Leonilde nasceu em pleno Estado Novo. Veio da planície, do Alentejo profundo, para a capital. Os pais empregaram-se numa mercearia. Ela terminou a 4.ª classe e foi para aprendiz de cabeleireira.
Farta de lavar cabeças num bairro da periferia, Leonilde decidiu voltar a estudar. Não ia ficar naquele salão para o resto da vida. Um único entrave: o pai. Era ele que mandava lá em casa e nem queria ouvir falar em escola. A cachopa ainda se perdia. Devia agradecer a sorte de ter um emprego e um ordenadinho. Além do mais, estava na altura de pensar em casar. Qualquer dia começavam a dar à língua.
A Leonilde casou. O Rogério trabalhava na construção naval. Era bom rapaz e tinha prometido deixá-la voltar a estudar. Mas veio uma gravidez. Depois outra. E uma terceira. Queriam um filho varão e só nasciam meninas.
Após a revolução, desiludido com as condições de vida dos trabalhadores, Rogério juntou-se ao sindicato. Incutiu em Leonilde, que, entretanto, voltara a estudar, os valores do socialismo. Não faltavam a uma reunião do partido, a uma manifestação, a um comício.
Terminada a licenciatura, Leonilde, de foice e martelo ao peito, sentia-se mais preparada do que nunca para ajudar. Queria combater o capitalismo. Ser a voz dos desfavorecidos e dos explorados.
Passei há dias por uma das filhas e perguntei pela família. Contou-me que o pai, aposentado, regressou sozinho ao Alentejo. A mãe é candidata a presidente de uma junta de freguesia:
– Faz sentido. – respondi – Sempre esteve muito ligada à política.
– Fazia. – disse ela – Se não fosse ser a candidata da extrema-direita.
Perante a minha perplexidade, explicou-me a razão invocada por Leonilde quando ela própria a questionou:
– Só eles é que me convidaram!
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.
Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.
Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.
O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.
Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.
Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.
Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.
O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:
– Em que página está esse poema?
– Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?
O poeta abriu o livro e leu:
“Ovos,
galinha,
milho
e…”.
Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.
O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.
O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:
– E… arroz. – completou.
Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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De onde me encontro, olho para a vida como se olha para a casa da infância. Descubro que o edifício outrora enorme é, afinal, diminuto. Os corredores são estreitos, os tetos baixos; as janelas dão para um quintal exíguo. Busco o prado imenso num canteiro relvado.
Vista daqui, a minha existência é como essa casa: ínfima. A passagem, que parecia não ter fim, revela-se feita de breves instantes. Os planos para o futuro, tantas vezes adiados por não haver pressa, serão para sempre planos. Intenções.
O tempo — longo, lento — foi um inimigo a vencer. Falta muito para acabar o curso. Falta muito para acabar de pagar a casa. Falta muito para os filhos serem adultos. Falta muito para chegar à aposentação.
A dor, a tristeza, a raiva… tudo passa:
—Tens de dar tempo ao tempo.
Os minutos tornam-se horas; as horas, uma eternidade. O tempo a arrastar-se. Lento. Lento. Lento. E eu, com pressa de chegar. A dar ao tempo, o tempo que nem desconfio não ter.
Sentamo-nos, tu e eu, num banco junto ao mar. Deixamos o olhar navegá-lo, baloiçando tranquilamente sobre o ondular leve das águas. Deito a cabeça no ombro de um casamento de 50 anos.
A lua, os barcos, a palmeira, o homem que passa com uma canastra na mão, este banco — tudo é enorme. Tudo será para sempre enorme. Não para nós.
Afagas-me as costas. Brincam os dedos das nossas mãos entrelaçadas. Percorre-me um misto de tristeza, melancolia e felicidade contida, de quem sabe que este movimento não é eterno, mas encerra a doçura de uma vida plena e extraordinária na sua normalidade.
Inspiro o cheiro a mar presente. As pálpebras descem lentamente. Um a um, invadem-me os aromas do passado: a pele dos filhos pequenos, as flores do bouquê de noiva, o perfume que usavas quando nos conhecemos, as frésias do quintal, o bolo mármore dos lanches na Alameda, o colo da minha mãe.
Cheguei!
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Vivia no Beco do Espinho uma mulher má. Dizia quem a conhecia que nunca tinha sido melhor:
— Foi sempre assim. Terá de aprender com a vida. Até lá, temos de ter paciência.
Certo dia, a mulher adoeceu. O caso era grave. Na vizinhança, todos se apiedaram dela e acorreram a ajudar a família como podiam:
— Coitados dos pais. É gente boa. Ela é que saiu ruim. O que é que se há de fazer? — comentava-se.
Não tardaram, porém, a perceber que abusava da generosidade de todos os que a visitavam. Os agradecimentos saíam-lhe a ferros, arrancados da boca pelo olhar severo dos pais envergonhados. Na sua boa fé, a população acreditou ter chegado o tal ensinamento que a iria mudar:
— Pobrezita! Ninguém merece uma coisa destas. Não era preciso tanto!
Recuperada da doença, a mulher retomou os velhos hábitos. A maldade, entretanto mal disfarçada, tomou a sonsice por companheira e ganhou um novo fôlego. E, quando, algum tempo depois, os pais faleceram, partiram com eles os únicos limites que até então conhecia.
Dois anos mais tarde, a morte, sempre impiedosa e, desta vez, inesperada, arrancou-lhe do colo a única filha.
— Um golpe destes muda qualquer uma. — pensaram todos. Pensaram mal. Ficou exatamente na mesma. Má.
Um dia, a mulher zangou-se com uma nova inquilina acabada de chegar ao seu prédio. O objeto da discórdia: vasos e plantas no vão da escada. Coisa grave! Gastou um pacote de sal com as begónias, mas os vasos continuavam no mesmo sítio. Não podia deixar passar a afronta. A sessão de gritos e injúrias que se seguiu também não deu frutos. A vizinha ouviu-a até ao fim, sem qualquer expressão no rosto. Despediu-se, virou costas e entrou em casa. Fora de si, a mulher correu a escrever uma mensagem em letras raivosas que enfiou por debaixo da porta do 3.º esquerdo. Era, afinal de contas, uma pobre vítima incompreendida. Tinha o direito de se defender. No bilhete, expressava o desejo de que a filha da vizinha tivesse o mesmo destino da sua, só para ver se ela percebia o que custava.
Os habitantes do Beco do Espinho resignaram-se, então. Deixaram de esperar que a vida lhe pudesse ensinar alguma coisa. Não havia dentro daquela alma o mais pequeno sinal de um ser humano por resgatar. A quem perguntava como estava a mulher depois de tantas provações, os que a conheciam respondiam agora:
— Má, como sempre. Se mudasse de fora para dentro, era a primeira.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura. Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos. Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes. A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.
Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica. Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:
– Esse não está à venda. – respondia Odete.
– Que pena! Tão bonito. – comentavam.
Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.
Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:
– TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!
A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:
– TA-LE-GO! PÃ-O!
Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.
Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas. Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.
Cedo correu a notícia pela cidade. As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:
– O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?
Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram. Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão. Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.
Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Raimundo nasceu em berço de ouro. Na verdade, em berço dourado, mandado fazer de propósito para o único filho da família Souza. O menino medrou. Cresceu. Cresceu. Cresceu. Diziam os pais que o rebento era espigadote. Os avós, que era bom para ir ao figo. Os amigos, que devia jogar basquete. E ele, que não compreendia o que significava espigadote, nunca tinha visto uma figueira nem gostava de basquetebol, ignorava os comentários. Aliás, tudo lhe era indiferente. Sem preocupações e sem nada melhor para fazer, crescia.
A escola era um grande aborrecimento. Os professores chamaram a atenção dos pais. O rapaz andava desinteressado e em más companhias:
⎼ Já não basta ele andar de cabeça no ar. Olhem que o Carlos não é flor que se cheire. ⎼ avisaram.
Com uma longa carreira no ensino, o diretor afirmava que o problema do rapaz era falta de motivação. Estava enganado. Muito enganado, como se veio a provar quando o Sr. Souza adquiriu o colégio. O Raimundo passou a ser o primeiro a chegar e o último a sair. Sentia-se em casa. Tornou-se um aluno exemplar. Não falhava o quadro de excelência. Ele e o Carlitos, quem diria?
Por esta altura, o Carlos jogava futebol e o Raimundo decidiu entrar também para a equipa. O treinador dizia que o rapaz era grande, mas não era grande coisa. A Souza & Filho Lda. não tardou em perceber as dificuldades do clube da vila. Um patrocínio generoso. O nome da empresa estampado nas camisolas dos jogadores. O estádio pintado de fresco. A bancada presidencial renovada. E, finalmente, um treinador capaz de reconhecer o verdadeiro talento. Raimundo, esse, perdeu o gosto pelo desporto. Já não lhe apetecia.
Entediado, deambulava horas e horas pelo calçadão, junto à praia. Certo dia, perdeu-se de amores por uma ruiva que ali passava. Não a voltou a ver, mas tinha a certeza de que era o amor da sua vida. Sentado na gelataria, lambia colheradas de gelado de baunilha e procurava-a com o olhar. Enquanto isso, crescia, crescia, crescia. Para passar estas horas lentas e acalmar o coração, começou a versejar. Rimas únicas, de uma singularidade irrefutável: amor a rimar com pavor; olhar com almoçar; correr com morder; amanhã com maçã; mulher com colher; coração com leitão. Quatro longas tardes. Dezenas de poemas. Era obra. Reuni-la em livro, inevitável. O pai, que nem era apreciador de poesia, ficou fascinado. Reservou para si 500 exemplares. Toda a tiragem. Não houve cliente, fornecedor ou funcionário da Souza & Filho que não recebesse um volume de Aruiva que me cativa. Estava ali um grande poeta, sim senhor:
– Um Pessoa, se ele quisesse!– exclamou o professor de literatura.
Mas o Raimundo não tinha vontade de continuar a escrever. Estava visto que a ruiva não voltava e já estava tudo dito.
Uma banda! Uma banda é que era! A música nunca fez mal a ninguém. Tinha tocado flauta no colégio. Um saxofone não havia de ser assim tão diferente. O Carlos era afinado. Podia ser o vocalista. Comprou mais uns instrumentos, o pai mandou preparar uma sala de ensaios na cave. Juntou uns amigos e formou a Raimundo & Friends. Ensaiaram uns dias. Gravaram duas músicas e enviaram-nas para uma conhecida editora de Lisboa. A resposta foi estranha: queriam conhecer o Carlos. Não fosse haver engano, o motorista da empresa levou os dois amigos até à capital. Mas não havia. Queriam mesmo conversar com o Carlos. Seguiu-se um concurso de novos talentos. Depois o Festival da Canção, um CD, a rádio, concertos… O Carlos não parava. O Raimundo já mal conseguia falar com ele. Assistia ao longe, fascinado pelas ovações, pelos elogios, pelos grupos de fãs que seguiam o amigo por todo o lado.
Enquanto isso, a Raimundo & Friends continuava a ensaiar. Tocavam nos bares e restaurantes da vila, nos bailes, nas feiras. Entristecia-os ver o público conversar enquanto atuavam. As bocas cheias de farturas, de fogaças, de sandes de porco no espeto. O Raimundo foi desanimando. E, à medida que desanimava, a sua pele ganhava um tom estranho. Esverdeado. Os médicos não conseguiam explicar. Fechava-se cada vez mais no quarto. Seguia quase ao minuto a vida do Carlos. Parou de crescer. Encolhia, ao invés. Completamente verde.
Na vila, a mudança não passou despercebida. Tornou-se tema de conversa. Havia teorias:
⎼ É da comida. Só comem porcarias. ⎼ dizia a D. Amélia.
⎼ Eu digo que é da água. Está cheia plástico. ⎼ respondeu o Sr. Jorge.
⎼ Aquilo é da vacina. Eu bem avisei, mas não quiseram acreditar. ⎼ afirmava a D. Manuela, feliz por finalmente provar que tinha razão.
Uma velha, enrolada sobre o cajado à porta do Centro de Saúde, levantou o rosto. Com ar grave e seguro, fez o diagnóstico:
⎼ É inveja, digo-lhe eu, que já vi tudo.
O Raimundo, verde, verde, continuava a mirrar. Deixaram de o ver. A vila inteira foi mobilizada. Nada. Nem sinal do rapaz. Tinha encolhido tanto que tinha de se esconder não fossem pisá-lo. Um dia, aproveitando a calma do amanhecer, trepou a uma folha de malva para apanhar os primeiros raios de sol. Estendeu-se, espreguiçou-se, bocejou. Uma toutinegra ensonada saiu de dentro de um arbusto e comeu-o.
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É quase primavera. Ajoelhado, arranca pacientemente as azedas que teimam em invadir os canteiros. Um carreiro de formigas entra pela terra seca. Puxam, empurram, arrastam como podem pedaços de granulado. O cão olha espantado a comida que sai da tigela e segue jardim adentro até desaparecer. O trajeto repete-se uma e outra vez. Vaivém implacável que aprisiona os insetos à rotina. Retomam-na a cada dia.
Salvador detém-se a observar as minúsculas Sísifos. Talvez devesse tapar a tigela. Mas dá-lhe pena. Pergunta-se se as formigas terão memória do dia anterior. Ou será que, como ele, acordam e percebem que o sono foi apenas o alívio permitido entre os dias?
Pergunta-se se estará sozinho ou se haverá outra criatura no mundo que, a cada amanhecer, seja esmagada pela realidade. Que receba, a cada despertar, a notícia da morte do amor da sua vida. Se haverá, para além dela, mais alguém que faleça um dia e outro e outro. Se mais alguém desperta pronto a viver e é confrontado com o espaço vazio ao seu lado. O silêncio na casa. A solidão. E depois levantar-se. Preparar-se como se estivesse vivo. E ao longo do dia ir rolando a rocha que vai ganhando volume à medida que as memórias a vão adensando: a doença, o medo, a degradação do corpo, a depressão, as dores, as últimas palavras, o último suspiro. O saber que um segundo antes ela ainda o ouvia. O medo de não ter dito tudo. Nunca se diz tudo. A escolha da roupa, do caixão. O retorno a quatro paredes que já não são casa. As roupas nos armários. O anel de noivado e a aliança de casamento que ficaram no móvel da entrada quando saiu pela última vez. Ainda ali estão. Não lhes toca. E se ela voltar?
Todos os dias são o mesmo dia. Todos os amanheceres o reviver. Pergunta-se quais terão sido os seus crimes? Que outro homem cumpre em simultâneo os destinos de Sísifo e Prometeu? As entranhas renovam-se apesar da sua vontade. Leu recentemente um livro no qual o protagonista perdia a memória e repetia a cada dia o dia anterior. Não é esse o seu caso, pensa. Antes fosse. Lembra-se bem de cada detalhe. De cada sensação. Ainda sente as mechas de cabelo dela a escorrer-lhe entre os dedos. Ainda as vê caídas no chão. Não, não perdeu a memória. Apenas é incapaz de a tornar permanente.
A memória ressurge incompleta a cada despertar. As lacunas preenchem-se ao longo do dia. Uma escova. Uma fotografia. O sofá. Ao anoitecer está completa. Esmaga-o. E ainda assim, espera a noite. Anseia por ela. Abraça-a. O sono chegará em breve. E depois o sonho. E finalmente o reencontro. Olham-se e sorriem. Há muito que as palavras são desnecessárias entre eles. Passeiam, tomam café no alpendre, brincam com o cão. Às vezes viajam até destinos longínquos. Mergulham felizes em águas tíbias. Conversam muito, ainda que não digam uma palavra. A luz do amanhecer afasta-os lentamente. Já não a consegue tocar. Procura-a e não a encontra. Telefona-lhe, mas ela não atende. Desperta angustiado. Alivia-o perceber que foi um sonho. Afinal ela não partiu. Procura-a com a mão. Vira-se. O travesseiro intocado diz-lhe que o sonho foi doce. E anseia já por mais uma noite, ainda que o preço sejam as entranhas em sangue a empurrar a rocha montanha acima. Quatro mil manhãs.
⎼ Morreste quatro mil vezes. ⎼ sussurra enquanto continua a limpar o canteiro.
Só ele sabe disso: um segredo bem guardado. Não interessa o que pensam os outros, a religião, a ciência… no traço descontínuo do sonho, são felizes.
⎼ Esta noite trago-te cá. A tua estrelícia floriu. Tens de ver.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Pousa o copo e a garrafa. Abre a janela e debruça-se sobre o parapeito. A brisa fresca no rosto sossega-o. Outubro. O fim do calor insuportável do verão do sul. A chegada discreta do outono. Olha para baixo e, por entre as copas das árvores que se começam agora a desnudar, vislumbra a avenida alumiada pelo branco quente dos candeeiros. Está bonita, a cidade. Romântica. Orgulhoso da sua obra, leva o copo à boca. Pega na garrafa e lê o rótulo. Tem bom gosto o senhor vereador, pensa. O brandy reconforta-lhe a garganta. A vista da penthouse é encantadora. Chamar-lhe penthouse pode ser exagerado. Mas soa bem melhor do que “último andar”. Vendeu-lha um rapaz muito correto. Até lhe fez uma atençãozinha. O pai é construtor. Pessoa honesta e trabalhadora. Mas não há seriedade que resista à maldade e à má-língua dos invejosos. É a pequenez da província. Não se pode contar nada a ninguém.
Copo numa mão, garrafa na outra, dirige-se ao terraço. Daqui a vista expande-se até ao centro da cidade. Ao fundo da avenida, os holofotes iluminam um conjunto de edifícios em remodelação. Luxuosos, charmosos, exclusivos. Isto sim, é uma boa aplicação dos fundos europeus. Devolver a cidade aos munícipes. Promover a habitação na Baixa. Em redor, um belo jardim que veio substituir o inestético parque de estacionamento. Houve quem criticasse a decisão. Mas basta olhar para perceber como valoriza o espaço. Além disso, é inegável que a cidade precisa de mais espaços verdes. Uma questão de saúde pública, até.
O Presidente já consegue imaginar-se no novo terraço. Jacuzzi. Vista mar. Não tinha pensado mudar-se, mas o construtor fez-lhe uma proposta irrecusável. E logo agora que estava a terminar o mandato para não dar azo a falatórios. Vendeu-lho a preço de custo. Uma joia de homem. Sabe bem o que o dinheiro custa a ganhar.
Olha para o telemóvel. Está na hora. Termina o brandy e encaminha-se para o escritório. Sente-se exausto. Os dias têm sido longos e difíceis. Abre a agenda. Olha para a lista de telefonemas a fazer e parece-lhe não ter fim, mas há que garantir o apoio à candidatura:
– Pois é, Meritíssimo. Pois é. O meu mal é não saber dizer que não. Uma vida a servir a causa pública… Conto então com o apoio do meu amigo, certo?
Deputado da nação. Quem diria!
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Voo TAP 103 Lisboa-Belo Horizonte. Onze horas da manhã. Novo aviso de atraso na partida. Laura anda de um lado para o outro. Coloca o passaporte na mochila, verifica o bilhete pela enésima vez, arruma-o também. Senta-se, levanta-se, volta a sentar-se. A espera adensa a inquietude e o medo de voar. Ao microfone o anúncio da possibilidade de um upgrade para a classe executiva. Laura pondera. Conclui que isso em nada altera a sua angústia: Se cair a económica, a executiva também não fica lá em cima.
Finalmente, ordem de embarque. Aguarda ansiosa na fila e pergunta-se porque não ficou em casa. Àquela hora estaria a regressar de uma tranquila manhã de praia. Mole. Sem preocupações. A saborear as merecidas férias. Porquê ir, então, se voar a aflige, se viajar dá sempre tanto trabalho e tem tantos imprevistos? Porquê abandonar o conforto do lugar seguro? Porque insiste em ir?
A viagem faz-se com a ajuda de um comprimido milagroso. Laura desperta com o anúncio da aterragem. Um pousar suave. Palmas. Uns persignam-se, outros verbalizam um “Graças a Deus” ou à Virgem da sua devoção. Laura aperta a caixa dos comprimidos: Abençoados!
Pés em terra firme. Aguarda-a o controle do passaporte, a espera das malas e a verificação da bagagem. Sai e depara-se de imediato com a amiga que a aguarda. Fica espantada ao vê-la. Ali, à sua frente. Um sorriso enorme. Braços abertos. Não compreende o seu próprio espanto. A viagem estava há muito planeada e sabia perfeitamente que amiga a viria buscar. No entanto, há sempre qualquer coisa de extraordinário no facto de encontrar alguém num local totalmente diferente daquele onde a conhecemos. Sente, neste momento, a mesma espécie de incredulidade que a assalta quando se encontra pela primeira vez perante um monumento famoso. Como se fosse preciso ir para ter a certeza. Para confirmar a existência.
Segue-se uma longa deslocação até à cidade. Pensa perceber agora a curiosa designação do aeroporto: “Confins”. Bastante adequada, na verdade. É noite e para lá da estrada, pouco se vê. A conversa, essa, é animada e vai dando forma ao que a noite esconde.
Chegadas ao centro da cidade, a amiga leva-a pelas ruas de Belo Horizonte com a alegria de quem mostra orgulhoso a sua casa. Os monumentos, as ruas famosas, os lugares da literatura, os belos edifícios. Mal podem acreditar que estão ali as duas. Laura ouve com atenção a história e as histórias da capital mineira. Quer ver tudo. Saber tudo. Experimentar tudo. E enquanto a amiga continua a mostrar-lhe a sua cidade, na mente de Laura começa a formar-se a primeira imagem do país. O seu olhar detém-se na luz vermelha de um semáforo a tentar assomar-se por detrás de um enorme emaranhado de cabos. Uma longa faixa negra. A perder de vista. Fios de esparguete negro, al dente, pendurados em postes:
⎼ Tantos fios! Mal se veem os semáforos. Isto é normal? ⎼ pergunta.
⎼ É, sim. ⎼ responde a amiga com uma gargalhada ⎼ Bem-vinda ao Brasil. Quando um cabo se estraga, não é substituído. Acrescenta-se outro. Aí, vai ficando cada vez mais volumoso.
Riem-se as duas. Laura imagina o poste à sua frente a transpirar como um halterofilista que excedeu os seus limites. As pernas a fraquejar e, por fim, o sucumbir ao peso. Repara, então, como a estes aglomerados de linhas horizontais se juntam, num plano inferior, estendidos sobre os muros e vedações nas entradas dos edifícios, incontáveis rolos de arame farpado com lâminas reluzentes:
⎼ Tanto arame farpado e tantas grades na entrada dos prédios. ⎼ comenta.
⎼ É. Tem de ser. ⎼ responde a amiga ⎼ Não está em Faro, não.
Laura repara que alguns edifícios têm grades até ao terceiro piso. Cabos, arame farpado, gradeamento ⎼ a miríade de linhas horizontais e verticais dá forma a um estranho e sinistro jogo do galo. Sinal de uma convivência pouco pacífica entre duas vontades distintas: a de unir e a de separar. O esforço de união é grande, porém frágil. Os cabos que a proporcionam são muitos, porém atabalhoados, com ar de improviso e de remendo. O desejo de separação, pelo contrário, é firme. As barras dos gradeamentos são robustas, as farpas do arame, feitas de materiais de boa qualidade. Um investimento desigual, evidência das enormes clivagens e da debilidade das costuras que unem a sociedade brasileira.
Na manhã seguinte, o programa é uma visita à zona da Pampulha. Estacionam numa rua bem perto da lagoa artificial e seguem a pé. Laura mal pode esperar por ver ao vivo a obra de Niemeyer. Atravessa a estrada em passo acelerado e depara-se com a pequena igreja de São Francisco. Niemeyer! As formas arredondadas. Ondas de azul e branco. Tão pequenina. Sente o coração bater mais forte. Aproxima-se. Quer tocar os azulejos. Repete com as pontas dos dedos os traços azuis que desenham peixes e pássaros sobre um fundo branco. Emociona-se. Percebe, então, porque veio. Porque veio desta vez e porque vai sempre. Olha para a amiga e exclama:
⎼ É aqui! É mesmo aqui!
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.
O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer. Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer. E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ exclama.
⎼ Pois vem! ⎼ confirma ele, continuando a pedalar.
Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar. Reparo como se cruzam, mas não param. Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.
Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:
⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.
Está morta, penso. Tão triste!
Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha! Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.
A senhora que sabe coisas volta a passar.
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ grito-lhe.
⎼ Pois vem! Ênã lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.
⎼ Tá visto que sim. ⎼ diz ele com um sorriso.
Um para cima, outro para baixo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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