Autor: Tiago Franco

  • O aprendiz do arquitecto Saraiva e o alvo do costume

    O aprendiz do arquitecto Saraiva e o alvo do costume


    Tenho um lema de vida que raramente me desilude – e que, aliás, se mostra relativamente simples, tanto que pode ser levado à prática por qualquer cidadão menos dado a “bandeiras da vida”: ler o Henrique Raposo no Expresso e fazer o contrário.

    Tal como as gaivotas em terra anunciam tempestade no mar, as crónicas do Raposo anunciam um jovem arquitecto Saraiva em potência.

    fountain pen on black lined paper

    Não falha, por uma vez que seja, esta teoria. Ao fim de quatro frases escritas pelo Henrique Raposo, penso como será o seu contrário, e de imediato dou com o senso comum. É maravilhoso.

    Desta vez, juntando-se ao coro do momento, o Henrique questionou como seria possível que os artistas portugueses continuassem a actuar na

    Desta vez, juntando-se ao coro do momento, o Henrique questionou como seria possível que os artistas portugueses continuassem a actuar na “Festa do Putin”, nome por ele atribuído à Festa do Avante.

    Festa do Putin”, nome por ele atribuído à Festa do Avante.

    Há aqui dois pontos interessantes para análise.

    Primeiro, o Avante deixou de ser, desde 2020 pelo menos, um evento que marca a reentré política em Setembro, para passar a ser tópico de discussão entre Maio e o Outono. Ou porque em 2020 e 2021 era um sítio óptimo para apanhar covid-19, ou, em 2022, porque passou a ser a Festa do Putin.

    O segundo ponto de análise é que, certo como o destino, quem por norma tenta boicotar o Avante com acusações de apoio a ditaduras, faz, ele próprio, a política de cancelamento e quer promover a anti-democrática censura.

    Eu acho isto bastante interessante. O conceito de democracia feito à medida das nossas necessidades.

    Mas atenção especial ao ligeiro toque a hipocrisia nas narrativas escolhidas.

    Durante anos, longos anos, a União Europeia fez todo o tipo de negócios com a oligarquia russa. A Alemanha, por exemplo, motor europeu, escolheu ser parceira no sector energético enquanto lhes vendiam armas. Quem não se lembra do nosso Sócrates a fazer jogging na Praça Vermelha? Ou do nosso Paulinho das Feiras (Portas) a vender Vistos Gold para cidadãos russos? Ou até, do nosso Cotrim de Figueiredo, presidente do Turismo de Portugal nos idos de 2014, a anunciar a aposta no mercado russo e na atracção de rublos, enquanto o Donbass era invadido por separatistas apoiados por Putin?

    Mas… o PCP é que apoia Putin.

    Adivinhem lá, quem é que foi contra os Vistos Gold em 2012 – quando PSD/CDS os criaram – e voltou a pedir o seu fim em 2022? Acertaram! Foi o tal PCP, aquele que dizem que apoia Putin, mas não queria dar borlas a cidadãos russos, dois anos antes da invasão do leste ucraniano. Isto há coincidências…

    O centrão político português, e alguma direita, andaram com o regime de Putin ao colo. Tal como todos os países da União Europeia. Ou tinham interesse em receber gás e petróleo, ou queriam investimento russo nas suas cidades ou, em última análise, procuravam charters de russos no Verão junto às suas praias.

    Durante esse período o regime de Putin calou os chechenos, roubou a Ossétia e Abecássia à Geórgia, invadiu a Crimeia e o Donbass. Ninguém quis saber, business as usual.

    Acordaram todos em 2022, a tempo do Avante. Podia ser pior.

    reflection of city lights

    Ontem vi Vitorino Salomé a ser interrogado na SIC Notícias pelo “crime” de ir actuar na Festa. A jornalista tentou fazer a mesma pergunta de 10 maneiras diferentes. Vitorino não abanou e disse-lhe: “O Avante sempre esteve aberto a todas as correntes. Eu penso pela minha cabeça, eu sou o meu próprio comité central”.

    Mas a moda está lançada. Passou por Dino Santiago, seguem-se as declarações dos Mão Morta e as ameaças à cantora brasileira Bia Ferreira. Tudo em nome da verdadeira democracia e da liberdade de expressão, como se compreenderá.

    Depois de embarcar no coro anti-Avante – a tendência da semana –, Henrique Raposo presenteia-nos, portanto, com mais uma brilhante crónica, agora sobre a varíola dos macacos. Diz o vate que, para nos protegermos, devemos afirmar que é uma doença de homossexuais, ou, “paneleirices lá deles” como queria escrever, mas o editor do Expresso não deve ter deixado.

    Não falha o Henrique. Nunca. Raposo para um lado, bom senso para o outro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Escola à la carte

    Escola à la carte


    Quando decidi ver a entrevista exclusiva da SIC ao “casal de Famalicão” (os tais que foram para tribunal por causa das aulas de Cidadania), tinha expectactivas consideravelmente baixas. O caso já tem uns anos e as posições dos ditos – ou do pai, vá!, que a mãe parece falar só quando a deixam – são amplamente conhecidas.

    Confesso que não percebo o que leva uma família a fazer uma guerra tão grande por causa de algo tão simples e banal, mas entendo ainda menos o que teriam na cabeça quando aceitaram aquela entrevista. Obviamente, previsível seria ficarem expostos como um bando de retrógrados – que, convenhamos, até provavelmente serão –, e dificilmente a dita entrevista traria qualquer benefício para a sua causa. Por mais idiota que esta fosse, acrescento.

    Ana e Artur Paula Mesquita Guimarães foram entrevistados pela SIC.

    Se uma conversa de 30 minutos for filmada, e posteriormente transmitida, enfim, todos temos a hipótese de tentar perceber a argumentação; contudo, se apenas alguns excertos das respostas forem facultados, entre comentários de jornalistas e de alguns especialistas, a nossa percepcão é radicalmente diferente.

    Ora, a SIC optou pela segunda via, criando assim, nos espectadores, uma opinião sobre aquela família ao mesmo tempo que, em teoria, lhes dava voz.

    Digo de antemão que estou contra a posição daquela família – e todo o discurso daquele pai me parece inenarrável. Ainda assim, não gostei de ver um tribunal popular em formato de entrevista.

    Aquilo que me parece realmente interessante discutir, em vez de nos focarmos no discurso beato deste casal, é tentarmos perceber a resolução deste imbróglio. Ou seja, não nos ofuscarmos com a árvore e perdermos de vista a floresta.

    brown wooden table and chairs

    Neste caso, a floresta é a caixa de Pandora que se abrirá caso algum tribunal deixe uma família decidir a que disciplinas devem os filhos assistir. Podemos discutir programas escolares, debater conteúdos e até, quem sabe, alargar o centro de decisão para lá das paredes do Ministério da Educação.

    Também me parece um bom debate perceber que tipo de ensino e que conteúdos farão sentido no ensino secundário em pleno século XXI.

    Nada contra esse debate. Contudo, a partir do momento em que um programa é decidido, por quem foi eleito para o fazer, deve ser cumprido. Ou como diria o capitão Nascimento do BOPE: “missão dada, é missão cumprida, parceiro“.

    Uma referência a filmes brasileiros com o Wagner Moura serve sempre para desanuviar o ambiente.

    Mas falava eu em Pandora e caixas, porque será esse o caminho, se algum tribunal deste país der razão aquele casal devoto da Opus Dei.

    Se eles puderem decidir, livremente, que os filhos não devem assistir às aulas de Cidadania – ou, nas suas palavras, não alinhar em palhaçadas, porque haveria a hipótese de irem a um museu onde o banco tem a forma de uma vagina –, o que nos impede de continuar essa estrada?

    Se, daqui a 10 anos, os livros de História relatarem a invasão russa da Ucrânia e um pai achar que aquilo foi mesmo uma “Operacão Especial”, pode fazer idêntico pedido para que o seu rebento seja dispensado da disciplina?

    boy in green sweater writing on white paper

    Ou um terraplanista pode pedir passagem administrativa a Física?

    O Mário Machado pode isentar os filhos do capítulo do Holocausto? E um vegan pode decidir se assiste à explicação sobre a cadeia alimentar ou não?

    Um angolano, guineense ou moçambicano, residente em Portugal, pode optar por não ouvir falar na Guerra Colonial?

    Já agora, um aluno que tenha pais brasileiros, tem mesmo que ver aqueles desenhos do Pedro Álvares Cabral a chegar ao Brasil e a ser recebido em festa pelos nativos que lhe ofereciam cestas de fruta?

    E a comunidade indiana em Portugal, pode saltar aquela parte de Goa e das igrejas católicas lá plantadas?

    O Ventura vai poder anular a inscrição se insistirem em falar naquela manhã de 25 de Abril de 74?

    O Nuno Melo poderá reclamar quando os filhos descobrirem que o aborto é legal ou que tourada não é diversão?

    O Cotrim ficará aborrecido se algum dos filhos ouvir falar do crash da bolsa de Nova Iorque em 1929 e começar a perder fé nos mercados muito cedo?

    Os netos do Jerónimo não poderão ouvir falar da Primavera de Praga?

    silhouette of child sitting behind tree during sunset

    As caricaturas – ridículas bem sei – servem apenas para ilustrar até onde poderemos ir, nisto de misturar as nossas convicções, ideologias ou crenças com aquilo que é o programa oficial da Escola Pública. Eu também não compreendo por que razão a Religião e Moral é leccionada em escolas de um país laico, mas, se se decidiu que faz parte do programa, a discussão termina aí.

    Podemos sim, sempre, discordar e discutir programas. Aliás, devíamos discuti-los mais. Agora, deixar ao critério de cada família o que as crianças e jovens devem aprender na escola, já me parece mais perigoso e um incentivo ao caos no Ensino.

    Professores mal pagos e desmotivados, alunos que terminam os anos sem aprenderem tudo o que era esperado, índices baixos de aproveitamento a Matemática e Português, carreira docente absolutamente estagnada, passagens de alunos mais facilitadas para enchermos as estatísticas da União Europeia, alto abandono escolar, crianças prejudicadas pelos confinamentos impostos durante a pandemia, etc., etc. – isto, sim, são problemas reais a mais para um sistema tão débil num país que insiste em investir mais no alcatrão do que na formação das próximas gerações.

    Com tantos fogos por apagar, esperemos que os tribunais não vistam, também, a pele de incendiário. Dar razão jurídica às teses dos “pais de Famalicão” seria a mecha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Estocolmo, “esse” último bastião comunista

    Estocolmo, “esse” último bastião comunista


    Entre fogos e ondas de calor, parece ter escapado à comunicação social portuguesa uma importante vitória de um conjunto de trabalhadores perante as suas entidades patronais.

    É, aliás, um reflexo dos tempos informativos e das estratégias de comunicação: somos massacrados semanas a fio com um, e um só, tema.

    Durante dois anos, só ouvimos falar em covid-19.

    people sitting on chair in front of table while holding pens during daytime

    Há pouco mais de um mês, Portugal ainda era o país com mais mortos por milhão de habitantes da União Europeia e um dos que registava mais casos diários, mas os directos dos parques de estacionamento dos hospitais já tinham sido substituídos, desde Março, por jornalistas de capacete em Kiev.

    Entretanto começaram a puxar fogos às matas – um clássico lusitano de Verão como é o emigrante que regressa ao som de Tony Carreira – e lá se acabaram as ligações a Kiev.

    Chegou a seguir a “praga do aeroporto de Lisboa”, com directos para discutir o número de dias que os passageiros não mudavam de cuecas.

    Depois de descobrirmos que afinal a Portela estava igual ao resto do Mundo, por causa dos despedimentos pós-covid no sector, passámos à onda de calor.

    Agora vemos cada nuvem de fumo, cada Canadair na barragem, cada bombeiro a tropeçar no repórter da CMTV. E pergunto-me qual será o tema 24/7 depois dos incêndios…

    CRT TVs on rack

    Mas voltando ao início: entre labaredas e morteiros, escapou-nos uma vitória laboral. Neste caso dos pilotos da SAS – a companhia escandinava que serve a Suécia, Dinamarca e Noruega.

    A história conta-se rapidamente. Durante a pandemia, com os aviões no chão, o Governo sueco (e os vizinhos também) despejaram um rio de dinheiro nas empresas, com gigantes como a Volvo, Ericsson e SAS à cabeça. A micro-empresa onde trabalho também foi ajudada – e, portanto, sou o caso prático em como esse dinheiro chegou a todo o lado.

    Se a memória não me falha, foi qualquer coisa como 2 mil milhões de euros a ajuda prestada pelo Governo sueco às empresas.

    A teoria era simples. Tal como em Portugal ou em qualquer outro país da União Europeia, os Estados garantiam com este financiamento que trabalhadores impossibilitados de exercer funções não ficavam sem o seu ganha-pão. No caso da aviação, com praticamente tudo parado por imposição governamental, a ajuda era mais do que óbvia, justa e necessária.

    truck parked near commercial airplane on airport

    Ora, mas o que fez a SAS com o dinheiro do lay-off? Dispensou 450 pilotos e aplicou um corte salarial aos que ficaram. Onde é que já viram isto? Exacto! Na TAP.

    E se prestaram atenção, foi prática corrente um pouco por toda a Europa. Por isso, agora, todos, ou quase todos, estão em dificuldades para cumprir as exigências do mercado com o regresso dos passageiros e a normal procura por bilhetes.

    Perante isto, os pilotos da SAS, de forma concertada, saíram pelo seu pé. Foram mil pilotos, para ser mais exacto. Durante 15 dias deixaram a SAS à beira da falência com um prejuízo diário entre nove e 12 milhões de euros. Ao fim de 10 dias, a companhia já tinha cancelado 2.500 voos e perdido cerca de 120 milhões de euros. Um A320 novo, para usar a “moeda local”.

    Depois de duas semanas de greve, a companhia finalmente cedeu. Não só no corte salarial, mas também na re-contratacão dos 450 pilotos dispensados. Agora, depois de ter percebido que uma companhia não existe sem os trabalhadores, a administração da SAS vai a correr aos mercados buscar dinheiro fresco para se financiar e recomeçar as operações. A reestruturação já não será feita à custa dos trabalhadores.

    person holding airplane control panel

    Eu lembro que os países escandinavos são quase sempre representados na comunicação social portuguesa (ou nos cartazes da Iniciativa Liberal, vá!) como bastiões liberais e exemplos da flexibilidade nos direitos laborais. Agora, depois desta retumbante vitória dos sindicatos, imagino que a Suécia seja a nova Venezuela, e Oslo a nova Havana cheia de Teslas.

    Podemos, assim, daqui tirar três conclusões.

    Primeira: nem todos os povos aceitam sentados o que o patronato lhes impõe.

    Segunda: injustiça alguma resiste a um movimento organizado de trabalhadores.

    Terceira, eventualmente mais difícil de encaixar: os mais ricos também o são porque nunca desistiram de lutar pelos seus direitos.

    E a nós, o que é que nos falta?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gostava de explorar nepaleses mas não consigo

    Gostava de explorar nepaleses mas não consigo


    Ando tentado a lançar-me na agricultura do mirtilo e das framboesas e, enquanto não arranjo três nepaleses para explorar – como o Macário Correia (alegadamente) –, vou-me entretendo a procurar um veículo para carregar caixotes, pranchas, bicicletas e todas essas coisas que um jovem agricultor precisa nas ilhas de bruma. Ou apenas para percorrer as estradas sem cair nas crateras a que por aqui se chamam, carinhosamente, de buracos.

    Fui visitar o senhor J, conhecido comerciante na minha ilha. O senhor J já deve uns bons 10 anos à reforma, mas gosta de trabalhar. Diz quem o conhece que não deixa cair uma moedinha no chão e que raramente perde um bom negócio. Entre as latas que rodeiam a oficina tinha para lá duas ou três carrinhas a cair de maduras que serviam os meus propósitos. Velha e barata, eram as qualidades desejadas.

    O senhor J sorriu e disse-me que tinha ali uma em excelente estado, apenas com 30 anos. Ia passar-lhe uma água seguida de sabão e estava pronta para vender por 10.000. Seria 8.500 para mim, porque tinha andado com o meu sogro na escola. Eu pensei afincadamente durante uns bons centésimos de segundo, tempo de sobra para perceber que estava a ser enrolado. Disse-lhe: “Senhor J, 8.500 por uma carroça com 30 anos e 300.000km?” Ao que ele respondeu: “Isso não interessa! Eu também tenho 75 anos e ainda mexo bem!”

    Com a informação de que o senhor J ainda conseguia saltar sempre que preciso, vim-me embora e julgo ter usado um ou outro impropério para descrever, ao meu sogro, o que achava do amigo de escola.

    Invariavelmente, acabo as minhas pesquisas e conversas com um “como é que é possível?”. Aqui e ali assumo alguma irritação, nada de muito grave; só aquele “f******, mas está tudo doido?” da praxe.

    green van on road during daytime

    Depois do senhor J, corri outros comerciantes, falei com particulares, meti anúncios. De todos recebi respostas que, de facto, o respectivo ferro-velho era melhor do que os vizinhos – e, por menos de 10.000 euros, só um skate.

    Fiz o comparativo devido para o mercado onde vivo (Suécia), e concluo que a mesmíssima velharia que procuro custa cerca de um terço do preço cobrado em Portugal. A Suécia, onde as pessoas ganham em média três vezes mais, pagam três vezes menos por um carro velho.

    Portanto, a culpa não é do senhor J ou de qualquer outro vendedor. A culpa dos preços faraónicos é da carga fiscal absolutamente surreal.

    De facto, sempre que dou uma perninha no recrutamento do meu empregador e entrevisto portugueses a caminho de uma vida no Ártico, vem algures no processo a pergunta sobre o custo de vida.

    A minha resposta, já gasta, e repetida 500 vezes, é de que tudo, à excepção do supermercado e do vinho, é mais barato ou tem um custo idêntico ao português. A conversa dos carros surge sempre como exemplo da carga fiscal, tal é a diferença, absolutamente pornográfica, de preços.

    black and silver laptop computer

    Não é propriamente uma grande revelação se vos disser que nos primeiros três meses de 2022, no top 5 de carros mais vendidos em Portugal estão 3 Peugeot, um Renault (Clio) e um Citroen (C3).

    A carga fiscal é tão grande que para a bolsa de um português, um Renault Clio com um motor de um corta-relva é um luxo que, quase novo, custa mais de 20.000 euros. Na Suécia, o mesmo carro, com zero quilómetros, custa menos 3.000 euros.

    Nas ilhas portuguesas, onde resido, a este cenário dantesco juntam-se os custos do transporte. O resultado final é tão disparatado que acabamos a discutir preços de carros com 20 ou 30 anos e quatro voltas dadas ao Mundo como se tivessem saído das fábricas ontem.

    O drama maior nem é a carga fiscal disparatada, mas o facto de esta não reverter em função dos contribuintes. Pagamos em Portugal por impostos noruegueses, mas recebemos serviços do Zimbabué.

    Se uma Toyota de 1985 custasse 10.000 euros por causa da carga fiscal, mas depois os putos, aqui da freguesia, tivessem uma creche gratuita, tudo bem. Agora quando a carga fiscal se destina a tapar buracos do BES, do Rendeiro e das PPPs, eu já tenho alguma dificuldade em aceitar tais disparidades.

    De modo que fico um pouco limitado nesta minha aventura agrícola, e não estou bem a ver como posso ser um gestor de unicórnios decente. Nem os meus pais me ofereceram hectares, como fizeram em tempo útil os do Macário, nem o Estado me dá uma folga com os impostos sobre o ferro-velho. E julgo, é só uma suspeita, que nada do PRR me cairá no bolso.

    Não é, enfim, Macário quem quer. Há que aguentar e ir desviando dos buracos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O sol está aí; portanto, a Revolução pode esperar

    O sol está aí; portanto, a Revolução pode esperar


    São dias complicados, estes que vivemos, para os mercados liberais, empreendedores de unicórnios e self-made men em geral.

    Vieram recentemente a lume as confissões de um lobista da UBER, explicando o tráfico de influências com os Governos locais, de forma a contornar as leis do trabalho e, até, na instigação e aproveitamento da violência gerada (nomeadamente com os taxistas) para denegrir a concorrência.

    time lapse photography of man riding car

    A investigação passou por vários países, e chegou a Portugal, onde a estratégia assumida passava por dizer aos condutores que se deixassem agredir para, depois, se manchar o nome da ANTRAL e dos seus dirigentes.

    Ficou também demonstrado que a UBER pagava elevadas quantias às cúpulas governamentais de forma a poderem aproveitar os buracos na lei e escaparem ao Código do Trabalho nos mais diversos países.

    Dizem os entendidos que, novamente, outra start up de sucesso é, afinal, apenas mais um esquema de exploração de trabalhadores, corrupção na camada dirigente e lucros em barda para os accionistas, “cagando” sempre que possível nas leis dos locais do trabalho.

    A frase repetida por Cotrim de Figueiredo vai ruindo com os castelos de cartas associados aos brilhantes exemplos do empreendedorismo. O liberalismo funciona e é necessário, mas não se percebe onde. Quer dizer, para quem não seja accionista. Digo eu, que tinha verdadeiras e fundadas esperanças na UBER, e esperava que a concorrência (dentro da lei) melhorasse o serviço de táxis, que era e é, por vezes, miserável.

    U.S. dollar banknote with map

    Ainda recolhíamos os cacos desta martelada gananciosa no liberalismo mais puro (seja lá isso o que for) e, no minuto seguinte, sabíamos que o juiz Carlos Alexandre recebia a resposta ao e-mail que enviara em 2011 para um banco suíço. Fui ler novamente: ONZE anos!

    Que tipo de servidores e protocolos de comunicação usarão os suíços? No meu tempo de estudante de telecomunicações, lá no início do século, já nada mexia com menos de 56kbit. Não sei se, entretanto, a Suíça voltou a enviar mensagens por sinais de fumo e há 11 anos que andam com o clima nublado… Pode ser isso. De facto, pode ter sido um problema técnico.

    O juiz Carlos Alexandre, rapaz conhecido por fazer perguntas chatas, queria saber se havia por ali dinheirinho do Rendeiro e dos outros amigos do BPP. Isto a propósito daquela investigação que começou quando a MEO ainda se chamava TMN e o Sporting ainda não tinha querido ganhar quatro títulos de campeão numa segunda-feira de manhã.

    Os suíços, conhecidos pela sua neutralidade e esconderijo natural de dinheiro roubado, demoraram 11 anos a responder a um pedido de um tribunal de União Europeia. Neste caso, o tribunal do nosso Carlos. Ao que parece estiverem a contar as notas, à mão, e lá se aperceberam que tinham 12 milhões dele, bem guardadinhos, numa daquelas gavetas que se abrem com duas chaves, como nos filmes do Clooney. Portanto, sim, havia dinheiro e estava lá. A resposta demorou mais do que o coveiro do Rendeiro a chegar.

    green trees on mountain under white clouds during daytime

    A atitude suíça é lamentável (a palavra apropriada seria algo obscena, mas evitemos isso aqui no jornal). E, depois de décadas a servir de paraíso a ladrões, uma pessoa até se pergunta para que serve este pequeno país entrincheirado no coração da União Europeia, mas fora de todas as suas regras. Ou melhor, até nos passa pela cabeça aquele pensamento de “porque não invadiu Putin antes Zurique e deixou Kiev em paz?”. Alegadamente, claro.

    O dinheiro entretanto descoberto pertence(ia) ao falecido Rendeiro, que o guardou para poder envelhecer na Quinta do Lago (sem incêndios, obviamente), enquanto alguém ia pagando as dívidas do BPP.

    A ideia nunca foi devolver os 7% prometidos nas aplicações do BPP (ainda me lembro desse cartaz), mas sim o de garantir a fuga e o sossego na velhice.

    As dívidas do BPP, esta é a parte gira, ascendem a cerca de 600 milhões. A parte do Estado andará nos 50 milhões e o resto é devido aos Zés deste país que foram trabalhar para longe das sardinhas, e imaginavam, nos seus tórridos pensamentos matinais, que um dia teriam uma reforma.

    Portanto, o dinheiro destapado 11 anos depois serve, quando muito, para a cova de um dente das dívidas. Acho que é altura de os gestores do BPP pedirem um crédito de 600 milhões (menos os 12 milhões que ficarão, veremos, para o Estado)… Dizem-me que as taxas de juro estão óptimas.

    Enfim, confesso: estas notícias deixam-me irritado. Por vezes, deixo-me dominar pelo sangue que corre em todos nós, latinos da margem certa do Tejo.

    Na minha cabeça amontoaram-se textos cheios de vocábulos de Bocage, absolutamente proibidos num jornal de respeito como o PÁGINA UM. Depois olhei para a minha montanha e reparei que o sol tinha aparecido. Notem que esperei 30 dias para ver o sol, neste pedaço de Mundo onde as nuvens reinam. Respirei e relativizei a coisa.

    O Rendeiro está morto, a História não foge. Os mercados fizeram asneira, mas, certamente, amanhã farão outra vez.

    O sol apareceu e, estou confiante, a Revolução pode esperar um bocadinho.

    O liberalismo não vai mudar assim tanto em 24 horas, não é?

    N.D. Este texto foi escrito ontem. O autor informou, entretanto, que hoje o céu está novamente encoberto. E o liberalismo está na mesma…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?

    ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?


    O problema de ler um acórdão é que, quando se dá por ela, estamos a ler outro, ou uma coisa parecida. Desta vez mais simples e com linguagem que se percebe à primeira: uma deliberação, embora o senhor que é responsável seja um juiz, e logo juiz conselheiro.

    Falo da ERC – que é, como quem diz, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, que divulgou na quinta-feira a tal deliberação que se foca numa queixa feita pelo Partido Comunista Português (PCP) contra a SIC, a propósito de uma peça transmitida na edição de 6 de Março do “Jornal da Noite” sobre o comício dos 100 anos realizado no Campo Pequeno.

    Comício do PCP no Campo Pequeno, em Lisboa, no passado dia 6 de Março.

    Antes de ir à deliberação, deveria dizer-vos em que jornal li sobre isto, para não pensarem que passo o dia a fazer refresh no site da ERC. Confesso: li em nenhum jornal.

    Então?! Vi num rodapé da CNN? Também não.

    Terá sido numa discussão de jornalistas indignados no Facebook? Epá!… também não.

    Foi mesmo a “vastíssima” equipa do PÁGINA UM que me alertou. Fora isso, ninguém, absolutamente ninguém referiu o assunto.

    Enfim, sabemos que há um sentimento mais ou menos generalizado sobre o PCP e o espaço mediático. São dos que mais pancada apanham e, até ver, a sua presença na antena dos comentadores ou mesmo no espaço informativo é muito reduzida.

    Senão vejamos. A Marktest publica mensalmente uma tabela com as 10 personalidades com mais tempo de antena nos telejornais dos canais públicos e generalistas privados. Fui, por curiosidade, ver essas tabelas no período desde que começou a invasão da Ucrânia, ou seja, desde Fevereiro de 2022.

    Num espaço de cinco meses – repito, cinco meses –, o PCP teve pouco mais de um hora de intervenção nas televisões portuguesas. Aparece neste ranking apenas no mês de Fevereiro e em nono lugar.

    Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, durante o comício no Campo Pequeno.

    Para se ter uma noção das proporções, no mesmo período André Ventura tem mais de oito horas de antena, Sérgio Conceição cerca de 3,5 horas, Augusto Santos Silva um pouco mais de seis horas, Inês Sousa Real, do PAN, mais de quatro horas, tal como Catarina Martins do Bloco de Esquerda. Por sua vez, Rui Tavares tem 2,5 horas e até Fernando Santos, o treinador dos cinco trincos, tem mais de duas horas.

    O espaço reservado para membros do PS ou PSD ultrapassa sempre as 10 horas mensais.

    Portanto, não é preciso um estudo exaustivo para provar o óbvio: o PCP é o partido mais atacado pela comunicação social e, em simultâneo, aquele a quem é dado o menor tempo de antena para que se defenda.

    Não é assim de estranhar que a deliberação da ERC passe absolutamente despercebida. É que, para além de dar razão à queixa feita pelo PCP, arrasa a SIC na sua tentativa de misturar informação com opinião, neste caso, pejorativa.

    Eis os pontos que interessam reter:

     – A referência aos 101 anos do Partido «como idade suficiente para dizer sempre a mesma coisa», assim como a referência à «cartilha» assentam numa avaliação pessoal e preconcebida do jornalista sobre as posições do PCP. 

     – Estando em causa uma notícia, não deve ficar patente a visão subjetiva do seu autor, nos moldes ocorridos no caso em apreço. O registo opinativo não deve constar de peças jornalísticas, devendo ser relegado para os espaços de comentário, devidamente identificados.

     (aqui, acrescento eu, a SIC não se contenta com a dúzia de comentadores que já tem a desancar o PCP, precisa que os jornalistas façam as reportagens e induzam os espectadores à sua opinião sobre os factos relatados)

     – Refira-se, por último, que a SIC apenas aparentemente está a dar voz às posições do PCP e a garantir o pluralismo político-partidário, uma vez que os elementos opinativos presentes na peça jornalística conferem um sentido negativo à informação noticiada. 

    –  Assim, a peça jornalística não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela integração de elementos opinativos no discurso do jornalista, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista

    Conclui a ERC, dizendo:

     a)  Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista;

    b) Instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.º, n.º 2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.

    Ora, trocado para miúdos, o que significa isto? Significa que a SIC fez uma peça jornalística onde tentava influenciar a opinião dos espectadores de forma negativa sobre o PCP e, como consequência desse jornalismo encapotado, vai ter que… NADA.

    Vai ter que ler esta deliberação aqui, cheia de tau-taus e consequências zero. 

    Peça da SIC, não identificada mas com locução do jornalista Pedro Coelho, de 6 de Março passado.

    Isto é o equivalente daquelas passagens de infância pelo Pingo Doce para roubar Toblerones onde, depois de apanhados pelo segurança, se ouvia um raspanete e depois só nos deixavam levar os Twix sem pagar… Quer dizer, alegadamente; ouvi dizer. 

    Portanto, a primeira questão que coloco é para que serve uma entidade reguladora que não regula?

    Depois, se cada grupo editorial tiver a sua linha de acção bem definida e “informar” sem rigor e a favor de uma agenda, que estímulo terão para parar?

    Para além do brio profissional (ou código deontológico) que, espero eu, norteie os jornalistas, quem é que mete algumas regras nesta selva da informação e da manipulação de factos?

    É que convenhamos, hoje (e ontem, vá), o alvo do ataque é o PCP. Quem é de direita não se incomoda, quem é de extrema-direita vibra.

    Mas se a agenda mudar e o fogo cerrado cair noutras cores, certamente os desagradados serão outros.

    É, na verdade, o princípio que está errado. Não há pluralidade no comentário com a opinião representada; basta pensar que Portugal é governado à esquerda há muitos anos e o espaço de comentário é largamente dominado, em todas as televisões, por pessoas de direita. E se a isso juntarmos notícias com agendas ideológicas, bom, sobra-nos pouco espaço para recolher informação e acreditar nas notícias.

    O perigo é sempre o mesmo. Uma sociedade mal informada, é uma sociedade que não pensa e dificilmente reage. Em suma, uma sociedade mais dócil para quem comanda. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O teatro das operações: um espectáculo!

    O teatro das operações: um espectáculo!


    Sentado perto da minha janela, vejo o pior verão da História: frio, vento, chuva e, julgo, três horas de praia em três semanas. É assim que, a apenas duas horas de Lisboa, numa ilha dos Açores, de casaco vestido, acompanho o inferno que assola o território continental português.

    Como é mais ou menos óbvio para quem me vai lendo, e ao contrário da maioria dos portugueses, eu não percebo nada de árvores. De floresta, muito menos. Nem sei o que arde melhor, o que deveria ser plantado ou se o eucalipto é que dá cabo disto tudo. Não sei se o fogo é posto por malucos, e nem sei sequer se posso usar o termo “malucos”. Estou certo de que existirá uma expressão associada a uma doença qualquer que eu deveria aplicar nesta frase. Mas fica mesmo assim. O PÁGINA UM não é o Facebook…

    stage light front of audience

    Também não entendo bem a lógica do fogo posto para vender depois a área ardida, ou a eterna conversa dos matos por limpar. Sei apenas que não me lembro do último ano em que o Verão não fosse significado de intermináveis directos do “teatro de operacões”, e fico sempre espantado como é que, num país tão pequeno e com tantos hectares ardidos, há sempre material para o ano seguinte. E sempre, mas sempre, todos parecem apanhados de surpresa.

    Ou são os meios aéreos que não estavam preparados e vão a correr alugar Canadairs a Espanha e Marrocos, ou são as matas que envolvem as aldeias que não foram limpas, novamente, na Primavera.

    Até os bombeiros, cujo estatuto de voluntário não se percebe na realidade portuguesa, repetem a cada Verão as péssimas condições de trabalho sem que algo verdadeiramente mude para o ano seguinte. Parece que apreciamos este filme, repetido, entre festivais de Verão, a cada Julho ou Agosto.

    Assim, as minhas dúvidas, também repetidas, resumem-se a três questões:

     Por que não têm os bombeiros o estatuto de profissionais dada a sua importância para a segurança das populações?

     Por que razão não se legisla de forma a punir severamente o fogo posto? (ou a proibir a venda de área ardida)

     Por que razão não se vigia a limpeza das matas, sejam elas públicas ou privadas?

    silhouette of trees during sunset

    Compreendo que não seja fácil controlar a manta verde do país, mas tenho a impressão de que nada é feito no lado da prevenção. E se temos cheias no Inverno com as sarjetas entupidas como não ter fogos no Verão com as florestas sujas. E como se pode ser sempre apanhado de surpresa por isto?

    Sobre a razão do eucaliptal como matéria de lucro e fogo rápido, deixo a discussão, que vai ardente, para quem a saberá fazer melhor. Uma vez mais, tal como no tema dos aeroportos, acho que menos diretos inúteis e mais debate sobre este tema, ajudariam a esclarecer a população.

    Também entendo que, nos dias que correm, quanto mais sangue se transmitir maior a possibilidade de aguentar o espectador preso do outro lado, embalado no drama relatado pelo jornalista. Mas, ainda assim, parece-me que a concorrência é tal que estamos a atingir um ponto de puro espectáculo e venda de angústias em directo.

    Há pouca informação relevante e muito corre-corre ofegante.

    Se no início da guerra da Ucrânia tínhamos jornalistas em Kiev, com o capacete posto, a falarem sobre mísseis disparados a 1.000 quilómetros – que, tal como nós, tinham visto na televisão –, agora temos jornalistas que se metem a inalar fumo para tossirem em directo.

    Ontem, na SIC, algures no Centro do país, a jornalista descrevia o horror com as chamas ali ao lado. Pelo meio, achou boa ideia ir entrevistar um bombeiro que, aflito, corria para apagar o fogo. Ele, meio ofegante, ainda lhe disse de forma educada que tinham que tirar a carrinha da frente porque estavam a estorvar, ao que ela, sempre com a magia do momento no pensamento respondeu, “claro, tiraremos logo que possível, assim que acabarmos o directo”.

    two firefighters walking on burned trees covered with smoke

    Acho bem. Que o Senhor nos livre de perdermos um minuto do avanço das chamas. Aliás, quanto mais se atrasar a passagem do camião dos bombeiros, mais se garante material para novos directos. Absolutamente brilhante.

    Já ali perto de Aveiro, numa auto-estrada em chamas, um jornalista da TSF achou boa ideia ir a conduzir e a filmar com o telemóvel. De repente, sem que estivesse à espera, foi apanhado por uma zona de intenso fumo onde as chamas cobriam toda a auto-estrada.

    O que fez ele num sítio sem qualquer visibilidade? Continuou a filmar. Aquilo que era apenas uma acção ilegal, passou a ser uma acção ilegal e incrivelmente estúpida. Tão estúpida e inconsciente que, obviamente, se tornou viral depois de reproduzida por diversos jornais. E porquê? Porque a aflição do momento e a angústia do perigo vendem mesmo que contenham 0% de informação. Provavelmente até venderão mais sem informação, porque esta, ainda assim, dá algum trabalho a compreender.

    O país já sabia que a zona de Aveiro estava em chamas e que a auto-estrada estava prestes a ser fechada. Assim, pergunto: que ganhámos ao ver um condutor a filmar esse mesmo incêndio visto de dentro? É como meter a cabeça na boca de um leão para provar que ele não tem cáries.

    Os festivais de música já mudam de sítio, nos Olivais, em Lisboa, encerram os parques infantis, sítios que, como todos e todas sabem, são altamente propícios a fogos, não é? Passeios em bosques nem pensar, porque os sapatos podem fazer faísca entre as pedras, e churrascadas dão logo direito a multa. Mas se quiserem conduzir às escuras por dentro de um incêndio e filmar, já está tudo bem.

    purple and orange galaxy photo

    Estamos agora sempre em modo histeria, repetindo tudo o que se fez nos últimos anos. Seja covid-19, seja Ucrânia, seja aeroportos, tudo neste país se discute aos berros, em directo, com muita alma, espectáculo e “Últimas Horas”. Um desgastante e interminável rolo compressor de imagens repetidas, notícias requentadas e dramas vendidos à peça. Uma e outra vez, sem qualquer atenção ao que realmente importa: informar.

    Chego a desligar tudo e a ficar completamente imune às histórias reais que passam despercebidas no meio do espectáculo e da batalha pelos clicks. Gostava, por exemplo, que num Setembro qualquer, depois dos bombeiros conseguirem ter uma semana de descanso, que alguém se sentasse a discutir o estatuto de carreira desta gente.

    E gostava de ver notícias sobre isso.

    Até compreendo a lógica de, por exemplo, os bombeiros serem voluntários na Gronelândia. Devem ter um fogo para apagar de três em três anos. Agora, e em Portugal? Um país que arde todo a cada Agosto e renasce em Dezembro, precisa mais de bombeiros profissionais do que de… deixe-me ver… submarinos. Lembrei-me agora desta.

    Mas venham de lá os clicks que logo se pensa no resto.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional

    Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional


    Não sei se já leram um acórdão de um tribunal: é coisa mais chata do que ouvir um discurso do 10 de Junho sem os desmaios do Cavaco – que, parecendo que não, sempre dão outra animação à coisa.

    Faço, por isso, tudo o que posso para não ver nada decidido por um tribunal, porque, em geral, os juízes dão duas dezenas de voltas à semântica para dizerem que sim ou que não. Uma pessoa precisa de ler a mesma estucha cinco vezes até perceber se lhe deram razão ou não.

    Dito isto, enfim, fui ler o douto Acórdão nº 464/2022 do Tribunal Constitucional.

    E por que razão me interessou em particular? Porque alguém me disse que o dito declarava inconstitucionais os confinamentos fora dos Estados de Emergência.

    Como fiquei na dúvida, depois de o ler só quatro vezes, fui então ver a imprensa nacional sobre o tema. E vi que já fazia notícia de capa, nomeadamente no Diário de Notícias, a inconstitucionalidade da coisa. Assim sendo, partindo do princípio que estamos todos no mesmo barco da compreensão, resta a pergunta que conta: e agora?

    Bem sei que já ninguém quer saber da covid-19. E ainda bem, acrescento. O Froes ainda aparece de quando em vez a falar na 38ª vaga e a tentar vender umas vacinas e uns antivirais, mas está com pouca saída. A malta prefere o Zelensky, os aeroportos e o rapaz que carregou a ovelha em Leiria. Mesmo assim eu gostava de trazer o assunto à mesa, mesmo por apenas uns minutos. Depois esquecemos esta conversa e vamos refrescar na praia. Vocês. Eu continuo no inverno açoriano.

    Primeiro, convém recordar que quem se revoltou contra os confinamentos de gente saudável foi, carinhosamente, apelidada de negacionista.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Isto porque, em teoria, devíamos abdicar da liberdade individual a troco de nos protegermos uns aos outros. Lembram-se?

    Quem não se fechava em casa de livre vontade estava a infectar o vizinho. Isto mesmo se o vizinho fosse todos os dias para o trabalho no comboio a abarrotar da linha de Sintra. Aquilo que não podia acontecer era cruzarmo-nos num restaurante ou até, quiçá, sentarmo-nos no mesmo banco de jardim. Ou até fazer tudo isto sozinho.

    De igual forma, todos achavam normal mandar uma turma inteira para casa, porque um aluno estava infectado. Quem não concordasse era, logicamente, um assassino. Isto apesar da taxa de mortalidade nas crianças ter andado – deixa-me cá ver os papéis – nos 0%.

    As deslocações de e para Portugal passaram a ser um inferno. Quarentena obrigatória e coisas do género. Quem não obedecesse à restrição dos movimentos injustificados era multado. E tachado de negacionista, também.

    Eis agora, portanto, que aparece o Tribunal Constitucional, essa entidade negacionista também, presumo, a declarar a inconstitucionalidade de tais imposições fora do Estado de Emergência. De modo que, voltando à questão, e agora?

    Quem é que se responsabiliza pelo tempo de aulas perdido?

    woman sitting on land

    A quem é que se vão pedir as indeminizações pelos dias em confinamento sem possibilidade de trabalhar ou de ter um salário?

    Com quem é que falamos sobre o tempo que perdemos com ente-queridos ou até as despedidas que não fizemos e que já não poderemos fazer?

    O tempo que passámos enfiados em casa, saudáveis – que agora se traduziram numa factura gigante e, para alguns, no fim de um emprego –, cairão sobre as costas de quem?

    As exigências para voar – que, na prática, impediam a vinda a Portugal dos emigrantes por períodos curtos – ficam em que gaveta de reclamações?

    No fundo, quem é que vai indemnizar os “negacionistas” que repetiram, até à exaustão, que o confinamento, além de ilegal, não resolvia absolutamente nada? E não resolvia nada, porque a maior parte da população – o tal sector produtivo e dos serviços essenciais – continuava activo e a deslocar-se nos transportes públicos, e a cruzar-se uns com os outros e a regressar a casa para o seio familiar.

    Imagino que ninguém. Ninguém. Chegámos ao ponto de ter de concluir que, durante um período da nossa História, andou-se a restringir a liberdade de movimentos à população só porque sim. E insultámos quem não concordou. 

    white arrow painted on brick wall

    Quem achava que o confinamento era uma obrigação moral e que, sem isso, não “ficaríamos todos bem”, deve questionar-se agora como é que as vagas de covid-19 não terminaram – e, pior, como é que o Tribunal Constitucional reverteu os “doutos conselhos” dos Froes, dos Antunes e dos Coronas desta vida.

    Agora, enfim, fica mesmo assim: fechamos este capítulo e quem gritava “assassinos” aos contestatários dos confinamentos, reza por uns rodapés discretos deste acórdão. Tudo muito discreto, nada que levante demasiadas ondas, nada que os faça compreender onde estava o lado certo da História.

    Partamos, sim, calma e ordeiramente para o abuso seguinte. Esqueçamos já que a histeria raramente é boa conselheira da Ciência… e da Política.     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Há quanto tempo não muda de cuecas?

    Há quanto tempo não muda de cuecas?


    A frase “hoje foram cancelados X voos” entrou nas redacções, em força, para substituir a outra, já mais gasta por esta altura: “o número de infectados por covid-19 subiu para Y”.

    Entendo que os canais informativos, especialmente os que precisam de 24 horas diárias de assunto, vão atrás de qualquer gota de sangue. Ainda assim, existem temas que se esgotam rapidamente. Aos habituais directos dos “teatros de operações”, que saem sempre muito bem nesta época do ano, juntou-se a azáfama dos aeroportos e das filas intermináveis.

    Nunca percebi o valor informativo de um directo para observar um regimento de bombeiros em acção, e ainda tenho mais dificuldade em perceber o que ganhamos nós, espectadores, com aquele simulacro informativo, diário, em directo da Portela.

    Interessa a 99,9% da população saber o número de voos cancelados hoje? Por acaso iam voar?  Quão deprimente é ver uma jornalista a chatear passageiros, que desesperam em filas de quatro horas, com perguntas do género: “acha que se vai resolver?”

    Se nem os funcionários do balcão de cada companhia aérea sabem para onde a coisa vai, quanto mais os desgraçados que andam a contar os dias de férias que sobram depois desta empreitada.

    Hoje ouvi uma jornalista, julgo que da CNN, a perguntar a uma passageira se tinha sido informada do estado das coisas. É mais ou menos o mesmo que perguntar a um urso polar se já viu gelo. Há alguém neste planeta, mesmo o monge tibetano mais recolhido, que não saiba de cor e salteado quantos aviões não saíram da Portela? Haverá algum pastor numa aldeia dos Himalaias que não saiba por esta hora que, no hub da TAP, a maior parte dos voos cancelados são, curiosamente, dessa mesma TAP?

    orange and grey passenger seats

    Normalmente, quando fazem esta contagem de voos e nos dizem quantos são da TAP, esquecem-se de dizer que no Charles de Gaulle a companhia com mais cancelamentos é a Air France, em Barajas a Iberia, em Heathrow a British Airways, em Frankfurt a Lufthansa e em Arlanda a SAS. É uma informação que, a meu ver, fazia falta para se completar o ramalhete de 10 minutos televisivos a explicar que a água molha. O interesse disto seria zero, ainda assim, mas pelo menos os espectadores percebiam que Lisboa sofre do mesmíssimo problema de qualquer aeroporto europeu (ou mundial) com muito tráfego neste período pós-pandemia. E sempre se enchiam mais uns chouriços.

    Depois de percebermos que o caos no mundo da aviação se generalizou é que poderíamos começar uma discussão interessante e, até quem sabe, responder à pergunta do “acha que isto se vai resolver?”

    Por exemplo, em vez de directos razoavelmente deprimentes, ou perguntas para analfabetos, dirigidas a passageiros que já têm problemas maiores para resolver, poderiam as televisões abrir espaços de debate para debate sobre o problema. Bem sei que ninguém me perguntou nada, mas este mau tempo não me deixa ir para a praia. Um homem tem que ocupar o tempo.

    Se convidassem membros do Governo, especialistas da aviação (companhias aéreas, gestores dos aeroportos, etc.) e alguns economistas, só para termos momentos de filosofia, todos bem sentadinhos num painel de debate, talvez nos conseguissem explicar como é que chegámos aqui.

    white airliner on runway

    Por exemplo, se me deixassem fazer uma pergunta nesse painel, seria esta: “como é que a Segurança Social pagou às empresas para não despedirem os trabalhadores e, mesmo assim, chegamos ao período pós-pandémico com uma imensa falta de trabalhadores?”

    Dados do Governo português, em Maio de 2020, confirmavam o apoio a cerca de 40 mil empresas, num total de 600 mil trabalhadores. Imagino que o número tenha aumentado no ano que se seguiu.

    Porque, como diria o nosso António, vam’lá a ver, esta seria a teoria. Os governos decretaram que nada mexia, aviões incluídos, porque o Mundo estava perto do apocalipse e, em princípio íamos todos morrer. Mesmo ao fim de um ano e números semelhantes aos da pneumonia (mortes), os governos europeus não abrandaram. Tudo quieto, todos em casa e os aviões no chão. Pelo esforço de todos, fomos batendo palmas e, aqui e ali, saltava um arco-íris com a promessa que tudo iria ficar bem.

    Uma das formas encontrada para ficar tudo bem foi, no caso português, aumentar a dívida pública e financiar as empresas para que mantivessem os seus trabalhadores sem produção. No caso da aviação, essa realidade era mais do que óbvia, porque, todos percebemos, as ligações estavam praticamente congeladas. Eu confesso que achei boa ideia na altura e o raciocínio também era simples: se por decisão dos Governos não podíamos trabalhar, seria sua obrigação social (dos Governos) garantir o sustento de cada família, fosse como fosse. Com ou sem engenharia financeira.

    Claro que todos percebíamos que o endividamento viria como factura algures no tempo, mas, em princípio, os postos de trabalho estariam assegurados.

    Depois de dois anos com os movimentos condicionados, os europeus quiseram sair de casa e voltar a viajar. E bem. Porém, agora, de Norte a Sul, Este a Oeste, vão chegando relatos de aeroportos absolutamente entupidos e voos cancelados. Em todos a mesma justificação: falta de pessoal.

    E é aqui que começa a minha curiosidade. Falta de pessoal, porquê? Os empregos não deveriam estar garantidos pelo erário público para que “tudo ficasse bem” depois da pandemia? [Nunca sei se devo dizer “depois da pandemia”. Certamente estarei a ofender algum Antunes que me possa ler]

    Vejo duas hipóteses para o caos actual. A primeira: as empresas usaram o dinheiro para garantir lucros e, pelo caminho, aproveitaram para fazer os despedimentos à mesma – ou restruturações, como lhes chamam os gestores premiados. A segunda, menos rebuscada: o pessoal do sector foi para outras áreas profissionais que não tenham sido tão afectadas. Ou ainda, no caso do pessoal mais especializado (manutenção, pilotos, etc.), aproveitaram para mudar de empregador e fugiram para as Arábias (Emirates), Inglaterra (EasyJet) ou qualquer outro destino onde não lhes cortem os salários em 45%.

    Provavelmente, a junção das duas resultou nisto. Neste caos, nesta falta de pessoal um pouco por todo o lado. A isto juntam-se as greves dos trabalhadores que sobraram. Com a pressão existente sobre as empresas e os atrasos que prometem comprometer o Verão, é natural que os trabalhadores façam valer os seus direitos e tentem recuperar o que perderam durante o confinamento. É a lei do mercado a funcionar a favor de quem trabalha. Não pode servir só para benefício do patronato e dos especuladores, portanto, há que aguentar.

    Em todo o caso, se pouco se pode fazer se um trabalhador mudar de empregador, já sobre uma empresa despedir quando todos lhe pagamos para que não o faca, há mais qualquer coisa a fazer. Nomeadamente, perguntas.

    Há alguém que ande a perguntar ao pessoal da aviação que recebeu as ajudas do lay-off, para onde foram os trabalhadores? Eu tenho alguma curiosidade em saber. Com 10% do tempo diário gasto em directos inúteis no aeroporto de Lisboa, organizava-se um debate para esclarecimento.

    Enfim, quanto a vocês não sei, mas, pessoalmente, não estou muito interessado em saber há quantos dias o senhor que vai para o Recife não muda de cuecas. Já descobrir para onde foram os funcionários da aviação, especialmente aqueles que estavam protegidos pela Seguranca Social, dava-me algum jeito. A mim e à senhora da CNN que pergunta todos os dias se achamos que a coisa se vai resolver.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Emigração: um estudo sobre água molhada

    Emigração: um estudo sobre água molhada


    Segundo um inquérito/estudo feito pela SEDES a 300 emigrantes – será uma amostra representativa? –, 70% queriam regressar a Portugal. Este era o título da notícia que me chamou a atenção em vários jornais. Isto significa que 210 portugueses, entre as três centenas que foram ouvidos, queriam voltar ao país de origem. E se tivessem perguntado a 301, e eu fosse um deles, então seriam 211.

    Depois do cabeçalho, fui ler o corpo da notícia para perceber como é que a matemática funcionava para aqueles meus 210 conterrâneos. É que, como perceberão, a maior parte dos emigrantes gostaria de não o ser. Bem sei que há quem vire costas para não mais voltar, mas julgo que, arriscarei pouco, se disser que a maior parte desejaria o sol português com o salário do estrangeiro.

    desk globe on table

    O mistério esfumou-se em poucos segundos de leitura. Querem voltar, sim, mas na reforma ou daqui a um par de anos. Ou seja, a matemática do emigrante ainda é aquela prova dos nove que nos afasta de casa.

    Este é um dos fados absolutamente insuportáveis da condição de emigrante português.

    Quem se habitua a viver fora de Portugal, compensa as amarguras dessa condição com a melhoria das condições de vida. E acaba por ficar prisioneiro delas. Todos, ou quase, acabamos em mesas redondas de balanços de vida. É agora que voltamos? Há condições? Conseguimos pagar as contas? Os familiares estão a ficar mais velhos? Temos que estar mais presentes? Os amigos ainda se lembram de nós? Dá para aguentar mais três anos?

    Para mim é fatal como o destino que, a cada fim de Verão, me candidate a vagas em empresas portuguesas, ou a recrutar em Portugal. É uma espécie do renovar da esperança de que algo tenha mudado desde a última conversa. Entenda-se, desde o último Setembro.

    Sempre, ou quase sempre, interrompo as entrevistas para colocar um fim ao processo de selecção. E faço-o sem grandes justificações ou sequer sem mostrar metade da frustração que sinto. A culpa não é, nunca foi, de quem do outro lado da linha fala comigo e apresenta propostas de trabalho relativamente semelhantes às que ouvia em 2006, antes de ter decidido emigrar.

    brown cupcakes on silver tray

    A culpa é de um tecido empresarial que ainda procura o lucro através de baixos salários, de um regime fiscal pesadíssimo – quase sem retorno para quem o paga – e do constante atraso nas políticas salariais que tornam o país atractivo para os tubarões multinacionais, que recebem força de trabalho altamente especializada, a troco de amendoins.

    De modo que, a cada Setembro, me interrogo se consigo pagar um apartamento em Lisboa com 25% do salário actual. Não, não consigo.

    E no Miratejo? Aí já consigo. Então é melhor ficar quieto.

    Quando me dizem que dinheiro não é tudo na vida, eu sou o primeiro a concordar.

    Normalmente quem o diz não tem casa para pagar, mas isso, são detalhes. Os baixos salários portugueses não seriam problema se as rendas, os empréstimos, o imobiliário e os restantes custos do quotidiano se adequassem. Se uma casa em Lisboa custasse 50 euros por mês, um salário de 700 euros seria óptimo. O problema é que a despesa cresce como na Europa civilizada, mas a receita, de cada um de nós, cresce ao ritmo do Congo. Alegadamente e sem ofender os nossos camaradas congoleses.

    No fundo, a dúvida é se devemos continuar a sofrer longe ou se queremos passar a sofrer mais perto. Normalmente vence a casa aquecida e a facilidade de não andar a fazer contas a meio do mês. Depois, em cima disto, ainda aparecem as vantagens de sistemas políticos mais justos, menos corrupção, sociedades que funcionam de forma simples e pouco burocrática, saúde gratuita, educação universal.

    Aposta-se em mais um ano e pensamos, à Sporting: “para o ano é que é!”.

    E assim acabamos a engrossar a lista de quase três milhões de emigrantes espalhados pelo Mundo, números oficiais, embora se estimem muitos mais. E a contribuir para a famosa lista das remessas que, dizia Clara Ferreira Alves um dia destes, já não são significativas.

    euro banknote collection on wooden surface

    Segundo dados do Observatório da Emigração, em 2020 foram enviados cerca de 3 mil milhões de euros para Portugal pelos emigrantes, quase 2% do PIB do país – ou seja, uma Autoeuropa. Adorava ler o dicionário da Clara Ferreira Alves e perceber o que é significativo.

    Quando discuto este tema, até com outros emigrantes, observo as reacções de desprezo a um possível regresso. A vida em sociedades mais evoluídas – perdoem-me o termo, mas a comparação e todas estatísticas europeias o provam – dá-nos outra visão do nosso próprio país.

    Eu compreendo as queixas e até o facto de alguns não quererem voltar para o nosso cantinho, mas não é a minha. Não conseguir regressar, deixa-me frustrado, não me faz sentir melhor por estar num país rico ou até num sistema político mais limpo. Nós somos o que somos, para o bem e para o mal. Se a vida dos meus filhos não sofresse com essa mudança, eu preferia encerrar o período de emigração e abdicar das facilidades sociais proporcionadas longe daqui, e até de um conforto que em Portugal nunca tive.

    Aquilo que não consigo aceitar é que, por causa de décadas de escolhas erradas do ponto de vista político, de fundos europeus mal gastos ou da gigantesca corrupção que tudo leva, eu tenha que me sujeitar, ao fim de 20 anos de trabalho, a receber um salário miserável e a viver num subúrbio qualquer, porque, entretanto, a cidade onde nasci me ficou vedada.

    red green and yellow flag

    Depois de 35 anos na União Europeia, com uma dependência enorme dos subsídios, Portugal tem a melhor rede de estradas da Europa e as Parcerias Público-Privadas (PPP) mais absurdas. Mas não tem uma rede de creches públicas em condições, ensino universal e totalmente gratuito, cuidados para cidadãos em fim de vida (despejar velhos em lares ilegais é de Terceiro Mundo) e até o SNS, antiga jóia da Coroa, já teve melhores dias. As casas boas e centrais são para estrangeiros, aos portugueses de classe média resta o subúrbio e um encolher de ombros perante a voracidade da especulação descontrolada.

    Chegamos ao ponto de formar engenheiros para lhes pagar 800 euros ou implorar por trabalhadores para o turismo a troco do salário mínimo. Caminhamos para sermos uma República Dominicana europeia onde o investimento público na Educação se converte em mão-de-obra para outros parceiros europeus. É obra. Da estupidez, é certo, mas ainda assim obra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.