Autor: Tiago Franco

  • Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)

    Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)


    Em Outubro de 2017, à pergunta sobre os baixos salários na Padaria Portuguesa, respondia Nuno Carvalho, um dos donos da empresa, o seguinte:

    Apresentamos um plano de integração e de formação, damos oportunidades de carreira – vários chefes de fábrica entraram como operários a ganhar 580 euros e recebem três vezes mais agora. Também temos uma série de regalias. Fazemos investimento a sério nas pessoas: uma vez por ano juntamos todos os trabalhadores num arraial de verão e fechamos as lojas mais cedo. Mensalmente, reunimos com as equipas de gestão de loja, de forma absolutamente informal, fazemos um piquenique no jardim da Estrela, onde ouvimos inputs sobre o negócio, até mesmo sobre políticas salariais. Cada vez que nasce um bebé, oferecemos um creme e um babygrow e escrevo um postal de aniversário personalizado a cada um dos trabalhadores. Temos estes cuidados. Somos muito informais e tratamos as pessoas como pessoas. Criamos um espírito de equipa que vale muito mais do que a remuneração base.

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    Esta resposta, só por si, explica a miséria laboral em que se tornou Portugal. Quase seis anos depois, nada mudou – e mais, até fez escola. Postais personalizados, espírito de equipa, cremes e piqueniques: tudo menos um salário digno e justo. O sucesso das empresas em Portugal – lembremo-nos que a Padaria Portuguesa era apontada como um caso de sucesso e de inovação – assenta essencialmente em foguetório e em baixos salários. Palavras-chave de motivação (ou keywords cheias de team spirit, como nos diria o amigo Nuno) que levem as pessoas a gostar e vestir uma camisola de quem as explora.

    O primeiro de Maio, Dia do Trabalhador (não do colaborador) é, ainda, um momento de luta que não devemos desperdiçar ou sequer ignorar. É o dia em que nos lembramos de quem perdeu a vida em nome dos direitos que hoje damos como garantidos. E é o dia em que, olhando em redor, percebemos o que falta fazer nas relações laborais. É um dia que deve ser de tomada de consciência colectiva perante o assalto a que a classe trabalhadora tem sido sujeita.

    A Função Pública perde poder de compra há mais de 10 anos e, no sector privado, recém-licenciados trabalham por autênticas esmolas. Há um sector da população que trabalha sem conseguir sair da pobreza, um conceito surreal num país de Primeiro Mundo, e outros que se limitam a produzir a troco de um salário que lhes permite somente pagar as contas.

    Isto não é viver – quando muito é sobreviver, é subsistir, é não desistir. É resignar-se.

    Portugal é hoje, visto de fora, como um sítio de mão de obra qualificada de baixo custo. Aliás, já um ministro dos Negócios Estrangeiros nos publicitou dessa forma, procurando atrair investimento numa visita oficial de Estado a um país rico.

    De cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo, lá aparece o presidente da CIP ou os CEOs dos grandes grupos com a habitual lengalenga: “o salário mínimo tem de ser indexado à produtividade”. Este é um mantra que se aplica a quem trabalha, a quem depende de um salário para viver. Não se aplica a gestores de topo ou a accionistas parasitas que recebem dividendos dê por onde der. Lembremo-nos do BES, há mais de uma década a receber dinheiro do Orçamento de Estado, e ainda há pouco tempo nas capas dos jornais pelos prémios fabulosos que repartia pelos seus administradores.

    O primeiro de Maio devia recordar à classe trabalhadora que ela é a maioria – que, sem ela, nada se faz, nada se transforma, nada se produz. Abusos como aqueles que vemos diariamente, com tentativas constantes de validar baixos salários, deveriam ser contestados nas ruas. Sempre que um liberal nos diz que as empresas é que geram emprego, alguém lhe devia gritar, com um megafone aos ouvidos, que os trabalhadores é que criam as empresas. Uma empresa sem trabalhadores chama-se prédio. Normalmente vazio. Produz, quando muito, pó.

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    Não é fácil perceber que, em Portugal, praticamente oferecemos a nossa força de trabalho. E isso é particularmente grave para quem tem nela, na força de trabalho, a única moeda de troca e o único garante de sustento. Há muito que ultrapassámos os padrões mínimos de dignidade e, por mais que tentem, não há justificação para tamanha precariedade e pobreza ao fim de 35 anos na União Europeia. Não há. São precisos vários Governos de uma incompetência atroz para que. hoje, trabalhar em Portugal seja um exercício de masoquismo.

    Reconheço não ser fácil perceber esta realidade quando nos comparamos com os nossos amigos, colegas, familiares. Todos na mesma cidade, todos mais ou menos dentro do mesmo sistema capitalista de exploração e lucro à custa dos baixos salários. É preciso sair da zona de conforto, ver outras realidades e perceber que é possível gerar riqueza e distribuí-la por patrões, funcionários e Estado de uma forma mais equilibrada. É possível trabalhar e viver bem. A classe média devia ser o nosso ponto de partida, não o objectivo final.

    A pressão para o aumento do salário mínimo destes últimos anos é uma alavanca essencial para a defesa dos trabalhadores. Se quem investe não percebe que, a longo prazo, o modelo das baixas remunerações tem os dias contados – porque o capital procura sempre um povo ainda mais pobre –, então é o Estado que deve meter essas barreiras. Em vez de aumentar impostos, deve, isso sim, criar as condições para que o salário mínimo permita uma vida digna. Coisa que hoje, apesar do esforço de alguns partidos de esquerda, ainda não existe.

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    O trabalho é a nossa contribuição para o Mundo. Seja qual for, onde for, mais ou menos elaborado, todos somos necessários. Não existem profissões menores ou trabalhadores dispensáveis. Aquilo que existe, e muito, é uma falta de consciência da classe trabalhadora. Do seu poder, da sua importância, da sua força.

    Com um mundo em transformação, depois do ataque aos direitos básicos durante a pandemia e, agora, a continuação da perda de direitos laborais e capacidade de poder de compra, nunca a união entre trabalhadores foi tão necessária.

    Tenhamos consciência colectiva e ninguém, absolutamente ninguém, nos poderá vencer nesta guerra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A visita de Luiz Inácio

    A visita de Luiz Inácio


    A visita de Lula da Silva a Portugal tem provocado um autêntico “fuzuê” na vida pública deste pacato cantinho à beira-mar plantado. Tenho visto a novela com o mesmo encanto com que acompanhava as aventuras do Roque Santeiro. Sim, eu sou desse tempo.

    A primeira nota de destaque foi o aproveitamento que os partidos de direita e extrema-direita fizeram. A Iniciativa Liberal veio a terreno criticar as declarações de Lula sobre a Ucrânia e o Chega montou um circo, digno de se ver, com a presença de Lula nas comemorações do 25 de Abril.

    Lula da Silva veio a Portugal tratar de negócios, fechar acordos, parcerias, trocas comerciais. Como qualquer presidente que visita outro país, o objectivo é fechar acordos. Fê-lo na China, nos Estados Unidos e agora, à nossa micro-escala, fá-lo-á em Portugal.

    Hoje, por exemplo, ia de manhã, de avião para o Porto para umas negociatas em Matosinhos. De tarde, regressa no mesmo avião ao aeroporto militar de Figo Maduro, a tempo de entregar o prémio Camões ao Chico que importa. Amanhã, imagino, vai discutir problemas ambientais e como reduzir as emissões de carbono, que não as dele.

    Ao chegar, Lula falou sobre a Ucrânia e disse o óbvio: é preciso sentar e conversar para negociar um plano de paz.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    Compreendo a intenção do presidente brasileiro ao tentar meter o país irmão novamente na agenda internacional, depois do buraco de isolamento onde Bolsonaro o tinha deixado. Mais uma vez, está a tratar da vida e dos interesses económicos, como qualquer presidente faz.

    A novidade, para mim, é ver o coro de virgens ofendidas do lado da Iniciativa Liberal com as declarações de Lula. Segundo eles, quem faz o apelo à paz com cedências territoriais está a premiar o invasor e, como outras vozes já o defenderam, só se podem sentar à mesa quando os russos saírem do país e largarem os territórios ocupados.

    Ora, não querendo ser eu o portador das más notícias, se os russos fizessem isso, já não era preciso ir para a mesa porque não haveria muito para negociar. Não sei se me faço entender.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    E isto é particularmente aborrecido de ouvir dos lados da Iniciativa Liberal porque, habitualmente, definem-se como uns tipos práticos, conhecedores da realidade, dos mercados e do mundo que nos rodeia. Mas depois ficam ali, presos em ideologias que não têm e moral de café, quando o pragmatismo lhes bate à porta.

    Desde logo, esta narrativa da guerra que começou em 2022 já está mais do que desfeita. Já todos sabemos que a Rússia invadiu a Ucrânia depois de oito anos de conflitos e escaramuças com russófonos. Isto não muda o nome do invasor mas, pelo menos, centra o debate onde ele deve estar.

    Depois, chegados aqui, não entendo como é que líderes partidários continuam a falar em soluções impossíveis como se tivessem qualquer aplicação prática.

    yellow and blue umbrella under white sky

    A solução ideal, defendida por Rui Faria, é uma utopia: é os russos arrumarem a trouxa, irem para casa e depois sim, sentarem-se à mesa a ouvir que indemnizações vão pagar.

    Não sei se Rui Faria sabe, mas não existem impérios do bem ou do mal. Existem impérios. E, tal como nas outras invasões de que ninguém quer saber, os russos não vão sair dali com as mãos a abanar. Existem portanto duas opções: 1) sentar a uma mesa a discutir que parte de território a Ucrânia vai perder; 2) invadir a Rússia com o exército da NATO.

    Lula defende a primeira. A Iniciativa Liberal diz que isso é uma vergonha e, como proposta, sugere uma que não existe. No fundo é apenas uma continuação do respectivo programa eleitoral.

    Aquilo que ainda espero, de todos os que querem a continuação da guerra por tempo indeterminado, é como a pensam pagar e, principalmente, que rapaziada é que estão dispostos a perder? 

    O tempo para a conversa do “não premiar o invasor” está esgotada. Até porque, habitualmente, é isso que acontece com invasores mais fortes, habitualmente com o apoio do chamado Ocidente.

    Podem olhar para cinco continentes e encontram povos oprimidos e com terra roubada, sem que a comunidade internacional perca o sono por isso. Esta hipocrisia da realidade alternativa já enjoa.  

    Já o Chega aproveitou a ida de Lula à Assembleia da República para encher autocarros e trazer pessoal para uma manifestação “anti-ladrão”.

    Já tinham feito uns vídeos bem catitas no TikTok a insultar o presidente brasileiro e, como é óbvio, para um partido que defende o Estado Novo e abomina o 25 de Abril, nada melhor do que criar um momento de populismo que renda mais uns votos e visibilidade, numa altura em que se devia celebrar a libertação da ditadura. Ou como eles lhe chamam lá no Chega, os Glory Days.

    É todo um modus operandi que já não apanha ninguém despercebido e promete animar a agenda de Lula.

    Mas há mais. Há directos atrás de directos à porta do hotel Tivoli e largos minutos a encher chouriços na esperança de ver a comitiva a passar cinco segundos no direto a caminho dos Mercedes que ali ficaram estacionados, na rua bloqueada para o efeito.

    Muito bem, a diplomacia brasileira a conseguir estacionar 10 carros na Avenida da Liberdade, todos juntos, de borla e sem que a EMEL os consiga bloquear.

    Mas Portugal não seria Portugal se não levasse a não-notícia ao extremo. Assim, no Domingo de folga, algum assessor disse que Lula iria visitar a Nazaré. Pela-se por ondas gigantes e arroz de marisco, dizem fontes próximas do local. As televisões correm para lá mas Lula não aparece.

    Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

    O edil local disse que mandou o número de telefone para a comitiva, caso quisessem ajuda para visitar o farol. Há desilusão porque Lula, afinal, fica a dormir no Tivoli e a rever os episódios do Succession no HBO.

    Mas as TVs não desarmam, há uma peça para encher e material para enviar para as redacções. Entrevistam nazarenas que mostram bancas recheadas de coisas que tinham para vender a Lula. Uma delas diz, com uma voz marota, que tinha um bolo do amor para vender ao septuagenário presidente que o deixaria a fazer amor, toda a noite, como na canção do Toy.

    Lula não sabe o que perdeu. Portugal é, ainda e sempre, uma pequena aldeia sem protocolo diplomático. Valha-nos isso.

    E já agora, sê bem-vindo, Luiz Inácio.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas

    Uma comissão de inquérito à Republica das Bananas


    A comissão parlamentar de inquérito à TAP ainda vai no seu início e já parece a História, em três volumes, de uma República das Bananas. Uma pessoa ouve aquilo e pensa como é possível tamanho deboche e destruição de património público. Sim, a TAP é património público e, ao contrário do palco no Trancão, património daquele que interessa.

    Sem grande surpresa, PS e PSD estão naquela comissão em missão de passa-culpa. Nenhum tem grande interesse em tornar a TAP um caso feliz de gestão. Apenas tentam esconder as suas irresponsabilidades, culpando o companheiro do centrão.

    Nesse aspecto, devo dar os 12 pontos, à la festival da canção, ao PS, por convidar a CEO da TAP para uma reunião na véspera do dia em que seria ouvida. Reunião essa onde estava o deputado que, por sua vez, na comissão de inquérito do dia seguinte, a questionou.

    Christine Ourmières-Widener assumiu que descobriu ter sido demitida pela comunicação social e, provavelmente, compreenderemos daqui a uns tempos que a indemnização a pagar-lhe ainda será maior. Mais uma trapalhada do governo de António Costa na sequência de um sem número de confusões na transportadora aérea nacional.

    Também percebemos que a indemnização de Alexandra Reis contém ilegalidades que a CEO da TAP não sabia, e, segundo ela, se limitou a confiar nos advogados do processo. Há ainda a história mal contada do escritório de advogados que deu apoio, pertença do irmão de Marcelo Rebelo de Sousa.

    Há o episódio de Alexandra Reis que disse, entre outras coisas, que proibiu qualquer negócio entre a TAP e a empresa do marido de Christine Ourmiéres-Widener. Ficou no ar uma zanga de comadres, mas ainda não consegui perceber o convite para secretária de Estado. A simpática da Christine também não sabia de nada.

    Christine Ourmières-Widener

    Já sabíamos das indemnizações de 500.000 euros aprovadas por sms e ligeirezas do género.  Alexandra alega que já tentou saber quanto é que deve devolver, mas, ao que parece, ninguém lhe responde. Só a mim é que a EDP não perdoa três euros que sejam. 

    Pelo que percebi ainda estão mais 50 pessoas em fila para serem ouvidas e, portanto, esta novela promete, mas cheira-me que no último episódio tivemos o que será um dos momentos best of.

    Um alegado pedido da Presidência da República chegou à TAP, para que o horário do voo entre Maputo e Lisboa fosse alterado, de forma a facilitar a vida de um passageiro. Ignorando, lá está, os restantes 200 e tal ocupantes do A330 que voava para a capital portuguesa.

    Há até um e-mail de um secretário de Estado a pedir que a TAP desenrasque a coisa para o Governo continuar a agradar ao seu aliado de Belém. O mail tinha um smile, mas faltou-lhe um gratidão. O secretário de Estado entretanto despediu-se e voltará daqui a uns meses para outro tacho qualquer.

    Espero, ardentemente, que o Marcelo comentador, sempre disponível para opinar sobre tudo, não se cale por muito mais tempo.

    Liberais gritam que “é por isto que a TAP não pode ser pública”, acrescentando que “este dinheiro podia ser aplicado em hospitais e escolas”, as tais que eles não defendem. Há todo um campo fértil para a a direita mais ou menos populista aproveitar. Mas é um facto que a TAP serve de bode expiatório para o pior que a administração portuguesa tem. Corrupção, encosto de boys do centrão, jogos de interesses, má gestão de dinheiro público.

    Alexandra Reis

    No fundo, o mesmo que acontece em qualquer uma daquelas empresas parasitas que vivem no erário público, câmaras municipais, institutos públicos e todos os sítios financiados pelo Orçamento do Estado. Só que são mais pequenos, mais anónimos. Mas o princípio é o mesmo: desvio de dinheiro público, desonestidade, corrupção.

    Está-nos no sangue, e é uma das razões basilares do nosso atraso. Ainda não percebemos que ao roubar o que é de todos, também roubamos a nós e aos nossos filhos.

    Com a TAP tudo se amplia; é grande demais para passar despercebida. Não é um cambalacho do Valentim em Gondomar ou da Felgueiras em Felgueiras. É uma das maiores exportadoras nacionais, decisiva para o PIB. Se a TAP espirra, a Economia constipa-se.

    Esta é parte da realidade. A bandalheira da gestão pública (ou privada com dinheiros públicos, tanto dá para o caso) e o desbaratar de capital que vem dos impostos.

    A outra é o arrastar para a lama um nome que a todos nos orgulhava e que há mais de 75 anos liga Portugal, um país pequeno, pobre e periférico, ao mundo. A TAP são os milhares de trabalhadores que se esfolam lá todos os dias a ouvir gritos em terra ou a desviar de tempestades no ar.

    Não são as Cristines, as Alexandras ou todos os boys que a usam como uma linha no CV para chegar ao tacho seguinte.

    Meia dúzia de inúteis e incompetentes, com uma vida profissional ligada ao cartão partidário, vão destruir uma das bandeiras de Portugal, e pior, meter em risco milhares de empregos. 

    Hoje, quando todos desancam na TAP, falam dela como se a companhia fosse estas tristes figuras que aparecem em frente à comissão de inquérito. Não são. Era bom que não os confundissem.

    Daqui a uns meses ou anos, a TAP será vendida. Todos os que agora arrastam o seu nome na lama, virão fazer grandes análises para os jornais para que se perceba como foi vendida ao desbarato.

    Aquela comissão parlamentar não investiga a TAP. A TAP são os trabalhadores que lá andam há décadas a reparar motores, embarcar pessoal, mudar reservas ou a aterrar com ventos cruzados. Trabalhadores que já viram muitos ministros, secretários de Estado ou presidentes. 

    Aquilo que verdadeiramente se discute naquela triste comissão é o grau zero da política portuguesa, a escandalosa má gestão de dinheiro público e a República das Bananas que, assumidamente, não conseguimos deixar de ser.

    Entreguem a TAP aos trabalhadores, e deixem quem sabe tomar conta da companhia. Pior não fica.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Maria Botelho Moniz e Lord Voldemort

    Maria Botelho Moniz e Lord Voldemort


    Nos dias que correm, leia-se, das redes sociais, a melhor forma de receber atenção é dizer alarvidades. Quanto mais aberrante, repleta de ódio e ofensiva for a mensagem, maior atenção recebe o seu autor.

    É uma estratégia utilizada, por exemplo, por André Ventura há alguns anos – e com o conhecido sucesso que os votos demonstram. Aquilo a que muitos chamam “dizer as verdades”, ou “dizer o que os outros pensam”, é geralmente uma simples demonstração de ódio, falta de educação e pouquíssima noção do que deve ser a vida em sociedade.

    Alexandre Pais, um antigo jornalista de quem nunca tinha ouvido falar, veio desde anteontem para a ribalta com uma crónica absolutamente lamentável sobre Maria Botelho Moniz, uma apresentadora da TVI, de quem também nunca tinha ouvido falar.

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    É relativamente indiferente o meu conhecimento de ambos para esta crónica nem isso os diminuiu. Depois de tentar perceber quem eram as personagens, entendi que a falha do desconhecimento era obviamente minha. Alexandre Pais é agora um ex-jornalista bem velhinho, que já andou a virar frangos nas redacções há muitos anos. Passou pelo 24 Horas, Record, Sábado e Correio da Manhã, o que explica o meu desconhecimento, uma vez que opto sempre pela Renova, quando compro papel higiénico.

    Maria Botelho Moniz apresenta os programas que a minha avó vê – e, por aí, eu de facto deveria saber quem ela era.

    O texto dedicado por Alexandre Pais a Maria Botelho Moniz resume-se a esta frase: és gorda e não devias aparecer na televisão.

    Ele lá acrescentou uns parágrafos – para aquilo não parecer um tweet – mas a ideia era dizer que lhe custava ver tal personagem na tela mágica. Perguntar-me-ão que interesse há em tal texto? Pior, o que me leva a comentar um texto que não tem qualquer interesse? Seriam questões legítimas, com efeito.

    Alexandre Pais, ex-jornalista e colunista do Correio da Manhã.

    No meu caso é a confiança do Alexandre. Temos um velhinho, com uma careca bem polida, umas orelhas todas pontiagudas e uma pele ressequida a escorrer pelo queixo, a fazer lembrar o Voldemort, e que acorda um dia e pensa: “epá, incomoda-me ver aquela gaja na televisão… já tenho crónica”.

    Já agora, convém também dizer que não sabia quem era o Lord Voldemort até o meu filho me obrigar a papar os 300 filmes do Harry Potter. Agora percebi que não era o Ralph Fiennes maquilhado que lá aparecia no castelo de Hogwarts, era sim o Alexandre, que terá sido descoberto pela J.K.Rowling numas férias no Algarve. Aposto que se conheceram na Kadoc, ali para os lados de Boliqueime.

    Bem sei que o escrito era para o Correio da Manhã, mas, mesmo assim, não teria sido de básica sensatez o Alexandre olhar para um espelho antes de se meter a fazer crónicas de beleza?

    Diz ele que não tem ódio e que só diz o que vê. Ele, o Alexandre, que também fazia televisão (ou parecido, já que era na CMTV) e que a todos nos presentava com aquelas feições estonteantes. Que confiança!, que altivez a do velhote!

    Não contente, ainda falou nas peles caídas dos braços da Cristina Ferreira. Que rei! Lord Voldemort a dizer que a Cristina Ferreira tem de trabalhar mais os tríceps. Carlos Castro rebola no túmulo com estas crónicas do cor-de-rosa.

    O meu problema não é apenas por um estafermo ser pago para irradiar ódio enquanto insulta a beleza física dos demais. Aquilo que mais me choca é como um diretor de jornal permite a publicação de tal pedaço de estrume. Repito: mesmo para o Correio da Manhã, deveriam existir mínimos olímpicos.

    Alexandre Pais saiu da gruta com o alvo habitual e mais fácil: as mulheres no espaço público. Reparem que ninguém exige a um apresentador homem que seja mais agradável à vista no ecrã. Ninguém pede a Marques Mendes que chegue com os pés ao chão quando se senta ao lado de Clara de Sousa. Ninguém pedia a Fernando Mendes que desviasse a barriga para vermos o Preço Certo. Ninguém proíbe o Costa de falar aos jornalistas até limpar o tártaro dos dentes. A ninguém incomodava o olho preguiçoso do Medina Carreira. E, que me lembre, ainda não cancelaram o Mira Amaral que ao fim de 30 segundos a falar encher os cantos da boca de espuma. Isto já para não falar do exército de carecas com aqueles restos de cabelo cheios de sebo que pululam em todos os canais.

    Maria Botelho Moniz, apresentadora da TVI.

    Já com as mulheres, enfim, convém que sejam todas em formato de viola e com peles bem esticadas. Ao estilo de Catarina Furtado ou Sónia Araújo, como o bom do Alexandre referiu. Repare-se que é um homem que critica, mas apresenta logo a solução. “Mónica, tenta ser igual à Catarina para meu deleite pessoal”.

    Que homens destes tenham espaço público para opinarem atrocidades do século XIV, aborrece-me no Portugal de 2023. Ver a mulher como um objecto que, ao contrário de homens na mesma função, não estão lá para informar, ler notícias ou liderar programas de entretenimento.

    Aparecem na televisão apenas para que idosos de cabeça bem polida, já sem funções vitais operacionais no baixo-ventre, tentem sentir aquele calafrio da esperança no movimento, enquanto fazem zap nos canais nacionais.

    Não penses mais nisso, Alexandre. Há peles que a partir de certa idade, por mais Catarinas e Sónias que vão aparecendo na TV, já não vão mesmo ao sítio.

    Ah, e espero não ter ofendido o Alexandre com as minhas descrições físicas do sujeito. Tal como ele, também só relato o que vi.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O show do Pastor Ventura com o sangue afegão

    O show do Pastor Ventura com o sangue afegão


    Quando soube da morte de duas pessoas às mãos de um agressor armado com uma faca, em plena luz do dia em Lisboa, fiquei chocado. Não é, infelizmente, o tipo de notícia rara nos dias que correm, mas não costuma ter a capital portuguesa como local da ocorrência.

    Daqui da Suécia, desconhecia totalmente o Centro Ismaili, ou a sua comunidade, e, como tal, escuso-me a engrossar o rol de pessoas que elogiaram a sua accão na integração de emigrantes. Estou certo que fazem um trabalho louvável, e não será esse o objecto deste texto.

    person hands with black liquids

    Parto da tragédia como ponto de análise. Duas pessoas foram assaltadas no seu local de trabalho e assassinadas. Há várias questões que a partir desse momento são importantes para o debate. Tudo isso passou para segundo plano assim que se soube a identidade do autor do crime: afegão. 

    Pessoalmente, comecei a fazer contas aos minutos que faltariam para a primeira intervenção de André Ventura. Como é óbvio, ele não desiludiu. Um afegão em Lisboa envolvido num crime é tudo o que a extrema-direita precisa para começar a cavalgar a onda do populismo.

    Contudo, não estiveram sozinhos na empreitada. Vi um ex-inspector da PJ que à pergunta “por onde deve começar a investigação”, começou por responder que “os políticos abrem as fronteiras e vendem o sonho do El Dorado europeu”. 

    O ódio e o xenofobia começam a ser sentimentos normais, até corriqueiros, nesta Europa que vai levantando muros todos os dias.

    A quantidade de disparates, de incitação ao mais básico racismo e de falta de sensibilidade foi de tal forma grande nas horas seguintes ao crime que, no fim, acabámos por não perceber o que interessava (as razões daquele crime) e cedemos o palco a demagogos que vivem da exaltação da raiva.

    A meio do dia vi que tinham convidado Ventura para um debate numa televisão. Quem é que tinha alguma dúvida do discurso que aquele energúmeno ia debitar? E que mais-valia é que podia trazer à conversa, para lá de pedir votos em cima do sangue derramado? 

    Foi quase penoso de ouvir. Mas, aposto, foi eficaz como faca quente em manteiga; aquele discurso de ódio cativou mais uns votos.

    Entre os argumentos mais idiotas está o de acolher gente que foge de guerras ou de países árabes. A primeira pressupõe que, se chegam de zonas de conflito, estão todos malucos e de faca nos dentes. O padre que acompanha o Ventura e lhe dá a mão, provavelmente, ainda não teve tempo de lhe explicar que é exactamente pela guerra que precisaram de fugir. Se a NATO ou as potências vigentes pararem de lhes bombardear o quintal, pode ser que não precisem de vir para o “El Dorado europeu”. É questão de, no confessionário, o André abrir os olhos enquanto lhe fazem o desenho.

    O outro soundbite forte é que “não é a mesma coisa receber um brasileiro ou um paquistanês”. Esta conversa faz-me lembrar as gritarias dos ciganos e do RSI e, quando se foi ver, os beneficiários daquela fortuna de 100 euros eram uma gota no oceano. Ora, com os “emigrantes que não são de bem”, a conversa é a mesma. Portugal tinha uma quota de 10 mil lugares para refugiados e acolheu pouco mais de mil.

    group of children standing on grass field during daytime

    Ou seja, por mais que o Ventura grite, a realidade é que nem a fugir de rajadas de metralhadora os refugiados escolhem Portugal como destino. Mesmo assim, os poucos que cá vêm parar têm que levar com as bandeiras do Chega e ser usados como bode expiatório. Todos os dias há assaltos de “emigrantes de bem”. Todos os dias há problemas com portugueses. Mas se um crime é levado a cabo por um afegão, está a generalização feita a sírios, paquistaneses, iraquianos e aos outros afegãos todos. 

    Aquele energúmeno – julgo que é um nome aceitável para o desempenho – até chegou a dizer que o PS e PSD tinham votado a favor da lei que tinha permitido que este homem, depois de ver a mulher morrer num campo de refugiados da Grécia, tivesse conseguido chegar a Portugal com os três filhos menores. 

    Como o país está a envelhecer – julgo que essa estatística André Ventura saberá –, ainda se deu ao luxo de dizer que devemos acolher emigrantes mas apenas alguns: os que vêm trabalhar e contribuir para o país, não os que fogem de zonas de guerra. É um conceito engraçado, porque, se a memória não me falha, os louros que fugiram da Ucrânia vinham contribuir; já os que fugiram dos Talibã, nem tanto. Mas é curioso que nos tempos do PSD, o mesmo André defendia que devíamos receber os refugiados sírios.

    É uma solidariedade à la carte, ao sabor do vento das redes sociais e sempre, mas sempre, ao encontro do que pode trazer mais uns votos.

    group of people walking on pedestrian lane

    Ventura diz, como diz sempre a cada desgraça, que o Governo tem sangue nas mãos, porque permitiu que este homem entrasse no país. Mais lógico seria afirmar que ele, por cada discurso de incentivo ao ódio, fica com as mãos ensaguentadas de cada vez que um crime racial acontece. E esses, ao contrário do ataque no Centro Ismaili, não são tão raros nos tempos que correm.

    Alguém me explicará como é que um partido sem ideologia ou ideias próprias, para lá do racismo e do ódio, chegou um dia a terceira força política de um país de emigrantes, como é o caso de Portugal.

    E como é que, num dia de absoluto drama e sofrimento para as famílias envolvidas, o homem mais citado, visto e ouvido é o Pastor Ventura?

    Trilhamos caminhos perigosos. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano

    Um russo e um chinês entram num bar onde já estava um americano


    Ouvi, descansada e tranquilamente, a notícia de que Vladimir Putin tinha ordenado o transporte de umas quantas bombas nucleares e dez aviões para o território da Bielorrússia.

    Até despejei mais um bocado do Periquita Reserva que tinha ali ao lado, só para ver se não perdia o momento de descontracção.

    Isidro Morais Pereira foi o primeiro a deixar-me descansado porque, segundo ele, não havia aqui nada de novo. Desde logo, porque há muito que os russos têm ogivas nucleares em Kaliningrado, ali mesmo nas barbas da NATO e, nem por isso, o mundo parou. Muito bem.

    yellow and black road sign

    Juntamente com o seu companheiro de painel, Armando Marques Guedes, garantiu-me, novamente, que a Rússia estava cada vez mais isolada, que tinha cada vez mais mortos e menos material de combate.

    Todo este discurso de Putin é apenas uma gigantesca manobra de propaganda com o bom do Armando, um divertido especialista em relações internacionais, a garantir que Xi Jinping já tinha dito ao Vladimir que bombas atómicas, nem pensar.

    Depois de Nuno Rogeiro, que falava com Zelensky por interposta pessoa, temos agora o Armando, que comunica com o Xi por pombo-correio.

    O momento alto da noite ficou guardado para a citação de Biden que, nas palavras do Armando disse: “if you’re thinking about using nuclear weaponsDON’T“. (Se está a pensar em usar armas nucleares… Não o faça.)

    Parou para respirar e acrescentou: “e, depois, o Biden reforçou… DON’T… e voltou a dizer, pela terceira vez… DON’T!! Ora… isto é que é uma ameaça a sério!”

    depth of field photography of man playing chess

    De modo que enchi mais um bocadinho o copo e fiquei a pensar. Mexer bombas e aviões de um lado para o outro, enfim, é propaganda. Já dizer três vezes “don’t” é que é para um gajo se encolher todo.

    O meu problema com estes filósofos, é que há um ano que me andam a vender que os russos andam descalços e isolados e, quando damos por ela, por lá continuam a morrer e a matar, com os chineses pelo braço e nós, na nossa retórica idiota, a pagar tudo com dinheiro que não temos e a comprar combustível indiano feito com petróleo russo.

    A quantidade de países que se une ao eixo China-Rússia é bem maior do que o “mundo ocidental”. Até os sauditas começam a mudar de lado, mas nós, de Madrid a Varsóvia, continuamos a vender a fábula da Rússia isolada. Faz-me lembrar a história de um amigo que não gostava da cidade do Porto, mas nunca tinha saído de Lisboa.

    Como a alucinação ainda não tinha atingido o clímax, eis que aparece Helena Ferro Gouveia dizendo que, para já, não havia sinais visíveis de qualquer movimentação de bombas portanto, estaríamos no reino da bazófia de Putin.

    red blue and yellow ceramic figurine

    Longe de mim duvidar da Helena, mas talvez o prazo dado (até Julho) seja uma das razões para não verem, nos satélites, bombas a mexer três dias depois do anúncio. Mas é só uma ideia.

    Entra a discussão sobre o tipo de armas nucleares, e aqui é que fico mesmo anestesiado. São tácticas, segundo a Helena, não têm grande perigo de radioactividade. Tenho a sensação de a ter ouvido falar em exames de raio-x como termo de comparação mas posso estar enganado.

    Nesta altura, só queria encontrar a garrafa o mais depressa possível e, admito, desviei um pouco a minha atenção. Pelo que percebi, uma arma nuclear táctica pode ter entre 1 a 100 quilotons, sendo que cada quiloton corresponde a 1000 toneladas de dinamite.

    A bomba de Hiroshima, por exemplo, tinha 15 quilotons. Portanto, estas armas nucleares tácticas que os russos ameaçam entregar à Bielorrússia têm capacidade para matar muita gente na explosão, mas poucos de cancro.

    Caution text overlay

    Era essa a mensagem da Helena. Sim, de facto podem morrer mais umas pazadas de ucranianos num espaço de minutos mas, atenção ao lado positivo, poucos vão ao pé coxinho para o instituto de oncologia de Kiev.

    Ainda ouvi alguém explicar – já não me lembro quem porque por essa altura nem a garrafa via – que o que os russos fazem agora é algo que os americanos já fizeram há muito, quando distribuíram 150 ogivas por seis países europeus: Bélgica, Holanda, Itália, Turquia e outros dois que não me lembro.

    E, sendo assim, tudo bem. De bluff em bluff, as ogivas vão passeando e arejando as ideias.

    Durante as últimas duas décadas, os americanos controlaram o mundo a seu belo prazer e agora, russos e chineses também querem uma fatia do bolo. Se pensarmos na história recente, do Afeganistão à Síria, do Iraque à Líbia, não há uma grande vantagem em ter uma única superpotência a decidir o destino da humanidade.

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    Não sendo possível o ideal – ou seja, povos que se preocupam com o seu quintal sem quererem dominar os vizinhos –, é pelo menos preferível ter poder e contrapoder de forma a que a balança se vá ajustando.

    É pena que este novo estabelecimento das superpotências seja feito à custa do sangue dos mais pobres. Sejam eles ucranianos ou russos. Não passam de peões num jogo muito maior onde, até ver, apenas americanos e chineses poderão sair a ganhar.

    Por mais que nos tentem vender, há um ano, que um dos lados está de joelhos, a realidade diz-nos que não é assim. Chegámos a um beco sem saída, nem Putin nem Zelensky têm condições para sair desta situação com uma vitória clara nas mãos (sem que a NATO ponha as botas no terreno) e o sacrifício dos anónimos segue a um ritmo diário.

    Agora, dizem-nos que esta escalada, óbvia, no conflito, não é um risco mas sim propaganda.

    Propaganda? Acreditemos, pois.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada

    Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada


    O meu camarada Luís Gomes não ficou contente com a resposta ao artigo sobre a TAP, e resolveu voltar à carga. Desta vez, esgotados os argumentos sobre o debate inicial (privatizar ou não, era essa a discussão), resolveu alargar o espectro da conversa para as ideologias políticas pincelado com alguma filosofia da evolução dos povos. Pelo meio, ainda me brindou com os meus sonhos de poder que, até aqui, eu próprio desconhecia.

    Não sei se o Luís aprecia futebol, e se estava lá no dia em que Carlos Queiróz substituiu o Paulo Torres e deixou a ala direita para o Paneira fazer miséria, naquela noite gloriosa dos 6-3. Um erro do qual Queiróz nunca recuperou, diga-se.

    green tennis balls on tennis court

    Ora, o meu companheiro de jornal fez algo parecido. Deixou o flanco aberto que agora, com a educação possível, tratarei de usar e abusar.

    O Luís desiste de falar na TAP ao fim de um parágrafo sem responder às questões básicas da contenda. Importações e exportações. Empregos. Fornecedores nacionais. Rotas com a diáspora que ninguém quer. Era nesta piscina que devíamos nadar, e o Luís, como qualquer bom amante dos mercados, explicar-nos-ia como é que a coisa se fazia com as Ryanairs que chantageiam por subsídios dos Governos europeus.

    Em vez disto, o Luís opta por encetar um papiro de discurso clássico “Paulo Portas do tempo das feiras”. O título é auto-explicativo, mas eu dou uma achega. Quando Paulo Portas sonhava ser qualquer coisa mais do que o presidente de um partido de betos anafados (julgo que “anafado” ainda se pode dizer sem ofender todEs), corria todas as feiras do país com um boné de pastor. Por lá, entre peixeiras e as sessões da Assembleia da República, gritava aos microfones que o dinheiro público mal gasto em sítio X seria magnificamente aplicado no sítio Y.

    Normalmente o sítio X era um elefante branco qualquer e Y, quase sempre, uma velhinha chamada D. Maria que precisava de ajuda para caiar umas paredes e substituir umas telhas para não dormir com pingos na testa.

    white, red, and green airliner

    Gosto muito da palavra “caiar”, desde que o meu bisavô, o primeiro empreendedor da família, fazia esse pó branco menos lucrativo do que o outro e alimentava a minha avó com as receitas da labuta. Eu não estava lá, mas contaram-me.

    O Luís ao sacar de um “clássico Portas” nos seus tempos da lavoura (que saudades desses concertos de pandeireta no Bolhão), cai obviamente na mesma esparrela. Depois de convencer meio-mundo que ele, o Portas mais fraquinho, gostava de contas certinhas, chegou ao Governo e foi o que se viu. Alô Tridente….estás à escuta? De repente, as donas Marias esvaneceram-se nas brumas das sardinhas bem fresquinhas, e o Paulo, o amigo Paulo, desatou a comprar submarinos e a tirar fotocópias em barda.

    O X do Luís é a TAP e o Y as empresas e os empresários onde ele, como se compreende, está incluído. Portanto, estamos aqui numa embirração que nos leva a concluir que, sem a TAP, o Luís poderia ter mais alguns benefícios fiscais. Compreendo, pois, que esteja contra este aborrecimento de se tentar salvar uma das companhias que mais cria riqueza em Portugal. Mas isto ainda piora, Luís. Mesmo que a TAP não existisse e usássemos todos a Carris para chegar a Madrid ou a Transtejo para Boston, mesmo assim o dinheiro não iria para aliviar a tua carga fiscal e de restantes amigos do Lions Club.

    Com elevado grau de certeza, o dinheiro iria para a banca, para mais umas Tecnoformas, uma ou outra PPP, vários secretários de Estado, algumas adjudicações a empresas de amigos numa autarquia qualquer perto de Gaia, em palcos papais… enfim, em tudo e um par de botas. Mas não chegaria ao alívio fiscal. Nem às creches ou ao aumento do salário mínimo. Muito menos ao SNS. 

    close-up photo of assorted coins

    Portanto, Luís, seria gasto na mesma, perdido nas teias de interesse e de corrupção sem que o país beneficiasse com isso. Ora, por muito que isso custe a engolir, pelo menos com a TAP está a ser gasto em algo que serve o país e que traz riqueza. Espero que por esta altura do nosso debate – pelo menos esta parte – esteja apreendida.

    Há ainda a insistência na casca de banana do financiamento público ao longo dos anos. O Luís não se cansa de ser Queiroz, e obriga-me assim a novo cruzamento do Paneira para o Isaías.

    A União Europeia proibia a ajuda às companhias de bandeira. Ponto final. As excepções foram todas aprovadas. A última delas, repito, depois de dois anos de paragem, por causa da covid-19, e foi igual para todas: Lufthansa, SAS, Air France, British, ITA, e por aí fora.

    Todas com prejuízos, todas resgatadas, todas a voar hoje. Algumas low cost foram no vento dos mercados; as companhias de bandeira não. Espero que também não seja preciso explicar porquê. Uma coisa é serviço público, outra é vender bilhetes para andar no carrossel da feira da Cruz de Pau. Ao fim de 15 dias a feira vai para outra paróquia; já o serviço público fica enquanto… existir público. O primeiro é irrelevante; o segundo é essencial.

    gray and white airplane on flight near clear blue sky

    Isaías faz o segundo; agora de perna esquerda perante um Lemajic desprotegido 

    Este pedaço de prosa do Luís deixou-me a pensar:

    Em relação à ‘superioridade moral’ que exibe, em particular o “argumento de paga quem usa é o típico de quem defende uma sociedade não solidária”, ajuda-me a compreender o seu fascínio pela eugenista Suécia. Trata-se de um país protestante, cultura que deu origem a todas as ideologias totalitárias, como o socialismo, o comunismo, o fascismo e o nazismo. Julgo que o Tiago se encontra entre as duas primeiras.

    Agradeço, desde já, a oportunidade de ficar fora do restrito clube das suásticas: é gente com talento para a decoração de corpos na perspectiva do utilizador, e até com jeito para línguas, já que escrevem sempre em alemão, mas de facto não são bem a minha praia.

    Já o socialismo e o comunismo deixam-me algo na expectativa, porque dependem do interlocutor e das respectivas confusões. Pelo que vou lendo nas palavras do Luís, parece-me que ele será um dos que juram a pés juntos que Portugal vive num regime socialista e que Putin, esse comunista marafado, segue os ensinamentos de Lenine. De modo que fica sempre difícil meter pensamentos numa gaveta e catalogá-los.

    Mas posso tentar. Aquilo que eu defendo é relativamente simples de compreender, julgo eu. Acredito num modelo de sociedade em que todos têm o básico indispensável para uma vida com dignidade. Básico significa comida, um tecto e educação. Defendo que os impostos, progressivos, devem ser aplicados a favor dos contribuintes, começando na satisfação das necessidades básicas descritas anteriormente. Defendo Educação (verdadeiramente) universal como pilar da Economia e um sistema social que protege os mais carenciados, seja por doença ou por circunstâncias da vida que os levam a perder o rendimento vindo do trabalho.

    Estando isto garantido pelo erário público, sou aberto a discutir as prioridades seguintes. O nome da ideologia para isto deixo ao critério do Luís. A Suécia, que não me fascina particularmente, conseguiu colocar muitas destas coisas em funcionamento, pouco depois de saírem da miséria e de deixarem de comer batatas de manhã à noite. Não deve ser rocket science.

    Aquilo que eu não defendo, certamente, é aquela que me parece ser a ideologia do meu companheiro economista: uma espécie de selva do salve-se quem puder. Um mundo regulado por mercados que, acrescente-se, neste século parecem não conseguir acertar o passo. Um mundo onde nos cobram menos impostos e cada um cuida de si. Uma sociedade onde a perda do emprego representa o fim da vida. O liberalismo desenfreado como aquele que se pratica nos Estados Unidos, onde dezenas dormem nas mesmas ruas onde os executivos fazem o jogging matinal. Também vi, ninguém me contou. Tal como os fornos de cal do meu bisavô.

    person in red sweater holding babys hand

    Já que o Luís parece não ser fã dos liberais portugueses, e em cada linha que escreve transpira individualismo, arrisco que será esta a sua ideologia. Deixem-me ganhar dinheiro em paz que pagarei as minhas próprias idas ao hospital (da CUF). Os outros que se orientem. Criem unicórnios. Todos.

    A referência a ditaduras, como exemplos onde o bem comum se sobrepôs ao indivíduo, é um pau de dois bicos. Percebo que vem em todos os crachás dos liberais essa conversa da liberdade individual, mas, neste caso, é facílimo encontrar exemplos de sociedades pensadas para um todo onde a força individual está presente.

    Os nórdicos funcionam assim. São ensinados a pensar como um colectivo onde cada um é parte integrante. Isto significa que ninguém fica para trás, mas nem por isso se deixa de premiar o mérito e esforço individual. É ver quantas pequenas empresas são criadas, os impostos que são pagos, o peso do sector público (30% dos empregos) e a quantidade de multinacionais que este país deu ao Mundo. E tudo partindo de uma base colectiva.

    O mundo, ao contrário do que o Luís parece acreditar, não se divide no individualismo ou ditaduras fascistas. Há muito campo para explorar pelo meio.

    cars parked in front of building during daytime

    Quando o Luís me apelida de indivíduo dominante e árbitro de um bem maior com aspirações de poder, fico de facto baralhado. A nossa agradável discussão começou com o meu companheiro a juntar-se ao coro dos que arrasam a TAP, pedindo o seu encerramento e condenando à miséria uns milhares de trabalhadores. Já para não falar nas perdas para o próprio país.

    Eu só defendi exactamente o contrário. Ou seja, a manutenção dos empregos e do serviço ao país. Visto daqui, o árbitro que pretende dominar e alterar vidas alheias, não pareço ser eu. Estou certo que ainda chegaremos aos judeus escravizados por Cleópatra e ao momento em que o camarada Moisés abriu o Mar Vermelho (ou foi só no filme?), para justificar a entrega da TAP ao grupo da Iberia.    

    Agrada-me ainda assim, em toda esta conversa, perceber que o Luís conseguiu pedir a venda da TAP e a substituição dos seus serviços pelo misterioso “mercado”, com o mesmo número de argumentos que o Ventura usou para defender o padre amigo. Bola, como diria o poeta da Reboleira.

    O resto, fica para um jantar… Pago pelo meu amigo empreendedor.

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Democracia à francesa

    Democracia à francesa


    Sou um grande fã da forma como os franceses aplicam a democracia. Se lhes mexem nos direitos, vão para a rua partir tudo. Podem não ser grande coisa quando se metem em guerras para estragar o que é dos outros mas, nas ruas de Paris, ninguém parte material como eles.

    Se me perguntarem, acho que estão a prestar um favor à sociedade e, de certa forma, a dar uma lição de cidadania. Depois de Sarkozy ter passado a idade da reforma de 60 para 62, o bom do Emanuel quer repetir a graça até aos 64.

    Um sindicalista de origem portuguesa, radicado em terras de França, como a nossa Linda de Suza, dizia aos microfones da RTP que a lei que o governo francês tentava aprovar era um roubo declarado à classe trabalhadora. Segundo ele, bastaria aumentar os impostos em 1% às 60 maiores fortunas francesas para cobrir o rombo no fundo de pensões.

    people protesting

    Não tenho dados para confirmar a conta, mas não é muito difícil de acreditar, uma vez que o princípio é quase sempre o mesmo. Trabalhadores de base, como nós, têm que trabalhar cada vez mais anos para garantir reformas não particularmente altas.

    Trabalhadores de elite, por exemplo como Manuel Pinho, podem passar décadas a receber uns milhares livres de impostos, vindos de uma offshore qualquer e, quando chegam à idade da reforma, têm um valor acumulado de tal ordem que ninguém lhes diz até que idade precisam de trabalhar.

    Para os restantes, não funciona bem assim. Somos esmagados com cada vez mais impostos ou, como se diz por aqui na Suécia, “ninguém enriquece a trabalhar”. Depois de uma vida a cumprir um contrato social de descontos, esperando que no fim da caminhada nos seja devolvida uma percentagem do salário em forma de pensão, as regras são alteradas. O tempo de trabalho aumenta porque, é esta a justificação recorrente, a população está a envelhecer.

    Pergunto: a culpa disso é de quem trabalha? Os jovens que não conseguem sair de casa dos pais por causa dos salários miseráveis, são culpados de não terem mais umas centenas de euros para pagarem uma creche?

    a man holds his head while sitting on a sofa

    Bem sei que é nas ruas de Paris que o fogo arde agora mas, quando aqui há uns anos a função pública viu a idade da reforma passar para os 67 anos, o argumento foi exactamente o mesmo. Reparem, eu não digo que não seja factual. Percebo a matemática da coisa.

    Mas, se em vez de andarem sempre a aumentar os anos de trabalho para resolver o problema do excesso de velhos, começassem antes a apostar em políticas de incentivo à natalidade, não seria mais eficaz?

    A conversa liberal neste tema irrita-me profundamente, com o estafado argumento do mérito para não se ir buscar mais impostos aos milionários. Há sempre um esperto que aparece com aquela conversa que ninguém sabe se existiu entre o Otelo e o Olof Palme, a propósito de acabar com os ricos versus acabar com os pobres.

    Nada me move contra um milionário mas não entendo a vergonha ou a defesa da carga fiscal ao mesmo. Qual é o problema de taxar mais as grandes fortunas? Por acaso algum milionário criou fortuna sem o trabalho dos outros? Qual é o problema de devolver uma parte em obrigações sociais?

    a close up of a typewriter with a tax heaven sign on it

    Quem defende que não se toque nas grandes fortunas são aqueles que, por norma, andam lá perto e beneficiam com os esquemas. São os mesmos que defendem paraísos fiscais, gestão privada com investimento público ou aquela frase que me leva às lágrimas: “empresas é que criam riqueza e postos de trabalho”.

    Ao fim de 22 anos de trabalho, nunca vi um prédio vazio a criar seja o que for. É isso uma empresa. Um prédio vazio. Já quando o enchem de pessoas, de facto, aquilo começa a criar qualquer coisa.

    Toda a lógica deste sistema de elites é perfeitamente absurda e altamente penalizadora para a esmagadora maioria da população. Senão, vejamos. 

    Os trabalhadores são afogados em impostos e obrigados a pagar os excessos das elites. Seja na forma de resgate à banca, depois destes jogarem no casino com os depósitos, seja, por exemplo, nos lucros da Amazon, depois dos governos nos obrigarem a estar dois anos em casa e a encomendar vidas online. 

    people working on building during daytime

    O mesmo sistema que permite isto, compete entre si, de país para país, para que as empresas paguem os mínimos impostos possíveis (Irlanda e Holanda na Europa, por exemplo, onde estão as empresas do PSI20).

    Há sempre uma forma de aumentar os lucros através de engenharias fiscais, passando por paraísos totalmente legais que, no fim, vão aumentar os dividendos de donos e accionistas. Lá está, pessoas que criam fortunas com base em especulação e trabalho de terceiros.

    No meio disto tudo, temos a maioria silenciosa a trabalhar para garantir os lucros e a receber uma ínfima parte do que gera. Ainda levam com as culpas de terem poucos filhos e contribuírem para o envelhecimento da população.

    Para a dor ser ainda maior, temos que ouvir alguns idiotas úteis a defenderem, em horário nobre, que empresas servem para dar lucro e como tal, há que não atrapalhar a vida dos ricos.

    person standing near the stairs

    Parece não haver grande consciência sobre a enorme distância social entre um trabalhador de base e um CEO, um accionista (daqueles com fatias que se vejam) ou um dono de uma empresa.

    Lembro-me sempre de uma empresa pequena com a qual lidei, ali da região de Setúbal, com apenas 80 funcionários onde os trabalhadores da linha de montagem (a maioria) recebia pouco mais do que o salário mínimo (menos de 500 euros na altura) e o CEO cerca de 10 vezes mais. Isto numa micro-escala. Nas multinacionais detidas por milionários esta diferença é quase incalculável.

    Qual é o problema de puxar esta minoria, com lucros absolutamente pornográficos criados nos braços dos outros, para a realidade do quotidiano e taxar, de forma mais justa, as grandes fortunas? Fogem para paraísos fiscais? Por que permitem os governos, sequer, a existência de paraísos fiscais?  

    group of person on stairs

    Não se trata de ideologia mas sim de pura justiça social na distribuição da riqueza acumulada. Ela não caiu do céu e muito menos foi obra de um indivíduo. Que tabu é este e que medo têm os governantes desta minoria que controla a riqueza do planeta?

    É mais fácil meter polícias pobres, cuja idade de reforma também aumentará, a bater em trabalhadores que lutam pelos seus direitos do que ir atrás de quem acumula o capital?

    Não perceberá a polícia de choque, nas ruas de Paris, que está no lado errado da barricada?

    E já agora, percebemos nós, portugueses calmos e passivos (a não ser que o golo tenha sido em fora-de-jogo), que os franceses estão a fazer o que toda e qualquer população devia fazer de cada vez que nos chamam para pagar os dislates das elites?

    Nós somos a maioria. Deveríamos ser nós a ditar as regras.

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Às tantas ainda chega uma hora em que se começa a partir coisas…

    Às tantas ainda chega uma hora em que se começa a partir coisas…


    Não sei se tiveram a oportunidade de ver o debate entre Cotrim de Figueiredo e Duarte Alves, a propósito do (alegado) aproveitamento das grandes cadeias de distribuição para inflacionarem ainda mais os produtos, em nome do lucro fácil.

    Se não viram, puxem a box para trás e vão ver (SICN), porque é uma lição de como ser eficaz na mensagem política.

    Cotrim de Figueiredo fez o que se esperava dele e defendeu o lucro a todo o custo. Ou melhor, tentou explicar-nos a naturalidade das receitas extraordinárias sem que isso significasse um aumento das margens por parte das distribuidoras.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    Não foi o primeiro, e certamente não será o último, a tentar convencer-nos que o aumento dos produtos básicos apenas reflecte a inflação e os custos de produção. Pedro Marques Lopes, entre outros da direita mais ou menos liberal, tentam explicar com ideologia aquilo que a Matemática não permite.

    Duarte Alves, que é inteligente e consegue ler um relatório e contas, não tem metade do paleio e da lábia compressora com que Cotrim defende as suas ideias – ou ideais, vá. A cada frase debitada com o aumento do custo de produção do alimento X, Cotrim tentava mostrar um aumento semelhante nas prateleiras do supermercado. Finalizava cada frase com um “não estou aqui para defender as grandes superfícies, mas…”.

    Mas não fez outra coisa que não fosse culpar a cadeia de produção pelos aumentos e isentar os grandes grupos de distribuição.

    Pelo meio ainda fez uma piada, sugerindo a Duarte Alves que ligasse ao seu amigo Putin e lhe pedisse para desocupar a Ucrânia, para que a inflação voltasse ao que era. Duarte Alves, que é bom rapaz, mas a quem falta o tão famoso killer instinct, podia ter lembrado ao Cotrim que amigo, mas amigo a valer, era ele quando andava a distribuir e publicitar Vistos Gold pelos endinheirados russos, aí há uns bons 10 anos, quando era presidente do Turismo de Portugal.

    Cotrim é aquilo tipo de escroque que usa a semântica, e já agora, uma boa preparação de dossiers, para repetir mentiras como se fossem verdades.

    goods on shelf

    A questão essencial desta narrativa dos liberais e dos afoitos defensores da Jerónimo Martins é a seguinte: se o preço na prateleira reflecte apenas o aumento dos custos de produção – sugerindo, pois, que os supermercados também absorvem parte do impacto –, como é que os lucros aumentam relativamente ao ano anterior?

    Como é que os produtores se queixam de margens mínimas e não conseguirem manter a produção?

    E como é que os trabalhadores em toda a cadeia de produção não viram aumentos reais?

    Não há mais ninguém que veja que a conta não bate certo?

    Os únicos que, comprovadamente, aumentam os ganhos são os supermercados, mas os avençados vão-nos repetindo que é pelo meio da cadeia que o dinheiro se perde. Então… se se perde, como é que se multiplica no fim?

    Parece um rio misterioso que passa a riacho ali no meio, praticamente seca e, no fim, se transforma num oceano. Considero-me um optimista, e até acredito nas benesses da Matemática, mas esta história parece mais um auto-de-fé.

    aerial photography houses

    Rodeados de casos destes, e de ataques diários, os portugueses deixam de consumir ou sequer de conseguir pagar as despesas da casa. Salários que chegam ao fim do mês vão sendo notícia. O Governo português toma uma medida acertada, finalmente, de atribuir uma ajuda imediata para que os mais necessitados consigam pagar a renda.

    Pode ser um penso rápido e não fechar a ferida – o problema é estrutural, todos sabemos disso, mas há milhares de famílias que deixaram de conseguir pagar as suas habitações e comer decentemente.

    E eis que aparece novamente o Banco Central Europeu (BCE), sempre pela inenarrável Lagarde, para umas reguadas nos Governos da Zona Euro, pedindo-lhes que acabem com as prestações sociais.

    A teoria é que ao injectarem dinheiro nas famílias, a sua capacidade de consumo aumenta e, dessa fora, as políticas do BCE são menos eficazes. Ou seja, pagar a renda de casa já é consumir. A esmola que vai ser dada a famílias em dificuldades para que não percam o telhado, é visto pelo BCE como capacidade de consumo. De que forma? Deixam de pagar a casa e vão comprar vinho verde?

    lighted high rise building near body of water at nighttime

    Não chega empobrecer. Não chega atingir a loucura com o desespero de não saber o dia de amanhã. Não chega pagar uma guerra escolhida por outros. Temos de ficar na rua, a céu aberto, completamente de gatas no que sobra de dignidade humana.

    E é ainda mais engraçado que pessoas como Cotrim de Figueiredo, ou todos aqueles que defendem os donos do capital, nos digam há décadas que o salário mínimo não pode ser aumentado por decreto. Já o lucro das multinacionais, o custo das nossas casas, a grandeza do nosso empobrecimento, a diminuição dos nossos salários, não só podem como são, ciclicamente, decididos por decreto.

    Puta que os pariu! A essa minoria que controla o acesso ao capital, e que nos faz matar por migalhas. Pobre classe trabalhadora que demora a perceber que é ela a maioria, é ela a detentora do conhecimento, e é ela a dona da verdadeira força.   

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A TAP é de todos, mesmo de quem não voa nela

    A TAP é de todos, mesmo de quem não voa nela


    Há uma boa dezena de anos, quando ia buscar o meu filho à creche, tinha por hábito estacionar no parque em frente, sem pagar, entrar no edifício e sair, quatro minutos depois, com ele pela mão. Esta rua ficava no meio de uns pastos, não tinha saída e o trânsito – se é que lhe podia chamar assim – limitava-se aos carros de pais que iam fazer o mesmo que eu.

    Nunca vi ninguém a ir à máquina do parquímetro, até porque essa acção demorava mais a cada pai do que ir buscar o respectivo descendente. Certo dia, quando chego ao carro, vejo uma multa afixada. 

    Liguei para a EMEL local e uma senhora, extremamente antipática, dizia-me: “aqui na Suécia nós cumprimos as regras”. Na altura, eu não falava sueco, e obviamente percebia-se que era emigrante. A senhora descascou-me de alto a baixo, deu-me uma lição sobre regras de conduta no Primeiro Mundo. Afirmou até, sem sair da sua cadeira, que todos os pais pagavam o estacionamento quando iam buscar as crianças, menos eu.

    top view photo of red and blue convertibles on asphalt road

    Informou-me até que ela, mesmo sem ter filhos, pagava os impostos todos para que “nós” (os mais escuros) pudéssemos ter creches grátis para os nossos filhos.

    Desliguei o telefone pensando que era um selvagem e questionando-me se, de facto, alguém pagava estacionamento por três ou quatro minutos, algo que eu nunca tinha visto nos indígenas que chegavam à creche à mesma hora do que eu.

    No dia seguinte voltei ao local do crime com um bloco de notas. Sentei-me e esperei. Contei o número de pais que lá apareceram, os carros que tinham, o tempo que demoraram e quantos tinham pagado o parqueamento.

    Numa hora inteira que lá estive aquele parquímetro viu cerca de zero coroas, num universo de 50 pais. Escrevi um e-mail ao chefe da senhora – a tal que simpaticamente me tinha informado que eu era um selvagem –, explicando o tratamento ligeiramente racista a que tinha sido sujeito por uma funcionária que pagava impostos para creches sem as usar.

    brown abaca

    Disse-lhe também que tinha visto 50 louros bem selvagens, e que, pelo que me tinha apercebido, ninguém demorava três minutos a ir meter moedas para ficar estacionado outros três minutos.

    O chefe da senhora escreveu-me a pedir desculpa em nome do departamento, retirou a multa e, em seguida, colocou uma placa em frente à creche a informar que o estacionamento era grátis durante 15 minutos.

    Ainda hoje vi a placa, e lembrei-me da frase do meu camarada Luís Gomes, tão gasta e repetida, de que a TAP é sustentada por pessoas que nem voam nela.

    “Hiiiii…. que grande volta foste dar para responder ao discurso liberal que te foi dedicado, por uma pessoa que não gosta da IL, mas fala como eles”. 

    Pois é, meus amigos. Eu não gosto de colocar a mesa de jantar sem compor a decoração: há que criar ambiente para trinchar o peru.

    O argumento de “paga quem usa” é o típico de quem defende uma sociedade não solidária. Eu nunca fui operado na vida e julgo que, em idade adulta, entrei num hospital três vezes para meter gesso num braço, ou um ombro no sítio, depois de umas futeboladas.

    Devo então pagar impostos para o SNS quando há gajos que passam lá a vida?

    Sim, claro que devo. Pela mesma razão que devemos pagar impostos progressivos, para que os que mais recebem possam contribuir para os que menos têm.

    É esse o princípio básico de uma sociedade justa e solidária, com a qual me identifico. O contrário disto é o caos do salve-se quem puder, sem rede social que ampare as quedas. Nem todos podemos ser um CEO por mais que tentemos. Alguém tem de limpar as ruas ou fazer o pão e, nem por isso, têm de estar condenados a uma vida de miséria.

    Tal como o Luís, eu já trabalhei por conta de outrem e por conta própria. Neste momento, faço as duas variantes, uma espécie de pau para toda a obra, dividido por quatro empregos. Ainda assim, a minha actividade não me tolda a visão do que acredito ser uma sociedade justa, com menos degraus e intervalos mais pequenos entre as classes sociais.

    Isso só é possível se todos pagarmos para o bem comum. Algo que aprendi na Escandinávia, com impostos elevadíssimos e um retorno óbvio e de qualidade em serviços públicos. 

    Quando muito, poderia o Luís discutir, se quisesse, era se a TAP tinha interesse público para fazer parte das despesas feitas com dinheiro dos impostos. Essa discussão ainda aceito – a de que muitos que a pagam não a usam, mas enfim, parece-me mais limitada.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    A minha avó nunca entrou num avião da TAP, mas fica radiante de cada vez que um TAP me leva até ela. Quantas Bias – nome utilizado por Maria Francisca Franco –, ainda aos 95 anos, espalhadas por Portugal, não terão um Tiago para ver algures numa das várias comunidades portuguesas ligadas pelas pontes da TAP? 

    Mas, segue o Luís, na tentativa de me responder, com o embrulho de sortidos húngaros na esperança de que, dali, saiam pastéis de nata. [Sou um fã dessa iguaria, devo confessar]. Pensei que já ninguém usasse o argumento de “a TAP não serve o Porto e Faro”, mas enganei-me. Ainda há quem use um não-assunto para tentar arranjar mais um motivo para o seu encerramento.

    A TAP “não serve o Porto e Faro” como a KLM não serve Roterdão, a Ibéria não serve Barcelona e a Lufthansa Hamburgo. Ou a Austrian não serve Salzburgo e a Air France, Marselha. Ou a Brussels não serve Antuérpia e a SAS Gotemburgo.

    Posso continuar por mais cinco linhas, mas acho que a ideia já passou. As companhias têm um hub (normalmente as capitais, sendo a Lufthansa um caso especial) e, portanto, fazem pontes para as restantes cidades. Mas, como se percebe, é a partir do hub que organizam maior parte das saídas. Não é a TAP que faz isto, é a aviação, em geral. Ninguém inventou a roda na Portela.

    Pior do que a conversa de Porto e Faro é a repetição de outro mito já desmentido pelos quatro cantos do Mundo: o de a TAP receber dinheiro “há décadas”. Ora, devo lembrar que tal prática era proibida pela União Europeia e companhia alguma, de bandeira, podia receber financiamento público. Que me lembre, a excepção à regra aconteceu durante a pandemia da covid-19 e, nessa altura, várias companhias foram ajudadas pelos Estados com a autorização comunitária.

    Assim, de cabeça, lembro-me da Lufthansa, da SAS, da Iberia, da TAP e da Air France. Esses dois anos terríveis, em que o poder político decidiu arruinar o sector dos transportes, foi culpa da TAP? O défice acumulado nessa altura é culpa dos trabalhadores da TAP? Não me parece.

    Por que razão devem eles agora pagar a factura? É esse o busílis da questão, que, no diagnóstico feito pelo Luís, não vi qualquer resposta. O que fazer com os mais de sete mil trabalhadores e todos os empregos indirectos que estão nos fornecedores? No fundo, o que fazer com o peso da TAP na nossa Economia? 

    A outra altura em que a TAP recebeu dinheiro público, antes da nacionalização tão criticada, foi quando o Governo de Passos Coelho pagou a um empresário para que a companhia aérea nacional fosse comprada. É mais uma daquelas histórias de homens de negócios que arriscam com o dinheiro alheio. Em termos matemáticos, o risco assumido pelos privados que compraram a TAP foi ali a rondar o elemento absorvente da multiplicação: zero.

    Há uma parte em que concordamos, até porque a vida não é assim tão complicada: o Estado português vai ao bolso dos contribuintes com elevado requinte de malvadez.

    Pessoalmente, não é tanto o valor que me choca, é mais o serviço que nos é devolvido. Para aquilo que são os serviços públicos, hoje em dia, acho que não valia a pena continuarmos a pagar impostos (quase) ao nível da Escandinávia.

    Mas noto que enquanto o Luís faz as contas, e bem, ao que o sr. João do Táxi ou a sra. Joana do Cabeleireiro pagam, já se esquece da calculadora na altura de referir os salários dos trabalhadores da TAP. Repare-se: se os salários são mais elevados, significa que também pagam mais impostos para o sr. João do Táxi. E ainda bem. É assim que funciona uma sociedade civilizada.

    Nós, que não trabalhamos na TAP, nem conduzimos táxis, não devíamos criticar os salários da TAP, da NAV e de mais meia dúzia de sítios que pagam como no resto da Europa de Primeiro Mundo. Aquilo que devíamos, tal como os professores andam a fazer há meses, era exigir uma justa distribuição de riqueza e salários dignos. Não são os da TAP que estão mal, são os outros.

    Mas falemos de alternativas, então, Luís. A TAP, na tua visão, devia ter sido extinta, presumo, antes de entregarem o primeiro cheque ao Neeleman. Garantes tu que, sem a TAP, caso o interesse em Portugal se mantenha, que haverá alguém que faça as ligações. Muito bem: o clássico mercado como solução para o desconhecido.

    E se não houver interesse? Quem é que liga a diáspora ao país, especialmente nas rotas pouco lucrativas? Quem é que garante a ligação às regiões autónomas? E às ilhas mais pequenas? Quem é que liga com os PALOP, onde estão milhares de portugueses?

    No fundo, quem é que faz a ponte com os cinco milhões de lusos e luso-descendentes espalhados pelo Mundo? Num país encostado no fundo da Europa, sem ferrovia e longe de tudo… a solução é depender do interesse alheio?

    Fico incrédulo com as contas feitas dos salários que poderiam outros receber se a TAP não existisse. É um claro caso de indignação selectiva. Estivemos 13 anos a sustentar o BES e nunca vi ninguém a dizer quantos portugueses com o salário mínimo poderiam ser aumentados. Nunca vi uma linha da direita portuguesa a contestar as PPP ruinosas, electricidade em regime de monopólio proibitiva, portagens ou combustíveis. Aliás, até vi liberais no Parlamento – já sei que o Luís não gosta destes liberais, embora pareça muito – a defenderem o cartel das gasolineiras, pedindo menos impostos para eles. Quando o Governo baixou os impostos, as gasolineiras comeram as margens.

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    Ou seja, entre poder político e donos do capital, faz-se o banquete. À direita nada parece incomodar, e até a especulação nos supermercados já os vi defender. O lucro manda.

    Mas ai de nós se defendemos uma companhia aérea num país periférico que, só por acaso, faz verdadeiro serviço público. Aí entramos no sorvedouro de dinheiro público e na raiz do atraso estrutural desde 1985.

    No que toca a prioridades e dinheiro público atirado para a sarjeta, decididamente não estamos a assistir ao mesmo filme. Há um rio de poupanças a fazer e de desperdício para cortar, antes de se pensar na reestruturação da TAP. Que, já agora, será inevitável. 

    Dou um exemplo para ajudar: Ferreira do Amaral saiu esta semana da Lusoponte ao fim de 16 anos. O que teríamos poupado nesta dezena e meia de voltas ao sol se ele não tivesse assinado o contrato de exploração enquanto era ministro das Obras Públicas?  Eu arrisco, para não me esticar muito: uns quinze A320. Em leasing

     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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