Autor: Tiago Franco

  • Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!

    Um passeio dos banqueiros pelo Colombo: dava jeito!


    Corria o ano 2000, se a memória não me falha, quando vi uma senhora a entrar num autocarro, ali para os lados de Union Square, em Nova Iorque. Tinha o aspecto de quem fazia da rua o telhado de casa. Numa mão carregava uma garrafa embrulhada num saco de papel, e na outra um gorduroso Big Mac. Lembro-me de ter pensado que aquela coisa, cuja utilidade nunca percebera nos filmes, o saco de papel à volta da garrafa, existia mesmo.

    Falando enquanto alguns pedaços de pão lhe iam caindo da boca, a senhora vociferava sobre as condições de vida e o custo da alimentação. Gritava, para que todos ouvissem, que era mais barato comer no McDonalds do que ir ao supermercado e cozinhar. Isto, claro, partindo do princípio que conseguiria encontrar uma cozinha onde pudesse confeccionar qualquer coisa.

    Time Square, New York during daytime

    O que me pareceu caricato na altura, na inocência dos 20 anos, era a disparidade entre os rios de dinheiro distribuídos ali ao lado em Wall Street e a quantidade de pessoas nos quarteirões adjacentes que, tal como aquela senhora, resumiam as suas posses ao que o McDonalds conseguisse embalar. Comia-se por quatro dólares. Era, de facto, mais barato do que ir ao supermercado comprar qualquer coisa com menos óleo e plástico.

    Duas décadas depois, estamos lá outra vez. Não apenas na meca do liberalismo, mas também na Europa que, outrora, já foi mais justa e solidária na distribuição de riqueza.

    Lembrei-me desta senhora quando saí do supermercado, ontem, com 300 gramas de mirtilos e 500 gramas de uvas, a troco de 10 euros. Por norma o meu filho come os mirtilos como se fossem água e, desta vez, quando o vi abrir a mão naquela caixa de fósforos, como se estivesse a tirar pipocas, disse-lhe: “vai como calma que estás a comer pepitas de ouro”.

    Pelo preço das uvas e dos mirtilos, poderíamos ter almoçado os dois um Big Mac, e assim tudo o que consegui foi um complemento para adicionar ao iogurte e tentar disfarçar o aborrecimento que é a oferta de derivados num supermercado sueco.

    Quero eu comer Big Macs? Nem por isso. Preferia bifes da Jonet ou framboesas daquelas que nos chegam de Odemira, de preferência sem pele de nepaleses explorados. Mas constato que o Mundo está a entrar numa espiral de pobreza, para a qual, até ao momento, só ouvi a “solução” de que em 2025, por artes mágicas da Economia (são todas), a inflação voltaria aos 2% – e, quem sabe, por essa altura, até poderemos comer um melão ou uma manga em terras frias.

    Depois de dois anos sem nos podermos mexer, sobram agora mais dois suportados por papas, bolachas, arroz e pêra-rocha. Quem saiu da covid-19 sem camada adiposa extra ainda vai a tempo de se candidatar durante o período em que a Lagarde mandar no Mundo.

    Todos os dias me faço a mesma pergunta: o que acontecerá quando um número razoável de pessoas não tiver habitação, comida e ajuda social? Começam a roubar? Começam os protestos em massa? Começa a revolução?

    No meio destes pensamentos corriqueiros de um anónimo pai de família, leio as declarações do CEO do Santander que, resumidamente, não notava grandes mudanças nos créditos da classe média e que os padrões de consumo se mantinham, como, por exemplo, jantar fora à sexta-feira. Deduzo que por aqui se depreenda que, como ainda há consumo, a inflação não está a baixar tão depressa como se desejaria.

    person standing beside stroller

    Bom, bom, era que nos fechássemos todos em casa, e de lá saíssemos apenas para produzir e gerar lucros para outrem. Nada de viver – isso deixemos antes só para os ricos. Pedro Castro e Almeida (estes gajos precisam sempre de três nomes) ainda disse que as poupanças durante a pandemia da covid-19 estavam a ajudar a que os padrões de consumo não se alterassem.

    Intriga-me esta frase, e já a ouvi a vários economistas. Como é que se poupa com 900 euros líquidos por mês? É que é esse o salário máximo de três quartos dos portugueses. Expliquem-me como é que se poupa a esmola a que chamam salário? Temos quatro milhões de Houdini?

    Tenho uma certa curiosidade – mórbida confesso – para ouvir uma conversa entre banqueiros. Um dos requisitos de tal estirpe parece ser a total falta de contacto com a realidade em simultâneo com a sensibilidade de um elefante numa loja de porcelanas. É difícil, mesmo com alguma imaginação, pensar numa frase mais estúpida de ser dita por um milionário num período como aquele em que se vive em Portugal.

    É importante que percebamos o que se vive em Portugal. Mais de 40% das pessoas estão no limiar da pobreza antes das transferências sociais. Ou seja, num regime político como aquele que o Chega ou a Iniciativa Liberal defendem, praticamente metade da população estaria no limiar da pobreza.

    Neste cenário, com gente a sofrer diariamente e com salários que não chegam ao fim do mês, eu espero, a bem da sanidade mental, que se por acaso vos der gosto ir jantar fora, que o façam. À sexta, ao sábado, à quarta. Quando vos apetecer.

    Esta coisa de se achar que a classe trabalhadora deve viver para produzir riqueza para os outros e, sempre que faz algo fora desse percurso (casa-trabalho), está a viver acima das suas possibilidades ou a pisar terrenos que não são seus, nem chega a ser um pensamento burguês, de tão rudimentar que é. Aliás, é mesmo pensamento de um filho da puta, que acha que quem trabalha só está no planeta para servir os interesses do capital e de banqueiros como ele.

    Aqui há uns anos, enquanto Pedro Proença passeava no Colombo, ali em Lisboa, um adepto do Benfica cruzou-se com ele. Para quem não sabe quem foi Pedro Proença, era uma espécie de Artur Soares Dias na primeira década do século XXI. Mesmo método, mesmo patrão, mesma recompensa… O adepto que o reconheceu, depois de lhe perguntar o caminho para a FNAC, ofereceu-lhe um voucher de desconto para usar no dentista – e, assim, conseguiu refazer-lhe o corta-palha.

    person walking inside building near glass

    Pergunto-me se o Salgado, o Ulrich – o do “ai-aguenta-aguenta” –, o Gonçalves, o Loureiro e este Castro e Almeida não se cansam de jogar golfe na Comporta e não sentem vontade, aqui e ali, de ir dar uma volta ao Colombo. Ou ao Corte Inglés, que é mais requintado.

    São momentos mágicos, e surpresas ao virar de uma esquina, que podem estar a perder. Sem necessidade – até porque são gratuitos e dados de boa vontade.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia

    O dia em que a Mariana sonhou com a Bielorrússia


    Gosto de Mariana Mortágua. É para mim a melhor e mais bem preparada dirigente do Bloco de Esquerda. Raramente diz coisas com que discordo largamente, mas, quando assim sucede, é com estrondo e a várias milhas náuticas ao lado.

    Com a falta de casas e o problema das rendas elevadas, Mortágua veio então achar que uma boa solução seria obrigar os senhorios a arrendarem e, não satisfeita, propôs a colocação de um tecto máximo no valor mensal. Segundo ela, o direito à habitação tem de ser mais importante do que o direito à propriedade.

    Mariana Mortágua

    Vejo vários problemas nesta proposta, embora, de facto, concorde que o direito à habitação deva ser prioritário relativamente à propriedade. O primeiro obstáculo que me ocorre é este: um senhorio vê a prestação do banco subir por causa das taxas de juro e, com algum jeito, fica com uma renda alta, faraónica e quase incomportável. Se o tecto for inferior a esse valor tem, ainda assim, de alugar a casa e pagar para alguém lá viver?

    Depois, como é que se permite o direito à propriedade privada, mas se diz às pessoas o que fazer com ela? Não faz muito sentido. Eu sei que a Mariana Mortágua não tem responsabilidades de governação, mas isto parece uma forma de colocar o contribuinte a resolver os problemas do Estado. E a forma de os obrigar é com um agravamento fiscal qualquer?

    Depois de impostos de selo, IMT, IMI e todas as taxas e taxinhas que cobram a quem compra uma casa, ainda se sacava mais qualquer coisa? É, de facto, de bradar aos céus imaginar que a classe média-baixa, a tal que compra uma casa, ainda tem alguma coisa no bolso para ser sugado.

    Se esta sugestão passasse a lei, emigrantes como eu, que vivem entre dois países, teriam de passar a acampar ou comprar anuidades em hotéis.

    O Governo que andou a distribuir vistos gold e a contribuir para os preços absurdos da habitação ou até a autorizar alojamentos locais em cada esquina, contribuindo para a voracidade do lucro fácil e mais famílias na rua, podia e devia ter antecipado esta situação. Não acordámos em 2023 com rendas elevadas e uma bolha imobiliária formada pela especulação. Há pelo menos uma década que andamos a ver isto.

    Aquilo que poderia então a camarada Mariana sugerir em vez de querer decidir sobre a propriedade alheia? Podia, por exemplo, elaborar uma lei que impedisse que uma só pessoa tivesse várias casas e vivesse de rendas. Não é nada original, já existe há décadas na Suécia e foi uma das formas de combater a falta de habitação. Por estes lados, uma pessoa não pode manter mais do que uma casa numa cooperativa de habitação. Em caso de mudança de morada tem até dois anos para se libertar da casa anterior. Se fosse o PCP a sugerir algo do género seria uma medida estalinista; sendo uma prática de “louros”, deduzo que já não choque ninguém. A mim pelo menos não incomoda e, de facto, liberta mais casas para o mercado. E com mais casas disponíveis, lá está, os preços baixam. Ou não sobem tanto, vá.

    Esta parece-me ser uma forma perfeitamente legítima de limitar o direito à propriedade com a qual concordo. Precisamos de uma casa para viver; não precisamos de várias para lucrar.  

    Outra ideia para a Mariana seria, de facto, copiar a solução das cooperativas de habitação. Uma vez mais recorrendo ao exemplo escandinavo (não gosto de o fazer mas é tão óbvio que tenho mesmo de o usar), conto uma história do século passado: quando os suecos perceberam que não havia casa para todos (o que neste fim de mundo gelado é um problema), criaram cooperativas de habitação. Dali resultaram casas simples, de linhas direitas, em quantidade suficiente para a população. Foi uma opção política. Casas em vez de estradas.

    Como tudo na vida, o dinheiro não estica. Volto ao mesmo. Em Portugal multiplicámos PPPs, Salgados e Ferreiras do Amaral. Na Suécia construíram-se casas, escolas e hospitais. Opções. Sempre opções. A intenção foi boa, as pessoas passaram a ter um tecto decente (a especulação depois rebentou com os preços mas é uma história para outro dia).

    Ora… Portugal podia fazer o mesmo. Menos web summits, menos jornadas do Papa, menos resgates ao BES e menos apoios ao Mário Ferreira. Mais casas simples, de linhas rectas, com janelas grandes e chão revestido a madeira para evitar o frio.

    Opções políticas; daquelas que já deviam ter sido tomadas quando o Cavaco começou a sonhar com auto-estradas; daquelas que a Mariana, hoje, com 40 anos de atraso, devia pensar e levar à Assembleia da República, em vez de vir apertar quem já está cheio de nódoas negras.

    Nota final: Entretanto, por “necessidade de orientação”, quis testar a ferramenta da moda, o ChatGPT, perguntando-lhe directamente: “A deputada Mariana Mortágua tem razão quando defende que os senhorios deveriam ser obrigados a arrendar as suas casas?

    A resposta veio pronta:

    Como modelo linguístico IA da OpenAI, não tenho opiniões pessoais. Cabe aos legisladores e à sociedade decidir sobre questões legais e éticas, como essa. No entanto, pode-se argumentar que, em um mercado de aluguel [o ChatGPT aparentemente escreve em português do Brasil], a obrigação de arrendar casas por parte dos senhorios pode resultar em uma distribuição mais equitativa do acesso à habitação e ajudar a reduzir a crise habitacional em algumas regiões. No entanto, também pode ser argumentado que tal medida restringe a liberdade do proprietário e pode desincentivar a construção de novas casas. É importante levar em conta as perspectivas econômicas, sociais e legais ao debater essa questão“.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia

    Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia


    Na Suécia, faço o que posso para evitar hospitais enquanto o meu filho se esforça, todos os anos, para irmos acompanhando as obras do hospital pediátrico. A cidade de Gotemburgo tem apenas três hospitais, sendo que um deles, o mais virado para a pequenada, está em obras ao estilo da Sagrada Família. Já me esqueci quando começaram e não faço ideia se lhes verei o fim.

    Sempre que lá entro vou a reclamar da vida. Ora traz um pé amassado, um braço inchado ou qualquer outra marca de guerra resultante de futeboladas disputadas com temperaturas negativas. Certo como o destino, vou ter de passar pelo raio-x, e isso num hospital que parece um estaleiro significa que vou andar a fazer os 800 metros obstáculos.

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    Começo num edifício para dar entrada da ocorrência. Uma espécie de recepção e primeira triagem. Já conheço a cantiga de cor e segue-se, por norma, a caminhada para o bloco “lá de baixo”, onde está a radiologia. Por fim, atravesso outras duas ruas para que o puto seja visto por um médico, num terceiro edifício, aí a uns 600 metros de distância.

    Estivéssemos nós em Nassau e nada disto seria problemático, mas na Escandinávia, no pico do Inverno, andar ao pé-coxinho a fazer voltas olímpicas entre rajadas de vento, neve e temperaturas negativas, é todo um filme de terror.

    Rezo-lhe pela pele, em silêncio, quando me lembro que sou eu que o incentivo a não ficar em casa a olhar para um ecrã.

    Raramente vejo muitas pessoas nas salas de espera; começo a constatar isso. Macas espalhadas por corredores nunca vi mesmo, nestes 17 anos que por cá ando. E vou decorando um cheiro característico, nas salas, nos corredores, nos consultórios, que não é mau. Tudo está limpo. Há muito espaço disponível. Não vejo funcionários a receberem gritos nem situações de desespero. Para hospital, disfarça bem. Ou pelo menos daquilo que me lembro das urgências da minha juventude passada no Santa Maria, em Lisboa.

    Fico, ainda assim, aborrecido com o tempo que ali passo. Uma, duas e às vezes três horas. Depois lembro-me que em Portugal demoraria cinco horas até fazer um raio-x e outras cinco para ver um médico – e respiro fundo. Também não sou grande fã de médicos escandinavos.

    Estava habituado a entrar num consultório e acatar ordens. Aqui perguntam-me o que acho. Ora, por muito amigo que seja de opinar, não tenho grande talento para identificar maleitas no corpo humano pelo que, quando vejo um amigo de bata branca, quero que ele me explique tudo, não me pergunte nada e, de preferência, que o faça sem ir ao Google.

    Noto que arriscam diagnósticos sem fazerem muito exames para pouparem no orçamento e aí, também, sinto-me mais confiante com a escola portuguesa que manda vir 200 exames e depois vai excluindo hipóteses. Mas compreendo que do ponto de vista da sustentabilidade crie mais complicações.

    A falta de confusão nos hospitais suecos e o acesso à saúde por parte da população, com menos médicos por habitantes do que em Portugal, é conseguido à custa de um sistema de triagem mais ou menos oleado. Primeiro telefonamos e recebemos indicações do que fazer em casa. Se for mais espinhoso, vamos para o centro de saúde. Se for mesmo agreste ou fora de horas, vamos para o hospital.

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    Lembro-me, por exemplo, de quando o meu filho ainda era bebé, ligar desesperado para a linha de apoio para perguntar o que fazer ao fim de dois dias de febre alta. Do outro lado da linha, uma enfermeira toda calma disse: “Espere mais 24 horas. Se a febre não passar ao fim de três dias, já pode ir ao hospital”.

    Em Portugal teria ido ao fim de três horas, aqui fui ao fim de três dias. Não faço ideia qual estará correcto, mas percebo que o facto de evitarem que pessoas constipadas vão para as urgências, deixa espaço para o hospital estar disponível para quem de facto precisa de lá ir. Deve ser, por isso, que nunca vi gente espalhada pelos corredores ou a morrer enquanto esperava numa maca, como vi no Garcia da Orta.

    Imagino que seja uma questão racional e de alguma lógica, ainda que emocionalmente nem sempre se apresente como óbvia. No fundo, trata-se de gerir os recursos existentes da melhor forma possível. Não é perfeito o SNS sueco, traz de quando em vez umas irritações, mas claramente funciona. Uma visita ao hospital não é um martírio de 10 horas, a alternativa nunca é um privado que nos leva couro e cabelo. E o custo para uma criança é zero. Mesmo zero. Nem uma taxinha que se veja.

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    Sempre que volto para casa, venho a pensar nas opções que cada país faz. No fim das contas é sempre uma opção política, uma visão de futuro, uma estratégia de desenvolvimento. Estas coisas não acontecem aos trambolhões. São opções. A sustentabilidade do SNS sueco faz-me perceber que não destruir o nosso teria sido apenas uma questão de opção política durante décadas. E porquê? Porque a Suécia, face a Portugal, consegue garantir cuidados de saúde a uma população mais ou menos igual à nossa, com menos hospitais, menos médicos e equipamento de primeira linha.

    Serão mais espertos do que nós? Não. Têm apenas outras prioridades e fizeram escolhas diferentes.

    Como é que o fazem? Bom, para começar, investindo quase o dobro do que Portugal investe em saúde pública por habitante. Pura opção política, à qual se junta um nível de corrupção bem menor, que nestas coisas da distribuição do dinheiro dos impostos é sempre uma mais-valia.

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    Outra forma de perceber como chegamos aqui é ver onde Portugal escolheu gastar mais do que a Suécia. Por exemplo, durante a década de 90 e a primeira deste século, Portugal gastou entre 1% e 1,5% do PIB em estradas. Já a Suécia, no mesmo período, gastou entre 0,5% e 0,7% do PIB. Confirmo que, em 2023, as estradas portuguesas dão 15 a 0 às suecas.

    Temos um pavimento rodoviário que parece a pele da Salma Hayek depois do banho de leite de orca. Isso ninguém nos tira e, com propriedade, se dirá que, a nascer numa ambulância, seja então em Portugal onde o alcatrão é mais direito e o recém-nascido não corre o risco de cair da marquesa num solavanco inesperado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Raspe-se uma parede no Vaticano

    Raspe-se uma parede no Vaticano


    Em Maio de 2022, por responsabilidades parentais, dei comigo meio perdido numa pequena igreja plantada no meio do Atlântico, a ouvir um grupo de escuteiros que cantava várias melodias com a palavra “senhor”. Não sou grande ás da religião, mas julgo que se referiam a Ele. Perguntei aos crentes que cruz enorme era aquela de que todos falavam, ali exposta, e simpaticamente explicaram ao ateu que era a cruz que andava pelo Mundo todo, durante anos, até chegar ao local de uma das jornadas da juventude, que em 2023 aconteriam em Lisboa.

    A minha relação com a religião, qualquer uma, é de profunda e interessada distância. O que penso sobre o tema daria outro texto, daqueles bons para levar pancada de criar bicho, e como tal fica para outro dia. Percebi nesse concerto, olhando para a dita cruz, que algures em 2023, Lisboa seria invadida por miúdos com mochilas, fiéis ferverosos e o simpático Francisco com a sua entourage

    A primeira coisa que me lembro de ter pensado foi como alojar este pessoal todo. Lisboa já rebenta pelas costuras no Verão pelo que, mais 100.000 visitantes, concentrados em três dias, era coisa para fazer mossa. Não voltei a pensar no tema até porque, como se perceberá, não está no meu radar de interesses.

    Até que comecou esta discussão sobre o palco dos 5 milhões.

    Devo dizer que não percebo bem a gritaria da última semana. Quer dizer, percebo no conceito de coisas feitas em cima do joelho à portuguesa, mas quem debate o tema parece estar a viver uma supresa quando já sabemos, desde 2019, que nos tocaria organizar a coisa. Enquanto ouvia os 380 debates sobre o tema, pensava por que nos tínhamos metido nisto. Não temos dinheiro para mandar cantar um cego e vamos organizar paradas para o Papa, pela alma de quem? Alguém imaginou que a coisa se faria por uma sandes de courato?

    Para um ateu é mesmo dinheiro atirado à rua e por isso procurei encontrar conforto na narrativa da recuperação da área. De facto, aquele descampado no Trancão é algo inóspito e eu sou daqueles que gosta da nova cara de Lisboa. Não quero saber se foi o Costa, o Moedas, o Medina ou o Soares. Se Lisboa fica mais bonita, não serei eu a falar mal. Agora… quando vi o desenho do palco, já fiquei com mais dúvidas quanto à recuperacão do espaco e, principalmente, da reutilizacão da estrutura para outros eventos. O que é que se faz num palco cheio de rampas e com aquela cúpula com uma cruz? Um skate park para seminaristas?

    person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

    Fiquei realmente preocupado quando ouvi Manuela Ferreira Leite dizer que aquela estrutura traria retorno para a cidade. É que eu sou de uma geracão que ouve há 25 anos como o cimento traz retorno ao país.

    Foi a Expo98, que, para lá da óbvia requalificacão de uma antiga lixeira, trouxe dinheiro a construtores e patos bravos do imobiliário.

    Depois foi o Euro 2004 que dotaria o país de estradas e infra-estruturas vitais (tínhamos pouquíssimas estradas nessa altura, e ainda nos deslocávamos de charrete pelos pastos), e o resultado foram quatro monos espalhados por Faro, Aveiro, Coimbra e Leiria, sem jogos ou público e com custos de manutenção incomportáveis.

    Perdi a conta às auto-estradas, SCUTs e IPs que seriam essenciais para o desenvolvimento do interior, litoral, centro, sul, norte, este e oeste. Algumas estão às moscas, com o Governo a compensar as concessionárias, naquelas PPPs que nos levam há décadas à ruína.

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    Veio entretanto o Paddy e a sua Websummit, com um patrocínio de milhões do erário público português. Aqui a promessa era da criacão de empregos e atração de investimento. O Paddy ficou rico, os putos nerds trabalham como voluntários num evento onde uma entrada custa uma pequena fortuna e empregos, bom, talvez uns recibos verdes nos hotéis das redondezas.

    Portanto, quando me dizem que vão dar uma lavadela na cara do Trancão para receber o Papa, ainda consigo engolir. Quando voltam com a conversa do retorno, tenho a certeza que é mais um daqueles fados malandros.

    Qual luz divina, também à boa maneira portuguesa, a presa de última hora resulta em mais não sei quantas trapalhadas. Três empresas apresentaram projectos para a construcão do Papódromo e venceu a mais cara, com menos material reutilizável (uma das solucões era com contentores como o estádio do Qatar), por acaso da Mota-Engil, presença habitual na órbita do Estado.

    Outra coincidência engraçada é Paulo Portas, esse engenheiro civil de águas profundas, estar agora na administração da Mota-Engil. Tudo legal, tudo como manda o livro do Antigo Testamento, tudo abençoado. Mas é aquela volta na maionese, sempre com os mesmos actores, empresas e baldes de cimento.

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    Há 30 anos que vejo as mesmas pessoas, quais satélites na órbita dos contribuintes, aos saltos entre cargos, mas sempre, sempre, com acesso a fatias enormes do Orçamento do Estado.

    Já se vende uma semana em Fátima a 8.000 euros, num hotel local, para as datas das jornadas. Quartos privados a 2.000 euros por dia e outras loucuras do género. Os católicos já levantam as forquilhas dizendo que quando se fez a nova mesquita de Lisboa, ninguém se queixou (o que não é verdade, por acaso).

    A minha questão é esta: tirando a hotelaria e os patos bravos do cimento, o que é que se ganha com este evento pago por nós? Este e, já agora, os outros feitos num país onde 40% da população está na pobreza. Não quero ser demagógico, mas com tanta gente a precisar de habitação social, não se arranjava melhor destino para os 40 milhões que o evento nos vai custar?

    É legal, bem sei. É uma opção política num país laico, certamente. Não podia o Banco do Vaticano fazer uma vaquinha e raspar uma ou outra parede para entregar o ouro à Mota-Engil? Isso é que seria uma multiplicação dos pães bonita de se ver. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A culpa, a responsabilidade e o acampar na praia de Matosinhos

    A culpa, a responsabilidade e o acampar na praia de Matosinhos


    A primeira coisa que me passou pela cabeça na notícia de uma mãe e o seu filho que, desde Setembro, vivem numa tenda na praia de Matosinhos foi perguntar como ali foram parar. Já quando leio os comentários sobre esta situação, a palavra que se atravessa à minha frente é “culpa”.

    Mais do que perceber e até contribuir para a solução, a turba gosta de apontar culpados.

    Estamos numa fase da evolução em que passámos a sobreviver em Portugal, em vez de viver. Todos os dias são de luta, todos os dias são de um salve-se quem puder sem simpatia alguma pelo próximo, seja lá qual for o seu nível de sofrimento.

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    Há quem de imediato puxe pela carta do chauvinismo dizendo que, fossem mãe e filho originários da Ucrânia, já teriam uma casa entregue pelo Estado. Como se refugiado de guerra fosse uma espécie de estatuto dourado que todos um dia sonhamos ter.

    É um argumento de índole racista, ligeiramente mais elaborado do que o habitual: “se fossem daquela etnia, já tinham casa”. Não vou roubar palco a quem por norma entra neste tipo de raciocínio e que todos percebemos quem são e de onde chegam. São pessoas que odeiam o Estado socialista e solidário, mas que exigem que este ajude toda a gente.

    Boa parte dos “apontadores de culpados” – é isso essencialmente que se faz nos comentários das notícias –, julgam o filho de 40 anos, beneficiário do RSI [rendimento social de inserção] e questionam o facto de não trabalhar. “Tem bom corpo, que vá alombar”, é um dos mais lidos.

    Fico especialmente estupefacto pela velocidade com que se critica um perfeito desconhecido sem saber que vida teve e como chegou ali. Lendo, fico com a sensação que era o plano à nascença – este, de aos 40 anos viver com a mãe numa tenda na praia de Matosinhos.

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    Temos pouca, pouquíssima simpatia pelo próximo. Rastejamos tanto por migalhas que já nem suportamos a dor alheia.

    Sobra aquela parte mais rebuscada que coloca o ónus da sua situação no facto de as rendas estarem muito caras e de os senhorios serem uma cambada de gananciosos. É um facto que as rendas em Portugal são exorbitantes, ou melhor, são fora de contexto para aquilo que é a realidade salarial do país.

    E, claro, isso cria um problema a quem não tem casa própria, embora num país com cerca de seis milhões de apartamentos (dados do Pordata de 2021) dificilmente se compreende que a falta de alojamento seja de toda a gente e nunca do próprio. Por cada 1.000 habitantes existem 577 fogos, segundo um estudo da OCDE, o que faz a média portuguesa disparar em relação à dos países que integram esta organização.

    Por exemplo, Reino Unido e Estados Unidos apresentam uma média de 433 e 421 casas por cada mil habitantes, respectivamente. Portanto, o problema está longe de ser a falta de oferta. Quando muito, a discussão colocar-se-á no facto de, numa idade sénior, uma pessoa não ter habitação própria e precisar de alugar.

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    Este é um tema para o qual sou sensível – por motivos que não importam para este texto. Por isso, de uma forma geral, no caso desta mãe e filho – como faria se fosse a minha mãe –, eu tendo a compreender primeiro o que é que podemos fazer por nós, e só depois pensar, em última análise, o que deve o Estado Social fazer.

    Não gosto, nunca gostei, que se apontasse para o Estado como primeira opção na resolução de problemas – como se o direito à habitação, inscrito na Constituição, incluísse uma cláusula de desresponsabilização individual, familiar e colectiva na gestão das nossas vidas.

    Sou muito crítico comigo próprio nos passos dados e nos erros acumulados. Por isso, tenho imensa dificuldade em culpar o que me rodeia por opções de vida ou riscos tomados por mim. Guardo as consequências e culpo-me, sempre, pelos resultados. Considero que está em mim, quase sempre, a solução para tudo.

    Por isso, é essa forma de ver a nossa responsabilidade, naquilo que é a nossa vida, que me leva a perguntar como é que aquela mãe e aquele filho chegaram à tenda.

    Segundo percebi, a senhora trabalhou vários anos em empresas de Matosinhos, uma delas a antiga Nestlé. Como é que uma vida de trabalho e descontos dá uma pensão mínima de 200 e poucos euros?

    Essa é a pensão que recebe alguém que trabalhava nos campos e nunca fez descontos. Todos temos avós, todos conhecemos histórias destas. Como é que um rapaz de 40 anos recebe RSI? Por que razão não tem subsídio de desemprego? Terá alguma incapacidade que não o permita trabalhar?

    Não ouvi qualquer referência a uma procura activa de trabalho. E por fim, se lhe foi oferecida estadia numa camarata, num abrigo da autarquia, porque recusaram eles essa hipótese, dizendo que não se sentem confortáveis partilhando espaço? Não seria melhor que uma tenda?

    A minha primeira reacção, num caso destes, seria enviar dinheiro para aquela família, para que pudessem estar um mês numa pensão qualquer. Não seria a primeira vez que o faria. Mas isso não me impede de colocar questões ou de imaginar que história de vida os levou ali. E repito: podem ali ter chegado por todos os infortúnios de uma vida sem sorte, mas… quem é que recusa um tecto?

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    O Estado Social em Portugal falha, falha muito. Há cada vez mais pobres e a habitação social não chega para todos. Há especulação, há ganância, há corrupção, há desvio de dinheiro para as elites, para os bancos e para as PPPs das estradas. Tudo isso é verdade. Mas nós fizemos a nossa parte? Nós, ao longo da vida, fizemos a nossa parte para preparar o dia de amanhã? Esta mãe e este filho, eu, tu? Fizemos o que podíamos para não estarmos nesta situação?

    Provavelmente não.

    Todos temos a nossa história e a de quem nos rodeia. Todos vimos, ouvimos e fizemos coisas que nos cortaram garantias de um futuro melhor. Gostava de ver a realidade com outros olhos, mas, infelizmente, só consigo avaliar à luz do que vou vivendo. E o que vejo, perto de mim, são várias histórias de erros repetidos ao longo dos anos, que levam a uma velhice sem segurança, sem sequer um tecto garantido.

    A história desta mãe e deste filho lembram-me algo mais próximo, e honestamente não consegui ver a reportagem até ao fim. Seja lá que passado os levou ali, espero que a senhora vá rapidamente para uma casa com um mínimo de conforto.

    Mas não podemos, nem devemos, numa altura em que os problemas aumentam, esperar por ajuda divina, culpar o mundo e enfiar a cabeça na areia. Dificilmente sairemos da pobreza ou resolveremos seja o que for dessa maneira. Os primeiros culpados somos nós. Há sempre qualquer coisa que podíamos ter feito diferente.

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    Penso nisto quase todos os dias quando recuo no tempo, até ao dia em que comprei a minha casa, aqui na Suécia. Cinco anos passados, com uma taxa de juro absolutamente incomportável, o risco de a perder é real. Eu que nunca confiei em mercados, e que assinei um contrato com taxa fixa por cinco anos, enfrento agora a hipótese de ter de a entregar a outra pessoa qualquer, pelo simples facto de a altura de renegociar o juro acontecer a meio de uma guerra que suga os recursos financeiros da Europa.

    É então a guerra da Ucrânia responsável pela minha perda? Não. O responsável sou eu por ter comprado uma casa que dificilmente conseguiria pagar se o juro triplicasse. Eu sou o culpado de não ter assumido essa hipótese.

    Da mesma forma que, se um destes dias ficar sem emprego, depois dos 45 anos de idade, e com integração no mercado mais difícil, a culpa também será minha. E porquê? Porque recusei todas as oportunidades de contratos permanentes, durante quase duas décadas, a troco de contratos temporários mais bem pagos.

    Foi a minha opção, o meu risco. No dia em que correr mal, a culpa será minha. Não do meu empregador, do meu chefe ou do mercado.

    É assim que eu vejo as coisas. Nós, indivíduos, somos os primeiros responsáveis pelos buracos em que nos metemos e a primeira força de salvamento para sair deles. Não nascemos numa tenda na praia, chegamos lá de alguma maneira. Não chegamos a meio da vida com 20 anos de trabalho, a viver em casa alugada, se não optarmos por isso, ou se as escolhas de vida não nos levarem aí.

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    Não temos de viver todos a vida a pensar no amanhã, e muito menos descartar o Estado Social como bombeiro que deve ser. Mas achar que tudo nos é devido, por vezes depois de uma vida inteira sem pagar impostos, colocando sempre a culpa de tudo o que nos acontece no ambiente que nos rodeia, também não será grande ajuda à própria causa.

    Portugal está a empobrecer a um ritmo alucinante. A Europa está a empobrecer também. Os apoios sociais vão disparar, os pedidos de ajuda por casa e comida são reais, dramáticos e em maior número do que os Estados conseguem responder.

    Eu sou um defensor da solidariedade social através de um sistema de impostos progressivo, e acho que boa parte do dinheiro ganho pelo Estado, neste jackpot que a inflação trouxe, deveria ser aplicado no auxílio às famílias. Isto não implica que deixemos de lutar e tentar fazer a nossa parte.

    Estamos mais pobres. Todos. Ou quase todos. É bom que percebamos isso e que tomemos consciência que temos de fazer a nossa parte para não engrossarmos as estatísticas.

    A solução começa sempre em nós.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quando tentei adormecer com a Inês Pedrosa

    Quando tentei adormecer com a Inês Pedrosa


    Tentar acompanhar a realidade portuguesa quando se vive a 3500 quilómetros e se divide o tempo por quatro empregos é um desafio, admito. Não só o tempo me foge pelos dedos, como a actualidade nacional anda a uma velocidade que, por vezes, se torna impossível de seguir.

    Dou por mim a usar os tempos “mortos”, seja lá isso o que for, para correr as fontes todas e perceber como param as modas. A parte complicada deste processo é mesmo separar as notícias do refugo: a informação, em vez da propaganda; as notícias “plantadas”, em vez da realidade.

    Quando finalmente chego ao que interessa, é porque já tive que mastigar horas de publicidade e de discursos ou comentários absolutamente irrelevantes.

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    Não sou, nunca fui, fã de teorias da conspiração, mas questiono, com alguma firmeza, a presença de alguns comentadores na praça pública com narrativas que se repetem, independentemente das situações.

    Pergunto-me de que servirá ao grande público ouvir, uma e outra vez, as mesmas pessoas que nos tentam apresentar uma realidade alternativa como se todos, ou todEs (isto está mesmo a acontecer ou é só piada?), fôssemos uma cambada de idiotas.

    Comecei a ronda pelo Froes. Ouvi-o recomendar a quarta ou quinta dose da vacina da covid-19 e garantir que esta tinha uma robustez espectacular. Ele usou a palavra “espectacular” como se fosse o desempenho de um aspirador num chão repleto de migalhas.

    Faz-me alguma impressão que pessoas como o Froes continuem a ter palco. Honestamente. Não tenho nada contra vacinas em geral, nem sequer contra as da covid-19 em particular, mas, sabendo o que todos sabemos hoje, vendo as estatísticas ao fim de três anos, não entendo mesmo como é que um assalariado das farmacêuticas vai fazer publicidade do seu produto para a SIC Notícias, em horário nobre.

    Filipe Froes numa das suas muitas entrevistas em noticiários da SIC Notícias.

    Acho imoral que uma pessoa que é paga por uma farmacêutica vá convencer os portugueses, num tema de saúde pública, que a solução para todos os males é comprarem o que os seus empregadores tentam vender.

    Era bom que nos lembrássemos, pelo menos, que enquanto nos convenciam que estava em curso uma pandemia mundial e era preciso unir esforços, os Estados gastaram milhões com as farmacêuticas, sem que estas abrissem a patente das vacinas.

    Portanto, fortunas foram feitas à custa do erário público e nem por isso se erradicou um vírus, que há muito sabemos ser endémico, e tão pouco conseguiram os Estados, que pagaram tudo à custa de mais endividamento, passar a produzir a vacina.

    Portanto, tenham pelo menos a decência de não continuarem a impingir mais vacinas no Jornal da Noite, em nome do lucro. A Pfizer do Froes não está preocupada com mortes; está interessada no lucro. O Froes faz a parte dele, que é vender. Os directores da SIC deveriam fazer a sua parte, que seria fechar-lhe a porta.

    two white and purple bottles

    Mudei de canal e lá estava um comentador a falar da pressão que agora exerciam sobre a Alemanha para que, na conferência de Ramstein, concordasse em ceder os famosos tanques Leopard 2.

    Os Estados Unidos estão a fazer a figura do primo bêbedo nas férias de Verão na Praia da Rocha, nas confusões noturnas na Kadoc. Não sei se ainda existe, sou do século passado. “Vai que eu estou aqui atrás”, dizia ele quando os locais queriam armar confusão com os forasteiros. Ahhh… as noites de Verão.

    Os Estados Unidos tentam convencer um país responsável pela morte de milhões de europeus há cerca de sete décadas, russos incluídos, que devem enviar tanques para matar mais uns quantos a leste. Faz sentido, para os americanos, entenda-se. Para a administração Biden isto é aquela pastilha que todos encontrávamos no fim do Epá (outra referência à velhice, que deprimente). Um mimo que faz toda a diferença.

    Quanto mais gente envolverem neste banho de sangue, quanto mais tempo a guerra durar, mais eles lucram com a venda de gás, armas e enfraquecimento do concorrente russo. Não há absolutamente morte alguma que possa parar o interesse económico americano nesta chacina. Apenas a política interna, o risco de perder eleições e o limite de endividamento (pode ser que o Senado coloque um travão à loucura) podem alterar a política externa do Governo de Biden.

    Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos.

    Portanto, dito isto, se os europeus fizerem o papel de fantoches e os ucranianos continuarem confortáveis com as próprias mortes, tudo bem.

    Felizmente, os alemães são menos capachos do que os outros e ficaram por uma solução intermédia. Enviam poucos tanques, cerca de 10% da quantidade que os russos colocam no terreno, e dessa forma continuam no limbo. Não ficam com a factura de mais sangue, não queimam pontes com os russos nem podem ser acusados por ucranianos. Fazem os serviços mínimos e obrigam o resto da Europa a ir a jogo, se quiser.

    No fundo, não fazem nada, parecendo que fizeram algo. Foram inteligentes. A Ucrânia está cada vez mais dependente dos ventos internos americanos. Para bem de Zelensky, é bom que Joe Biden não se lembre de mais outro caixote de documentos classificados na garagem lá de casa. Apesar da realidade, do fracasso da conferência de Ramstein e da cada vez maior desvantagem ucraniana no terreno, o comentador de serviço tentava convencer toda a gente que isto seria um “game changer” (que muda o jogo). Não é. É apenas a garantia que os mesmos vão continuar a morrer, pelo menos, por mais uns meses.

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    Já só com um olho aberto resolvi ir dormir e, naqueles minutos finais antes de começar a sonhar com alces, ainda tentei ouvir o debate na RTP onde aparecem Raquel Varela, Inês Pedrosa, Joaquim Vieira e o Rodrigo Moita de Deus. Discutiam a greve dos professores  e, à excepção de Raquel Varela, a posição dos restantes era a de “a greve é um direito mas…”.

    Todos sabemos que numa frase dividida por um “mas” nada, mesmo nada, do que foi dito antes do “mas” verdadeiramente interessa. Inês Pedrosa foi particularmente cáustica com os professores dizendo que, depois de dois anos de um ensino instável, passagens facilitadas, confinamentos e escolas fechadas, os alunos agora enfrentavam novo ano em que estavam a ser prejudicados pela ausência de professores. De igual forma, entendia que fazer greve durante a negociação, não era moralmente correcto.

    Devo dizer que espero, um destes dias, ouvir Inês Pedrosa a criticar qualquer coisa que o Governo PS faça ou, em alternativa, a manter a coerência. Desde logo, porque a mesmíssima Inês passou os tais dois anos, semana a semana, a defender toda e qualquer medida governamental no combate à pandemia.

    Inês Pedrosa no programa “O Último Apaga a Luz”, da RTP.

    Quando António Costa, por dica dos Froes da vida, encerrava espaços de lazer (alguns ao ar livre) mas dizia que os comboios da linha de Sintra e as fábricas eram espaços seguros, a Inês abanou a cabeça em concordância. Quando as escolas fecharam sem mortes nas crianças, a Inês achou muito bem porque isso defendia os mais velhos. Quando os mais velhos tinham vacinas e, em teoria, estavam protegidos, as escolas fechadas continuavam a ser uma boa aposta.

    Quando quatro milhões de portugueses andavam na rua a cumprir tarefas que não podiam parar – as tais essenciais – a boa da Inês dizia-nos que o país parou, confinou e que isso tinha salvo a humanidade. Quando o Governo se endividou para pagar layoffs, a Inês ficou contente, quando as empresas despediram as pessoas e ficaram com o dinheiro, a Inês deve ter achado que, de facto, ia ficar tudo bem.

    Quando, por fim, saímos dessa merda toda, dois anos mais velhos, consideravelmente mais pobres, em risco de perder a habitação e com a função pública com salários absolutamente miseráveis e congelados, a amiga Inês acha que o grito de revolta está a prejudicar os alunos. Os mesmos que, durante dois anos, foram impedidos de ter uma escola normal por causa de pessoas como a Inês que olhavam para a Suécia e para as suas escolas cheias de crianças, como o resultado de um Estado de negacionistas. 

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    O que dizer sobre a coerência? Se o Miguel Relvas, depois de “concluir” um curso universitário passando apenas a quatro cadeiras, pode discutir a moralidade dos membros do Governo, no papel de senador no comentário político, por que razão não haveria a Inês Pedrosa, depois de defender o encerramento das escolas durante dois anos, achar que as lutas laborais é que prejudicam os alunos? Tudo normal.

    Abri os dois olhos e perdi o sono. Não entendo mesmo o que fazem estas caixas de ressonância no debate público. Não volto a dormir com a Inês. Dá-me cabo da bílis.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os ucranianos que morram, mas sem atrapalhar a análise do senhor major-general

    Os ucranianos que morram, mas sem atrapalhar a análise do senhor major-general


    Não sou grande parceiro das teorias da conspiração, mas fico sempre a fazer contas de cabeça de cada vez que o major-general Isidro de Morais Pereira abre a boca para falar sobre o “teatro de operações” na Ucrânia.

    Aqui há um par de dias, ainda podem ver o vídeo na CNN Portugal, em debate com outro major-general, Agostinho Costa, disse o nosso Isidro que “não tenho dúvidas que a resolução do problema passa pela derrota militar da Rússia no campo de batalha”.

    A afirmação surgiu ao fim de mais de 10 minutos de debate sobre a pressão que a Comissão Europeia (a Ursula) estaria a fazer sobre o Governo alemão para que entregassem os mais modernos carros de combate (tanques Leopard 2) à Ucrânia.

    Debate de anteontem na CNN Portugal na CNN entre os generais Isidro de Morais Pereira e Agostinho Costa.

    A primeira coisa que eu quero referir é que ando há 10 meses a ver se, de alguma forma, os Isidros entusiastas da guerra conseguem ter razão – por uma vez que seja. A certeza das análises dos amigos do “as long as it takes“, se de facto fossem precisas, far-me-iam um favor dos grandes.

    Desde logo porque não gosto de gente que invade território alheio. Da Rússia aos Balcãs, do Médio Oriente ao norte de África, um invasor é um invasor. Mantenho a minha opinião desde o início deste conflito. A outra razão, mais egoísta, admito, é que deixaria de ouvir que o “custo de vida aumentou por causa da guerra na Ucrânia”. Não me levem a mal os mais sensíveis, mas o Donbass interessa-me pouco. Na luta pela vida, estou mais interessado em garantir que a da minha família não é afectada por guerras de milionários e impérios.

    O problema é que, por mais que queira acreditar, o Isidro e amigos não acertam uma. Todas, mas todas as análises, esbarram, duas ou três semanas depois, com a realidade. Não sei se o estimado leitor se lembra, mas algures em Abril do ano passado, garantiram-nos que o exército russo já não tinha munições. Todos os dias recebíamos um relatório com o número de blindados que tinham sido abatidos. Eu julgo que ouvi alguém dizer que apenas sobrava 10% do efectivo russo no terreno.

    Depois veio a desmotivação. A desorganização. A moral em baixo. Os russos eram retratados, pelos nossos especialistas, como gente que andava ali perdida, sem liderança, a serem dizimados pelos bravos ucranianos.

    Seguiram-se as sanções, a economia de guerra, o boicote ao gás e ao petróleo. A certeza de que os russos ficariam isolados e sem capacidade de produzir qualquer armamento. Lembram-se da história do chip? Já ninguém vendia integrados à Rússia e, por isso, andavam apenas com equipamento velho retirado dos gulags. Vieram os reservistas que seriam mal treinados e dizimados pelos ucranianos. Depois eram os ataques em todo o território como resposta à explosão da ponte na Crimeia.

    Segundo o Isidro – ou um dos seus camaradas, já nem me lembro bem –, a Rússia só teria mísseis de longo alcance para mais dois ou três ataques. Depois era a emboscada em Kherson… os soldados russos andavam disfarçados de civis pela cidade, quando todos percebíamos que era uma retirada encenada.

    Fico sempre espantado com a precisão destas informações. Imagino um espião ucraniano nos armazéns do Daguestão a contar ogivas e a mandar um sms ao Rogeiro, que, por sua vez, publica no grupo de WhatsApp que tem com o Isidro e a Helena Ferro Gouveia.

    blue fabric loveseat

    Deve ser este o processo.

    Enquanto nos vendem esta narrativa – de que a Rússia está quase a colapsar –, os russos, com todos os defeitos que lhes são apontados, lá vão fazendo o caminho deles. Parecem aqueles cães que mordem um osso e, por mais pancadas que levem na cabeça, não o largam.

    Um amigo, no meio de uma destas discussões sobre a persistência russa, perguntava-me se eu sabia quantas guerras tinham eles perdido nos últimos 100 anos.

    Bem, assim de cabeça, lembro-me da retirada do Afeganistão – não conseguiram mudar nada do que pretendiam – e que também foram derrotados na primeira guerra da Chechénia. Depois voltaram lá mais duas vezes até arrasarem aquilo tudo, e hoje, como se percebe, os chechenos formam batalhões para combater os ucranianos.

    Portanto, o que a História nos diz é que os russos, quando entram num conflito, raramente voltam de mãos a abanar. Mesmo que morram mais do que os adversários, no fim, são eles que ditam as leis.

    rope on hole

    A realidade na Ucrânia parece não andar longe do que a História nos explica no último século. Apesar dos esforços do Isidro e demais guionistas, para nos convencerem de que a Rússia é um gigante com pés de barro, a verdade é que, com toda a Europa e os Estados Unidos a apoiarem o exército ucraniano – com dinheiro, armas e mercenários –, afinal ainda não conseguiram derrubar quem dizem estar preso por arames desde Abril de 2022.

    As munições parecem não acabar, e de cada vez que o Zelensky vai a correr fazer um discurso a pedir mais armamento, os russos arrasam outra cidade. Foi assim quando precisavam das armas de longo alcance, dos caças, do sistema de defesa Patriot e agora dos Leopard 2.

    Enquanto os nossos especialistas nos garantem que 100 carros de combate serão o ponto de viragem (já não sei quantas vezes ouvi isto), a Rússia está a recuperar 800.

    Quando dizem que eles estão sem mísseis, atacam 10 cidades ao mesmo tempo.

    Quando estimam que o dinheiro esteja no fim, usam drones iranianos, baratinhos e letais.

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    Quando nos juram que já não fazem negócios, aparecem os indianos a bater à porta com os jerricans.

    Quando afirmam que a Alemanha se livrou da dependência do gás, ouvimos sindicatos a ameaçar parar tudo porque não há combustível para produzir.

    Nada, absolutamente nada do que nos dizem casa com a realidade. Se fosse numa televisão ucraniana, num jornal da resistência, compreendia-se. Há que dar ânimo a quem combate. Mas no outro lado da Europa, por que razão andará gente com visibilidade para os portugueses, mas absolutamente irrelevante para a guerra, a vender-nos uma realidade alternativa? Acharão que a CNN Portugal passa nos abrigos de Kiev?

    É mais ou menos pacífico desejar que o invasor seja expulso. Do Donbass e de qualquer sítio invadido, gosto sempre desta nota para as pessoas que acham que a expansão de impérios começou ontem. Porém, não é por gritarmos muito que um desejo passa a realidade.

    blue and yellow striped country flag

    No terreno, pelo que se percebe, os russos estão a agarrar a Crimeia e o Leste da Ucrânia com mão-de-ferro. Este discurso irresponsável da Comissão Europeia de “apoiar o tempo que for necessário” – ou até as opiniões de especialistas, como Isidro de Morais Pereira, que nos garantem que a resolução do conflito passa pela derrota da Rússia no terreno – é de uma loucura total.

    Parecem vendedores de farturas a não querer que chegue o fim da feira. Enquanto forem os ucranianos a morrer, e nós por cá a dizer, no quentinho do estúdio, que é para continuar, tudo bem para o Isidro e demais moralistas de pacotilha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A pobreza que aí vem

    A pobreza que aí vem


    Dei por mim no supermercado a encher sacos de papel com a maior rapidez possível: fico sempre com a sensação de que atrapalho a vida de quem vem atrás. Enquanto fazia isso, olhava com algum desprezo para os produtos.

    Um emigrante num país nórdico quase quer fazer uma excursão a Portugal só pelo prazer de olhar para a variedade de propostas em cima do gelo de uma peixaria, de desfrutar a cor vermelha das carnes no talho ou de fruir o colorido da banca de frutas e legumes. Senhores!, eu até passo 15 minutos na fila dos iogurtes só para apreciar a variedade e sair de lá com o mesmo natural magro de sempre.

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    Na Suécia, entre fruta – que chega do outro lado do Mundo – e peixes – que voltam do mar em formato de filete congelado –, os olhos não comem nos supermercados.

    Arrumo aquela pobreza franciscana em três sacos com metade do volume ocupado. e volto à senhora que gritara o preço lá do fundo. Aproximo-me, e vejo a módica quantia de 140 euros no visor. Por uns congelados, umas frutas, alguns lacticínios. Nada de carne ou peixe. Nem um tinto daqueles bons, para esquecer as amarguras do Inverno.

    Fiquei com vontade de deixar ali tudo e vir embora. Mas estou na Suécia… e se uma pessoa levanta a voz tem de ir logo sete meses para terapia patrocinada pelos serviços sociais, incluindo cinco horas diárias a discutir os traumas de infância.

    De modo que há que empurrar a angústia para o fundo, bem lá para o fundo, sorrir e dizer um revigorador foda-se [N.D. este passa… por solidariedade], que ali ninguém compreende.

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    Já em casa, a olhar para aqueles saquitos de papel, comecei a puxar pelo racional. A minha fase emocional dura uma hora, a racional ocupa as restantes 23 do dia. A Suécia está com 9% de inflação, as taxas de juro andam a rondar os 5%. Os salários não aumentam muito – os que aumentam sequer –, e o custo de vida, que já era alto, caminha para se tornar incomportável.

    Olho em redor, e vejo toda a gente a apertar o cinto. Casas que se vendem, viagens que não se fazem, jantares que desaparecem, actividades que ficam por casa. Nunca tinha passado por isto nestes 17 anos, já com duas ou três crises no CV.

    Não se fala muito no tema, mas a vida mudou. Num país sem pedintes na rua ou com um risco de pobreza a rondar apenas os 8% (em Portugal era 43% em 2020), sem grandes espaços entre classes sociais e um salário médio superior a 4.000 euros, o custo de vida começa a sufocar. Esta é a palavra: sufocar.

    O Banco Central sueco [N.D., a Suécia não integra a Zona Euro] prevê que lá para os idos de 2025 a inflação volte aos 2%. Entretanto, há que subir os juros para inibir o consumo. As prestações aos bancos passam, assim, de uns suaves 1.000 euros para uns 2.500 ou 3.000 euros, assim, do nada. Para incentivar a redução do consumo. Famílias, umas atrás das outras, vendem as casas e procuram soluções mais baratas.

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    É aqui que entra o raciocínio e a lógica – até porque a minha família, dentro de uns meses, estará nessa lista. O que é que acontece, do ponto de vista económico, se todos forem a correr ao mercado vender as casas? Bom, pelo que vou observando, os preços baixam, a oferta aumenta em barda e algumas casas não se vendem ou vendem-se muito abaixo do preço esperado.

    Então, e para quem não consegue vender a casa ou pagá-la? Vai preso? Vai morrer debaixo de uma ponte gelada neste Inverno que dura oito meses? E mesmo para quem consegue vender… o que acontece depois? Vai ao banco, pedir novo empréstimo para uma casa menor que, com a taxa de juro actual, custa essencialmente o mesmo que a anterior?

    Não estou a perceber mesmo onde é que termina esta equação. Ou melhor, não vejo qualquer medida por parte dos governos para travar esta loucura. A Lagarde faz o que quer. Os bancos da Zona Euro fazem o que querem. Os governos limitam-se a olhar e a esperar pela descida milagrosa da inflação, enquanto vão mandando mais uns lingotes para o Donbass.

    O endividamento das famílias na Suécia ronda 92% do produto interno bruto (PIB), segundo dados Comissão Europeia de Setembro de 2022. Portanto, é relativamente fácil compreender que a especulação do mercado imobiliário foi acompanhada pelo crédito bancário. Hoje, subidas de 2% ou 3% nas taxas de juro representam aumentos de milhares de euros nas prestações, já que os empréstimos são muito elevados.

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    Ao contrário do que aconteceu durante os dois anos da pandemia da covid-19, onde se construíram hospitais de campanha e se deixaram de cobrar juros, agora as famílias estão completamente entregues à sua sorte. Deste lado, onde a Economia é mais robusta, há de facto a esperança de conseguir atravessar estes cinco anos (2020-2024), sem perder o emprego e ir aguentando as contas, com maior ou menor dificuldade. Vidas que se alteram em nome do Donbass, mas onde, apesar de tudo, ainda vejo alguns raios de luz.

    Em Portugal, a situação é radicalmente diferente. Embora o endividamento das famílias seja menor (cerca de 77% do PIB), os salários também são incomparavelmente inferiores e o mercado de trabalho disponível é uma pequena gota nas necessidades. Recebo relatos de pessoas absolutamente desesperadas, sem emprego e sem possibilidade de pagarem as rendas, começando a ver no suicídio uma alternativa em vez de acabarem os seus dias debaixo de uma arcada de Lisboa.

    E não vejo nada, absolutamente nada, por parte de quem nos governa, para dar a mão a quem vai perdendo um dos direitos básicos da Constituição: o direito à habitação. É outro dos mistérios que me vai escapando.

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    Se o custo de vida sobe, se o Governo arrecada um jackpot mensal em impostos… para onde vai esse dinheiro? É todo gasto nas indemnizações das Alexandras, nas esmolas dos 125 euros ou na merda do Donbass? Agora que são, de facto, necessários “hospitais de campanha”, não há quem pense em construir habitação temporária para abrigar esta gente?

    Com a avalanche de pedidos que chegam aos serviços sociais, com pedidos de casa e comida todos os dias, não há um gajo, uma cabeça, um ser pensante, nesta merda deste Governo de maioria, que entenda ser preciso ir para a rua, criar abrigos e dar refeições quentes a quem vê no fim da vida uma solução?

    Afinal, quantos dos nossos é que estamos dispostos a matar para alimentar uma guerra dos outros?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eis o top 5 dos “inegáveis” pecados capitais dos professores…visto por quem não é, claro!

    Eis o top 5 dos “inegáveis” pecados capitais dos professores…visto por quem não é, claro!


    Aprecio bastante o reportório de queixas repetido a cada greve da Função Pública. Vejo, com um sorriso, a indignação de quem afirma que uma greve, seja qual for, não pode prejudicar a vida das pessoas.

    Dos utentes do metro aos passageiros da CP e da Carris, e passando pelos pais dos alunos, há uma enorme fatia de gente que ainda parece achar que uma greve é uma espécie de feriado móvel. Ou como dizia um antigo chefe meu, no início do século: “se querem fazer greves, que as façam ao sábado!”.

    É um conceito peculiar, este, o das greves que não incomodam. Quer dizer, seriam greves sem qualquer utilidade ou sequer poder reivindicativo, mas certamente trariam uma lufada de ar fresco ao debate. Deixariam era de serem greves autênticas, se bem que não nos devemos perder em detalhes.

    Sigamos.

    Os professores são, dentro da Função Pública, aqueles que mais têm endurecido e prolongado a sua luta. Nos noticiários, caixas de comentários ou até no Fórum TSF – esse longevo barómetro do pensamento popular magistralmente coordenado pelo Manuel Acácio – é possível recolher um resumo das queixas mais frequentes contra os professores, e compreender assim como é que nós, portugueses, ainda estamos pouco talhados para a defesa dos direitos dos trabalhadores.

    Deixo aqui o top 5 das queixas, e acrescento o que penso sobre as ditas:

    1 – “As greves prejudicam os alunos

    Se pensarmos que queremos alguém para passar o tempo dentro de uma sala com os alunos, então sim, a greve não só prejudica os alunos como os pais que têm de ficar com eles ou arranjar alternativas.

    Contudo, se pensarmos um bocadinho, o que realmente devemos pedir ao sistema público de Ensino são professores motivados, e que possam, na sala de aula, realizar-se também profissionalmente, e, dessa forma, passar conhecimento aos nossos filhos.

    Como não é isso que existe hoje, aquilo que prejudica os alunos são sim as sucessivas políticas de Educação que andam a destruir a Escola Pública. Ou ainda dois anos de confinamentos em nome ainda não se sabe bem de quê, e que, irremediavelmente, atiraram as necessidades educativas para segundo plano, como se o Apocalipse estivesse ali ao virar da esquina.

    Aquilo que os professores estão a fazer, ao lutar pela dignificação da carreira, é exactamente a melhorar a Escola Pública e a beneficiar os alunos no longo prazo.

    2 – “Os professores estão a ceder aos interesses dos sindicatos

    Fico sempre pensativo com quem condena sindicatos como coordenadores das lutas laborais. Gostava de saber se, para essas pessoas, existe outra forma, desconhecida do grande público, para as pessoas se organizem e falarem como um colectivo.

    Tem um trabalhador sozinho alguma influência nas decisões da sua carreira? Em princípio, não. Então, e se forem todos os trabalhadores do sector? Em princípio, sim. E podem falar todos ao mesmo tempo com o empregador? Por exemplo, com o ministro da Educação? Fica mais confuso, não é? Tipo Mercado da Ribeira e ninguém se entende. É por isso que se juntam em colectividades onde um fala por vários. É essa a “conversa dos sindicatos”; e sem ela não existe negociação.

    3 – “Concordo com a luta dos professores, mas não há outra forma de protesto sem ser a greve?

    Há. Por exemplo, para monges tibetanos há o silêncio. Mas aqueles vivem em mosteiros, sem rendas ou taxas de juro, comem pouca coisa, não abastecem as sandálias com diesel e, portanto, o custo de vida não sobe assim tanto relativamente ao salário.

    Já para quem está há 10 anos numa conversa de surdos com os sucessivos ministros, essencialmente com o mesmo salário e sem progressão na carreira, a ver o custo de vida a disparar, de facto não há grandes alternativas a não ser a greve. É, de longe, a forma de luta mais civilizada e uma prova da paciência desta classe profissional.

    4 – “Os meus filhos andam num colégio privado e nem sabem o que é uma greve

    Sorte desses professores que ali dão aulas, por receberem um salário digno; e azar dos alunos do colégio privado, que, apesar da elevada propina, não aprendem um dos direitos fundamentais previsto na Constituição. Preciso de dizer mais alguma coisa a este respeito?

    5 – “Os professores continuam a ser uma classe com bons salários e com muitos privilégios; por exemplo, horário reduzido

    Julgo que já não vale a pena bater na tecla das horas de trabalho fora da sala de aula, que não são contabilizadas. Ou sequer dos salários vergonhosos. Escrevi há dois meses, em 4 de Novembro, aqui no PÁGINA UM, sobre isso, com testemunhos reais: em média, profissionais com 10, 15 e 20 anos de trabalho não traziam para casa 1.500 euros líquidos. Isto é uma vergonha, Uma miséria e uma merda. Seja lá qual for o ângulo escolhido.

    Mas há um pormenor na vida dos professores que gostava AINDA de referir, e que, tal como a história dos salários, me foi explicado na primeira pessoa. São relatos de pessoas que passam a vida a saltar de escola em escola, contratados durante mais de 10 anos, a mudar constantemente de zona do país, e que, por causa das vicissitudes da profissão acabam por ter muita dificuldade em formar uma família ou manter algum relacionamento estável.

    Muitos, confidenciaram-me, optam, ou são obrigados a optar, por uma vida sozinhos, sem um núcleo familiar, por não ser possível conciliar nos primeiros anos da carreira… e mais tarde, “tinha passado o tempo”.

    Compreendem a violência deste tipo de declarações? Ver-se empurrado para uma vida de solidão para se ser professor? É deste tipo de privilégios que os tais pais incomodados pelas greves se queixam?

    A Escola Pública em Portugal – um dos países menos desenvolvidos da Europa, é bom que não se esqueçam – não eleva o seu patamar de excelência com pensos rápidos e esmolas. É necessário um investimento sério, continuado e uma política que não mude ao sabor de quem governa ou dos lobbies que por lá passam.

    Enquanto existir um contribuinte, o dinheiro deve ir para a Escola Pública e o Serviço Nacional de Saúde. São esses os pilares do Primeiro Mundo. O resto é secundário. Os professores, repito-o pela enésima vez, são a base do sistema; a luta deles é a luta de todos. A começar pelos nossos filhos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. As fotografias foram retiradas do mural do Facebook da Fenprof, retratando o acampamento defronte do Ministério da Educação durante esta semana.

  • A política do ódio, essa caixa de Pandora

    A política do ódio, essa caixa de Pandora


    As imagens dos tumultos em Brasília – com hordas de apoiantes de Bolsonaro a invadirem o Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional – deixaram a comunidade internacional em choque. Ou pelo menos assim me dizem os noticiários.

    Confesso que não foi o meu caso. Quer dizer… claro que lamento o sucedido, e obviamente que me junto a quem repudia o ataque à democracia, mas, aqui entre nós, era assim tão difícil imaginar um cenário destes?

    A presidência de Bolsonaro fez-me sempre lembrar uma cópia barata daquela que Donald Trump produziu – com mais cobertura mediática, claro – nos Estados Unidos. Ambos se destacaram pela falta de preparação; pela ausência de estudo em cada tema que tinham que discutir, apresentar ou debater; por decisões erradas; e por uma extraordinária ignorância.

    Aliás, sempre foi esta, para mim, a parte mais difícil de entender: como é que milhões de pessoas votam em dois seres de uma ignorância épica para gerirem os destinos dos respectivos países?

    A análise mais simplista é a de que o Mundo está cheio de ignorantes e, como tal, elegem um semelhante. A outra é a que, de facto, as pessoas se identificam com uma ou mais características que estes homens exibem sem pudor. Seja o racismo, a pouca simpatia pela democracia, o favorecimento do lobby das armas, o machismo exacerbado, os repetidos ataques à emergência climática e às políticas contra os combustíveis fósseis.

    Bolsonaro – tal como Trump, Ventura, Le Pen, Orban e outros – integra um certo ressurgimento de uma extrema-direita que esteve enterrada (ou pelo menos mais discreta) durante décadas no Ocidente.

    Pouco tempo depois de Bolsonaro ser eleito, tentava perceber, enquanto passeava pelo Rio de Janeiro, as razões que levaram um amigo a ter votado nele. De entre as várias que referiu – quase todas relacionadas com o desprezo às classes mais desfavorecidas e, em teoria, beneficiadas pelas políticas sociais de Lula e depois Dilma –, houve uma que me ficou na retina: o preço do tomate.

    Dizia ele, de forma simples que, com Lula ou Dilma, um quilo de tomate custava mais de 5 reais. Agora, custava pouco mais de 2 – portanto, a vida dele estava melhor. E pouco lhe importava se o Bolsonaro era um ignorante que envergonhava o país em cada declaração pública. O tomate estava mais barato. Ponto final.

    Foi o mesmo tipo de argumento que uma amiga usou, numa conversa, para me explicar porque votaria em Donald Trump. Segundo ela, os benefícios fiscais nas pensões seriam maiores com Trump, logo, seria ele o dono do voto. Independentemente de todas as asneiras feitas e assumidas, da perseguição às minorias, do racismo desmedido e da absoluta falta de preparação. Com Trump e Bolsonaro, naquele dia, havia um pouco mais de dinheiro no bolso. E chegava como argumento para escolher o sentido de voto.

    O problema destes representantes de movimentos políticos com pouco respeito pelas regras democráticas vem, normalmente, depois. No caso de Bolsonaro, percebe-se agora que a sua queda veio trazer incómodo a alguns poderes instalados. É difícil acreditar que um ataque desta dimensão tenha sido organizado apenas nas redes sociais e sem o patrocínio de quem ficou a perder com a vitória de Lula. Fala-se na extrema-direita organizada e apoiada pelo sector do agronegócio que, previsivelmente, não terá com Lula a mesma cobertura que teve com Bolsonaro, para quem as questões ambientais eram histórias da carochinha. Mas ainda é cedo para grandes conclusões.

    O próprio Bolsonaro não contribui para a pacificação e claramente não aceitou as regras do jogo. Prova disso foi a fuga para Miami, de forma a não fazer parte da passagem de poder para Lula da Silva. É engraçado perceber como todos estes políticos de extrema-direita têm algo em comum: apresentam-se como alternativas que chegam para lutar contra o sistema e os poderes instalados, mas, assim que o sistema diz que já não os quer, fazem o que podem para alterar os princípios básicos da democracia.

    Se pensarmos um bocadinho, é mais ou menos aquilo que vemos, com alguma regularidade, nas eleições um pouco por todo o continente africano: mal o candidato derrotado não aceita os resultados, começam os tumultos e, de vez em quando, uma guerra.

    A prática estende-se ao continente americano e, quiçá, um destes dias à Europa, com a subida mais do que confirmada da extrema-direita em todo o continente.

    O que é que se pode esperar de alguém que faz do debate político um ringue para espalhar ódio e criar muros entre pessoas? No mínimo, que os seus apoiantes vejam nessa forma de comunicação a maneira de reclamar e legitimar decisões.

    Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil.

    Esta ideia de legitimar algo errado, porque no momento nos traz algo de bom (por exemplo menos impostos), fez-me lembrar a situação da Suécia que, nas últimas eleições, fez com que um partido de extrema-direita, com discurso assumidamente racista contra emigrantes, se tornasse a segunda força política mais votada.

    Sendo eu emigrante, e pai de outro emigrante, escuso-me a comentar a razão de achar este resultado preocupante, mas noto as reacções dos locais. A primeira é a de ver alguma alegria com a redução do preço dos combustíveis. O fim do apoio aos carros eléctricos e gasolina mais barata (barata…quer dizer, cara, mas não tão cara, é melhor assim), em princípio vai alegrar a maior parte das pessoas; afinal, comprar um carro eléctrico ainda é um luxo que não está ao alcance de todos.

    Da mesma forma, endurecer as políticas de emigração e não deixar entrar mais gente, vai animar quem gosta de ver o Mundo a uma só cor. Ou seja, para já, haverá certamente quem fique contente com as políticas introduzidas pelos “bolsonaros” suecos.

    O diabo está nos detalhes.

    Por exemplo, com a dificuldade de preencher as vagas de trabalho ou a dificuldade crescente de obter um visto de residência (vários meses por vezes), já há falta de gente hoje com óbvias consequências para a Economia. Fechar as portas não ajuda. O mesmo com a ligeira redução de impostos. Ficamos todos com um pouco mais de dinheiro no bolso, mas a componente do Estado Social é afectada. Por exemplo, uma das propostas é a redução da comparticipação estatal no subsídio de desemprego. Ou seja, pensamos que tudo funciona bem hoje – e algures, lá para a frente, na doença, na velhice, no desemprego, pagaremos o preço.

    Lula da Silva, presidente do Brasil, ontem em Brasília.

    Contudo, tal como Trump, Bolsonaro, Ventura, Orban ou Le Pen, que vendem sonhos para hoje e países cheios de muros onde apenas uma cor é permitida, estas ideias vingam e trazem votos. Da Escandinávia até ao Palácio do Planalto, o ódio vende.

    Resta agora saber, no caso brasileiro, como vai Lula governar um país completamente polarizado, onde o lado derrotado insiste em não aceitar os resultados nas urnas. Quanto tempo demorarão a encontrar os responsáveis pela destruição das últimas 24 horas? Isto é, se alguma vez a culpa for entregue a alguém.

    Certo, mesmo certo, é que a subida dos extremismos, um pouco por todo o mundo civilizado, da violência e do ódio como forma de fazer política, é hoje inegável. Abriu-se a caixa de Pandora há menos de uma década, e agora dificilmente a fecharão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.