Autor: Tiago Franco

  • Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!

    Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!


    Eis a verdade! Fernando Santos surpreendeu e inovou, respondendo a um pedido irónico feito na minha crónica de ontem. Na conferência de imprensa disse, em tom descontraído, que o 11 era mais do que expectável. Não! Não! E não! Entrar com dois avançados e apenas um trinco – sendo que Ruben Neves habitualmente até joga na posição 8 –, mesmo contra uma das selecções mais fracas da competição, é um salto de gigante para o seleccionador nacional. E isto tem de ser dito.

    Ao contrário do Brasil, que sabe que tem a sua maior força no ataque e roda seis ou sete avançados durante o jogo, Fernando Santos aposta habitualmente em rodar seis ou sete médios para garantir que a bola não sai dali. Tite usa o que tem e arrisca-se a ganhar; Fernando Santos mostra medo do que tem e fica feliz a empatar.

    O Gana apresentou-se contra Portugal em versão Arouca. Com 11 homens à saída da área e um bloco tão baixo que foi difícil apanhar Diogo Costa na imagem durante os primeiros 45 minutos. Se é penoso ver este tipo de jogo nas ligas nacionais, num Campeonato do Mundo chega a ser deprimente. Valeu a festa nas bancadas.

    Portugal fez aquilo que sabe melhor: passar para o lado até adormecer o adversário, os espectadores, os árbitros e os camelos que estavam estacionados à saída do estádio. Não há vivalma que aguente tanta lentidão de processos e tão pouca procura pela baliza.

    Ronaldo teve as duas primeiras hipóteses e mostrou que continua a saltar muito, mas a acertar pouco. Félix esteve mais preocupado em cair do que lutar pela bola, e até ao golo, numa excelente oferta da defesa, não fez nada que justificasse a sua inclusão. Bernardo Silva e Bruno Fernandes pautaram, bem, o jogo da equipa. Otávio lutou e foi bastante útil no meio-campo.

    A defesa comprometeu, e Danilo, em particular, tremeu desde o primeiro minuto. Cancelo nunca arriscou no um para um e acabou sempre a ir à linha para voltar a passar para trás ou para o centro.

    Fernando Santos voltou a respirar aos 56 minutos, quando, depois dos ganeses passarem o meio-campo duas vezes, William Carvalho entrou. Com dois trincos e o resultado em 0-0, o nosso selecionador voltava à sua zona de conforto.

    Rafael Leão entrou a 13 minutos do fim, numa altura em que o jogo estava 1-1. Portugal marcou um minuto depois, por João Félix, e novamente, três minutos volvidos pelo próprio Rafael Leão, que, antes de rematar, já sorria adivinhando onde acabaria aquela bola.

    Entretanto, João Cancelo optou por dar mais alguma emoção à partida, oferecendo um segundo golo à selecção ganesa, e já nos descontos, Diogo Costa, fez o possível para entrar nas epic failures do Youtube.

    Enfim, jogamos pouco. Jogamos muito, muito pouco. Pela frente tivemos uma equipa que procurou o empate desde o primeiro minuto e que será, provavelmente, o adversário mais dócil deste grupo. Para além da vitória e do salto do Ronaldo com o Messi a ver, o grande destaque da partida de ontem acabou mesmo por ser os comentários do Paulo Futre. “Anda campeão!”, “força, força, vai para cima!”, “vamos, menino, vamos!” – esta é a banda sonora que todos queremos ouvir em momentos íntimos da nossa vida. Futre tocou-a num Mundial, em horário nobre. É o maior!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje: sem desculpas

    Hoje: sem desculpas


    Passei a manhã toda a ouvir: “às 16 horas, Portugal entra em acção”. Permitam-me discordar.

    Portugal entra em acção todos os dias, entre as 8 e as 9 da manhã, quando cinco milhões de pessoas trocam 8 horas do seu dia por menos do que 900 euros líquidos ao fim do mês. Ou quando um batalhão de professores de português, espalhados pela diáspora, picam o ponto em cada manhã. Ou quando centenas de enfermeiros portugueses entram ao serviço, todos os dias, em hospitais ingleses.

    Ou até, aqui na minha cidade de Gotemburgo, quando largas dezenas de engenheiros, vindos de todas as partes do território nacional fazem mais uma linha de código para desenvolver tecnologia de ponta. São os milhões que trabalham desse lado e os milhões espalhados pelo Mundo que entram em campo, cada dia, para dignificar o estatuto de um povo.

    Mais logo, às 16 horas, em verdade, vão entrar em campo um conjunto de milionários, liderados por outro milionário que, para além de incompetente, gosta pouco de contribuir para o Estado social, já que pagar impostos não parece ser com ele. O futebol move mundos e paixões, mas, aqui e ali, convém não perdermos de vista quem nos realmente representa.

    O meu filho, que passou o dia a gozar com o amigo argentino (acho que desde os 5 anos que discutem quem é o melhor entre Messi e Ronaldo), dizia-me “agora espero que o Fernando Santos não faça asneira”.

    Eu disse-lhe que, com todo o respeito pela selecção do Gana, se uma equipa como a portuguesa não conseguir ganhar à sexagésima primeira classificada do ranking mundial, então é melhor pararem de gastar dinheiro dos impostos e regressarem, sem muito barulho, às mansões de onde saíram.

    Lembrei-me da entrada em competição da selecção de 2002, que também tinha uma geração de ouro no auge da forma, vindos de um europeu magnífico. O tal onde, 20 anos depois, já podemos dizer claramente que o Abel Xavier meteu a mão na bola e ofereceu um penalti a esse rapaz, de bons pés, chamado Zidane.

    Nesse mundial de má memória, a selecção estreou-se com uma derrota contra os Estados Unidos, por 3-2. Um país que até ao presente dia ainda não sabe o nome da modalidade e acha que futebol é uma coisa que se joga com um melão, capacetes e almofadas nos ombros.

    Lembro-me de, no calor da derrota, alguns jogadores dizerem que entraram nervosos pela espera de vários dias. Tinha sido uma das últimas equipas a entrar em campo. Ora, é exactamente a situação da nossa equipa hoje. Uma das últimas a entrar em competição e a ver selecções mais fortes como Argentina, Alemanha, Bélgica, Croácia e até Holanda, em sérias dificuldades frente a adversários mais fracos.

    Quero só dizer que, se a coisa correr mal, não usem essa desculpa. Já tem 20 anos e não envelheceu bem.

    Como qualquer português que gosta de futebol, passei o dia a imaginar o 11 de Fernando Santos. Arrisco o seguinte:

    Diogo Costa, Cancelo, Pepe, Ruben Dias e Nuno Mendes na defesa, Um meio-campo de “segura até não dar mais”, composto por William Carvalho, Ruben Neves e Otávio, com Bernardo Silva e Bruno Fernandes mais soltos a tentarem meter a bola em Ronaldo, o único com apetência no 11 para chegar a um cruzamento, numa equipa que o mais parecido que tem com extremos são os defesas laterais.

    Depois, Fernando Santos dirá a Ruben Neves para evitar remates de longa distância, como aqueles que faz na Premier League, não vá aquilo dar em golo.

    Félix, Rafael Leão, Gonçalo Ramos e todas as opções que existem para tornar esta selecção numa trituradora de ataque, ficarão guardados para queimar tempo aos 83 minutos, quando Portugal estiver a ganhar 1-0, ou para os 60 minutos, caso Portugal esteja a perder por 1-0.

    No meu íntimo, tenho a secreta esperança de, sabendo que esta é a sua última competição à frente da equipa lusa, o nosso Fernando decida arriscar e não ficar na História como o treinador mais medroso que orientou, provavelmente, a melhor e mais talentosa geração de jogadores portugueses de sempre.

    Se ele entrar com Rafael Leão, Ronaldo e Félix na frente, deixando o meio-campo entregue a Bernardo Silva, Bruno Fernandes (ou Otávio) e apenas um trinco, retiro tudo o que escrevi e deixo aqui umas loas amanhã ao nosso engenheiro, que não gosta de impostos.

    Certo, certo, é que, mesmo que a selecção nacional entre em campo com Diogo Costa, Ronaldo e nove trincos, ainda assim, terá a obrigação de vencer a equipa do Gana.

    Diria mais: num grupo com Gana, Uruguai e Coreia do Sul, tudo o que não seja o primeiro lugar, é falhar.

    Já vai sendo altura de cumprirem, no campo, o estatuto que carregam.

    Sem desculpas. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz

    No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz


    Ao quarto de dia de competição, e no momento em que escrevo, três selecções confirmaram credenciais: Espanha, Inglaterra e França. É certo que nenhum deles defrontou adversários com grandes créditos, mas, ao contrário de Argentina e Alemanha, que também defrontaram equipas teoricamente mais fracas, não deixaram qualquer dúvida sobre quem seria o vencedor.

    A equipa inglesa parece prometer algo mais do que o habitual, dispondo uma geração que foi finalista no último Europeu e acabou o Mundial de 2018 em quarto lugar. Inglaterra é, para mim, um mistério constante nestas competições. Pensar-se-ia que, para quem inventou este jogo, deveria ver o sucesso bater-lhe mais vezes à porta. Mas não. Mais de um século depois, tudo se resume a um Mundial bem “caseirinho”, o tal de 66, e sucessivos falhanços fora dessa bolha.

    Durante muitos anos, as selecções inglesas eram um reflexo do típico jogador inglês: pontapé para a frente e luta pelo ar. Fossem eles do Cazaquistão, e dir-se-ia que era chutão para o ar – mas como em Inglaterra, já se sabe, tudo se faz com algum chá, o estilo era definido por ser um futebol mais “vertical” ou “directo”, como dizia o saudoso Gabriel Alves.

    No fim do século XX – veja-se o Mundial de 98, em França –, a selecção inglesa começou a aparecer com jogadores que não castigavam tanto a bola: Beckham, Ince, Scholes, Owen, McManaman, Fowler, a que se juntou a enchente de dinheiro que desabou na Premier League, fez com que a competição interna inglesa começasse a atrair os melhores jogadores e treinadores do Mundo.

    Há uma clara evolução no jogador inglês, também por essa explosão da Premier League, e hoje, em vez do enfadonho “jogo vertical”, Inglaterra apresenta intérpretes capazes de segurar, rodar, driblar. Aproximou-se dos princípios de jogo que apenas selecções com jogadores mais tecnicistas tinham.

    Hoje, liderados por Harry Kane e com Mount, Foden, Sterling, Saka, Rashford, Alexander-Arnold, Grealish, entre outros, já é outra música. As últimas duas competições mostraram que têm qualidade. Resta saber se conseguirão confirmar os bons indicadores neste Mundial… e mostrarem-nos como é que um país inventa um jogo para apenas o compreender 100 anos depois.

    Entretanto, neste grupo E, e depois da surpresa oferecida pelo Japão – vencendo a Alemanha por 2-1 –, teremos uma segunda jornada explosiva, onde os alemães serão obrigados a vencer a Espanha de Luís Enrique, que joga naquele irritante tiki-taka que já ninguém suporta, mas poucos conseguem contrariar. Num Mundial onde tantos jogadores emblemáticos se despedirão, Manuel Neuer corre o risco de ir bem mais cedo para casa.

    Nestas competições que centram agora a atenção do Mundo, e fazem com que tudo o resto pareça parar (deixei de ouvir falar na Ucrânia), há uma autêntica legião de jornalistas, analistas e ex-jogadores que vão comentando. E noto, por vezes, nos painéis portugueses uma certa arrogância no tratamento aos intérpretes.

    Vejo assim jogadores que tiveram carreiras pouco mais do que medíocres a falarem de quem está entre a elite, e num Mundial, como se soubessem sequer o que aquilo é. E pior: ouço jornalistas a falarem de internacionais pelos seus países com um desprezo que me envergonha.

    Assim, enquanto Espanha triturava a Costa Rica (7-0), via eu, na Sport TV, o Miguel Prates a ir ao Olimpo de cada vez que Busquets ou Gavi tocavam na bola.

    Já quando esta chegava a Azpilicueta, o nosso Miguel dizia: “pois, com Azpilicueta tem de ser mais feijão com arroz” – que é uma forma cool dos comentadores actuais, quando não usam a palavra da moda “diferenciado”, se referirem a um jogador de quem se espera apenas bola no pé, passe simples, recebe e toca. Nada de inventar, porque pode partir um tornozelo.

    Ora… eu acho que é preciso ter mesmo uma falta de noção para estar sentado, num estúdio de televisão, a dizer que outro homem, que por acaso está no 11 de uma selecção como a espanhola, e que há 10 anos é titular do Chelsea (não é do Portimonense), e que ganhou todos os títulos nacionais e internacionais de clubes, é um gajo de “feijão com arroz”.

    A jogar no sofá e a mandar postas de como seria se nos levantássemos, não há pai para nós. Somos “diferenciados” nessa arte. E “verticais”, mas rasteirinhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro

    O bromance e os outros, incluindo o Engenheiro


    Há uma história ligeiramente hollywoodesca nos bastidores deste Mundial com guião de sonho, escrito para que um dos dois maiores da História da Ludopédia, Cristiano Ronaldo ou Messi, se despeça da elite com o título que lhe falta. O drama está garantido, porque, enfim, não há possibilidade de ex aequo, pelo que, na última oportunidade que a idade lhes proporciona, somente um poderá ser coroado.

    Para os fãs que se dividem pelos dois ídolos – tal como Mundo se dividia em dois blocos na Guerra Fria –, as restantes selecções estão lá para fazer número. Ronaldo e Messi estão ali, e estão ali para encerrar definitivamente o duelo, e assim determinar quem será o number one da História.

    Reconheço ser o bromance mais interessante deste Mundial. E, no plano teórico, Ronaldo parte na frente. Explico porquê.

    Messi é, neste momento, um jogador que ainda faz a diferença em campo. Vemo-lo na selecção e esta época no Paris Saint-Germain. Com Neymar e Mbappé a acompanhá-lo na frente de ataque, tem sido ainda assim Messi a brilhar mais. Na Liga dos Campeões, no Estádio da Luz, foi Messi que marcou o ritmo e a atirou a contar.

    Quanto a Ronaldo, continua a ser o melhor avançado do Mundo, dentro da área, mas já pouco acrescenta à equipa. Mesmo na selecção, onde joga o tempo que quer, tem atrapalhado mais do que ajudado nos últimos meses. No seu clube, o Manchester United, nem vale a pena falar, porque esta época pouco ou nada tem jogado. Independentemente das incompreensíveis decisões de Ten Haag, Ronaldo já não é o que era. É um facto.

    Ainda assim, devo dizer que pertenço ao grupo de portugueses que acha que Ronaldo tem o direito de exigir o seu lugar, mesmo quando o corpo já não ajuda. Eu lembro-me o que eram as presenças em Mundiais e em Europeus antes de Ronaldo e depois de Ronaldo. A memória não pode ser curta ao primeiro trambolhão.

    Fosse o futebol um jogo individual e não teria dúvida que este seria o Mundial de Messi. Contudo, a equipa que estás atrás de Ronaldo é incomparavelmente superior à da Argentina. Ou seja, no papel, se Ronaldo “encostar” nos passes que os outros 10 lhe vão fazer, tem sérias hipóteses de chegar ao ouro.

    Há anos que digo isto e mantenho essa opinião: Portugal tem uma das melhores equipas do mundo. Entre o Euro 2016 e o Mundial 2018, entraram nomes como Ruben Dias, Raphael Guerreiro, Renato Sanches, Bernardo Silva, Cancelo, Gonçalo Guedes, Diogo Jota ou Bruno Fernandes. A que se juntaram mais tarde João Félix, Nuno Mendes, Vitinha, Palhinha, Diogo Costa, Dalot e Rafael Leão. Ficaram veteranos como Ronaldo, Pepe, William ou Danilo.

    No papel, posição por posição, só encontro uma selecção mais recheada – a França – e outras de igual nível – a Bélgica e a Alemanha. Todas as outras são, na minha opinião, piores equipas do que esta geração de jogadores ao serviço de Fernando Santos.

    E é aqui, no treinador, que as outras selecções dificilmente ficariam pior servidas do que a nossa. É este o maior risco para a história de sonho de Ronaldo.

    Portugal tem uma equipa verdadeiramente de luxo, que deveria jogar sempre, mas sempre, a massacrar qualquer adversário, excepcão feita à Franca, Alemanha, Brasil e Bélgica. Contra qualquer outra, a palavra de ordem teria de ser apenas uma: atacar.

    Mas com Fernando Santos, isso não é possível. O seleccionador nacional joga para o empate, para a defesa a todo o custo, para o pontinho ou o milagre do contra-ataque. Entre rezas à santinha e uma fé desmedida no losango defensivo do meio-campo, que o acompanha desde os tempos do Estoril, a capacidade de Fernando Santos em aproveitar a qualidade dos jogadores é quase nula.

    Por isso, e por mais fraco que sejam os grupos de qualificação, consegue sempre ir aos playoffs, onde a sorte o acompanha – a Itália que o diga, que até lhe fez o favor de perder com a Macedónia.

    Foi assim no Euro 2016, onde um golo tardio da Islândia nos colocou na fase seguinte, num grupo absolutamente miserável, onde contra Áustria, Islândia e Hungria, Fernando Santos não conseguiu ganhar um jogo.

    Foi assim na qualificação para este Mundial onde, a ganhar em casa contra a Sérvia, começou a defender aos 50 minutos, acabando por perder no último minuto, seguindo para um playoff que poderia ter corrido mal.

    Foi assim na Liga das Nações contra uma Espanha débil, onde um empate bastaria e onde desistiu de atacar ao fim de 45 minutos.

    Quando vi Diogo Costa a defender quatro penalties seguidos na Liga dos Campeões só imaginei a felicidade de Fernando Santos, a fazer contas aos empates que poderia ter no Catar. Se pudesse, Santos jogaria com Diogo Costa, Ronaldo, quatro centrais e cinco trincos.

    Dito tudo isto, e ainda assim, e com uma equipa tão boa, e mesmo com Fernando Santos a atrapalhar, acho que Ronaldo parte ligeiramente à frente de Messi, nesta corrida a dois.

    E a Arábia Saudita – conhecida ditadura do bem, que já decretou um feriado para o dia de amanhã – parece querer dar-me alguma razão.

    Agora é pedir aos nossos rapazes que ouçam bem, mesmo bem, o que o Engenheiro lhes diz. E depois, façam exactamente o contrário.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!

    Isto não é o Record. E a moral é para os pobres, também aviso já!


    O diretor deste jornal acha que não tem sarna suficiente para se coçar e resolveu pedir-me para fazer uma crónica diária sobre o Mundial. Até começar a escrever estas linhas, não sabia de que forma deveria abordar um evento futebolístico num jornal que não pretende rivalizar com o Record (e, ainda bem, digo eu) e uma competição onde, até ver, a bola é mesmo o que menos interessa.

    Ninguém percebe muito bem por que raio se joga um Campeonato do Mundo num país que não respeita os direitos humanos e onde a democracia é um elemento tão estranho como a própria bola.

    Felizmente, eu tenho a resposta: porque eles pagaram para isso; e a FIFA não é – roubando as palavras de Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Banco – uma instituição de caridade.

    E, meu caros, sejamos claros: se os qataris compram o Paris Saint-Germain, os emiradenses compram o Manchester City, os sauditas compram o Newcastle e os russos compram o Chelsea, e todos, em tempos diferentes, concorrem em competições da FIFA e da UEFA em desigualdade de circunstâncias com a concorrência, devido à sua capacidade financeira, porque deveria o Mundial ser diferente? O dinheiro tudo compra, a moral é para os pobres.

    Como dizia Lobo Xavier, na SIC Notícias: “não há prova de que tenham morrido 6.500 trabalhadores na construção dos estádios”. Podem ter sido só 6499, acrescentaria eu. Ainda vou investigar se ele também tem umas estufas em Odemira.

    Aproveitando a justa indignação com o evento, sugeria assim que não guardássemos a nossa revolta apenas para o desporto-rei. Tentemos contribuir para o fim da barbárie em intervalos menores do que quatro anos.

    person playing soccer

    E, pensando em países que não respeitam os direitos humanos, ou que não são grandes fãs de democracias, diria que podíamos:

     a) não comprar t-shirts da Adidas feitas no Bangladesh;

     b) não comprar bolas da Nike cozidas por miúdos no Paquistão;

     c) não comprar iPhones porque são feitos na China;

     d) não andar de carro a combustão porque o petróleo veio provavelmente de uma ditadura;

     e) não andar de carro eléctrico porque o lítio foi sacado a uma região pobre deixando os malefícios para os locais; 

     f) não ir de lua-de-mel para a Tailândia;

     g) não comprar copos no IKEA feitos na Turquia;

     h) tomar banho de água fria porque o gás português vem da Argélia;

     i) deixar as especiarias indianas em paz.

    Portanto, é só dar cabo da lista de Natal, mudar hábitos alimentares, voltar a andar de metro e regressar à Moviflor, e a coisa faz-se.

    Depois do dia 18 de Dezembro, o tal em que o nosso Fernando nos prometeu que receberíamos a selecção em festa, há que manter a coerência.

    Feitas as apresentações, falemos de bola então… Mas amanhã…

    Ontem, subiu ao relvado o Qatar e, hoje, no segundo jogo do Mundial, digno de nota só a selecção do Irão a ser trucidada por uma rajada capilar britânica.

    Até ver, não houve grande história para contar, e o único facto de relevo parece ser uma fotografia de um jogo de xadrez entre Messi e Cristiano Ronaldo.

    Que abertura de Mundial teria sido. Mas veio o Morgan, e também foi bom.

    Até amanhã.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha

    Ucrânia: o acordo de paz que só atrapalha


    As atenções no conflito ucraniano passam agora para a mesa das negociações e, até nesta temática, conseguimos formar barricadas de opinião. Discute-se sobre quem está de boa-fé ou a quem um acordo de paz não interessa.

    Por vezes, fico com a sensação de que nos embrenhamos tanto num tópico, que acabamos por perder o contacto com a realidade e, sem querer, assumo, estamos a debater a paz como quem troca o Rossio pela Avenida da Liberdade no Monopólio.

    red and yellow abstract painting

    Nesse caso, do Rossio, todos sabem que é mau negócio, mas no caso das conversações de paz, poderíamos baixar o nível de arrogância e tentar vestir a pele de quem está no terreno. 

    Dos vários discursos que ouvi, o prémio “pimenta no cu dos outros é refresco” vai para o major Isidro de Morais Pereira, que anda há seis meses a vender a receita da NATO para conflitos de longa duração. Dizia ele que, neste momento, um acordo de paz não faria qualquer sentido para a Ucrânia, porque, segundo a doutrina dos conflitos, o tempo seria desfavorável aos russos e a iniciativa estava do lado ucraniano. Traduzindo, queria ele dizer que o poder negocial da Ucrânia aumentaria com o tempo e o inverso aconteceria com os russos.  

    Esta é a posição de quem analisa o conflito a 5.000 quilómetros de distância e que, quando chega a casa, vê paredes inteiras, aquecimento e a família dentro de portas. Tenho alguma dificuldade em conceber que quem está na linha da frente, a morrer todos os dias (seja de que lado for), pense lá no seu íntimo que é melhor aguentar mais um mês ou dois a fugir de bombas para o Zelensky ou o Putin terem mais cartas para meter na mesa.

    yellow and red round plastic

    É um pouco aquele pensamento das elites que se dignam a pensar e escolher como deve a plebe morrer. Aguentem, vão morrendo mais uns pais de família em nome do melhor timing de negociação. E não se preocupem porque, se faltar dinheiro, há mais uns milhões de europeus para esmifrar. Para tudo, menos o Inverno frio, as elites parecem ter uma solução. Sempre, obviamente, à custa do couro alheio.

    Pessoalmente, acho que, não se evitando a guerra, um acordo de paz deve ser o objectivo desde o primeiro dia. Mas aceito que deve ser um pensamento utópico. Há que ir matando uns quantos pobres por dia até que os milionários que nos dirigem decidam que a altura de falar chegou. Assim como assim, também temos pobres para dar e vender, estamos só a escoar produto.

    Zelensky apresentou uma lista de exigências para se sentar à mesa que é uma espécie de máquina do tempo para um dia qualquer de dezembro de 2013. Russos fora do país, territórios devolvidos, fim dos ataques, reparações e mudança de regime [ou pelo menos outro a decidir que não Putin].

    Para muitos, esta é uma lista realista e justa porque, lá está, a Ucrânia foi invadida. Concordo com esse argumento, o de voltar tudo ao que era, mas isso transformar-me-ia num negacionista da guerra. Já me bastou a experiência com os confinamentos…

    red white blue and yellow round textile

    Tendo existido a invasão, e tendo a Ucrânia perdido territórios, a realidade é essa, pelo que, chegar com uma lista exigências ao nível de “vamos fingir que não aconteceu nada”, é o mesmo que dizer que não se quer negociar.

    Se a Rússia aceitasse as exigências do Zelensky para se sentarem… iam discutir o quê? Se o pagamento seria feito em rublos ou dólares? É que não haveria muito mais para discutir.

    E repito: justo seria a total retirada russa sem perdas de território para a Ucrânia, mas, normalmente, não é esse o cenário depois de uma invasão de uma potência mais forte. E, numa guerra, vence o mais forte, não o mais justo.

    Bem sei que, neste momento, aplicamos um filtro histórico para condenar o invasor, enquanto nos 70 anos anteriores não nos preocupámos muito com o tema, quando o invasor tinha as nossas cores, mas é assim que, normalmente, estas coisas acabam. Regra geral, com o nosso consentimento.

    Portanto, nesta luta de barricadas pela moral adquirida em 2022, eu pergunto, de forma pragmática: qual é a solução?

    blue and yellow striped country flag

    Ainda há quem acredite nas conversas da Ursula do “as long as it takes” (leve o tempo que levar)? Os alemães já avisaram que o stock de armas está em baixo, os italianos já não têm nada para dar, os americanos também já começam a apertar o bolso.

    Os indianos, chineses e turcos fazem negócios com os russos, sendo que os turcos jogam nas duas frentes. Os bálticos, sempre afoitos na condenação aos russos, como se viu no “míssil russo que caiu a Polónia”, já vão nos dois dígitos de inflação.

    Portugal envia equipamento que não funciona, os iranianos produzem armas para os russos, a Escandinávia está com um custo de vida descontrolado, o Sul da Europa está cada vez mais pobre e, na Alemanha, vão-se fazendo negócios à margem da estratégia europeia para garantir empregos e menos convulsão social.

    Neste cenário de catástrofe, repito a questão: qual é a solução? Até quando podemos pagar esta guerra que não nos diz respeito? E, por favor, não me venham falar em democracias, que é para não ter que ir buscar a posição da Rússia ou da Ucrânia no ranking das democracias até ao dia 23 de Fevereiro de 2022. 

    walking person holding blue and brown striped banner

    Quantas vezes temos que ver o aumento da prestação da casa, perder empregos ou ficar sem comida na mesa? Quantos russos ou ucranianos pobres é que têm que morrer mais na frente da batalha? Digam-me, qual é a solução que não esteja presa a um acordo de paz?

    Eu vejo três hipóteses:

    a) chegam a acordo agora e a Ucrânia perde territórios;

    b) chegam a acordo mais tarde e a Ucrânia perde territórios, mais soldados morrem e mais europeus empobrecem;

    c) a NATO entra oficialmente no conflito, havendo a hipótese de os ucranianos recuperarem o terreno todo. Morrem muitos mais soldados, empobrecem muitos mais europeus. Estamos na III Grande Guerra.

    Perdoar-me-ão os moralistas que acordaram para a História das Nações em 2022, mas, visto daqui, a escolha é tremendamente simples. Para hipocrisia, já me chegaram os 20 anos em que a Europa apertou a mão ao Putin e com ele fez todo o tipo de negócios, sem querer saber de democracias ou teorias imperialistas.

    São, somos, cúmplices do que se está agora a passar. Já que não o soubemos evitar, tenhamos pelo menos a capacidade de lhe colocar um fim.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia

    Salivando por uns mísseis russos caindo na Polónia


    Desta vez, o rodapé de breaking news fazia mesmo sentido: tinham caído mísseis russos em território polaco e, por isso, na CNN Portugal reunia-se um painel de sete ou oito comentadores, desde generais da NATO a comandantes de coisas, a especialistas de comunicação. Até a Helena Ferro Gouveia lá estava como especialista em comentários de Helena Ferro Gouveia… Percebi logo, de imediato mesmo, que aquilo era uma breaking news mesmo de break.

    Ainda tentava perceber onde ficava Przewodów, uma vila no leste da Polónia, e já na CNN Portugal se debitavam todas as teorias. Aliás, para ser sincero, não eram assim tantas teorias, era apenas uma: os russos atacaram um país da NATO.

    Depois, mostravam prudência, eram cautelosos com as palavras, tentavam arranjar justificação, mas, em momento algum, se ouviu que o envolvimento da NATO no conflito traria essencialmente vantagem à Ucrânia.

    O comandante João Fonseca Ribeiro (SEDES) ainda disse que, dada a distância de Lviv à fronteira, seria pouco provável que uma anti-aérea lá chegasse. Usou até, para efeito de comparação, um ataque a Lisboa que fosse defendido na Nazaré.

    Um dos especialistas em comunicação dizia, acrescentando ao porquê dos russos atacarem a Polónia, que eles precisavam de mostrar a sua força depois da perda de Kherson. O general da NATO, Isidro Morais Pereira, teorizava que este era o modo habitual de actuação das forças russas. A cada perda no terreno, retaliavam indiscriminadamente. Portanto, a Polónia era consequência da humilhação em Kherson.

    No fundo, todos culpavam os russos do ataque e procuravam uma justificação para o sucedido que encaixasse nesta narrativa.

    Por esta altura, já eu tinha localizado Przewodów no mapa, e mantinha a estupefacção por ninguém questionar o óbvio: qual a vantagem russa numa intervenção da NATO neste conflito? Pois… nenhuma. Então, porque atacariam os russos um território protegido pelo artigo quinto? Não parecia fazer qualquer sentido.

    Escrevi então, na noite de 15 de Novembro, o seguinte:

    ———“Enquanto ouço uma verdadeira constelação, pergunto-me, porque iriam os russos disparar mísseis para um território da NATO, no final de uma guerra que já tinham no bolso? (Segundo o amigo Joe)

    Parece algo estupidamente surreal e um gigante tiro no pé do Kremlin, que faria desta forma um enorme favor à Ucrânia – e um péssimo serviço ao resto da Europa.

    Ainda assim, sem dizerem muito, porque nada sabem nesta altura, os comentadores de serviço admitem apenas uma hipótese. Surprise, surprise.

    Há até alguma excitação. Pode estar aí finalmente a III GG”——–

    Era essencialmente o que me parecia ouvir. Um certo salivar com a possibilidade de um conflito global e muito pouca lógica no raciocínio.

    Escrevi no PÁGINA UM, no artigo anterior, o que me pareceu que tinha acontecido em Kherson, e por isso não me vou repetir. Mas admitindo essa tese, que Kherson foi uma moeda de troca para que os ucranianos se sentassem à mesa, já pressionados pelo acordo com os Estados Unidos, que vantagem teriam os russos nesta escalada?

    yellow and blue wooden fence

    As negociações de paz trariam certamente territórios para a Rússia. A entrada da NATO no conflito seria provavelmente a única forma da Ucrânia não perder partes do Donbass e a Crimeia. Portanto, a situação criada era totalmente desfavorável aos intentos dos russos. Não fazia sentido. Era totalmente contraproducente.

    Faço aqui uma pausa para explicar algo de que venho sendo criticado frequentemente. O facto de eu achar estranho um ataque russo num país da Aliança, não quer dizer que defenda a invasão de Putin, não quer dizer que eu queira que um regime destes tenha ganhos com esta guerra e muito menos quer dizer que eu menospreze mortos, venham de onde vierem.

    Nunca, jamais, em momento algum o meu lado será o do invasor, venha ele de Moscovo, Telavive ou Washington.

    Agora, não me parece é fazer muito sentido construir análises baseadas naquilo que gostaríamos que acontecesse. Há meses escrevi que as sanções económicas trariam problemas à Europa e que essa não seria a forma certa da União Europeia se posicionar. Ontem, no encontro do G20, um representante inglês disse que a culpa da inflação na Zona Euro era da Rússia. Afinal, em que ficamos?

    gray concrete statue of man

    Não eram as nossas sanções que iam destruir a Economia deles? Portanto, uma coisa é querer derrotar o invasor, o que em princípio todos queremos; outra coisa é concordar no caminho para lá chegar.

    Lamento muito que não tenhamos a capacidade de separar o ideal da realidade, mas, também por isso, é que os especialistas e jornalistas no terreno nos devem informar no melhor das suas capacidades. Se repetidamente a realidade desmente quem nos traz a informação, como é que podemos tomar como bons os canais de propaganda? Digo isto sem qualquer ironia porque eu quero acreditar no que ouço. Quero que as dúvidas que qualquer um de nós tem, em tempos difíceis, sejam debatidas sem clubites.

    Eu quero, em resumo, que alguém me explique por que razão o Kremlin lançaria mísseis sobre a Polónia, quando se preparava para meter territórios no bolso. E notem, eu não fico contente com a perda de território por parte da Ucrânia, mas era essa a mais do que provável realidade, logo, partindo dessa premissa…em que cabeça mais tresloucada do comando russo caberia um ataque à Polónia? Não fazia qualquer sentido. Zero.

    Mas as bases estavam lançadas e as sentenças estavam dadas. Menos de 12 horas depois, na madrugada de dia 16, já a Associated Press, a presidência norte-americana e mais não sei quantas fontes diziam que os mísseis que atingiram a Polónia eram ucranianos, provavelmente dos seus sistemas de defesa. Os tais da Nazaré…

    grayscale photo of concrete houses

    Como é que uma pessoa que espera e desespera pelo fim da guerra, que tem a vida afectada por isto, e que vê com alguma angústia o futuro, pode confiar num bando de falcões que se reúne, em horário nobre, para salivar por mais armas, dinheiro, pobreza ou intervenções da NATO? De que me serve acreditar em quem apela à paz, mas vive da guerra?

    A falta de credibilidade está mais do que comprovada, resta saber como é que vão agora disfarçar a incompetência.

    Uma noite, outra, para esquecer, em direto, na CNN Portuga… Também já não é notícia, não é?.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A emboscada em Kherson… já aconteceu?

    A emboscada em Kherson… já aconteceu?


    Esta semana atingimos o pico da contra-informacão na Guerra da Ucrânia, e a minha expectativa era perceber de que forma os entusiastas, das bombas pela paz, iam justificar o que se passava em Kherson.

    Como não percebo nada de estratégia militar – algo que, em princípio, faria de mim um excelente comentador para a Sic Notícias –, limito-me a ouvir as explicações de quem, em teoria, sabe. E depois começo a tentar ligar os pontos, evitando “aprender História no Rambo III” – esta frase não é minha, por isso vai em aspas, mas não me canso de a usar.

    blue and yellow striped country flag

    Durante sete dias ouvi várias análises à retirada dos russos de Kherson e a sua passagem para a margem esquerda do Dnipro. A tese mais repetida era que tudo acabaria numa emboscada das forças russas aos combatentes ucranianos. Não sei se se lembram dos diretos, com os correspondentes no local, a afirmarem que soldados russos entravam em lojas de roupa e saíam de lá vestidos à civil, continuando a andar pelas ruas incógnitos, mas armados.

    A primeira coisa que pensei foi que, ao contrário das anteriores retiradas, feitas à pressa e com tudo destruído, desta vez os russos saíam tranquilamente, com horário marcado e transmissão em directo para o Mundo. Em simultâneo, os ucranianos, que estavam ali a poucos quilómetros, vendo algumas das tropas de elite da Rússia a abandonarem as posições, não dispararam um único tiro. Para quem não percebe nada disto, como assumidamente é o meu caso, parecia jogo combinado.

    Putin e o seu ministro da Defesa falavam, na televisão russa, sobre a retirada e os benefícios de colocarem as linhas de defesa na outra margem do rio, beneficiando da barreira natural. Se não havia dúvida quanto à encenação, a minha curiosidade era perceber a quem se destinava a mensagem.

    Zelensky mantinha o discurso desconfiado, e dizia que não só não acreditava na retirada pacífica como afirmava que os russos estavam a deixar para trás milhares de minas terrestres.

    Os habituais representantes da NATO nas nossas televisões insistiam na história da emboscada e algumas vozes, poucas, diziam que toda esta narrativa era falsa, que “retiradas não se anunciam”.

    Depois das eleições norte-americanas corre a notícia que Joe Biden terá puxado a ficha que mantinha a guerra ligada e que terá chegado a acordo com a Rússia. É por esta altura que se reafirma que, mesmo sem telefone vermelho, Washington e Moscovo nunca deixaram de falar.

    Aqui já começo a ouvir alguma coisa que parece fazer sentido.

    Desde que os norte-americanos assumiram, há uns meses, numa visita do seu secretário da defesa aos Bálticos, que procuravam desgastar os russos nesta guerra, que se tornou claro que seriam eles a determinar o seu fim. A posição mais conservadora dos republicanos sobre o fim do apoio militar, e financeiro à Ucrânia e o resultado das eleições intercalares, obrigaram Joe Biden a tomar uma posição.

    Poucos dias depois das eleições, numa conferência na Casa Branca, um porta-voz do governo disse que cada lado nesta contenda já teria perdido cerca de 100 000 vidas e era altura de se falar em paz.

    Reparem que, durante meses, o Ocidente declarava rios de mortos russos e quase nenhuma baixa ucraniana. De repente, temos um empate técnico e todos dizemos que sim. Que serve.

    Kherson é libertada sem combates e a população pró-ucraniana enche a cidade. Zelensky vai até lá, à tal cidade cheia de minas e russos disfarçados, e passeia sem qualquer problema.

    O Kremlin dá uma desculpa esfarrapada, que pretende poupar a vida dos seus soldados e por isso retira. Todos percebemos que o Kremlin nunca quis saber de soldados seus e provavelmente está a oferecer uma vitória ao Zelensky, a troco do que se seguirá. Curioso é que da primeira vez em que o regime de Putin está a mentir sem sequer disfarçar, Rogeiro e Milhazes afirmam que essa mentira é apenas para esconder a incapacidade de segurarem a cidade. Ou seja, para eles, Kherson foi mesmo uma vitória militar e a retirada a única hipótese possível dado o cerco ucraniano.

    Ninguém se parece lembrar que, nesta guerra, os russos continuam em maioria de efectivos e armamento, mas aceitamos como normal que as tropas de elite fujam com medo. Ou que Putin, um sanguinário, perca a única capital que tinha na mão desde o início, sem espernear muito.

    Zelensky que passou a semana da retirada a dizer que nem um centímetro a Ucrânia cederá, chega a Kherson de sorriso amarelo e anuncia o início do fim da guerra. Mas como assim? Que condições tem hoje Zelensky para se sentar a uma mesa com o invasor, que continua a ocupar terrenos no Donbass e na Crimeia, que não tinha na semana passada?

    Tem ele a grande vitória em Kherson: anunciada, televisionada e consentida. É essa a porta de saída para esta guerra. Os russos desistem da ligação a Odessa e àquele território no meio da Moldávia que ninguém sabe onde fica (Tiraspol – Transnístria) e “congelam” o mapa mais ou menos onde estão acampados neste momento.

    Por essa razão é que, provavelmente, enquanto fugiam para “poupar vidas” em Kherson, gastavam uns quantos esqueletos mais a norte, conquistando territórios na zona de Donetsk. O objectivo estará traçado e parece ser uma ligação do Donbass à Crimeia, pela margem esquerda do Dnipro.

    O discurso de Zelensky, antes e depois de chegar a Kherson, explicam, só por si, a quantidade de propaganda misturada com informação que andamos a receber estes meses todos. Que a guerra caminha para o fim, parece agora óbvio, até porque os seus comandantes assim o dizem – Estados Unidos e Rússia – e os executantes não podem mais do que obedecer. Que ninguém pode sair daqui derrotado também julgo ser consensual, e aí Kherson terá um papel importante.

    Resta-me perceber como é que se vão anunciar perdas de território como vitórias, e se tanto Zelensky como Putin sobreviverão politicamente ao desfecho desta guerra. Ou como diz o meu filho, na tese que me apresentou, pode ser que o Zelensky desobedeça ao Joe e siga a luta por conta própria. Seria nobre, respondi-lhe, mas suicida.

    Funcionou só uma vez, eu sei: mas era o Stallone que empunhava a metralhadora.    

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os “lucros excessivos” e os excessivos descaramentos da Cecília, do João e do Vítor

    Os “lucros excessivos” e os excessivos descaramentos da Cecília, do João e do Vítor


    Aqui há uns meses conheci um jardineiro que me disse que, dadas as “condições”, iria aumentar o preço do trabalho para o dobro. Perguntei-lhe porquê, pensando que ia ouvir o clássico recital da Ucrânia, dos combustíveis e do custo de vida em geral. Mas não. Este empreendedor tinha uma abordagem diferente no mundo dos negócios: “se o carpinteiro e o pintor aumentaram para o dobro, porque não deveria eu fazer o mesmo? Sou mais parvo do que os outros?”

    Gostei da honestidade – afinal, para quem nunca foi à Web Summit, este homem tinha a noção perfeita de como aumentar os seus rendimentos sem ter de trabalhar mais. Os custos eram essencialmente os mesmos, os salários também, o trabalho era feito cada vez mais a despachar, mas o preço final aumentava porque sim. Num meio pequeno, longe dos unicórnios, faz-se o que vizinho faz, não vão os clientes pensarem que somos menos empreendedores.

    black and yellow push lawn mower on green grass during daytime

    Expliquei-lhe que essa não era uma forma de compensar custos-extra, mas pura e simplesmente uma forma de aumentar o lucro. Ele disse-me que “lucros excessivos” era um conceito que desconhecia e, já em desespero de causa, lá falou na Ucrânia para dizer que o petróleo nigeriano com que abastecia a carrinha estava pela hora da morte – embora naquela região o combustível seja sempre mais barato.

    Não chegámos a acordo, o que foi uma pena porque eu adoro empreendedores que não nasceram em fábricas de unicórnios, e acabei por fechar negócio com outro empreendedor que somente tinha a vantagem de ser honesto. Algo que, confesso, aprecio em geral nas pessoas.

    A segunda vez que ouvi a frase “desconheço o que são lucros excessivos” veio da boca da Cecília Meireles, naquele debate semanal que faz com a Mariana Mortágua na SIC. A Cecília, como é “mais estudada” (sempre que possível uso expressões da minha avó) do que o empreendedor da relva, já conseguia definir o conceito de uma forma mais apelativa e recorrendo a palavras complexas.

    close-up photo of assorted coins

    Segundo ela, as empresas servem para dar lucro, logo, não havendo limite ao lucro, quanto mais melhor porque é exactamente para isso que lá estão. E todos ganham: os accionistas, os investidores, o Estado com a receita fiscal, etc. Portanto, “lucro excessivo” é um conceito absurdo e uma impossibilidade económica, dizia a Cecília do ex-partido do táxi.

    Aquilo que a Cecília quer dizer, passando para linguagem que todos entendemos é que, se o Gonçalo Ramos desatar a marcar 10 golos em cada jogo do Benfica, ninguém vai dizer que ele está a marcar golos a mais: é esse o trabalho dele, e não há nenhuma regra que diga que a partir de cinco já se torna desagradável. Portanto, eu percebo a semântica da Cecília, e entendo o carapau que nos tenta vender em nome de um robalo.

    Mas afinal qual é o problema? O problema é que o conceito de “lucro excessivo” não é acompanhado de outro conceito, que gostava de introduzir aqui, que é o do “aumento de salário excessivo”.

    Vou dar aqui um exemplo, como fazia o meu professor de antenas, quando percebia que a malta já não ia lá só com expressões de rotacionais no quadro.

    Para este quadro, trago a Sonae, até porque o seu administrador financeiro, João Dolores foi a terceira pessoa que eu ouvi a dizer, desta vez ao Observador, que “não reconhecemos o conceito de lucros excessivos“.

    Imaginemos que no Continente, por causa da inflação, que a Sonae não controla, sobem os preços ao cliente. Vamos assumir que, com o maior fluxo de dinheiro gerado, depois de cobertos os custos dos fornecedores, a Sonae decide aumentar, em igual ordem de grandeza, os salários aos seus funcionários. Dessa forma, o maior lucro (inesperado) criado pela inflação, é distribuído não só pelos accionistas e Estado, na receita fiscal, mas também pelos trabalhadores. Ou seja, todos, mesmo todos, ganham com a subida dos preços. Não sei se conhecem algum caixa do Modelo que tenha comprado um Tesla recentemente.

    Como o ramalhete não ficava completo com políticos do sistema e empresas de distribuição, veio Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos e antigo administrador do Novo Banco, dizer ao Expresso que também não reconhece o conceito de “lucro excessivo”. Acrescentou ainda que os bancos não estão no negócio da caridade e quanto maior for o lucro, mais investidores conseguem captar.

    woman in red long sleeve shirt and black pants standing on white floor tiles

    Aqui sou obrigado a concordar com o amigo Vítor. Os bancos não estão no negócio da caridade. Aliás, vindo de um ex-administrador ligado ao BES, esta frase é tão cristalina e pura que deveria ser emoldurada: a caridade bancária fica ao encargo dos contribuintes. Aos bancos compete aumentar juros – quando a Lagarde diz –, cobrar taxas por serviços que não fazem, não dar juros que prometem ou, aqui e ali, sacarem o dinheiro todo das poupanças dos clientes (não fiques aborrecido Rendeiro, também já não ouves).

    Quando a coisa aperta e a crise se instala, os contribuintes são chamados a pagar, cabendo a administradores, como o Vítor, a espinhosa tarefa de distribuir prémios de gestão pela administração. Repare-se que eu falei em caridade dos contribuintes para com a banca, mas não fui factual nem exacto. Caridade é voluntária; no caso dos contribuintes foi mesmo roubo.

    Vamos então imaginar que a EDP, a GALP, as empresas de águas e saneamento, as Telecom, os bancos, e todas as outras que fazem parte do cabaz mensal, utilizavam os lucros gerados pela inflação em forma de aumento salarial para os trabalhadores. Eu disse trabalhadores, porque os colaboradores normalmente sujam pouco as mãos.

    cars parked in front of store during daytime

    Estão a ver o cenário? Todos pagávamos mais pelos produtos, mas tínhamos aumentos reais. E com a parte da receita fiscal, o Estado faria o mesmo no lado da Função Pública. Desta forma, subíamos todos, ainda que níveis diferentes, mas pelo menos haveria alguma distribuição da riqueza gerada.

    Portanto, Cecília, João e Vítor, desta forma não seriam apenas vocês a desconhecer o conceito de “lucro excessivo”. E porquê? Porque como esse lucro seria distribuído por toda a gente, deixava de haver excesso. Eu sei, parece utópico, mas é mesmo assim.

    Embora lucro excessivo não exista, o que a plebe que está a contribuir para isso quer dizer, quando vê a montanha de dinheiro que se forma do outro lado, é que já chega. Estão a compreender o grito?

    O trabalhador que tem o mesmo salário há 10 anos e entra na bomba da Galp como quem vai a um spa de luxo, reza antes de abrir a conta da luz, paga mais 25% pela prestação da casa ou traz um saquinho do Modelo pelo valor do que costumava dar três, vai depois lembrar-se da palavra “excessivo” ao ouvir os lucros anunciados para essas empresas. A ele compete apenas pagar, empobrecendo, porque o salário estagnou. A quem não conhece o conceito de “lucro excessivo”, compete enriquecer, ainda mais, sem o reconhecer, obviamente.

    selective force perspective photo of left human hand about to reach green leaf trees

    Uma pessoa farta-se e acaba por não ter muita paciência para semânticas irónicas da Cecília, do João e ainda menos do Vítor.

    Lucro excessivo é quando uma minoria enriquece à custa da exploração e empobrecimento da maioria. É dinheiro que cai do céu sem que as empresas tenham feito algo para isso, com a agravante de nem os próprios trabalhadores beneficiarem com esse lucro.

    No fundo, lucro excessivo é uma forma de quem trabalha, e depende disso para viver, vos dizer: “deixem de ser filhos da puta e gananciosos”. Pardon my french, obviamente.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os ministros kamikazes de António Costa; e nós, os entalados

    Os ministros kamikazes de António Costa; e nós, os entalados


    Quando o PS alcançou a maioria absoluta nas últimas eleições, imaginei que se seguiria um passeio no parque na Assembleia da República, e apenas, quando muito, alguma contestação nas ruas, uma vez que PCP e BE (principalmente o PCP) voltariam ao seu habitat natural.

    Estava a vislumbrar António Costa fingindo querer saber das opiniões da oposição, ou da “maioria dialogante” como lhe chamou, e a seguir a sua trajetória de político hábil e pragmático. Deu um cheirinho destas suas intenções com o pacto de regime com o PSD em relação ao novo aeroporto de Lisboa (que vale zero e deve gerar apenas mais um ou dois estudos para um laboratório amigo) e o namoro ao Livre e PAN na discussão do Orçamento de Estado.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Aquilo que eu não esperava, depois do autêntico show do ex-ministro Eduardo Cabrita na anterior legislatura, era ver António Costa a dar tiros nos pés com tantos elementos tóxicos no novo elenco governativo. É certo que a oposição precisa destes casos como de pão para a boca, considerando que o seu combate no hemiciclo está perdido à partida. Obviamente, no meio da gritaria, misturam-se “casos” que não são casos – como o do ministro Pedro Nuno Santos – com outros que, de facto, nos deixam perplexos.

    O governo de maioria do PS tem estado a explicar-nos, palavra por palavra, por que se devem evitar maiorias. De repente, “incompatibilidade” passou a ser a palavra procurada no curriculum vitae como mandatória para uma promoção neste governo. Costa olha para a esquerda, e depois olha para a direita, e só vê drones kamikazes (outro conceito curioso) saídos dos seus próprios ministros.

    Manuel Pizarro foi nomeado ministro da Saúde, enquanto era sócio-gerente de uma consultora na área da saúde. Evitou-se assim aquela imagem já batida da raposa a tomar conta do galinheiro – diria eu que seria como se um médico, patrocinado por farmacêuticas, nos andasse todas as semanas a vender injecções em horário nobre nas televisões… Imaginem apenas o escândalo que seria… Felizmente, nunca vimos algo sequer parecido…

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Duas semanas depois de alguém dar com a incompatibilidade, e de fazer todas as manchetes, Manuel Pizarro lá foi passar a empresa ao sócio. Portanto, muda-se um papel, os ganhos continuam e a incompatibilidade também. Mas, legalmente, tudo está bem. Aliás, só há problema porque alguém fez o trabalho de casa… Em princípio, isto seria coisa para passar sem grandes alaridos.

    Vejam o caso de Carlos César, por exemplo. Até ao terceiro familiar encaixado no aparelho, ninguém deu por ela. A partir do quarto e até ao sétimo, já se fizeram umas caixas e ouvimos alguns gritos. Depois do oitavo, já passa a procedimento legal e aceita-se como algo normal. É um pouco como o funk brasileiro: ninguém gosta, mas todos batem o pé a pelo menos três músicas.

    Entretanto, Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, seria responsável pela gestão de fundos comunitários a que a empresa do marido acedeu. Nada ilegal, ao que parece – e, segundo alguns comentadores, um caso perfeitamente normal, porque, num país como Portugal, com um tecido empresarial tão pequeno, um empreendedor não pode deixar de concorrer a fundos europeus só porque tem família no Governo.

    Esta frase faz-me logo pensar que o Governo é uma grande família, e que, nem que seja em segundo ou terceiro grau, ter ministros na família é algo absolutamente comum para 10 milhões de portugueses. A forma como uma parte dos comentadores políticos tenta normalizar aquilo que, à vista do comum dos mortais, é uma cunha sem fim, leva-me as rugas aos cantos dos olhos, de tanto franzir a testa de estupefacção.

    Quando apareceu Miguel Alves, o secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, injustiçado pela corte lisboeta, lá longe em Caminha, pensei que tínhamos chegado ao pináculo. Um argumento muito bom, uma excelente produção, disparates ditos em catadupa. Tudo para ser um sucesso de bilheteira. Costa nomeou para seu adjunto um rapaz que é arguido em dois processos de corrupção. Um deles é a Operacão Éter, onde, juntamente com o ex-presidente do Turismo do Porto e Norte, está a ser investigado pelo Ministério Público por contratos ilícitos, corrupção e abuso de poder com autarcas socialistas.

    Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

    Em cima disto, desconfia-se que fez uns ajustes diretos na aquisição de material informático com outras autarquias do Norte (Operação Teia), e ainda há um adiantamento de 300.000 euros da câmara de Caminha a uma empresa para construir um centro que não está bem explicado.

    Portanto, temos aqui um cv excepcional para andar no bolso de António Costa. Para se defender, Miguel Alves foi à página 4 do manual escrito por Pinto da Costa: desde logo, está inocente e, como é óbvio, sente-se perseguido pelo centralismo de Lisboa. É o tipo de argumentação que funciona no mundo da bola, onde a paixão move os cérebros. No mundo da política já não será bem assim. O melhor que a plebe consegue fazer é encolher os ombros, dizer que “os políticos são todos iguais a roubar” e, em dia de eleições, não ir votar. Mas acreditar na inocência, quer dizer, também já é pedir demais a quem anda a contar migalhas.

    Entre todos os tiros nos pés que o PS deu no último mês, este parece ser, de facto, o mais grave. É tão insustentável para o Costa que até duas deputadas do PS, com presença habitual no comentário televisivo, já rasgaram o camarada Alves de cima a baixo. E como se não bastassem os processos para a gravidade da coisa, a defesa de Miguel Alves – no grito arrogante contra a corte de Lisboa e a vitimização de quem vem do interior do país – é uma cereja difícil de rejeitar. Aplausos de pé e saída triunfante, deixando Costa com a jogada seguinte.

    Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro.

    Pensava eu que estava feito o mês… Uma certa dose de escândalo, incompatibilidade, alguma corrupção, dinheiro desviado, epá, tudo o que uma pessoa precisa para escrever: MAIORIAS NÃO SÃO BOAS.

    Mas não, voltei a enganar-me.

    Antes de ver o Costa começar a usar aquela ginga de cintura para novas danças contorcionistas, eis que a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva – ela própria filha de um antigo ministro (acontece, se um pescador leva um filho para o mar, porque não pode um ministro levar um filho para o ministério?) – contrata um assessor de 21 anos, recém-licenciado, pela módica quantia de 4.000 euros mensais. Tiago Cunha, é o nome do jovem premiado e já faz sozinho a piada que tinha para aqui meter: nunca trabalhou e, ao que parece, identifica-se como “ocasionalmente estudante de Direito” tendo concluído recentemente (julgo) uma licenciatura de três anos.

    Dirão os defensores das oportunidades aos mais jovens que não podemos discriminar por idade. É verdade. Eu e o meu filho, só para dar um exemplo, estamos a ver uma série sobre um puto prodígio que aos 11 anos já tinha chegado à universidade e era um cientista fabuloso. É uma história maravilhosa. Só que é ficção, estão a ver?

    Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência.

    O Tiago Cunha pode ser o rapaz mais inteligente do planeta, e daqui a 10 anos chegar a primeiro-ministro, depois do governo do Ventura cair. Mesmo assim, não invalida a simples questão de entender como é que o primeiro emprego de alguém, sem qualquer experiência profissional relevante, é o de “assistir” um ministro. Se a assistência for algo como recolha de cafés no Starbucks e, aqui e ali, umas encomendas de pastéis de nata, tudo bem… Nesse caso, pergunto então apenas se a UberEats não seria uma opção mais económica.

    Agora, se de facto é suposto o rapaz trazer alguma mais-valia que justifique os 4.000 euros brutos, não estamos perante uma daquelas situações em que o abuso, a cunha e o desperdício de dinheiro público, estão ali a bater no escandaloso?

    É que, para colocar algum contexto nesta história, no artigo que há dias aqui escrevi sobre os professores, recebi algumas críticas por dizer que o salário em topo de carreira era mau (3.400 euros brutos ao fim de 40 anos de trabalho). Perante este caso do Tiago Cunha, tenho de facto que me retractar. Não é mau; é péssimo.

    Dava um dedo, daqueles que se usam menos, para beber um café com o Cabrita e perguntar-lhe o que acha destes clones todos. O homem deve andar a rir-se há um mês, e parecendo que não, todos precisamos de alguma alegria para lidar com a corrupção e abuso de poder a que as elites nos vão habituando.

    Mas, no fim, continuamos a ser, nós, os entalados. Continuamos apenas a assistir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.