dos ditos. O tempo não apaga a “Operação Condor” nem os milhares de mortes que Kissinger tem no curriculum vitae.

    O problema, neste caso, é que de facto Kissinger deu uma das saídas possíveis para a guerra na Ucrânia. Para eu engolir o sapo e continuar a escrever, vou apenas pensar que até um relógio parado acerta duas vezes por dia.

    Digo que deu uma das saídas porque, obviamente, não é a única. Mas é algo que merece discussão.

    low angle photo of flag of U.S.A

    A sugestão de Kissinger não é popular e, de uma forma geral, foi arrasada pelos nossos opinadores de serviço, o que se compreende. Por que razão deveria a Ucrânia ceder parte do seu território? Não há nenhum motivo para que um país invadido aceite perder território como moeda de troca para o fim do conflito, certo? Mas é uma das consequências das guerras, das invasões, dos conflitos, das operações especiais. Do que lhe quiserem chamar.

    Quando a Sérvia perdeu 20% do seu território a favor da minoria albanesa, a Europa aplaudiu. A NATO bombardeou Belgrado e o Kosovo nasceu. Se a memória não me atraiçoa, Rússia e Espanha foram dos poucos países que ficaram ao lado da Sérvia, o que não admira. Na altura lidavam com gritos semelhantes vindos da Chechénia e Catalunha, respectivamente.

    Contudo, a União Europeia de hoje não aceita um novo Kosovo no Donbass. Eu estava contra na altura (da perda de território da Sérvia), e, portanto, mantendo a coerência, estou a favor agora da manutenção do Donbass pela Ucrânia.

    Reparem que há anexações/disputas de território um pouco por todo o lado. Da Palestina à Arménia, da Abecásia à Índia, de Marrocos ao Curdistão. Da Somália a Gibraltar. Fazem parte, infelizmente, da História dos Povos. Hoje e sempre. A hipocrisia está naqueles que nós elegemos como importantes.

    A União Europeia não mantém a coerência porque não se mexe por convicções. Mexe-se por interesses – próprios em termos económicos e ditados pelos Estados Unidos na parte bélica. Neste caso importa aos Estados Unidos manter a guerra em território ucraniano. Dito e assumido pelo secretário de Estado da Defesa – portanto, já não é tema para debate. É um facto.

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    Não seguindo a teoria de Kissinger restam-nos, portanto, duas hipóteses: ou os russos retiram e fingem que isto nunca aconteceu, pouco provável diria; ou, para além de dinheiro e equipamento militar, a comunidade internacional envia as tropas e avançamos para Moscovo.

    Estamos preparados para isto? Para uma III Grande Guerra assumida? Digo assumida, porque acho, para ser sincero, que o envolvimento da União Europeia e da NATO é tal que já não se pode afirmar que esta guerra é apenas entre Rússia e Ucrânia.

    Julgo que não. Os Estados Unidos vão usar os ucranianos enquanto derem jeito, e, cedo ou tarde, dirão a Zelensky para se calar. As promessas cairão no esquecimento, como o passado nos explica (Curdos no Iraque, lembram-se?), quando os interesses terminarem. Ou seja, quando os russos estiverem suficientemente desgastados para não arrastarem um fuzil nos próximos 20 anos.

    Nessa altura Zelensky deixará de ser esta estrela que entra em direto nos parlamentos e festivais de cinema, para ser mais um com uma mão cheia de nada para apresentar e um país em chamas para reconstruir.

    Clara Ferreira Alves disse que, neste momento, o líder ucraniano seria um entrave às negociações de paz por causa da ilusão criada com o apoio internacional. Não diria tanto, mas que, aos poucos, o tema parece começar a desinteressar a cada vez mais, julgo ser óbvio.

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    Continuo a pensar nos milhões de deslocados e nos milhares de mortos. Peões no xadrez de um lunático russo e de comediante ucraniano que, três meses depois, continua a acreditar nas promessas do exterior. Em sinceridade, a União Europeia não quer a Ucrânia como parte integrante dos 27 – não está sequer perto de cumprir os requisitos – e a NATO nunca imaginou aquele território como parte da Aliança. Mas ambos vendem sonhos a Zelensky, que, por sua vez, vai mudando o discurso consoante o armamento que lhe chega.

    Já disse que não pensaria na NATO nos próximos 15 anos. Já afirmou que queria negociar e arranjar um estatuto para o Donbass. Agora só aceita retirada total e devolução dos territórios, incluindo Crimeia. Compreendo que seja o que qualquer ucraniano quer ouvir, mas, pergunto-me, o que andarão a vender a este pobre rapaz? Que promessas fará Biden a Zelensky?

    A não ser que uma revolução popular russa termine com a guerra, e com o reinado de Putin, eu não acredito que uma saída desta guerra não implique perda de território pela Ucrânia.

    E também detesto ter que dizer isto: desta vez, o escroque do Kissinger tem razão.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Milhazes: breve manual da tradução

    Milhazes: breve manual da tradução


    Não sou grande agricultor, e percebo pouco da poda, mas tentei comprar um tractor numa ilha dos Açores. Mal entrei na loja, o senhor avisou-me que o simpático Husqvarna custava agora mais 5%. Perguntei porquê, apenas para ter o momento retórico do dia. Há três meses que todos sabemos a razão oficial para o aumento de qualquer custo: a guerra. A nossa guerra, note-se. As outras nunca mexeram nos nossos salários.

    Educadamente, disse-lhe que algo falhava na equação. O tractor, feito a alguns quilómetros de minha casa, na cidade sueca que lhe dá o nome, terá por esta altura o mesmo custo de produção. Não há notícia de aumentos salariais de 5% na Husqvarna. A energia utilizada para o produzir não é fornecida pela Rússia, e, segundo sei, o metal também não vinha de Azovstal.

    yellow and black heavy equipment on green field during daytime

    O barco que o transporta para as ilhas portuguesas também não se move a combustível russo, e, logicamente, a pessoa que o tentava vender não terá recebido um aumento de 5% nos últimos 10 dias. Quiçá, nem nos últimos 10 anos.

    Esta conversa aconteceu poucos dias depois de nova redução salarial. A banca, as financeiras, as seguradoras, todas as componentes do mundo empresarial aproveitam a onda e sobem os custos operacionais. Porquê? Porque podem.

    Há uma desculpa válida e, embora não tenham de facto aumentos reais nos custos, todos aceitam a escalada de preços como natural. É o xico-espertismo na alta roda. Como é que as empresas aguentam o impacto? Simples, cortando nos salários dos trabalhadores.

    Uma repetição, em parte, do que aconteceu durante a pandemia da covid-19. Os governos enviaram as pessoas para casa e ajudaram à subida do desemprego, cortes salariais e aumento da pobreza.

    Talvez o problema seja meu, acredito que sim, mas começo a ficar cansado de pagar por decisões alheias.

    Bem sei que não podemos ver o mundo pela análise individual, mas, não tendo qualquer voto nas decisões conjuntas de confinar, de pagar impostos para preencher a quota de 2% para a NATO, de impor sanções económicas, iniciar ou prolongar guerras, resta-me aceitar cortes salariais regulares em silêncio. E claro, ir ouvindo todos os dias que A ou B aumentou o seu custo por causa da Ucrânia.

    É coisa que me aborrece, especialmente a 5.000 quilómetros de casa, quando dou por mim a trabalhar para pagar os dislates de velhos políticos com disfunção eréctil, e gosto por bombinhas.

    Em princípio aplicaria aqui a tradução do Milhazes sobre a guerra – algum dia tinha que dizer qualquer coisa de jeito –, mas tentemos manter o nível até ao fim do texto. Só para dar menos trabalho ao editor…

    Quando é que isto acabará? Aliás, como acabará? Nuno Rogeiro, que fala com Zelensky por interposta pessoa, segundo o próprio, diz-nos que a Rússia está a levar uma tareia. Não só falhou todos os objectivos como já perdeu um terço do exército. Vendo o entusiasmo com que faz aquele inventário dos carros de combate em chamas, eu fico sempre a pensar que os ucranianos estão quase a chegar a Moscovo.

    O meu problema é que depois vou à BBC e outros canais onde não perguntam nada ao Rogeiro e, para meu espanto, naqueles mapas cheios de setas, a área russa não pára de crescer.

    green wheat field under blue sky during daytime

    Devagar, devagarinho, mas a coisa parece estar a ficar mais ou menos consolidada no Donbass. E nem a conversa das mortes em barda no lado russo parecem abanar muito Putin.

    Aliás, os soviéticos que nos fizeram o favor de limpar os nazis em 45, tiveram mais mortos que todos os outros exércitos. Mas chegaram a Berlim. Portanto, com estratégia ou ao monte para cima das balas, os russos não costumam deixar o serviço a meio. Mas enfim, vou ver se consigo beber do mesmo sumo que o Rogeiro leva para o estúdio da SIC, para me animar.

    Chegados aqui temos que discutir a solução. Putin enquanto conseguir vender petróleo e gás, vai andando. Zelensky enquanto for recebendo armas e dinheiro da Comunidade Internacional, também. Pelo meio aparece Kissinger, o artista, a dizer que é boa ideia os ucranianos cederem território e os Estados Unidos não tentarem humilhar muito os russos.

    Como desatar este nó?

    Quanto ao tractor: ficou na loja.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De Uvalde a Mariupol, sempre a disparar

    De Uvalde a Mariupol, sempre a disparar


    Devo dizer-vos que 10 minutos antes de começar a escrever, não fazia ideia se Uvalde era marca de sumo de uva comercializada em baldes ou, em alternativa, uma aldeia perdida nos Andes.

    Dez minutos volvidos já sei várias coisas. Por exemplo, sei que na página 13, de entre as 192 que compõem o Orçamento Público, disponibilizado online, a pequena cidade rural de Uvalde, que afinal fica no Estado norte-americano do Texas, deposita na sua polícia 40% do seu argent.

    black and silver semi automatic pistol

    Pensando na frequência destas tragédias de mass shooting nos Estados Unidos, o país com mais armamento per capita do Mundo, lembro-me de dois argumentos que ouço recorrentemente. Primeiro, o clássico direito “à defesa pessoal”. Melhor, as tragédias que se evitariam se todos estivéssemos armados – sim, este argumento existe. Depois, e ainda mais elaborado, como mais espingardas podem contribuir para a paz.

    Só por má vontade é que não percebemos, todos, as vantagens de nos armarmos até aos dentes.

    Um amigo, acérrimo defensor da Segunda Emenda, diz-me que pela lógica do pensamento (anti-arma) também devemos proibir os carros porque há acidentes rodoviários. É uma forma simpática de comparar a necessidade de nos deslocarmos com a vontade de vivermos entre saloons e botas de espora. E digo simpática para não ofender ninguém.

    Curiosamente, a tecnologia evolui no sentido de evitar acidentes (no ar, terra e mar), e as leis, essas malvadas, contribuem para retirar da estrada os condutores que não estejam habilitados para tal.

    Mas as armas? Qual é a necessidade de um civil andar armado?

    boy in gray and green crew neck shirt holding white printer paper

    Dizem-me que é uma forma de nos protegermos. Ora… a escola em Uvalde, onde os alunos podiam assistir às aulas com armas de fogo na cintura, não se conseguiu proteger. Nem sequer a cidade, que gasta 40% do seu orçamento na polícia, chegou para prevenir um ataque destes.

    Porquê? Porque malucos existem em todo o lado, certo? Certo. Certíssimo. Mas se o acesso às armas não estiver ao nível do acesso ao lego, em princípio os danos devem ser menores.

    A Constituição americana consagra a violência – é um facto, e por mais mortes choradas, não há poder político que se atravesse no caminho do fortíssimo lobby do armamento. O mesmo que prolifera internamente, e que, em cada década, necessita de um empurrão “em busca da paz” para exportar o seu produto.

    Quem não se lembra do súbito interesse em defender a democracia e a liberdade no Kuwait, nos idos de 90? Democracia num sítio sem eleições é sempre um dos meus jargões preferidos. Ou as intervenções na Sérvia, Síria, Iraque, Afeganistão ou Líbia?

    Uma receita tantas e tantas vezes repetida.

    Começa com um povo sofredor dominado por um tirano. Segue-se o armamento dos rebeldes. Mais tarde, aparece a cavalaria, que parte aquilo tudo. No fim, escolhe-se um novo presidente, e chamam-se os Joes que tomam conta da reconstrução do quintal. É sempre a lucrar, da primeira bala ao último bloco de cimento. Como brinde, há ainda o facto de, normal e curiosamente, os povos sofredores adormecerem à sombra de poços de petróleo.

    No caminho para o Kuwait e Iraque, por exemplo, as tropas fizeram escala na Palestina, mas não encontraram povo algum a precisar de ajuda. Passam despercebidos, de facto. Quem nunca esteve 70 anos sem ver as notícias, que atire a primeira pedra.

    Da escola no Texas para o Donbass, o negócio segue a bom ritmo. A Ucrânia fornece a carne, os Estados Unidos as armas. Os russos oferecem a possibilidade de se procurar um mundo melhor, e a União Europeia, entre material velho de guerra, disponibiliza também um rombo nos seus orçamentos, um aumento do custo de vida para os seus cidadãos e uma factura mais alta com a energia comprada no outro lado do Atlântico.

    Dou voltas e mais voltas à cabeça e não vejo ninguém no continente europeu que beneficie com a continuação da guerra na Ucrânia. Ninguém. Absolutamente ninguém.

    black assault rifle on brown wooden log

    Mas não consigo deixar de pensar que, entre Texas e Kiev, as desgraças humanas trazem lucro uma e outra vez aos mesmos de sempre. 

    E para que não fiquem dúvidas a que me refiro, serei claro com as palavras.

    Putin é o maior responsável do início desta guerra e o primeiro a ter que ir parar a Haia. Não é, contudo, no dia de hoje, o único interessado na sua continuação. Os Estados Unidos já assumiram que pretendem desgastar a Rússia, e, como tal, o seu interesse tornou-se oficial. Por outro lado, não precisam de nos dizer que as exportações aumentaram que, em princípio, conseguimos fazer as contas sozinhos.

    Voltarei, porventura ou má-ventura dos leitores, ao tema em próximo artigo, com os números da nova dupla de marretas: Rogeiro e Milhazes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O alfacinha Carlitos dos Popós

    O alfacinha Carlitos dos Popós


    Durante o “Vietname benfiquista”, um massacre ocorrido entre 1995 e 2003, perante mais um lastimável espectáculo no velhinho Estádio da luz, um sofredor na fila da frente dizia: “a culpa até nem é do Manel Zé, nem é do Manel Zé!”.

    O Anel, aquele que era Terceiro – e, por vezes, nem nesse lugar se ficou –, nunca falhou, concordava em surdina: que mais poderia fazer o pobre Manel Zé com Akwá, King, Marcelo, Paredão, Tahar e Pringle? De modo que nós escolhemos sofrer, e ele, o Manel Zé, começou a caminhada que o levaria a Faraó, aos ombros dos Shikabalas desta vida.

    brown woven basket on black bicycle

    De Manel Zé a Carlos Moedas vai um saltinho quase imperceptível. Como diria outro poeta da nossa praça, “andarei por aí”, e, como ele, resolvi eu ver o que traria à mais bela cidade portuguesa o nosso Charles Coins.

    Escrevi sobre isso, na altura devida, mas lembro-me, recorrendo à minha péssima memória, que Carlitos Plata tinha dois grandes trunfos eleitorais. Primeiro: informou o Mundo que estava habituado a levantar-se para trabalhar todos os dias e chegar a horas ao escritório, procurando, desta forma, dizer com um vocabulário mais elaborado que “não era político”. Segundo: talvez de forma menos original, mas consideravelmente mais estúpido, propunha voltar a povoar a cidade com carros.

    woman in white long sleeve shirt riding on black bicycle on road during daytime

    Naquilo que foi essencialmente um debate de totós, Medina e Moedas mostraram que era mais o que os unia do que os separava. Contudo, nesta história da “cidade verde”, Medina era consideravelmente mais próximo do século actual.

    Enquanto o novo Ronaldo das Finanças queria mais gente a pedalar, Charles Monnaie tinha ideias mirabolantes sobre como encher Lisboa de parques de estacionamento, na cintura da cidade. Esperava assim que as pessoas se aventurassem no caos dos transportes públicos. Ao mesmo tempo anunciava a abertura de mais avenidas, a custo das ciclovias, reduzindo o espaço para os lisboetas que já se deslocavam de bicicleta, e contribuíam, de facto, para uma redução do trânsito.

    Existem dois tipos de pessoas que acham que uma capital europeia não deve ter bicicletas: aquelas não conhecem nenhuma, e aqueloutros que só conhecem Lisboa.

    Estávamos aos poucos a querer ser uma Berlim do Sul – sem aquela coisa chata dos muros –, mas felizmente o Karl Mint deu ouvidos aos gordos (isto conta como body shaming?), e voltamos ao nosso lugar. De atraso civilizacional, de mais poluição, de mais tempo desperdiçado, de menor qualidade de vida. Mas aquele onde nos sentimos confortáveis, honra nos seja feita.

    Pensar que mais carros em Lisboa ajudam na melhoria das deslocações é um pouco como acreditar que mais sexo oral pode combater o mau hálito.

    Enquanto toda a Europa, de norte a sul, de este a oeste, procura reduzir o trânsito automóvel nos centros urbanos, temos a capital portuguesa a apostar em mais carros como forma de desenvolvimento.

    Eu já nem falo nos habituais países escandinavos, ilhas britânicas ou centro da Europa onde a bicicleta é um meio de transporte de excelência.

    Tweet de Carlos Moedas no passado dia 24 de Maio.

    Digo apenas para irem aqui ao lado, de avião ou de carro, já que comboio também não existe, e vejam o que se faz nas principais cidades espanholas. Como é que é possível gastarmos rios de dinheiro nas autarquias a dar um passo para a frente e, no mandato seguinte, dois para trás?

    Tal como nos idos do Manel Zé, a culpa agora também não é do Carlitos dos Popós. É vossa, que votaram nele, mesmo sabendo que o programa eleitoral consistia em fazer Lisboa voltar aos tempos do betão.

    Aproveitem, pois, a viagem, e não se esqueçam: apertem os cintos. Quando quiserem ver o Primeiro Mundo, esqueçam o Uber, chamem antes a TAP.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nosso Adolfo na III Guerra Mundial

    O nosso Adolfo na III Guerra Mundial


    Tenho pensado em fazer uma colectânea das melhores frases sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mais não seja para não nos perdermos daqui a uns anos.

    Devia ter feito o mesmo durante o confinamento – e agora podia mostrar, aos que reclamam da carga de impostos, que o “fica em casa, vai ficar tudo bem” tinha um custo, e que o endividamento do país é uma fatura semelhante à disfunção eréctil: cedo ou tarde, chega.

    As duas frases que mais aprecio neste momento são: 1) “como é que em pleno século XXI ainda temos guerras?”; e 2) “não se pode comparar a Ucrânia com a Palestina. No primeiro caso há um invasor, e no segundo existe um conflito onde os dois lados se bombardeiam mutuamente”.

    people gathering on street during nighttime

    A primeira frase não é grave. Reflecte, essencialmente, o nível de conhecimento do Mundo que nos rodeia. Em resumo, se algo não aparece no Jornal da Noite, não existe.

    O mapa que decidi incluir aqui, retirado do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), mostra as zonas do Mundo onde existem conflitos armados. Hoje. Agora. Neste minuto. Enquanto nós discutimos cada opinião do PCP num conflito para o qual não contribuiu, pessoas morrem nas regiões marcadas a azul do globo. Bem sei que estão todos fora da Europa, mas, ainda assim, estão no mesmo planeta – e, acreditem ou não, naqueles territórios também é século XXI.

    A segunda frase é um pouco mais grave, porque foi dita por Adolfo Mesquita Nunes. Para o camarada Adolfo (olha… Adolfo), uma coisa é invadir e anexar; outra, completamente diferente, é invadir e anexar.

    O nosso camarada Adolfo diz que ser invadido e receber armamento da NATO (mais moderno que o do invasor) para se defender é diferente de empurrar dois milhões de pessoas para uma prisão a céu aberto de 60 quilómetros e bombardeá-los dia e noite sem que tenham escapatória ou possibilidade de defesa. Segundo Adolfo, no segundo caso estamos perante um “conflito” equilibrado.

    Quem se refere à ocupação da Palestina como um conflito entre duas partes, renega o invasor e a óbvia desproporção das partes. De um lado, temos o apoio dos Estados Unidos e o silêncio da União Europeia, e ainda todo o dinheiro do Mundo e um dos melhores exércitos; do outro, uma necessidade de sobrevivência que, em último cenário, leva a ataques a carros de combate com pedras.

    Conflitos no Mundo desde o início de 2022. Fonte: Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED)

    Na verdade, o “conflito israelo-árabe” é a “operação especial” que tanto nos tem indignado, mas se tem repetido durante 70 anos.

    O Adolfo faz parte daquele grupo de homens que, perante o conflito na Ucrânia, preferiu ignorar todos os demais a que nunca ligámos, e assumiu uma vertente bélica patente a cada intervenção: uma espécie de “vamos para cima deles” com o couro alheio.

    Para pessoas como o Adolfo, é preciso mais NATO, mais armas, mais bombas, mais tudo e um par de botas, para acalmar o urso russo e metê-lo no seu sítio. É preciso levar tudo até ao limite, ver até quando se mantém aquele botão do nuclear em estado virgem.

    O Adolfo é a Ana Gomes na versão masculina: toca de carregar que a guerra não pode esperar.

    Mas Adolfo, camarada Adolfo, toda essa coragem nos estúdios de televisão, toda essa verve no “combate político”, como alguns inúteis gostam de lhe chamar, aqui e ali conduz mesmo a combates a sério.

    Com os outros meninos e com dói-dói. É que a Ana Gomes, a primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, e as demais senhoras que gritam pelo senhor da guerra, não vão lá bater com as costas; já tu, e já agora, eu: vamos.

    person wearing black framed sunglasses

    Portanto, a minha sugestão para ti, se me permites, é simples. Deixa-te de merdas. Queres ser forcado, tudo bem: levanta essa guelra nas festas do ex-CDS, que contigo se juntaram ao sonho liberal. Mas deixa de dizer asneiras e, acima de tudo, de berrar por um quadro nas televisões que, se se cumprisse, nos arrastaria a todos para um conflito mundial.

    Uma invasão é uma invasão. Ponto final, Adolfo. Esta ou outra qualquer. Faz parte da História das nações, infelizmente. E quanto a isso, não sei bem até onde queres levar essa tua coragem dos estúdios de TV, mas, pessoalmente, tenho um filho a quem preciso explicar como se pega numa raquete e uma filha que precisa da minha ajuda na Matemática.

    A ti, e aos belicistas de sofá, desejo ardentemente que vão para a frente, com todas as armas sonhadas, ferir o grande urso e escrever epopeias de glória. Força camarada, não deixes nada por fazer.

    Ah… e já agora, outra coisa. Quando vier esta nova fatura do apoio à Ucrânia, dos 2% para a indústria militar, dos problemas com habitação, da inflação, racionamento de comida, perda no poder de compra e taxas de juros incomportáveis, serás um dos candidatos liberais a dizer que o socialismo não funciona?

    Diz aí: é para um amigo.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Um curdo por um louro

    Um curdo por um louro


    O meu filho está naquela fase em que acha as meninas, todas, muito chatas. Não lhe vou dizer ainda que essa fase só dura mais 90 anos, para não estragar a surpresa, mas não resisti a perguntar quem escolheria num hipotético casamento: uma italiana, uma portuguesa ou uma sueca.

    A “casca de banana” estava nas duas representantes da Europa que sabe comer. Tenho a secreta esperança de que o amor o empurre para sul, e eu possa vê-lo sem andar de avião ou abraçar os netos sem vestir dois casacos.

    Ele foi pragmático: “Quem escolhia? A mais gira pai, qual é a dúvida?”. Nacionalismos completamente descartados, o que é sempre bom, e os meus intentos deixados ao acaso da probabilidade do encanto.

    Resta-me esperar que a mais gira seja morena. Caso a Matemática me engate os planos, e tenha mesmo que usar gorro em cada visita à Maria Johanna e ao Johan Franco, contar-lhes-ei os dias de hoje, antes que os aprendam na escola.

    Os meus netos, nessa escola sueca, aprenderão que ao fim de 200 anos de neutralidade, com apenas 54% de apoio popular, o Governo sueco decidiu aderir à NATO. Ser-lhes-á explicado, em princípio, que a invasão russa da Ucrânia empurrou a Suécia para os braços da NATO. Mas ninguém lhe dirá que as acções da NATO, o alargamento para Leste durante 20 anos e as promessas feitas ao governo de Zelensky, deram toda a narrativa que Putin precisava para formar uma história que justificasse o seu sonho imperial.

    Vão aprender também uma ou outra coisa sobre aquilo a que se chama a realpolitik. A negociata entre Estados com impacto nas vidas reais de quem nada decide.

    Por exemplo, que menos de uma semana depois do secretário-geral da NATO ter dito que suecos e finlandeses seriam recebidos de braços abertos, estes formalizaram uma candidatura, expondo-se ao regime de Putin e esperando esse abraço fraterno.

    Ao invés disso, um dos membros da Aliança (Turquia), contrariou as palavras do seu secretário-geral e votou contra a entrada de Suécia e Finlândia. Segundo o líder turco, Recep Erdogan, estes países escandinavos são paradeiro e abrigo de terroristas – e por isso, há que fechar a porta. Esta é a narrativa oficial.

    Traduzido para linguagem corrente, o que quer verdadeiramente a Turquia? Erdogan quer “via verde” para esmagar os separatistas curdos do PKK, passando pela extradição daqueles que se encontram em solo sueco e finlandês. Um filme já visto.

    O Ocidente prepara-se para deixar os curdos à sua sorte, uma vez mais. Pergunto-me: quem é que ainda não traiu os curdos? Usados sempre como pontas da lança a cada invasão no Médio Oriente em troca de promessas sobre um território que nunca foi reconhecido.

    Observo, com alguma curiosidade, a forma como serão comunicadas ao Mundo as negociações de Ancara. Até onde cederão Suécia e Finlândia? De que forma será desvalorizada, novamente, uma vida fora do espaço europeu?

    Tudo o que vejo em redor é uma escalada na violência, uma corrida ao armamento e uma repetição ad nauseam do argumento “temos que nos proteger”?

    Proteger de quê? Não ouvimos diariamente que a Rússia está a perder esta guerra? Que encontrou na Ucrânia o seu Vietname?

    Se é assim, se isso é verdade, como é que nos protegemos continuando a meter gasolina num fogo cuja extensão não podemos controlar? Há semanas que ninguém se refere a conversações de paz. Começo a acreditar que o Ocidente quer mesmo levar esta guerra até ao último ucraniano.

    Espero que na escola, quando aprenderem este período da história, os meus netos não tenham que ouvir também os relatos sobre a III Grande Guerra que se seguiu.

    Pensando bem, se isso acontecer, talvez os meus netos nem cheguem a nascer aqui.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.