Autor: Tiago Franco

  • O círculo perfeito da opinião pública

    O círculo perfeito da opinião pública


    Ouvi uma análise que me pareceu realista sobre o actual momento da guerra na Ucrânia. Referia o cansaço da opinião pública sobre o tema e a prova dos nove na solidariedade com o povo ucraniano, agora que a vida dos europeus começa a ficar caótica por causa da subida das taxas de juro e o aumento galopante da inflação.

    Uma coisa é estarmos sentados no sofá a pedir mais sanções contra os russos; outra, bem diferente, é quando nos dizem que, afinal, nos vão levar o sofá. É mais ou menos nesse ponto que estamos.

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    Um presidente de uma confederação de sindicatos alemães avisou, ontem, que a quebra de fornecimento de matérias-primas russas estava a colocar toda a indústria germânica em risco. O colapso pode estar iminente e uns milhões de empregos também. A Alemanha é o motor da Europa: se espirram os outros constipam-se.

    Aquele sentimento de empatia que os europeus dispensaram a um povo que sofre, aqui ao lado, começa a ficar para segundo plano quando, por causa dessa guerra, o nosso próprio modo de vida está ameaçado. No fundo, assim que a solidariedade nos custou mais do que simples bandeiras no Facebook, resolvemos tratar da vidinha.

    Começa, pois, a fase mais “palestiniana” para os invadidos no Donbass: a malta sente a vossa dor e temos pena que tenham ficado sem casa, mas a Lagarde disse-nos que também quer ficar com a nossa. De modo que é altura de fazer contas à vida.

    Isto leva-nos a duas conclusões simples.

    A primeira é que a solidariedade com os povos é bonita, mas apenas quando não nos sai da pele.

    A segunda é que, agora, a mesma guerra que nos levou a “defender” os invadidos nas redes sociais, serve como desculpa para os deixar de mãos a abanar.

    No nosso dia-a-dia, a cada subida de preços de serviços, não há quem não use esta guerra como justificação.

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    Já perdi a conta aos aumentos estapafúrdios com base na invasão russa. Pedreiros que aumentam o preço hora; jardineiros que dobram o seu custo; empresas familiares (ou não), com os mesmíssimos salários e custos, sobem 50% o preço do seu trabalho por causa da gasolina mais cara. A própria gasolina que “NÃO VEM DA RÚSSIA” atinge preços incríveis com a desculpa da Ucrânia. Empresas de software que cobram mais sem que se perceba porquê. Onde é que uma licença de software sofre por causa de uma guerra?

    Ou seja, o cenário está criado e as empresas aproveitam para aumentarem os lucros, muito para lá da compensação exigida pela inflação. No topo de tudo isto, aparecem os bancos com carta branca para fazerem o que bem lhes apetecer. No caso nacional, ainda com a particularidade de serem instituições privadas quando escolhem o lucro, mas públicas na altura de serem salvas. De facto, só mangas e jacas não crescem no meu país, de resto tudo se dá.

    O engraçado desta história é o círculo perfeito da opinião pública e publicada. Quando os governos europeus decidiram as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia, a maioria concordou. Poucos, pouquíssimos, nos jornais e televisões disseram que a paz não se alcança com mais armas.

    Lembro-me de, na altura, ter pensado (e escrito) para onde queriam os nossos governantes ir? Derrotar a Rússia? Envolver a NATO? Combater até ao último ucraniano? Nunca entendi que fim esperavam os países da União Europeia com esse apoio. Dos Estados Unidos percebi, aliás, eles explicaram: desgastar a Rússia. Tudo bem. Para eles.

    blue and yellow striped country flag

    Agora nós, europeus, que saída tínhamos de não empobrecer com isto sem que chegássemos a uma mesa de negociações? Nenhuma. E quanto mais tarde lá chegássemos, pior.

    Inicialmente, eram só os combustíveis. Um clássico da extorsão, a malta ainda aguenta. Depois foi a inflação, os salários, as greves, a perda do poder de compra e a machadada final dada pelo Banco Comercial Europeu (BCE), as taxas de juro. Julho chegou e os aumentos nas prestações estão aí. Num país pobre, como o nosso, é isto uma sentença de morte e uma bomba-relógio social.

    Enfim, começou a arrefecer a solidariedade e a chegar o nervoso miudinho. Como é que vamos pagar a casa com juros a 4%? Nas televisões já falam no ponto de viragem e da onda de choque trazida pela guerra que, quatro meses depois, chega finalmente ao nosso quotidiano com força destruidora.

    Nos jornais já nos perguntam o que fazer com todo o arsenal que ficará na Ucrânia depois da guerra. Os comentadores já se dividem entre o “continuar a enviar armas” e o “dificilmente não teremos negociações e cedência de território”.

    Ninguém o quer dizer alto porque pensa “e se fôssemos nós?”, mas depois recebem o aviso do banco com a nova prestação situada 300 euros acima “por causa da guerra”, e já só querem que os ucranianos desistam do Donbass. E isto mesmo que o Donbass seja apenas a desculpa que o banco utilizou para nos sacar mais dinheiro. O mercado, o eterno mercado que ninguém percebe e que mesmo assim segue.

    E fecha-se o círculo: de exaltados apoiantes de sofá a envergonhados ausentes… carregados de dívidas.

    Pobres ucranianos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!

    Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!


    Há uns anos, numa daquelas conversas de elevador, dizia-me um colega brasileiro que estava a adorar a experiência europeia. Segundo ele, como as distâncias eram tão pequenas, em cada fim-de-semana ia ver um país diferente.

    Achei a prosa um pouco exagerada, mas percebi com o comentário que se seguiu: “é que no tempo da universidade fazia 1.000 quilómetros de autocarro para ir a casa (que ficava noutro Estado) a cada fim-de-semana”.

    Portanto, para este camarada, um Copenhaga-Berlim era já ali; e um Gotemburgo-Londres dava para um cochilo rápido.

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    A noção de distância depende, obviamente, dos sítios que percorremos. Na minha ilha, por exemplo, a maior distância por estrada são 22 quilómetros. Uma pessoa que vá levar o filho aos treinos de futebol fica a engonhar duas horas para não andar “para baixo e para cima”, percorrendo a totalidade dos 10 quilómetros. Porquê perder 20 minutos quando podemos perder duas horas? Fazer os cinco quilómetros duas vezes é que não.

    Em Portugal, de uma forma geral, consequência de um país pequeníssimo, embrulhamo-nos em discussões eternas sobre voos ou concertos que existem em Lisboa, e não no Porto; ou estradas que estão no litoral e não no interior.

    Sempre que aqui chego vejo uma auto-estrada nova, mas admiro-me que ainda não exista uma na porta de cada português. Lá chegaremos.

    Até já ouvi reclamações só porque determinado artista/comediante faz um espectáculo em Lisboa ou em Almada, mas não vai a Setúbal. Portugal atravessa-se num dia; porém, nós queremos que o mundo comece e acabe no nosso bairro.

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    Isto para dizer que esta história do aeroporto de Lisboa é, de momento, pouco mais do que uma paródia.

    A quantidade de estudos, milhões de euros públicos gastos e decisões inócuas, num país de Primeiro Mundo, dariam prisão. Por cá já anunciaram agora três aeroportos: OTA, Portela + 1 e Alcochete. Todos bem estudados, e com as consultoras que gravitam na órbita do Estado, devidamente engordadas. Contar 50 anos de estudos para definir, em definitivo, o local para um aeroporto é uma daquelas coisas que temos vergonha de dizer fora de portas.

    Mas é real. De facto, continuamos sem decidir onde será o novo aeroporto de Lisboa, mesmo sabendo que o actual recebe milhões de pessoas todos os anos, apenas com uma pista de aterragem a funcionar.

    Somos os mestres do desenrascanço. Bastou um avião privado ter um azar – um rebentamento de dois pneus na aterragem – e a Portela voltou para a Idade da Pedra: voos desviados, aeroporto encerrado, partidas canceladas e filas intermináveis de espera com passageiros que desesperavam para chegar a casa. Porquê? Porque a alternativa à pista existente são os autocarros da Barraqueiro. Ou o UBER.

    A cidade engoliu o aeroporto. Lisboa cresceu até tocar na pista de aterragem, e será hoje, julgo, uma das poucas capitais europeias com o aeroporto na sua zona central. Chegámos aqui porque os sucessivos Governos se limitam a estudar e estudar, chutando para mais tarde qualquer decisão.

    Pedro Nuno Santos tentou despachar o assunto e foi arrasado. Juro que li “atitude precipitada”. Importam-se de repetir? Imprudente? Apressado? Depois de 50 anos? Era necessário um pacto de regime com o PSD? Como os restantes que nos trouxeram aqui? Este país ainda adora as comissões de Salazar. Discute-se para dar a impressão de que há movimento apenas para que tudo fique na mesma.

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    Confesso que não percebo o que pode ser tão complicado na decisão de uma obra pública como um aeroporto. Quantas décadas e estudos são necessários mais? A discussão deve ficar ao rubro entre especuladores imobiliários e municípios interessados, compreendo isso.

    Imagino, aliás, os lobbies e a quantidade de boys apertados nestes anos para influenciarem a decisão aqui ou ali. Mas por favor… estamos em Portugal, já sabemos que a obra encherá os bolsos a uns quantos e, portanto, andem lá com isso e facilitem a vida aos viajantes. O dinheiro gasto já dava um terminal internacional. Daqueles onde pensamos que o gin é mais barato, mas depois percebemos que fica mais em conta no Pingo Doce.

    De entre as várias discussões que este tema acarreta, a minha preferida é a da distância. E aqui lembro a conversa inicial do meu amigo brasileiro para quem a conversa de “longe” começa nos 1.000 quilómetros. Li dezenas de indignados que, de uma forma geral, davam a entender que tudo o que não fosse uma pista no Rossio, parecia ser a visão do Apocalipse.

    Montijo e Alcochete são longe de Lisboa. Ota é longíssimo. Beja é noutro planeta.

    São as mesmíssimas pessoas que adoram voar com a Ryanair, e que elogiam a experiência de aterrar no Aeroporto de Frankfurt-Hahn quando compraram um bilhete para Frankfurt, não se importando que fique a 125 quilómetros daquela cidade alemã. Que aterram em Bérgamo quando no site dizia Milão, distando afinal 45 quilómetros. Que chegam a Skavsta, a 100 quilómetros a sul de Estocolmo, quando querem chegar à capital sueca. E que dizer de Charleroi, quando o destino é Bruxelas? Ou Stansted, e afinal vão para Londres?

    people walking on sidewalk near yellow tram during daytime

    Ora, mas uma coisa é passar uma hora num comboio ou autocarro, num destino qualquer europeu, a caminho do centro depois de aterrar a mais de uma centena de quilómetros de distância; outra é fazer isso dentro de portas. Era o que faltava!

    Aterrar do outro lado da ponte? Ou num aeroporto que já está feito (Beja), e que num comboio de alta velocidade nos pode deixar em Lisboa em menos de uma hora? Please: isso não é para nós! Além do mais Beja já está pronto, como é que se pagavam os favores? Não! Vamos com calma procurar um sítio perto, sem flamingos ou pontes.

    E, já agora, eu sugiro uma alternativa: desloque-se antes Lisboa. O aeroporto da Portela fica. Às tantas, em despesas de construção e em pagamento de mordomias, o saldo aumentaria mais; e, portanto, compensaria.

    Estude-se!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Balanços no mercado terrorista

    Balanços no mercado terrorista


    Não sei se já tentaram acompanhar as movimentações no “mercado de terroristas”. É um hobby algo estranho, concedo, mas um excelente exercício às capacidades interpretativas e até de memória.

    Antigamente, acompanhava as movimentações no mundo do futebol, tentava perceber qual dos 30 nomes anunciados diariamente para o Benfica vinha, de facto, embora este divertimento acabou por me aborrecer. No fim chegava sempre apenas um refugo qualquer do Atlético de Madrid, e a coisa perdeu a piada.

    Já no “mercado de terroristas” a complexidade é outra e as movimentações difusas. É como jogar xadrez contra um robot que muda as regras a cada cinco minutos. Pensas que estás a perceber e, de repente, zás, começas do princípio.

    O caso mais famoso no mundo terrorista será o dos afegãos, o clássico dos Mujahideen: um povo bravo classificado como “combatentes da liberdade” no final do século XX e que, no início do século XXI, passou a terrorista.

    À partida pode ser estranha esta mudança com o virar do milénio, mas não: até é simples de perceber. Na década de 80 do século passado, os afegãos combatiam a invasão russa, logo, eram classificados pelos americanos como freedom fighters. Já em 2001, foram os próprios americanos a invadir o Afeganistão e, obviamente, a classificar os invadidos como terroristas.

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    Nada mais simples e lógico. Depois da derrota dos talibãs – lembrem-se, terroristas afegãos –, seguiram-se 20 anos de presença americana na região e dois presidentes escolhidos a dedo. Em 2021 os talibãs, agora novamente fora da lista de terroristas, negociaram a retirada americana e assumiram as rédeas do país. E quem quiser que feche a porta.

    O cartão de membro dos Talibãs já deve permitir, por esta altura, a resposta “é complicado” no menu das actividades terroristas.

    A polémica mais recente do mercado adensou-se ontem, em Madrid, na cimeira da NATO. A Turquia de Erdogan exigia que a Suécia e a Finlândia deportassem membros do PKK (Kurdistan Workers Party) e que deixassem de dar asilo, ou qualquer tipo de apoio a esta (e outras organizações) curdas.

    No fundo, o que Erdogan queria era carta branca para perseguir os curdos até onde bem lhe apetecesse dentro do espaço europeu.

    O PKK é a parte visível de um conflito com mais de 40 anos entre curdos e turcos pela separação (ou autonomia) de um território no sudeste da Turquia, junto à fronteira com a Síria e Iraque, onde se concentra a maioria curda.

    Logicamente, o conflito já tem algumas chacinas, de parte a parte, e o PKK surge classificado como uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e maior parte dos países da União Europeia. Ou seja, por todos os membros da NATO.

    Note-se aqui a suprema ironia nesta classificação pelas potências ocidentais: os curdos são terroristas quando querem criar fronteiras onde, de facto, vivem. Os kosovares tinham direito a um país porque eram a maioria no sul da Sérvia. Os russófonos do Donbass são nazis e, por isso, não podem pedir autonomia. Os chechenos tinham direito à sua terra, no início do presente século, porque estavam lá há 200 anos – hoje, porém, em princípio já não, porque combatem ao lado dos russos na Ucrânia.

    Como disse ali em cima, é um mercado muito volátil e a interpretação mostra-se difícil. Quero sempre torcer pelos bons, mas, neste caso, fico baralhado no meio das histórias. Viram mais que um argumento do Hitchcock. Mas recomendo para as férias, é mais entusiasmante do que o sudoku.

    Quando os EUA pensavam que Bashar Al-Assad ia cair na guerra civil da Síria, meteram-se ao barulho e apoiaram as forças curdas que combatiam o regime. A principal frente era mantida pelo YPG (People Protection Units), uma unidade curda, conhecida por ser a extensão do PKK em território sírio.

    gold and silver coins in clear glass jar

    Foram eles – a solo ou integrados nas forças democráticas sírias (SDF) – que combateram Al-Assad e o ISIS. Como de costume, os curdos foram à frente e deram o corpo ao manifesto para combater uma ameaça que era global: o Estado Islâmico.

    Ou seja, os Estados Unidos, através da NATO, consideravam o PKK uma organização terrorista e, em simultâneo, aliavam-se ao “PKK da Síria” para terem o trabalhinho sujo feito. Erdogan não gostou, mas comeu sem calar. No fim, como de costume, os curdos foram abandonados à sua sorte contra nova chacina turca que aproveitou a guerra civil síria para resolver assuntos internos.

    Portanto, os curdos conseguiram ser terroristas e combatentes da liberdade no mesmo dia. E abandonados no seguinte. Não é para todos.

    Agora, em Madrid, Erdogan conseguiu que a Suécia e a Finlândia não só considerassem o PKK como uma organização terrorista como os obrigou a terminar o embargo de armas para a Turquia. A Suécia é um dos maiores fabricantes de armas a nível europeu e a NATO aludiu a essa mais-valia com a entrada do novo membro.

    A partir de agora, não só acaba o asilo para os curdos como, sempre que Erdogan quiser, a Suécia tem de lhe fornecer armas, ao abrigo dos protocolos da Aliança, para que ele possa arrasar mais umas vilas no Curdistão.

    De uma assentada, a Suécia cria um problema interno – o óbvio descontentamento da enorme comunidade curda – e passa a contribuir directamente para mais uma guerra. Cessa o apoio à maior população do Mundo sem território (30 milhões) e passa a fornecer armas a um país não-democrático.

    Nada mau para uma terça-feira de manhã nos escritórios da NATO.

    Só não vislumbra a paz, aqui, quem estiver provido de “óbvia” má vontade.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sobre esta coisa chamada opinião

    Sobre esta coisa chamada opinião


    Antes de emigrar para a Suécia costumava ter acesos debates com um amigo “passista”. Tínhamos visões absolutamente distintas do mundo e percursos de vida completamente antagónicos. Certo dia, durante um almoço perto do mar, com aquele sol bem luso e um peixe grelhado com mestria, ele abre os braços e diz-me: “Tiago, percebes agora porque não emigro? Como é que se vive sem isto?”.

    Eu ouvi, respirei e disse: “os teus pais, depois de te pagarem os estudos em universidades estrangeiras, ofereceram-te uma casa e, ao dia de hoje, usas o teu salário para as contas do Pingo-Doce e da EDP. Percebes agora porque não emigras?”

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    Os nossos caminhos deixaram de se cruzar e imagino que, entretanto, se tenha tornado liberal. Tinha tudo para ser um forte apoiante dos mercados. Mas, por mais que as opiniões dele me irritassem, eu adorava debater com o sujeito. Não só era inteligente na defesa dos seus argumentos, como o fazia de forma convicta, educada e racional. Nas estuchas que eu tinha que levar nos convívios com aquela malta, o choque de opiniões com aquele indivíduo era a única coisa que me cativava.

    E isso nunca mudou.

    Sempre preferi estar no meio de correntes diversas de opinião em vez de me situar, apenas, entre aqueles que pensam como eu. É a única forma que conheço de evoluir, aprender e até de formar a raiz do pensamento. Se falarmos apenas com pessoas que votam como nós, apoiam o nosso clube e adoram a mesma zona balnear, dificilmente saíamos da bolha a que as redes sociais e a manipulação de informação dos dias de hoje nos condenam.

    Portanto, partindo desta base de pensamento, do respeito pelas diversas opiniões e do facto de expor a minha opinião publicamente há algum tempo, estou habituado a receber críticas constantes ao que escrevo. Faz parte e até agradeço.

    Aliás, incentivo.

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    Alguns dos reparos que me fazem ajudam-me a melhorar a escrita e até a ver as coisas de outra forma. Por outro lado, se há crítica é porque há leitores – e esse é sempre o primeiro objectivo de quem quer escrever.

    Aqui há uns anos, 2019 julgo, escrevi um texto sobre a TAP e as reclamações constantes dos portugueses aos seus serviços (não me lembro se nessa altura ainda pertencia aos privados a quem o Passos a ofereceu).

    Pelo meio fiz uma piada sobre glúten, que, como se percebe, não era o foco do texto. A coisa acabou por ter mais de mil partilhas, e eu passei os meses seguintes a ser insultado por algumas mães ofendidas, cujas intolerâncias próprias ou dos filhos, tinham sido mortalmente ofendidas com essa piada. Não é que eu tivesse matado alguém, mas, a avaliar por algumas reacções, poder-se-ia pensar que sim.

    Foi mais ou menos por esta altura que deixei de ler comentários ao que escrevo. Sejam elogiosos ou não, prefiro passar sem ver, porque tenho sempre a tendência para entrar em debate. Especialmente quando leio coisas mais disparatadas ou insultuosas. Um dos fenómenos que nunca perceberei é dos anónimos, sentados em frente a um teclado, e que dedicam boa parte do seu dia a insultarem outros anónimos, por divergência de opinião.

    man wearing black t-shirt close-up photography

    Pode ser um golo em fora-de-jogo, o resultado de uma eleição, a obrigatoriedade de uma máscara ou uma brasileira a abanar as nádegas no Rock in Rio. Tudo, mas absolutamente tudo, serve para insultar o desconhecido do lado, se este não corroborar a nossa opinião. Ora, eu acho esse movimento ligeiramente deprimente e, com a vossa licença, prefiro não entrar nele.

    Quando fui convidado para escrever colunas de opinião no PÁGINA UM, a minha pena estava mais do que identificada: emigrante, benfiquista, eleitor de esquerda, área de Ciências, contra os sucessivos confinamentos e pouco amante da histeria em volta da covid-19, sem nunca negar que o vírus existe, e nada fã de teorias da conspiração.

    Em princípio, não serei parte de nenhuma minoria escondida… vam’lá a ver: benfiquista e eleitor de esquerda, dizem os números, é onde se situa a maioria da nossa população. E pelo andar da carroça, não tarda, e também seremos mais na condição de emigrantes do que os residentes neste cantinho de bom sol e fresca sardinha.

    Portanto, quando escrevo opinião neste jornal – e isto poderá ser surpreendente –, escrevo a minha. Não a do partido A ou B, do clube Z ou Y. Pego nos temas da actualidade, e dou, sobre eles, a minha opinião. Critico o que tenho que criticar, elogio o que tenho que elogiar. Como qualquer um de nós.

    Depois das legislativas, repeti que Jerónimo de Sousa estava a afundar o PCP (e fui criticado por comunistas), que Rio não tinha qualquer ideia original e fazia a melhor oposição que Costa podia pedir. Disse que Cotrim de Figueiredo vendia um ideal que não se podia aplicar em Portugal e, mesmo assim, era constantemente apanhado em contradições na tentativa de explicar o liberalismo pensado para a nossa realidade. Valeu-me críticas da malta dos sapatos de vela. Disse que o Ventura não tinha conteúdo para mais do que dois ou três debates de seis minutos, como se provou nos 36 das últimas eleições onde chegou a ser penoso vê-lo.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Critiquei Jorge Jesus desde o malfadado dia em que abandonou o Flamengo. Critiquei as escutas do YouTube que não foram usadas como prova no Apito Dourado. Critiquei Bruno de Carvalho por todo o ódio em que empestou o Sporting.

    Durante o confinamento, critiquei muito o Governo português, e escrevi, noutro jornal, sobre a experiência sueca onde a vida seguiu com menos limitações e restrições à liberdade individual. Alguns votantes de esquerda chamaram-me “negacionista” e votantes de direita, nomeadamente liberais ou apoiantes do Chega, sentiram-se mais representados nesse tema.

    No entanto, quando o assunto passou a ser eleitoral, os mesmos que elogiavam, passaram a insultar-me. Portanto, é normal que todos cruzemos opiniões algures na vida e que, aqui e ali, concordemos em temas.

    Aquilo que quero dizer com isto é que a minha opinião não é partidária ou ideológica. É minha. Segue apenas aquilo que a minha cabeça dita em cada momento.

    Ontem, abri uma pequena excepção, e fui ler alguns comentários ao meu texto sobre o festival do Chega. Era uma paródia, pouco mais do que isso.

    Vi que alguns leitores decidiam deixar de apoiar o jornal porque o seu partido era satirizado nestas páginas. Houve até quem pedisse mais isenção. Ora… é aqui que eu queria ser bem claro nas linhas escritas: a opinião não é isenta, a opinião nunca pode ser isenta, porque se o for, então não é opinião. É outra coisa qualquer, mas não opinião. 

    As notícias do PÁGINA UM é que são, e devem ser, isentas.

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    O facto deste jornal ser apoiado pelos leitores e não ter qualquer patrocínio de entidades privadas ou públicas, significa que nunca será pressionado para não dar a notícia A ou alterar um pouco o conteúdo da notícia B. É isso que marca a isenção do PÁGINA UM, e é isso que o torna diferente e único no panorama nacional.

    Quem espera colunas de opinião que reflictam única e exclusivamente o seu pensamento, não está verdadeiramente interessado em “opinião”, mas sim numa extensão da sua bolha informativa.

    Em todos os jornais, eu tenho colunistas que gosto muito e outros que não suporto. O mesmo nas televisões. O que faço, quando fala ou escreve algum daqueles que me dá voltas ao estômago, não é partir a televisão ou fechar o jornal. Simplesmente mudo de canal, ou folheio as páginas.

    Já se encontrar algum órgão de comunicação social que reflicta apenas aquilo que penso, bom, nesse dia deixo mesmo de o seguir. Para espelho já basta o que tenho em casa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Chega: só há uma “festa” como esta!

    Chega: só há uma “festa” como esta!


    O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

    Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

    [Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

    André Ventura, líder do Chega.

    Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

    Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

    Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

    A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

    Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

    André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

    Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

    Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

    Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

    Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

    Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

    Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

    Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

    A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

    Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

    Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

    Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

    Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

    Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

    Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

    Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

    Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

    Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os pais do Simba

    Os pais do Simba


    Nos meus tempos de teenager, durante os verões alentejanos, um amigo mais eufórico depois daqueles jantares regados com uva das adegas locais, gritava: “sou filho do meu pai e da minha mãe, não pago e não tenho medo de ninguém!”.

    Quando a conta chegava, enfim, como todos nós, ele pagava. Mas durante cinco minutos sentia-se o pai do Simba, com o sangue ali a circular mais depressa entre as veias. E tudo bem, entre teenagers com aquele grau de idiotice mais próprio da idade, não há problema.

    brown lion on green grass field

    Até porque, quando eu era gaiato, não existiam telefones com câmara ou lives no Facebook. A vida era reservada ao que a nossa memória guardava, e isso, meus amigos, valia ouro. Sorte a do meu amigo que eu não me esqueci dos números de Rei da Selva…

    Dizia eu – quando perdi o foco, como é habitual – que a idiotice é natural em jovens imberbes. Mas isso torna-se mais preocupante em adultos, especialmente se esses adultos forem líderes de países democráticos.

    Recentemente a Estónia veio bater à porta da NATO, porque um helicóptero russo passou no seu espaço aéreo.

    Na Finlândia, o líder das Forças Armadas afirmou que estão prontos para combater com os russos.

    Já na Lituânia, as autoridades decidiram bloquear o acesso dos comboios russos de mercadorias ao enclave de Kaliningrado.

    Vejo aqui vários candidatos a pais do Simba – alguns Reis da Selva e poucos cérebros em funcionamento.

    brown and gray concrete building during daytime

    Os russos já avisaram que responderão à Lituânia caso o bloqueio não termine. Seja ou não um membro da NATO, note-se.

    Vou ouvindo e lendo que a Rússia está de rastos, que não aguenta nova frente de batalha e que não são perigo para ninguém – excluindo para os ucranianos, deduzo. É uma teoria assente no desgaste que estão a sofrer em território ucraniano, e na frase que se repete: “se nem com a Ucrânia podem, quanto mais com a NATO”.

    Permitam-me discordar aqui um pouco antes de chegarmos ao fundamental desta questão.

    Os russos estão certamente desgastados, mas julgo que, por esta altura, já ninguém se atreve a dizer que esta é uma guerra entre dois países. Os mortos são de facto maioritariamente de dois países, mas há um envolvimento directo do chamado Ocidente na contenda.

    Sem o dinheiro e armas despejados pela União Europeia, NATO, Estados Unidos e Reino Unido, a Ucrânia já teria capitulado há muito. Portanto, é justo dizer-se que os russos combatem contra uma coligação.

    É certo que o Ocidente incentiva os ucranianos a continuarem e a doar a carne para o churrasco, mas o carvão, as acendalhas e as minis são oferecidas por nós.

    sunset

    O envolvimento da NATO nesta guerra é mais do que assumido; portanto, tenhamos pelo menos esse dado em conta e não continuemos a fingir que os ucranianos estão sós. Sós estavam os georgianos e duraram cinco dias. Sós estão os palestinianos que vivem em prisões a céu aberto.

    Portanto, voltando ao ponto inicial: quando vejo simulacros de pai do Simba, imagino que todos, agora na União Europeia, vejam os russos debilitados e em ponto de rebuçado para levarem mais umas vergastadas.

    E a minha pergunta aqui é: porquê? Mesmo que estejam desgastados, cansados e debilitados, quem é que ganha com o alargar do confronto para a Zona Euro? Se um touro de 500 quilos andar às voltas num praça durante uma hora, passa a ser um acto de inteligência correr contra ele só porque já exercitou um pouco a musculatura? Os 500 quilos de peso doem menos e provocam menos danos no nosso esqueleto?

    É que nem essa teoria dos russos estarem de gatas, caso fosse mesmo essencial alargar o conflito, parece ter base firme.

    Televisões ocidentais, portuguesas incluídas – portanto, não foi a RT –, anunciaram que os lucros no último trimestre aumentaram mais de 30% na Rússia. A principal razão continua a ser a venda de energia, neste caso, com a China e a Índia – entre outros BRICS – a adquiriram o excedente que deixou de ser vendido para a Zona Euro.

    Ou seja, as potências emergentes dizem, pela vertente comercial, que não se importam de financiar a invasão russa, e ainda aproveitam para fazer negócio, refinando a matéria-prima e voltando a vendê-la aos europeus.

    Ao mesmo tempo, Xi Jinping, líder chinês, afirmou que as sanções impostas à Rússia seriam um tiro nos pés dos europeus e, cedo ou tarde, se virariam contra o próprio povo.

    Como se percebe pelo custo dos combustíveis, redução de salários e aumentos das taxas de juro, ele está certo. Mais não seja, porque a continuação da guerra e as restrições impostas, dá às petrolíferas e às financeiras a desculpa perfeita para os aumentos desejados – sejam ou não realmente afectadas. 

    Por outro lado, as relações comerciais entre a Rússia e os BRICS – que são potências emergentes –, com China e Índia à cabeça, mostram-nos qual foi o lado que estes exércitos escolheram no conflito. Ou seja, o touro exaurido e com a língua de fora parece ter amigos do tamanho da NATO.

    Neste cenário, queremos mesmo ver três países – Estónia, Finlândia e Lituânia –, cujas populações somadas não chegam à portuguesa, a encherem o peito em nosso nome em frente à Rússia?

    Estamos assim tão confiantes que os Estados Unidos e a NATO se vão meter nisto, numa altura em que Joe Biden já assumiu que, cedo ou tarde, Zelinsky terá de se sentar e chegar a um acordo?

    Pessoalmente, preferia que a malta do Báltico se acalmasse, aproveitasse o Verão – que são sempre os melhores quatro dias do ano – e, se possível, que tentassem contribuir para uma conclusão do conflito.

    green wheat field under blue sky during daytime

    Gente com gasolina ao redor da fogueira, já temos em demasia. Agora, aquilo que precisamos é de sair disto rapidamente, e usar a política para o que ela realmente serve: sossegar os egos dos líderes.

    Venham acordos de paz, com ou sem território, com mais ou menos dinheiro, com ou sem entradas na União Europeia. Façam lá as promessas que precisam de fazer para todos saírem desta guerra vencendo qualquer coisa.

    Acabem é com a carnificina de russos e ucranianos no terreno, e ainda com o empobrecimento generalizado da população europeia. O desgaste russo assumido pelos americanos é, na realidade, o desgaste de toda a Europa. Eu sou aquele que confiou nos avisos dos serviços secretos britânicos que, em Fevereiro passado, julgo, afirmavam que a guerra estaria terminada em Maio. Enfim, nunca mais foram os mesmos depois da morte do James Bond – spoiler alert.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A tempestade perfeita

    A tempestade perfeita


    Estranhei ver uma casa à venda na minha da rua. Nos últimos quatros anos, que me lembre, que ninguém vende nada por ali. Estranhei ainda mais que o preço de venda fosse abaixo do valor de “mercado”. Note-se que este é um dos meus termos favoritos. Mercado. Essa entidade abstracta que se auto-regula, e que nos convence daquela verdade absolutamente idiota: “se alguém pagou, é porque vale”.

    Perdi a conta ao número de vezes que discuti isto com os mais variados entusiastas dos mercados. Um T2 em Arroios não vale 500.000 euros. Um T4 no Seixal não vale 800.000 euros. Uma casa de madeira na minha rua não vale 600.000 euros. Ponto final.

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    Podem dizer que se venderam, que alguém pagou, que um norueguês achava barato. O bem adquirido NÃO VALE ESSE VALOR. Ponto final. Quem o vendeu é que lucrou mais do que lucraria sem especulação pornográfica.

    Repeti esta discussão vezes sem conta, terminando sempre da mesma forma: como ficarão as coisas no dia em que o último comprador, depois de anos de vendas especulativas, ficar com um bem nas mãos que vale menos do que o crédito que contraiu por ele? Por outras palavras: o que acontece quando quisermos vender uma casa que o mercado nos diz, agora, valer menos do que pagámos por ela? Ficamos assustados e vendemos ao melhor preço. E depois os outros apercebem-se que o mesmo lhes sucederá, e vendem ao melhor preço, que rapidamente tende a ser cada vez mais baixo… Ou seja, rebenta a bolha.

    Há uma bebedeira colectiva em que todos fomos culpados. Nós, privados, que aceitámos que os mercados nos dissessem que um Fiat valia o preço de um Ferrari, e os bancos, que avalizaram créditos para Ferraris tendo Fiats como garantia.

    Finalmente, sempre com a guerra na Ucrânia, as sanções e a escalada dos preços em pano de fundo, aparecem os aumentos das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE) que, obviamente, vão trazer à vida aquelas páginas do fim da resma que nos entregam quando fazemos um crédito hipotecário – e que, claro está, ninguém lê. “Se a Euribor passar para 2%, então a sua prestação será X”.

    empty road

    Em Gotemburgo, onde um apartamento no pior bairro custa perto de 200.000 euros, as famílias estão endividadas até ao osso. Meio milhão de euros por um apartamento é hoje algo perfeitamente banal na cidade. Uma realidade parecida com a de Lisboa, eu diria, onde qualquer apartamento fora da Amadora começa nesses valores.

    Os bancos suecos começaram a avisar os clientes das constantes subidas das taxas – deduzo que em Portugal se esteja a fazer o mesmo – e para quem tinha créditos variáveis, os mínimos a um ano passaram para 4%. Isto significa, grosso modo, que as famílias dobrarão os seus custos com a habitação.

    Portanto, não só os salários diminuíram com a inflação como, por conta do aumento das taxas de juro no crédito hipotecário, ficarão muitas famílias numa situação de aperto até aqui inimaginável. O mercado vai-se encher de casas, os preços vão baixar, alguns não vão conseguir pagar os créditos ou vão trabalhar até rebentar apenas para pagar contas.

    Pergunto: era assim tão difícil perceber que dizer “o mercado diz que” é, na verdade, apenas uma forma imunda de justificar lucros disparatados num reduzido espaço de tempo? Não é mais ou menos óbvio que não, um T1 numa colina de Lisboa com uma janela de 10 cm de vista para o Tejo, não valerá nunca, por mais franceses que o queiram, 350.000 euros?

    Se a situação na Suécia, onde o nível salarial e de poupanças são altos, caminha para um nível assustador, eu não quero imaginar o que vai acontecer em Portugal.

    person holding brown leather bifold wallet

    Mas quero muito que me voltem a explicar as vantagens do mercado desregulado, do envio de dinheiro e armas para uma guerra, das sanções que estão a rebentar com os russos e de como os aumentos do BCE nos ajudam a controlar a despesa.

    Quero também entender, com muita vontade, por que razão a banca é pública na altura de ser salva, mas totalmente privada e autónoma na altura de decidir o tamanho dos seus lucros.

    As pessoas vão perder casas e os créditos dos palheiros transformados em mansões vão acabar na dívida pública. No fim, o único culpado, será o gajo que tentou sair de casa dos pais quando percebeu que já tinha 35 anos.

    Entrámos num comboio há anos que só anda em círculos e, por mais paragens que se repitam, ainda acreditamos que seguimos em linha recta.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Tiro ao médico? Não e não

    Tiro ao médico? Não e não


    Sempre que um grupo de trabalhadores do sector público luta por direitos laborais, levanta-se a turba dos indignados. Reparem no pormenor de eu dizer “sector público”. Não há luta no sector privado, há resignação.

    Mas dizia eu: levantam-se vozes, normalmente com os mais estapafúrdios dos argumentos, contra as classes profissionais que se organizam para lutarem pelos seus direitos. Os alvos desta semana são os médicos.

    doctor holding red stethoscope

    Devo dizer-vos uma coisa para início de conversa. Se pensarmos que andamos há 35 anos a receber subsídios europeus e que continuamos pobres, e com auto-estradas de luxo, é mais do que natural que constantemente assistamos a lutas laborais. Assim de repente só me lembro de três ou quatro classes profissionais que têm salários comparáveis aos parceiros europeus mais desenvolvidos.

    Portanto, estranho seria se não víssemos greves e lutas, quando o nível salarial é, na generalidade, o maior problema português.

    Isso aplica-se a um professor, a um enfermeiro, a um médico ou a qualquer funcionário público que não seja autarca, deputado, vereador ou secretário de Estado. Ou ministro.

    De entre as acusações com que os médicos foram brindados – com o “gananciosos” à cabeça –, houve uma que me saltou à vista: a de terem a obrigação de devolver o dinheiro que o país investiu neles, nas suas longas e caríssimas formações, trabalhando em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). E acrescento: as horas necessárias por semana e pelo salário que a tutela quiser.

    Ou seja, para alguns de nós, um médico deve trabalhar 10 horas por dia, fazer urgências e ganhar menos do que um qualquer assessor de secretário de Estado – daqueles que entram e saltam de um Executivo sem darmos por eles, sem terem qualquer formação para lá do networking dos papás.

    Eu não sei se já perderam algum tempo a perceber como funciona o ensino público, mas, na base, todo e qualquer curso universitário numa instituição não-privada é quase integralmente financiado pelo Estado. Seguindo essa lógica da dívida de gratidão, um professor tem que dar aulas 10 anos em bairros sociais, um engenheiro civil tem que fazer as primeiras duas pontes de borla e um advogado tem que defender criminosos pro bono durante cinco anos. Pelo caminho, tornam-se vegetarianos e comem a relva do Monsanto.

    É exactamente pelo custo da formação de um médico, pela duração dos cursos e das especialidades, que o Governo deveria proteger o investimento, dando a estes profissionais salários dignos. Já não digo comparáveis aos seus colegas europeus do Norte, mas, pelo menos, suficientes para o grau de importância que esta profissão tem em qualquer sociedade.

    O risco é que, obviamente, depois de 10 anos de formação, os médicos escolham uma compensação financeira fora do SNS ou, ainda pior, fora de Portugal.

    Não sei se conhecem muitos países com excesso de médicos. Eu não me lembro de nenhum, é uma daquelas profissões sempre em falta, talvez tirando o exemplo cubano que, a dada altura da História, trocavam médicos por petróleo – tema para outro dia.

    Portanto, a questão é simples: sabendo os médicos que podem vender a sua força de trabalho por valores muito mais altos, porque devem eles jurar fidelidade ao SNS e aos salários baixos?

    Esperam que alguém que dedica 20 anos da sua vida a estudar, depois aceite salvar vidas por um salário inferior ao de qualquer boy do PS ou PSD, com experiências profissionais na área da distribuição de sacos de pano e canetas com logótipos de dois em dois anos nas arruadas? Tenham dó!

    Eu espero que os médicos, ou qualquer classe profissional, lute pela dignidade das carreiras e pela justa valorização do trabalho. E isso, meus amigos, num mundo capitalista, começa no salário.

    Ninguém trabalha por caridade e no nosso caso em concreto, se conseguimos andar a salvar Salgados e Rendeiros, e a sustentar uma corja de políticos com zero impacto na sociedade, podemos certamente pagar salários de Primeiro Mundo a quem nos mantém nele mais tempo.

    person sitting while using laptop computer and green stethoscope near

    Um dos nossos problemas enquanto sociedade revela-se a cada greve, a cada discussão com o patronato. Há sempre alguém que diz “eu vivo com 600 euros e tu não consegues com 2.000?”. É esta a raiz dos males: o pensamento que coloca sempre a fasquia no chão. Se eu estou na miséria, não quero sair dela, quero é que tu venhas para onde estou.

    600 euros não é um salário na Europa: é uma esmola, uma afronta, uma exploração. E 2000 euros, depois de cortados os impostos, também não foge muito disso. É aquilo a que nos países civilizados se chama “subsídio de estudante”.

    Nós – ou vá, a maioria de nós – que trabalhamos por conta de outrem, tudo o que temos para trocar é a nossa força de trabalho. Para quem não nasceu em berço de ouro, e depende, em exclusivo, do seu trabalho para viver, é a forma como fazemos essa troca que nos atribui uma vida de qualidade ou de sofrimento.

    E é por isso que não podemos apedrejar quem luta pelos seus direitos laborais e procura a justa compensação pela venda da sua força de trabalho. Devemos é juntar-nos a eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Alma e corpo de emigrante

    Alma e corpo de emigrante


    Estamos a jogar ping-pong, e ele, enquanto me tenta perturbar o nervo a cada batida – introduzimos mind games há muito na disputa de qualquer ponto, seja xadrez ou raquetadas, pois há que moer a cabeça do adversário –, vai dizendo: “ya pai, tens bué sorte, tipo nessas chouriçadas“.

    Bué, ya, tipo… desde quando falas assim?”, acrescento eu. E ele, sabendo que estamos a dias de ir para casa, diz-me, “estou já a treinar para falar com os primos”

    Continuei concentrado na bola porque, de momento, já não lhe posso dar borlas, sob pena de perder o título de campeão da casa, mas fiquei com a frase ali a bater-me na parte de trás do crânio.

    Recuei duas décadas e lembrei-me de um miúdo que orientei durante um estágio na Autoeuropa. Tinha nascido em Tomsk, na Sibéria, e crescido na Alemanha, para onde os pais tinham emigrado, algures à sombra da fábrica mãe da VW.

    man in red crew neck t-shirt standing beside blue table during daytime

    Andámos uns meses por Setúbal onde, entre outras coisas, lhe tentei explicar que a praia se chamava Albarquel e não Albarcuel.

    Ele dizia-me, várias vezes, que em lado nenhum se sentia um local.

    Na Sibéria era alemão e, em Wolfsburg, passava por russo.

    Desde que me mudei para a Suécia conheci mais N histórias destas, muitas com o denominador comum da Bósnia. Crianças que de lá saíram na década de 90 a fugir da guerra e que hoje, quando voltam, já lá não pertencem. Mas aqui, numa sociedade absolutamente catalogada, nunca chegaram também a suecos. Portanto, ficam ali no limbo eterno.

    O meu filho está precisamente nesse limbo, e eu, por alguma razão, sinto uma enorme dúvida em todo o processo e escolhas de vida. Como perceber o que é mais certo ou até importante, antes de acontecer?

    Até eu, que saí de Portugal com 28 anos, perfeitamente criado e enraizado, já sinto algumas dificuldades quando estou aí, e vejo (e ouço) coisas que para mim, hoje em dia, não fazem qualquer sentido e são perfeitas aberrações.

    Não digo que sejam erradas. Digo apenas que chocam, e muito, com aquilo que vejo em meu redor há 16 anos. Não sinto dificuldades com a língua, mas sinto dificuldade com a mentalidade. Já não me encaixo numa série de coisas que, antigamente, eram parte integrante do meu quotidiano.

    O Diogo refere-se aos suecos como “suecos”. Aos portugueses como “nós”. Portanto, ele identifica-se e sente-se como estrangeiro. Quando aqui está, fala um sueco perfeito, mas não tem cabelo louro. A pergunta primeira, a ele ou qualquer não louro é, “de onde vens?”

    Quando está em Portugal parece-se com qualquer um de nós; porém, fala com erros, com sotaque, com traduções de estruturas gramaticais suecas que não existem em português. Toda e qualquer criança, mal o conhece, pergunta ao fim de dois minutos: “de onde vens?”

    Portanto, esteja onde estiver, Lisboa ou Gotemburgo, de imediato assumem que ele não é dali.

    Abordo o assunto com desvelo, mas sei que ele não se sente confortável com isso. Ainda assim não desanima. Basta chegar a uma praia qualquer e ver uns putos aos chutos numa bola e mete conversa. Aliás, vale-lhe (e a mim também) o espírito aberto de não se encolher perante a adversidade; caso contrário, seria um problema ir a casa.

    desk globe on table

    É já agora um problema recorrente entre emigrantes de segunda geração. O desconforto no contacto em cada regresso a casa e um progressivo afastamento. Desde que ele nasceu que falamos português única e exclusivamente para garantir que esse corte nunca chegará. Mas vão-se tropeçando numas pedras pelo caminho – e, ao contrário da frase fofa, não servem para fazer castelos.

    Em tempos, num jogo de futebol entre miúdos, onde eu também participava, um dos putos foi bastante desagradável e começou a gozar com uma palavra mal pronunciada pelo Diogo. Ele não ligou, eu fingi que não ouvi – e na jogada seguinte dei uma sarrafada no miúdo.

    Eu sei, a falha é minha, mas não consegui.

    Eu vejo o esforço que o Diogo faz para ser entendido, hoje em dia em três línguas, e tenho tentado, da minha parte, corrigir todas as falhas gramaticais. Não há dia que não corrija palavras ou frases. É uma luta diária, mas não consigo substituir 12 anos de escola. E a culpa de ele não andar numa escola portuguesa não é dele, é minha. Fui eu que escolhi emigrar, e fui eu que o “condenei” a crescer na Suécia, na escola pública onde ele é a minoria.

    A culpa de ele se sentir diferente, na Suécia ou em Portugal, também é minha. É um peso que carregarei sempre com a desculpa de achar que, aqui, ele terá mais oportunidades de vida e acesso a um ensino universal de educação melhor. Digo a mim mesmo, talvez para acalmar a consciência, que a vida dele será mais fácil por crescer na Escandinávia.

    bowl of food beside wine glass

    Apesar de tudo, ainda acho que não me enganei. Ainda acho que crescer num país desenhado para se ser criança é um privilégio. Ter ciclovias, um campo de futebol em cada bairro, amigos ao lado de casa, horários de trabalho que permitem horas de parentalidade diárias, salários que permitem ver qualquer canto sonhado do mundo e ensino universal, para além da liberdade que a segurança e a organização de cada bairro permitem, não deixam de ser luxos nos dias que correm.

    Restam alguns verões, páscoas e natais, até que ele decida se fica por aqui com a Johanna ou, em alternativa, volta às origens levando consigo a Mari Cruz. Imagino sempre uma chilena a entrar na família, não sei bem porquê.

    Ainda acho que um dia iremos juntos para Portugal. E por aí ficaremos, não sei bem a fazer o quê. Mas nunca deixaremos de ser emigrantes, isso é garantido. Seja no pensamento ou na conjugação do verbo IR.

    Pode ser que isso seja, quiçá, bué de fixe. Vi får se

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As leis do empobrecimento

    As leis do empobrecimento


    Volto com alguma regularidade ao drama do Ruanda em 1994. Não é que o quotidiano não me preencha a quota de amarguras, mas há, naquele genocídio, uma lição sobre maiorias que, parece-me, vamos esquecendo com o passar das décadas.

    Não quero de forma alguma estabelecer comparações com um período da História de pura barbárie, embora queira aí recuar para pensar na saturação ou no rastilho que deu origem a uma das maiores catástrofes humanitárias do século XX.

    Resumindo uma história complexa: durante gerações, a minoria Tutsi foi utilizada pelos colonos (belgas) para controlar a restante população, maioritariamente Hutu. Uma situação de algum privilégio e acesso aos lugares de poder que se arrastou por décadas, até que a maioria se revoltou.

    man wearing blue collared top

    Não há nada que justifique o que ali aconteceu, e hoje o Ruanda não é propriamente um sítio melhor. Os Tutsies recuperaram o poder na guerra civil e, entre eleições fraudulentas e suspeitas de afastamento de opositores, Paul Kagame, antigo líder militar, está há mais de 20 anos na liderança do país.

    Mas a chacina aconteceu. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, e o desespero por condições de vida foram o rastilho. É aqui que nos quero transportar para a realidade europeia e, em especial, para a portuguesa.

    Bem sei que todos estes dramas nos passam um pouco ao lado, e dentro do continente europeu estamos habituados a alguma estabilidade. Mas agora, depois de dois anos e meio de absoluta loucura governativa com a covid-19, uma guerra que se alastrou – convém lembrar que a zona Este da Ucrânia está ao som de morteiros desde 2014 – , uma inflação a chegar aos dois dígitos e juros mais altos decididos pelo BCE, é justo de afirmar que boa parte da população portuguesa está em dificuldades.

    Num programa económico, não me lembro agora em que canal, explicava um analista, de forma pedagógica e em tom de conselho à população, o que poderiam fazer para aguentar o embate esperado dos aumentos das taxas de juro decididas pelo BCE (agora em Julho).

    two Euro banknotes

    Em média, para créditos com spread actual a rondar os 1,5% e com os aumentos anunciados por Christine Lagarde, estima-se que por cada 150.000 euros de empréstimo, a prestação suba cerca de 100 euros.

    Não sendo economista, tento perceber, junto de quem sabe, o porquê destas medidas. Para mim, um simples e anónimo português, a pergunta que importa é esta: com um salário médio de 1.000 euros e 85% a levarem para casa menos de 900 euros líquidos, como é que se aguentam aumentos de centenas nas prestações bancárias?

    É esta a matemática simples que eu tento compreender.

    Normalmente levo com teorias do género “são as leias básicas da Economia, pá!”. Quais? Bom… se a inflação aumenta, tem de se aumentar também o juro para que fique menos dinheiro disponível para o consumo e, dessa forma, se reduza a inflação. Mas, pergunta minha, se a inflação (preços dos bens de consumo) aumenta, as pessoas não consomem menos porque perdem poder de compra?

    Em teoria sim, diz-me quem percebe disto, mas em Portugal está-se a verificar um fenómeno contrário, porque as pessoas acumularam algum dinheiro durante a pandemia.

    Por outro lado, acrescenta quem foi à escola ouvir falar disto, o banco não pode receber menos do que te emprestou e hoje o dinheiro vale menos. A forma de compensar é com a subida dos juros.

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    Volto ao meu bloco de notas e abro as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo que os portugueses tenham gastado menos daqueles fabulosos 900 euros mensais ao longo de um ou dois anos, quanto é que poderão ter poupado? O suficiente para umas férias? Mais jantares com bifes proibidos pela Jonet? Ou estão todos a comprar iates no Mónaco?

    De que nível de poupança estamos a falar? Com este nível de rendimentos não me parece que sejam sacos e mais sacos de arame, como lhe chamava Mário Soares.

    E sobre o dinheiro valer menos hoje, e a banca ter que ser compensada, confesso que começo a sentir algum fumo no emissor do meu transístor por onde passa a corrente. É que, vam’lá a ver, a banca portuguesa recebe dinheiro desviado dos impostos há mais de uma década. Pega nesse dinheiro e empresta-nos com juro. Portanto, nós pagamos duas vezes a mesma coisa, ou três, se contarmos com os prémios de gestão ao fim do ano. E agora, numa altura de óbvio embate, somos nós que voltamos a meter a pele.

    Eu compreendo o cenário de catástrofe: dois anos de pandemia, com o Governo a endividar-se para pagar confinamentos, layoffs e até vacinas em barda a farmacêuticas que, lembrem-se, nunca abriram as patentes. Portanto, a factura da covid-19 – depois dos lucros pornográficos dos laboratórios, farmacêuticas e empresas de bens de primeira necessidade/entregas online –, chegou e será entregue a quem as costuma pagar: os trabalhadores por conta de outrem.

    Em cima disto, metemos a guerra na Ucrânia e mais 2% do Orçamento de Estado desviado para políticas belicistas. Somamos o mercado liberal de combustíveis – que, afectado ou não pelo petróleo russo, aproveita para recuperar o que não ganhou quando todos estavam em casa. Aumento esse, no caso português, mesmo com a redução de impostos, o que é algo de extraordinariamente abjecto, e a confirmação do cartel petrolífero que usa e abusa da lei que lhes dá poder para decidirem tudo, sem qualquer regulação governamental.

    Ah… e quase que me esquecia: ainda temos que ter em conta a total desregulação do mercado imobiliário e o elevado endividamento das famílias portuguesas. Isto porque, claro, insistem em não viver debaixo da ponte, o que também não se compreende.

    Portanto, chegados aqui, e com esta bomba-relógio em ponto rebuçado, dizem-nos que temos de aumentar ainda mais o custo de vida. Porquê? Porque é uma lei da Economia, estúpidos. Mesmo sabendo que oito em cada 10 famílias podem vir a passar ainda por mais dificuldades, e muitos terão de entregar casas, mas, caso não percebam, é para o vosso bem.

    Dou comigo a pensar nisto, e a ver o comum português que trabalha de sol a sol para pagar contas, enquanto acumula aquela fortuna que lhe dá direito a 15 dias em Agosto na Quarteira.

    Que culpa tem este gajo dos confinamentos? Ou das ajudas à banca? Ou da invasão da Ucrânia? Ou das sanções impostas pela União Europeia? Algum de nós foi tido ou achado nesta merda que andamos a viver desde 2020? Não.

    O nosso papel é abdicar de liberdades básicas em nome não se sabe bem de quê, ou, em alternativa, pagar a conta.

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    Temos que andar a reboque e a empobrecer por decisões de uma minoria, algumas comprovadamente erradas e prejudiciais.

    Bem sei que, em democracia, elegemos outros para decidirem por nós, mas tudo tem um limite e, no fim das contas, a resistência de um povo à adversidade imposta pelo poder tem um tempo.

    Se forem três ou quatro que percam este ano a ida à Quarteira, enfim, a coisa faz-se. Se forem umas centenas sem casas, actualiza-se uma tabela de pobres do INE, e vamos para fim-de-semana. Mas se forem uns milhões a caminhar para a pobreza, a entregarem casas e a ficarem ainda mais desesperados, não pode o cenário ficar ligeiramente mais sombrio para quem nos governa?

    É que quando justificamos a pobreza de milhões com leis da economia, eu lembro-me sempre da afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, no jornal da TVI, nos tempos de comentador a propósito da careca descoberta no BES e da primeira intervenção estatal. “Mas está a brincar?”, disse ele para o pivot, “já imaginou o perigo de risco sistémico se não ajudássemos o BES?”. Aí está, outra lei da Economia que em 2008 nos disse o que fazer. Parece-me óbvio, 14 anos depois, que foi bom segui-la.

    Se a história dos nossos dias fosse o capítulo de um livro, com este enredo em que a população perde direitos, liberdades, condições de vida e boa parte do seu sustento no espaço de dois anos e meio, eu esperaria que o capítulo seguinte se iniciasse com uma revolução.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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