Autor: Tiago Franco

  • Caldeirada à Abrunhosa 

    Caldeirada à Abrunhosa 


    A minha memória não é grande coisa, e ainda bem. Tirando os repetidos escândalos na banca, que nos perseguem há mais de uma década, vou esquecendo tudo o que vou lendo ao fim de pouco tempo. Gosto de atribuir essa falha à minha memória, mas há a hipótese, também real, do volume de cambalachos em Portugal ser de tal monta que, se torna humanamente impossível guardar espaço de processamento mental para todos.

    Parece que, a cada semana, temos mais um Mário Ferreira, mais um Rendeiro, um novo Vara, um aprendiz de Relvas. E antes que apareça o Leitor Provedor da Verdade a clamar por provas, adianto-me: tudo parece ser legal. É essa a beleza do nosso sistema. Tudo parece ser legal e, provavelmente, será.

    Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

    Noticiou o Observador que duas empresas, detidas pelo marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, receberam cerca de 133.000 euros dos fundos comunitários, de um total de 303 000 euros que foram entregues a Portugal.

    Aparentemente, não há nada ilegal em receber dinheiro público de instituições tuteladas pela mulher. O comentador Sebastião Bugalho, sempre afoito na defesa de dinheiro público em bolso privado, dizia na CNN que um empresário em Portugal tem de recorrer a fundos europeus porque, cito, “há pouco capital no país”. E que, nesse cenário, não poderia ser prejudicado por uma simples certidão de casamento. O amor não olha a subsídios…

    Compreendo o jovem Sebastião – e, aliás, pela primeira vez até consigo concordar com cinco palavras oferecidas por ele. De facto, há pouco capital em Portugal, mas, como se percebe, não afecta maridos de ministras. E é nesse ponto que estas histórias me deixam sempre intrigado.

    stack of books on table

    A apregoada meritocracia raramente chega às manchetes dos jornais. Já casos aparentemente legais e difíceis de compreender, na lógica da moralidade, são o pão-nosso de cada dia.

    Só esta semana ficámos a saber da entrada no curso de Medicina da Universidade Católica de uma aluna sem média, mas filha de um benemérito… Perdão: um benemérito insigne. Os beneméritos ainda ficam à porta da Católica.

    Entretanto, Paula Amorim, uma das herdeiras do império, dizia no podcast de Balsemão, com um violino triste ao fundo, que teve que abandonar os estudos aos 19 anos para assumir um lugar no Conselho de Administração da empresa do pai. O drama, o horror, o mérito dos genes de uma teenager que, coitada, começa pelo topo sem passar pelas etapas dos comuns mortais.

    E agora temos uma empresa criada em 2020 pelo marido de uma ministra do centrão a conseguir receber, apenas dois anos depois, 133.000 euros de fundos comunitários. Parece aquela história do filho do Sérgio Figueiredo que, em menos de dois anos como empresário, já recebia um milhão de euros da Câmara Municipal de Lisboa presidida pelo amigo Medina.

    Tudo isto será certamente legal. Obviamente, veremos os papéis que precisamos e alguma página do Código Civil nos dirá que tudo aquilo está óptimo.

    Mas é um carrossel que nunca pára, não é?

    A História de Portugal na União Europeia é muito isto. Em vez de se usarem os fundos comunitários para criação de riqueza – o que, aliás, enfim, era a premissa inicial –, escolhemos andar mais de três décadas a enriquecer uma elite com as maiores fatias do bolo, e largamos, aqui e ali, umas migalhas para o povo. Passámos a ser gestores de subsídios com os partidos do centrão a revezarem-se na distribuição pelas respectivas clientelas.

    O português médio tem de passar o inferno burocrático para receber as esmolas anunciadas com pompa por António Costa em tempo de pandemia e/ou guerra.

    Já a um marido de uma ministra ou a um filho de um director de uma televisão, basta-lhes criar uma empresa no Simplex, e passados dois anos começa a chover fundos comunitários. E nem sequer é o primeiro marido de uma ministra ou o primeiro filho de um director. E não serão os últimos…

    close-up photo of assorted coins

    O povo embrulha-se em sangue para não perder casa, salários mínimos ou para cumprir critérios que lhes permitam um apoio de 125 euros. E fazem-no massacrados por uma carga fiscal absolutamente incompreensível, sobretudo se pensarmos nos serviços que acabam por não ser disponibilizados em troca dessas contribuições.

    Mas para quem está no sítio certo, no aparelho do poder e naquela minoria que vai, de facto, gerindo a riqueza que chega ao país, tudo isto são notícias de rodapé, vistas pelo canto do olho, enquanto se procura o saca-rolhas que abrirá uma reserva de 2009.

    E que por mais coincidências com aspecto de escândalo, nós vamos continuar a encolher os ombros, e continuar a pensar como é que o Ronaldo falha aquela “merda” com a baliza aberta…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mentirosos pela Verdade 

    Mentirosos pela Verdade 


    Passei o fim-de-semana a construir um bunker e a actualizar as reservas de papel higiénico, pelo que consegui ler pouco daquilo que vocês escreveram. Mas ouvi muito, porque, para me armar em tecnológico, tenho sempre o Bluetooth ligado às orelhas.

    Se fosse fazer um ranking do que mais gostei, à la Catarina Furtado nos tempos do Top+ (we go way back!), diria que o mais tocado esta semana foram os Mentirosos pela Verdade.

    man in black shorts standing on beach shore during daytime

    Os Mentirosos pela Verdade são um clã – sem o sonho do GTI, atente-se – que patenteou, ali desde Abril de 2020, a Verdade Única e Universal (VUU).

    Eram as pessoas que, em Maio de 2020, nos juravam que a Suécia matava velhinhos para poupar nas pensões. Ou que eram criminosos por não fecharem escolas (com 0% de mortes por covid-19). Ou, ainda, que colocavam a Economia antes das pessoas.

    Entretanto, quando a factura chegou a Portugal, tanto em dívida como no número de mortos, lá acabaram por perceber as evidências e começaram a gritar com o Governo pela falta de apoios para debelar a crise.

    A mesma crise que aplaudiram e agradeceram, sentados nas varandas, durante o confinamento.

    Entretanto a Suécia saiu da pandemia de pé, e, de joelhos, os Mentirosos pela Verdade foram em busca de novo tema.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Chegada a guerra da Ucrânia e novo palco para verdades inquestionáveis. Desde logo, o novo conceito de solidariedade. Temos que ser parte activa. Se não formos, apoiamos Putin. Se questionarmos porque andámos 70 anos a ignorar outros invadidos, somos whataboutistas. Se não tivermos particular admiração por nenhuma das “democracias” no Donbass, somos cúmplices.

    Se apoiarmos refugiados ucranianos, devemos fazê-lo porque eles não escolheram a guerra. A russos não podemos, porque, lá está, eles não fizeram nada para a evitar.

    Afinal, o que é que lhes custava entrar no Kremlin e rebentar com aquilo tudo? O Tom Cruise conseguiu essa proeza, na Missão Impossível 4? Não deve ser assim tão difícil! Tão impossível!

    Se homens ucranianos choram na fronteira da Polónia, porque o Zelensky lhes fechou a fronteira, apoiamos o Zé. Se homens russos choram na fronteira da Finlândia, porque a Sanna lhes fechou a porta, apoiamos a Sanna.

    blue and brown hand painting

    Se a NATO envia armamento pelos seus estados-membro e a União Europeia suporta financeiramente, e, apenas graças a essa ajuda, a Ucrânia consegue resistir, logo surgem os Mentirosos pela Verdade a insistir que este é um conflito entre dois países.

    Quem não defende a invasão, mas também não quer ver a União Europeia envolvida, recordo, é um putinista. Lembro-me que no auge do whataboutismo diziam os analistas Mentirosos pela Verdade que os ucranianos estão mais perto, e que nada daquilo era comparável à Faixa de Gaza, lá tão longe onde o Criador (louro de olho azul) foi perder as botas entre as palhas em que dormia.

    A mesma verdade já não se aplica a russos – e compreende-se. São louros, mas estão geograficamente mais longe de Bruxelas. Especialmente aqueles da Sibéria que, ainda por cima, são meio achinesados. Estavam a pedi-las. Que fujam para Ulambatar e comecem uma tribo nómada.

    people having rally in the middle of road

    Hoje dizem-nos que o referendo no Donbass é ilegal. E acertam. É factual. É uma tentativa tosca e despudorada de anexação e violação do direito internacional.

    Em seguida falam os membros da NATO dizendo que se o Donbass for anexado, a reacção dos parceiros será rápida e poderosa.

    Dos parceiros que não participam, não financiam, não planeiam e não contribuem para a guerra… É isso, não é? Por favor, não se esqueçam desta parte.

    Não deve ser fácil, de facto, ver o Mundo só com duas cores. Mas, se for esse o caso, junta-te ao clã. A vida é muito mais fácil. As certezas quase eternas. Quase, aviso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alerta CM: chantagem do Império 

    Alerta CM: chantagem do Império 


    Enquanto vou conduzindo para a Suécia (sim, sou um emigrante old school que ainda não se converteu aos aviões), vou pensando nesta coisa dos bluffs políticos. 

    Não precisamos deles para vender jornais e fazer Alertas CM, mas depois exigimos que o bluff seja mesmo bluff, porque o contrário atrapalha-nos mais a vida. 

    Confusos? Também eu. Mas vamos aqui pensar em círculo como se estivéssemos numa reunião dos A.A. 

    closeup photo of dices

    Quando Putin disse que a NATO se estava a aproximar do quintal, ninguém quis saber, porque, obviamente, ele não teria coragem de largar uns mí­sseis. Afinal, a Rússia estava decrépita e refém de uma pequena economia… 

    Reparem que nesta discussão importa pouco o que é propaganda ou realidade. Até se dá de barato a argumentação utilizada, que todos percebemos ser apenas uma desculpa para um braço-de-ferro entre impérios. Ou vá, um I’m back à disputa do domínio mundial, versão Kremlin. 

    O que quero para já reter desta conversa é que ele, Putin, avisou que as negociações da Ucrânia com a NATO teriam consequências. E tiveram. Julgo que ao fim de sete meses, milhares de mortos, uma pazada de refugiados e várias taxas de juro depois, podemos todos concluir que aquele lunático não estava a brincar. 

    six fighter jets

    Agora, enquanto se prepara um referendo para anexação de partes do Donbass que, já todos vimos, fará parte da narrativa seguinte de “ataques em solo russo” para justificar o uso de armas nucleares, volta a história do bluff

    Ouvi ontem na CNN, RTP e SIC, diversos analistas com uma ideia comum: Putin não terá coragem de despejar uma bomba atómica. Até ouvi, de boca um pouco mais aberta, que, quando muito, faria umas explosões nucleares controladas. Umas cargas mais pequenas, pelo desprezo da descrição, ali umas coisinhas de carnaval sem aquele cheiro a bufa. 

    Não sou grande jogador de póquer e não arrisco análises sobre intensidades de bluffs, mas fico sempre espantado com a ligeireza com que se julgam as palavras de um gajo que já não tem nada a perder. Ou que, como provam estes sete meses, não é grande jogador de cartas e parece não ter grande vontade para recuar. 

    grayscale photo of person holding glass

    Se ele diz que a Rússia tem o maior arsenal nuclear do Mundo (é factual esta parte, espero não estar a dar uma grande novidade), e que o usará em caso de ataque em território nacional (que daqui a umas semanas terá uma parte do Donbass), porque insistimos nós na conversa do bluff? Ainda não morreu gente suficiente? 

    Putin disse no seu discurso à Nação que, caso o Ocidente continuasse a fornecer armas à Ucrânia, o conflito tenderia a escalar e passariam ao nível de armamento seguinte. A corja de velho encabeçada por Biden disse logo que, tudo bem, ele que venha que a NATO continuaria a fornecer a Ucrânia. O que se percebe.

    O cheiro a churrasco de uma ogiva em Kiev, em princí­pio, não atrapalha o aroma de um barbecue em Washington e, nesse sentido, Biden até vê com bons olhos pedrada da grossa no Leste europeu. Isso transformado em venda de armas, energia para a Europa ou, até, enfraquecimento do contrapoder russo, é Chopin para os ouvidos do Biden. Mas em piano, note-se, não violino como o Santana Lopes pensava existir…  

    yellow and black road sign

    Li uma crónica com um argumento que me pareceu também fazer sentido. Dizia que não podemos ceder à chantagem do nuclear porque, desde Fevereiro, sempre esteve em cima da mesa e, seguindo esse raciocínio, estarí­amos sujeitos a que qualquer potência nuclear invadisse territórios quando bem lhe apetecesse. Concordo, em absoluto. Agora, o Alerta CM aqui é que (rufem os tambores!) já é assim que o Mundo funciona. Estão a ver essa parte? 

    Quando os Estados Unidos decidem invadir o Afeganistão porque uns sauditas lhes rebentaram dois prédios, fazem-no porque… podem. Quem é que se vai meter em frente daquele arsenal e dizer: “olha­, tentem antes o diálogo!”. 

    Se os israelitas carregados de armas nucleares ocupam territórios há 70 anos é porque, lá está, têm poder bélico para isso.

    Se os kosovares arranjaram um paí­s podem agradecer a uma “força de defesa”, por acaso também nuclear, que bombardeou os sérvios (pela paz, eu sei!).

    people gathering on street during nighttime

    A guerra civil na Sí­ria terminou quando uma potência nuclear entrou no conflito e a outra, que apoiava os rebeldes, achou melhor recuar.

    A Líbia derrubou o regime quando um exército mais poderoso invadiu o território sem que ninguém lhe fizesse frente.

    O Tibete deixou de ter voto na matéria quando um dos maiores exércitos do Mundo achou que era tempo de anexar.

    Os curdos não conseguem definir fronteiras porque ninguém se atreve a confrontar um exército com o poderio do turco.

    Ou seja, em resumo, desde o império romano, passando pelo Alexandre o Grande, vikings, os mongóis no século XIII e a armada invencível espanhola, no século XXI ainda é a força que dita leis. 

    brown wooden bench on brown sand during daytime

    Espero continuar no domínio do banal e não estar a trazer novidades a ninguém. Portanto, quando se diz que não vamos ceder à chantagem do nuclear a minha resposta é, vamos. Vamos pois. Aliás, não temos feito outra coisa ao longo dos séculos. Manda quem a tem maior, neste caso ogiva. 

    Claro que me poderiam dizer: “ó Tiago, mas o Putin é um imperialista do pior, bem pior do que os outros a que já nos habituámos a obedecer e não podemos deixar passar; há que ficar na miséria e torrar tudo na Ucrânia”. Ora, vam’lá a ver: pessoalmente, o Putin mete-me tanto asco como qualquer parceiro europeu que lhe andou a apertar a mão (ou que ainda apertam dentro da União Europeia, seria engraçado discutirmos isso um dia). E as guerras criadas pelo imperialismo russo prejudicam-me tanto como as guerras financiadas ou criadas pelo império americano.

    As tangas que usam para as invasões são essencialmente as mesmas, embora o marketing americano seja melhor. Por exemplo, no Iraque, estivemos ali até à última para saber se apareciam as armas de destruição maciça ou não. Parecia o fim de uma novela na TVI e aquela incerteza de quem casa com quem. 

    Já o disse várias vezes que se tiver que abdicar da minha vida, pelo menos quero escolher a causa. E se o objectivo é empobrecer e comprometer o futuro de uma geração para libertar outros povos e mostrar solidariedade, então, se não se importam, eu gostaria de começar por quem sofre opressão não há sete meses, mas sim há 70 anos. 

    Querem os poderes mundiais continuar a combater uma guerra até ao último ucraniano, paga pelo endividamento dos europeus? Muito bem. Suspendam os pagamentos dos créditos bancários e metam as taxas de juro no… ia escrever aquela palavra com duas letras, a primeira um C e a última a quinta vogal do abecedário, mas isto é um jornal de respeito.

    Já nos basta a inflação e a perda de salários reais que, como qualquer economista vos dirá em 75 palavras e termos técnicos, corresponde ao empobrecimento geral das populações. 

    Portanto, se chegamos aqui praticamente de joelhos, sugeria que, quando outro maluco fala em bombas nucleares, façam o favor de não usar metáforas com jogos de casino como se isto fosse lá longe. 

    Não é. Nem longe e, provavelmente, nem bluff

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um debate nos ares por três nefelibatas professoras

    Um debate nos ares por três nefelibatas professoras


    Não sou grande companhia de viagem quando estou num avião. Encosto-me à janela, e tento dormir, para que o relógio avance sem eu dar por ele. Detesto andar de avião, mas faço-o com uma regularidade assinalável há uns bons 35 anos. Num mundo desenhado por mim, a ferrovia e as pontes atravessavam continentes. Mas adiante – não nos percamos nas minhas fobias.

    Entrei no avião que me traz para casa, aqui na pequena ilha de Santa Maria. Conhecemo-nos quase todos, percebe-se quando vem “gente de fora” só pelo recheio das filas. Fiz o meu número habitual, capuz na cabeça, um primo qualquer do Xanax na boca e uma musiquinha que me embalasse. Vejo o Cristo-Rei, depois a Linha de Cascais, e já está, mar a perder de vista para as próximas duas horas. O sol na janela vai-me aquecendo e começo a adormecer.

    low angle photo of airliner and buildings

    Um ruído ali perto vai-me incomodando. Aumento o volume da Garota de Ipanema, e foco-me no sono. Não funciona e olho para trás onde, a duas filas, três reformadas com colares de madre pérola discutem a guerra na Ucrânia.

    Aos poucos, as vozes das estimadas senhoras vão substituindo a de António Carlos Jobim. Um tom nasalado que ecoa por toda a cabine, e que não deixa ninguém indiferente.

    Não são idosas como a minha avó, entenda-se. Não são mulheres do campo. São daquelas que, como diria Maria Francisca, tinham empregos muito bons em escritórios. Para a minha avó qualquer pessoa que trabalhasse num sítio com janelas tinha-se dado bem na vida.

    Note-se que estava um dia de calor, húmido e quase tropical, mas elas não abdicaram dos fatos com saia e jaqueta, daquele tecido grosso e quente, enfeitado com um broche de jóias na lapela. Ainda são da geração que se veste, a preceito, para viajar.

    white airplane flying in the sky during daytime

    Pela propagação das ondas de som, eu apostei em professoras reformadas. Repararão, os caros leitores, que ao fim de umas décadas de profissão os professores, aqueles que entretanto não ficaram malucos, desenvolveram uma espécie de surdez que os leva a falar sempre aos berros. Ou, como diria o meu sogro quando a mulher, também professora, fala ao telefone: “para que usas o tablet quando podes só gritar e eles ouvem-te do lado de lá?”

    De modo que o estilo me era, de alguma forma, familiar.

    Nesta altura já tinha perdido a Elis Regina e até o Vinicius. Só ouvia as senhoras que, com alguma pompa, davam uma aula aos restantes 160 passageiros. Desisti da bossa nova e passei para a fila de trás, para ficar mais perto da fonte do saber. Foi nesta altura que percebi que ia ter tema para o PÁGINA UM.

    “Que horror aquele massacre em Izim ou Izum ou lá como se chama aquilo”, dizia a professora principal, a que falou durante as duas horas sem pausas para água.

    As duas assistentes concordaram, acenando com a cabeça e emitindo um síncrono “hum-hum”. E continuava na análise. “Onde é que já se viu matar gente assim? No meio do nada?”

    flying airliner plane during daytime

    E uma das assistentes tenta meter um paninho quente com um “bom… é uma guerra, já se sabe, há crimes todos os dias”.

    A professora-rainha não ficou contente com a tentativa de argumentação e contra-atacou: “Todos os dias? Mas tu achas que os ucranianos também matam e torturam como os russos? Não te lembras do que aconteceu quando o Napoleão tentou invadir a Rússia? Mataram aqueles franceses todos e fartaram-se de lhes roubar cavalos e comida?”

    Por esta altura, pensei que a estridente anciã tivesse visto, em directo, a batalha de Krasnoi, quiçá na CNN, tal era o à-vontade com que relatava as barbáries que os russos tinham infringido ao invasor francês.

    Percebi também que era um pouco indiferente a posição em que os russos estivessem, invasores do Donbass ou invadidos por Napoleão, o seu destino deveria ser a guilhotina. Sempre e em qualquer situação.

    “E agora é igual! Antes roubavam cavalos ao Napoleão, agora roubam máquinas de lavar ao Zelensky”, continuou a professora em análise profunda. “São uns desgraçados que nem sabem o que ali estão a fazer, o Putin não lhes diz nada… não ouviste o que disse o Milhazes ontem?”.

    white biplane

    Abriu a boca a professora mais calada, entretida até então com a sandocha de bolo lêvedo e a bolacha mulata, oferecidas pela SATA como amostra de produtos regionais. “Mas se o Milhazes diz que a informação não chega à Rússia, como é que ele sabe tanto? O homem não viveu lá 40 anos?”.

    A reitora começou então a perder o rumo da aula, e interrompeu: “Mas tu não vês que ele vinha regularmente a Lisboa e ia fazendo actualizações? Agora, imagina aqueles desgraçados lá no meio da Sibéria, que nunca viram um gira-discos, quando se apanham ali em Donetsk com tanto para roubar!”.

    A outra assistente que parecia querer dar mais luta disse: “bom… Donetsk também não seria propriamente Tóquio, não é que os ucranianos andassem a exportar tecnologia e tal. Também eram outros desgraçados sujeitos a governos corruptos e pouco democráticos. Enfim, uma miséria pegada!”

    “Então achas que por serem pobres também, e o governo ser corrupto, já podiam ser invadidos e mortos?”, disse a professora-chefe, já com o tom nasalado a rebentar pelas costuras e o piloto a ouvir parte da aula. “Não, não acho que devam ser invadidos, mortos ou sequer incomodados. Os ucranianos ou os russos. Acho que velhos decidem guerras e os novos morrem nelas”, tentou rematar uma das assistentes para voltar ao bolo lêvedo.

    gray hardside luggage

    “Ahhh… lá estás tu com as tuas conversas bonitas! Já não vais ao Avante desde 78, mas ainda repetes esses chavões! Tens que tomar partido! Quem invade nunca tem razão!”, lá ripostou a catedrática.

    Entrou então a apaziguadora na conversa e disse: “é nestas alturas que fico feliz por não vivermos num país corrupto, com imprensa livre, que não se mete em guerras ou aparece nos Panama Papers”. E voltou para a bolacha mulata, que molhou no chá de tília.

    Encerraram elas por ali o debate, com a certeza de a sua informação, aquela que lhes chegava, ser total, verdadeira, sem hipótese de contraditório.

    Acreditando que há bons e maus numa guerra, que impérios do bem são amigos e impérios do mal são opressores.

    Dizendo, a professora-chefe, que “não podíamos parar de ajudar até todos os russos estarem no chão”. Os tais russos bárbaros que também o eram quando Napoleão, e bem pelo que percebi, os tentou invadir. Não podemos baixar os braços e desistir. Nós, todos, os ocidentais que recebemos a informação completa e sabemos, ao minuto, os horrores da guerra vividos pelo lado bom.

    two man carrying backpacks during daytime

    Elas, sem renda de casa para pagar, sem juros da Lagarde, com a reforma garantida para os próximos 25 anos (diz o Costa) e com dinheiro suficiente para, em conjunto, visitarem as ilhas dos Açores, desembarcaram felizes e com a sensação de dever cumprido.

    O moral ficou em alta. Todos temos que ajudar, dê por onde der, custe a quem custar. Menos elas, claro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Que fazer com a propriedade privada dos outros?

    Que fazer com a propriedade privada dos outros?


    Tenho por hábito escrever sobre o que me rodeia e sem grandes amarras no pensamento. Quem me conhece sabe a quem entrego o meu voto e quem me vai lendo, por esta altura, também já deve ter percebido. E eu acho isso óptimo.

    Gosto de assumir as minhas convicções e, em simultâneo, o meu direito ao pensamento livre. Não concordo ou discordo de algo por ser da ideologia política A, B ou C. Concordo com o que me parece ser lógico, sensato e parte integrante daquele que seria, idealmente, o meu modelo de sociedade.

    white and red wooden house miniature on brown table

    Imagino que todos tenhamos um modelo de sociedade na cabeça que, dificilmente, será retratado integralmente no programa de um partido político.

    Isso significa, em resumo, que PSD e Liberais dizem coisas, às vezes, com as quais concordo. E PS, PCP e BE dizem coisas, às vezes, com as quais discordo. Mentiria se não dissesse que me custa mais quando aqueles mais próximos daquilo que defendo fazem ecoar asneiras na Assembleia da República.

    Dito isto, temos o que Joana Mortágua disse, na semana passada, em discurso no Parlamento, que a falta de alojamento para os recém-entrados no ensino superior se devia à opção dos senhorios de retirar as suas casas do mercado de arrendamento de longa duração e colocá-las no alojamento local. Pretendia o BE que o Governo travasse esta situação.

    É uma espécie de tiro no pé, desde logo do Bloco de Esquerda, mas também da esquerda de uma forma geral.

    Compreendo que a minha opinião no tema não vá de encontro à dos que, por norma, votam ao meu lado, mas enfim, como expliquei ali em cima, penso e respondo pelas minhas ideias.

    people sitting on chair in front of computer

    O BE tem razão quando diz que o desvio de casas para o alojamento local prejudica os estudantes. É factual. São menos propriedades disponíveis no mercado.

    Agora, não pode em momento algum – ou não deve – sugerir que seja o Governo a decidir o que fazer com a propriedade alheia. Das duas uma: ou somos contra a propriedade alheia e vivemos todos em colectividades – o que está longe da sociedade que defendo –; ou, se permitimos a existência de propriedade privada, não podemos depois decidir o que eles devem fazer.

    Joana Mortágua, ou o BE, parecem cair no limbo das opiniões vezes em conta. Há uma certa dificuldade de assumirem uma posição, se esta for pouco popular, criando uma ideologia de agradar a todos.

    O resultado são as contradições em que se perdem. Por exemplo, Joana Mortágua tem uma herdade no Alentejo; não consta que a tenha convertido em abrigo quando os nepaleses dormiam em contentores em Odemira.

    Residências universitárias, por exemplo, seriam uma das soluções deste problema que Joana Mortágua aponta.

    green grass field with trees and buildings in distance

    Investimento a sério num país que precisa rapidamente de parar de exportar universitários.

    Há, de facto, muita coisa que o Governo pode fazer, como seja o combate à especulação, tanto no mercado de arrendamento como no da compra.

    Bem sei que há uma parte da esquerda que se indigna com a propriedade privada. Eu não. Se uma pessoa trabalha para comprar algo, ou recebe de uma herança familiar, beneficiando do trabalho dos seus antecessores, não vejo problema algum. Se alguém trabalha e investe numa casa, ou duas, ou três, é porque se esforçou para lá chegar; é porque estudou e trabalhou para isso.

    Nem todos chegamos da China e compramos casas a dinheiro para obter vistos Gold. Nem todos temos o acesso aos créditos do BES como se fôssemos um Vieira ou um Vasconcellos.

    A maior parte trabalha uma vida para pagar créditos e construir qualquer coisa. Nada disso contraria aquilo que imagino para uma sociedade, e lamento se alguma esquerda não vê para lá disso. Nem será o caso do BE que, convenhamos, gosta bastante da propriedade privada embora repita ad nauseam este slogan dos pobres e desamparados.

    group of people using laptop computer

    Enfim, onde começa o meu “problema” é no aproveitamento desmesurado da falta de habitação por causa dos preços especulativos. E, por favor, não me digam que é uma questão de mercado ou da lei da oferta e da procura. É um simples aproveitamento em regime de cartel para cobrar preços absolutamente escandalosos; no fundo, como acontece com o cartel das petrolíferas. Todos se queixam, mas o princípio é essencialmente o mesmo.

    Era aqui – na disparidade de preços quando comparados com a realidade nacional – que o governo deveria intervir.

    Mas claro, todos percebemos que a especulação imobiliária se traduz em avultados impostos, e, portanto, é outra galinha dos ovos de ouro para o PS (ou PSD) distribuírem pelas habituais clientelas das parcerias público-privadas (PPPs), bancos, Mários Ferreiras, auxiliares dos auxiliares de secretários de Estado, e por aí fora. Certo como o destino, é saber que esse dinheiro não chega onde deveria – neste caso, à Educação.

    books on brown wooden shelf

    Era aqui, nestes pontos, que eu esperaria, também, que o BE gritasse a plenos pulmões. Em vez de tentarem mexer na propriedade privada dos outros, poderiam e deveriam exigir, isso sim, investimento na Educação, de forma que Portugal tivesse, finalmente, um sistema de ensino universal.

    Dizem-me que já tem, que a Educação é tendencialmente gratuita. Mas não é. Vejo as diferenças, diariamente, entre as duas realidades em que me desloco: Suécia e Portugal.

    Na Suécia temos creches grátis em cada bairro e um abono mensal de 100 euros, ensino básico e secundário sem qualquer custo (livros, comida, computadores) e universidades gratuitas, para além da possibilidade de um empréstimo estatal (um salário) disponível para cada aluno do Ensino Superior, assim o deseje contrair. É este o conceito de Educação universal. A garantia que o filho de um padeiro e o filho de um advogado recebem as mesmíssimas condições no ponto de partida.

    white red and green map

    Eis a garantia, por lei, que o filho de um pescador só será pescador se assim o entender. Tudo feito com o Estado Social, a solidariedade dos escalões progressivos nos impostos e uma carga fiscal totalmente direcionada para a população.

    Claro que, com isto, as estradas suecas não chegam aos calcanhares das portuguesas, mas minhas senhoras e meus senhores, isso é que são escolhas que decidem o futuro das gerações seguintes. A Suécia apostou na formação da população; nós, em Portugal, apostámos na Mota-Engil.

    Opções políticas, dizem uns – corrupção da boa, digo eu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Suécia: os frios ventos da mudança

    Suécia: os frios ventos da mudança


    No momento em que escrevia ainda se contavam os votos das eleições que ocorreram no passado domingo, para o Parlamento sueco. Os dois blocos que podem formar governo estavam separados por 0.7%. Em concreto, por um lado, 49% para a “geringonça” formada por socialistas, comunistas, verdes e centristas; e, por outro, 49.7% para a aliança de direita formada pelos moderados (o mais parecido com o PSD sueco) liberais, democratas-cristãos e democratas suecos (o Chega local).

    Até ver apenas três partidos ganharam votos relativamente às últimas eleições: socialistas, verdes e nacionalistas, sendo que estes últimos, com uma forte campanha contra os emigrantes, passaram a ser a segunda força política no Parlamento sueco.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Toda a discussão em torno dos emigrantes é interessante, mas deixá-la-ei para outro texto, depois de ver a constituição do Governo. Aquilo que, de facto, me intriga nesta retórica da emigração são os números.  Na Suécia, como em Portugal, o saldo de emigrantes que contribuem para o país com impostos é esmagador, quando comparado com os que beneficiam das ajudas.

    Ainda assim, lá como cá, a narrativa de que “vivem à nossa conta” vai rendendo dividendos. Seria até interessante que deixassem a Suécia apenas recheada de louros. Gostava de ter dedos para contar as falências no dia em que os dois milhões de emigrantes e descendentes arrumassem a trouxa.

    Há ainda assim uma saturação da população com o actual estado de coisas. Isso parece-me óbvio. Julgo que não será pelo comportamento do Governo durante a pandemia, onde foi, provavelmente, o melhor e o que mais respeitou as liberdades individuais em toda a Europa.

    Mas as repetidas crises de refugiados parecem ter deixado marca. A Suécia ainda não aluga terreno no Ruanda para enviar para lá os desesperados que fogem das guerras (como faz por exemplo a vizinha Dinamarca), mas as portas vão-se, lentamente, fechando.

    Resultados das eleições legislativas às 12:00 horas de hoje. Fonte: Aftonbladet.

    Um em cada cinco eleitores votou no partido que anunciou no Twitter que a próxima paragem da comunidade afegã seria Cabul. E apenas com bilhete de ida.

    Os liberais anunciaram que queriam as ruas livres de islâmicos e até os moderados (PSD), entraram no ataque racista na tentativa de captarem alguns votos à extrema-direita.

    Como a cópia nunca é melhor que o original, acabaram por contribuir para a subida dos nacionalistas. Aliás, em todo este processo há vários pontos de contacto com Portugal. Ulf Kristersson, líder dos moderados comprometeu-se em 2019, aquando de uma visita a uma sobrevivente do Holocausto, a nunca colaborar com os nacionalistas.

    Agora, sendo imperativa a sua presença para que a direita seja governo, apressa-se a discutir pastas e alianças com Jimmy Åkesson, o André Ventura lá do burgo. Parece uma repetição dos Açores com as contradições de Rui Rio, de então, a serem agora refletidas na governação sueca.

    Os socialistas foram o partido mais votado com os comunistas a aparecerem com a quarta força. Democratas-cristãos e liberais aparecem, respectivamente, em sexto e sétimo.

    Não me sinto particularmente confortável que 20% da população vote num partido que persegue etnias, raças ou credos, mas fico ainda mais perplexo com a incoerência do povo. Há pouco mais de dois meses, metade da população disse que queria entrar na NATO por receio da Rússia de Putin. Agora votam em massa num partido simpatizante com a política do nosso Vladimir, um dos vários que, de Budapeste a Varsóvia, passando por Paris e Roma, ali encontraram um parceiro.

    À direita há a promessa de baixar impostos e, claro, reduzir o Estado Social. Esse mesmo que faz da Suécia o primeiríssimo Mundo onde ninguém morre à porta de um hospital ou adormece na rua. O sítio onde a progressividade dos impostos não se destina a parcerias público-privadas (PPPs), a bancos ou a estradas sem fim, mas sim a educação universal e ajuda à população.

    Na Suécia recebemos o que pagamos em impostos. Tudo. Da creche à universidade, da Segurança Social ao desemprego. Até quando, é o que nos falta descobrir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…

    Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…


    Ursula von der Leyen discursou esta manhã em Bruxelas uma boa horita. Ou como Fidel lhe chamaria, “uns bons cumprimentos iniciais”.

    Garantiu algumas coisas que me deixaram deveras descansado, logo a mim, confesso contribuinte europeu preocupado.

    Desde logo disse que “Putin falhará e a Ucrânia e a Europa prevalecerão”, e que as sanções à Rússia são para manter, e que as ajudas financeira e militar para a Ucrânia são para manter. Positivo: até porque, como se tem visto, este é um caminho de sucesso… Garantido!

    Ursula von der Leyen, ao centro, ladeada pelas comissárias europeias.

    Depois ainda explicou que a Europa e as suas democracias vão prevalecer, e que Putin falhará. Uma vez mais, parece-me uma excelente abordagem; porém, fico meio baralhado com a inclusão da nouvelle democracia ucraniana.

    Como sabemos, antes da invasão, a Ucrânia era um estado altamente corrupto, e naqueles rankings da limpeza aparecia ali bem pertinho da Rússia. Coloquemos os pontos nos iis: se, de repente, a Coreia do Sul invadisse a Coreia do Norte, não passaremos todos a dizer que uma democracia saudável foi invadida, certo?

    Uma merda maior invadiu uma merda mais pequena, tudo certo. Mas, por favor, evitem o discurso do Bem contra o Mal, e, especialmente, não besuntem merda com aroma de rosa, porque o cheiro não muda.

    A Rússia tem que perder esta guerra, e a Ucrânia, no cenário ideal, não deveria perder um metro de terra. Foi o que defendi na altura do Kosovo, Geórgia e qualquer outra anexação – não vou falar na mais antiga para não aborrecer os não-camaradas.

    Portanto, mantenho a coerência. Agora, não pintem a Ucrânia como vales verdejantes cheios de Heidis, porque aquilo não é, e nunca foi, algo parecido com uma democracia saudável ou de padrões europeus.

    Por fim, no seu discurso, Ursula, sabe-se lá porquê, ainda invocou a Elisabete II como exemplo maior dos valores europeus e da democracia. Aí já não dá Ursula… f$#@-se. Quem é que te escreve os discursos? Uma rainha que foi a zero eleições é um exemplo de democracia? Perdi alguma aula na escola e passei a História administrativamente, enquanto os conceitos eram alterados nos gabinetes?

    Entretanto, Lagarde ouviu este discurso e puxou logo da calculadora para encontrar o próximo aumento da taxa de juro. Aguardo em pulgas…

    Fiquei, contudo, na dúvida apenas em duas ou três coisitas, que talvez um de vós, mais estudado, me possa elucidar.

    Quem nos pede tantos esforços, e discursa de forma épica, sentindo-se um Churchill de Bruges, por acaso também leva cortes salariais? Perde poder de compra? Paga prestações ao banco? Passa anos com o mesmo salário?

    É que, se percebi bem, pode não ser o caso.

    A Europa prepara-se para ajudar os seus cidadãos nas faturas da electricidade – julgo que virá um pacote para as rendas de casa e a própria Ursula, certamente imbuída de um espírito venezuelano, já disse que é altura de limitar os preços e taxar as petrolíferas pelos lucros extraordinários.

    Portanto, vivemos uma fase de lucros desmesurado, jackpot de impostos, migalhas e esmolas para o povo e nada de aumentos salariais reais.

    Assim sendo, julgo que estamos a prevalecer bem para vencer melhor. Por mim é continuar:  também não tinha nada de especial planeado para os próximos cinco ano anos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A recessão organizada por Lagarde

    A recessão organizada por Lagarde


    Raquel Varela usou uma expressão, que considero feliz, para descrever a actual crise económica: recessão organizada. Enquanto governantes nos tentam convencer que a perda do poder de compra e a redução de salários se devem à guerra na Ucrânia, aquilo a que assistimos são lucros fabulosos na banca, nas energéticas e nas cadeias de supermercados.

    Sendo os preços definidos pelos salários e pelos lucros, sem que se conheçam aumentos significativos no lado dos salários, compreende-se que a subida de preços (inflação) se destine apenas a fazer crescer a balança no lado do lucro. É isto que o BCE de Lagarde consegue ao aumentar, repetidamente, as taxas de juro.

    man in gray jacket and black pants sitting on concrete bench

    Criar uma escandalosa orgia de lucros à custa da disparatada subida dos preços em contraponto com a estagnação dos salários. Está criada a tempestade perfeita em que o trabalhador por conta de outrem fica preso num ciclo sem saída. Por um lado, não pode deixar de trabalhar e, por outro, o valor a que vende a sua força de trabalho vale cada vez menos. Ao mesmo tempo, o lucro das corporações vai batendo recordes.

    Pelo meio, Lagarde diz-nos que é este o caminho para que a inflação regresse aos 2% lá para 2024, e António Costa (tal como os restantes governos da União Europeia), vai distribuindo umas migalhas pela população a partir do IVA extraordinário amealhado por conta da “economia de guerra”.

    Em lado nenhum se aumentam salários. Em lado nenhum se mantém o poder de compra do lado dos trabalhadores. Mas em todo o lado as empresas aumentam os seus lucros. Se isto não nos faz pensar, enfim, não sei o que mais será necessário. Talvez quando nos vierem buscar a pele.

    Dou por mim, pela primeira vez na vida, a concordar com uma afirmação de um deputado da Iniciativa Liberal. Se, de facto, o Governo quer proteger as famílias, bastaria que, por agora, reduzisse a fatia que tira de cada salário na contribuição do IRS. Era esse o verdadeiro acompanhamento da inflação.

    Mas então, e a Ucrânia? Sim, a Ucrânia, onde nos garantem que a vitória é possível (até ao último ucraniano, entenda-se), e que, de costas largas, aceita todas as justificações que nos empobrecem. Até onde iremos?

    black transmission towers under green sky

    Há uma ironia macabra em tudo isto. Enquanto os nossos governantes (europeus) nos garantem que não podemos deixar de apoiar financeiramente, e com armas, os esforços de guerra, dizem-nos que, também por causa desse esforço, devemos aceitar a perda de salários e, para alguns, das suas habitações. Isto depois de nos garantirem que a inflação seria temporária, quando todos já tínhamos percebido que estaria sempre associada (nem que fosse pela narrativa) a uma guerra que ninguém parece querer ver terminada.

    Sempre que ouço esta conversa de que a Ucrânia não pode cair, olho em volta e penso nos que, em qualquer parte do mundo, vão caindo todos os dias na ignorância dos interesses europeus. Mas mais do que isso, pergunto-me até quando aceitaremos patrocinar esta guerra com a nossa pobreza?

    Nada no terreno nos leva a pensar que os ucranianos poderão fazer mais do que resistir. Para além de Nuno Rogeiro, que nos garante desde Maio que os russos já não aguentam mais, a maior parte dos especialistas não vislumbram maneira alguma de rechaçar o exército russo do Donbass e da Crimeia. Mesmo aqueles que já viram a guerra para lá dos estúdios de televisão.

    Portanto, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos forem enviando dinheiro e armas, enquanto nós formos empobrecendo sem gritar muito, enquanto os ucranianos tiverem gente viva e enquanto os russos conseguirem vender gás e petróleo aos asiáticos, em princípio a guerra tem pernas para andar.

    battle tank on green grass field during daytime

    Quem grita pela solidariedade eterna com a guerra no Leste Europeu é quem, por norma, nunca quis saber de qualquer outra invasão. Mas é também quem, acima de tudo, vê o drama alheio sem o risco de perder o telhado ou que, apesar dos aumentos do Banco Central Europeu (BCE), tem um salário suficientemente robusto para se sentar na poltrona a exigir solidariedade. Fica bem. É a barricada dos impérios pela verdade. São a nova versão do “fiquem em casa, salvem vidas”, que o meu emprego já é para a vida.

    Acalmaram-se um pouco os falcões que exigiam a entrada da NATO no terreno (de forma oficial, pelo menos), e isso leva-nos para a parte da solução de todo este imbróglio.

    Sem a NATO e uma III Guerra Mundial, é possível derrotar os russos? Rogeiro faz-nos crer que sim, os militares dizem que não. Acreditando nestes últimos, alguns que até defendem que a única solução do conflito passará pela perda de território por parte da Ucrânia, a quem interessa o prolongamento deste conflito?

    Assim de repente, consigo pensar em várias corporações que estão a lucrar como nunca, percebo que para os Estados Unidos seja importante desgastar os russos o mais possível (até porque eles já o admitiram), e para alguns governos até a inflação parece ser positiva.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    Mas para nós, o comum dos mortais que trabalha 40 horas por semana e paga contas, de que nos interessa a moral da escolha entre impérios? A hipocrisia da invasão boa vs. a invasão má? A irritante sobranceria com que aceitamos a morte de uns, mas declaramos inconcebível o sacrifício de outros, consoante o nome do invasor ou a proximidade do nosso bairro.

    Compreendo que ucraniano algum queira perder território. Mas… tem de ser a Europa toda a pagar por isso? Não posso eu escolher a que invadido quero dar a minha solidariedade, ou, pelo menos, achar que que tenho o direito de não pagar guerras que não escolhi?

    Andei, andámos, dois anos a pagar os lucros das farmacêuticas e dos laboratórios, enquanto nos cortavam salários. Agora transferimos o valor do trabalho para o capital que está no sector da energia, do armamento, da banca. E voltamos a reduzir salários.

    Quase três anos desta merda, deste ciclo de empobrecimento. Sem que nos perguntem sequer se queremos fazer parte dele. Uma minoria que controla, dirige e oprime a maioria que trabalha, mas que, ao que parece, se recusa a pensar e reagir.

    man on front of vending machines at nighttime

    Eu não aceito que me obriguem a pagar guerras que não escolho. Nem sequer aceito que me digam quais são as guerras boas ou guerras más. E certamente não compreendo, em nome de quem é que a estabilidade da minha família tem que ser colocada em causa para que a banca, os senhores da guerra e as energéticas lucrem como nunca.

    Entre o sangue ucraniano e a pobreza que aumenta na Europa, há quem ganhe fortunas. E nós, os idiotas de serviço, discutimos 125 euros de esmola e gritamos Slava Ukraini no sofá, sem saber quanto mais tempo nos sentaremos nele.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A indecência de chamar socialista ao Governo

    A indecência de chamar socialista ao Governo


    Tinha pensado desligar-me do mundo por uns dias e seguir por caminhos enviesados nesta longa estrada que liga Gotemburgo a Lisboa. Algures entre as intermináveis filas nas estradas alemãs, cujas obras são uma constante há pelo menos 20 anos, e a extorsão que a Vinci faz nas auto-estradas francesas, aborreci-me da playlist do Spotify e virei para as notícias.

    A Jonet falava, chegavam pedidos ao banco alimentar, aumentava o número de pobrezinhos. No mundo com que sonho, a Jonet seria uma crónica desempregada. Contudo, no Portugal do século XXI, a senhora tem palco e luzes cada vez maiores.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    De seguida fala o Costa. Tinha medidas para anunciar que iriam ajudar os pobrezinhos da Jonet. Foi aqui que percebi que as obras nas estradas alemãs seriam a menor das minhas irritações em período de férias.

    O Governo anunciou um pacote de medidas de ajuda no combate à inflação e aos custos da energia. Antes de irmos às medidas em si, convém esclarecer uma coisa, a inflação aumenta o custo de vida de cada um de nós, mas traduz-se numa receita fiscal maior. Portanto, não existe qualquer pacote de ajudas em período de inflação galopante… quando muito existe um pacote de devolução extraordinária daquilo que nos tiram sem que percebamos bem porquê.

    Em todas estas discussões, onde se apuram culpados, é preciso que se perceba uma coisa: não foram os portugueses que decidiram ter uma das electricidades mais caras da Europa em simultâneo com salários dos mais baixos entre os parceiros europeus.

    E isto antes da guerra.

    E isto é preciso repetir 50 vezes para que não continuemos no engodo de atribuir à Ucrânia toda a miséria que nos assola há décadas.

    photo of truss towers

    António Costa disse que todos os cidadãos com salários brutos até 2.700 euros (cerca de 2.000 líquidos) receberiam um apoio de 125 euros. Eu juro que pensei que fosse uma verba mensal ou algo assim. Mas não. Para pessoas que deixam, no caso dos 2.700 euros de salário, cerca de 10.000 euros em IRS anual nos cofres do Estado, António Costa achou que 1,25% desse valor seria uma boa “ajuda”.

    Estamos a falar de famílias que passaram a pagar muito mais pela casa por causa das taxas de juro, que suportam os lucros pornográficos da energia (que repito, NÃO VEM DA RÚSSIA) e que ainda contribuem para mais um jackpot estatal com os impostos sobre os bens de consumo à boleia da inflação. Em resumo, e numa linguagem que se perceba, o Governo português recebeu um porco (Pata Negra, pelo menos) de cada um de nós, e resolveu dar-nos um chispe, anunciando-o com pompa e circunstância.

    Conseguiu o Governo, pela primeira vez, colocar toda a oposição de acordo, depois de este número de ilusionismo. Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal, disse, e eu concordo, se o Governo queria de facto ajudar, bastaria ter reduzido os impostos sobre os salários e permitido que, nesta fase excepcional, as pessoas ficassem com mais dinheiro no bolso para enfrentar as dificuldades.

    É, aliás, essa a base do problema: os nossos baixíssimos salários. Os 2.000 euros líquidos são o limite para a fabulosa ajuda dos 125 euros, daí para cima estão os ricos. Dificilmente se enfrentam tempos destes sem poupanças e, como qualquer um de nós perceberá, poucas ou nenhumas serão as poupanças num país onde a média salarial se aproxima dos 1.000 euros.

    two Euro banknotes

    Por isso, estamos condenados à caridade, aos subsídios, às ajudas extraordinárias. Isto porque a nossa massa salarial não é, nem nunca foi, em média, algo sequer parecido com o Primeiro Mundo.

    No fundo, somos o reflexo da política do país que durante mais de três décadas de presença na União Europeia se habitou a gerir subsídios em vez de os usar para começar a produzir riqueza. Triste fado o nosso que nos deixa de gatas a cada crise.

    Vejo também, com alguma curiosidade, a indignação (e bem) de alguma parte da direita política com o ridículo valor de 125 euros. Não nos atrapalhemos que eu também aí concordo, mas, curiosamente, é a mesmíssima direita que falava no RSI e dos Mercedes à porta. Ora, o valor é semelhante. Eu pensava que dava para fazer férias em Nassau mas, afinal, parece que não. 

    A medida de auxílio aos pensionistas foi, ainda assim, a tentativa de ilusão mais indecente deste Governo, que, lembre-se, anunciou o Orçamento mais à esquerda de sempre. Os pensionistas recebem em Outubro metade do valor da pensão e os restantes 4% de aumento em 2023, perfazendo o aumento esperado para esse ano, de acordo com o valor da inflação.

    two hands

    Contudo, a partir de 2024, o aumento incidirá sobre o valor final de 2023 (o tal a que se chegou com 4% em vez de 8%); portanto, o que na prática o Governo de António Costa faz é antecipar para Outubro de 2022 o que já estava previsto por lei, mas a partir de 2024 retira, na parte valor, até à data da morte de cada pensionista.

    Significa isto, portanto, que o adiantamento de Outubro de 2022 não aparecerá no aumento de 2023. Embora a totalidade do dinheiro recebido seja a mesma, o valor final da pensão bruta mensal não será. Portanto, quando se calcular o aumento para 2024, este incidirá sobre uma base menor. Ou seja, anunciando um aumento e uma ajuda, o que António Costa faz é, na verdade, um corte nas pensões. Segundo a ministra da Segurança Social, ontem no Parlamento durante o debate com a Oposição, devemos discutir para já 2023 e criticar, se for caso disso, o que o Governo apresentar daqui a um ano para o Orçamento de 2024. Aqui para nós, parece-me que o país percebeu rapidamente a ilusão e o PS procura empurrar com a barriga e ganhar tempo para respirar.

    O tempo raramente nos engana e seria bom, ao dia de hoje, lembrarmo-nos de quem condenou este Orçamento e quem repetiu, até à exaustão, que iria retirar poder de compra aos portugueses.

    Aí está ele, desmascarado por qualquer português que saiba fazer umas contas de merceeiro, o Orçamento mais “à esquerda de sempre”, que diminui o poder de compra dos pensionistas, rebenta com o que falta do SNS, desvia dinheiro para a NATO, mantém a Função Pública estagnada e nem por uma vez se digna cobrar impostos extraordinários sobre os lucros fabulosos do sector da energia. E isto enquanto os portugueses vão definhando para manter as casas.

    Quanto à compensação da factura da electricidade é apenas uma piada de mau gosto. Tentem manter uma casa quente no Inverno consumindo menos de 100 Kwh. O governo sueco, sem perguntas, filtros ou ses, resolveu compensar cada cidadão, ajudando com as despesas de energia para todo o inverno de 2021/2022. Através de um simples e-mail, informou que seria descontado o valor X na próxima factura e ponto final. Isto num sítio onde o salário médio deve rondar os 3.000 euros.

    person holding brown leather bifold wallet

    As medidas anunciadas em Portugal são, no fundo, uma mão cheia de nada. Uma aldrabice pegada onde o Governo poupa dinheiro dando a ilusão de que é um mecenas. Num país cada vez mais pobre e, infelizmente, dependente das ajudas, é um embaraço e uma vergonha ter que assistir ao que faz o Governo de António Costa.

    Os salários não acompanham a inflação; os impostos resultantes do aumento do custo de vida não são distribuídos; o BES (afinal) ainda existe; as clientelas e os Figueiredos também; as gasolineiras e as eléctricas continuam, em cartel, a decidir os preços praticados. E os portugueses estão reféns. De todos.

    Mas, enquanto nos continuam a roubar, tenham pelo menos a decência de não chamarem, ao Governo que nos governa, de socialista.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O t(r)emido legado da Marta

    O t(r)emido legado da Marta


    A demissão de Marta Temido tem vários ângulos de discussão e substitui, na prioridade da informação nacional, os directos das filas para compra de bilhetes para os Coldplay. Só por aí já ficámos a ganhar, e voltámos assim às discussões que interessam.

    É impossível, num texto só, abordar tudo o que já foi dito sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a demissão da senhora e o seu (e o nosso) futuro, e como tal, tentarei dividir a minha opinião por “zonas de reacção”. Não sendo propriamente um ás na arte da síntese, tentarei, ainda assim, não aborrecer o leitor.

    Marta Temido, ao centro.

    A ponta do iceberg

    Marta Temido decidiu sair depois de mais um escândalo no SNS. Sim, escândalo. Quando uma grávida morre numa ambulância estamos a caminhar a passos largos para o Terceiro Mundo. Quando uma mulher grávida é transferida, com um quadro clínico complicado, por falta de incubadoras no maior hospital do país, estamos a assistir à falência do sistema.

    A conferência de imprensa dada hoje pelos clínicos do Santa Maria, apesar das boas intenções, foi um tiro nos pés. Dizer que a mulher era estrangeira, que não se expressava em inglês ou português, e que não tinha sido admitida no hospital (mas que simplesmente aparecera lá), são argumentos absolutamente infelizes.

    Um ser humano aparece na urgência do maior hospital de um país que há 35 anos faz parte da zona mais civilizada do planeta, e até pode ser muda e paralítica… atende-se logo e não se pode mandá-la para outro lado porque há falta disto ou daquilo. É simples. Ou seria, se o SNS não andasse a ser desmantelado há anos. A culpa não é, obviamente, dos médicos, que fazem milagres com o que vai sobrando.

    photo of iceberg

    A reacção de Marta Temido

    A morte da mulher de origem indiana, grávida e de férias em Portugal, terá sido a gota de água que explica, publicamente, o caos que todos sabemos existir no SNS.

    A ministra não será certamente a única culpada, mas é a cabeça que tem de rolar. A falta de pessoal de Obstetrícia, que marcou o Verão, foi outro dos problemas que Temido carregava há alguns meses. Tal como os dois anos de pandemia em que o SNS ficou absolutamente sobrecarregado, por decisões políticas erradas, passando as demais doenças para segundo plano.

    O Governo português tomava as decisões com base numa equipa de especialistas (onde andarão eles agora?) e os hospitais privados, não sei se se lembram, decidiram ficar de fora do esforço nacional, a não ser que 13.000 euros por doente lhes fossem doados. Marta Temido foi, apesar de tudo, uma cara que tentou defender o SNS, mesmo se, aqui e ali, tenha cometido umas gaffes, como a famosa resiliência.

    Acho que foi vítima de alguma ingenuidade, e não me parece que seja a maior responsável na catástrofe em que se tornou o SNS, onde a maior parte das decisões que contam são tomadas no Ministério das Finanças. Marta Temido é a cara da política que nos trouxe aqui, não é a responsável principal.

    pregnant woman holding her tummy during daytime

    A reacção da Oposição

    A Oposição precisava desta demissão como de pão para a boca. A frase que mais ouvi foi “demite-se tarde” – e, por acaso, concordo. Por razões diferentes, mas concordo. Marta Temido devia ter batido com a porta mais cedo, mostrando que não legitimava as políticas do governo para o SNS, que, como alguma esquerda disse, “assistia passivamente ao desmantelamento do SNS”.

    Entre as diferentes tipologias de declarações do dia que ouvi, uma pareceu-me mais perigosa:  a ânsia de saber quem seria o substituto de Marta Temido e se estaria preparado para mudar radicalmente o SNS.

    E o que será mudar radicalmente o SNS? Será perceber que os “tempos são outros”, e que a Medicina mudou, e que os privados passaram a investir na Saúde de uma forma que não deixaria nada como era há 40 anos.

    Ou seja, para alguma Oposição de direita, o próximo ministro deve reconhecer que o SNS deve fornecer serviços básicos de Saúde, especialmente aos mais desfavorecidos, e deixar que os privados tomem o seu lugar e complementem a oferta do SNS. Traduzindo para português corrente: cartões de seguro para toda a gente e SNS apenas para passar receitas de aspirinas.

    Partidos como o Chega benzeram-se com esta crise, porque deixaram de falar nas sessões de pugilismo internas e aproveitaram para pedir a demissão de António Costa, também.

    O PSD, responsável pelo início desta caminhada no SNS, também culpa Marta Temido pelo caos no SNS e espera que o Governo encontre um ministro que seja fã das parcerias público-privadas (PPPs) da saúde.

    Já à esquerda, Bloco de Esquerda e PCP, dizem que é tempo de voltar a investir a sério e fixar médicos no SNS.

    Notei que foi pedida também uma reacção a Nuno Melo (CDS). Confesso que não percebi porquê.

    A reacção dos profissionais

    Entre as várias que passaram nos três canais informativos, destaco uma que me pareceu mais assertiva.

    Dizia uma profissional, com mais de 40 anos de experiência, que a debandada no SNS começou nos tempos da troika. Este parece-me um dado importante. Não é que não seja óbvio, mas é bom lembrar que a pandemia só mascarou um problema que já vinha de trás.

    Explicava esta profissional que os médicos que começaram a sair nessa altura (para fora do país ou para os privados) são a geração que hoje estaria nos 40/50 anos sendo que essa é a fatia que mais falta no SNS.

    Ou seja, há muitos jovens (no internato) e muitos médicos em fim de carreira. Faltam aqueles que, hoje, fariam a geração de transição. E esse é que é o cerne da questão.

    O SNS está preso por arames há muito e a culpa não é de Marta Temido. É de todos os governos que decidiram meter dinheiro em estradas, no BES, nas exigências para lá da troika, nos esforços de guerra, nas PPP’s e em todos os arranjinhos que, neste país, fazem de sorvedouro de dinheiros públicos. Tal como os professores, os médicos e enfermeiros andam a ver a degradação das suas carreiras há mais de uma década.

    Quando os liberais usam frases-chavão, e afirmam que não podemos despejar dinheiro no SNS porque o problema é de gestão, o que eles verdadeiramente querem dizer é que não podemos despejar dinheiro no SNS porque devemos fazê-lo na direcção dos grupos privados de saúde.

    Claro que o problema é de investimento. Os profissionais não abandonam o SNS se tiverem boas condições de trabalho. Não são diferentes de qualquer um de nós.

    man in white thobe standing

    A reacção da sociedade civil

    Quando todos os dias nos queixamos nas redes sociais, ao vizinho do lado ou no trabalho, sobre os problemas que enfrentamos no SNS, especialmente com as filas de espera, temos a inquestionável habilidade de nos esquecermos que, há pouco mais de um ano, andávamos a bater palmas aos médicos nas varandas e a agradecer por estarmos todos em casa a ignorar 99,9% das doenças do mundo.

    Ora, essa decisão governamental, apoiada pela maioria da população (bem sei que hoje já se esqueceram, mas há que aguentar), não só sobrecarregou os profissionais naquele momento como, os repetidos adiamentos, deslocaram a sobrecarga para outras especialidades mais à frente no tempo.

    Em parte, é isso que todos estamos a viver hoje: o ruir da última parede do edifício do SNS. Contudo, enquanto milhões de pessoas saudáveis ficavam em casa e pessoas doentes (sem covid) não eram assistidas, (quase) todos achávamos que seguíamos no caminho para ficar tudo bem.

    O dinheiro que aí se gastou, nomeadamente com o pagamento de layoffs e no trabalho extraordinário dos médicos, daria, provavelmente, para reforçar em permanência os quadros do SNS.

    A Suécia – ainda se lembram do país que “matava velhinhos” – não seguiu a política da maioria (Portugal incluído), não esgotou o seu SNS, não esbanjou dinheiro para que pessoas saudáveis ficassem em casa. Era possível ter feito diferente.

    timelapse photo of people passing the street

    Conclusão

    Marta Temido fará as parangonas de hoje e amanhã. É a cara de uma política que falhou. Não é, nem de perto nem de longe, a principal responsável pelo actual estado do SNS. Nem parece que quem vier, se vier com as mesmas ideias, faça este estado de coisas mudar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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