Autor: Tiago Franco

  • Kuwait, o que celebrais?

    Kuwait, o que celebrais?


    Sempre que consigo, faço desvios em viagens aéreas para ir a outros sítios que, de outra forma, não me levariam a sair de casa propositadamente. Assim, para quem for à Índia, partindo da Europa, como foi recentemente o meu caso (ver texto anterior sobre o casamento do meu amigo Rohit), os países do Golfo Pérsico são um excelente ponto de paragem e uma forma de conseguir ligações mais baratas.

    Porquê? Acho que lhe podemos chamar o mercado da oferta e da procura. Com milhões de indianos espalhados entre o território que vai do Kuwait ao Dubai, passando pelo Qatar e Bahrain, é normal que exista uma enorme oferta de voos para as principais cidades indianas e a um baixo custo, pois a procura é muita.

    Por isso, acabei por dar por mim no Kuwait, um pequeno país do tamanho do Alentejo, entrincheirado entre o Iraque e a Arábia Saudita. No meu imaginário, o Kuwait era aquela estrada, no meio do deserto, cheia de tanques destruídos com a passagem da Operação Tempestade no Deserto. Gosto de visitar sítios onde a História se fez. Era o meu principal passatempo até ao início dos confinamentos, e tento agora, três anos depois, continuar onde parei.

    Ainda não tinha saído do aeroporto e já estava a ter um daqueles momentos de “o que faço eu neste fim de Mundo?”. Acontece-me muito. Consigo encontrar interesse em absolutamente qualquer recanto deste planeta, mas, não raras vezes, quando lá chego questiono-me por que saí sequer de casa.

    Um polícia no aeroporto começa a virar a minha mochila e encontra Xanax. Pede-me pela receita médica que, obviamente, não tenho – e pergunta-me então se tenho ataques de pânico. Digo-lhe que sim, no ar. Ele diz que aquilo é ilegal no Kuwait e que posso ser mandado parar na rua e ir para a prisão.

    É bom lembrar que estou num país onde drogas e álcool dão pena de prisão e, em alguns casos, sentença de morte. Explico-lhe que se me tirar os comprimidos sobram-me duas hipóteses. Ficar no Kuwait o resto da vida, ou arranjar um autocarro que atravesse o Iraque em direcção à Europa. No avião é que não entro sem aquilo. Ele sorri. É um gordinho de barba, com aspecto de quem está na primeira semana de trabalho e quer mostrar obra feita ao seu superior.

    Eu procuro as saídas do humor, é sempre por aí que vou. Certo dia um militar ucraniano, na fronteira com a Polónia, apontou-me uma metralhadora e pediu dinheiro para me deixar seguir. Eu bati nos bolsos e disse-lhe que não tinha notas, e perguntei-lhe se aceitava cartão.

    Na impossibilidade de disparar a 100 metros da linha da União Europeia, ele lá me deixou ir sem achar piada ao meu material de comédia. O mesmo sucedeu na fronteira do Egipto e Israel, com três egípcios a dizerem-me que sem pagar extra ia ficar muito tempo ali parado, ao que respondi que por mim tudo bem, podia ficar ali com eles e fazer adeus ao israelita que ainda me conseguia ver na barraca a 50 metros dali. O mesmo israelita que me tinha feito 100 perguntas, entre as quais se eu falava árabe.

    Não sei bem por que razão me meto sempre nestas alhadas, mas parece que devo gostar, porque vou sempre lá cair. Ando há meses a ver se convenço alguém a vir comigo a Minsk e, surpreendentemente, ninguém acha a ideia apelativa.

    Por fim, o polícia novato lá me deixou sair do aeroporto, depois de falar com o superior hierárquico, que não se quis chatear por quatro Xanax. Quando cheguei cá fora, pensei que uma cervejinha é que era, para aliviar aquele stress, mas lá está, também é ilegal, pelo que bebi antes um café com caramelo, no Starbucks que estava ali em frente. Ah pois… os americanos não deixaram apenas as mangueiras para sugar petróleo quando estavam a “trazer democracia”.

    Reparei que as ruas estavam cheias de fervor patriótico. As cores da bandeira por todo o lado, monumentos fechados, carros com bandeiras, crianças com camisolas que diziam “Free Kuwait”. Uma semana de feriados para comemorar o Dia Nacional, o Dia da Libertação, e de alguma forma isso tinha um toque de Carnaval, porque as pessoas faziam guerras de balões de água no meio do trânsito. Estava um pouco baralhado com a História e os parcos conhecimentos de inglês dos locais também não me ajudaram muito.

    Dei uma de Relvas… e fui estudar. Os dias 25 e 26 de Fevereiro marcam, respectivamente, o Dia Nacional e o Dia da Libertação do Kuwait. O primeiro comemora a chegada ao trono, em 1950, de um emir com cerca de dezassete nomes, que ficou famoso por ter assinado o tratado que acabou com o protectorado britânico. O segundo, como se perceberá pelo nome, regista o dia em que os americanos “devolveram a democracia” e correram com os iraquianos.

    Impecável do ponto de vista do sincronismo temporal a entrada do exército aliado no Kuwait, permitindo juntar duas datas importantes numa semana e reduzir assim os custos com as festas para as gerações vindouras.

    people walking on street during daytime

    Paradas militares, polícia por todo o lado, barcos a dar espectáculo com canhões de água, aviões de combate a executar manobras nos céus da capital. Uma demonstração de poder bélico algo patética, para quem perdeu o controlo do seu território em apenas dois dias e que, sem os poços de petróleo que normalmente ajudam às “devoluções de democracia”, seriam hoje mais um quintal anexado como aqueles no Terceiro Mundo que ninguém quer saber.

    Mas como tinham petróleo, já se sabe, passam a ser um “parceiro do Mundo Livre e Democrático”.

    Ainda assim compreendo a festa da libertação. Para os locais, mesmo sabendo que 1991 se resumiu a jogos de poder pela conquista de combustíveis fósseis, a consequência é que, de facto, recuperaram a sua independência. Não a liberdade ou democracia, que nunca as tiveram, mas livraram-se de um invasor assumido.

    Já a celebração pela ascensão ao trono do emir dos vários nomes é que não percebo bem.

    O que é que há para comemorar num regime onde a liberdade de expressão é controlada, os direitos (especialmente das mulheres) cada vez mais restringidos e o direito a governar nasce no berço?

    people on beach during daytime

    O que celebra uma sociedade absolutamente desigual, onde uma minoria de 1,5 milhões (os nativos do Kuwait) é controlada por uma família pornograficamente rica, e tudo o que cresce e se desenvolve é providenciado por um exército de três milhões de escravos da era moderna, entre os quais cerca de um milhão de indianos?

    O que comemora uma sociedade tão desigual como esta, tão desequilibrada e tão injusta?

    Os albaneses, em maioria no sul da Sérvia, reclamaram um país e surgiu o Kosovo.

    O Donbass vai pelo mesmo caminho.

    O argumento de maiorias que crescem num território e depois exigem a independência ou a anexação são clássicos da História. Tirando no caso dos curdos e dos palestinianos, normalmente este argumento colhe quando apoiado por algum império. Dei por mim a pensar que todos estes escravos, que já são a maioria nos países do Golfo Pérsico, ainda podem um dia servir de desculpa para a Índia os anexar.

    Era engraçado ver ditaduras a serem anexadas por democracias e os Impérios do Bem e do Mal a pensarem se alinhavam e repartiam o petróleo (ou “liberdade” como George Bush pai lhe chamou) ou se entravam em novas guerras pelo controlo total.

    rock formations

    O mundo seria bem melhor sem petróleo. Sem castas. Sem escravos.

    É nestas alturas que penso no pequeno mas existente elevador social em Portugal. Há hipótese, há alguma esperança, de se evoluir pelo trabalho.

    Ali, no Kuwait, não. Se nascem miseráveis, vão morrer miseráveis, e esgotados de trabalho até ao osso.

    Não sei se é isto a que se chama choque de culturas, mas sei que me ajuda a perceber a sorte que tive por nascer no lado certo do Mundo. Pelo menos isso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final

    O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final


    A minha mãe pergunta-me, com frequência, como é que passo o tempo no ar se tenho pânico de voar. Ao fim de duas décadas dentro de aviões, respondo-lhe quase sempre que, apesar desse medo, ainda maior receio tenho de, por isso, deixar de ver o Mundo.

    Por isso, arranjei uma série de rotinas – e que dariam longas sessões no divã de um psicólogo – para continuar a seguir o meu sonho, o sonho de conhecer o máximo possível do Planeta onde nasci.

    Dei assim por mim, a pensar nisto, com umas companheiras de viagem na pouco visitada Argélia, de onde vos escrevo agora. Tenho pouca paciência para países que dificultam a entrada com vistos aborrecidos ou idas a embaixadas, mas à medida que o Mundo vai encolhendo a esquisitice diminui.

    Por outro lado, tinha uma curiosidade enorme pelo rico património histórico da Argélia. Das cidades coloniais às ruínas romanas, passando pela abertura ao Mediterrâneo e a vastidão do deserto.

    A Argélia é o maior país de África, com uma dimensão que cobriria o território entre França e a Lituânia, de Este a Oeste, e entre a Suécia e Itália, de Norte a Sul. Não é um sítio para visitas rápidas, mas tentei chegar ao Norte, Este e Sul. Tentei. E não consegui.

    Argel, a caótica capital, parece uma cidade perdida no tempo, entre as decrépitas fachadas coloniais e a modernidade que só chegou no culto do divino.

    Nas ruas, vejo homens. Novos e velhos. A trabalhar ou a matar o tempo. Conto pelos dedos as mulheres. Há um conservadorismo que, apesar de tudo, ultrapassa as minhas expectativas iniciais.

    Há uma exaltação à Guerra da Independência contra os franceses, e memórias por todo o lado, com destaque para o horripilante monumento aos soldados caídos nessa luta, que do alto da encosta ensombra a cidade. Polícia no local assegura que ninguém lá passa por baixo, evitando uma ofensa que não compreendi.

    Um simpático dono de um café dizia-nos que o problema da Argélia eram os franceses, por investirem em Marrocos e na Tunísia, sabotando o turismo no país. A estranha incongruência de não querer o colono por perto, mas não se importar de receber uns Ibis.

    De facto, aqui não há grande turismo. Ao fim de quatro dias, não terei visto mais de dez estrangeiros. Nota-se um pouco por toda a parte a falta de hábito de lidar com turistas. Entre os mais velhos ainda se fala francês, já os mais novos parecem fazer a escola em árabe. Inglês é um problema. Andar sozinha, caso sejas uma mulher, também.

    Há lixo por todo o lado, menos na imponente e lindíssima Grande Mesquita. A maior de África e a terceira maior do Mundo, com uma beleza arrebatadora e um brilho cuidado que nos permitiria comer no chão. Fico sempre impressionado com as fortunas que países pobres, sejam eles quais forem, gastam na devoção religiosa. Seja qual for a religião, note-se.

    A Argélia começa a ficar interessante, verdadeiramente única, quando saímos da capital. A cerca de três horas de carro, para Este, está o complexo romano de Djemila. Uma escavação abandonada pelos franceses a meio da guerra colonial, na década de 60 do século passado, ainda com mais de metade das ruínas por descobrir.

    Ainda assim, uma área imensa, com casas, teatros, mercados e templos construídos entre os séculos I e V. Um património classificado pela UNESCO e deixado ao abandono, sem grande protecção para garantir a sua conservação. Casas com mosaicos, ainda intactos do século III são utilizadas como latrinas por visitantes aflitos.

    É ver enquanto não destruírem o que falta – foi esta a sensação com que me vim embora. Vi um turista no local.

    Constantine, um pouco mais a Este já me encheu mais as medidas. Uma das várias que ficou com o nome do imperador romano, pareceu-me menos caótica e mais acolhedora que a capital Argel. Construída entre dois lados de um desfiladeiro, ficou conhecida com a cidade das pontes suspensas.

    Um daqueles sítios onde gostaria de me sentar numa esplanada a contemplar a vista sem ter de beber um sumo cheio de açúcar.

    Esta malta sobrevive a laranjada e Coca-Cola, de manhã à noite. Não se degusta um tinto ou uma cevada líquida, nem que chovam canivetes. E como tem chovido, senhores.

    Saí do Este para apanhar dois aviões a caminho do deserto, numa zona a sul menos aconselhada para turistas, chamada Ghardaia. A polícia no aeroporto disse-me que não mostrasse aquele cartão de embarque até ser necessário. O sul da Argélia tem zonas de conflito com guerrilhas, e não é, ainda, absolutamente seguro para visita.

    No fim do primeiro percurso de avião, um velhíssimo ATR que avistava as montanhas e furava as nuvens como podia, senti-me como uma velha meia colada ao tambor da máquina de lavar. Enquanto ele, o piloto, teimava em não subir mais uns metro, e ia desfazendo nuvens à chapada, eu dizia em voz alta: “sobe esta merda, sobe esta merda!”

    Pensei que fosse desta que não chegaria inteiro para escrever o texto de segunda-feira.

    No fim, despedi-me da Air Algerie sem aquele abraço nostálgico, e deixei-os a chamar pelo meu nome no segundo voo – onde nunca entrei. Lá chegarei, ao deserto mais a sul, de carro, de camelo ou de bicicleta.

    O pânico vence uns rounds, é verdade, mas no fim, e aos pontos, a teimosia vence quase sempre a luta. Importante é seguir caminho. Seja ele qual for, só precisa de ser novo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 

    O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 


    Terminei a minha coluna de opinião de quinta-feira passada apostando que Marcelo, na sua comunicação ao país, diria, essencialmente, nada. Bem sei que não é preciso ser um Zandinga de Cacilhas para prever os movimentos do previsível e calculista Presidente da República. Ainda assim, tinha a secreta esperança que o mais famoso comentador do país usasse o segundo mandato para agir mais e olhar menos para barómetros.

    É um dado adquirido que Galamba mentiu e não tem, de qualquer ponto de vista, o mínimo aceitável para se manter em funções. Mas não é só este caso que deveria ter feito Marcelo ganhar alguma coragem. O PS, com uma maioria que anunciava estabilidade, anda a saltar de escândalo em escândalo e a passar à opinião pública (e publicada) que manda e gere o país como um senhor feudal.

    O PS governa sem dar contas, sem se preocupar com quem os elegeu, sem sequer ter alguma vergonha na gestão dos escândalos. É uma espécie de bar aberto, à boleia da TAP, onde o país se senta para discutir membros do Governo e jogos políticos de bastidores, em vez de abordarmos os problemas que nos afectam.

    Há um exército de insatisfeitos que vão prometendo votos na extrema-direita. Há professores em luta pela reposição dos direitos, há meses e meses, sem conseguirem chegar a bom porto nas conversações com o governo.

    Ouvem-se novas promessas de crise no sector imobiliário, e mais famílias a perder a casa. 

    A inflação baixa lentamente, apesar dos cortes a direito do Banco Central Europeu, e ir ao supermercado continua a ser uma aventura.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    A inflação nos produtos alimentares continua nos dois dígitos. Os salários, para quem teve aumentos, não subiram mais dos que 2% ou 3%.

    Continuamos em perda, a empobrecer todos os meses e a viver de subsídios ou ajudas sociais pontuais. 

    Costa gere crises e navega a nau sem grande rumo à vista. Gasta os créditos da estratégia em lutas internas, mas não parece ter um plano para o país.

    Era isto que devíamos estar a discutir e não o membro A ou B do Governo. Não são os jogos políticos que importam ou sequer quem deles sai mais fortalecido no xadrez eleitoral.

    A vida das pessoas não é um braço-de-ferro entre Belém e São Bento. 

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    António Costa foi a jogo e pediu a Marcelo que mostrasse as cartas. Marcelo encolheu-se e perdeu. A algazarra deu para comentários nas televisões e homílias sobre o novo estadista descoberto no Largo do Rato.

    Entretanto, chegou segunda-feira e todos os problemas, os reais, continuam por resolver. Marcelo disse que queria ser um garante de estabilidade, mas, como podemos ver, um Governo de maioria não significa necessariamente estabilidade.

    No caso do PS, este Governo de António Costa é apenas um garante de arrogância, quero, posso e mando. 

    Estamos agora a pagar as políticas desastrosas da pandemia, com atrasos na formação dos alunos, salários congelados, empresas encerradas e uma dívida externa que aumentou. Uma carga fiscal recorde e cada vez menos serviços públicos em troca.

    a large circus tent with lights around it

    O país está um pântano, um caos, um atoleiro de empobrecimento. A única estabilidade que Marcelo garantiu foi esta: seguirmos no mesmo lamaçal.

    Quando chegarmos a eleições serão, contudo, os mesmos a conseguir o poder, mas Marcelo não verá o seu nome associado. Pois bem. Era, para além de ir ao Santini, o que verdadeiramente lhe interessava.

    Esperamos agora a ida do adjunto de Galamba à comissão de inquérito para um ajuste de contas e mais umas horas de debate.

    O circo da estabilidade pode continuar. As vidas reais e o sofrimento do quotidiano, que esperem mais um bocadinho, não é?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)

    Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)


    Em Outubro de 2017, à pergunta sobre os baixos salários na Padaria Portuguesa, respondia Nuno Carvalho, um dos donos da empresa, o seguinte:

    Apresentamos um plano de integração e de formação, damos oportunidades de carreira – vários chefes de fábrica entraram como operários a ganhar 580 euros e recebem três vezes mais agora. Também temos uma série de regalias. Fazemos investimento a sério nas pessoas: uma vez por ano juntamos todos os trabalhadores num arraial de verão e fechamos as lojas mais cedo. Mensalmente, reunimos com as equipas de gestão de loja, de forma absolutamente informal, fazemos um piquenique no jardim da Estrela, onde ouvimos inputs sobre o negócio, até mesmo sobre políticas salariais. Cada vez que nasce um bebé, oferecemos um creme e um babygrow e escrevo um postal de aniversário personalizado a cada um dos trabalhadores. Temos estes cuidados. Somos muito informais e tratamos as pessoas como pessoas. Criamos um espírito de equipa que vale muito mais do que a remuneração base.

    people building structure during daytime

    Esta resposta, só por si, explica a miséria laboral em que se tornou Portugal. Quase seis anos depois, nada mudou – e mais, até fez escola. Postais personalizados, espírito de equipa, cremes e piqueniques: tudo menos um salário digno e justo. O sucesso das empresas em Portugal – lembremo-nos que a Padaria Portuguesa era apontada como um caso de sucesso e de inovação – assenta essencialmente em foguetório e em baixos salários. Palavras-chave de motivação (ou keywords cheias de team spirit, como nos diria o amigo Nuno) que levem as pessoas a gostar e vestir uma camisola de quem as explora.

    O primeiro de Maio, Dia do Trabalhador (não do colaborador) é, ainda, um momento de luta que não devemos desperdiçar ou sequer ignorar. É o dia em que nos lembramos de quem perdeu a vida em nome dos direitos que hoje damos como garantidos. E é o dia em que, olhando em redor, percebemos o que falta fazer nas relações laborais. É um dia que deve ser de tomada de consciência colectiva perante o assalto a que a classe trabalhadora tem sido sujeita.

    A Função Pública perde poder de compra há mais de 10 anos e, no sector privado, recém-licenciados trabalham por autênticas esmolas. Há um sector da população que trabalha sem conseguir sair da pobreza, um conceito surreal num país de Primeiro Mundo, e outros que se limitam a produzir a troco de um salário que lhes permite somente pagar as contas.

    Isto não é viver – quando muito é sobreviver, é subsistir, é não desistir. É resignar-se.

    Portugal é hoje, visto de fora, como um sítio de mão de obra qualificada de baixo custo. Aliás, já um ministro dos Negócios Estrangeiros nos publicitou dessa forma, procurando atrair investimento numa visita oficial de Estado a um país rico.

    De cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo, lá aparece o presidente da CIP ou os CEOs dos grandes grupos com a habitual lengalenga: “o salário mínimo tem de ser indexado à produtividade”. Este é um mantra que se aplica a quem trabalha, a quem depende de um salário para viver. Não se aplica a gestores de topo ou a accionistas parasitas que recebem dividendos dê por onde der. Lembremo-nos do BES, há mais de uma década a receber dinheiro do Orçamento de Estado, e ainda há pouco tempo nas capas dos jornais pelos prémios fabulosos que repartia pelos seus administradores.

    O primeiro de Maio devia recordar à classe trabalhadora que ela é a maioria – que, sem ela, nada se faz, nada se transforma, nada se produz. Abusos como aqueles que vemos diariamente, com tentativas constantes de validar baixos salários, deveriam ser contestados nas ruas. Sempre que um liberal nos diz que as empresas é que geram emprego, alguém lhe devia gritar, com um megafone aos ouvidos, que os trabalhadores é que criam as empresas. Uma empresa sem trabalhadores chama-se prédio. Normalmente vazio. Produz, quando muito, pó.

    a large room with pillars

    Não é fácil perceber que, em Portugal, praticamente oferecemos a nossa força de trabalho. E isso é particularmente grave para quem tem nela, na força de trabalho, a única moeda de troca e o único garante de sustento. Há muito que ultrapassámos os padrões mínimos de dignidade e, por mais que tentem, não há justificação para tamanha precariedade e pobreza ao fim de 35 anos na União Europeia. Não há. São precisos vários Governos de uma incompetência atroz para que. hoje, trabalhar em Portugal seja um exercício de masoquismo.

    Reconheço não ser fácil perceber esta realidade quando nos comparamos com os nossos amigos, colegas, familiares. Todos na mesma cidade, todos mais ou menos dentro do mesmo sistema capitalista de exploração e lucro à custa dos baixos salários. É preciso sair da zona de conforto, ver outras realidades e perceber que é possível gerar riqueza e distribuí-la por patrões, funcionários e Estado de uma forma mais equilibrada. É possível trabalhar e viver bem. A classe média devia ser o nosso ponto de partida, não o objectivo final.

    A pressão para o aumento do salário mínimo destes últimos anos é uma alavanca essencial para a defesa dos trabalhadores. Se quem investe não percebe que, a longo prazo, o modelo das baixas remunerações tem os dias contados – porque o capital procura sempre um povo ainda mais pobre –, então é o Estado que deve meter essas barreiras. Em vez de aumentar impostos, deve, isso sim, criar as condições para que o salário mínimo permita uma vida digna. Coisa que hoje, apesar do esforço de alguns partidos de esquerda, ainda não existe.

    man in white shorts carrying a child in white shorts

    O trabalho é a nossa contribuição para o Mundo. Seja qual for, onde for, mais ou menos elaborado, todos somos necessários. Não existem profissões menores ou trabalhadores dispensáveis. Aquilo que existe, e muito, é uma falta de consciência da classe trabalhadora. Do seu poder, da sua importância, da sua força.

    Com um mundo em transformação, depois do ataque aos direitos básicos durante a pandemia e, agora, a continuação da perda de direitos laborais e capacidade de poder de compra, nunca a união entre trabalhadores foi tão necessária.

    Tenhamos consciência colectiva e ninguém, absolutamente ninguém, nos poderá vencer nesta guerra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A visita de Luiz Inácio

    A visita de Luiz Inácio


    A visita de Lula da Silva a Portugal tem provocado um autêntico “fuzuê” na vida pública deste pacato cantinho à beira-mar plantado. Tenho visto a novela com o mesmo encanto com que acompanhava as aventuras do Roque Santeiro. Sim, eu sou desse tempo.

    A primeira nota de destaque foi o aproveitamento que os partidos de direita e extrema-direita fizeram. A Iniciativa Liberal veio a terreno criticar as declarações de Lula sobre a Ucrânia e o Chega montou um circo, digno de se ver, com a presença de Lula nas comemorações do 25 de Abril.

    Lula da Silva veio a Portugal tratar de negócios, fechar acordos, parcerias, trocas comerciais. Como qualquer presidente que visita outro país, o objectivo é fechar acordos. Fê-lo na China, nos Estados Unidos e agora, à nossa micro-escala, fá-lo-á em Portugal.

    Hoje, por exemplo, ia de manhã, de avião para o Porto para umas negociatas em Matosinhos. De tarde, regressa no mesmo avião ao aeroporto militar de Figo Maduro, a tempo de entregar o prémio Camões ao Chico que importa. Amanhã, imagino, vai discutir problemas ambientais e como reduzir as emissões de carbono, que não as dele.

    Ao chegar, Lula falou sobre a Ucrânia e disse o óbvio: é preciso sentar e conversar para negociar um plano de paz.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    Compreendo a intenção do presidente brasileiro ao tentar meter o país irmão novamente na agenda internacional, depois do buraco de isolamento onde Bolsonaro o tinha deixado. Mais uma vez, está a tratar da vida e dos interesses económicos, como qualquer presidente faz.

    A novidade, para mim, é ver o coro de virgens ofendidas do lado da Iniciativa Liberal com as declarações de Lula. Segundo eles, quem faz o apelo à paz com cedências territoriais está a premiar o invasor e, como outras vozes já o defenderam, só se podem sentar à mesa quando os russos saírem do país e largarem os territórios ocupados.

    Ora, não querendo ser eu o portador das más notícias, se os russos fizessem isso, já não era preciso ir para a mesa porque não haveria muito para negociar. Não sei se me faço entender.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    E isto é particularmente aborrecido de ouvir dos lados da Iniciativa Liberal porque, habitualmente, definem-se como uns tipos práticos, conhecedores da realidade, dos mercados e do mundo que nos rodeia. Mas depois ficam ali, presos em ideologias que não têm e moral de café, quando o pragmatismo lhes bate à porta.

    Desde logo, esta narrativa da guerra que começou em 2022 já está mais do que desfeita. Já todos sabemos que a Rússia invadiu a Ucrânia depois de oito anos de conflitos e escaramuças com russófonos. Isto não muda o nome do invasor mas, pelo menos, centra o debate onde ele deve estar.

    Depois, chegados aqui, não entendo como é que líderes partidários continuam a falar em soluções impossíveis como se tivessem qualquer aplicação prática.

    yellow and blue umbrella under white sky

    A solução ideal, defendida por Rui Faria, é uma utopia: é os russos arrumarem a trouxa, irem para casa e depois sim, sentarem-se à mesa a ouvir que indemnizações vão pagar.

    Não sei se Rui Faria sabe, mas não existem impérios do bem ou do mal. Existem impérios. E, tal como nas outras invasões de que ninguém quer saber, os russos não vão sair dali com as mãos a abanar. Existem portanto duas opções: 1) sentar a uma mesa a discutir que parte de território a Ucrânia vai perder; 2) invadir a Rússia com o exército da NATO.

    Lula defende a primeira. A Iniciativa Liberal diz que isso é uma vergonha e, como proposta, sugere uma que não existe. No fundo é apenas uma continuação do respectivo programa eleitoral.

    Aquilo que ainda espero, de todos os que querem a continuação da guerra por tempo indeterminado, é como a pensam pagar e, principalmente, que rapaziada é que estão dispostos a perder? 

    O tempo para a conversa do “não premiar o invasor” está esgotada. Até porque, habitualmente, é isso que acontece com invasores mais fortes, habitualmente com o apoio do chamado Ocidente.

    Podem olhar para cinco continentes e encontram povos oprimidos e com terra roubada, sem que a comunidade internacional perca o sono por isso. Esta hipocrisia da realidade alternativa já enjoa.  

    Já o Chega aproveitou a ida de Lula à Assembleia da República para encher autocarros e trazer pessoal para uma manifestação “anti-ladrão”.

    Já tinham feito uns vídeos bem catitas no TikTok a insultar o presidente brasileiro e, como é óbvio, para um partido que defende o Estado Novo e abomina o 25 de Abril, nada melhor do que criar um momento de populismo que renda mais uns votos e visibilidade, numa altura em que se devia celebrar a libertação da ditadura. Ou como eles lhe chamam lá no Chega, os Glory Days.

    É todo um modus operandi que já não apanha ninguém despercebido e promete animar a agenda de Lula.

    Mas há mais. Há directos atrás de directos à porta do hotel Tivoli e largos minutos a encher chouriços na esperança de ver a comitiva a passar cinco segundos no direto a caminho dos Mercedes que ali ficaram estacionados, na rua bloqueada para o efeito.

    Muito bem, a diplomacia brasileira a conseguir estacionar 10 carros na Avenida da Liberdade, todos juntos, de borla e sem que a EMEL os consiga bloquear.

    Mas Portugal não seria Portugal se não levasse a não-notícia ao extremo. Assim, no Domingo de folga, algum assessor disse que Lula iria visitar a Nazaré. Pela-se por ondas gigantes e arroz de marisco, dizem fontes próximas do local. As televisões correm para lá mas Lula não aparece.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    O edil local disse que mandou o número de telefone para a comitiva, caso quisessem ajuda para visitar o farol. Há desilusão porque Lula, afinal, fica a dormir no Tivoli e a rever os episódios do Succession no HBO.

    Mas as TVs não desarmam, há uma peça para encher e material para enviar para as redacções. Entrevistam nazarenas que mostram bancas recheadas de coisas que tinham para vender a Lula. Uma delas diz, com uma voz marota, que tinha um bolo do amor para vender ao septuagenário presidente que o deixaria a fazer amor, toda a noite, como na canção do Toy.

    Lula não sabe o que perdeu. Portugal é, ainda e sempre, uma pequena aldeia sem protocolo diplomático. Valha-nos isso.

    E já agora, sê bem-vindo, Luiz Inácio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas

    Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas


    A comissão parlamentar de inquérito à TAP ainda vai no seu início e já parece a História, em três volumes, de uma República das Bananas. Uma pessoa ouve aquilo e pensa como é possível tamanho deboche e destruição de património público. Sim, a TAP é património público e, ao contrário do palco no Trancão, património daquele que interessa.

    Sem grande surpresa, PS e PSD estão naquela comissão em missão de passa-culpa. Nenhum tem grande interesse em tornar a TAP um caso feliz de gestão. Apenas tentam esconder as suas irresponsabilidades, culpando o companheiro do centrão.

    Nesse aspecto, devo dar os 12 pontos, à la festival da canção, ao PS, por convidar a CEO da TAP para uma reunião na véspera do dia em que seria ouvida. Reunião essa onde estava o deputado que, por sua vez, na comissão de inquérito do dia seguinte, a questionou.

    Christine Ourmières-Widener assumiu que descobriu ter sido demitida pela comunicação social e, provavelmente, compreenderemos daqui a uns tempos que a indemnização a pagar-lhe ainda será maior. Mais uma trapalhada do governo de António Costa na sequência de um sem número de confusões na transportadora aérea nacional.

    Também percebemos que a indemnização de Alexandra Reis contém ilegalidades que a CEO da TAP não sabia, e, segundo ela, se limitou a confiar nos advogados do processo. Há ainda a história mal contada do escritório de advogados que deu apoio, pertença do irmão de Marcelo Rebelo de Sousa.

    Há o episódio de Alexandra Reis que disse, entre outras coisas, que proibiu qualquer negócio entre a TAP e a empresa do marido de Christine Ourmiéres-Widener. Ficou no ar uma zanga de comadres, mas ainda não consegui perceber o convite para secretária de Estado. A simpática da Christine também não sabia de nada.

    Christine Ourmières-Widener

    Já sabíamos das indemnizações de 500.000 euros aprovadas por sms e ligeirezas do género.  Alexandra alega que já tentou saber quanto é que deve devolver, mas, ao que parece, ninguém lhe responde. Só a mim é que a EDP não perdoa três euros que sejam. 

    Pelo que percebi ainda estão mais 50 pessoas em fila para serem ouvidas e, portanto, esta novela promete, mas cheira-me que no último episódio tivemos o que será um dos momentos best of.

    Um alegado pedido da Presidência da República chegou à TAP, para que o horário do voo entre Maputo e Lisboa fosse alterado, de forma a facilitar a vida de um passageiro. Ignorando, lá está, os restantes 200 e tal ocupantes do A330 que voava para a capital portuguesa.

    Há até um e-mail de um secretário de Estado a pedir que a TAP desenrasque a coisa para o Governo continuar a agradar ao seu aliado de Belém. O mail tinha um smile, mas faltou-lhe um gratidão. O secretário de Estado entretanto despediu-se e voltará daqui a uns meses para outro tacho qualquer.

    Espero, ardentemente, que o Marcelo comentador, sempre disponível para opinar sobre tudo, não se cale por muito mais tempo.

    Liberais gritam que “é por isto que a TAP não pode ser pública”, acrescentando que “este dinheiro podia ser aplicado em hospitais e escolas”, as tais que eles não defendem. Há todo um campo fértil para a a direita mais ou menos populista aproveitar. Mas é um facto que a TAP serve de bode expiatório para o pior que a administração portuguesa tem. Corrupção, encosto de boys do centrão, jogos de interesses, má gestão de dinheiro público.

    Alexandra Reis

    No fundo, o mesmo que acontece em qualquer uma daquelas empresas parasitas que vivem no erário público, câmaras municipais, institutos públicos e todos os sítios financiados pelo Orçamento do Estado. Só que são mais pequenos, mais anónimos. Mas o princípio é o mesmo: desvio de dinheiro público, desonestidade, corrupção.

    Está-nos no sangue, e é uma das razões basilares do nosso atraso. Ainda não percebemos que ao roubar o que é de todos, também roubamos a nós e aos nossos filhos.

    Com a TAP tudo se amplia; é grande demais para passar despercebida. Não é um cambalacho do Valentim em Gondomar ou da Felgueiras em Felgueiras. É uma das maiores exportadoras nacionais, decisiva para o PIB. Se a TAP espirra, a Economia constipa-se.

    Esta é parte da realidade. A bandalheira da gestão pública (ou privada com dinheiros públicos, tanto dá para o caso) e o desbaratar de capital que vem dos impostos.

    A outra é o arrastar para a lama um nome que a todos nos orgulhava e que há mais de 75 anos liga Portugal, um país pequeno, pobre e periférico, ao mundo. A TAP são os milhares de trabalhadores que se esfolam lá todos os dias a ouvir gritos em terra ou a desviar de tempestades no ar.

    Não são as Cristines, as Alexandras ou todos os boys que a usam como uma linha no CV para chegar ao tacho seguinte.

    Meia dúzia de inúteis e incompetentes, com uma vida profissional ligada ao cartão partidário, vão destruir uma das bandeiras de Portugal, e pior, meter em risco milhares de empregos. 

    Hoje, quando todos desancam na TAP, falam dela como se a companhia fosse estas tristes figuras que aparecem em frente à comissão de inquérito. Não são. Era bom que não os confundissem.

    Daqui a uns meses ou anos, a TAP será vendida. Todos os que agora arrastam o seu nome na lama, virão fazer grandes análises para os jornais para que se perceba como foi vendida ao desbarato.

    Aquela comissão parlamentar não investiga a TAP. A TAP são os trabalhadores que lá andam há décadas a reparar motores, embarcar pessoal, mudar reservas ou a aterrar com ventos cruzados. Trabalhadores que já viram muitos ministros, secretários de Estado ou presidentes. 

    Aquilo que verdadeiramente se discute naquela triste comissão é o grau zero da política portuguesa, a escandalosa má gestão de dinheiro público e a República das Bananas que, assumidamente, não conseguimos deixar de ser.

    Entreguem a TAP aos trabalhadores, e deixem quem sabe tomar conta da companhia. Pior não fica.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Maria Botelho Moniz e Lord Voldemort

    Maria Botelho Moniz e Lord Voldemort


    Nos dias que correm, leia-se, das redes sociais, a melhor forma de receber atenção é dizer alarvidades. Quanto mais aberrante, repleta de ódio e ofensiva for a mensagem, maior atenção recebe o seu autor.

    É uma estratégia utilizada, por exemplo, por André Ventura há alguns anos – e com o conhecido sucesso que os votos demonstram. Aquilo a que muitos chamam “dizer as verdades”, ou “dizer o que os outros pensam”, é geralmente uma simples demonstração de ódio, falta de educação e pouquíssima noção do que deve ser a vida em sociedade.

    Alexandre Pais, um antigo jornalista de quem nunca tinha ouvido falar, veio desde anteontem para a ribalta com uma crónica absolutamente lamentável sobre Maria Botelho Moniz, uma apresentadora da TVI, de quem também nunca tinha ouvido falar.

    Do Something Great neon sign

    É relativamente indiferente o meu conhecimento de ambos para esta crónica nem isso os diminuiu. Depois de tentar perceber quem eram as personagens, entendi que a falha do desconhecimento era obviamente minha. Alexandre Pais é agora um ex-jornalista bem velhinho, que já andou a virar frangos nas redacções há muitos anos. Passou pelo 24 Horas, Record, Sábado e Correio da Manhã, o que explica o meu desconhecimento, uma vez que opto sempre pela Renova, quando compro papel higiénico.

    Maria Botelho Moniz apresenta os programas que a minha avó vê – e, por aí, eu de facto deveria saber quem ela era.

    O texto dedicado por Alexandre Pais a Maria Botelho Moniz resume-se a esta frase: és gorda e não devias aparecer na televisão.

    Ele lá acrescentou uns parágrafos – para aquilo não parecer um tweet – mas a ideia era dizer que lhe custava ver tal personagem na tela mágica. Perguntar-me-ão que interesse há em tal texto? Pior, o que me leva a comentar um texto que não tem qualquer interesse? Seriam questões legítimas, com efeito.

    Alexandre Pais, ex-jornalista e colunista do Correio da Manhã.

    No meu caso é a confiança do Alexandre. Temos um velhinho, com uma careca bem polida, umas orelhas todas pontiagudas e uma pele ressequida a escorrer pelo queixo, a fazer lembrar o Voldemort, e que acorda um dia e pensa: “epá, incomoda-me ver aquela gaja na televisão… já tenho crónica”.

    Já agora, convém também dizer que não sabia quem era o Lord Voldemort até o meu filho me obrigar a papar os 300 filmes do Harry Potter. Agora percebi que não era o Ralph Fiennes maquilhado que lá aparecia no castelo de Hogwarts, era sim o Alexandre, que terá sido descoberto pela J.K.Rowling numas férias no Algarve. Aposto que se conheceram na Kadoc, ali para os lados de Boliqueime.

    Bem sei que o escrito era para o Correio da Manhã, mas, mesmo assim, não teria sido de básica sensatez o Alexandre olhar para um espelho antes de se meter a fazer crónicas de beleza?

    Diz ele que não tem ódio e que só diz o que vê. Ele, o Alexandre, que também fazia televisão (ou parecido, já que era na CMTV) e que a todos nos presentava com aquelas feições estonteantes. Que confiança!, que altivez a do velhote!

    Não contente, ainda falou nas peles caídas dos braços da Cristina Ferreira. Que rei! Lord Voldemort a dizer que a Cristina Ferreira tem de trabalhar mais os tríceps. Carlos Castro rebola no túmulo com estas crónicas do cor-de-rosa.

    O meu problema não é apenas por um estafermo ser pago para irradiar ódio enquanto insulta a beleza física dos demais. Aquilo que mais me choca é como um diretor de jornal permite a publicação de tal pedaço de estrume. Repito: mesmo para o Correio da Manhã, deveriam existir mínimos olímpicos.

    Alexandre Pais saiu da gruta com o alvo habitual e mais fácil: as mulheres no espaço público. Reparem que ninguém exige a um apresentador homem que seja mais agradável à vista no ecrã. Ninguém pede a Marques Mendes que chegue com os pés ao chão quando se senta ao lado de Clara de Sousa. Ninguém pedia a Fernando Mendes que desviasse a barriga para vermos o Preço Certo. Ninguém proíbe o Costa de falar aos jornalistas até limpar o tártaro dos dentes. A ninguém incomodava o olho preguiçoso do Medina Carreira. E, que me lembre, ainda não cancelaram o Mira Amaral que ao fim de 30 segundos a falar encher os cantos da boca de espuma. Isto já para não falar do exército de carecas com aqueles restos de cabelo cheios de sebo que pululam em todos os canais.

    Maria Botelho Moniz, apresentadora da TVI.

    Já com as mulheres, enfim, convém que sejam todas em formato de viola e com peles bem esticadas. Ao estilo de Catarina Furtado ou Sónia Araújo, como o bom do Alexandre referiu. Repare-se que é um homem que critica, mas apresenta logo a solução. “Mónica, tenta ser igual à Catarina para meu deleite pessoal”.

    Que homens destes tenham espaço público para opinarem atrocidades do século XIV, aborrece-me no Portugal de 2023. Ver a mulher como um objecto que, ao contrário de homens na mesma função, não estão lá para informar, ler notícias ou liderar programas de entretenimento.

    Aparecem na televisão apenas para que idosos de cabeça bem polida, já sem funções vitais operacionais no baixo-ventre, tentem sentir aquele calafrio da esperança no movimento, enquanto fazem zap nos canais nacionais.

    Não penses mais nisso, Alexandre. Há peles que a partir de certa idade, por mais Catarinas e Sónias que vão aparecendo na TV, já não vão mesmo ao sítio.

    Ah, e espero não ter ofendido o Alexandre com as minhas descrições físicas do sujeito. Tal como ele, também só relato o que vi.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O show do Pastor Ventura com o sangue afegão

    O show do Pastor Ventura com o sangue afegão


    Quando soube da morte de duas pessoas às mãos de um agressor armado com uma faca, em plena luz do dia em Lisboa, fiquei chocado. Não é, infelizmente, o tipo de notícia rara nos dias que correm, mas não costuma ter a capital portuguesa como local da ocorrência.

    Daqui da Suécia, desconhecia totalmente o Centro Ismaili, ou a sua comunidade, e, como tal, escuso-me a engrossar o rol de pessoas que elogiaram a sua accão na integração de emigrantes. Estou certo que fazem um trabalho louvável, e não será esse o objecto deste texto.

    person hands with black liquids

    Parto da tragédia como ponto de análise. Duas pessoas foram assaltadas no seu local de trabalho e assassinadas. Há várias questões que a partir desse momento são importantes para o debate. Tudo isso passou para segundo plano assim que se soube a identidade do autor do crime: afegão. 

    Pessoalmente, comecei a fazer contas aos minutos que faltariam para a primeira intervenção de André Ventura. Como é óbvio, ele não desiludiu. Um afegão em Lisboa envolvido num crime é tudo o que a extrema-direita precisa para começar a cavalgar a onda do populismo.

    Contudo, não estiveram sozinhos na empreitada. Vi um ex-inspector da PJ que à pergunta “por onde deve começar a investigação”, começou por responder que “os políticos abrem as fronteiras e vendem o sonho do El Dorado europeu”. 

    O ódio e o xenofobia começam a ser sentimentos normais, até corriqueiros, nesta Europa que vai levantando muros todos os dias.

    A quantidade de disparates, de incitação ao mais básico racismo e de falta de sensibilidade foi de tal forma grande nas horas seguintes ao crime que, no fim, acabámos por não perceber o que interessava (as razões daquele crime) e cedemos o palco a demagogos que vivem da exaltação da raiva.

    A meio do dia vi que tinham convidado Ventura para um debate numa televisão. Quem é que tinha alguma dúvida do discurso que aquele energúmeno ia debitar? E que mais-valia é que podia trazer à conversa, para lá de pedir votos em cima do sangue derramado? 

    Foi quase penoso de ouvir. Mas, aposto, foi eficaz como faca quente em manteiga; aquele discurso de ódio cativou mais uns votos.

    Entre os argumentos mais idiotas está o de acolher gente que foge de guerras ou de países árabes. A primeira pressupõe que, se chegam de zonas de conflito, estão todos malucos e de faca nos dentes. O padre que acompanha o Ventura e lhe dá a mão, provavelmente, ainda não teve tempo de lhe explicar que é exactamente pela guerra que precisaram de fugir. Se a NATO ou as potências vigentes pararem de lhes bombardear o quintal, pode ser que não precisem de vir para o “El Dorado europeu”. É questão de, no confessionário, o André abrir os olhos enquanto lhe fazem o desenho.

    O outro soundbite forte é que “não é a mesma coisa receber um brasileiro ou um paquistanês”. Esta conversa faz-me lembrar as gritarias dos ciganos e do RSI e, quando se foi ver, os beneficiários daquela fortuna de 100 euros eram uma gota no oceano. Ora, com os “emigrantes que não são de bem”, a conversa é a mesma. Portugal tinha uma quota de 10 mil lugares para refugiados e acolheu pouco mais de mil.

    group of children standing on grass field during daytime

    Ou seja, por mais que o Ventura grite, a realidade é que nem a fugir de rajadas de metralhadora os refugiados escolhem Portugal como destino. Mesmo assim, os poucos que cá vêm parar têm que levar com as bandeiras do Chega e ser usados como bode expiatório. Todos os dias há assaltos de “emigrantes de bem”. Todos os dias há problemas com portugueses. Mas se um crime é levado a cabo por um afegão, está a generalização feita a sírios, paquistaneses, iraquianos e aos outros afegãos todos. 

    Aquele energúmeno – julgo que é um nome aceitável para o desempenho – até chegou a dizer que o PS e PSD tinham votado a favor da lei que tinha permitido que este homem, depois de ver a mulher morrer num campo de refugiados da Grécia, tivesse conseguido chegar a Portugal com os três filhos menores. 

    Como o país está a envelhecer – julgo que essa estatística André Ventura saberá –, ainda se deu ao luxo de dizer que devemos acolher emigrantes mas apenas alguns: os que vêm trabalhar e contribuir para o país, não os que fogem de zonas de guerra. É um conceito engraçado, porque, se a memória não me falha, os louros que fugiram da Ucrânia vinham contribuir; já os que fugiram dos Talibã, nem tanto. Mas é curioso que nos tempos do PSD, o mesmo André defendia que devíamos receber os refugiados sírios.

    É uma solidariedade à la carte, ao sabor do vento das redes sociais e sempre, mas sempre, ao encontro do que pode trazer mais uns votos.

    group of people walking on pedestrian lane

    Ventura diz, como diz sempre a cada desgraça, que o Governo tem sangue nas mãos, porque permitiu que este homem entrasse no país. Mais lógico seria afirmar que ele, por cada discurso de incentivo ao ódio, fica com as mãos ensaguentadas de cada vez que um crime racial acontece. E esses, ao contrário do ataque no Centro Ismaili, não são tão raros nos tempos que correm.

    Alguém me explicará como é que um partido sem ideologia ou ideias próprias, para lá do racismo e do ódio, chegou um dia a terceira força política de um país de emigrantes, como é o caso de Portugal.

    E como é que, num dia de absoluto drama e sofrimento para as famílias envolvidas, o homem mais citado, visto e ouvido é o Pastor Ventura?

    Trilhamos caminhos perigosos. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano

    Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano


    Ouvi, descansada e tranquilamente, a notícia de que Vladimir Putin tinha ordenado o transporte de umas quantas bombas nucleares e dez aviões para o território da Bielorrússia.

    Até despejei mais um bocado do Periquita Reserva que tinha ali ao lado, só para ver se não perdia o momento de descontracção.

    Isidro Morais Pereira foi o primeiro a deixar-me descansado porque, segundo ele, não havia aqui nada de novo. Desde logo, porque há muito que os russos têm ogivas nucleares em Kaliningrado, ali mesmo nas barbas da NATO e, nem por isso, o mundo parou. Muito bem.

    yellow and black road sign

    Juntamente com o seu companheiro de painel, Armando Marques Guedes, garantiu-me, novamente, que a Rússia estava cada vez mais isolada, que tinha cada vez mais mortos e menos material de combate.

    Todo este discurso de Putin é apenas uma gigantesca manobra de propaganda com o bom do Armando, um divertido especialista em relações internacionais, a garantir que Xi Jinping já tinha dito ao Vladimir que bombas atómicas, nem pensar.

    Depois de Nuno Rogeiro, que falava com Zelensky por interposta pessoa, temos agora o Armando, que comunica com o Xi por pombo-correio.

    O momento alto da noite ficou guardado para a citação de Biden que, nas palavras do Armando disse: “if you’re thinking about using nuclear weaponsDON’T“. (Se está a pensar em usar armas nucleares… Não o faça.)

    Parou para respirar e acrescentou: “e, depois, o Biden reforçou… DON’T… e voltou a dizer, pela terceira vez… DON’T!! Ora… isto é que é uma ameaça a sério!”

    depth of field photography of man playing chess

    De modo que enchi mais um bocadinho o copo e fiquei a pensar. Mexer bombas e aviões de um lado para o outro, enfim, é propaganda. Já dizer três vezes “don’t” é que é para um gajo se encolher todo.

    O meu problema com estes filósofos, é que há um ano que me andam a vender que os russos andam descalços e isolados e, quando damos por ela, por lá continuam a morrer e a matar, com os chineses pelo braço e nós, na nossa retórica idiota, a pagar tudo com dinheiro que não temos e a comprar combustível indiano feito com petróleo russo.

    A quantidade de países que se une ao eixo China-Rússia é bem maior do que o “mundo ocidental”. Até os sauditas começam a mudar de lado, mas nós, de Madrid a Varsóvia, continuamos a vender a fábula da Rússia isolada. Faz-me lembrar a história de um amigo que não gostava da cidade do Porto, mas nunca tinha saído de Lisboa.

    Como a alucinação ainda não tinha atingido o clímax, eis que aparece Helena Ferro Gouveia dizendo que, para já, não havia sinais visíveis de qualquer movimentação de bombas portanto, estaríamos no reino da bazófia de Putin.

    red blue and yellow ceramic figurine

    Longe de mim duvidar da Helena, mas talvez o prazo dado (até Julho) seja uma das razões para não verem, nos satélites, bombas a mexer três dias depois do anúncio. Mas é só uma ideia.

    Entra a discussão sobre o tipo de armas nucleares, e aqui é que fico mesmo anestesiado. São tácticas, segundo a Helena, não têm grande perigo de radioactividade. Tenho a sensação de a ter ouvido falar em exames de raio-x como termo de comparação mas posso estar enganado.

    Nesta altura, só queria encontrar a garrafa o mais depressa possível e, admito, desviei um pouco a minha atenção. Pelo que percebi, uma arma nuclear táctica pode ter entre 1 a 100 quilotons, sendo que cada quiloton corresponde a 1000 toneladas de dinamite.

    A bomba de Hiroshima, por exemplo, tinha 15 quilotons. Portanto, estas armas nucleares tácticas que os russos ameaçam entregar à Bielorrússia têm capacidade para matar muita gente na explosão, mas poucos de cancro.

    Caution text overlay

    Era essa a mensagem da Helena. Sim, de facto podem morrer mais umas pazadas de ucranianos num espaço de minutos mas, atenção ao lado positivo, poucos vão ao pé coxinho para o instituto de oncologia de Kiev.

    Ainda ouvi alguém explicar – já não me lembro quem porque por essa altura nem a garrafa via – que o que os russos fazem agora é algo que os americanos já fizeram há muito, quando distribuíram 150 ogivas por seis países europeus: Bélgica, Holanda, Itália, Turquia e outros dois que não me lembro.

    E, sendo assim, tudo bem. De bluff em bluff, as ogivas vão passeando e arejando as ideias.

    Durante as últimas duas décadas, os americanos controlaram o mundo a seu belo prazer e agora, russos e chineses também querem uma fatia do bolo. Se pensarmos na história recente, do Afeganistão à Síria, do Iraque à Líbia, não há uma grande vantagem em ter uma única superpotência a decidir o destino da humanidade.

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    Não sendo possível o ideal – ou seja, povos que se preocupam com o seu quintal sem quererem dominar os vizinhos –, é pelo menos preferível ter poder e contrapoder de forma a que a balança se vá ajustando.

    É pena que este novo estabelecimento das superpotências seja feito à custa do sangue dos mais pobres. Sejam eles ucranianos ou russos. Não passam de peões num jogo muito maior onde, até ver, apenas americanos e chineses poderão sair a ganhar.

    Por mais que nos tentem vender, há um ano, que um dos lados está de joelhos, a realidade diz-nos que não é assim. Chegámos a um beco sem saída, nem Putin nem Zelensky têm condições para sair desta situação com uma vitória clara nas mãos (sem que a NATO ponha as botas no terreno) e o sacrifício dos anónimos segue a um ritmo diário.

    Agora, dizem-nos que esta escalada, óbvia, no conflito, não é um risco mas sim propaganda.

    Propaganda? Acreditemos, pois.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada

    Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada


    O meu camarada Luís Gomes não ficou contente com a resposta ao artigo sobre a TAP, e resolveu voltar à carga. Desta vez, esgotados os argumentos sobre o debate inicial (privatizar ou não, era essa a discussão), resolveu alargar o espectro da conversa para as ideologias políticas pincelado com alguma filosofia da evolução dos povos. Pelo meio, ainda me brindou com os meus sonhos de poder que, até aqui, eu próprio desconhecia.

    Não sei se o Luís aprecia futebol, e se estava lá no dia em que Carlos Queiróz substituiu o Paulo Torres e deixou a ala direita para o Paneira fazer miséria, naquela noite gloriosa dos 6-3. Um erro do qual Queiróz nunca recuperou, diga-se.

    green tennis balls on tennis court

    Ora, o meu companheiro de jornal fez algo parecido. Deixou o flanco aberto que agora, com a educação possível, tratarei de usar e abusar.

    O Luís desiste de falar na TAP ao fim de um parágrafo sem responder às questões básicas da contenda. Importações e exportações. Empregos. Fornecedores nacionais. Rotas com a diáspora que ninguém quer. Era nesta piscina que devíamos nadar, e o Luís, como qualquer bom amante dos mercados, explicar-nos-ia como é que a coisa se fazia com as Ryanairs que chantageiam por subsídios dos Governos europeus.

    Em vez disto, o Luís opta por encetar um papiro de discurso clássico “Paulo Portas do tempo das feiras”. O título é auto-explicativo, mas eu dou uma achega. Quando Paulo Portas sonhava ser qualquer coisa mais do que o presidente de um partido de betos anafados (julgo que “anafado” ainda se pode dizer sem ofender todEs), corria todas as feiras do país com um boné de pastor. Por lá, entre peixeiras e as sessões da Assembleia da República, gritava aos microfones que o dinheiro público mal gasto em sítio X seria magnificamente aplicado no sítio Y.

    Normalmente o sítio X era um elefante branco qualquer e Y, quase sempre, uma velhinha chamada D. Maria que precisava de ajuda para caiar umas paredes e substituir umas telhas para não dormir com pingos na testa.

    white, red, and green airliner

    Gosto muito da palavra “caiar”, desde que o meu bisavô, o primeiro empreendedor da família, fazia esse pó branco menos lucrativo do que o outro e alimentava a minha avó com as receitas da labuta. Eu não estava lá, mas contaram-me.

    O Luís ao sacar de um “clássico Portas” nos seus tempos da lavoura (que saudades desses concertos de pandeireta no Bolhão), cai obviamente na mesma esparrela. Depois de convencer meio-mundo que ele, o Portas mais fraquinho, gostava de contas certinhas, chegou ao Governo e foi o que se viu. Alô Tridente….estás à escuta? De repente, as donas Marias esvaneceram-se nas brumas das sardinhas bem fresquinhas, e o Paulo, o amigo Paulo, desatou a comprar submarinos e a tirar fotocópias em barda.

    O X do Luís é a TAP e o Y as empresas e os empresários onde ele, como se compreende, está incluído. Portanto, estamos aqui numa embirração que nos leva a concluir que, sem a TAP, o Luís poderia ter mais alguns benefícios fiscais. Compreendo, pois, que esteja contra este aborrecimento de se tentar salvar uma das companhias que mais cria riqueza em Portugal. Mas isto ainda piora, Luís. Mesmo que a TAP não existisse e usássemos todos a Carris para chegar a Madrid ou a Transtejo para Boston, mesmo assim o dinheiro não iria para aliviar a tua carga fiscal e de restantes amigos do Lions Club.

    Com elevado grau de certeza, o dinheiro iria para a banca, para mais umas Tecnoformas, uma ou outra PPP, vários secretários de Estado, algumas adjudicações a empresas de amigos numa autarquia qualquer perto de Gaia, em palcos papais… enfim, em tudo e um par de botas. Mas não chegaria ao alívio fiscal. Nem às creches ou ao aumento do salário mínimo. Muito menos ao SNS. 

    close-up photo of assorted coins

    Portanto, Luís, seria gasto na mesma, perdido nas teias de interesse e de corrupção sem que o país beneficiasse com isso. Ora, por muito que isso custe a engolir, pelo menos com a TAP está a ser gasto em algo que serve o país e que traz riqueza. Espero que por esta altura do nosso debate – pelo menos esta parte – esteja apreendida.

    Há ainda a insistência na casca de banana do financiamento público ao longo dos anos. O Luís não se cansa de ser Queiroz, e obriga-me assim a novo cruzamento do Paneira para o Isaías.

    A União Europeia proibia a ajuda às companhias de bandeira. Ponto final. As excepções foram todas aprovadas. A última delas, repito, depois de dois anos de paragem, por causa da covid-19, e foi igual para todas: Lufthansa, SAS, Air France, British, ITA, e por aí fora.

    Todas com prejuízos, todas resgatadas, todas a voar hoje. Algumas low cost foram no vento dos mercados; as companhias de bandeira não. Espero que também não seja preciso explicar porquê. Uma coisa é serviço público, outra é vender bilhetes para andar no carrossel da feira da Cruz de Pau. Ao fim de 15 dias a feira vai para outra paróquia; já o serviço público fica enquanto… existir público. O primeiro é irrelevante; o segundo é essencial.

    gray and white airplane on flight near clear blue sky

    Isaías faz o segundo; agora de perna esquerda perante um Lemajic desprotegido 

    Este pedaço de prosa do Luís deixou-me a pensar:

    Em relação à ‘superioridade moral’ que exibe, em particular o “argumento de paga quem usa é o típico de quem defende uma sociedade não solidária”, ajuda-me a compreender o seu fascínio pela eugenista Suécia. Trata-se de um país protestante, cultura que deu origem a todas as ideologias totalitárias, como o socialismo, o comunismo, o fascismo e o nazismo. Julgo que o Tiago se encontra entre as duas primeiras.

    Agradeço, desde já, a oportunidade de ficar fora do restrito clube das suásticas: é gente com talento para a decoração de corpos na perspectiva do utilizador, e até com jeito para línguas, já que escrevem sempre em alemão, mas de facto não são bem a minha praia.

    Já o socialismo e o comunismo deixam-me algo na expectativa, porque dependem do interlocutor e das respectivas confusões. Pelo que vou lendo nas palavras do Luís, parece-me que ele será um dos que juram a pés juntos que Portugal vive num regime socialista e que Putin, esse comunista marafado, segue os ensinamentos de Lenine. De modo que fica sempre difícil meter pensamentos numa gaveta e catalogá-los.

    Mas posso tentar. Aquilo que eu defendo é relativamente simples de compreender, julgo eu. Acredito num modelo de sociedade em que todos têm o básico indispensável para uma vida com dignidade. Básico significa comida, um tecto e educação. Defendo que os impostos, progressivos, devem ser aplicados a favor dos contribuintes, começando na satisfação das necessidades básicas descritas anteriormente. Defendo Educação (verdadeiramente) universal como pilar da Economia e um sistema social que protege os mais carenciados, seja por doença ou por circunstâncias da vida que os levam a perder o rendimento vindo do trabalho.

    Estando isto garantido pelo erário público, sou aberto a discutir as prioridades seguintes. O nome da ideologia para isto deixo ao critério do Luís. A Suécia, que não me fascina particularmente, conseguiu colocar muitas destas coisas em funcionamento, pouco depois de saírem da miséria e de deixarem de comer batatas de manhã à noite. Não deve ser rocket science.

    Aquilo que eu não defendo, certamente, é aquela que me parece ser a ideologia do meu companheiro economista: uma espécie de selva do salve-se quem puder. Um mundo regulado por mercados que, acrescente-se, neste século parecem não conseguir acertar o passo. Um mundo onde nos cobram menos impostos e cada um cuida de si. Uma sociedade onde a perda do emprego representa o fim da vida. O liberalismo desenfreado como aquele que se pratica nos Estados Unidos, onde dezenas dormem nas mesmas ruas onde os executivos fazem o jogging matinal. Também vi, ninguém me contou. Tal como os fornos de cal do meu bisavô.

    person in red sweater holding babys hand

    Já que o Luís parece não ser fã dos liberais portugueses, e em cada linha que escreve transpira individualismo, arrisco que será esta a sua ideologia. Deixem-me ganhar dinheiro em paz que pagarei as minhas próprias idas ao hospital (da CUF). Os outros que se orientem. Criem unicórnios. Todos.

    A referência a ditaduras, como exemplos onde o bem comum se sobrepôs ao indivíduo, é um pau de dois bicos. Percebo que vem em todos os crachás dos liberais essa conversa da liberdade individual, mas, neste caso, é facílimo encontrar exemplos de sociedades pensadas para um todo onde a força individual está presente.

    Os nórdicos funcionam assim. São ensinados a pensar como um colectivo onde cada um é parte integrante. Isto significa que ninguém fica para trás, mas nem por isso se deixa de premiar o mérito e esforço individual. É ver quantas pequenas empresas são criadas, os impostos que são pagos, o peso do sector público (30% dos empregos) e a quantidade de multinacionais que este país deu ao Mundo. E tudo partindo de uma base colectiva.

    O mundo, ao contrário do que o Luís parece acreditar, não se divide no individualismo ou ditaduras fascistas. Há muito campo para explorar pelo meio.

    cars parked in front of building during daytime

    Quando o Luís me apelida de indivíduo dominante e árbitro de um bem maior com aspirações de poder, fico de facto baralhado. A nossa agradável discussão começou com o meu companheiro a juntar-se ao coro dos que arrasam a TAP, pedindo o seu encerramento e condenando à miséria uns milhares de trabalhadores. Já para não falar nas perdas para o próprio país.

    Eu só defendi exactamente o contrário. Ou seja, a manutenção dos empregos e do serviço ao país. Visto daqui, o árbitro que pretende dominar e alterar vidas alheias, não pareço ser eu. Estou certo que ainda chegaremos aos judeus escravizados por Cleópatra e ao momento em que o camarada Moisés abriu o Mar Vermelho (ou foi só no filme?), para justificar a entrega da TAP ao grupo da Iberia.    

    Agrada-me ainda assim, em toda esta conversa, perceber que o Luís conseguiu pedir a venda da TAP e a substituição dos seus serviços pelo misterioso “mercado”, com o mesmo número de argumentos que o Ventura usou para defender o padre amigo. Bola, como diria o poeta da Reboleira.

    O resto, fica para um jantar… Pago pelo meu amigo empreendedor.

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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