Autor: Tiago Franco

  • Queres ser português de primeira? Concorre para nómada!

    Queres ser português de primeira? Concorre para nómada!


    Tenho ideia que a primeira pessoa com quem interagi na Suécia, com alguma regularidade, foi um senhor da Síria. Nos idos de 2006, quando aqui cheguei, foi ele o primeiro a dar-me a visão de um emigrante sobre a realidade nórdica, de cada vez que ia à pizzaria dele comer qualquer coisa com banana ou ananás. Sim, eu gosto de fruta na pizza, e há que saber viver com essa realidade.

    Dizia-me ele, sem grandes saudades da Síria – e foi antes da guerra civil, note-se –, que a Suécia era um paraíso. Defendia que, se o país tivesse sol, viveriam aqui 90 milhões e não os nove milhões de então. Quase 17 anos depois continuo a não concordar com ele. É difícil encontrar um paraíso longe de casa, mas o número dos nove milhões ficou-me para a década seguinte.

    white and black high rise buildings during sunset

    A Suécia no início do século XXI vivia uma política de incentivo à natalidade. Dada a sua dimensão geográfica, o envelhecimento populacional e a quantidade de empregos gerados pela forte Economia, era mais ou menos simples entender que a Suécia precisava de mais gente. O período que ficou conhecido como baby-boom, a que se juntaram várias vagas de emigração, resultaram num crescimento da população de cerca de um milhão no espaço de 20 anos, mais de 10%.

    Lembro-me de chegar de Portugal e ter a mentalidade que um filho seria um custo e um objectivo a realizar depois de estar financeiramente estável e, ao meu lado, um colega de trabalho preparava-se para ser pai enquanto a mulher estudava na universidade. O custo de ter uma criança era nulo e os benefícios, vários.   

    No mesmo período de tempo, Portugal viu a sua população diminuir em cerca de 500 mil habitantes e aproximar-se dos 10 milhões, onde cerca de 30% têm mais de 60 anos. 

    woman holding man and toddler hands during daytime

    Portanto, quando vejo que metade dos portugueses trabalham para suportar a outra metade – que se divide pelos que já não contribuem (reformados) e pelos que um dia contribuirão (crianças e estudantes) –, imaginei que uma política de natalidade daria jeito.

    Coisas simples como mais dias para gozar a paternidade/ maternidade, creches gratuitas em número suficiente, um abono de família que não fosse uma esmola, manuais escolares gratuitos e quejandos do género. Nada muito elaborado…

    Mas não, Portugal nunca fez nada disso. Portugal apostou nos últimos 20 anos em trazer turistas que ficam por cá uns dias e, de vez em quando, se a paixão assim ditar, mudam-se para uma das colinas. Queremos Madonnas. Ou chineses ou russos, que por cá venham investir 500.000 euros num apartamento qualquer inflacionado no preço, a troco de um passaporte europeu e de mais umas achas para a fogueira da especulação.

    man riding on vehicle looking for map

    Também escolhemos abocanhar as reformas dos velhotes escandinavos, deixando-os aqui viver sem nada pagar, e durante anos lá fomos ouvindo os raspanetes do Governo sueco, que via a receita fugir-lhe mas continuando a proporcionar aos seus reformados o Estado Social. Para as reformas miseráveis dos velhotes portugueses, nem uma borla que se visse ou um aumento de jeito que se contasse.

    Agora, sempre na onda da modernidade saloia, Portugal tenta atrair os nómadas digitais, dando-lhes benefícios fiscais que não estão disponíveis para o comum dos portugueses que aqui residem. Um deputado do PS, madeirense, defendia o sucesso da iniciativa piloto feita na Ponta do Sol, uma belíssima localidade na ilha da Madeira.

    O centro de trabalho partilhado, o sol da ilha, o atractivo fiscal, a facilidade com as ligações aéreas. Tudo a funcionar melhor do que o esperado, e os nómadas digitais, carregados com os seus Macs e iPhones, foram chegando em números interessantes à ilha.

    man on sun lounger using laptop

    Dizia um dos responsáveis do projecto, com satisfação, que os nómadas deixavam na comunidade local, em média, 2.000 euros por mês. Não sou grande coisa a medir o sucesso, mas, assim de repente, 2.000 euros por mês parece-me a factura que qualquer família tem, entre renda ou prestação da casa, crédito do carro, contas da casa e abastecimento do frigorífico. Já parto do princípio que não compram roupa ou vão a um espectáculo cultural fora de casa.

    Portanto, visto daqui, os nómadas estão a receber benefícios fiscais para gastarem o mesmo que os locais gastam, com a agravante de terem de pagar mais impostos. Provavelmente, a maior parte desses nómadas, pela definição de nómada, partirão para outras paragens quando melhores condições aparecerem. Serão, quando muito, uma parte da população móvel. Julgo ser difícil estimar quantos, de facto, contribuirão para Portugal durante um período considerável.

    Nada tenho contra nómadas digitais. Aliás, se pensar naquilo que é a minha vida e situação profissional, até encaixo no conceito de nómada. E, sinceramente, é uma condição laboral que me agrada, a de não estar preso fisicamente a lado nenhum. Só não percebo é por que razão deve um nómada ter vantagens fiscais que os residentes não têm.

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    Um país que não consegue garantir qualidade de vida a grande parte da sua população, deve concentrar esforços e recursos para atrair moradores temporários? Não devia o Governo tentar, primeiro, inverter a curva de crescimento populacional? Ou combater os baixos salários? Ou tentar ajudar os 50% que estão perto da pobreza? 

    Em simultâneo, os nossos jovens continuam a formar-se e a sair do país, em busca de salários decentes e de uma vida que não seja dominada pela pobreza ou pela voracidade da máquina fiscal.

    Todas estas medidas, quase patéticas, de atrair habitantes – também há uma em curso para emigrantes – fazem-me lembrar aquelas quedas gigantes que abriam joelhos na década de 90, quando era normal ver miúdos a correr na rua em zonas de alcatrão rugoso, posteriormente tapadas com um penso rápido que invariavelmente se colava ao sangue e infectava aquilo um bocadinho mais.

    Desde os tempos do Cavaco que vejo estradas e mais estradas, vagas de emigração, salários estagnados, corrupção inesgotável, clientelas como abutres no erário público. E depois, quando os governantes percebem que falta gente para produzir num país cada vez mais pobre, lançam estas campanhas saloias que nos vão transformando, cada vez mais, na República Dominicana da Europa. Venham para cá viver, há sol, praia e custos reduzidos. Para quem vem, não para quem já cá estava.

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    Pouco ou nada se faz para quem já está em Portugal, para que queira por cá continuar, formar família e deixar descendência. Desde 2006, perdi a conta ao investimento em estradas portuguesas, e já não sei em quantas autoestradas vamos. Vi que já há uma A30 e qualquer coisa, portanto, entre IPs, SCUTss e as ditas cujas, já devem ser mais de 50. Os suecos continuam com o mesmo número delas – bastante miseráveis, por sinal –, e, no total dos 2.500 quilómetros de comprimento do país, não devem chegar a 15% da quantidade que nós temos entre Faro e Bragança. 

    Mas cada casal tem em média mais de dois filhos e em menos de duas décadas fizeram a população crescer em quase um milhão de pessoas.

    Coisas que me parecem tão simples, opções que julgo serem tão óbvias, quando leio notícias sobre uma população envelhecida, feliz porque um gajo de iPods vai passar uns meses à Madeira.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dia de surpresas e utopias

    Dia de surpresas e utopias


    Pedro Henriques nunca me encheu as medidas quando fazia o corredor direito do Benfica; mas também não desiludiu. Era como um prato de bacalhau à brás: mastiga-se, embora todos saibamos que à lagareiro é que é.

    Já como comentador está como peixe na água. Ouvi-lo é como ver a bola no café com os amigos. Aprecio particularmente o termo “guardanapo” para descrever uma pancada mais forte. Gosto. É o oposto do Luis Freitas Lobo, que me faz sofrer com as analogias do bailado e da poesia.

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    Como dizia o Paulo Bento, bola-pé, andebol-mão. Não estragues a simplicidade da coisa, Freitas.

    Nisto esperei por surpresas. O meu filho só queria que o dia acabasse com a derrota da Argentina. Ele é #teamAveiro desde que começou a falar. Confesso que era um cenário que me agradava. Qualquer adversário mais forte que vá para casa, por mim está óptimo. Sonho com uma final de um mundial entre Portugal e as Fiji.

    Era difícil de ver o desejo do miúdo cumprido. Desde logo porque o roteiro deste Mundial é Ronaldo vs. Messi; e os restantes 798 jogadores estão lá como figurantes. Depois, porque a Polónia joga pouco mais que o Qatar. Com a agravante de o selecionador deixar, repetidamente, o segundo melhor jogador (Milik) no banco.

    A dada altura dos jogos, simultâneos, da Argentina contra a Polónia e a Arábia Saudita contra o México, o desempate para o segundo lugar já ia no número de cartões amarelos, com vantagem para os polacos.

    O dia acabou por ser feito de surpresas, primeiro com a passagem aos oitavos da Austrália, quando se esperava que a Dinamarca fosse a dona do segundo lugar, e depois com a Polónia a ultrapassar o México na diferença de golos, graças ao golo saudita marcado nos descontos. 

    timelapse photo of soccer player kicking ball

    Sorte para a França e para a Argentina que, nos oitavos de final, medirão forças, respectivamente, com Polónia e Austrália. Podem, portanto, começar a engomar o fato de treino para os quartos de final.

    Se a Alemanha não se qualificar (Fernando Santos tem uma reza nova), Portugal pode ter um caminho suave até às meias finais. Se aí chegarmos, devemos apanhar a França. 

    Já a Argentina terá um caminho tranquilo até  às meias, com Austrália e Holanda no caminho.

    Com alguma fortuna, o guião de Hollywood pode mesmo acontecer: Messi e Ronaldo, frente a frente. Nem que seja pela medalha de bronze. 

    Há que sonhar. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Taremi, Ronaldo e o rapaz da t-shirt

    Taremi, Ronaldo e o rapaz da t-shirt


    Esperei pelo fim do dia para escrever a crónica de hoje por causa da hora do jogo mais interessante. Estados Unidos contra Irão daria tema similar a um Rocky VII, já que o russo Ivan Drago foi despachado na quarta sequela da série.

    Quando Portugal não está envolvido no jogo, o meu coracão pende sempre para as selecções mais fracas, vindas de países pobres. Se um Mundial não servir para mais nada, serve pelo menos para nos retirar, por uns minutos, da miséria do quotidiano.

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    Por isso, gosto sempre de ver as selecções africanas ou sul-americanas envolvidas na festa. A qualificação do Senegal é uma excelente notícia e os jogos absolutamente loucos proporcionados por Gana (contra a Coreia do Sul), Camarões (contra a Sérvia) e Marrocos (contra a Bélgica) foram do melhor e mais puro que vi neste campeonato. Povos que viveram umas horas de felicidade antes de despertarem, novamente, para a sua realidade. E aqui lamento, obviamente, os distúrbios causados por adeptos marroquinos em Bruxelas.

    No Estados Unidos vs. Irão jogava-se muito mais do que futebol. É um despique entre dois países que arrastam, há décadas, rivalidade e antagonismo no plano político internacional. Os Estados Unidos, país carregado de armas nucleares e, até à data, únicos no seu uso, decidem quem no Mundo pode e não pode ter esse tipo de armamento.

    Nessa senda, andam a impor sanções ao Irão, há várias luas, acusando-os de enriquecimento de urânio e tentativa de produção de uma bomba nuclear. A NATO apoia a Ucrânia pelo seu principal fornecedor (Estados Unidos) e o Irão vende drones à Rússia. Nas discussões do Médio Oriente, os Estados Unidos apoiam a Arábia Saudita, Israel, os rebeldes sírios, e ainda os curdos, quando dão jeito. O Irão apoia a Palestina, o Hezbollah libanês e tudo o que os americanos não gostem. Em resumo, são dois países inimigos e, naquela zona do Globo, depois de Iraque e Afeganistão, é o Irão o alvo a abater pelos norte-americanos.

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    Os jogadores do Irão sentem a pressão de terem o Mundo contra eles. Ouve-se nos assobios durante o hino, percebe-se nas perguntas dos jornalistas. Pouco importa se eles não são responsáveis pelo abjecto regime que os governa e se até, dentro das possibilidades, demonstram publicamente o seu apoio aos que se manifestam nas ruas de Teerão.

    E por isso, por sentir que correm sozinhos contra o Mundo, representando um país que existia e existirá para lá deste regime, eu desejava-lhe um final feliz nesta qualificação. O jogo, no entanto, mostrou uma selecção norte-americana muito superior no campo. Aliás, depois de ver os três jogos desta equipa, é justo dizer-se que no seu soccer os Estados Unidos possuem um conjunto de jogadores muito interessantes. Jogam bem, correm muito, apresentam boa consistência defensiva e circulacão de bola. Vê-se alguma experiência nestas andancas, ao contrário dos parceiros da Concacaf, o Canadá, que joga um futebol de rua, onde atacar é a palavra de ordem, sem grande capacidade de segurar a bola, controlar os momentos de jogo ou até defender com alguma solidez.

    Não sei se daqui sairão aproveitamentos políticos, mas, no campo, onde a coisa se decidia, os Estados Unidos foram melhores e venceram justamente.

    Agora, sem os iranianos no Qatar, pode ser que a comunicação social comece a massacrar outros jogadores nas conferências de imprensa a propósito dos regimes que representam ou das mortes que vão causando. Pessoalmente, espero que Taremi e companhia continuem a aproveitar, e bem, a exposição social para protestarem contra o regime. Ultrapassam a sua missão como desportistas e, por isso, a minha vénia.

    Vénia essa que alargo ao corajoso que apoiou, em sprint no meio do relvado durante o Portugal vs. Uruguai, três causas com uma t-shirt e uma bandeira. A realização televisiva, num país que não sabe o que é democracia ou liberdade de expressão, fez o que se esperaria: desviou a imagem. Como se não existisse…

    P.S. – No dia seguinte à vitória portuguesa sobre o Uruguai, a discussão centrou-se na autoria do nosso primeiro golo. As imagens de Ronaldo, ao intervalo, a insurgir-se contra o árbitro, pedindo que lhe atribuísse o golo (retirando-o, pois, a um colega) é algo que não consigo compreender à luz do espírito de camaradagem num desporto colectivo. A bola entrou, Portugal ganhou; o que é que importa se Ronaldo fica com 800 golos ou 801? Bem sei que devemos muito, desportivamente, a este rapaz, mas esta obsessão pela marca pessoal, em vez dos interesses da equipa, é algo que já me começa a irritar. Irritado, aliás, também deve ter ficado Fernando Santos que, pela segunda vez, viu a equipa a jogar muito pouco e a falhar o empate desejado. Estamos assim nos oitavos ao fim de dois jogos. Não conseguimos lidar com isto sem, pelo menos, uma conta de somar que seja. Tudo anda estranho neste Mundial. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quis saber quem sou, o que faço aqui

    Quis saber quem sou, o que faço aqui


    Chegou o dia de Portugal dizer o que veio fazer ao Qatar: se passear e mandar umas bocas, como o nosso Marcelo; ou se dar uso ao excelente naipe de jogadores que vestem aquela camisola do Lidl, e que me garantem ser mesmo o equipamento oficial. 

    O Uruguai é, de longe, o opositor mais forte no grupo de Portugal. Fernando Santos disse, na última conferência de imprensa, que a selecção uruguaia estava algo envelhecida relativamente à que nos eliminou em 2018.

    “Suarez e Cavani têm agora mais cinco anos do que tinham em 2018”, disse o nosso Nando. Na verdade, são mais quatro anos, mas ninguém espera que um engenheiro seja rigoroso em contas de merceeiro. Ou se calhar meteu nos cálculos o famoso coeficiente de cagaço, muito famoso entre engenheiros civis, e em vez de um 4 saiu-lhe um 5.

    Claro que, quais Benjamin Button, os nossos Ronaldo, William, Pepe, Bernardo e Bruno Fernandes estão agora quatro ou até cinco anos mais novos.

    Felizmente, tivemos Bernardo Silva a marcar presença na mesma conferência de imprensa, e, para deleite dos presentes, explicou durante 15 minutos que um jogador de futebol consegue pensar e articular mais do que três frases repetidas a cada domingo. 

    white and black soccer ball on grass field

    Disse, o já garantido futuro presidente do Benfica, que a selecção aprendeu com os erros das últimas derrotas (Sérvia e Espanha) e que hoje se nota mais vontade e articulação no controlo dos diferentes momentos do jogo.

    Bernardo não disse, mas eu sei que ele sabe que as individualidades resolveram o jogo contra a débil equipa ganesa, e que o jogo colectivo, na primeira parte, se resumiu a uns exasperantes 1.000 passes laterais. É pouco, muito pouco para um Campeonato do Mundo onde Portugal deve ter legítimas aspirações. 

    Em todo o caso, Matemática à parte, o Uruguai é o adversário mais cotado e, contra ele, Portugal pode fazer a sua afirmação: a de ser um candidato, como se exigiria perante a equipa disponível; ou a de continuar a ser um calculista desmedido que joga para não perder, com toda uma lentidão de processos que já ninguém suporta ver.

    Em suma, a selecção portuguesa vai hoje dizer se quer acompanhar a Bélgica como desilusão deste Mundial ou se, em vez disso, vai meter a França em sentido, fazendo-a saber que não corre sozinha pelo ceptro mundial.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Ó Jorge… ¿Por qué no te callas?

    Ó Jorge… ¿Por qué no te callas?


    Carlos Queiroz viu-se envolvido numa série de polémicas por causa da situação política no Irão. Primeiro, com jornalistas e as suas perguntas sobre o regime; e agora com Jurgen Klinsmann que, na BBC, disse que a vitória do Irão sobre o País de Gales tinha acontecido graças à pressão exercida sobre os árbitros.

    Devo confessar que não tenho grande impressão sobre o trabalho de Carlos Queiroz. Depois daquela final do Mundial de Juniores em 91 – disputada num Estádio da Luz repleto com 120 mil almas, entre as quais a minha, a gritar a plenos pulmões depois do penalti vencedor batido por Rui Costa –, não me lembro de nada relevante. Ou como lhe gritou Ronaldo, a partir da linha lateral no Mundial de 2010, depois de mais uma substituição desastrosa, “assim não dá, Carlos!”

    Carlos Queiroz

    Mas, nesta polémica, está ele carregado de razão. Se a cada conferência de imprensa os jogadores e treinadores do Irão têm de fazer uma análise política, militar e social – que em muito ultrapassa aquilo para que foram ao Qatar (jogar à bola, lembremo-nos) –, é justo que, como diz Queiroz, comecem a interrogar os selecionadores norte-americano e inglês sobre a retirada do Afeganistão e a colocação dos talibã no poder. Ou, acrescento eu, inquiram Tite sobre a desflorestação da Amazónia durante os quatro anos de Bolsonaro. Ou, porque não, perguntem ao francês que dirige a Arábia Saudita o que acha sobre os bombardeamentos no Iémen e o embargo ao país anfitrião. Olha, e já agora: que tal questionar o selecionador do Qatar sobre as condições de trabalho proporcionados aos migrantes asiáticos no país?

    Então temos ali tanto material bom para uma aula de Ciência Política e Cultura Geral e, aparentemente, ficamo-nos pelo regime iraniano para o Queiroz comentar, enquanto os restantes treinadores apenas têm de justificar o 4-4-2 com médios basculantes? É pena que assim seja. Podíamos, de facto, aprender muito com o futebol e as conferências de imprensa dos treinadores a comentar política.

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    Até a FIFA tem alguma dificuldade em manter a cara nesta polémica. Em certo dia, diz a FIFA que o Mundial não é sítio para política, pedindo o fim das manifestações pelos direitos humanos ou pela defesa da comunidade LGBTQIA+. No dia seguinte, afinal, já se podem fazer declarações e decisões políticas, afastando a Rússia de qualquer competição. Não sei se algum dos jogadores russos enviou um rocket algures.

    Também já se vê que se pode discutir regimes se for o do Irão. Já não se pode discutir se for de um dos Estados do petróleo no Médio Oriente ou se for necessário retirar um invasor de território asiático e colocá-lo a jogar nas provas europeias da UEFA.

    Portanto, ser permitido misturar política com futebol depende do alvo e do dia da semana.

    Mas o Jurgen Klinsmann não se contentou com as suspeitas lançadas sobre a arbitragem e também fez comentários sobre a cultura iraniana, misturando-a com a sua forma de jogar. Assim uma espécie de racismo, que no caso alemão uma pessoa nem leva a mal, porque leu alguns livros de História. Klinsmann, ex-selecionador norte-americano, curiosamente o adversário com quem o Irão discutirá o apuramento, e actual funcionário da FIFA, faz o que pode pelo lado de fora. Coloca pressão numa equipa que já joga com um enorme peso nos ombros, desafiando o regime e sem qualquer culpa na situação política que se vive no seu país.

    Jurgen Klinsmann

    Klinsmann é por isso, um escroque. Para não lhe chamar algo que Alberto João Jardim designaria como sinónimo de bastardo.

    Queiroz, repito, não faz o meu tipo, mas, desta vez, está carregado de razão e espero que vença o próximo desafio. A um homem que um dia tirou o Paulo Torres para colocar o Pacheco, e dar-me, dessa forma, um dos melhores dias da minha vida, devo pelo menos a justa solidariedade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma pausa no racismo

    Uma pausa no racismo


    Assistia ao Arábia Saudita vs. Polónia, um chatíssimo jogo, onde os polacos provaram que jogam muito pouco (ainda devem estar a tentar perceber como ganharam) e os sauditas, apesar dos bons princípios de jogo e vontade extra demonstrada, exibiram pouco acerto no momento de finalizar.

    Para me distrair, inventei um passatempo que consistia, essencialmente, em encontrar uma mulher nas bancadas repletas de apoiantes sauditas. Não passei do primeiro nível, e comecei então a pensar nos restantes jogos que tinha visto mas noutra perspectiva.

    A vitória da Suíça contra os Camarões foi com um golo de um camaronês. Não foi um autogolo: Breel Embolo é um ponta-de-lança suíço mas nascido em Yaoundé, que se situa a 4.800 quilómetros da helvética Berna.

    O empate dos Estados Unidos frente ao País de Gales saiu dos pés de um filho da Libéria. A vitória francesa frente a uma excelente Dinamarca, hoje e sempre, às costas de uma constelacão africana. A Holanda impôs-se ao Senegal com um golo de origem togolesa.

    Ou até o nosso Rafael Leão, criado no bairro da Jamaica, entre vários emigrantes africanos; foi ele que selou a vitória sobre o Gana.

    Numa altura em que por todo o lado se vão construindo muros, o futebol tem o poder de, por momentos, incluir toda a gente. Um prazo curto, bem sei, definido pela hipocrisia reinante.

    Ainda assim, por uns momentos, todos festejamos o mesmo. O Ventura comemora um golo de um miúdo do bairro da Jamaica, em vez de o mandar para a terra dele. Até aposto que comemorou os golos do cigano em 2016.

    A Le Pen passa a semana a gritar contra a vinda de magrebinos, mas depois, durante o Mundial, grita pelo Benzema ou pelo Zidane.

    O Trump andava a fazer um muro para impedir os mexicanos de aparecerem no Texas, mas se algum hispânico marcar um golo no mundial, em princípio, vai levantar os braços. Se souber que está a decorrer um Mundial de soccer, claro.

    O Lukaku disse numa entrevista que quando a Bélgica perdia e ele falhava um golo, a imprensa do dia seguinte referia-se a ele como o filho de congoleses. Quando acertava era o belga.

    O Zlatan Ibrahimovic queixava-se de algo parecido. Se corria tudo bem, era o melhor jogador sueco de sempre; quando partia qualquer coisa, era o temperamento dos Balcãs.

    No fundo, no fundo, o mundo da bola não é diferente da realidade que nos rodeia. Emigramos, mudamos de país, adoptamos outras culturas, deixamos gerações noutras paragens.

    Quem defende um Mundo cheio de divisões e povos puros, não suporta essa mistura, não aguenta gente diferente, línguas desconhecidas. Passam três anos e onze meses a gritar contra emigrantes. Depois chega o Mundial e durante um mês somos todos um. Ninguém quer saber de cores desde que a bola entre.

    Assim que se entrega a taça, e voltamos à vida do quotidiano, recomeça o racismo e a crítica a todos que chegam de algum lado na procura de uma vida melhor.

    Nesta Europa que escolhe os muros, confesso que me sabe bem este mês de inclusão. É falsa, é hipócrita mas vemos de facto sociedades de nações em funcionamento.

    Falta gente inteligente e educada, que perceba que pessoas não se dividem, misturam-se. E falando em gente educada, partiu hoje um cavalheiro, um desportista de eleição e um jogador que sempre admirei. Lamento o desaparecimento tão precoce do bibota Fernando Gomes. E também por isso, deixo aqui os meus sentimentos à família enlutada. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos

    Os 1000 euristas e os entreténs do Froes, do Milhazes e do Rui Santos


    Sou um defensor do sistema progressivo de impostos e da sua aplicação em benefício da população, com prioridade para os três pilares de qualquer sociedade civilizada: Educação, Saúde e Segurança Social.

    Nunca concordei com taxas fixas de contribuição por as considerar injustas, e também, por princípio, nunca defendi uma redução de impostos, porque significaria condenar a Escola Pública ou o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ou talvez ambos.

    Contudo, os últimos anos fizeram-me mudar um pouco esta visão, pelo menos em Portugal. No país para onde emigrei, a Suécia, esta teoria é aplicada com sucesso. Impostos progressivos, altos a partir dos 3.500 euros e sempre aplicados a favor dos contribuintes.  Educação universal grátis, desde a creche até às universidades. Saúde pública e gratuita, onde até o dentista está incluído (até aos 26 anos). Apoio social nas pensões, no desemprego e na paternidade. Para mim, isto é o ponto de partida, o mínimo, para que um contribuinte sinta que faz sentido pagar impostos. Nunca conheci, em 18 anos aqui, um trabalhador que não gostasse de pagar impostos na Escandinávia.

    Em Portugal, são anos, décadas, de Governos cuja receita para combater o défice é apenas uma: aumentar impostos. Pior do que isso, o retorno para os contribuintes é cada vez menor. Lembro-me de há 20 anos os créditos à habitação terem alguns benefícios em sede de IRS. Lembro-me de universidades sem propinas. Lembro-me de estradas sem portagens. Lembro-me de transportes públicos, combustíveis e casas com preços aceitáveis.

    Em três décadas, em Portugal, e especialmente nos grandes centros, atingiu-se o patamar europeu para os custos de vida, mas ficou-se pelo nível africano de rendimentos. Os salários não crescem, os impostos multiplicam-se, o Orçamento de Estado é cada vez mais para as clientelas, bancos e construtoras; e menos para quem paga impostos. É um sufoco. Quando penso na vida que os 1000 euristas fazem em Portugal – ou seja, a grande maioria –, fico com uma sensação de falta de ar, de angústia, de sobrevivência.

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    E por isso, pela primeira vez, sou obrigado a concordar com Carlos Guimarães Pinto, que na Assembleia da República exigiu uma baixa de impostos aos 1000 euristas. A expressão é dele, e eu acho-a feliz. A inflação trouxe um jackpot de impostos ao Governo português, e já tinha escrito aqui, no PÁGINA UM, que esse rio de dinheiro inesperado tinha de ser usado a favor da população.

    A minha proposta inicial tinha sido uma ajuda nos créditos à habitação, porque considero que será essa a maior despesa das famílias. Mas uma redução da carga fiscal retirada ao salário também seria uma boa medida, provavelmente melhor, porque deixaria mais dinheiro no bolso, hoje e sempre, permitindo algo que defendo, desde sempre, que é uma divisão mais justa da riqueza.

    Insisto, contudo, na ideia de que só concordo com esta implementação em Portugal porque, como se percebe ao fim de décadas, os impostos são cada vez menos revertidos a favor dos contribuintes.

    Num sítio onde o dinheiro fosse bem aplicado, eu seria totalmente contra uma redução fiscal. Mas, em Portugal, uma pessoa tem de se render e observar a realidade: se o Estado, enquanto guardião dos nossos impostos, não nos garante, sequer, Escola Pública e Saúde Pública de qualidade, então, bom, é melhor de facto que as pessoas fiquem com dinheiro no bolso para o aplicarem como bem entenderem.

    people raising hands with bokeh lights

    Claro que isto significa ainda pior Escola, ainda pior Saúde, ainda pior Segurança Social, mas, convenhamos, quantas décadas mais é que vamos andar a pagar bancos, clientelas, estradas e políticos corruptos com ajustes diretos a empresas de amigos? Sem Justiça que funcione em tempo útil, e com uma corrupção que consome todo o erário público, é preferível que cada 1000 eurista tenha, pelo menos, dinheiro para chegar ao fim do mês.

    O Estado português fica com cerca de 30% de um salário de 1.000 euros. Na Suécia, essa é a carga fiscal de um salário quatro vezes maior. Portanto…torna-se um pouco indefensável a carga fiscal que se aplica aos baixos salários portugueses. E ainda se percebe menos como é que perante o congelamento de carreiras na Função Pública e os aumentos muito abaixo da inflação no sector privado, a população continua impávida e serena, a reclamar das greves ou das lutas dos trabalhadores.

    Entretidos com as palestras do Froes sobre a covid-19, do Milhazes sobre o Donbass e agora do Rui Santos sobre o Qatar, vamos deixando para segundo plano o facto inquebrantável de estarmos cada vez mais pobres.

    Meus amigos, a Roménia em 2024 ultrapassará Portugal. Repito-vos: a Roménia. Pelo andar da governação e políticas de desenvolvimento, se o Burkina Faso entrar para a União Europeia, temo que em cinco anos nos apanhará.

    people in a city during daytime

    Não há ninguém aí que queira partir qualquer coisa?

    Hoje o tempo é de união, mas também de garantir que os impostos deixam de ir para o BES, para a Lusoponte, para os ajustes directos aos maridos das ministras, para os ajudantes de secretários de Estado com 21 anos, para os empresários amigos, para a família do autarca que quer fazer obras no largo da igreja, para as viagens de Falcon até ao Qatar. O tempo é mesmo de gritar, de ir para a rua, de começar a exigir algo mais em concreto. Ou os impostos baixam ou os salários sobem. Desse lado já não se vive, sobrevive-se. É essa a realidade.

    Por isto tudo, é tempo de lutar, e de exigir que as elites governantes, simplesmente, deixem de nos roubar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!

    Anda campeão, dá-lhe, dá-lhe!


    Eis a verdade! Fernando Santos surpreendeu e inovou, respondendo a um pedido irónico feito na minha crónica de ontem. Na conferência de imprensa disse, em tom descontraído, que o 11 era mais do que expectável. Não! Não! E não! Entrar com dois avançados e apenas um trinco – sendo que Ruben Neves habitualmente até joga na posição 8 –, mesmo contra uma das selecções mais fracas da competição, é um salto de gigante para o seleccionador nacional. E isto tem de ser dito.

    Ao contrário do Brasil, que sabe que tem a sua maior força no ataque e roda seis ou sete avançados durante o jogo, Fernando Santos aposta habitualmente em rodar seis ou sete médios para garantir que a bola não sai dali. Tite usa o que tem e arrisca-se a ganhar; Fernando Santos mostra medo do que tem e fica feliz a empatar.

    O Gana apresentou-se contra Portugal em versão Arouca. Com 11 homens à saída da área e um bloco tão baixo que foi difícil apanhar Diogo Costa na imagem durante os primeiros 45 minutos. Se é penoso ver este tipo de jogo nas ligas nacionais, num Campeonato do Mundo chega a ser deprimente. Valeu a festa nas bancadas.

    Portugal fez aquilo que sabe melhor: passar para o lado até adormecer o adversário, os espectadores, os árbitros e os camelos que estavam estacionados à saída do estádio. Não há vivalma que aguente tanta lentidão de processos e tão pouca procura pela baliza.

    Ronaldo teve as duas primeiras hipóteses e mostrou que continua a saltar muito, mas a acertar pouco. Félix esteve mais preocupado em cair do que lutar pela bola, e até ao golo, numa excelente oferta da defesa, não fez nada que justificasse a sua inclusão. Bernardo Silva e Bruno Fernandes pautaram, bem, o jogo da equipa. Otávio lutou e foi bastante útil no meio-campo.

    A defesa comprometeu, e Danilo, em particular, tremeu desde o primeiro minuto. Cancelo nunca arriscou no um para um e acabou sempre a ir à linha para voltar a passar para trás ou para o centro.

    Fernando Santos voltou a respirar aos 56 minutos, quando, depois dos ganeses passarem o meio-campo duas vezes, William Carvalho entrou. Com dois trincos e o resultado em 0-0, o nosso selecionador voltava à sua zona de conforto.

    Rafael Leão entrou a 13 minutos do fim, numa altura em que o jogo estava 1-1. Portugal marcou um minuto depois, por João Félix, e novamente, três minutos volvidos pelo próprio Rafael Leão, que, antes de rematar, já sorria adivinhando onde acabaria aquela bola.

    Entretanto, João Cancelo optou por dar mais alguma emoção à partida, oferecendo um segundo golo à selecção ganesa, e já nos descontos, Diogo Costa, fez o possível para entrar nas epic failures do Youtube.

    Enfim, jogamos pouco. Jogamos muito, muito pouco. Pela frente tivemos uma equipa que procurou o empate desde o primeiro minuto e que será, provavelmente, o adversário mais dócil deste grupo. Para além da vitória e do salto do Ronaldo com o Messi a ver, o grande destaque da partida de ontem acabou mesmo por ser os comentários do Paulo Futre. “Anda campeão!”, “força, força, vai para cima!”, “vamos, menino, vamos!” – esta é a banda sonora que todos queremos ouvir em momentos íntimos da nossa vida. Futre tocou-a num Mundial, em horário nobre. É o maior!

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje: sem desculpas

    Hoje: sem desculpas


    Passei a manhã toda a ouvir: “às 16 horas, Portugal entra em acção”. Permitam-me discordar.

    Portugal entra em acção todos os dias, entre as 8 e as 9 da manhã, quando cinco milhões de pessoas trocam 8 horas do seu dia por menos do que 900 euros líquidos ao fim do mês. Ou quando um batalhão de professores de português, espalhados pela diáspora, picam o ponto em cada manhã. Ou quando centenas de enfermeiros portugueses entram ao serviço, todos os dias, em hospitais ingleses.

    Ou até, aqui na minha cidade de Gotemburgo, quando largas dezenas de engenheiros, vindos de todas as partes do território nacional fazem mais uma linha de código para desenvolver tecnologia de ponta. São os milhões que trabalham desse lado e os milhões espalhados pelo Mundo que entram em campo, cada dia, para dignificar o estatuto de um povo.

    Mais logo, às 16 horas, em verdade, vão entrar em campo um conjunto de milionários, liderados por outro milionário que, para além de incompetente, gosta pouco de contribuir para o Estado social, já que pagar impostos não parece ser com ele. O futebol move mundos e paixões, mas, aqui e ali, convém não perdermos de vista quem nos realmente representa.

    O meu filho, que passou o dia a gozar com o amigo argentino (acho que desde os 5 anos que discutem quem é o melhor entre Messi e Ronaldo), dizia-me “agora espero que o Fernando Santos não faça asneira”.

    Eu disse-lhe que, com todo o respeito pela selecção do Gana, se uma equipa como a portuguesa não conseguir ganhar à sexagésima primeira classificada do ranking mundial, então é melhor pararem de gastar dinheiro dos impostos e regressarem, sem muito barulho, às mansões de onde saíram.

    Lembrei-me da entrada em competição da selecção de 2002, que também tinha uma geração de ouro no auge da forma, vindos de um europeu magnífico. O tal onde, 20 anos depois, já podemos dizer claramente que o Abel Xavier meteu a mão na bola e ofereceu um penalti a esse rapaz, de bons pés, chamado Zidane.

    Nesse mundial de má memória, a selecção estreou-se com uma derrota contra os Estados Unidos, por 3-2. Um país que até ao presente dia ainda não sabe o nome da modalidade e acha que futebol é uma coisa que se joga com um melão, capacetes e almofadas nos ombros.

    Lembro-me de, no calor da derrota, alguns jogadores dizerem que entraram nervosos pela espera de vários dias. Tinha sido uma das últimas equipas a entrar em campo. Ora, é exactamente a situação da nossa equipa hoje. Uma das últimas a entrar em competição e a ver selecções mais fortes como Argentina, Alemanha, Bélgica, Croácia e até Holanda, em sérias dificuldades frente a adversários mais fracos.

    Quero só dizer que, se a coisa correr mal, não usem essa desculpa. Já tem 20 anos e não envelheceu bem.

    Como qualquer português que gosta de futebol, passei o dia a imaginar o 11 de Fernando Santos. Arrisco o seguinte:

    Diogo Costa, Cancelo, Pepe, Ruben Dias e Nuno Mendes na defesa, Um meio-campo de “segura até não dar mais”, composto por William Carvalho, Ruben Neves e Otávio, com Bernardo Silva e Bruno Fernandes mais soltos a tentarem meter a bola em Ronaldo, o único com apetência no 11 para chegar a um cruzamento, numa equipa que o mais parecido que tem com extremos são os defesas laterais.

    Depois, Fernando Santos dirá a Ruben Neves para evitar remates de longa distância, como aqueles que faz na Premier League, não vá aquilo dar em golo.

    Félix, Rafael Leão, Gonçalo Ramos e todas as opções que existem para tornar esta selecção numa trituradora de ataque, ficarão guardados para queimar tempo aos 83 minutos, quando Portugal estiver a ganhar 1-0, ou para os 60 minutos, caso Portugal esteja a perder por 1-0.

    No meu íntimo, tenho a secreta esperança de, sabendo que esta é a sua última competição à frente da equipa lusa, o nosso Fernando decida arriscar e não ficar na História como o treinador mais medroso que orientou, provavelmente, a melhor e mais talentosa geração de jogadores portugueses de sempre.

    Se ele entrar com Rafael Leão, Ronaldo e Félix na frente, deixando o meio-campo entregue a Bernardo Silva, Bruno Fernandes (ou Otávio) e apenas um trinco, retiro tudo o que escrevi e deixo aqui umas loas amanhã ao nosso engenheiro, que não gosta de impostos.

    Certo, certo, é que, mesmo que a selecção nacional entre em campo com Diogo Costa, Ronaldo e nove trincos, ainda assim, terá a obrigação de vencer a equipa do Gana.

    Diria mais: num grupo com Gana, Uruguai e Coreia do Sul, tudo o que não seja o primeiro lugar, é falhar.

    Já vai sendo altura de cumprirem, no campo, o estatuto que carregam.

    Sem desculpas. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz

    No está(ú)dio da Sport TV é mais feijão com arroz


    Ao quarto de dia de competição, e no momento em que escrevo, três selecções confirmaram credenciais: Espanha, Inglaterra e França. É certo que nenhum deles defrontou adversários com grandes créditos, mas, ao contrário de Argentina e Alemanha, que também defrontaram equipas teoricamente mais fracas, não deixaram qualquer dúvida sobre quem seria o vencedor.

    A equipa inglesa parece prometer algo mais do que o habitual, dispondo uma geração que foi finalista no último Europeu e acabou o Mundial de 2018 em quarto lugar. Inglaterra é, para mim, um mistério constante nestas competições. Pensar-se-ia que, para quem inventou este jogo, deveria ver o sucesso bater-lhe mais vezes à porta. Mas não. Mais de um século depois, tudo se resume a um Mundial bem “caseirinho”, o tal de 66, e sucessivos falhanços fora dessa bolha.

    Durante muitos anos, as selecções inglesas eram um reflexo do típico jogador inglês: pontapé para a frente e luta pelo ar. Fossem eles do Cazaquistão, e dir-se-ia que era chutão para o ar – mas como em Inglaterra, já se sabe, tudo se faz com algum chá, o estilo era definido por ser um futebol mais “vertical” ou “directo”, como dizia o saudoso Gabriel Alves.

    No fim do século XX – veja-se o Mundial de 98, em França –, a selecção inglesa começou a aparecer com jogadores que não castigavam tanto a bola: Beckham, Ince, Scholes, Owen, McManaman, Fowler, a que se juntou a enchente de dinheiro que desabou na Premier League, fez com que a competição interna inglesa começasse a atrair os melhores jogadores e treinadores do Mundo.

    Há uma clara evolução no jogador inglês, também por essa explosão da Premier League, e hoje, em vez do enfadonho “jogo vertical”, Inglaterra apresenta intérpretes capazes de segurar, rodar, driblar. Aproximou-se dos princípios de jogo que apenas selecções com jogadores mais tecnicistas tinham.

    Hoje, liderados por Harry Kane e com Mount, Foden, Sterling, Saka, Rashford, Alexander-Arnold, Grealish, entre outros, já é outra música. As últimas duas competições mostraram que têm qualidade. Resta saber se conseguirão confirmar os bons indicadores neste Mundial… e mostrarem-nos como é que um país inventa um jogo para apenas o compreender 100 anos depois.

    Entretanto, neste grupo E, e depois da surpresa oferecida pelo Japão – vencendo a Alemanha por 2-1 –, teremos uma segunda jornada explosiva, onde os alemães serão obrigados a vencer a Espanha de Luís Enrique, que joga naquele irritante tiki-taka que já ninguém suporta, mas poucos conseguem contrariar. Num Mundial onde tantos jogadores emblemáticos se despedirão, Manuel Neuer corre o risco de ir bem mais cedo para casa.

    Nestas competições que centram agora a atenção do Mundo, e fazem com que tudo o resto pareça parar (deixei de ouvir falar na Ucrânia), há uma autêntica legião de jornalistas, analistas e ex-jogadores que vão comentando. E noto, por vezes, nos painéis portugueses uma certa arrogância no tratamento aos intérpretes.

    Vejo assim jogadores que tiveram carreiras pouco mais do que medíocres a falarem de quem está entre a elite, e num Mundial, como se soubessem sequer o que aquilo é. E pior: ouço jornalistas a falarem de internacionais pelos seus países com um desprezo que me envergonha.

    Assim, enquanto Espanha triturava a Costa Rica (7-0), via eu, na Sport TV, o Miguel Prates a ir ao Olimpo de cada vez que Busquets ou Gavi tocavam na bola.

    Já quando esta chegava a Azpilicueta, o nosso Miguel dizia: “pois, com Azpilicueta tem de ser mais feijão com arroz” – que é uma forma cool dos comentadores actuais, quando não usam a palavra da moda “diferenciado”, se referirem a um jogador de quem se espera apenas bola no pé, passe simples, recebe e toca. Nada de inventar, porque pode partir um tornozelo.

    Ora… eu acho que é preciso ter mesmo uma falta de noção para estar sentado, num estúdio de televisão, a dizer que outro homem, que por acaso está no 11 de uma selecção como a espanhola, e que há 10 anos é titular do Chelsea (não é do Portimonense), e que ganhou todos os títulos nacionais e internacionais de clubes, é um gajo de “feijão com arroz”.

    A jogar no sofá e a mandar postas de como seria se nos levantássemos, não há pai para nós. Somos “diferenciados” nessa arte. E “verticais”, mas rasteirinhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.